Photo Zine IN.CA #3

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[intervenções críticas] zine de fotografia

#3 janeiro-abril de 2013


fotografia: janaína miranda fragmento da série “imaginário do habitar” site: janainamiranda.com


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[intervenções críticas] zine de fotografia

#3 janeiro-abril de 2013


editores carlos henrique juliana bessa novos editores janaína miranda joana frança ricardo theodoro contato editorial@zineinca.com capa e contracapa concepção de carlos henrique com fotografia de gihan tubbeh (capa) e thymornia (contracapa).

colaboradores carol de góes cláudia linhares sanz cleber figueiredo erik van der weijde fernando martinho gabriel mesquita gihan tubbeh joana frança katyussa veiga keren chernizon livia corona marcelo r. s. ribeiro ricardo theodoro thymournia vitor schietti

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[intervenções críticas] zine de fotografia

o zine in.ca [intervenções críticas] é uma publlicação de distribuição livre, que é possível devido à colaboração de inúmeras pessoas. todas as fotografias e textos foram reproduzidos com a autorização de seus respectivos autores, que detém todos os direitos sobre suas próprias criações.

Brasília, abril de 2013 Brasil


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#3

[intervenções críticas] zine de fotografia

editorial

janeiro-abril de 2013

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estados fotográficos. quando as casas devolvem o olhar CLÁUDIA LINHARES SANZ FERNANDO MARTINHO

dois milhões de casas para o México LIVIA CORONA

paisagem profunda KATYUSSA VEIGA

humanidade desfeita THYMOURNIA

delírios norturnos GIHAN TUBBEH

ofuase

KEREN CHERNIZON

8 16 32

42

104

50

110 124

superquadra

ERIK VAN DER WEIJDE

a gaiola

CLEBER FIGUEIREDO

o menor metro quadrado 60 66 76 86

100

134

CAROL DE GÓES GABRIEL MESQUITA

brasília-cerrado

RICARDO THEODORO

silêncio das três VITOR SCHIETTI

em construção

JOANA FRANÇA

merry christmas and a happy new fear MARCELO R. S. RIBEIRO

colaboradores


META MO EDITORIAL

O zine IN.CA [Intervenções Críticas] chega a seu terceiro número em pleno processo de metamorfose, em um período de transição, por assim dizer. Definir uma identidade nunca é uma tarefa fácil, e em alguns casos, talvez nem mesmo seja desejável. Sobretudo quando “identidade” é entendida como uma essência ou a defesa de um núcleo duro, uniforme e fechado.

O presente número abre com um feliz encontro entre o texto de Cláudia Sanz Linhares e a fotografia de Fernando Martinho. Seu argumento em torno do fantasmático, das sucessivas presenças que se acumulam nas casas antigas ilumina a fotografia de Fernando Martinho e de seu livro recém lançado “Sobrados da Zona Oeste” (Editora Olhares).

Atualmente, as possibilidades das formas de expressão das quais buscamos nos aproximar são imensas e variadas. E alcançar um equilíbrio entre uma abertura insustentável e disforme e um fechamento excludente e/ou limitante é algo que só é possível de ser feito ao longo do caminho, e não no ponto de partida. Pois, além de expressar uma proposta própria, IN.CA é também o resultado de um diálogo com o pú-

Lívia Corona investiga as transformações urbanas no México contemporâneo, a formação de gigantescos conjuntos habitacionais ao longo do país que confina em seu ambiente pré-fabricado e padronizado pessoas de diferentes procedências, com diferentes hábitos e costumes. Katyussa Veiga, por sua vez, atravessa as estradas do altiplano boliviano, estradas que se misturam às nuvens, e que também foram o caminho

blico que a lê e aqueles que submetem seus trabalhos para publicação.

usado pelos manifestantes indígenas em seus mais recentes protestos na Marcha do Oriente.

Por conta disso, acrescentamos ao nosso título o epíteto “zine de fotografia”. Fizemos isso para buscar apoio num terreno mais familiar. O que entendemos por fotografia, no entanto, se refere ao seu campo ampliado, às diversas formas de expressão visual tanto concebidas no interior de seu próprio ofício, como em interlocução e contaminação com outros campos. Definimos nosso objeto não como um ponto de chegada, mas como estratégia para a investigação de suas relações com as diversas forças que têm se relacionado com a fotografia na contemporaneidade. • 6 | IN.CA #3 6 | IN.CA #3

Nesta edição trazemos ainda uma sessão especial sobre Brasília, aproveitando as comemorações pelos 53 anos da cidade. Selecionamos seis trabalhos que pensam o espaço e a arquitetura moderna da capital. Mas longe da celebração de sua monumentalidade, os trabalhos aqui publicados problematizam e atualizam um olhar inquiridor. Erik van der Weijde, Joana França e Ricardo Theodoro se defrontam com os código da arquitetura moderna sugerindo outros modos de ver e entender a cidade.


ORFOSE Cléber Figueiredo mostra uma Brasília além dos muros invisíveis do Plano Piloto, talvez a prefiguração no presente de um futuro provável. Vitor Schietti, capta a imobilidade e o silêncio das madrugadas na cidade, criando um cenário intrigante entre o onírico e o excesso de real. Carol de Góes e Gabriel Mesquita criam uma curiosa fotonarrativa que se passa em um novo empreendimento imobiliário ficcional, cujos personagens se veem envolvidos em situações que ecoam não só o que se imagina que seja o modo de vida brasiliense, mas que é também comum ao momento de expansão imobiliária que afeta outros lugares do país. Durante o período mais agudo da crise europeia em 2008, a fotografia de um grafite em um muro de Atenas propagou-se pelo mundo. Ela dizia: “merry crisis and a happy new fear”. Desde então, essa frase tem aparecido em diferentes locais em diferentes contextos. Em seu artigo o antropólogo Marcelo R. S. Ribeiro tenta decodificar essa mensagem e as formas de sua proliferação. Por meio de um personagem com uma máscara de gás, o fotógrafo iraniano Thymournia cria um clima de decadência e pessimismo que também serve de alerta sobre o futuro do mundo e da humanidade nas condições atuais. Suas imagens nos confrontam com um pesadelo que nos sugerem a guerra, a crise ambiental, a ruína urbana e a indiferença.

Gihan Tubbeh se defronta com o mundo da saúde mental e dos hospitais psiquiátricos de Lima, no Peru. Gihan se mistura aos internos e usa sua máquina fotográfica para dialogar de igual para igual com seus interlocutores, produzindo um trabalho que mostra a complexidade dos personagens, de sua condição psíquica e do espaço. Keren Chernizon apresenta um relato sensível sobre sua passagem por Gana e sua experiência como professora em Ofuase, uma pequena vila do país. Em seu trabalho, na melhor tradição da fotografia documental humanista, ela mostra um outro tipo de imagem, diferente dos usuais clichés sobre a África que superenfatizam a miséria e a guerra. Keren mostra a vida no seu nível mais cotidiano e invisível. • Por fim, gostaríamos de comunicar aos nossos leitores que a partir do próximo número, novos editores passarão a integrar o zine. Os novos integrantes são Janaína Miranda, Joana França e Ricardo Theodoro, conhecidos fotógrafos(as)/artistas e agitadores culturais em Brasília . Com essa adição, o zine IN.CA passa defnitivamente para uma nova fase, cujos desdobramentos comunicaremos em breve. Bem vindo aos novos editores, e boa sorte para todos nós! carlos henrique e juliana bessa IN.CA IN.CA # #3 3 || 7 7


ESTADOS FOTOGRÁFICOS QUANDO AS CASAS NOS DEVOLVEM O OLHAR

Texto: Cláudia Linhares Sanz Fotografia: Fernando Martinho O livro “Sobrados da Zona Oeste” (Ed. Olhares), de Fernando Martinho, inspira a reflexão de Cláudia Linhares Sanz sobre a casa e seus fantasmas.

As casas antigas sempre me intrigaram. Morei dez anos num sobrado cujas portas e janelas, de madeira, não fechavam direito de tão antigas. O teto, também de madeira, ‘ecoava’ tudo que acontecia no andar de cima. De anos em anos, as paredes sujas – as marcas dos pés debaixo da escrivaninha, a disposição dos quadros, o arranhado das costas das cadeiras, o decalque da bola atirada contra a parede, o queimado do sol à direita de meu quarto – eram vestígios substituídos pela pintura branca. A cada sucessiva pintura refaziam-se o jeito de nos sentar à mesa, o modo como decorávamos a casa, o hábito de encerar a tábua corrida. Não eram apenas as marcas que esfumaçavam; a tinta branca incidia também sobre os sons que as imagens ruminavam (a vassoura batendo no rodapé, o despertador lembrando a ida para a escola, a dor de cotovelo de minha mãe ouvindo Tim Maia, a alegria das manhãs com os Novos Baianos tocando na vitrola). O novo revestimento promovia abafamentos sonoros: as conversas, a separação, as festas, o barulho do liquidificador…. o rádio da cozinha… tudo entrava em suspensão provisória que me atingia, paradoxalmente, fazendo sentir como nunca sua estridência. Quantas camadas de tinta cada casa pode acumular? O que encontraria o fotógrafo se, com um filme infravermelho, pudesse ir desfolhando e revelando pistas e vestígios das famílias que ali viveram? 8 | IN.CA #3


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Antes de minha família, outras marcas e ruídos se

debaixo da escrivaninha nos infinitos momentos de

acomodaram naquela mesma casa que, desde do iní-

fazer o dever de casa; reencontrava-as quando já não

cio do século passado, se equilibra no alto da ladeira

estavam lá. Nos pequenos objetos cotidianos e famili-

João Afonso, no largo do Humaitá. Em cada casa ve-

ares: na maçaneta da porta; na parede descascada

lha, sucessivas camadas de apagamentos, vestígios

ou, simplesmente, no vazio do pé-direito alto. Não

sobrepostos, permanentes rearrumações diacrônicas.

eram assombrações, mas a história − que, às vezes,

Paredes, portas, assoalhos e tetos-ouvidos. Vez por

se torna perceptível na vertigem, fazendo o insignifi-

outra, ouvia transpirar pela tinta branca o cochicho de

cante ser tomado de sentido.

meus antepassados e também a voz dos meus eus passados. Logo depois da pintura feita, consequência

A cada visão, existiam novamente as vozes, num som

da transgressão do familiar para o estranho, emergia a

ou figura, mas sempre de modo fotográfico. Explico:

imagem. Volta e meia, via. Reencontrava as manchas

desconfio que a fotografia (de fato ou não; realizada

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ou não) não era a impressão luminosa numa superfície

fitavam de modo desconcertante, fazendo perceber

sensível, mas um estado de, subitamente, entrever a

não apenas minha presença (inscrita em atualidade da

presença de algo que estava e não estava lá.

qual não se pode esquivar) e a presença de inúmeros murmurinhos passados, mas também minha ausên-

Tratava-se antes de um corte, interrupção: aconteci-

cia, futura embora iminente (a mesma que abafou as

mento capaz de fazer a casa emergir, mesmo que por

muitas vozes que viveram ali antes de mim). Morava,

alguns segundos, como potência de uma imagem es-

então, no interior da fotografia não realizada; numa

pecialmente fotográfica. Tratava-se de uma fotogra-

paisagem provisória que me devolvia o olhar que à

fia que não se efetivava pelo clic, mas pela entrada

casa dirigi. Essas pupilas, que estavam e não estavam

repentina da casa num estado próprio, num conjunto

lá, eram os olhos da sina de ter sobrevivido à passa-

provisório de configurações e tensões temporais. A

gem cronológica; de ter visto e respirado outra atmos-

casa era, assim, dotada de inúmeros olhos que me

fera. Essa sina me convidava a habitar a manifestação IN.CA # 3 | 11


“A casa era, assim, dotada de inúmeros olhos que me fitavam de modo desconcertante, fazen var) e a presença de inúmeros murmurinhos passados, mas também minha ausência, futur

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ndo perceber não apenas minha presença (inscrita em atualidade da qual não se pode esquira embora iminente (a mesma que abafou as muitas vozes que viveram ali antes de mim).”

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de uma paisagem intensiva cuja força se devia a uma

contingente proveniente de um corte, interrupção

latência. Ela me convocava a entrar em muitas outras

temporal, seguida por uma experiência intensiva de

moradas, a investigar seus donos e destinos. O que

presença e duração. Efetuava-se, portanto, em trân-

eu via, naquele breve privilégio, não era a imagem do

sito temporal próprio, numa pequena crise geradora

antigo morador, de seus hábitos e costumes; ao sentir

de vertigem que, provavelmente, nenhum outro modo

sua presença (ela estava lá), havia que enfrentar os

de ser imagético poderia produzir.

olhos do passado me devolvendo o olhar; havia que suportar a paradoxal coexistência da presença de

Nenhum outro? Por que me parecia especialmente

um vento já ventado e da impossibilidade de sua ex-

fotográfico o estado em que a casa ingressava? Como

periência.

poderiam existir acontecimentos fotográficos desatrelados de suas câmeras de origem?

Talvez porque o estado fotográfico instale nos objetos a duração de um tempo adormecido, o tempo

Se todas as famílias de imagens se interpenetram e di-

das coisas inanimadas, dos seres sem relógio e sem

alogam, se minha percepção está contaminada tanto

movimento – tempo peculiar que se manifesta entre

pela pintura como pelo cinema, tanto pelas imagens

a imagem de minha ruína e a ruína da imagem. Trata-

dos sonhos quanto as da memória, se quase já não

va-se de um arranjo singular em que a ausência se

conseguimos mais distinguir um tipo de imagem do

dava em modo de presença, e o reencontro em modo

outro, como poderia reconhecer um estado e outro

de distância, num regime tenso de proximidade dos

sem a delimitação do agenciamento maquínico que

longínquos. Tal vertigem tinha sido disparada pelo ins-

o fermentou? Não estaria a casa – com seu regime

tante em que assistia bruscamente à minha própria

de imagens sobrepostas e moventes – em um estado

falta: as paredes, a janela, o limo do muro não só pos-

mais cinemático do que fotográfico? E mais: existiria

sibilitavam a sutil presença do passado, mas também

alguma pertinência em, ainda, realizar tais indaga-

me faziam perceber a materialidade de minha futura

ções?

ausência. No interior daquela espécie de fixidez, no rápido e brusco momento da percepção, a materiali-

Provavelmente, quando pensamos em estado fotográ-

dade da casa emergia como experiência fotográfica,

fico, nos referimos a uma certa ideia de fotografia, que

durando infinitamente, como num abismo.

embora apresente uma “quase estabilidade,” possui um diagrama móvel, posto que sua emergência de-

Poderia ser que a fotografia se estivesse apoderando

pende da história e dos modos com que certos agen-

da casa sem atravessar nenhum aparelho? Sem que

ciamentos maquínicos foram incorporados e modifi-

fizesse nenhuma peregrinação através de qualquer

caram o próprio estado de forças que lhes possibilitou.

dispositivo tecnológico? Se houve um pisco, não tinha

Tal ideia de fotografia, se ela existe, vincula-se a sua

sua gênese na câmera; provavelmente havia sido

própria história: a seu advento, desenvolvimento, sua

gestado muito mais a partir de “maquinação” do que

genealogia; a suas acomodações, fraturas e deslo-

de uma maquinaria. Também não se tratava de obra

camentos. O que a fotografia veio a ser não parece

exclusivamente minha; era a casa que me visava; era

constituir essência única e imutável, mas algo que, em

sua materialidade que podia (ou não) ser capturada

seu percurso moderno, em suas transformações, ope-

pelo estado fotográfico. Sendo um estado, tratava-

rou persistindo em um modelo temporal. Trata-se de

se de domínio precário, instável, transitivo, embora

um “veio a ser” fotográfico que, em sua intensidade,

efetivo: um arranjo de configurações provisórias que

cristalizou o próprio vento de sua fundação – que es-

a casa podia, ou não, apresentar. Uma configuração

teve sempre a perder-se e encontrar-se, em tessitura

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temporal ora mais frouxa, ora mais tensa. Se é pos-

reconhecimento de singularidades. O desafio, no

sível pensar a fotografia como um estado é porque

entanto, é constatar que tais singularidades são

parece haver nela, em sua história (insisto), uma ex-

elas próprias móveis, encarnam a história e simul-

periência peculiar e vertiginosa de tempo.

taneamente a transformam. Assim, já não podemos saber se a casa seria hoje capturada pelo mesmo

Desse modo, pensar o fotográfico como estado

fotográfico: tudo parece indicar que aquele estado

exige que, ao entrever o aspecto transitivo dessa

constituído por tensões temporais (o instante e a

imagem, levemos em conta outros estados imagé-

duração; o contínuo e o descontínuo; a urgência

ticos, outras materialidades e operações que, ao

e a permanência; a memória e o esquecimento; o

longo da vida, nos atravessam. Por outro lado, exi-

passado e o futuro) está em plena mutação.• CLS

ge também que se estabeleçam as condições de possibilidade desses trânsitos − possivelmente o IN.CA # 3 | 15


Dois milhões de casas para o México Livia Corona

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No ano 2000, o candidato mexicano a presidência Vicente Fox Quezada propôs um plano sem precedentes para a construção de dois milhões de casas de baixa renda em todo o país durante o seu mandato de seis anos. Na véspera da sua eleição, Fox proclamou: “Minha presidência será lembrado como a era da habitação pública.” Para aprovar esta iniciativa, a agência do governo federal INFONAVIT cedeu a construção das habitações de baixa renda para um pequeno grupo de investidores imobiliários privados. Então, quase do dia para a noite, conjuntos de 20 a 80 mil casas idênticas brotaram do nada, e eles continuam a se espalhar pelas remotas áreas rurais ao longo de todo o país. Depararse com esses empreendimentos por terra, pelo ar, ou mesmo através de imagens de satélite, evoca uma sensação rara. Estes não são os bairros do sonho realizado do “Lar, doce lar”, mas são redes onipresentes de intervenção ecológica e social em uma escala e de conseqüências que são difíceis de entender. Nesses lugares, a urbanização é reduzida à mera construção de moradias. Praticamente não há aparelhos públicos como escolas, parques e sistemas de transporte. Existem poucas estruturas comerciais, tais como bancos e supermercados. No entanto, a demanda por essas casas de baixa renda continua a aumentar e os empreendedores continuam criá-los com extrema eficiência. Durante a presidência de seis anos de Fox, 2.350.000 casas foram construídas, a uma taxa de 2.500 casas por dia, e essa tendência deve continuar. Durante os últimos quatro anos, tenho explorado estes empreendimentos em “Dois milhões de casas para o México”. Através de imagens, filmes e entrevistas, eu olho para o espaço entre as promessas e seu cumprimento. Em minhas fotografias de vários empreendimentos perto de Cidade do México e em Baja California, lido com a rápida redefinição da vida da “pequena cidade” mexicana e a súbita transformação da paisagem ecológica e social mexicana. Estes empreendimentos urbanos marcam uma profunda evolução na nossa maneira de habitar o mundo. Em meu trabalho eu procuro dar forma ao seu efeito sobre a experiência do indivíduo ... o que exatamente acontece nestes dois milhões de casas? Como eles mudam ao longo do tempo? Como dezenas de milhares de vidas lidam com um cenário cultural singular e confinado? • LC.

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paisagem profunda

o país que caminha sob o olhar das montanhas Fotografia: Katyussa Veiga Texto: Juliana Bessa

As cidades do altiplano boliviano tocam as nuvens. Repleta de curvas, precipitações, névoa e abismos, é pela estrada de Coroico que o sobrelevado da região de La Paz cai em direção à Amazônia boliviana. 32 | IN.CA #3


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O caminho que adentra a região dos Yungas, até pouco tempo era a única forma de sair de La Paz em direção a região norte do país. Chamada de “camino de la muerte” em referência aos seus perigos, é um trajeto impossível de ser realizado sem aguçar os sentidos. A paisagem alta de Coroico guarda uma Bolívia Profunda[1]– onde montanhas observam pequenas existências e testemunham passagens históricas. Onde a memória invisível se abriga no espaço visível – este também subjetivo. Saindo de Villa de Fátima, em La Paz, o trajeto entre a “cumbre” e a “tranca” dura cinco horas, e antes dos abismos que rodeiam a descida ao trópico, é possível caminhar a pé. As fotografias aqui apresentadas percorrem esse lugar absorvendo certo silêncio sob cores delicadas. K. Veiga, ao passar por pequenos povoados próximos a estrada, grava uma paisagem que irá desaparecer e aos poucos se revelar - como sob um véu. Aqui a imaterialidade da memória é névoa. Caminhar e fotografar são movimentos especulares frente a paisagem. 34 | IN.CA #3


A repetição de lagos, montanhas, estradas e uma presença constante de ninguém exibe a força das montanhas e daqueles personagens que ali passam (e marcham) em diferentes rituais. Apenas poucos meses antes de Katyussa caminhar por Coroico, uma marcha[2] chegara a La Paz passando pela mesma estrada. A IX Marcha do Oriente vinha percorrendo cidades, diferindo-se de um protesto comum ao sair da esfera institucionalizada. É um rito que requer paisagem e transcurso. A caminhada o forma como imagem, e assim lhe é dado sentido. Vazios, vestígios, rotas e uma narrativa de movimentos solitários são constantes desse quadro. Um homem corta a paisagem à pé. Essa imagem mostra Sebastián em 1990, ano também da I marcha do oriente. A caminhada de Sebastián, no filme Nación Clandestina[3], é o cumprimento de um ritual de retorno. No qual ele volta para a sua comunidade carregando em suas costas uma grande máscara: El Gran Señor IN.CA # 3 | 35


Às vezes aquilo que é se confunde com aquele que observa 36 | IN.CA #3


A repetição de lagos, montanhas, estradas e uma presença constante de ninguém exibe a força das montanhas e das pequenas existências que ali passam (e marcham) em diferentes rituais. IN.CA # 3 | 37


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Danzante. Aquele que a usar dançará até a morte. Uma alegoria em que morrer tem como consequência nascer em comunidade. Sebástian se sacrifica porque uma vez renegou sua cultura e apenas tem uma forma de voltar a ela. O ritual fatal em si poderia ocupar o foco dessa narrativa, mas é a caminhada de Sebastián que desenvolve boa parte da metáfora entre identidade e imaginário nacional (num olhar para si e olhar a volta). Na sua travessia a máscara que o personagem carrega olha para trás. Aqui a paisagem e sua passagem por ela é o próprio curso da história. Remete-se, assim, ao conceito aymara “pachakuti”[4] de coexistência de tempos e que também remete a ideia de “estar e ver”. A paisagem boliviana é um rito para Katyussa, manifestantes e Sebástián, que a ela se lançam ressuscitando vestígios da Bolívia Profunda.•JB [1] Ideia derivada de “México Profundo”, termo de Bonfil Batalla para falar de uma história adormecida prestes a despertar. [2] A marcha sobre a qual trata o texto é a IX marcha dos indígenas do Oriente boliviano. Marcha em Defesa do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure (TIPNIS) e contra a construção da estrada Villa Tunari – San Ignario de Moxos - que cortaria o TIPNIS. A estrada faz parte de um conjunto de megaprojetos que visa integrar a América Latina e promover escoamento comercial via pacífico. O projeto foi iniciado sem Consulta Prévia, mecanismo constitucional que protege a autonomia indígena. O governo de Evo Morales insistia que a obra seria feita com ou sem o consentimento das comunidades que vivem no TIPNIS, apesar das consequências diretas que a estrada traria ao modo vida dessas comunidades. [3] Sebástian é personagem principal do filme de Jorge Sanjínes, “Nación Clandestina”, Bolívia, 1990. [4] Também uma forma de estar e ver, dizer e ser.

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Especial Brasília Em homenagem aos 53 anos da cidade, IN.CA selecionou seis trabalhos que problematizam o espaço e a sociedade da capital do país.

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SUPERQUADRA Erik van der Weijde

Erik van Der Weijde é um fotógrafo holandês radicado no Brasil. Seus trabalhos invariavelmente assumem a forma de fotolivros, que ele constrói meticulosamente como esculturas. Autor de mais de 30 títulos, ele confessa certa obscessão com a arquitetura moderna brasileira e de Brasília em particular. Nessa seleção que fizemos de seu trabalho, a formalidade da arquitetura de Brasília se mistura ao Parque Guinle, também desenhado por Lúcio Costa. Leia a entrevista que fizemos com ele, e veja o que ele pensa de Brasília, da fotografia e dos livros.

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IN.CA ENTREVISTA ERIK VAN DER WEIJDE

Zine IN.CA: Como a fotografia entrou na sua vida? Poderia nos contar um pouco sobre sua trajetória? Erik: Eu comecei a me interessar pela fotografia na academia de artes de Amsterdam, em 2000. Isso se deu por conta do incentivo dos meus professores, que depois direcionaram o meu interesse. Eu comecei a trabalhar como assistente de dois deles e foi aí que aprendi a usar a fotografia para expressar minhas próprias ideias. Zine IN.CA: Os livros de fotografia tem se tornando um dos meios mais populares de difusão de trabalhos fotográficos e você tem usado bastante esse meio. Qual a importância livro como formato para o seu trabalho? Você produz já pensando no livro como forma ou o livro é apenas mais um meio que você usa para exibir seu trabalho? Erik: Meu primeiro livro foi o trabalho de formatura, em 2003. Eu procurava um maneira de manter minhas series de fotografias juntas e vi que no livro eu podia guiar o espectador. Não parei mais de produzir livros, acho que já cheguei a publicar 30 títulos. Quando estou fotografando eu já sei que o projeto vai virar um livro. Mas é só no atelier que eu crio a forma do livro. Eu uso as fotografias quase como uma argila e vou montando, esculpindo, ate chegar na ultima pagina. O livro é realmente o trabalho. Eu considero quase uma escultura, e não um meio para mostrar minhas fotografias. Zine IN.CA: Você tem diversos trabalhos publicados sobre o Brasil. Como surgiu essa relação entre você e o Brasil? Erik: Aos 17 anos eu fiz um intercambio no Brasil e desde então tenho ido e vindo. O Brasil faz parte da minha vida agora e o que acontece aqui, tanto de bom quanto de ruim, me inspira muito. Agora já sou casado com uma Potiguar e temos um filho, uma cachorra e uma jabuti... Zine IN.CA: Você também tem livros sobre Niemeyer e sobre Brasília? O que você buscava nesses trabalhos? Erik: Sempre quis ser arquiteto, mas nunca fui bom em matemática. Gosto muito da arquitetura moderna e foi a igreja da Pampulha que me fez decidir seguir carreira artística. Nos trabalhos citados busco algo da obsessão, não só por uma arquitetura, mas também pela fotografia. O que me interessa em Brasília especificamente é a arquitetura, desenhada por uma, ou duas pessoas, que ate hoje têm uma forte influencia sobre o dia-a-dia dos moradores. E quase ditatorial. É sobre esta arquitetura política que eu trabalho bastante.•IN.CA

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a gaiola ClĂŠber Figueiredo

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Me impressiona grandemente este espetáculo da construção civil. Me impressiona como as pessoas investem todo o seu dinheiro para “morar mal”, como diziam meus primos do Rio. Tudo é um grande atropelo, e sinal evidente do descompasso, desleixo e desinteresse geral de todas as partes envolvidas - com exceção daqueles que estão aproveitando para enricar. Sobre um terreno praticamente virgem, dentro do que ainda era o cinturão verde que envolvia Brasília, resolveu-se passar o metrô com destino às cidades-satélite do quadrante sudoeste. E, porque o metrô passaria por aquele lugar, achou-se por vantajoso “inventar” uma nova forma de viver dentro do DF, que seria uma contemporização da idéia de lugar - com direito a prédios altos, uma abundância de comércios ao rés-do-chão e condomínios habitacionais fechados. Mas, talvez porque a força por trás de tudo era o tradicional coronelismo, era de se esperar que o objeto a ser feito tivesse mero valor simbólico para o rolamento das engrenagens. A parte mais engajada na empreita passou a ser, então, aquela cujo interesse e ganho principais ficam concentrados durante o processo de construção e que, em decorrência disto, preocupa-se somente com o ato de construir, sem jamais se importar de olhar para o que está fazendo, desde que se esteja fazendo. Devido à pressa por começar, projeto, crítica e qualidade do espaço urbano caracterizavam-se como estorvos desnecessários. De cada um destes foi incorporado somente o mínimo para que se pudesse logo passar à exploração. O pouco que foi desenvolvido em termos de projeto foi prontamente pisoteado, por não atender às demandas impostas pelos construtores. Cada idéia foi distorcida o quanto pode, de modo a gerar o maior volume possível de lucro. 54 | IN.CA #3


O número de andares foi prontamente questionado. Por que 8 e não 12? Depois, quando 12 já não se mostrava tão atraente: por que não 24? A idéia da abundância de comércios foi recebida com uma careta e prontamente descartada - somente para ser retomada anos mais tarde quando a densidade os demandou, e ele passou a ser uma fonte de retorno para as construtoras. Quem somente triunfou, quem sabe sem querer, foi o condomínio fechado. Foi prontamente adotado pela população de classe média assustada pela violência urbana, desiludida com a vivência da cidade e seduzida pela promessa da Canaã que ficava a 20 minutos do Plano. Conforme as modas e as tendências, os prédios foram de adaptando, em fachada, acabamentos e facilidades aos moradores, porém sempre negando sua existência dentro de um contexto necessariamente urbano e social. O metrô, porque vindo das cidades satélites, desde sempre teve a mesma pecha dos ônibus, e continua a ser o transporte das classes trabalhadoras e não tão médias. Predomina o transporte individual por carros, sobrecarregando a malha e tornando a saída e chegada diárias um suplício doloroso e inevitável. E, impressionante, é por isto que as pessoas estão pagando, em pequenas parcelas e por quase toda a vida. Por um apartamento de primeiro andar com vista para a churrasqueira comunal. Por paredes finas e com as marcações dos pilares a dificultar a organização interna. Por janelas pequenas e esquadrias de baixa qualidade. Por um quarto virado para a avenida movimentada. Por um aperto no meio do nada - por uma gaiola onde cantar o canto triste de sua vida de classe média, de fingir não ver a sociedade que a cerca, e cegamente seguir modas e confiar em tendências externas.• CF IN.CA # 3 | 55


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o menor metro quadrado Carol de Goés Gabriel Mesquita

Não há um quadro sequer nas paredes da unidade onde vive Ulisses. Um novo e exclusivo empreendimento na planta lhe pareceu uma boa ideia onde investir seu dinheiro. Por 36 meses tolerou, pela última vez, os mesmos desagradáveis aspectos da urbe que, durante décadas, invadiam seu cotidiano ali, frente à W3. As chaves finalmente lhe foram entregues. Em seus sonhos, encontrava o saciar de todas as suas expectativas lá, na unidade C-302. O cheiro de casa nova perdurou por alguns meses, quase um ano. Pudera, poucos elementos externos a frequentavam. O ocasional entregador de pizza nunca atravessava a soleira, a despeito de amigáveis convites a uma xícara de café ou copo d’água, polidamente recusados. 60 | IN.CA #3 60 | IN.CA #3


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Aos poucos, a palpitação da novidade foi se esmaecendo. Ulisses não mais tinha gosto em passar longas horas entre aquelas paredes. A liberdade solitária, ora tão desejada, agora dava espaço ao tédio. Inventava compromissos dos mais fúteis, qualquer desculpa para pegar seu carro e sair. De vez em quando, passava frente à sua antiga moradia e imaginava a vida de quem a estaria ocupando agora. Imaginava também a vida de seus vizinhos. Aquele casal com filho pequeno, tão simpático. Ulisses nunca se casou. Teve alguns relacionamentos, mas hoje acredita que nunca amara o bastante para se casar. Em retrospectiva, talvez nunca tenha sido muito passional sobre qualquer coisa em sua vida. Evitava visitar a área comum do condomínio. Sentia-se ignorado e acabava por nutrir desprezo pelos vizinhos, disfarçado por um cordial aceno de mão. Malditos adolescentes barulhentos. Aquela loira vulgar do D-407. O latido irritante do pincher daquele viado do outro bloco. A sacada era um refúgio. Vista aberta, o ventinho aprazível não era forte o bastante para carregar as cartas de seu sagrado jogo de paciência. Ulisses nunca trapaceava. A graça do desafio estava justamente aí. • CG & GM.

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BRASÍLIA-CERRADO Ricardo Theodoro

A série “Brasília – Cerrado” nasceu do desejo de refletir sobre a verdadeira monumentalidade da cidade: a amplidão de seus vazios, as distâncias intransponíveis, e a pouca densidade do plano piloto. O épico ato simbólico de ocupar o “vazio” central do país, que orienta a fundação de Brasília, parece diminuído diante da persistência do cerrado, que insiste em manter-se onipresente na paisagem da capital. A série procura fugir das perspectivas que o projeto da cidade procura nos impor. Busca nos interstícios do plano revelar aspectos velados da relação da cidade com a paisagem natural. O principal aqui são os campos largados, os solos avermelhados, a aridez quase desértica da vegetação. A arquitetura é sobreposta, relegada ao segundo plano, lutando para aparecer. Os monumentos que pontuam a linha do horizonte em algumas das fotografias, são colocados em pé de igualdade com araticums, muricis, barbatimões, pacaris, bacuparis, e gabirobas.• RT

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SILÊNCIO DAS TRÊS Vitor Schietti

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Às três da madrugada de uma terça-feira qualquer, enquanto Nova Yorque ouve uma sirene de ambulância cruzando a 5ª avenida, enquanto filas ainda se formam em baladas da Vila Augusta, em São Paulo, enquanto um trabalhador embreagado sai cantarolando de um karaokê na avenida Shibuya, em Tóquio, enquanto um filme é gravado na Sunset Boulevard, em Los Angeles, enquanto bohemios discutem política em altos tons no Cartier Latin, em Paris, a via W3, em Brasília, dorme. Viver em uma cidade que proclama-se coração de uma gigante nação, mas que aquieta-se com o cair da noite, é um privilégio, não um lamento. O homem esquece-se que o sono e o sonho são partes vitais da vida, são alimento para a alma. Mas é afortunado o brasiliense, que vive, ainda que muitas vezes a contragosto, em uma cidade que sabe dormir, que sabe sonhar. Silêncio das Três é um trabalho autoral iniciado em 2008, onde tento retratar a quietude de Brasília às 3 horas da madrugada. Foram mais de uma dezena de saídas noturnas, algumas acompanhadas de amigos, outras sozinho, sempre atento ao silêncio e à placidez de paisagens urbanas que são urbanas justamente por existirem assim, sob a luz amarelada dos postes de tungstênio. Em uma das maiores obras de Akira Kurosawa, “Sonhos”, o protagonista depara-se com um velho ancião que concerta um moinho d’água. Intrigado pela simplicidade e aparente falta de conforto em que vivem os habitantes da pequena vila, questiona:

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“Mas sem eletricidade vocês não tem luzes, e como fazem durante a noite?” eis que o velho responde “Temos velas e lampiões, eles nos bastam” “Mas a noite é escura!” “Evidente, é assim que devem ser as noites.”• VS


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EM CONSTRUÇÃO Fotografia: Joana França Texto: Ricardo Theodoro Essas fotografias de Joana França fazem parte de um projeto em andamento, um grande inventário da arquitetura de Brasília. 250 dessas fotografias foram publicadas em um guia de arquitetura editado em 2011, e o trabalho continua sendo produzido. A empreitada alinha-se com a tradição da catalogação. Fotografias sempre em preto e branco, com grande profundidade de campo, muitas vezes com perspectiva frontal, céu nublado e luz opaca. O rigor com que a arquitetura é retratada não faz distinção entre os principais prédios cívicos, monumentos que entraram para a história da arquitetura, e a arquitetura que deveria ser ordinária: coberturas de postos de gasolina, repartições públicas de segundo escalão localizadas em áreas de menor visibilidade, equipamentos de lazer como uma plataforma de saltos do Centro Olímpico da Universidade de Brasília. A cidade não se faz só pela arquitetura de excessão produzida pelos maiores nomes do movimento moderno. A monumentalidade, as implantações típicas da “arquitetura internacional”, as peripércias formalistas e as ousadias estruturais que fazem sentido no contexto da escala monumental, imaginada por Lucio Costa para dotar a cidade de senso cívico, fora desse contexto criam estranhas paisagens. A edição aqui publicada valoriza justamente essa produção menos conhecida, que não faz parte do imaginário da cidade. Como as caixas d’água e os complexos industriais fotografados por Hilla e Berndt Becher essa arquitetura é alçada à categoria de escultura nas fotografias de Joana França. Olhadas de perto, as imagens mostram o efeito do tempo na arquitetura: a tinta descascada, o concreto sujo, o azulejo quebrado, a falta de cuidado com os entornos imediatos dessas edificações. A típica implantação moderna, onde os edifícios ocupam amplos terrenos isolados de um tecido urbano, cumprem sua função simbólica quando inseridas na escala monumental, mas a replicação desse modelo em outros contextos geram espaços esgaçados, que remetem ao abandono e desumanizam a escala da cidade.•RT IN.CA # 3 | 87 IN.CA # 3 | 87


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r r a m ã a m o u u m p i e m a i i p ç s a r e e i c a s , r , z a f u ras rddiaedramdnueçãgoeogoicssi ttóóriagrgarfiaarremo o i n o o c a t o u h t c r h a m t p e t o . Re R a a daffo lrsaparsoa o fíca l i s a o f . a a n i a f o p a f m a a m i d i a a s d é r smi ags.ePanem r s f s b ó otograam avé a m e n hr ta s s i s i e s t b r f g , t p n s s ó o a o a a l o x a eá-rehuim t m ã e d e t a ç s m l a i v o a o e , i i t d f s a s , e r u o a a p r s r t o c m a d ó m e i apoirsooliddad,om ã n a co eanlaasaaptr cdrô l ç u i a g i s u n o o e i r s o . Srãu a sóupma e n o qeo mcriodanadodamaisodm m fia s se s r s e o a a m t o d p c n n a o i n iho.dMo e a c r r a i v s t m g n o e s e o a n o p i ô t e s s s n u a c o r o d o i A f o n q e a . o c s e s s m s m n r g uscas ea o e o a msciosmedvaoolvesesm t i r m e ã e e u u c s S b q o d n e . t s E o a d am idja a c s . s o m s n i o a a s r r o a i e d o t f o i t m o e a e n s f r v t r n o m a o m b a e f g s s m e o puttiomgoarfoa a s e i toroes e taia um d d s , c s s o e i m e n r m f e õ d p e e a a ç e o r d m x u r o c c g a e e q i g ã r f s d s glevm fs a om o r i t l s e no p a u u o a à e d c m e b e e d e u r a m n s t a v d a q a E maco o o d ma r r o d i d . l b e c s s s s d s a a o a e m r s e t i a e o trsodtaerqoeureisoageproa d f o n s r d ide rubens o i d o fernandes junior n c p e o e t a r v o i a p o e f r m d mauricio lissovsky m o o o o e s ssummfm a b e t e o u t t á q m n o cláudia linhares sanz d s a h e s u e e o m o m l a ã r i e a U ronaldo entler s i e N u . dectqdou e f q a ? a orr a m a m o c i r tétpo matunfhoatrãoof gedse astrluiçdcultura, a teoria e história da fotografia a

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Photo by Daniel @ Panteion University

Merry Crisis and a Happy New Fear: o mundo invertido Marcelo R. S. Ribeiro No ano de 2008, em meio a crise da GrĂŠcia, uma misteriosa frase se disseminou pelos muros e paredes do paĂ­s e suas imagens se espalharam pelo mundo. Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro tenta decodificar essa mensagem. 100 | IN.CA #3


1. A alucinação que se partilha é um fundamento da vida em comum. Os calendários estão entre as alucinações coletivas necessárias para qualquer experiência do comum e toda fabricação de coletividades. Ao lado do dinheiro, da linguagem e do cinema, por exemplo, os marcos do tempo definidos por um calendário representam uma forma de classificação que projeta, no tempo, algumas das categorias, problemas e movimentos constitutivos da vida social. Nesse sentido, a classificação do mundo – das coisas que o compõem, do espaço e do tempo em que se desenrolam e se enovelam seus fios – não é resultado de procedimentos lógicos abstratos ou de cálculos racionais feitos individualmente, mas de formas coletivas de organização social{1}. Assim, o que está em jogo na classificação do tempo representada pelo calendário é a objetivação da sociedade e das representações coletivas que a fundamentam ou, em outras palavras, a materialização de relações sociais e dos ritmos que as sustentam sob a forma de marcos temporais que aparecem como se fossem objetivos e necessários. Ao assumir a forma de representação coletiva e, portanto, de alucinação partilhada, a

sociedade pode se inscrever no mundo e, ao mesmo tempo, esconder o processo de sua inscrição. Na objetivação da sociedade que está em jogo no calendário, são cruciais ritos que, como o Natal e o Ano-Novo, imprimem um ritmo cíclico ao tempo social. Ao serem alucinados em conjunto, os ritos do Natal e do Ano-Novo ajudam a fixar e a estruturar o calendário e reforçam, dessa forma, a ordem social que se inscreve em seus marcos temporais. Nos ritos, a sociedade se re-vela como tempo e o tempo se projeta como necessidade. 2. Toda alucinação partilhada é ao mesmo tempo um campo de disputa. A inscrição da sociedade nos sulcos do mundo, nos traços que fazem da superfície das coisas a cifra de uma escrita, no tecido tênue da realidade, depende de um processo reiterativo, que opera por meio da repetição de elementos – como os dias, as semanas e os meses, como os feriados e as datas comemorativas – e, ao mesmo tempo, se desloca parcial e incessantemente em direção a novos contextos – não há repetição absoluta, o tempo está irreIN.CA # 3 | 101


versivelmente aberto. Assim, cada Ano-Novo é a ocasião de uma repetição – estamos diante de mais do mesmo – e de um deslocamento – estamos diante de algo que pode ser inteiramente novo. O Ano-Novo é apenas mais um ano, novamente: reúne a certeza do mesmo e a potência do novo. Mais do mesmo, já outro. A articulação entre repetição e deslocamento, entre conhecido e desconhecido, entre convenção e invenção{2} define o processo reiterativo de inscrição da sociedade no mundo. Entre a repetição e o deslocamento, desenrola-se um jogo político, isto é, de definição das possibilidades da vida em comum e de disputa pelos sentidos que a constituem. Qualquer forma cultural existe em relação ao campo de disputa delimitado pela repetição e pelo deslocamento, tendendo em direção a um ou a outro. Toda forma cultural pertence à alucinação partilhada, participando de sua tecelagem ou perturbando seu enredamento: trata-se de um pertencimento tenso, que pode ser notado quando,

por exemplo, o cinema reescreve a história, jogando com os signos que a compõem e invertendo as coordenadas dos marcos que a organizam, como em Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino. O que está em questão aí – e na esfera da arte de forma geral – é a possibilidade de interrogar a alucinação, de disputar seus efeitos e de repensar seus sentidos. 3. Em toda alucinação partilhada, as palavras e os elementos simbólicos são tratados convencionalmente como encantamentos sagrados e, assim, os jogos de linguagem podem produzir sacrilégios. Uma parte do Natal e do Ano-Novo envolve, como em todo rito, o uso de palavras como se elas fossem dotadas de poder sobre o mundo, como se o abismo que separa as palavras e as coisas pudesse ser magicamente preenchido por encantamentos. Na língua que se tornou familiar a muitos de nós em tempos de globalização, costuma-se dizer “Merry Christmas and a Happy New Year”. 102 | IN.CA #3

O uso recorrente e repetitivo da expressão, na qual se pode reconhecer a força de um encantamento, a converteu em um significante vazio, que se torna tão invisível quanto familiar. Diante da invisibilidade do familiar e do esvaziamento do encanto a que a sacralização destina as palavras, apenas o jogo pode produzir algum estranhamento suplementar. É o que ocorre com a frase “Merry Crisis and Happy New Fear” (algo como “Feliz Crise e Bom Medo Novo”), cuja origem permanece indeterminada, embora seja possível dizer que passa pela Grécia e pelas mobilizações populares que se espalharam por diversas cidades gregas em dezembro de 2008. Contrapondo-se ao vazio de sentido do slogan convencional, desencantado diante da crise generalizada, “Merry Crisis and Happy New Fear” se transformou num slogan de protesto, disseminando o sacrilégio dos encantamentos sagrados do Natal e do Ano-Novo pelas paredes e muros de diferentes cidades. Por meio do sacrilégio, o jogo de

linguagem devolve as palavras à esfera do uso comum: o eco distorcido da expressão original permite inscrever um sentido diferente, possibilitando a repetição deslocada, a reiteração subversiva do encantamento sagrado e, portanto, a sua profanação. 4. Os jogos de linguagem podem reintroduzir nas palavras o encantamento profano que se perdeu com sua sacralização. A partir da capa de uma revista, as palavras “Merry Crisis and Happy New Fear” passaram a disseminar seu sacrilégio em paredes como a do Banco da Grécia, chegando a se difundir de forma intermitente por meio da internet até 3 anos depois dos eventos de 2008, por ocasião do Natal de 2011 e da passagem para 2012. Em sua disseminação, as palavras sacrílegas do Natal e do Ano-Novo revelam a crise por trás do consumismo do espetáculo das luzes natalinas e o medo diante das sombras que se projetam no futuro. As palavras


“Merry Crisis and a Happy New Fear” recuperam a intensidade profana do encantamento das palavras, permitem saber e saborear as possibilidades de sua reinscrição na esfera do uso comum. 5. No cerne da alucinação partilhada e da sacralização convencional, o encantamento profano inscreve uma inversão inventiva, que revela o estado invertido (o estado de exceção como regra geral) do mundo em que vivemos. É apenas na fotografia dos policiais caminhando diante de paredes grafitadas com a frase “Merry Crisis and a Happy New Fear” que podemos entrever seu encantamento profano em toda a sua complexidade. Na reiteração subversiva das palavras de ordem do capitalismo, descobrimos, sob a forma de um reflexo invertido, a desordem em que se encontra o mundo, revelando o estado de exceção como regra, como percebeu, há tempos, Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos

por acaso, o escudo invertido do policial à esquerda abre na superfície da foto uma ferida: é o elemento “que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar”, como escreve Roland Barthes sobre o punctum, em A câmara clara: ”picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”. Embora a foto pareça – em sua tecelagem superficial – significar um contraponto entre a frase grafitada na parede, que representa as revoltas e a insatisfação generalizada, e os policiais, que representam a violência (monopolizada pelo Estado) da imposição da ordem, o escudo invertido é a faísca de acaso que abre outros sentidos: a repressão policial como imposição de uma ordem de valores invertidos como aquele escudo, defendendo os mais ricos dos ricos e seus interesses, contra os 99%; a desatenção da repressão policial como fratura no poder; a possibilidade inquietante,

nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral.” O encantamento profano das palavras inverte os valores da frase original e inventa um espaço de revelação da verdade no cerne da alucinação partilhada do calendário, dos ritos de sacralização do Natal e do AnoNovo que o sustentam. A inversão inventiva revela que a verdade da vida em comum é hoje o estado de exceção, marcado pela crise e pelo medo. É a crise que revela o estado de exceção e abre a possibilidade de uma nova história, como 2011 insinuou, seja na primavera árabe, seja nos movimentos de ocupação que surgiram ao redor do mundo. É na crise que se pode fazer a partilha do medo, que chega aos poderosos e privilegiados, aos ditadores e ao 1%: é feliz, para os oprimidos, o medo que pesa sobre o poder. A melancólica ironia já contida nas palavras – que comemoram ou fingem comemorar a crise, que festejam ou fingem festejar o medo – se intensifica na fotografia quando, como que

o delírio instigante, o sonho bobo de que as duas figuras não trabalhem do lado da repressão policial, seja porque desertaram, seja porque imitam suas características apenas para melhor confrontá-la; etc. Mas, afinal, por que o escudo está invertido? A foto não diz nada. Seu silêncio grávido, intenso e ao mesmo tempo duro, não oferece nenhuma narrativa dos eventos anteriores (e posteriores) à captura da imagem. O silêncio dá à fotografia uma insistente abertura, porque permanece sem sentido, à espera de algum sentido, acolhendo a esperança de outros sentidos para a imagem e para o mundo: no abrigo da fotografia, o mundo poderá, talvez, ser reinventado. Na ferida pungente do escudo invertido, que recorta a tecelagem superficial da foto, que dá a ela uma espécie de relevo, que revela toda a espessura de sua trama, o que vejo é uma desesperada esperança. Afinal, quando ela vale alguma coisa, é de desespero que se faz a esperança.•MRSR IN.CA # 3 | 103


humanidade desfeita Thymournia O mundo está rolando ladeira abaixo e, seja como for, o trabalho do artista é expressar-se da meneira que pode pois seu trabalho afeta a sociedade, o seu passado e o seu futuro próximo. É como o aviso de uma catástrofe que se aproxima e com o qual convivemos todos os dias. Atualmente, não são muitos os artistas que estão preocupados com tais assuntos, muitos deles estão apenas se promovendo de todas as maneiras que podem. Em todas as séries que eu crio, por trás de cada uma de minhas fotografias e poemas, há uma história para quem busca saber alguma coisa sobre a vida e o que está acontecendo no mundo ao seu redor. Esteja ciente dessa vida que o deprime, esteja acordado quando a dor estiver cantando sua canção...•THY

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walk with me


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for the world to fall

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all the truth is saddened

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FOTOGRAFIA: GIHAN TUBBEH

DELÍRIOS NOTURNOS TEXTO: CARLOS HENRIQUE

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A loucura é um fenômeno que assombra e intriga a modernidade Ocidental. Com a ascensão do racionalismo e da biopolítica – os saberes e as práticas que fazem do corpo o centro da intervenção política –, representa-se a loucura como a ausência, a falta, a carência ou a falha da razão. Encurralada entre a irracionalidade e a animalidade, a solução que a modernidade encontra para a loucura é o confinamento. Ao longo dos séculos 17 e 18, os loucos são colocados para fora dos muros da cidade, e seguindo o modelo de tratamento da lepra, eles são aprisionados em instituições médicas. O confinamento da loucura desempenha diversas funções: ele segrega e separa a população produtiva da não-produtiva nos termos capitalistas; expurga do espaço público os marginais e os incapazes de se encaixar no processo de progressiva racionalização das cidades; e ostraciza os desviantes do convívio social. A loucura implicava uma sentença de exclusão, uma condenação perpétua, sem processo nem crime. O ensaio de Gihan Tubbeh desafia a lógica da exclusão e do fechamento que envolve o tema da saúde mental na atualidade. Ela faz uso da câmera fotográfica – esse aparato da tecnologia criado para objetificar o mundo – para construir um espaço dialógico e de liberdade durante o evento fotográfico. Isso é possível graças ao modo como ela subverte a predeterminação do aparelho que, aparentemente, demanda a existência de um sujeito e de um objeto. Ela mistura as posições, devolvendo aos que estão em frente às lentes a sua condição de sujeitos. O resultado é um encontro entre iguais e momentos de mútuo reconhecimento. Mas esse processo de reconhecimento não é pura luz. A complexidade da fotografia dialógica de Gihan não deixa de se confrontar com as sombras que fazem parte da condição daqueles que experienciam transtornos mentais. Em sua incursão no mundo da loucura e do confinamento, há o isolamento, o alheamento, a confusão, e a atmosfera perturbadora, mas também o sorriso, a excitação, e uma misteriosa felicidade mesmo que na forma de um delírio.• CH

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Ofuase

Keren Chernizon Todo final de ano parece ser a mesma coisa. Os amigos e familiares começam a pensar sobre as férias e a planejar onde irão passar a tão esperada “virada”do ano. No final de 2010 resolvi programar algo incomum. Motivada pela minha verdadeira paixão em fotografar culturas e lugares completamente diferentes a minha realidade decidi ir para Gana. A escolha do país não teve nenhum motivo específico; sabia apenas que gostaria de conhecer o continente Africano. Meu espírito aventureiro faz com que eu tenha preferência por viagens longas e sem um roteiro planejado, gosto de colocar a mochila nas costas (literalmente) e me sentir vivendo a vida das pessoas locais, sem simplesmente cair nos roteiros turísticos. A questão é que para ficar um bom tempo viajando, o gasto deve ser mínimo. Por isso tive a idéia de contatar ONGs e oferecer meu serviço fotográfico em troca de moradia e comida. E deu certo! Morei em Gana por 3 meses. Lá trabalhei para a ONG Plight of the Child, que visa proporcionar uma educação de melhor qualidade para as crianças que moram em vilarejos rurais afastados dos centros comerciais e das grandes cidades do país. Fui professora voluntária na escola pública do vilarejo chamado Ofuase. A experiencia foi incrível! Morei na casa de uma senhora que era conhecida por “Queen Mother”, pois fora casada com o “King” do vilarejo, resquícios culturais do que seriam as tribos daquela região. Ela tinha três filhas mais ou menos da minha idade, em torno dos 20 anos, e apesar de não falarem muito bem inglês, a comunicação se desenrolava atraves de mímicas e muitas risadas. A casa era simples, como todo vilarejo. Tinha quatro comodos, uma sala, dois quartos e a cozinha, que era praticamente o lugar onde guardavam os alimentos pois não

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havia fogão nem geladeira. A comida era feita a cada dia e cozida no fogo a lenha no chão na frente da casa. O banheiro era no fundo do terreno da casa, perto da mata. Privadas não existem, é apenas uma porta com um buraco no chão de terra que da para uma fossa bem grande. Chuveiro tambem não tem. O negócio era banho de balde! Aliás, toda a agua utilizada provinha dos poços da cidade, encanamento não existe por lá. Mas o fato de ter que tomar banho de balde não me causava nenhum incômodo, a água era fria, mas o calor era tão intenso que nem conseguia imaginar tomar um banho quente. E o que eu mais gostava desse ritual todo era o fato de tomar banho a céu aberto! olhando as estrelas, a lua, ou vendo o dia amanhecendo... As vezes os patos e galinhas me faziam companhia, mas eu achava tudo muito engraçado. Minha rotina era bem tranquila e pacata. Acordava, caminhava mais ou menos 2km até a escola, ficava lá ate o fim de tarde, e voltava para casa. Apesar de todos me acharem muito diferente, principalmente as crianças que nunca haviam visto uma pessoa branca, todos eram extremamente simpáticos!. As crianças me viam andando pela rua e saíam correndo atras de mim, sorrindo, gritando, dando tchau....ficavam me cercando com aquelas olhares curiosos! as vezes era até difícil de falar com elas de tanto que riam de mim. Os três meses que passei foram difíceis nos aspectos de conforto e comida, mas gosto da sensação de me adaptar a cultura local, gosto de saber que estou em um lugar onde terei que aprender tudo do zero. As lembranças dessa experiencia, que carregarei pela vida toda, fazem tudo valer a pena. •KC

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colaboradores carol de góes – fotógrafa, possui formação também em artes plásticas. Premiada pelo Diário Contemporâneo de 2013, mora atualmente em Porto Alegre.

fotografias já foram publicadas em CoisaComCoisa.org, London Independent Photography Magazine e Bolivian Express Magazine.

cláudia linhares sanz - é co-autora do Blog Icônica, doutora em Comunicação pela UFF; pós-graduada em Fotografia; jornalista e fotógrafa graduada pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é pesquisadora associada da Pós-Graduação em Comunicação da UnB.

keren chernizon - formada em Radio e TV pela FAAP em 2007. Hoje cursa a pós-graduação em fotografia na FAAP e continua atuando como freelancer, dedicando-se também a projetos fotográficos pessoais de cunho documental.

cleber figueiredo - arquiteto e fotografo. Formado pela University of the Arts London e é especialista em fotografia analógica. Suas obras integram coleções particulares no Reino Unido, França, Marrocos e Brasil. erik van der weijde – artista alemão, vive parte do ano no Brasil, onde publica a maior parte dos seus livros. Van der Weidje tem publicado seus livros com renomadas editoras como ROMA e Rollo-Press, embora publique a maior parte do seu trabalho de forma independente na sua própria companhia 4478ZINE.COM. fernando martinho – fotógrafo freelance para revistas, jornais e agências do Brasil. Graduado em Documentary Photography pela ICP. Foi correspondente para revistas da Alemanha, Canadá e Espanha. Sócio fundador da produtora PHOGO e integrante do coletivo paralaxis. gabriel mesquita – Gabriel Mesquita é graduado licenciado em Artes Plásticas (UnB), quadrinista, artista plástico e ilustrador, criador do infame Capitão Atomo. Está em processo de produção do romance gráfico Canção de Antes, primeira parte publicada na SAMBA 2. gihan tubbeh – fotógrafa peruana, faz parte do coletivo fotográfico Versus e foi ganhadora do World Press Photo 2009 na categoria: Histórias de Vida Diária com seu trabalho - Adrián, un autista de 13 años. Já teve seu trabalho em exposições no Peru, Brasil, Holanda, Alemanha, Espanha e China. Foi ganhadora do prêmio Wordpress em 2010, e Fotógrafa do Ano de 2011 no Pictures of the Year, Latin America. joana frança - fotógrafa de arquitetura e de cidades. Formou-se arquiteta pela Universidade de Brasília e estudou fotografia no ICP, em Nova Iorque. Em 2010 fez parte do projeto Exposição “Brasília: 50 years Exhibit”, na Cornell University. Foi também responsável pelas fotografias do Guia das obras de Oscar Niemeyer – Brasília 50 anos. katyussa veiga – mora atualmente na Bolívia, suas

livia corona - fotógrafa mexicana, formada pelo Art Center College of Design de NY, Ganhadora do prêmio John Simon Guggenhein, Sony World Photography Award in Cannes, Paris Prix de la Photographie, dentre outros. E foi nomeada “Fotógrafa Internacional do Ano” pelo Lucie Awards. É autora de dois livros, “Enanitos Toreros” (PowerHouse Books, New York, 2008) e “Of People and Houses” (HDA, Austria, 2009). marcelo r. s. ribeiro - professor e pesquisador e desenvolve o website incinerrante.com. Graduou-se em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia na Universidade de Brasília (2005) e realizou seu mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (2008). ricardo theodoro – artista visual nascido no Rio de Janeiro, cresceu em Brasília onde se formou em arquitetura. Atualmente é professor de fotografia da faculdade IESB e pesquisa Poéticas Contemporânes na pós-graduação do Instituto de Artes da UnB. thymournia – fotógrafo iraniano e designer gráfico desde 2001. Vive em Zagreb, na Croácia onde ministra cursos de fotografia. vitor schietti – fotógrafo brasiliense, diretor de arte e aquarelista. Tem formação no New York Film Academy em Los Angeles, trabalhou como assistente de câmera para os cineastas Rainer Lipski e David Wexler e foi diretor dos curtas e do clipe “The Wheel” e “Homefull“. Em 2011, expôs sua série fotográfica “Jornada Americana”, em Brasília.

agradecimentos

Gostaríamos de agradecer a todos os colaboradores, inclusive os que não foram selecionados para este número. Também gostaríamos de agradecer aos novos editores de IN.CA Janaína Miranda, Joana França e Ricardo Theodoro pela ajuda prestada e pelas sugestões nessa edição. Agradecemos também a Anand Dacier pela ajuda essencial em algumas das traduções, a Camila Melchior pela interlocução e revisão do texto Paisagem Profunda, e a Jetty pela compania virtual nas madrugadas de trabalho. Agradecemos também a Bruno Bernandes e a Galeria Ponto pelo apoio e disposição em nos ajudar.


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