Memória e identidade de um território simbólico em alhandra

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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste

04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE

Grupo de Trabalho 34 – Estado, família, religiosidades populares e direitos humanos: entre tensões e negociações.

Título do Trabalho Cidade da Mestra Jardecilha: memória e identidade de um território simbólico em Alhandra (PB).

Nome completo: Francisco Sales de Lima Segundo E-mail: chicosales78@gmail.com

Programa de Pós-graduação em Antropologia [PPGA] Universidade Federal da Paraíba [UFPB]


1. Introdução Este artigo pretende analisar a construção de um território simbólico, na perspectiva da identidade e da memória, que se insere no contexto do culto espiritualista da Jurema Sagrada, no município de Alhandra, localizado na microrregião do Litoral Sul da Paraíba. Este lugar refere-se à Cidade da Mestra Jardecilha, que está diretamente associado à prática religiosa desta importante personalidade, marcando um significativo espaço de construção do sagrado deste culto no centro do município, fazendo parte da memória da população local, e referendando as identidades culturais dos sujeitos da cidade como juremeiros. Ao ir em busca da compreensão das relações subjetivas entre estes sujeitos com os seus espaços rituais, a ideia deste trabalho é de, a partir da história de vida da Mestra Jardecilha, buscar apreender os sentidos simbólicos que os juremeiros definem como importantes e reais, indo ao encontro de uma “espécie de relação secreta e emocional que liga os homens a sua terra e, no mesmo movimento, funda sua identidade cultural” (BONNEMAISON, 2002, p. 103). Para compreender parte deste contexto, descreveremos um trabalho espiritual realizado no terreiro do Templo Espírita Mestra Jardecilha, com o intuito de visualizar os conflitos e negociações colocados atualmente para preservação deste importante espaço da religiosidade juremeira no município. Neste sentido, a memória destes sujeitos será o “intermediário informal da cultura”, e que através “do vínculo com o passado, se extrai a força para a formação da identidade” (BOSI, 2003, p. 15-16).

2. A Jurema Sagrada e suas representações simbólicas. Mas antes de estudar a Cidade da Mestra Jardecilha, mais especificamente, é necessário compreender em que contexto ela se insere dentro da cosmologia da Jurema Sagrada. A Jurema é uma árvore (Mimosa hostilis) encontrada com bastante abundância no semiárido nordestino, e que, antes mesmo da colonização, era cultuada como um elemento sagrado por diversas etnias indígenas desta região. Seguindo nesta perspectiva, Salles indica que, “de fato, os elementos indígenas nas cerimônias e a importância da Jurema na construção/manutenção da identidade 1


étnica para a maioria dos índios nordestinos, entre outros aspectos, evidenciam essa procedência” (2010a, p. 39). Conforme afirma Bairrão (2011), dentro do campo simbólico juremeiro, há representações que vão muito além de sua definição meramente botânica: ela é a “raiz, o tronco-mãe” de uma série de desdobramentos e desenvolvimentos espirituais; a Jurema é um “plano astral dos espíritos e seres encantados cultuados na difusa espiritualidade brasileira”, que se manifestam como índios, caboclos, pretos-velhos e mestres juremeiros; é uma bebida – o vinho da Jurema; ela é “uma índia metafísica” – “atende pelo nome de Jurema uma representação antropomórfica do sagrado florestal”, e do princípio feminino da criação divina. Em muitos rituais, convivem a bebida e a cabocla juntos. A Jurema é uma cidade – “A(s) Cidade(s) da Jurema”, uma cidade invisível, mas que tem suas repercussões e representações simbólicas também manifestadas no espaço, assim como, na memória coletiva. É possível afirmar, a partir do imaginário simbólico construído e que transcende a própria árvore, que a imagem que ela sucinta é apresentada “enquanto um conjunto de significações, que é verdadeira, e não uma única das suas significações, ou um único dos seus inúmeros planos de referência” (ELIADE, 1991a, p. 11-12). Desta forma, a Jurema apresenta-se por meio do arquétipo da “Árvore do Mundo” proposta por Eliade: o elemento de onde irradia as ligações do homem com suas verdades míticas, em que ela “se revela como 'cifra' do mundo, apreendida como realidade viva, sagrada, inexaurível” (1991b, p. 216). “A árvore imaginada é insensivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume um universo, que faz um universo” (BACHELARD, 2003, p. 230). Como esta religiosidade vem a ser polarizada no litoral da Paraíba, ainda não está bem claro para os estudiosos do tema. Mas uma tese reforçada por Medeiros, afirma que houve uma “transposição geográfica de um traço cultural, causado pelo deslocamento das populações indígenas do interior do semiárido até as proximidades do litoral, por ocasião da expansão colonial em direção aos sertões” (2006, p. 124). Neste encontro colonial, estas etnias quando não foram exterminadas por completo, foram escravizadas e levadas para os aldeamentos já estabelecidos no litoral, a qual a Vila de Alhandra fazia parte, onde serviram de mãode-obra escrava nas plantações de cana-de-açúcar. Em contraposição a esta lógica, parte dos indígenas passaram a se agrupar em “mocambos”, que eram grupos de 2


indivíduos de diversas etnias distintas, “que, ao fugirem e se reunirem em meio à floresta, passavam a desafiar a ordem estabelecida pelos senhores coloniais” (MEDEIROS, 2006, p. 03). Queremos chamar a atenção para a grande quantidade de indivíduos que sobreviveram à guerra, mesmo em condições pouco favoráveis, de opressão, frente à destruição do seu anterior universo cultural. Entretanto, foi a partir dessa sobrevivência que se abriu um novo horizonte de possibilidades de trocas, de ressignificações, de reconstruções (MEDEIROS, 2006, p. 16).

Com isso, é na zona da mata nordestina que ela incorpora elementos da cultura negra, no culto aos orixás, e do misticismo europeu, que ao sincretizarem-se resulta no Catimbó1: prática diretamente derivada da cosmologia juremeira, e que hoje é difundido em várias matizes religiosas afro-brasileiras, em especial na Umbanda, no qual a cidade de Alhandra é considerada como polarizadora destes elementos em nível regional. Na tentativa de elaborar uma síntese mais abrangente, em meio às inúmeras significações que tem o culto da Jurema Sagrada, Salles afirma que: (…) podemos definir a Jurema como um complexo semiótico, fundamentado no culto aos mestres, caboclos e reis2, cuja a origem encontra-se nos povos indígenas nordestinos. As imagens e os símbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito pelos juremeiros como um “reino encantado”, os “encantos” ou as “Cidades da Jurema”. A planta cuja raízes ou cascas se produz a bebida tradicionalmente consumida durante as sessões, conhecida como jurema, é o símbolo maior do culto. É ela a “cidade” do mestre, sua “ciência”, simbolizando ao mesmo tempo morte e renascimento (2010a, p. 17-18).

A atenção dos estudiosos das ciências sociais voltada para a identificação e compreensão dos elementos culturais de origem africana no Brasil, fez com que o interesse pelo temário da Jurema fosse obscurecido. Conforme afirma Salles (2010a), só a partir da década de 1920 que Mário de Andrade, à frente da Missão de Pesquisas Folclóricas, no qual buscava elementos que representassem a identidade nacional, vai à Paraíba estudar o Catimbó. Andrade foi o primeiro a registrar e 1

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“Todas as sessões do Catimbó consistem, essencialmente, em dezenas de entidades espirituais, ou espíritos, que se comunicam com os participantes das sessões. Os 'mestres' ou 'mestras', são pessoas que viveram outrora, na maioria em Alhandra, que tiveram atividade mediúnica, geralmente junto aos pés de Jurema que guardam sempre o nome deles” (VANDEZANDE, 175, p. 166). Ainda segundo Salles (2010), estas entidades representam o panteão basilar da cosmologia juremeira. 3


identificar algumas destas manifestações, principalmente a música ritual. Depois dele, Gonçalves Fernandes (1938) escreve O Folclore Mágico do Nordeste, que traz descrições um pouco mais detalhadas sobre alguns dos rituais realizados em Alhandra. Câmara Cascudo analisa também este tema, em seu livro Meleagro – Depoimentos e pesquisas sobre magia branca, chamando a atenção para o fato de que na Jurema a “feição mais decisiva é da feitiçaria europeia” (1978, p. 19). E Roger Bastide escreve Imagens do Nordeste mítico em branco e preto, ratificando o crescente interesse pelo tema, em que afirma que “o catimbozeiro pode muito bem dar um revestimento cristão às origens do seu culto, mas sabe que essa ciência lhe foi ensinada pelo índio” (2004, p. 150). Mas é René Vandezande (1975), ao estudar em sua dissertação de mestrado o Catimbó praticado em Alhandra, que faz o primeiro inventário dos inúmeros elementos rituais da Jurema no litoral paraibano, com esmero antropológico. Além de descrever os cultos mediúnicos a qual observa, fazer considerações sobre o transe dos adeptos da Jurema, as formas e os símbolos do Catimbó, e as bricolagens culturais que dela acarreta, ele também identifica e mapeia as “Cidades da Jurema”. A dimensão espacial identificada por Vandezande (1975), territorializa-se a partir de práticas rituais específicas. Estes espaços são constituídos a partir da consagração ritual de uma árvore de Jurema a um mestre encantado, de onde são retiradas as cascas e parte das raízes para a produção do vinho da Jurema e que será usado durante as sessões espirituais. Neste sentido, Eliade afirma que “todas as árvores ou troncos que são consagrados, antes ou durante uma cerimônia religiosa qualquer, são projetadas magicamente no Centro do Mundo” (1991a, p. 4041). Apesar das mudanças e reinterpretações que perpassam todo o culto, as cidades continuam ocupando uma posição central no universo mitológico dos juremeiros da Umbanda. Estes chamam de cidade tanto uma determinado espaço sagrado onde existem um ou mais pés de jurema, quanto cada uma dessas plantas isoladamente. (SALLES, 2010a, p. 105).

Este elemento é tão fundamental para os juremeiros, que Vandezande (idem) chegou a elaborar uma cartografia das “Cidades da Jurema”, onde mapeou dez destes lugares sagrados. Salles (2010a) segue a sua trilha, e vai em busca 4


destes espaços em sua pesquisa, mas acaba encontrando muito pouco do que Vandezande investigou. Ainda assim, estes lugares continuam vivos no imaginário destes sujeitos, presentes como territórios simbólicos em Alhandra e nos municípios vizinhos, apesar das redefinições do espaço agrário local, assim como também das transformações no contexto socioeconômico urbano da cidade. Na mesma perspectiva, esta relação subjetiva com o espaço ganha legitimidade dentro das instituições estatais, em torno do debate acerca dos patrimônios culturais imateriais, debate este referendado por marcos legais internacionais (UNESCO, 2003), tendo em vista a identificação e o registro do Sítio Acais, em 2009, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Arquitetônico do Estado da Paraíba (IPHAEP), fundamentado num estudo sobre a presença da “Cidade do Acais”, que está baseada na histórica atividade religiosa de Maria do Acais 3, mestra juremeira referência em Alhandra. Com isso, visto que “todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço simbólicos” (HALL, 1997, p. 71), as “Cidades da Jurema”, e as memórias construídas a partir delas, reforçam as identidades culturais dos adeptos da Jurema Sagrada.

3. A Mestra Jardecilha e sua “Cidade”. O interesse por este tema, surge com a produção do documentário “Uma Ciência Encantada”(2010)4, que trata da apreensão de uma das “Cidades da Jurema”: a “Cidade Encantada de Tambaba”. Localizada no município do Conde, esta praia é descrita, por inúmeras narrativas orais, como um portal de acesso para variados planos astrais relacionados a este culto, pois, como afirma Vandezande, “a tradição diz, unanimemente, que no alto da praia de Tambaba houve uma Cidade de Jurema de igual nome, anos passados porém, esta cidade foi devorada pelo mar, e de lá teria origem o culto que ainda hoje os juremeiros prestam ocasionalmente nesta praia” (1975, p. 131). Com isso, a proposta com a produção deste filme foi, através da sabedoria popular e da tradição oral, buscar compreender a riqueza de 3

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Maria do Acais foi uma das mais importantes mestras juremeiras da região, que, segundo Fernandes, “gozou de um prestígio considerável que impunha sua reputação de grande catimbozeira (…) era uma feiticeira notável, enriquecida, de modos de grande senhora” (1938, p. 85-86). Este filme pode visualizado através do link http://www.youtube.com/watch?v=zUykUNkuL4E 5


expressões acerca deste espaço mítico, num exercício de experimentação sobre o seu plano imaginário/simbólico. E na pesquisa para sua produção, tanto nas referências bibliográficas, como nas entrevistas realizadas, foi-se observado a constante referência à Mestra Jardecilha como uma figura presente na memória recente dos juremeiros, assim como da importância do seu espaço religioso para a formação da identidade cultural destas pessoas, e de como ele ainda repercute para a manutenção do universo simbólico da Jurema Sagrada no contexto urbano local, mesmo após mais de 20 anos do seu falecimento. Conhecida como Dona Zefa de Tíino, Jardecilha Luíza de Sousa nasceu em Alhandra, no ano de 1934, e ainda criança teve seus dotes para a espiritualidade percebidos pelos juremeiros mais velhos, como descreve Nina, a sua filha: Maria do Acais quando morreu, minha mãe era pequenininha. (…) Mas meu avô era cabeça de mesa da Maria do Acais – a legítima. Ela falou para meu avô que a minha mãe ia ser médium de nascença, só que ela não iria estar viva para ver. E aí, o que aconteceu!? Minha mãe começou a sentir-se mal, a falar umas coisas que minha avó não entendia bem, e quando foi com 12 anos minha mãe já consultava pra todo mundo aqui em Alhandra, neste mesmo terreno onde nasceu e viveu até os 54 anos 5 (CABRAL, 1997, p. 0910).

Neste lugar, onde hoje reside a família de sua filha, está o Templo Espírita Mestra Jardecilha, lugar na qual ela realizou os seus trabalhos espirituais durante toda a vida. Nele ainda hoje há nove árvores de Jurema – eram doze ao todo, mas três foram derrubadas pelos vizinhos num momento de ausência da família –, um cruzeiro na parte exterior, representando os “senhores mestres”, um salão onde ela realizava os trabalhos de mesa branca6, e onde também consultava as pessoas que a procuravam para resolução dos mais diversos problemas particulares, além de um quarto menor dedicado aos orixás, e dois “assentamentos” 7: um para Exú e outro para os pretos-velhos. Hoje tudo é muito bem cuidado por sua filha, “que embora não tenha dado continuidade às atividades religiosas da mãe, vem zelando pela cidade e pelo centro que pertenciam à falecida mestra” (SALLES, 2010a, p. 113). 5 6

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Entrevista realizada por Cabral (1997). “O trabalho que se realiza nesta mesa é (...) a formação e o treinamento de novos médiuns. Utilizando temas e técnicas do Kardecismo, são manipulados os símbolos do Catolicismo, da tradição de Alhandra sobre os mestres e índios. A única intenção é mesmo o treinamento” (VANDEZANDE, 1975, p. 171). Pequenos cômodos dedicados para as “obrigações” de determinada entidade, ou para espíritos de uma mesma “falange”, a exemplo do assentamento para os pretos-velhos, como encontramos aqui. 6


Dona Zefa de Tíino também era responsável por sessões que realizava ao ar livre, denominadas por ela de “Toré dos Mestres”8, trabalhos estes descritos por Vandezande (1975, p. 78). Ela também realizava procissões em dias de santos católicos, como no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião, ou no dia 24 de junho, dia de São João, demonstrando um intenso diálogo com elementos do catolicismo popular, e que tinha o aval oficial do pároco do município. Isso a fez conquistar um grande respeito frente à comunidade católica local. Outra atividade que a fez muito respeitada, foi o fato dela ter sido a representante oficial da Federação de Cultos Africanos do Estado da Paraíba, não só em Alhandra mas em outros municípios da região, como Conde, Caaporã e Pitimbú, exercendo, assim, uma forte influência política sobre os juremeiros, já que este órgão era então o único responsável por autorizar o funcionamento dos terreiros, de acordo com a Lei Estadual 3.443 de 1966, no qual o então governador da Paraíba, João Agripino, oficializou a prática destes cultos no estado, retirando-os da clandestinidade. Ela é sempre lembrada pela rigidez com que conduzia esta representação, fechando, inclusive, lugares que não seguiam os preceitos determinados pela federação, ou mesmo quando ela julgava que o trabalho espiritual de determinada casa estava equivocado. Apesar desta rigidez, Dona Zefa também exercia um forte influência no campo espiritual, no qual os trabalhos realizados por ela mobilizavam muitos adeptos, agregando, inclusive, outros mestres contemporâneos dela, como o Mestre Colo. E como mais um sintoma deste prestígio, João Paulino, neto de Dona Zefa, chegou a me narrar9 que ela teria iniciado cerca de 900 pessoas no culto da Jurema Sagrada, e teria sido madrinha de batismo de mais de 600 crianças. Este carisma dela foi conquistado através de um trabalho voltado essencialmente para a caridade, em que ela não cobrava para realizar as consultas, nem tinha hora para fazê-las. Como afirma Mãe Judith, uma mãe-de-santo de Alhandra e “filha de Jurema” de Dona Zefa, ela era uma verdadeira “cientista da Jurema”10. 8

“O Toré é sempre uma dança em círculo onde os participantes avançam ritmicamente um depois do outro. (…) Sempre encontramos um acompanhamento instrumental das linhas do Toré. (…) No Toré dos Mestres, canta-se uma linha que chama a entidade. Quando esta se manifesta num participante, ela dá sempre um recado, por pequeno e simples que seja” (VANDEZANDE, 1975, p. 173-174). 9 Entrevista cedida ao autor em 25 de julho de 2012. 10 Entrevista cedida ao autor em 05 de agosto de 2012. 7


Mas no ano de 1988, Dona Zefa de Tíino morre, deixando o espaço aos cuidados de sua filha. E hoje, a Cidade da Mestra Jardecilha é uma das únicas “Cidades da Jurema” que ainda preserva seus aspectos físicos, desde os tempos áureos da Jurema de Alhandra, principalmente durante a década de 1970, graças à iniciativa de alguns familiares, mesmo que não haja mais a dinâmica dos trabalhos da época em que Dona Zefa estava viva. Mas os problemas com os vizinhos vem minando a continuidade deste espaço como parte da memória dos juremeiros. Isso faz parte de um processo mais amplo, no qual o município vive hoje um momento de transformações em relação a sua identidade enquanto epicentro da cosmologia da Jurema, seja pela falta de valorização cultural dos mais jovens, ou mesmo pelo avanço dos cultos neopentecostais na cidade, que acabam por demonizar as práticas dos juremeiros. Conflitos estes ainda mais intensificados pelo fato da Cidade da Mestra Jardecilha estar localizado num contexto urbano, bem próximo do centro de Alhandra. E de haver, dentro da própria família, uma disputa estabelecida por pessoas interessadas em simplesmente acabar com o lugar, fundamentadas numa visão da religião protestante, no qual querem que todos elementos que levem à memória do culto da Jurema Sagrada no município sejam definitivamente apagadas. Deste movimento, decorre a derrubada de algumas árvores de Jurema do espaço, como mencionado acima. Além de haver um processo judicial tramitando entre os próprios familiares, em que cada parte reivindica cada centímetro deste espaço ritual. Com isso, têm-se pautado, junto aos órgãos estatais de preservação do patrimônio cultural, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a necessidade de salvaguarda deste espaço religioso, contra as constantes agressões que vêm sofrendo. A justificativa para isso, vêm sendo a importância da Cidade da Mestra Jardecilha para a memória do culto da Jurema Sagrada no município, como um lugar que polarizou diversas manifestações religiosas, e que diz respeito, diretamente, ao fortalecimento da identidade dos juremeiros.

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4. Vivenciando a Cidade da Mestra Jardecilha. No dia 09 de julho de 2012, houve uma celebração no Templo Espírita Mestra

Jardecilha,

promovido

pelo

Quilombo

Cultural

Malunguinho,

uma

organização voltada à informação, pesquisa e formação na cultura e prática afroindígena brasileira, e que agrega diversos segmentos em torno da Jurema Sagrada, na cidade do Recife (PE), entre estudiosos do tema e juremeiros de diversas partes da região metropolitana. Esta iniciativa visava dar mais visibilidade ao espaço, além de dar um suporte à família de Dona Zefa de Tiíno, que vem lutando num processo judicial contra outros familiares, a qual já foi citado. E pude estar presente e sentir o que aquele lugar tinha para mostrar. Além da comitiva vinda do Recife, com cerca de 60 pessoas, havia também a presença dos juremeiros locais, chegando a um total de aproximadamente 100 pessoas. O trabalho inicia com Alexandre L'Omi L'Odo, representante do Quilombo Cultural Malunguinho, falando da importância do espaço e de sua preservação, não só para os juremeiros de Alhandra, mas também para os adeptos de Pernambuco, e que a luta pela sua manutenção é de interesse de todos os juremeiros. Em seguida, Nina, filha da Mestra Jardecilha, ao lado de uma fotografia de sua mãe, agradece ao incentivo dado pela comitiva pernambucana, e por todos alí presentes, e explana sobre a forma como Dona Zefa de Tiíno trabalhava com a espiritualidade, e o que representa a salvaguarda deste espaço ritual para a família e para os juremeiros do município. Fala também que a sua mãe costumava realizar o “Torés dos Mestres” no terreiro do seu centro, e que a ideia, naquele momento, seria resgatar uma parte do clima daquelas celebrações. Já seu neto, João Paulino, fala que todas as “Cidades de Jurema” tem aspectos materiais, como na presença da própria árvore, e imateriais, na consagração dela a um mestre encantado, funcionando como símbolo e representação da sua vida espiritual. E que a Cidade da Mestra Jardecilha é a única que ainda preserva estes dois aspectos, na sua forma integral. Rufam os ilús11. O toque12 começa com muita vibração. Os tocadores que vieram do Recife, com muita prática em tocar nos maracatus e afoxés da cidade, ditam o ritmo da celebração. As pessoas cantam com vigor, na mesma intensidade 11 Tambores consagrados que são tocados unicamente em rituais religiosos. 12 Assim são comumente chamados os rituais realizados em Alhandra: Toque de Jurema, Toque de Iemanjá, etc. 9


dos sons do ilús. Sente-se que há muito empenho de todos de fazer do trabalho o mais bonito possível. As vozes não são poupadas, e o movimento da gira vai se tornando cada vez mais intenso. Tudo isso estava acontecendo do lado de fora do templo, no terreiro, ao redor do cruzeiro dos “senhores mestres”. As primeiras incorporações começam a surgir. À medida que as pessoas vão incorporando as entidades espirituais, João Paulino e Nina vão servindo o vinho de Jurema, preparado especialmente por ela, aos participantes. Uns vão auxiliando as entidades que vão incorporando, servindo-lhes cachaça ou jurema, ou ainda acendendo os seus cachimbos. A vibração do trabalho permanece alta. Outros vão em busca dos ensinamentos trazidos pelos mestres juremeiros. Entre sons entoados e espíritos incorporados, tudo vai acontecendo com tranquilidade e animação. Algum tempo depois, Nina abre as portas do templo, o que ela fez poucas vezes antes. Antes disso, ela pede para que as pessoas tenham muito respeito para com o espaço ritual de sua mãe, que ela cuida com todo zelo, e não toquem em nada – “Façam suas preces com fé”, diz ela. Aos poucos, as pessoas vão entrando com cuidado, enquanto a gira continua acontecendo do lado de fora. O amplo salão está solenemente iluminado apenas com a claridade das velas. No fundo do salão está uma grande mesa coberta por uma toalha branca, onde a Mestra Jardecilha costumava realizar os trabalhos de mesa branca. Sobre a mesa estão todos objetos rituais cultuados por ela: as imagens dos santos católicos; cachimbos com pedaços de fumo ao lado; imagens de índios e caboclos; inúmeras velas acesas; terços; copos com água. Tudo disposto com muita simplicidade e cuidado. Umas pessoas tiram fotos, e outras fazem as suas preces aos pés da mesa. Pouco tempo depois, aconteceu o momento mais importante desta celebração. Saiu do salão e vejo que há clima diferente no ar. Vó Biu, uma juremeira de Alhandra de seus 80 anos, incorpora Maria do Acais. Um momento de veneração e respeito se estabelece. Aos poucos, vai se formando uma fila para receber as bençãos desta prestimosa entidade. Para cada pessoa que toca em suas mãos, há um instante particular de introspecção e muita atenção para com as suas palavras. Com isso, as lágrimas são inevitáveis – todo mundo que passa por suas mãos sentem a emoção daquele momento. Desde quando iniciei minhas pesquisas em Alhandra, em meados de 2010, escutei algumas pessoas me dizerem que, apesar dos conflitos que o culto da 10


Jurema Sagrada enfrenta, a cidade ainda guarda seus mistérios, dentre elas a própria Nina. Nunca entendi bem o que isso poderia significar. Mas após esta tarde, senti, de fato, o que estas pessoas queriam dizer.

5. Ser juremeiro em Alhandra: considerações sobre a identidade e a memória. Como afirma Salles (2010a), o culto da Jurema Sagrada, no contexto da difusão dos ritos umbandistas em Alhandra, apresenta-se pela “transitividade e fluidez” (p. 223), o que garantiu a sobrevivência deste complexo religioso durante séculos. Ela é parte de uma história negada, silenciada, ainda assim escrita por índios, negros, caboclos, mestiços. História marcada por lutas, tensões, negociações, estratégias de poder, de afirmação política e reformulações de identidade em face das transformações do contexto social e cultural (idem).

Neste sentido, Stuart Hall (2007), ao falar da eficácia discursiva da identidade, coloca que as identidades parecem invocar um passado histórico, em que elas contribuiriam com a sua manutenção. Para ele, isso tem a ver com as questões de “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios” (2007, p. 109). E afirma que esta eficácia discursiva da identidade se dá, necessariamente, através da imaginário – ou da subjetividade, como colocado por Woodward. “Subjetividade” sugere a compreensão que temos sobre o nosso eu. O termo envolve os pensamentos e as emoções conscientes e inconscientes que constituem nossas concepções sobre “quem nós somos”. A subjetividade envolve nossos sentimentos e pensamentos mais pessoais. Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós e no qual nós adotamos uma identidade (2007, p. 55).

A construção do imaginário do juremeiro, como uma pessoa associada a algo maligno, diretamente ligado à prática da feitiçaria, ou, mais especificamente, do Catimbó, tem repercutido desde a colonização. Salles (2010a), em seu estudo sobre o culto da Jurema Sagrada no município de Alhandra, identifica inúmeros 11


documentos históricos que narram o consumo do vinho da Jurema por “índios feiticeiros” para obterem visões e no contato com entidades invisíveis, ou mesmo por guerreiros indígenas mais hábeis para a guerra. Por conta disso, a Jurema e os adeptos do Catimbó, foram perseguidos tantos pelos colonizadores portugueses, por meio da inquisidora Igreja Católica, que a atribuiu aspectos “demoníacos”, como pela polícia já no século XX, visto que a sua prática pública era proibida pela legislação, o que viria a mudar na Paraíba, em parte, com a Lei Estadual 3.443 de 1966, citada anteriormente. Neste contexto, os juremeiros de Alhandra sempre tiveram que lidar com a constante repressão das suas práticas rituais, além das reprovações simbólicas de suas atividades espirituais, seja por parte da Igreja ou das instituições oficiais, apesar de sempre terem tido muita aceitação pelas camadas populares da população. Numa época em que o atendimento médico para esta população – ou “o povo da bata branca”, no dizer local – praticamente inexistia, uma das formas de tratamento era exatamente contar com receitas de ervas e banhos, além da fumaça exalada pelos cachimbos dos mestres juremeiros e de outras entidades espirituais, para cura das mais diversas enfermidades. Estes trabalhos são realizados nas “mesas de consulta”, que são definidos por Salles como “rituais de caráter mais individual e fechado, nos quais o crente recorre ao sacerdote em busca de cura para seus males físicos, mentais, espirituais ou para resolver toda sorte de aflição do dia a dia (problemas amorosos, intrigas, etc.)” (2010b, p. 99). Herdeiros da tradição dos pajés, verdadeiros curandeiros, os juremeiros são conhecedores dos segredos das ervas, das raízes, sendo, ao contrário do médico, capazes de identificar se uma doença é no corpo ou do espírito se é caso para o “homem de letra” ou para os mestres invisíveis (SALLES, 2007).

Este tipo de atividade espiritual tem um forte apelo popular em toda a região estudada, até mesmo por pessoas não ligadas diretamente ao culto, que, indiretamente, legitimam estas práticas. Mas ainda que haja este diálogo, há uma clara uma diferença simbólica entre juremeiros e não-juremeiros. Desta forma, à medida que estas distinções vão sendo construídas, os processos identitários vão se formando. 12


Como afirma Woodward, a “identidade é relacional” (2007, p. 09) sendo marcada tanto pela diferença, quanto por meio de símbolos e de suas representações. E em relação à Jurema, podemos observar que esta diferença é elaborada em contraposição à doutrina pregada pela Igreja Católica, ou pela crescente ascensão dos cultos evangélicos nos últimos anos – estes últimos, por sinal, são os que dirigem as críticas mais preconceituosas em relação aos juremeiros. (…) as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de qualquer termo – e, assim, sua “identidade” – pode ser construído (HALL, 2007, p. 110).

Observando que a identidade é algo que está sempre em processo, sempre sendo formada, Hall também afirma que “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas uma falta de inteireza que é 'preenchida' a partir do nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (2006, p. 39). Assim, Woodward coloca que “a diferença é marcada por representações simbólicas que atribuem significado às relações sociais” (2007, p. 54). Numa direção paralela, Durkheim afirma que as representações religiosas exprimem realidades coletivas, no qual: (…) as representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para produzi-las, uma multidão de espíritos diversos associaram, misturaram, combinaram suas ideias e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam aí a sua experiência e o seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais complexa que a do indivíduo aí está como que concentrada (1989, p. 45).

Assim, a representação da própria identidade “inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito” (WOODWARD, 2007, p. 17). E o juremeiro sempre posicionou-se, historicamente, na condição de reverenciar a árvore da Jurema como seu Centro, por meio das “Cidades da Jurema”: o lugar de onde irradia as suas ligações do mundo terrestre com o seu universo cosmológico. 13


Neste sentido, para Eliade, “a variante mais propagada do simbolismo do Centro é da Árvore Cósmica que se encontra no meio do universo (…) cujas raízes se prolongam até os infernos e os seus galhos tocam o céu” (1991a, p. 40). “O homem religioso, desta maneira, se exprime sob formas simbólicas que se relacionam no espaço” (ROSENDAHL, 1996, p. 65), e que estão fortemente relacionados com os aspectos culturais da sua comunidade. Com isso, compreender a riqueza cultural destes sujeitos sociais, é ler a multiplicidade de “signos e lugares de enraizamento que são os territórios” (BONNEMAISON, 2002, p. 129). Exatamente na busca desta relação subjetiva com o espaço, que apresentase como um território simbólico, que a memória aqui cumpre um papel fundamental, no sentido de fazer localizações e de trazer leituras e interpretações de um conjunto de símbolos pelos praticantes do culto da Jurema, em que ela, de acordo com Bosi, “opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através de índices comuns” (2003, p. 31). A autora afirma ainda que, a maior riqueza da memória está em fazer “intervir pontos de vistas contraditórios” (2003, p. 15), em que “a fonte oral sugere mais que afirma, caminha em curvas e desvios obrigando uma interpretação sutil e rigorosa” (2003, p. 20). Estes caminhos descontínuos faz-se também na construção das identidades culturais, visto que “dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p. 13), e sendo mediadas por interações culturais das mais diversas. Assim, Haesbaert coloca que “a (re)construção da imaginária da identidade envolve portanto uma escolha, entre múltiplos eventos e lugares no passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade. Nesta perspectiva, a memória é solicitada e reestruturada sem cessar” (1999, p. 180). Destes elementos é que emerge a força dos processos identitários. Neste sentido, Castells compreende a identidade como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) outras fontes de significados” (1999, p. 22), e afirma que “quem constrói a identidade coletiva, e para quê essa identidade é construída, são em grande medida os determinantes do conteúdo simbólico dessa identidade, bem como o seu significado para aqueles que com ela 14


se identifica ou dela se excluem” (idem, p. 23). Com isso, a identidade pode se construir a partir da crença nas práticas e representações religiosas, atribuídas através de ritos específicos, em que “há uma memória religiosa feita de tradições que remontam a acontecimentos geralmente muito distantes no passado, e que aconteceram em lugares determinados” (HALBWACHS, 1990, p. 157). Neste mesmo propósito, Bosi entende que “há sempre uma narrativa coletiva privilegiada no interior de um mito ou de uma ideologia” (2003, p. 17). servindo, aqui, para legitimar a difusão deste poder simbólico. Uma das bases que pode dar mais consistência e eficácia ao poder simbólico da identidade são os referenciais concretos aos quais ela faz referência para ser construída. O deslocamento de sentido nunca pode ser total e o símbolo necessita sempre de algum referente concreto para se realizar. Este referente pode ser, por exemplo, um recorte ou uma característica espacial, geográfica, e neste caso podemos ter a construção de uma identidade pelo/com o território (HAESBAERT, 1999, p. 178).

Desta forma, o território simbólico da Jurema Sagrada é constituído por meio de poderes subjetivos, que, aqui, faz-se na presença física de uma ou mais árvores de Jurema num mesmo lugar, referendado pela atividade tradicional de um mestre juremeiro, pessoa esta de notório saber e respeito dentro do culto, que as consagram a uma entidade encantada. Um elemento novo, e que vem agregar valor na construção da identidade juremeira em Alhandra, é a fundação da Associação Espírita dos Juremeiros de Alhandra (AEJA), em 19 de março de 2012. Esta entidade visa reunir os adeptos da Jurema Sagrada no município, no sentido de criar um canal de diálogo com as esferas da administração pública, para que possam levar as suas reivindicações por um maior reconhecimento e valorização desta tradição cultural, fortalecendo, com isso, as identidades culturais locais. Esta iniciativa já rendeu a possibilidade da AEJA poder participar, com um stand da associação, da última festa de emancipação política de Alhandra, ocorrido em abril de 2013, exposição esta nunca antes ocorrida. Desta forma, de acordo com a observação intercultural de Castells: (…) as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, em última análise, em muitos casos, uma identidade cultural, comunal. Apresento a hipótese de que, para que isso aconteça, faz-se necessário um processo de mobilização social, isto é, as pessoas precisam participar de movimentos urbanos (não 15


exatamente revolucionários), pelos quais são revelados e defendidos interesses em comum, e a vida é, de algum modo, compartilhada, e um novo significado pode ser produzido (1999, p. 79).

Este novo significado vem sendo refeito na atualidade, por meio de iniciativas como esta, que visam restabelecer parte do terreno perdido nos últimos anos. Espaço este que sempre teve sua legitimidade perante a comunidade local, mas que veio sendo obscurecida por um discurso fundamentalista em sua essência. Assim, o que se assiste hoje em Alhandra, nada mais é do que a reivindicação por uma política de reconhecimento e de salvaguarda de seus espaços rituais, como resultado de ações estratégicas dos juremeiros para encontrar seu lugar na organização da sociedade e nas oportunidades políticas criadas por ela. Com isso, ser juremeiro em Alhandra, considerada a cidade da Jurema Sagrada, onde polariza-se diversos elementos desta religiosidade e que transcende a sua esfera municipal, representa participar de algo muito maior: é estar literalmente no “olho do furacão”, onde se está ligado a uma linhagem que fundou esta tradição de conhecimento; é compreender e participar na manutenção dos “mistérios” guardados nas narrativas orais; é ser detentor e guardião dos conhecimentos dos mestres juremeiros que alí viveram; é viver em contato permanente com uma força espiritual catalizada somente alí; é contribuir na conservação da memória coletiva local acerca dos “encantos das Jurema”; é ser sujeito da ação, “o ator social coletivo pelo qual indivíduos atingem o significado holístico em sua experiência” (CASTELLS, 1999, p. 25).

6. Considerações finais O trabalho de pesquisa que vem sendo realizado junto ao Programa de Pósgraduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGA-UFPB), tem como objetivo reconstruir parte da história de vida da Dona Zefa de Tíino, investigando a dinâmica da sua prática espiritual, as representações subjetivas do seu espaço, e a sua influência como liderança religiosa na região, através da memória coletiva local. Para isso, analisarei as identidades culturais dos juremeiros de Alhandra, e que fazem deste município o epicentro da cosmologia e do universo 16


mítico da Jurema Sagrada, também no intuito de examinar a constituição das “Cidades da Jurema” como territórios simbólicos, no qual a Cidade da Mestra Jardecilha se insere, de como estes espaços são representados e resignificados pelo imaginário dos juremeiros, e como eles repercutem na construção das identidades destes sujeitos. A apreensão da memória coletiva em torno da Cidade da Mestra Jardecilha, traz a possibilidade de visualizar a dimensão do significado desta manifestação, a partir do resgate deste território simbólico historicamente constituído, e que vem sofrendo constantemente com os conflitos culturais estabelecidos na atualidade. Trazem também consigo, a análise das reformulações das identidades culturais locais, pois “ela recorre a uma dimensão histórica do imaginário social, de modo que o espaço que serve de referência 'condense' a memória do grupo” (HAESBAERT, 1999, p. 180). Por fim, estes elementos apresentam-se aqui, para os juremeiros de Alhandra, como a possibilidade de reconstituir um importante território simbólico, já que “há marcos no espaço onde os valores se adensam” (BOSI, 2003, p. 24), fazendo por resgatar as histórias orais e preservando as subjetividades locais, e no qual a identidade, segundo Hall, “contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (2006, p. 12). Esta análise faz-se necessária no sentido de compreender como uma tradição cultural se transforma continuamente, requerendo, inclusive, políticas reconhecimento e de salvaguarda de um espaço que, guarda em seu seio, tanto os aspectos físicos do patrimônio da Jurema Sagrada, a exemplo das suas árvores consagradas, como também suas feições imateriais, impressas na memória coletiva e na identidade cultural destes sujeitos.

7. Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAIRRÃO, José Francisco M. Henriques. As raízes da Jurema. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642003000100009. Acessado em: 25 de setembro de 2011. 17


BASTIDE, Roger. Catimbó. In: PRANDI, Reginaldo. Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004. p. 146-159. BONNEMAISON, Jöel. Viagem em torno do território. In: CORREA, Roberto L. ; ROSENDAHL, Zeny. Geografia Cultural: um século (3). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. p. 83-131. BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. CABRAL, Elisa Maria. A Jurema Sagrada. João Pessoa: PPGS/UFPB, 1997. CASCUDO, Luiz da Câmara. Meleagro – Depoimentos e pesquisas sobre magia branca. Rio de Janeiro: Agir, 1978. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo; Paz e Terra, 1999. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágicoreligioso. São Paulo: Martins Fontes, 1991a. __________. Mefistófeles e o andrógino: comportamentos religiosos e valores espirituais não-europeus. São Paulo: Martins Fontes, 1991b. FERNANDES, Gonçalves. O Folclore Mágico do Nordeste. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1938. HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais. In: CÔRREA, Roberto L.; ROSENDAHL, Zeny. Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. pp. 169-190. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. __________. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. p. 103-133. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Vértice, 1990. MEDEIROS, Guilherme. O uso ritual da Jurema entre os indígenas do Brasil colonial e as dinâmicas das fronteiras territoriais do Nordeste no século XVIII. In: CLIO Arquelógica. Recife: UFPE, nº 20, Vol. 01, 2006. pp. 123-150. ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. 18


SALLES, Sandro Guimarães de. A cura no universo mítico e simbólico da Jurema. I Simpósio Internacional das Ciências das Religiões. 1. Anais. Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões (PPGCR/CCHLA/UFPB). João Pessoa: UFPB, 2007. ___________________. À sombra da Jurema: a tradição dos mestres juremeiros na Umbanda de Alhandra. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010a. ___________________. O catimbó nordestino: as mesas de cura de ontem e hoje. In: Revista de Teologia e Ciências da Religião. Recife: Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Ano IX, n. 2 – jul./dez, 2010b. p. 85-105. UNESCO. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Paris: UNESCO, 2003. VANDEZANDE, René. Catimbó: pesquisa exploratória sobre uma forma nordestina de religião mediúnica. Recife: Dissertação de mestrado/UFPE, 1975. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. p. 07-72.

Filmes

UMA CIÊNCIA ENCANTADA. Direção de Chico Sales. João Pessoa (PB). Rapadura Brejeira. 2010. 1 DVD, 20 minutos, documentário, sonoro, colorido.

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