Escravidão e Liberdade na Amazônia notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e africano Patricia Melo Sampaio*
Não se sabe, com exatidão, quando Laudelino chegou a Belém do Pará mas é certo que já estava servindo no Arsenal da Marinha daquela cidade quando, em outubro de 1855, embarcou no vapor Rio Negro em direção à Província do Amazonas. Laudelino era um dos africanos livres que, depois de uma jornada indescritível, alcançou os confins do Império.1 Em Manaus, Laudelino foi engajado nas obras públicas provinciais. Era esperado. Afinal, no curso da década de 1850, a capital da recém-criada província do Amazonas passava por um processo de expansão urbana; eram pontes, aterros, prédios para a administração provincial, entre outros empreendimentos. Naturalistas que passavam pela cidade descreveram o estado de agitação que tomava conta da pequena vila em decorrência da mudança de seu status político. O inglês Alfred Russell Wallace encontrou dificuldades para encontrar alojamento porque “(...) as casas estavam todas ocupadas e os aluguéis haviam subido assustadoramente pois a cidade recebia um contínuo afluxo de estrangeiros e comerciantes.”2 Não faltaria trabalho para Laudelino durante os anos que se seguiriam... Mas ele não era o único; Geraldo também veio do Pará em 1860 e, em Manaus, encontrou vários outros. Dessa vez, eles estão nas páginas dos jornais sendo, freqüentemente, presos por embriaguez e outras desordens: Teófilo Benedito é um dos mais contumazes, mas ainda se pode enumerar Domingos, Teodoro e Simão, nomes que revelam novas faces * Professora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em História (UFF) e pesquisadora do CNPq e da FAPEAM ( Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas). 1 Arquivo Público do Pará (APP) – Secretaria da Presidência da Província, 1855, Doc. 268, Oficio n.º 194 do Inspetor do Arsenal da Marinha, Felipe José Ferreira, ao Presidente da Província do Pará, Conselheiro Sebastião do Rego Barros, de 18 de outubro de 1855. 2 Wallace, Alfred Russell. Viagens pelos rios Amazonas e Negro. São Paulo: EDUSP/Belo Horizonte: Itatiaia, 1979, p. 231.
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africanas presentes nas províncias do Pará e do Amazonas entre as décadas de 1850 e 1860. Existem notícias a respeito até 1866, quando o vice-presidente da Província do Amazonas, Gustavo Ramos Ferreira, registrou que no Amazonas existiam cerca de 57 (cinqüenta e sete) africanos livres, já de posse de suas respectivas cartas de emancipação. Àquela altura, dizia Ramos Ferreira, a maioria vivia de “empregos públicos onde são de utilidade, apesar da má conduta de quase todos, por falta de trabalhadores de que se ressente essa cidade.” A maioria morava em um pequeno bairro de Manaus chamado, sugestivamente, de “Costa d'África, localizado nas imediações do cemitério São José. 3 A despeito das evidências, uma rápida olhada na historiografia revela algo impressionante: os africanos livres, literalmente, desapareceram. Na historiografia local relativa à escravidão, não há nenhuma menção à sua presença ou suas experiências na Amazônia. Na verdade, não foram os únicos. De um modo geral, os estudos sobre a escravidão africana na Amazônia são restritos e, de algum modo, ainda pouco conhecidos. A despeito do reconhecimento desse estado de invisibilidade, esse texto pretende recuperar algumas experiências do mundo do trabalho compartilhadas por índios e africanos na Amazônia do final do século XVIII e início do XIXl. Afinal, como já afirmou Flávio Gomes, se tomamos o Setecentos como ponto de partida, a população escrava negra e africana estava espalhada pela Amazônia, trabalhando junto aos índios nas lavouras, na coleta de produtos da floresta, nas canoas do comércio, nas cidades. Assim, em pleno século XIX, é forçoso reconhecer que, há muito, a “floresta já estava enegrecida”.4
Historiografia da escravidão na Amazônia: algumas leituras Usualmente, o tema da escravidão na Amazônia provoca estranhamento porque já se tornou comum afirmar que sua presença foi pouco significativa na economia regional dos séculos XVII e XVIII, fundada predominantemente sobre o trabalho indígena. Apenas na segunda metade do XVIII, com a chegada sistemática dos carregamentos da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778) é que esse quadro começa a mudar no
3 Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa – CENDAP/PPGSCA (UFAM). Jornal Estrela do Amazonas, 1859-1861, Rolos 04 e 05 (Microfilme). O registro do número de africanos livres de 1866 está no Relatório com que o Exmo Sr. 1º Vice-Presidente da Província do Amazonas abriu a Assembléia Legislativa provincial, no dia 05 de setembro de 1866 in Governo do Amazonas - Secretaria de Cultura. Documentos da Província do Amazonas: legislação e relatórios, 1852-1859. Cd-Rom, vol. 2. Sobre o bairro de africanos livres, cf. Aranha, Bento. Um olhar pelo passado (1897). Manaus: GRAFIMA/Prefeitura Municipal, 1990, p. 15. [Reimpressão fac-similar.] 4 Gomes, Flávio. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (sécs. XVIII e XIX. São Paulo: ed. UNESP: Ed. Polis, 2005, p. 49.
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Maranhão e no Pará. É assim que se chega ao século XIX, cristalizando-se uma interpretação simplificadora: o número reduzido de africanos resultou em impacto modesto na economia local e, desse modo, o espaço historiográfico disponível é proporcional à sua modesta envergadura. Além do mais, diziam os “clássicos”, os africanos não conheciam a região e nem a floresta e, por isso, preferiam-se os índios.5 Certamente, exceções importantes são os trabalhos de Manuel Nunes Pereira, Vicente Salles, Anaíza Vergolino-Henry, Arthur Napoleão Figueiredo e Colin MacLachlan. Mais recentes, fundamental não esquecer as pesquisas de Rosa Acevedo-Marin, Eurípedes Funes, Flávio Gomes e José Maia Bezerra Neto. Estes (e outros) trabalhos vêm mostrando realidades diferenciadas, ajudando a jogar por terra décadas de silenciamento sobre a presença africana na região. Também têm revelado novos mundos, construídos a partir das experiências, dores, lutas e embates cotidianos de africanos e índios.6 Não restam dúvidas quanto ao impacto provocado pela Companhia de Comércio sobre a demografia escrava no Grão-Pará, nem há muito que discutir quanto à predominância do trabalho indígena nos séculos XVII e XVIII. Contudo, a presença crescente de africanos no Pará coloca em movimento questões mais amplas que não podem ter suas dimensões avaliadas apenas em função do número de escravos disponíveis porque o que está em jogo, é a própria montagem e reiteração de uma sociedade hierarquizada, com escravos, cuja lógica de reprodução não se limita ao número de almas disponíveis nos plantéis, mas antes se traduz na reiteração de relações de subordinação e poder que dão vida ao próprio sistema. Isso, sem dúvida, é uma realidade importante que deve ser adequadamente considerada. Além disso, tais estudos sinalizam que, a despeito da entrada “tardia” de africanos, as características do comércio internacional e as formas de inserção no mundo do trabalho
5 “ Ora, para a identificação das espécies amazônicas que deviam ser colhidas na floresta, o negro africano não era a mão-
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de-obra indicada. Essa devia ser solicitada aos contingentes da brugrada local(...). Daí o descaso pela contribuição africana que não fazia falta.” Cf. Reis, Artur C. F. Tempo e Vida na Amazônia. Manaus: Ed. Governo do Estado, 1965, p. 147-148.. Pereira, Manuel Nunes. “A introdução do Negro na Amazônia”. Boletim Geográfico, n.º 77, 1949, pp. 509-515; Salles, Vicente . O Negro no Pará. Rio de Janeiro: FGV/UFPA, 1971; Vergolino-Henry, Anaíza e Figueiredo, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: APP/SECULT, 1990;. MacLachlan, Colin M. “African Slave Trade and Economic Development in Amazonia, 1700-1800” in Toplin, Robert B. Slavery and Race Relations in Latin America. Westport, Connecticut/ London, England: Grenwood Press, 19, p. 112-145; Acevedo- Marin. Rosa Du Travail Esclave au Travail Libre: Le Para sous le regime colonial et sous l’empire ( XVIIe – XIXe siècles) Doctorat de Troisième Cycle – Paris, 1985; Funes, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor: História e memória dos mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado – USP, São Paulo, 1995; Gomes, Flávio. A Hidra e os Pântanos, Op. Cit.; Bezerra Neto, José Maia. Escravidão negra no Pará, séculos XVII – XIX. Belém: Paka- Tatu, 2001. É importante considerar os trabalhos realizados por Edna Castro e Rosa Acevedo-Marin com relação às comunidades quilombolas do Pará. Ver, em especial, Negros do Trombetas: Belém: CEJUP/UFPA:NAEA, 1998 e o CD-Rom Quilombolas do Pará: mapeamento de povoados negros rurais. Belém,Ed. NAEA - UFPA, 2005.
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permitiram a emergência de uma sociedade na qual índios e africanos de diferentes procedências se misturaram intensamente, fazendo surgir “(...) mais precocemente uma sociedade multicultural e miscigenada que é a característica essencial da sociedade brasileira do pós 1888.”7 Também é importante destacar, como já fez Rafael Chambouleyron, que “a idéia de que a relação plantations/escravidão africana e a experiência do nordeste açucareiro representam um modelo ideal, dificulta a compreensão da experiência do Estado do Maranhão no século XVII. (...) O problema de considerar a Amazônia como região periférica é pensá-la como ' incompleta' ou como 'fracassada' quando era apenas diferente.”8
Sendo escravo no Pará As populações desembarcadas no Pará faziam parte de etnias distintas, capturadas na rede comum dos mercadores de almas. Os inventários fornecem pistas sobre sua procedência, ou, ao menos, as denominações correntes no Grão-Pará do início do XIX. Os dados representam 25 % dos escravos presentes nos inventários post-mortem do Pará entre 18091845. Tomando-os como ponto de partida e considerando as zonas de tráfico propostas por Manolo Florentino, é possível traçar um esboço do perfil dos plantéis africanos paraenses. A incontestável predominância de populações deslocadas da África Central Atlântica, nesse período, vincula o Grão-Pará ao mesmo fluxo que alimentava o tráfico nos portos do Rio de Janeiro.9 Carreira indica que, durante a atuação da Companhia de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, 59,3% de seus carregamentos vinham da África Ocidental e o restante da África Central Atlântica. Trabalhos para períodos posteriores apontam para a reorientação das rotas em direção à África Central Atlântica incorporando, em menor escala, portos da África Oriental. Entre 1775-1795, verifica-se o progressivo abandono dos portos da África Ocidental e crescimento da África Central; a partir de 1795 até início do XIX, o abandono dos portos da Guiné, a manutenção das zonas centrais atlânticas e a expansão em direção ao Índico. Esse reordenamento não é exclusividade do tráfico para o Pará e Florentino o identifica de maneira mais ampla, demarcando o mesmo período para redefinição das zonas de abastecimento de
7 Bezerra Neto, J. M. Escravidão negra no Pará, séculos XVII- XIX, op. cit., p. 9. 8 Chambouleyron, Rafael. “Suspiros por um escravo de Angola. Discursos sobre a mão-de-obra africana na Amazônia seiscentista” Humanitas. Belém: UFPA, vol. 20, nº. 1/2, 2004, p. 99-111.
9 Florentino, Manolo. Em Costas Negras. SP: Companhia das Letras, 1997, pp. 78–100. Os dados dos inventários estão em Sampaio, Patricia. Espelhos Partidos, op. cit
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escravos para o Rio de Janeiro. 10 Entender a presença de escravos no Grão-Pará significa buscar as formas de sua inserção nessa sociedade. Circular em Belém ou Manaus significava encontrar nas ruas carregadores africanos, vendedoras de açaí, mucamas e criados, forros negociando suas produções de tabaco, artigos de latão e cobre, chapéus de palha, oferecendo seus serviços de sapateiro, carpinteiro e ourives, folgando nas festas do Espírito Santo, de Nossa Senhora de Nazaré ou ainda, membros da Irmandade do Rosário. 11 Escravos foram utilizados em outras tarefas como a construção de fortalezas, condução de embarcações para o Mato Grosso, no cultivo da cana, arroz, tabaco, mandioca, milho, nas fazendas de criação de gado e cavalos do Marajó. Também eram artesãos, tecelões de chapéus de palha, de redes de algodão e maqueiras. Foram apanhadores de açaí, pescadores, padeiros, trabalhadores do porto, serventes de obras públicas, calafates, carpinteiros, pedreiros, ferreiros, vendedores de tabaco, garapa e frutas, lavadeiras, vendeiras, cozinheiras, que sabem “coser, lavar, engomar, cozinhar e também ganhar na rua”. Eram muitos. Ou, ao menos, o suficiente para não poder serem ignorados. Os dados demonstram o caráter multiétnico da capital colonial da Amazônia Portuguesa; a maioria de sua população era não-branca.12 População de Belém: Quadro % comparativo Ano/ Condiçã o 1787 1792 1822 1849
Brancos 38% 51% 45 %
Livres Pretos, Índios e Mestiços 11% 13% 9% 75%
Escravos
51 % 36 % 46 % 25%
Fonte: Cf. Sampaio, P. Espelhos Partidos, op. cit..Os dados de 1849 registram apenas a condição jurídica.
População do Rio Negro: Quadro % comparativo Ano 1775 1785 1795 1814 1848
Livres 8% 9% 11 % 20 % 96%
Escravos 2% 3% 4% 5% 4%
Índios 90 % 88 % 85 % 75 %
Fonte: Cf. Sampaio, P. Espelhos Partidos, op. Cit. Os dados de 1848 registram apenas a condição jurídica.
10 Carreira, A. Op. cit. , p. 100; Vergolino-Henry , A .& Figueiredo, N. Op. cit. p. 50.e Florentino, M. op. Cit. , pp. 80-81. 11 Registra-se a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos já em 1727. As informações sobre as atividades de escravos e negros livres foram recolhidas nos viajantes. Cf. Henry Bates. Um naturalista no rio Amazonas, pp.12, 25, 45-46; Alfred R. Wallace. Viagem pelos rios Amazonas e Negro, pp. 20, 27, 33, 67-68, 82 e Spix e Martius, Viagem ao Brasil (1817-1820), op. cit., p. 26 e 29. 12 Salles, V. Op. cit. pp. 317-327.
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Observando os números relativos à Capitania do Rio Negro ( os “sertões”) para os anos de 1775 a 1795, a preponderância dos índios é incontestável deixando claro que a presença escrava poderia carregar outros significados. Evidentemente, não constituíam a base da força de trabalho dos sertões, mas estavam presentes demarcando fronteiras diferenciadas em um mundo onde era possível ser propriedade de outrem. Quanto às estruturas de produção na segunda metade do XVIII, Ciro Cardoso verificou o crescimento de um setor produtivo baseado no uso da mão-de-obra escrava e também índia, conformado em grandes propriedades agrícolas. A ascensão desse setor é visível nas áreas de ocupação mais antigas como os arredores de Belém (Acará, Moju e Capim) - zona tradicional de lavoura canavieira com a predominância de engenhos reais - e também produtora de produtos para exportação, especialmente, o arroz, fumo e cacau. Esse perfil estendeu-se ainda a parte da Ilha de Marajó, alcançando a calha do rio Tocantins sendo a Vila de Cametá, localizada nesse rio, um bom exemplo desse processo de expansão. No caso do Rio Negro, esse quadro é diferente; suas produções mais rentáveis estão vinculadas aos produtos da floresta, entre eles, salsa, urucu, cacau, piaçava, óleos vegetais e outros. A produção de alimentos para abastecimento da capitania era realizada nas pequenas propriedades, marcadas pela presença heterogênea de camponeses (brancos, índios e mestiços) e também nas vilas pombalinas nas roças do Comum. Não há o que negar acerca da importância da presença da escravidão africana no Pará colonial, possibilitando inclusive uma certa “redistribuição” das hierarquias e das próprias fronteiras para delimitação das desigualdades sociais. A propriedade escrava constituía-se, sem dúvida, em um indicador poderoso nessa direção. Seguramente uma parcela da população indígena aldeada, exercitando as prerrogativas de seus cargos e postos, pôde ter acesso à propriedade de almas. Daí decorre mais que uma nuance: a questão da liberdade. Se os índios podiam ser engajados em formas de trabalho compulsório, no limite, eram legalmente livres ao contrário dos negros. A propriedade escrava demarcava outro limite no final do século XVIII: a legislação complementar à Carta Régia de 1798 estabelecia que, entre aqueles que poderiam isentar-se do alistamento compulsório nos corpos militares de serviço, estavam os que fossem proprietários de escravos. 13 A possibilidade de escapar do recrutamento e do trabalho forçado era viabilizada pela propriedade de homens e estabelecimentos minimamente rentáveis. Excluídos do recrutamento, a propriedade ainda podia garantir o acesso (ou a permanência) nas milícias, 13 Cf. BNRJ – I, 32, 16, 41 – Instrucção Circular sobre a formatura de novos corpos de milícias.
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forças móveis que podiam ser deslocadas para reforçar as tropas permanentes. Ser proprietário significava garantir sua própria liberdade, assegurar sua mobilidade espacial com menores restrições e ainda o acesso a postos militares que lhes garantiam outras honrarias e prerrogativas.14
“Índios, Mestiços e Pretos que não forem escravos...”: o mundo do trabalho “livre” no o Pará provincial
Em 1838, a Assembléia Legislativa Provincial aprovou a criação dos Corpos de Trabalhadores para atender ao serviço da lavoura, comércio e obras públicas por meio do recrutamento de “índios, mestiços e pretos, que não forem escravos e que não tiverem propriedades ou estabelecimentos a que se apliquem constantemente”. Cabia ao Juiz de Paz atender às demandas por trabalhadores, precedidas de licença dos comandantes distritais dos Corpos. Os recrutas não poderiam deixar seus respectivos distritos, sem autorização expressa, sob pena de prisão.15 Surgida logo após os “sucessos” da Cabanagem (1835-1840), tornou-se obrigatório associar a emergência dessa legislação ao contexto da repressão ao movimento cabano promovido pelas forças imperiais, sob o comando do Marechal Francisco Soares Andrea, experiente combatente de revoltas provinciais durante o período regencial. Claúdia Fuller assinala que foi Domingos Antônio Raiol quem desenvolveu a relação entre as modalidades de recrutamento forçado como parte de uma hábil estratégia de Andrea para desarticular as forças cabanas e, ao mesmo tempo, arregimentar forças para as tarefas de reconstrução da província no pós-guerra. De acordo com Fuller, a influência da interpretação de Raio foi longeva e deixou sua marca nos trabalhos de Vicente Salles, Pasquale di Paolo, entre outros.16 A ênfase em seu componente “racial” também não é desprezível; afinal, a lei é clara quanto aqueles que devem ser alvos preferenciais do recrutamento. Dessa maneira, representaria uma forma explícita de dominação racial, em resposta ao movimento cabano que assumiu, em muitas perspectivas interpretativas, o caráter de uma verdadeira “guerra de
14 Sobre o funcionamento das milícias, ver Sampaio, Patricia. “ Caminhos possíveis: as armas e a República” in Espelhos Partidos, op. cit.
15 Cf. Sampaio, P. e Santos, M. “ Legislação indigenista das províncias do Pará e Amazonas: uma compilação ( 1838-1889)” in Sampaio, P. & Erthal, R. Rastros da Memória. Manaus: EDUA/CNPq, 2006, pp. 284-285. 16 Fuller, C. “Vossa Senhoria não manda em casa alheia”: disputas em torno da implantação dos Corpos de Trabalhadores na Província do Pará, p. 173 ( texto inédito)
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castas”.17 A despeito do inquestionável impacto da Cabanagem nas interpretações sobre o Pará, parece importante considerar o caminho fecundo proposto por Cláudia Fuller para uma leitura mais ampla quanto à natureza dos Corpos de Trabalhadores. De início, a autora procura vincular o processo verificado no Pará a uma situação histórica mais abrangente e aponta para a emergência de várias experiências similares sendo conduzidas em outras províncias imperiais. Partindo da análise de trabalhos sobre a Bahia e Pernambuco, Fuller acredita que “é possível associar as Companhias não apenas a um contexto provincial, mas também a uma preocupação existente dentre as elites nacionais com os rumos de um Brasil já independente e que procurava se definir como uma nação 'civilizada'.”18 No processo de implantação dos Corpos, muitos optaram pela deserção sistemática, enquanto outros reagiram, com violência, ao recrutamento. Entretanto, pouco mais de dois anos depois, foi publicado um conjunto de isenções ao recrutamento. Estavam dispensados os que tivessem menos de quatorze e mais de cinquenta anos; os oficiais e aprendizes de ofícios; os feitores de fazendas e os filhos únicos com família a seu cargo. Logo após a publicação das isenções, reduziram-se os contingentes e as reclamações dos comandantes porque, excetuados os desertores, todas as outras dispensas estavam amparadas pela lei. Fuller chama a atenção para as múltiplas possibilidades de leitura desse processo. De um lado, pode-se tomar como válida a idéia de que população passou a manejar as isenções em seu benefício; de outro, os próprios comandantes poderiam ter sido lenientes nesses julgamentos de tal sorte a manter os trabalhadores em seus distritos, disponíveis para atender demandas locais.19 Outros caminhos, porém, estavam abertos nesse mundo do trabalho “livre” no Pará e os Corpos de Trabalhadores não eram a única instituição a drenar homens pelo recrutamento. Existia ainda o Batalhão de Polícia da Província, o Arsenal da Marinha, o Arsenal da Guerra, a Armada Imperial e, a partir de 1855, para os menores de 14 anos, a Escola de Aprendizes da Marinha. A concorrência era, realmente, feroz. Porém, essa miríade de redes de recrutamento compulsório também pode ser lida não apenas como a expressão da força do estado provincial, disciplinando suas gentes de cor, embora muito ainda seja necessário dizer sobre esses processos no Pará. Afinal, são centenas de encaminhamentos de homens adultos e adolescentes para um desses destinos, sem contar
17 Ver, em especial, Moreira Neto, C. A Índios da Amazônia: de maioria a minoria. Petrópolis: Vozes, 1988. 18 Fuller, C. op. cit., p. 179. 19 Fuller, C. Op. cit. p. 188.
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os mapas de recrutas, vindos de todas as vilas e povoações do Pará e do Amazonas.20 Contudo, um pouco mais de atenção à extensa documentação do Arquivo Público do Pará revela que, mesmo sujeitos ao recrutamento, ainda havia a possibilidade de escolher que destino tomar. Fuller registra que era comum a circulação de indivíduos entre os corpos de trabalhadores e os batalhões policiais. Em outras ocasiões, cabe admirar a habilidade de determinados sujeitos em burlar muitas armadilhas do recrutamento; esse é o caso de Domingos Agostinho, que tentava se apresentar (de novo) como recruta para o Exército em 1866, conjuntura aguda de recrutamento para o esforço de guerra contra o Paraguai. Também podia tentar se alistar no Batalhão de Artilharia da Guarda Nacional o que sinalizava para uma larga experiência de armas. O secretário de Polícia, João Caetano Lisboa, cumpria seu papel, razoavelmente informado sobre os possíveis movimentos de Agostinho e reclamava providências ao presidente da província, o Barão de Arary: Caso ele aparecesse, tentando se alistar como recruta, que fosse imediatamente preso: era um réu, fugitivo da polícia. 21
Encontros inesperados: índios e africanos livres no Amazonas As diferentes formas de trabalho compulsório presentes na Amazônia não podem ser examinadas de forma a separar as experiências de índios e de africanos (livres ou não), em especial, no curso do século XIX, quando as modalidades de trabalho compulsório podem apanhar (e apanham) na mesma rede, indivíduos, aparentemente, muito diversos. Um exemplo disso é a convivência entre índios e africanos livres no curso do XIX nas obras públicas provinciais. Ao chegar ao Amazonas, Laudelino já estava de posse de sua carta de emancipação mas, como indicou Beatriz Mamigonian, foi reembarcado para o Pará e, depois, para o Amazonas. Na prática, isso significa que sua emancipação era de pouca valia e Laudelino foi compelido ao serviço público por prazo, a essa altura, incerto.22 Chegados a Manaus, Laudelino e outros cinco africanos livres, irão dividir espaço com os índios que eram trazidos das aldeias vinculadas às Diretorias Parciais para exercer atividades variadas, com prazo de contratação e salários acordados com diretores e encarregados das aldeias. Essa forma de regulação do trabalho funcionava em todo o Império por meio do Regulamento das Missões (1845-1866), instituído pelo Decreto nº. 426, de 24 de 20 APP – Arsenal da Marinha, Vol. 16. 21 Fuller, C. op. cit, p. 192-193; APP, Secretaria da Presidência da Província – Ofícios – Secretaria de Polícia – Caixa 282, 1866 22 Cf. Mamigonian, Beatriz.G. To be a liberated African in Brazil: Labour and Citizenship in the Nineteenth Century. PhD. Thesis, University of Waterloo, Waterloo, 2002.
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julho de 1845. O Regulamento era implementado por meio de uma Diretoria Geral de Índios, nomeada em cada uma das províncias e, a ela, estavam subordinados Diretores Parciais e Encarregados que respondiam por suas respectivas diretorias, separadas por áreas de jurisdição territorial. Suas funções eram dirigir as aldeias e fazer contato com as tribos não aldeadas de seu distrito de atuação. Para tanto, não recebiam salários em dinheiro, mas sim graduações militares da Guarda Nacional.23 Cabia às diretorias o fornecimento regular de índios para atender obras públicas e particulares, por meio da contratação de turmas de índios, mediante pagamento de salários, e que, ao término dos contratos, deveriam ser dispensados e devolvidos aos seus sítios e aldeias. Contudo, a falta de trabalhadores era uma das queixas mais frequentes nos relatórios provinciais. O descumprimento sistemático desta tarefa parece explicar toda a virulência das críticas da administração provincial aos seus próprios funcionários. Assim, não seria estranho dizer que a chegada de Laudelino e dos outros africanos livres foi bem vinda. Afinal, as estratégias do governo local em romper o círculo de ineficiência dos diretores poderiam ser muito mal sucedidas como a tentativa de contactar os Uaimiris, em 1856, quando uma diligência de 50 guardas nacionais foi tratar de convencê-los, “por meios brandos”, a acompanhá-los a uma freguesia próxima. A missão foi um fracasso completo e cerca de 100 índios atacaram a tropa com um “choveiro de flechas”, mantendo-a sob cerco durante dois dias em suas próprias malocas. Ao final, a tropa retirou-se, sem nada conseguir.24 Tal como os africanos livres, além das demandas públicas, os índios assim recrutados também poderiam ser cedidos para o serviço particular, a critério da presidência. Foi beneficiado, inúmeras vezes, o deputado provincial Francisco Antônio Monteiro Tapajós que contava também com o beneplácito de seus colegas de Assembléia para aprovar créditos, às custas dos cofres provinciais com juros e prazos amigáveis, para instalação de seus estabelecimentos industriais, entre eles, uma olaria destinada a fabricar tijolos e telhas para abastecer as obras públicas.25 Em 1857, já somavam 18 africanos livres trabalhando em Manaus e, em toda Província, existiam 51. Parte deles pertencia aos carregamentos apreendidos em São Matheus 23 Ver. Sampaio, Patricia. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais em Manaus, seculo XIX. Manaus: EDUA, 1997.
24 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial do Amazonas em 08 de julho de 1856 pelo presidente da província Dr. João Pedro Dias Vieira, RPPAm, v.I, p.475, Anexos 5 e 6.
25 Relatórios da Presidência da Província do Amazonas de 05 de setembro de 1866; de 04 de abril de 1869; de 25 de março de 1871.
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e Serinhaém e estavam cedidos à Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas para a colônia da empresa em Itacoatiara. Os que estavam na capital, envolvidos com a reconstrução da igreja matriz, não foram poupados: afirmava o presidente da província que eram “ rixosos, ébrios e madraços”.26 Quase uma década depois, a reputação dos africanos livres não parecia ser das melhores. Adolfo Albuquerque registrou, mais uma vez, que eles eram dados à embriaguês e isso os tornava “ turbulentos” e “ rixosos”. Mais do que isso, não hesitavam em sacrificar seus salários ao vício! Porém, mesmo a avaliação enviesada do presidente deixa entrever outras formas de enraizamento: “Os poucos, que não estão nesse caso, possuem habitação própria e pequena lavoura nas circunvizinhanças da cidade.”27 Porém, não eram apenas os africanos, os “ ébrios, turbulentos e rixosos”. Também os índios recrutados para o trabalho na capital recebiam epítetos similares. Afinal, como diziam os viajantes: Em Manaus, “todos mandriam...” De modo geral, além da atávica preguiça dos locais, uma reclamação recorrente entre administradores provinciais dizia respeito à carência de mão-de-obra especializada. Isso significava, na prática, que o treinamento era feito “em serviço”. Em 1855, os africanos livres, junto com outros 19 índios estavam “ se aperfeiçoando nos oficios de pedreiro, carpina e oleiro”.Os resultados não tardam a aparecer: em 1857, Manoel Miranda assegura que a construção da ponte do Espírito Santo foi “excelente escola para os operários da Província, uma grande parte dos quais se acha hoje habilitada para trabalhos importantes.28
Para terminar ( por enquanto...) Jornais são reveladores. Preocupada em mapear os encontros entre índios e africanos, deparei-me com um que não procurava; achei que valia a pena... Antônio Braga era comerciante no Pará e é quase certo que suas relações mercantis alcançassem as fronteiras da província, como acontecia com a maior parte dos comerciantes. Só isso poderia justificar a presença de França com sua escuna vinda do Amazonas. Foi nessa embarcação que veio de Tefé, em pleno rio Solimões, o índio José Maria. Não posso suspeitar quantas vezes ele fez a viagem até Belém. Devem ter sido muitas para que tivesse tempo para conhecer e se apaixonar por Joaquina, escrava de Braga, que, aos 18 anos, era bem parecida, gorda e faladeira. O certo é que, na noite de 21 de outubro de 1855, Joaquina fugiu com José Maria, 26 Relatórios da Presidência da Província do Amazonas de 07 de setembro de 1858. 27 Relatórios da Presidência da Província do Amazonas de 01 de outubro de 1864. 28 Relatórios da Presidência da Província do Amazonas de 11 de março de 1855 e de 12 de março de 1857.
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vestindo seu vestido de chita roxa combinado com a camisa de riscadinho rosa. O dono desconfiava que ela havia sido seduzida por José Maria que também era fugitivo da escuna do Sr. França.29 José e Joaquina representam outros encontros possíveis entre índios e africanos. Porém, nem mesmo os afetos em jogo podem nos fazer deixar de notar que ambos estavam sujeitos ao trabalho compulsório. Mesmo índio, José Maria aparece no mesmo anúncio de fuga de Joaquina, junto com as fórmulas da praxe, sendo chamado também ele de fugitivo porque havia abandonado a tal escuna. O que pode ter acontecido a Laudelino e aos outros? A resposta só poderá vir depois de mais algum tempo nos arquivos. E dos fragmentos de sua trajetória? O que podemos fazer com esses indícios? Acredito que a presença de Laudelino, Honório, Gil, Geraldo, Josefa, Leonardo (e outros que ainda não pude descobrir os nomes) permitem analisar um ponto importante: pensando de modo mais amplo, tomando a escravidão (e a liberdade) como problema, é possível perceber que índios e africanos partilharam, durante algum tempo, de destinos comuns. Em determinado momento, esses trajetos se bifurcam: em 1755, quando foi promulgada a Lei de Liberdade dos Índios, ela excluiu aqueles que fossem filhos de pretas escravas. A escravidão seguia o ventre. A partir daí, índios também podiam ser proprietários de escravos africanos. Em outro momento, essas histórias voltam a se encontrar: no meado do XIX, os africanos livres, tutelados pelo Juízo de Órfãos, aproximam-se, mais uma vez, dos índios, também tutelados, a partir de 1798, pelo mesmo Juízo. Porém, sobre esse tema ainda posso falar pouco porque o projeto de pesquisa está dando seus primeiros passos. Entretanto, como espero ter demonstrado ao longo deste texto, as trajetórias de índios e africanos na Amazônia ainda podem apresentar outros pontos de conexão, em especial, as suas proximidades no mundo do trabalho. Aproximar-se do mundo de africanos e índios na Amazônia revela, mas do que resolve, um conjunto de problemas complexos amarrados por tramas bem urdidas no cotidiano amazônico. Das experiências forjadas no mundo do trabalho (bem pouco) livre, emergem novos atores sociais que, com suas trajetórias, colocam problemas novos, ao mesmo tempo em que nos permitem redimensionar abordagens cristalizadas.
29 CENDAP - PPGSCA/UFAM, Estrela do Amazonas, n.º 128, 27 de outubro de 1855. (Microfilme)
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