Photo Zine IN.CA #1

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in.ca zine

[intervenções críticas]

#1 janeiro-junho de 2011


fotos: carlos henrique


in.ca zine

[intervenções críticas]

#1 janeiro/abril de 2011


colaboradores amandine goisbault carlos henrique daniel faria diego bresani juliana bessa marcelo rodrigues souza ribeiro tiago tôrres

concepção carlos henrique

capa foto: diego bresani, da série “mas aí, eu vi o céu”.

contato zine@gmail.com

edição carlos henrique

IN.CA é um zine eletrônico, de distribuição livre, criado a partir da doação do tempo de seus colaboradores. Os direitos das fotografias pertencem a seus autores. O uso dos trechos das obras literárias aqui utilizadas basea-se na noção de “uso justo” (fair use). Sua divulgação objetiva valorizar o pensamento de seus autores, estimular a leitura, informar seus leitores e não visa lucro.

brasília, junho de 2011 5500k.org


editorial

O primeiro número de IN.CA [Intervenções Críticas] vem à público como uma experimentação, buscando partilhar com seus leitores o espírito crítico e independente que caracteriza os zines. Nascido do desejo de colocar ideias e pessoas em conexão, IN.CA aparece sob a marca do improviso e da colaboração, da produção original e da apropriação, do texto e da imagem, do acerto e do engano. O projeto interventor de IN.CA pode ser entendido como uma insurgência diante do tempo “homogê neo e vazio”; o tempo superficial e monótono do neo-conformismo e dos micro e macro-fascismos que obstrui o fluxo da vida, e diminui a intensidade das relações entre as pessoas. IN.CA tem como objetivo colocar em circulação produções de diferentes modalidades e formas, que proporcionem ao leitor a experiência de uma irrupção, de um deslocamento ou de uma disjunção em relação à ilusão do tempo contínuo. Esperamos que possam apreciar a leitura! E aguardem pelo próximo número•

carlos henrique (CH)


Sumár Sumá SOCIAL AAD OIDEOLOGIA IDEOLOGIA AUTOMÓVEL SOCIAL

André Gorz

página 8

parisienses parisienses Tiago Tôrres

página 30

ro sto e viol ê nci a Carlos Henrique

página 16

Elogio da da Elogio profanação

profanação

Giorgio Agamben

página 36

Corumbiara Corumbiara

e a política da narrativa nacional brasileira

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro página 52

utópico

Um te r r itór io utópico Amandine Goisbault

página 56

TERMÔME

TERMÔM QUE FAZEM A Patrick

págin


rio ário intimidade Novas formas de intimidade

Renata Salecl

página 18

O Arco O Arco do do Triunfo Triunfo Elias Canetti página 46

A origem do mito

Internet da Internet

Armand Mattelart

página 62

ETROS

METROS ADOECER Viveret

na 74

no desencontro no desencontro das flores das flores Juliana Bessa

página 22

Mimetismo imperfeito Mimetismo imperfeito

Daniel Faria

página 48

mas eu o vi o céu euaí,vi céu

Diego Bresani

página 68


SOCIAL AAD OIDEOLOGIA IDEOLOGIA AUTOMÓVEL SOCIAL André Gorz Clássico ensaio de um dos maiores críticos alemães do século 20. Mais de trinta anos depois, o texto continua atual e sinalizando para as consequências do investimento na cultura do automóvel.

Leia: Ned Ludd (org.), A tirania do automóvel em um planeta poluído. Ed. Conrad do Brasil, preço R$ 24,00.

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O que tem de pior nos carros é serem como castelos ou mansões à beira do mar: bens luxuosos inventados para o prazer exclusivo de uma minoria muito rica, os quais em concepção e natureza nunca foram direcionados para o povo. Ao contrário do aspirador de pó, do rádio, ou da bicicleta, que retêm seu valor de uso quando todos possuem um, o carro, como uma mansão à beira do mar, é somente desejável e útil a partir do momento que as massas não têm um. Por isso, tanto em concepção quanto na sua finalidade original o carro é um bem de luxo. E a essência do luxo é a de que ele não pode ser democratizado. Se todos puderem ter o luxo, ninguém obtém as vantagens dele. Do contrário, todos logram, enganam e frustram os demais, e é logrado, enganado e frustrado por sua vez.


Isto é de muitíssimo conhecimento comum no caso das mansões à beira mar. Nenhum político ousou ainda reivindicar que democratizar o direito às férias significasse uma mansão com praia particular para cada família. Todos compreendem que se cada uma entre 13 ou 14 milhões de famílias devessem usar somente 10 metros da costa, tomaria-se 140.000km de praia para que todos tivessem sua parte! Para dar a todos sua parte teria-se que cortar as praias em tiras pequenas – ou espremer tão fortemente as mansões – que seu valor de uso seria nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria. De fato, a democratização do acesso às praias aponta a somente uma solução: a solução coletivista. E esta solução está necessariamente em guerra com o luxo da praia particular, que é um privilégio que uma minoria pequena toma como seu direito às custas de todos.

luxo anti-social? A resposta deve ser procurada nos dois aspectos seguintes da atividade de dirigir:

Agora, por que aquilo que é perfeitamente óbvio no caso das praias não é geralmente visto da mesma forma no caso do transporte? Como a casa de praia, um carro também não ocupa espaço escasso? Não priva os outros que usam as estradas (pedestres, ciclistas, motoristas de ônibus)? Não perde seu valor de uso quando todos usam os seus próprios? No entanto há uma abundância de políticos que insistem que cada família tem o direito ao menos a um carro e que é até encargo do “governo” tornar possível que todos possam estacionar convenientemente, dirijam facilmente na cidade, e possam viajar no feriado ao mesmo tempo que todos outros, indo a 70 mph nas estradas, às estações de férias.

O automóvel é o exemplo paradoxal de um objeto luxuoso que tem sido desvalorizado por sua própria propagação. Mas esta desvalorização prática não foi seguida ainda por uma desvalorização ideológica. O mito do prazer e benefício do carro persiste, embora se o transporte de massa fosse difundido, sua dominação seria golpeada. A persistência deste mito é explicado facilmente. A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias. Uma revolução ideológica (“cultural “) seria necessária para quebrar este círculo. Obviamente não se deve esperar isto da classe dirigente (direita ou esquerda).

A monstruosidade deste absurdo demagógico é imediatamente aparente, no entanto, mesmo a esquerda não desdém de recorrer a ela. Por que o carro é tratado como uma vaca sagrada? Por que, ao contrário de outros bens “privados”, ele não é reconhecido como um

A massificação do automóvel efetua um triunfo absoluto do ideologia burguesa no nível da vida diária. Dá e sustenta em todos a ilusão de que cada indivíduo pode procurar o seu próprio benefício às custas de todos os demais. Leva ao egoísmo cruel e agressivo do motorista que em todos os momentos está figurativamente matando os “outros”, que aparecem meramente como obstáculos físicos à sua velocidade. Este egoísmo competidor e agressivo marca a chegada do comportamento universal burguês, e tem existido desde que dirigir tornou-se lugar comum. (“você nunca terá o socialismo com aquele tipo de pessoas”, um amigo alemão ocidental me disse, triste ao ver o espetáculo do tráfego de Paris).

Permita-nos olhar mais de perto agora estes dois pontos. Quando o carro foi inventado, ele o foi para

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prover poucos dos muito ricos com um pri-vilégio completamente sem precedentes: viajar muito mais rapidamente do que todos os demais. Ninguém até então tinha sonhado com isso. A velocidade de todas as carroças era essencialmente a mesma, fosse você rico ou pobre. As carruagens dos ricos não eram mais velozes do que as carroças dos camponeses, e trens carregavam todos na mesma velocidade (não possuíam velocidades diferentes até eles começarem a competir com o automóvel e o avião). Assim, até a virada do século, a elite não viajava em uma velocidade diferente do povo. O carro a motor iria mudar tudo isto. Pela primeira vez as diferenças de classe foram estendidas à velocidade e aos meios de transporte. Este meio de transporte no início parecia inacessível às massas – ele era muito diferente dos meios de transporte comuns. Não havia nenhuma comparação entre o carro a motor e os outros: o bonde, o trem, a bicicleta, ou a carroça. Seres excepcionais saíam em veículos com auto-propulsão que pesavam pelo menos uma tonelada e cujos órgãos mecânicos extremamente complicados eram tão misteriosos quanto escondidos das vistas. Um aspecto importante do mito do automóvel é que pela primeira vez as pessoas andavam em veículos particulares cujos mecanismos de funcionamento eram completamente desconhecidos deles, e cuja manutenção e alimentação tiveram que con-

“A propagação do carro particular deslocou o transporte de massa e alterou o planejamento da cidade e da habitação de tal maneira que transfere ao carro o exercício de funções que sua própria propagação tornou necessárias.” fiar a especialistas. Aqui está o paradoxo do automóvel: parece conferir aos seus proprietários liberdade ilimitada, permitindo que viajem quando e a onde quiserem em uma velocidade igual ou maior que a do trem. Mas de fato, esta aparência de independência tem por debaixo uma dependência radical. Ao contrário do cavaleiro, do carroceiro, ou do ciclista, o motorista iria depender para suprir combustível, assim como para o menor tipo de reparo, dos negociantes e dos especialistas em motores, lubrificação e ignição, e da possibilidade de troca das peças. Ao contrário de todos os proprietários anteriores de meios de locomoção, o relacionamento do motorista com seu veículo viria a ser aquele do usuário e consumidor – e não do proprietário e do mestre. Este veículo, em outras palavras, obrigaria o proprietário a consumir e usar uma gama de serviços comerciais e produtos industriais que somente poderiam ser fornecidos por um terceiro. A independência aparente do proprietário do automóvel apenas escondia a dependência radical real. Os magnatas do petróleo foram os primeiros a perceber o ganho que poderia ser extraído da distribuição em escala do carro a motor. Se as pessoas pudessem ser induzidas

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a viajar em carros, eles poderiam vender o combustível necessário para movê-los. Pela primeira vez na história, as pessoas tornar-seiam dependentes de uma fonte comercial de energia para sua locomoção. Haveriam tantos clientes para a indústria de petróleo quanto houvessem motoristas – e uma vez que haveriam tantos motoristas quanto houvessem famílias, a população inteira se transformaria em cliente dos comerciantes de petróleo. O sonho de todo capitalista estava a ponto de se realizar. Todos iriam depender para suas necessidades diárias de um produto que uma única indústria possuía em monopólio. Tudo que se deveria fazer era deixar a população dirigir carros. Pouca persuasão seria necessária. Seria suficiente baixar o preço do carro usando a produção em massa e a linha de montagem. As pessoas atropelariam umas as outras para comprá-lo. Correriam sem perceber que estavam sendo conduzidas pelo nariz. O que, de fato, a indústria do automóvel lhes ofereceu? Apenas isto: “de agora em diante, como a nobreza e a burguesia, você também terá o privilégio de dirigir tão rápido quanto qualquer um. Em uma sociedade de carro a motor o privilégio da elite é tornado disponível a você”. As pessoas se apressaram para comprar carros até que, quando a classe trabalhadora começou a os comprar também, os motoristas perceberam que haviam sido enganados. Tinha sido prometido a eles um privilégio de burgueses, tinham entrado em débito para adquiri-lo, e agora viam que qualquer um poderia também obter um. Qual é o gosto de um privilégio se todos puderem o ter? É um jogo de tolo. Pior, ele coloca todos em posição antagônica contra todos. A paralisação geral é criada por um engarrafamento geral. Quando todos reivindicam o direito de dirigir na velocidade privilegiada da burguesia, tudo pára, e a velocidade do tráfego da cidade cai vertiginosamente – em Boston como em Paris, Roma, ou Londres – abaixo daquele da carroça; no horário do rush a velocidade média nas estradas abertas cai abaixo da velocidade de uma bicicleta. Nada ajuda. Todas as soluções foram tentadas. Todas elas terminam piorando as coisas. Não importa se elas aumentam o número

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de vias expressas, túneis, elevados, estradas de 16 pistas e estradas com pedágio na cidade, o resultado é sempre o mesmo. Quanto mais estradas a serviço, mais os carros as obstruem, e o tráfego da cidade torna-se mais paralisantemente congestionado. Enquanto houverem cidades, o problema permanecerá sem solução. Não importa quão larga e rápida uma superhighway seja, a velocidade na qual os veículos podem sair dela para entrar na cidade não pode ser maior do que a velocidade média nas ruas da cidade. Enquanto a velocidade média em Paris é 10 a 20 kmh, dependendo da hora, ninguém poderá sair delas em torno e na capital a mais do que 10 a 20 kmh.

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O mesmo é verdadeiro para todas as cidades. É impossível dirigir a mais do que uma média de 20kmh na embaraçada rede de ruas, de avenidas, e de bulevares que caracterizam as cidades tradicionais. A introdução de veículos mais rápidos inevitavelmente atrapalha o tráfego da cidade, causando gargalos – e por fim uma paralisação completa. Se o carro deve prevalecer, há ainda uma solução: livre-se das cidades. Isto é, enfileire-os por centenas de milhas ao longo de enormes estradas, fazendo delas subúrbios de estradas. Isto é o que está sendo feito nos Estados Unidos. Ivan Illich mostra a conseqüência deste modo: “O americano típico devota mais de 1500 horas no ano (que são 30 horas por semana, ou 4 horas por dia, incluindo domingos) a seu carro. Isto inclui o tempo gasto atrás do volante, andando e parado, as horas de trabalho para pagar por ele e para pagar pelo combustível, pneus, pedágios, seguro, bilhetes e taxas. Deste modo ele toma deste americano 1500 horas para andar 6000 milhas (no curso de um ano). Três milhas e meia custam-lhe uma hora. Nos países que não têm uma indústria do transporte, as pessoas viajam exatamente nesta velocidade a pé, com a vantagem que podem ir onde quiserem e de

não estarem restritas às estradas de asfalto”. É verdade, Illich aponta, que em países nãoindustrializados a viagem usa somente 3 a 8% do tempo livre da pessoa (que é aproximadamente duas a seis horas na semana). Assim uma pessoa a pé anda tantas milhas em uma hora gasta em viagem quanto uma pessoa em um carro, mas devota 5 a 10 vezes menos tempo na viagem. Moral: Quanto mais difundidos veículos rápidos estão dentro de uma sociedade, mais tempo – a partir de um determinado ponto – as pessoas gastarão e perderão viajando. Isto é um fato matemático. A razão? Nós acabamos de vê-la: As cidades foram divididas em infinitos subúrbios de estrada, porque esta era a única maneira de evitar o congestionamento em centros residenciais. Mas o lado oculto desta solução é óbvio: finalmente as pessoas não podem se deslocar convenientemente porque estão distantes de tudo. Para construir espaço para os carros, as distâncias foram aumentadas. As pessoas vivem longe de seu trabalho, longe da escola, longe do supermercado – que requer então um segundo carro para que as compras pos-

“Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro. Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar tão lentamente quanto o mais lento.”


sam ser feitas e para as crianças irem à escola. Passeios? Fora da questão. Amigos? Há os vizinhos… e só. Na análise final, o carro desperdiça mais tempo do que economiza e cria mais distâncias do que supera. Naturalmente, você pode ir ao trabalho a 60 mph, mas isto porque você vive a 30 milhas de seu trabalho e está disposto a dar meia hora às últimas 6 milhas. Somando tudo: “uma boa parte do trabalho diário é gasto para pagar pela viagem necessária para ir ao trabalho”. (Ivan Illich). Talvez você esteja dizendo, “mas ao menos desta maneira você pode escapar do inferno da cidade após o fim do dia de trabalho”. Lá nós estamos, agora nós sabemos: “a cidade”, a grande cidade que por gerações foi considerada uma maravilha, o único lugar que vale a pena viver, é considerada agora um “inferno”. Todos querem escapar dela para viver no campo. Por que esta reversão? Por uma única razão. O carro fez a cidade grande inabitável. A fez fedorenta, barulhenta, sufocante, empoeirada, congestionada, tão congestionada que ninguém quer sair mais de tardinha. Assim, uma vez que os carros mataram a cidade, nós necessitamos carros mais rápidos para fugir em superestradas para os subúrbios que estão ainda mais distantes. Que argumento circular impecável: dê-nos mais carros de modo que nós possamos escapar da destruição causada pelos carros. De um artigo luxuoso e uma marca de privilégio, o carro transformou-se assim numa necessidade vital. Você tem que ter um para escapar do inferno urbano dos carros. A indústria capitalista ganhou assim o jogo: o supérfluo tornou-se necessário. Não há mais a necessidade de persuadir as pessoas de quererem um carro; sua necessidade é um fato da vida. É verdadeiro que alguém possa ter suas dúvidas ao prestar atenção à fuga motorizada

ao longo das estradas do êxodo. Entre 8 e 9:30 da manhã., entre 5:30 e 7 da tarde, e em fins de semana por cinco ou seis horas as rotas de fuga se prolongam nas procissões de parachoque-à-para-choque que vão (no máximo) à velocidade de um ciclista e em uma nuvem densa de emanações da gasolina. O que sobra das vantagens do carro? O que é deixado quando, inevitavelmente, a velocidade superior nas estradas é limitada exatamente pela velocidade do carro mais lento? Após ter matado a cidade, o carro está matando o carro. Prometendo a todos poderem andar mais rapidamente, a indústria do automóvel termina com o resultado previsível de que todos tem que andar tão lentamente quanto o mais lento, em uma velocidade determinada pelas leis simples da dinâmica dos fluidos. Pior: sendo inventado para permitir que seu proprietário vá a onde deseja, na velocidade e tempo que deseja, o carro transforma-se, de todos os veículos, no mais servil, perigoso, não dependente e incômodo. Mesmo se você deixa uma extravagante quantidade de tempo, você nunca sabe quando os gargalos o deixarão chegar lá. Você está limitado à estrada tão inexoravelmente quanto o trem a seus trilhos. Não mais do que o viajante de trem, pode você parar em um impulso, e como o trem você deve ir em uma velocidade decidida por outra pessoa. Concluindo, o carro não tem nenhuma das vantagens do trem e possui todas as suas desvantagens, mais algumas próprias: vibração, espaço apertado, o perigo dos acidentes, o esforço necessário para dirigi-lo. No entanto, você pode dizer, as pessoas não tomam trem. Claro! Como poderiam? Você já tentou alguma vez ir de Boston a New York de trem? Ou de Ivry a Treport? Ou de Garches a Fountainebleau? Ou de Colombes a l’Isle-Adam? Você tentou em um sábado ou domingo

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de verão? Bem, então tente e boa sorte! Você observará que o capitalismo do automóvel pensou em tudo. Tão logo o carro matou o carro, ele fez com que as alternativas desaparecessem, tornando compulsório, deste modo, o carro. Assim, primeiramente o estado capitalista permitiu que as conexões de trilho entre as cidades e o campo circunvizinho se deteriorassem, e então acabou com elas. As únicas que foram poupadas foram as conexões inter-municipais de alta velocidade que competem com as linhas aéreas para uma clientela de burgueses. Há um progresso para você! A verdade é que ninguém tem realmente qualquer escolha. Você não é livre para ter um carro ou não porque o mundo dos bairros é projetado em função do carro – e, cada vez mais, é assim o mundo da cidade. É por isso que a solução revolucionária ideal, que é afastar o carro em proveito da bicicleta, do ônibus, e do bonde, não é sequer mais

Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável. Terão que poder dispensar o transporte por se sentirem em casa nos seus bairros, nas suas comunidades, nas suas cidades de tamanho humano, e por sentirem prazer em andar do trabalho para casa a pé, ou se preciso for, de bicicleta. Nenhum meio de transporte e fuga veloz jamais compensará a vexação de viver em uma cidade inabitável na qual ninguém se sente em casa, ou a irritação de somente ir à cidade para trabalhar ou, por outro lado, de estar sozinho e dormir. “As pessoas”, escreve Illich, “quebrarão as correntes do domínio do transporte quando voltarem a amar, como se fosse seu próprio território, seu próprio ritmo particular, e temer ficar demasiado distante dele”. Mas a fim de amar “o seu território” ele deve antes de mais

“Então estamos fritos? Não, mas a alternativa ao carro terá que ser abrangente. Para que as pessoas possam abandonar seus carros, não será suficiente lhes oferecer um transporte de massa mais confortável.” aplicável nas cidades grandes como Los Angeles, Detroit, Houston, Trappes, ou Bruxelas, que são construídas por e para o automóvel. Estas cidades estilhaçadas são formadas por alinhadas ruas vazias possuindo desenvolvimentos idênticos; e sua paisagem urbana (um deserto) diz, “estas ruas são feitas para se dirigir tão rapidamente quanto possível do trabalho para casa e vice-versa. Você anda através daqui, você não vive aqui. No fim do dia de trabalho todos devem permanecer em casa, e qualquer um encontrado na rua depois do anoitecer deve ser considerado suspeito de ‘fazer o mal’”. Em algumas cidades americanas o ato de dar uma volta nas ruas à noite é vista como suspeita de crime.

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nada ser habitável, e não congestionável. O bairro ou a comunidade devem novamente transformar-se em um microcosmo esculpido por e para todas as atividades humanas, onde as pessoas possam trabalhar, viver, relaxar, aprender, se comunicar, e discutir sobre ela, e no qual elas controlem conjuntamente como o lugar de sua vida em comum. Quando alguém lhe perguntou como as pessoas gastariam seu tempo após a revolução, quando o desperdício capitalista tivesse sido eliminado, Marcuse respondeu, “nós traremos à baixo as grandes cidades e construiremos novas. Isso manter-nos-á ocupados por enquanto”. Estas novas cidades poderiam ser federações


de comunidades (ou de bairros) cercadas por cinturões verdes nos quais cidadãos – e em especial crianças em idade escolar – passariam diversas horas da semana cultivando os alimentos frescos de que necessitam. Para se locomoverem todos os dias poderiam usar todos os tipos do transporte adaptados a uma cidade de tamanho médio: bicicletas, bondes ou bondes elétricos municipais, táxis elétricos sem motoristas. Para longas viagens no país, assim como para convidados, uma quantidade de automóveis comunais estaria disponível em garagens do bairro. O carro não seria mais uma necessidade. Tudo teria mudado: o mundo, a vida, as pessoas. E isto não virá por si só. Entretanto, o que deve ser feito para se chegar lá? Sobretudo, nunca faça do transporte um assunto em si mesmo. Conecte-o sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho, e à maneira que isto compartimentaliza as muitas dimensões da vida. Um lugar para o trabalho, outro para “viver”, um terceiro para as compras, um quarto para aprender, um quinto para entretenimento. A maneira que nosso espaço é arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a divisão de trabalho na fábrica. Corta uma pessoa em fatias, corta nosso tempo, nossa vida, em fatias separadas de modo que em cada uma você seja um consumidor passivo a mercê dos comerciantes, de modo que nunca lhe ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das necessidades, e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: uma vida unificada, sustentada pelo tecido social da comunidade. Le Sauvage, Setembro-Outubro de 1973•

André Gorz: pensador austríaco, nascido em 1923, foi uma das principais expressões da esquerda a partir dos anos 60, escrevendo sobre a questão do trabalho e do meio-ambiente. Em 2006 publicou Carta a D., dedicado à sua esposa, Dorine, recém-diagnosticada de uma doença degenerativa. Os dois se suicidaram em 2007.

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r osto

e violência

Carlos Henrique Há certos tipos de violência que necessitam de uma metamorfose. Isto é, o agente da violência precisa tornar-se outro; ele precisa monstrificar-se, tornarse um humano não-humano, assim como um zumbi é morto e vivo ao mesmo tempo. Muitas vezes, essa monstrificação é corpoficada. O corpo transformar-se. E nenhuma parte do corpo de um monstro provoca tanto terror quanto o rosto. Reconhecer num corpo humano um rosto não-humano é um dos temores mais secretamente cultivados. Encarar um rosto desumano significa experienciar mais que o medo, o próprio terror. Significa não conseguir entender o motivo e a causa do próprio medo. Essa é a fonte, em todas as culturas, do fascínio e do temor provocados pelas máscaras. Ao prender uma estudante numa manifestação por melhor transporte público, ocorrida na Rodoviária de Brasília, em junho de 2010, o rosto do policial transforma-se numa face monstruosa, enquanto violenta e aterrorizava sua vítima, e aos que o cercavam•

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Carlos Henrique: com formação em história e ciências sociais, recentemente vem se dedicando ao estudo da prática e teoria da fotografia.

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intimidade Novas formas de intimidade

Renata Salecl

Leia: Renata Salecl, Sobre a felicidade. Ed. Alameda, preço 22,00.

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Alguns psicanalistas concluem que o “Discurso do capitalismo” não deixa espaço para o amor cortês. O que temos em seu lugar é o avanço da ilusão nascisística, levando à sexualidade que traria alguma jouissance1 perdida. Jean-Pierre Lebrun2 conclui que o sujeito de hoje tem problemas para se situar em relação à diferença sexual. Identificação sexual está ligada à maneira como o sujeito se coloca após passar pelo processo de castração. Com as mudanças no campo do complexo de castração3 parece haver um retorno à androginia e à bissexualidade. No entanto, o problema principal é que no “Discurso do Capitalismo”a sexualidade passa a ser percebida de um modo narcisista. “A partir do momento em que a sexualidade se torna uma questão de rivalidade competitiva e realização, não se refere mais à escolha de um objeto estável. É principalmente uma questão de sedução”4.


Se não é possível concordar com as conclusões pessimistas de que a psicose parece estar presente de maneira opressora no atual capitalismo, é necessário admitir que algo mudou na relação entre o sujeito e si mesmo, o sujeito e a sociedade, e que há uma mudança na natureza dos limites, levando à jouissance excessiva.

satisfação que envolve o insucesso frente ao seu objeto de desejo, a solução não é tentar livrar-se do limite para finalmente se aproximar do objeto de desejo, mas ser capaz, de alguma maneira, de se “afeiçoar” ao próprio limite e perceber o objeto de desejo como digno do nosso esforço, exatamente porque é inacessível.

Vamos analisar como a falta de limites afeta as relações pessoais hoje. Uma sociedade determinada pela idéia de escolha nos assuntos ligados ao amor e à sexualidade, de início parece libertadora. O que é melhor do que vislumbrar a possibilidade de estar livre das proibições sociais no que toca nosso prazer sexual? Como parece maravilhoso finalmente parar de se aborrecer sobre o que os pais ou toda a sociedade determinaram como uma relação sexual normal; e como parece ser libertário mudar nossa orientação sexual ou até mesmo a aparência física da diferença sexual. É mais do que óbvio que tal “liberdade” não traz satisfação; ao contrário termina impondo limites a ela.

Observando a fala da mídia sobre a sexualidade hoje, não é difícil observar que há poucas coisas que são proibidas (com exceção da pedofilia, incesto e abuso sexual), enquanto há uma opressora pressão pela “busca do prazer”. A transgressão sexual é marcada como a última forma de prazer possível. A idéia é a de que se alguém trabalhar nela, aprender seus truques e praticá-la sem descanso, não há limites para satisfação que uma pessoa pode adquirir. A revista Cosmopolitan encoraja aqueles que não dominaram ainda as novas técnicas do prazer em fim a se matricularem em escolas do sexo. Simultaneamente a esse marketing do prazer, é possível encontrar na mídia popular a mesma impossibilidade do prazer. John Gray, o famoso autor de Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus, agora escreve sobre “Por que minha avó parece fazer mais sexo do que eu?”5. Sua res-posta, claro, outra vez se transforma em conselho: seja mais relaxado, siga estes ou aqueles passos para despertar o desejo, etc.

Analisando os desejos humanos, os psicanalistas têm, desde o início, ligado o desejo à proibição. Para o sujeito desenvolver o desejo, alguma coisa tem que estar fora de seus limites. Quando o sujeito luta contra a presente in-

“Uma sociedade determinada pela idéia de escolha nos assuntos ligados ao amor e à sexualidade, de início parece libertadora. O que é melhor do que vislumbrar a possibilidade de estar livre das proibições sociais no que toca nosso prazer sexual?”

Quando observamos o modo como lidamos com a sexualidade, nessa suposta ausência de limites da sociedade, é fácil ver que os limites na verdade não desapareceram ou que as proibições ainda existem, mas o lócus de onde eles surgem foi alterado. Se no passado as proibições eram transmitidas com a ajuda de ritos sociais (como as iniciações sociais na sociedade pré-moderna, a atividade do “Nome do Pai” na tradicional sociedade patriarcal), hoje o sujeito determina seus próprios limites. Podemos notar uma particular forma de proibição na masoquismo. A psicanálise toma o masoquismo como uma forma de perversão. É claro, o termo perversão não é usado no sentido pejorativo. Para a psicanálise, o pervertido é o sujeito para quem a castração não foi inteiramente completada, e

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essa é a razão pela qual o sujeito promove uma busca sem fim pela lei que pode completar a castração. Perversão não é estar além da lei, mas a tentativa de alcançá-la. Um masoquista é alguém que procura especialmente pela lei e que quer ser punido. Assim, ele não procura um sádico para completar sua tarefa. O termo sadomasoquista é uma descrição errada de dois tipos diferentes de prazer com a tortura. Como Gilles Deleuze disse6, um masoquista e um sádico não formam um casal. Um Sádico toma a si mesmo como executor de um desejo maior, um ideal. Ele toma a si mesmo como um mero objeto pelo qual esse ideal goza. E o sádico tortura as vítimas porque ele está executando essa vontade maior. O masoquista, ao contrário, procura pelos torturadores que o próprio masoquista educará e instruirá em como surrá-lo, etc. Na situação sadomasoquista, a vítima fala por meio do torturador: aqui, portanto, não é torturador que inventa formas de castigo; o inventor é a própria vítima. O torturador é geralmente uma mulher que faz o papel da mãe fria e severa. É essencial para o masoquista estabelecer um contrato com o torturador, que descrevem em detalhes a condição da tortura. O masoquista é assim não apenas amarrado pelas correntes, mas pela força do contrato no qual investe no torturador a força simbólica da lei. O torturador age como uma mãe cruel que humilha a figura paterna, que é encarnada pela própria vítima. Assim, o masoquista impõe a lei em sua mãe – o objeto do prazer incestuoso –, e ao fazer isso exclui o pai simbólico. Paradoxalmente, o pai excluído retorna no lugar do próprio masoquista, porque o masoquista toma o papel do pai fraco e humilhado que precisa ser castigado. Para o masoquista, a castração não foi completada, e isso significa estar a lei simbólica parcialmente em ação. Esse é o motivo pelo qual o masoquista, em seu ritual de tortura, faz a caricatura da castração e tenta completar a lei por meio de seu contrato com a amante. O su-

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“O termo sadomasoquista é uma descrição errada de dois tipos diferentes de prazer com a tortura.” jeito (isto é, histérico ou obsessivo) para quem a castração foi eficiente está sempre insatisfeito com os meios pelos quais tenta preencher essa falta: o sujeito se queixa da lei que supostamente impede seu prazer; no entanto, o sujeito descobre um prazer especial nessa mesma insatisfação. Mas o masoquista encontra o prazer no castigo imposto pela lei que ele mesmo estabeleceu. Como falta a ele a proibição simbólica, o masoquista se torna o carrasco de si mesmo7. Quando sujeito lida com a castração, ele lida com a insatisfação. Hoje, o que observamos é o crescimento da frustração, e não da escala da insatisfação. A frustração está, de um modo especial, ligada ao problema do sujeito com a jouissance. Jean-Pierre Lebrun pensa que “quando o desejo pela jouissance domina o campo social, a irmandade solidária do proletariado é trocada pela competição e pela rivalidade competitiva. De onde emerge a exacerbação do ódio social”8. No racismo contemporâneo, por exemplo, o sujeito pressupõe que o Outro tenha acesso à jouissance plena, que provoca frustração no sujeito. Nas relações pessoais, o problema é que o sujeito tenta obter algum prazer a mais do parceiro (para os homens, sexual; para as mulheres, narcisista) e depois que essa tentativa perde importância e se torna um dos objetos que podem facilmente ser rejeitados. Para o sujeito que não tem identificações estáveis, mas escolhas flutuantes de objetos, instabilidade em investimentos afetivos e rapidamente passa ao ato, uma maneira de tentar encontrar a jouissance perdida se dá com a ajuda de substâncias que viciam. Assim, o aumento no comportamento viciante hoje.


Mas estamos prevendo um futuro desolador? No lugar de enfatizar a falta de proibição na sociedade hoje, eu ressaltaria que a natureza de proibição mudou. De um lado, o sujeito cada vez mais procura por novas formas de prazer e assim está sob a constante pressão do consumo (que tristemente, muitas vezes o leva ao consumo de si mesmo), mas por outro, o sujeito procura desesperadamente por novas autoridades uma visita a qualquer livraria ou a simples busca na internet nos mostra que a assim chamada indústria de auto-ajuda é um dos negócios em franca e rápida expansão. Seria apressado afirmar que vivemos em uma sociedade onde o Grande Outro não existe mais ou onde os sujeitos estão mais inclinados à psicose. A dependência da cultura de conselhos mostra estarem os sujeitos precisando recorrer ainda ao Grande Outro. Embora Benjamin tenha previsto que as preocupações superconsumiriam as pessoas no capitalismo, ele também fez uma enigmática observação: “O conceito de progresso deve ser baseado na idéia de catástrofe. Que as coisas sejam status quo é catastrófico. Não é a possibilidade de sempre presente, mas o que está dado em cada caso. A idéia de Strinberg: o inferno não é algo que nos espera, mas a vida aqui e agora.”9 Talvez a sombria previsão de que estamos entrando em uma sociedade dominada pela psicose expresse esse mesmo prazer com as catástrofes. É a maior catástrofe na sociedade de hoje o fato de a natureza de nossas preocupações não ter mudado muito? De toda maneira, sentimos que superamos nossos predecessores em nosso sofrimento•

Notas: 1. Em francês no original. Em português é usual traduzir como “gozo”. (nota do tradutor). 2. Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite: Essai pour une clinique psychabalytiqye du social, Tolouse, Eres, 1997. 3. Em seu seminário sobre a ansiedade, Lacan colocou a castração como o último pré-requisito para a sexualidade masculina. Homens lidam com a castração ao supor que foi “papai quem tomou algo deles”. Se o homem pensar dessa maneira, Lacan diz, tudo terminará bem para o sujeito – isto é, ele estará apto a encontrar uma certa satisfação na sua vida sexual. E, não importa o que aconteça de errado a culpa é do papai. Ver Jacques Lacan, “Angoisse”(2004). Se a castração não foi efetiva na vida de um homem, isto é, se não houver um “Não”do pai, então, Lacan diz, o homem percebe a si mesmo como um pecador indiscutível e assim sua sexualidade se torna extremamente proibitiva para ele. Como se a morte de Deus não trouxesse tal liberação, mas a proibição extrema; quando a castração não foi completa para o sujeito, sua sexualidade se torna também proibida. 4. Jean-Pierre Lebrun, idem, nota 17, p. 251 5. O tema foi discutido no website de John Gray: http://marsvenus.com (última visita em fevereiro de 2005). 6. Gilles Deleuze, Masochism: Coldness and cruelty. New York, Zone Books, 1991. 7. Mais sobre o assunto em: Renata Salecl, (Per)versions of Love and hate, Londres, Verso, 1998. 8. Jean-Pierre Lebrun, idem, nota 17, p. 250. 9. Walter Benjamin, “Central Park”, em W. Benjamin, Selected writings vol. 4: 1938-1940, Howard Eiland, e Michael W. Jennings (editores), Cambridge, Belknap Press, 2003, p. 185.

[Tradução: Marcelo Rezende]

Renata Salecl: socióloga e filósofa eslovena, é professora na New School for Social Research, em Nova York, e integra grupo de Slavoj Zizek.

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no desencontro no desencontro das flores das flores Juliana Bessa

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na natureza tudo - há vida, cor e viço e também seus contrários. um fim. um par de fotos tiradas no espaço de tempo de uma manhã, na largura e na intimidade do refúgio infinito da minha própria casa. e falam de amor, ou do seu contrário, ou parceiro - a dor. uma pequena história que parte de trocas de mensagens entre eu e alguém importante pra mim. é preciso dizer que um momento delicado nos envolvia. e essa pessoa havia me escrito na noite anterior e me pedia uma câmera de volta, pois tinha intenção de usá-la em breve. e como em um rito de despedida intermediado pela câmera, tirei algumas fotografias nela antes de devolvê-la.

“talvez houvesse um desejo...” talvez houvesse um desejo de falar-lhe algo. era como se essas fotos pudessem revelar sentidos e sentimentos ainda ocultos. ou, como se dessa forma fosse possível capturar imagens-sensíveis (a mim mesma, e por consequência sensíveis a um ‘nós’).

mas ao descer para o jardim, de tudo que era natureza e matéria para refúgio e reflexão, havia uma imagem que se adiantava: eu cogitava buscar a brandura das flores. imagens essas que pareciam querer expurgar culpas, curar dores (com remédios). curiosamente, não havia sequer um botão. no jardim, a safra de flores era transição e o que restara era paisagem. sustentação de galhos com espinhos, em caminhos e desvios, entre terra, pedras e folhas•

nota: logo depois tive o impulso de intitular as imagens, mas o fazia como se ainda tentasse dar uma direção específica a elas, que moralmente me servisse. eram todas tentativas inúteis e carregadas. não era preciso dizer mais nada. (e essas imagens eu havia tirado para mim.)

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Juliana Bessa: tem formação em relações internacionais e ciências sociais. É uma entusiasta da latinoidentidade, da dança contemporânea, da intervenção, da performance e da fotografia como processo.

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parisienses parisienses

Tiago Tôrres

Tiago Tôrres é um artista migrante. Entre Recife e Paris, ou em suas frequentes viagens à Amazônia, ele busca o elemento humano, os rostos amigos ou amistosos. Em Parisienses, ele apresenta a paisagem humana de seu novo lar. A cidade, em sua fotografia, é o cenário onde se passa a trama que realmente importa; ao contrário do clichê dominante da relação dos estrangeiros com Paris, e seu deslumbre com a materialidade da estrutura urbana, Tiago convida o expectador a uma viagem entre subejtividades• (CH)

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Tiago Torres: é formado em Antroprologia, co-criador do coletivo de produção cine 2006, trabalha com o Vídeo nas Aldeias, dando oficinas em aldeias indígenas, edit Divino Tserewahú, “Mulheres Xavante semnome” que integra o DVD Xavante da Co

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ematográfica Zumbayllu, e diretor do documentário “No Palácio da Rainha”. Desde tando e finalizando filmes. Em 2009 finalizou seu primeiro filme em parceria com oleção Cineastas Indígenas.

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Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa “profanar”. Sagradas ou religiosas eram as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e ao comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava exclusivamente aos deuses celestes (nesse caso eram denominadas propriamente “sagradas”) ou infernais (nesse caso eram simplesmente chamadas “religiosas”). E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens. “Profano” – podia escrever o grande jurista Trebácio – “em sentido próprio denomina-se aquilo que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens”. E “puro” era o lugar que havia sido desvinculado da sua destinação aos deuses dos mortos e já não era “nem sagrado, nem santo, nem religioso, libertado de todos os nomes desse gênero” (D. 11,7,2). Puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens. Mas o uso aqui não aparece como algo natural; aliás, só se tem acesso ao mesmo através de uma profanação. Entre “usar” e “profanar” parece haver uma relação especial, que importa esclarecer.

Elogio da da Elogio profanação

profanação

Giorgio Agamben

Leia: Giorgio Agamben, Profanações. Boitempo Editorial, preço 26,00.

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Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, mas toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso. O dispositivo que realiza e regula a separação é o sacrifício: através de uma série de rituais minuciosos, diferenciados segundo a variedade das culturas, e que Hubert e Mauss inventariaram pacientemente, ele estabelece, em todo caso, a passagem de algo do profano para o sagrado, da esfera humana para a divina. É essencial o corte que separa as duas esferas, o limiar que a vítima deve atravessar, não importando se num sentido ou noutro. O que foi separado ritualmente pode ser restituído, mediante o rito, à esfera profana. Uma das formas mais simples de profanação ocorre através de contato (contagione) no mesmo sacrifício que realiza e regula a passagem da vítima da esfera humana para a divina. Uma parte dela (as entranhas, exta: o fígado, o coração, a vesícula biliar, os pul-


mões) está reservada aos deuses, enquanto o restante pode ser consumido pelos homens. Basta que os participantes do rito toquem essas carnes para que se tornem profanas e possam ser simplesmente comidas. Há um contágio profano, um tocar que desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado. O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o “reler”) perante as formas – e as fórmulas – que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos. Por isso, à religião não se opõem a incredulidade e a indiferença com relação ao divino, mas a “negligência”, uma atitude livre e “distraída” – ou seja, desvinculada da religio das normas – diante das coisas e do seu uso, diante das formas da separação e do seu significado. Profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso particular. A passagem do sagrado ao profano pode acontecer também através de um uso (ou melhor, de um re-uso) totalmente incongruente do sagrado. Trata-se do jogo. Sabe-se que as esferas do sagrado e do jogo estão estreitamente vinculadas. A maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à esfera religiosa em sentido amplo. Brincar de roda era originalmente um rito matrimonial; jogar com bola reproduz a luta dos deuses pela posse do sol; os jogos de azar derivam de práticas oraculares; o pião e o jogo de xadrez eram instrumentos de adivinhação. Ao analisar a relação entre jogo e rito, Émile Ben-

veniste mostrou que o jogo não só provém da esfera do sagrado, mas que, de algum modo, representa a sua inversão. A potência do ato sagrado – escreve ele – reside na conjunção do mito que narra a história com o rito que a reproduz e a põe em cena. O jogo quebra essa unidade: como ludus, ou jogo de ação, faz desaparecer o mito e conserva o rito; como jocus, ou jogo de palavras, ele cancela o rito e deixa sobreviver o mito. “Se o sagrado pode ser definido através da unidade consubstancial entre o mito e o rito, poderíamos dizer que se tem jogo quando apenas metade da operação sagrada é realizada, traduzindo só o mito em palavras e só o rito em ações”. Isso significa que o jogo libera e desvia a humanidade da esfera do sagrado, mas sem a abolir simplesmente. O uso a que o sagrado é devolvido é um uso especial, que não coincide com o consumo utilitarista. Assim, a “profanação” do jogo não tem a ver apenas com a esfera religiosa. As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes cai nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias. Um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisamente em brinquedos. É comum, tanto nesses casos como na profanação do sagrado, a passagem de uma religio, que já é percebida como falsa ou opressora, para a negligência como vera religio. E essa não significa descuido (nenhuma atenção resiste ao confronto com a da criança que brinca), mas uma nova dimensão do uso que crianças e filósofos conferem à humanidade. Trata-se de um uso cujo tipo Benjamin deveria ter em mente quando escreve, em O novo advogado, que o direito não mais aplicado, mas apenas estudado, é a porta da justiça. Da mesma forma que a religio não mais observada, mas jogada, abre a porta para o uso, assim também as potências da economia, do direito e da política, desati-

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vadas em jogo, tornam-se a porta de uma nova felicidade. O jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar. Que o homem moderno já não sabe jogar fica provado precisamente pela multiplicação vertiginosa de novos e velhos jogos. No jogo, nas danças e nas festas, ele procura, de maneira desesperada e obstinada, precisamente o contrário do que ali poderia encontrar: a possibilidade de voltar à festa perdida, um retorno ao sagrado e aos seus ritos, mesmo que fosse na forma das insossas cerimônias da nova religião espetacular ou de uma aula de tango em um salão do interior. Nesse sentido, os jogos televisivos de massa fazem parte de uma nova liturgia, e secularizam uma intenção inconscientemente religiosa. Fazer que o jogo volte à sua vocação puramente profana é uma tarefa política. É preciso, nesse sentido, fazer uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção, que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto o seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura e acaba restituído ao uso. Ambas as operações são políticas, mas a primeira tem a ver com o exercício do poder, o que é assegurado remetendo-o a um modelo sagrado; a segunda desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado. Os filólogos não cansam de ficar surpreendidos com o dúplice e contraditório significado que o verbo profanare parece ter em latim: por um lado, tornar profano, por outro – em acep-

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ção atestada só em poucos casos – sacrificar. Trata-se de uma ambigüidade que parece inerente ao vocabulário do sagrado como tal: o adjetivo sacer, com um contra-senso que Freud já havia percebido, significaria tanto “augusto, consagrado aos deuses”, quanto “maldito, excluído da comunidade”. A ambigüidade, que aqui está em jogo, não se deve apenas a um equívoco, mas é, por assim dizer, constitutiva da operação profanatória (ou daquela, inversa, da consagração). Enquanto se referem a um mesmo objeto que deve passar do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, tais operações devem prestar contas, cada vez, a algo parecido com um resíduo de profanidade em toda coisa consagrada e a uma sobra de sacralidade presente em todo objeto profanado. Veja-se o termo sacer. Ele designa aquilo que, através do ato solene da sacratio ou da devotio (com que o comandante consagra a sua vida aos deuses do inferno para assegurar a vitória), foi entregue aos deuses, pertence exclusivamente a eles. Contudo, na expressão homo sacer, o adjetivo parece designar um indivíduo que, tendo sido excluído da comunidade, pode ser morto impunemente, mas não pode ser sacrificado aos deuses. O que aconteceu de fato nesse caso? Que um homem sagrado, ou seja, pertencente aos deuses, sobreviveu ao rito que o separou dos homens e continua levando uma existência aparentemente profana entre eles. No mundo profano, é inerente ao seu corpo um resíduo irredutível de sacralidade, que o subtrai ao comércio normal com seus semelhantes e o expõe à possibilidade da morte violenta, que o devolve aos deuses aos quais realmente pertence; considerado, porém, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e é excluído do culto, pois sua vida já é propriedade dos deuses e, mesmo assim, enquanto sobrevive, por assim dizer, a si mesma, ela introduz um resto incongruente de profanidade no âmbito do sagrado. Sagrado e profano representam,


pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois pólos, no qual um significante flutuante transita de um âmbito para outro sem deixar de referir-se ao mesmo objeto. Mas é precisamente desse modo que a máquina pode assegurar a partilha do uso entre os humanos e os divinos e pode devolver eventualmente aos homens o que havia sido consagrado aos deuses. Daí nasce a promiscuidade entre as duas operações no sacrifício romano, na qual uma parte da própria vítima consagrada acaba profanada por contágio e consumida pelos homens, enquanto outra é entregue aos deuses. Nessa perspectiva, tornam-se talvez mais compreensíveis o cuidado obsessivo e a implacável seriedade de que, na religião cristã, deveriam dar mostras, teólogos, pontífices e imperadores, a fim de garantirem, na medida do possível, a coerência e a inteligibilidade da noção de transubstanciação no sacrifício da missa, e das noções de encarnação e omousia no dogma trinitário. Ali estava em jogo nada menos que a sobrevivência de um sistema religioso que havia envolvido o próprio Deus como vítima do sacrifício e, desse modo, havia introduzido nele a separação que, no paganismo, tinha a ver apenas com as coisas humanas. Tratava-se, portanto, de resistir, através da contemporânea presença de duas naturezas numa única pessoa ou numa só vítima, à confusão entre divino e humano, que ameaçava paralisar a máquina sacrifical do cristianismo. A doutrina da encarnação garantia que a natureza divina e a humana estivessem presentes sem ambigüidade na mesma pessoa, assim como a transubstanciação garantia que as espécies do pão e do vinho se transformassem, sem resíduos, no corpo de Cristo. Acontece assim que, no cristianismo, com a entrada de Deus como vítima do sacrifício e com a forte presença de tendências messiânicas que colocavam em crise a distinção entre o sagrado e o profano, a máquina religiosa parece alcançar um ponto limítrofe

ou uma zona de indecidibilidade, em que a esfera divina está sempre prestes a colapsar na esfera humana, e o homem já transpassa sempre para o divino. O capitalismo como religião é o título de um dos mais profundos fragmentos póstumos de Benjamin. Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas, como em Weber, uma secularização da fé protestante, mas ele próprio é, essencialmente, um fenômeno religioso, que se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo. Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por três características: 1. É uma religião cultual, talvez a mais extrema e absoluta que jamais tenha existido. Tudo nela tem significado unicamente com referência ao cumprimento de um culto, e não com respeito a um dogma ou a uma idéia. 2. Esse culto é permanente; é “a celebração de um culto sans trêve et sans merci”. Nesse caso, não é possível distinguir entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e ininterrupto dia de festa, em que o trabalho coincide com a celebração do culto. 3. O culto capitalista não está voltado para a redenção ou para a expiação de uma culpa, mas para a própria culpa. “O capitalismo é talvez o único caso de um culto não expiador, mas culpabilizante... Uma monstruosa consciência culpável que não conhece redenção transforma-se em culto, não para expiar com ele a sua culpa, mas para a tornar universal...e para, ao final, envolver o próprio Deus na culpa... Deus não está morto, mas foi incorporado no destino do homem”. Precisamente porque não tende para a redenção, mas, com todas as suas forças, para a culpa, não para a esperança, mas para o desespero, o capitalismo como religião não tem em vista a transformação do mundo, mas a destruição do mesmo. E o seu domínio é em nosso tempo tão total que também os três grandes profetas da modernidade (Nietzsche, Marx e Freud) conspiram com ele, segundo

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Benjamin, sendo, de algum modo, solidários com a religião do desespero. “Esta passagem do planeta homem, através da casa do desespero, para a absoluta solidão do seu percurso é o ethos que define Nietzsche. Este homem é o Super-homem, ou seja, o primeiro homem que começa conscientemente a realizar a religião capitalista”. Mas também a teoria freudiana pertence ao sacerdócio do culto capitalista: “o removido, a representação pecaminosa... é o capital, sobre o qual o inferno do inconsciente paga os juros”. E em Marx, o capitalismo, “com os juros simples e compostos, que são função da culpa... transforma-se imediatamente em socialismo”. Procuremos continuar as reflexões de Benjamin na perspectiva que aqui nos interessa. Poderíamos dizer então que o capitalismo, levando ao extremo uma tendência já presente no cristianismo, generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião. Onde o sacrifício marcava a passagem do profano ao sagrado e do sagrado ao profano, está agora um único, multiforme e incessante processo de separação, que investe toda coisa, todo lugar, toda atividade humana para a dividir por si mesma e é totalmente indiferente à cisão sagrado/ profano, divino/humano. Na sua forma extrema, a religião capitalista realiza a pura forma da separação, sem mais nada a separar. Uma profanação absoluta e sem resíduos coincide agora com uma consagração igualmente vazia e integral. E como, na mercadoria, a separação faz parte da própria forma do objeto, que se distingue em valor de uso e valor de troca e se transforma em fetiche inapreensível, assim agora tudo o que é feito, produzido e vivido – também o corpo humano, também a sexualidade, também a linguagem - acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo uso se torna duravelmente impossível. Esta esfera é o consumo. Se, conforme foi sugeri-

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do, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular. Mas isso significa que se tornou impossível profanar (ou, pelo menos, exige procedimentos especiais). Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável. O cânone teológico do consumo, como impossibilidade do uso, foi fixado no séc. XIII pela Cúria Romana no contexto do conflito em que ela se opôs à Ordem dos Franciscanos. Na sua reivindicação da “altíssima pobreza”, os franciscanos afirmavam a possibilidade de um uso totalmente desvinculado da esfera do direito, que eles, para o distinguir do usufruto e de qualquer outro direito de uso, chamavam de usus facti, uso de fato (ou do fato). Contra eles, João XXII, adversário implacável da Ordem, escreve a sua Bula Ad Conditorem canonum. Nas coisas que são objeto de consumo - argumenta ele – como o alimento, as roupas, etc., não pode haver um uso diferente daquele da propriedade, porque o mesmo se define integralmente no ato do seu consumo, ou seja, da sua destruição (abusus). O consumo, que destrói necessariamente a coisa, não é senão a impossibilidade ou a negação do uso, que pressupõe que a substância da coisa permaneça intacta (salva rei substantia). Não só isso: um simples uso de fato, distinto da propriedade, não existe naturalmente, não é, de modo algum, algo que se possa “ter”. “O próprio ato do uso não existe naturalmente nem antes de o exercer, nem durante o tempo em que se exerce, nem sequer depois de tê-lo exercido. O consumo, mesmo no ato do seu exercício, sempre é já passado ou fu-


turo e, como tal, não se pode dizer que exista naturalmente, mas apenas na memória ou na expectativa. Portanto, ele não pode ter sido a não ser no instante do seu desaparecimento”. Dessa maneira, com uma profecia inconsciente, João XXII apresenta o paradigma de uma impossibilidade de usar que iria alcançar seu cumprimento muitos séculos depois na sociedade dos consumos. Essa obstinada negação do uso percebe, porém, a sua natureza mais radicalmente do que eram capazes de o fazer os que o reivindicavam dentro da ordem franciscana. Isso porque o puro uso aparece, na sua argumentação, não tanto como algo inexistente – ele existe, de fato, instantaneamente no ato do consumo - quanto sobretudo como algo que nunca se pode ter, que nunca pode constituir uma propriedade (dominium). Assim, o uso é sempre relação com o inapropriável, referindo-se às coisas enquanto não podem se tornar objeto de posse. Desse modo, porém, o uso evidencia também a verdadeira natureza da propriedade, que não é mais que o dispositivo que desloca o livre uso dos homens para uma esfera separada, na qual é convertido em direito. Se hoje os consumidores na sociedade de massas são infelizes, não é só porque consomem objetos que incorporaram em si a própria não-usabilidade, mas também e sobretudo porque acreditam que exercem o seu direito de propriedade sobre os mesmos, porque se tornaram incapazes de os profanar. A impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico no Museu. A museificação do mundo é atualmente um dado de fato. Uma após outra, progressivamente, as potências espirituais que definiam a vida dos homens – a arte, a religião, a filosofia, a idéia de natureza, até mesmo a política - retiraram-se, uma a uma, docilmente, para o Museu. Museu não designa, nesse caso, um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora

já não é. O Museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), com uma região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo de indivíduos (enquanto representa uma forma de vida que desapareceu). Mas, de forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência. Por essa razão, no Museu, a analogia entre capitalismo e religião se torna evidente. O Museu ocupa exatamente o espaço e a função que um tempo eram reservados ao Templo como lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo – ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário – correspondem hoje os turistas, que viajam sem trégua num mundo estranhado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam, no final, de um sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrifical que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso. Se os cristãos eram “peregrinos”, ou seja, estrangeiros sobre a terra, porque sabiam que tinham no céu a sua pátria, os adeptos do novo culto capitalista não têm pátria alguma, porque residem na forma pura da separação. Onde quer que vão, eles encontrarão, multiplicada e elevada ao extremo, a própria impossibilidade de habitar, que haviam conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a própria incapacidade de usar, que haviam experimentado nos supermercados, nos Malls e nos espetáculos televisivos. Por isso, enquanto representa o culto e o altar central da religião capitalista, o turismo é atualmente a primeira indústria do mundo, que atinge anualmente mais de 650 milhões de homens. E nada é mais impressionante do

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que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo uso, a absoluta impossibilidade de profanar. É possível, porém, que o Improfanável, sobre o qual se funda a religião capitalista, não seja de fato tal, e que atualmente ainda haja formas eficazes de profanação. Por isso, é preciso lembrar que a profanação não restaura simplesmente algo parecido com um uso natural, que preexistia à sua separação na esfera religiosa, econômica ou jurídica. A sua operação – como mostra com clareza o exemplo do jogo – é mais astuta e complexa e não se limita a abolir a forma da separação para voltar a encontrar, além ou aquém dela, um uso não contaminado. Também na natureza acontecem profanações. O gato que brinca com um novelo como se fosse um rato – exatamente como a criança fazia com antigos símbolos religiosos ou com objetos que pertenciam à esfera econômica – usa conscientemente de forma gratuita os comportamentos próprios da atividade predatória (ou, no caso da criança, próprios do culto religioso ou do mundo do trabalho). Estes não são cancelados, mas, graças à substituição do novelo pelo rato (ou do brinquedo pelo objeto sacro), eles acabam desativados e, dessa forma, abertos a um novo e possível uso. Mas de que uso se trata? Qual é, para o gato, o uso possível do novelo? Ele consiste em libertar um comportamento da sua inscrição genética em uma esfera determinada (a atividade predatória, a caça). O comportamento libertado dessa forma reproduz e ainda expressa gestualmente as formas da atividade de que se emancipou, esvaziando-as, porém, de seu sentido e da relação imposta com uma finalidade, abrindo-as e dispondo-as para um novo uso. O jogo com o novelo representa a libertação do rato do fato de ser uma presa, e

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é libertação da atividade predatória do fato de estar necessariamente voltada para a captura e a morte do rato; apesar disso, ele apresenta os mesmos comportamentos que definiam a caça. A atividade que daí resulta tornase dessa forma um puro meio, ou seja, uma prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza de meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, e que esqueceu alegremente o seu objetivo, podendo agora exibir-se como tal, como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante. A separação dá-se também, e sobretudo, na esfera do corpo, como repressão e separação de determinadas funções fisiológicas. Umas delas é a defecação que, em nossa sociedade, é isolada e escondida através de uma série de dispositivos e de proibições (que têm a ver tanto com os comportamentos quanto com a linguagem). O que poderia querer dizer: pro-fanar a defecação? Certamente, não encontrar nisso uma pretensa naturalidade, nem simplesmente desfrutá-lo como forma de transgressão perversa (o que, aliás, é melhor que nada). Trata-se, sim, de alcançar arqueologicamente a defecação como campo de tensões polares entre natureza e cultura, privado e público, singular e comum. Ou melhor, trata-se de aprender um novo uso das fezes, assim como as crianças estavam tentando fazer a seu modo antes que interviessem a repressão e a separação. As formas desse uso só poderão ser inventadas de maneira coletiva. Como observou certa vez Ítalo Calvino, também as fezes são uma produção humana como as outras, só que delas nunca se fez uma história. Por esse motivo, qualquer tentativa individual de profaná-las pode ter apenas valor de paródia, a exemplo da cena da defecação em volta de uma mesa de jantar no filme de Buñuel. As fezes – é claro – aparecem aqui apenas


como símbolo do que foi separado e pode ser restituído ao uso comum. Mas é possível uma sociedade sem separação? A pergunta talvez esteja mal formulada. Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda memória das diferenças de classe, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para as transformar em meios puros. Nada é, porém, tão frágil e precário como a esfera dos meios puros. Também o jogo, na nossa sociedade, tem caráter episódico, depois do qual a vida normal deve retomar seu curso (e o gato a sua caça). E ninguém melhor do que as crianças sabe como pode ser atroz e inquietante um brinquedo quando acabou o jogo de que era parte. O instrumento de libertação converte-se então em um pedaço de madeira sem graça, e a boneca para a qual a menina dirigiu seu amor torna-se um gélido e vergonhoso boneco de cera que um mago malvado pode capturar e enfeitiçar para servir-se dele contra nós. Esse mago malvado é o grande sacerdote da religião capitalista. Se os dispositivos do culto capitalista são tão eficazes é porque agem não apenas e nem sobretudo sobre os comportamentos primários, quanto sobre os meios puros, ou seja, sobre comportamentos que foram separados de si mesmos e, assim, separados da sua relação com uma finalidade. Na sua fase extrema, o capitalismo não é senão um gigantesco dispositivo de captura dos meios puros, ou seja, dos comportamentos profanatórios. Os meios puros, que representam a desativação e a ruptura de qualquer separação, acabam por sua vez sendo separados em uma esfera especial. Exemplo disso é a linguagem. Certamente o poder sempre procurou assegurar o controle da comunicação social, servindo-se da linguagem

como meio para difundir a própria ideologia e para induzir à obediência voluntária. Hoje, porém, tal função instrumental – ainda eficaz às margens do sistema, quando se verificam situações de perigo e de exceção - deu lugar a um procedimento diferente de controle, que, ao separá-lo na esfera espetacular, atinge a linguagem no seu rodar no vazio, ou seja, no seu possível potencial profanatório. Mais essencial do que a função de propaganda, que diz respeito à linguagem como instrumento voltado para um fim, é a captura e a neutralização do meio puro por excelência, isto é, da linguagem que se emancipou dos seus fins comunicativos e se prepara assim para um novo uso. Os dispositivos midiáticos têm como objetivo, precisamente, neutralizar esse poder profanatório da linguagem como meio puro, impedir que o mesmo abra a possibilidade de um novo uso, de uma nova experiência da palavra. A Igreja, depois dos dois primeiros séculos de esperança e de expectativa, já tinha concebido sua função com o objetivo essencial de neutralizar a nova experiência da palavra que Paulo, ao colocá-la no centro do anúncio messiânico, havia denominado pistis, fé. Da mesma maneira, no sistema da religião espetacular, o meio puro, suspenso e exibido na esfera midiática, expõe o próprio vazio, diz apenas o próprio nada, como se nenhum uso novo fosse possível, como se nenhuma outra experiência da palavra ainda fosse possível. Essa aniquilação dos meios puros evidenciase no dispositivo que, mais que qualquer outro, parece ter realizado o sonho capitalista da produção de um Improfanável. Trata-se da pornografia. Quem tem alguma familiaridade com a história da fotografia erótica sabe que, no seu início, as modelos mostram uma expressão romântica e quase sonhadora, como se a objetiva as tivesse surpreendido, e não visto, na intimidade do seu boudoir.

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Às vezes, preguiçosamente estendidas sobre um canapé, fingem estar dormindo ou até mesmo lendo, como acontece em alguns nus de Braquehais e de Camille d’Olivier; outras vezes, o fotógrafo indiscreto flagrou-as precisamente quando, sozinhas consigo mesmas, se estão olhando no espelho (é a miseen-scène preferida por Auguste Belloc). Muito cedo, no entanto, acompanhando a absolutização capitalista da mercadoria e do valor de troca, a expressão delas se transforma e se torna desavergonhada; as poses ficam complicadas e adquirem movimento, como se as modelos exagerassem intencionalmente a sua indecência, exibindo assim a sua consciência de estarem expostas frente à objetiva. Mas é apenas em nosso tempo que tal processo alcança o seu estágio extremo. Os historiadores do cinema registram como novidade desconcertante a seqüência de Monika (1952), na qual a protagonista Harriet Andersson mantém improvisamente fixo, por alguns segundos, o seu olhar voltado para a câmara (“aqui, pela primeira vez na história do cinema – irá comentar retrospectivamente o diretor Ingmar Bergman – estabelece-se um contato despudorado e direto com o espectador”). Desde então, a pornografia certamente banalizou o procedimento: as pornostars, no preciso momento em que executam suas carícias mais íntimas, olham resolutamente para a objetiva, mostrando maior interesse pelo espectador do que pelos seus partners. Dessa maneira, realiza-se plenamente o princípio que Benjamin já havia enunciado em 1936, ao escrever o ensaio sobre Fuchs: “o que nestas imagens atua como estímulo sexual não é tanto a visão da nudez, quanto a idéia da exibição do corpo nu frente à objetiva”. Um ano antes, a fim de caracterizar a transformação que a obra de arte sofre na época da sua reprodutibilidade técnica, Benjamin havia criado o conceito de “valor de exposição” (Ausstellungswert). Nada poderia caracterizar melhor a nova condição dos

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objetos e até mesmo do corpo humano na idade do capitalismo realizado do que esse conceito. Na oposição marxiana entre valor de uso e valor de troca, o valor de exposição sugere um terceiro termo, que não se deixa reduzir aos dois primeiros. Não se trata de valor de uso, porque o que está exposto é, como tal, subtraído à esfera do uso; nem se trata de valor de troca, porque não mede, de forma alguma, uma força-trabalho. Mas é talvez só na esfera do rosto humano que o mecanismo do valor de exposição encontra o seu devido lugar. É uma experiência comum que o rosto de uma mulher que se sente olhada se torne inexpressivo. Saber que está exposta ao olhar cria o vazio na consciência e age como um poderoso desagregador dos processos expressivos que costumeiramente animam o rosto. Trata-se aqui da descarada indiferença que, antes de qualquer outra coisa, as manequins, as pornostars e as outras profissionais da exposição devem aprender a conquistar: não dar a ver nada mais que um dar a ver (ou seja, a própria e absoluta medialidade). Dessa forma, o rosto carrega-se até chegar a explodir de valor de exposição. Mas exatamente através dessa aniquilação da expressividade, o erotismo penetra ali onde não poderia ter lugar: no rosto humano, que não conhece nudez, porque sempre já está nu. Exibido como puro meio para além de toda expressividade concreta, ele se torna disponível para um novo uso, para uma nova forma de comunicação erótica. Uma pornostar, que presta seus serviços em performances artísticas, levou recentemente tal procedimento ao extremo. Ela se faz fotografar precisamente no momento de realizar ou sofrer os atos mais obscenos, mas sempre de tal maneira que o seu rosto fique bem visível em primeiro plano. E ao invés de simular o prazer, segundo a convenção comum nesses casos, ela simula e exibe – como as manequins - a mais absoluta indiferença, a mais


estóica ataraxia. A quem fica indiferente Chloè Des Lyces? Certamente ao seu partner. Mas também aos espec-tadores, que, com surpresa, se dão conta de que a star, mesmo sabendo perfeitamente de estar exposta ao olhar, não tem com eles sequer a mínima cumplicidade. O seu semblante impassível rompe assim toda relação entre o vivido e a esfera expressiva; não exprime mais nada, mas se dá a ver como lugar imaculado da expressão, como puro meio. O que o dispositivo da pornografia procura neutralizar é esse potencial profanatório. O que nele acaba sendo capturado é a capacidade humana de fazer andar em círculo os comportamentos eróticos, de os profanar, separando-os do seu fim imediato. Mas enquanto, dessa maneira, os mesmos se abriam para um possível uso diferente, que dizia respeito não tanto ao pra-zer do partner, mas a um novo uso coletivo da sexualidade, a pornografia intervém nessa altura para bloquear e para desviar a intenção profanatória. O consumo solitário e desesperado da imagem pornográfica acaba substituindo a promessa de um novo uso. Todo dispositivo de poder sempre é duplo: por um lado, isso resulta de um comportamento individual de subjetivação e, por outro, da sua captura numa esfera separada. Em si mesmo, o comportamento individual não traz, muitas vezes, nada de reprovável e até pode expressar uma intenção liberatória; reprovável é, eventualmente – quando não foi obrigado pelas circunstâncias ou pela força - apenas o fato de se ter deixado capturar no dispositivo. Não é o gesto impudente da pornostar nem o rosto impassível da manequim, como tais, que devem ser questionados; infames são, isso sim - política e moralmente - o dispositivo da pornografia, o dispositivo do desfile de moda, que os desviaram do seu uso possível. O Improfanável da pornografia – qualquer improfanável - baseia-se no aprisionamento e na distração de uma intenção autenticamente profanatória. Por isso importa, de cada vez, arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo – a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem•

Giorgio Agamben: nascido em Roma, em 1942, é um dos principais intelectuais europeus da atualidade. Ex-aluno de Heidegger, organizador e tradutor das obras de Walter Benjamin, escreve sobre temas entre a estética, a filosofia e o direito. Em 2001 recusou-se a lecionar nos EUA após a aprovação do Patriotic Act, e atualmente trabalha na Universidade de Veneza.

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O Arco O Arco do do Triunfo Triunfo “Eles foram Elias a sua massa quando Canetti ainda não dispunha de outra”

Leia: Elias Canetti, A consciência das palavras. Cia das Letras, Esgotado.

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De

todas as construções planejadas para Berlim, o Arco do Triunfo é – ao lado talvez do enorme “Kupperlhalle” – o que mais toca o coração de Hitler. Ele o esboçou em 1925; uma maquete com quase quatro metros de altura, feita segundo esse esboço, é a surpresa de Speer para o qüinquagésimo aniversário de Hitler, em abril de 1939. Poucas semanas antes suas tropas marchavam sobre Praga. A ocasião parece particularmente oportuna para um Arco do Triunfo. Hitler fica bastante comovido com o presente: é atraído por ela a cada instante, contempla-o longamente e o exibe a seus convidados; uma foto que comprova seu fascínio pela lembrança foi incluída nas Memórias de Speer. Jamais um presente tocou tão profundamente o coração daquele que o recebeu. Conversas anteriores entre Hitler e Speer já haviam muitas vezes tido esse Arco do Triunfo como tema. Sua altura deveria atingir 120 metros, com o que teria sido duas vezes maior que o Arc de Triomphe de Napoleão em Paris. “Este será, pelo menos, um monumento digno de nossos mortos na guerra. O nome de cada um de nossos 1,8 milhão de homens que nela tombaram será gravado em granito!” São palavras de Hitler, transmitidas por Speer. Não há nada que condense tão bem a essência de Hitler. A derrota da Primeira Guerra não é reconhecida mas transformada em vitória. Essa vitória será comemorada com um Arco do Triunfo duas vezes maior do que aquela que se concede a Napoleão por todas as sua vitórias. Com isso, a intenção de superar essas vitórias é claramente anunciada. Concebido para durar eternamente, o Arco do Triunfo será feito

da pedra mais resistente. Na realidade, porém, consistirá em algo mais precioso: 1,8 milhão de mortos. O nome de cada um deles será gravado em granito. Com isso serão homenageados, mas também comprimidos lado a lado, mais do que jamais o seriam em meio à massa. Em número tão gigantesco, constituirão o Arco do Triunfo de Hitler. Eles não são sequer os mortos da nova guerra, planejada e desejada por Hitler, mas os da Primeira Guerra, na qual ele próprio serviu como todos os outros. Ele sobreviveu à guerra, mas permaneceu-lhe fiel e jamais a renegou. Na consciência desses mortos, obteve a força para jamais reconhecer o resultado daquela guerra. Eles foram a sua massa quando ainda não dispunha de outra: sem os mortos da Primeira Guerra Mundial, ele jamais teria existido. Sua intenção de reuni-los num Arco do Triunfo é o reconhecimento dessa verdade e de sua dívida para com eles. Não obstante, esse é o seu Arco do Triunfo e carregará o seu nome. Dificilmente alguém lerá muitos dos outros nomes: mesmo que seja realmente possível gravar 1,8 milhão de nomes, a maioria esmagadora deles jamais será notada. O que ficará na memória é o numero, e esse número gigantesco pertence ao seu nome. O sentimento em relação à massa dos mortos é decisivo em Hitler. Esta é a sua verdadeira massa. Sem esse sentimento, não é absolutamente possível entendê-lo: nem seu início, nem seu poder, nem aquilo que empreendeu com o esse poder, nem a que conduziram seus empreendimentos. Sua obsessão, cuja validade mostrou-se sinistra, são esses mortos• [Tradução: Márcio Suzuki]

Elias Canetti: autor búlgaro, escritor de língua alemã, e vencedor do Prêmio Nobel de 1981. Dentre diversos livros, escreveu o romance “Auto-de-fé”, e o ensaio “Massas e poder”.

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Mimetismo imperfeito

Mimetismo imperfei Daniel Faria

Â

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ito

A orquídea finge ser Jesus plastificado Como um galã esquecido Dos filmes de sábado à noite, Com o charme dos fumadores de haxixe, Num convite estendido Na pintura desbotada, azul. A orquídea se faz passar Por um bêbado que se emociona Em lágrimas de cerveja E se esquece da severidade imposta Pela vida de imigrante e office boy Ex-morador do zoológico de Brasília. Atônitas, crianças Que medem a distância das estrelas Correndo com lanternas Lêem Mein Kampf nos bueiros, Livro em que a palavra Deus é repetida mais de vinte vezes Pelo autor que só tinha um testículo (As crianças precisam atestar O mal frente à inocência Despetalada a cada dia): As orquídeas colonizaram o mundo Por meio de disfarces: A imitação imperfeita Das flores Desdobra primaveras.

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Daniel Faria: é poeta e participa do blog coletivo http://www.facebook.com/l/9c187-jkOoE7Lz_JUySBV7qnzaw/linguaepistolar.blogspot.com. Tem o livro Matéria-prima publicado pelo coletivo Dulcineia Catadora.

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Corumbiara Corumbiara

e a política da narrativa nacional brasileira Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro*

A polifonia e o silêncio

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Quando a voz de Vincent Carelli ressoa sobre as imagens de Corumbiara (2009), estamos diante de um dos principais elementos de uma complexa tecelagem narrativa. A voz em primeira pessoa se entrelaça a imagens em primeira e terceira pessoa, por assim dizer, tomando o fundador do projeto Vídeo nas Aldeias como referência. Nas imagens da busca pelas evidências de um massacre de índios isolados na gleba de Corumbiara, no sul de Rondônia, em 1986 e depois, é como se víssemos por meio dos olhos e mãos de Vincent Carelli, segurando e direcionando a câmera de vídeo diante dos vestígios materiais e rastros discursivos de uma violência cuja representação deverá permanecer por fazer no decorrer de todo o filme. Nas imagens da conversa entre ele e Marcelo Santos, por sua vez, Vincent Carelli se põe em cena, dando corpo à voz


que entretece as imagens, em primeira ou terceira pessoa: vemos o sujeito que narra, que filmou uma grande parte das imagens e que assina o filme. A voz de Carelli constitui uma forma de escrita dupla (Derrida, 2001). De um lado, ela remete aos usos da voz over no cinema documentário – seja constituindo-se aparentemente com a autoridade da “voz de Deus” que pretende guiar o olhar espectatorial na leitura das imagens, quando Carelli permanece fora de quadro, seja assumindo a “voz de autoridade” do testemunho e da investigação quando Carelli entra em cena, dentro de um continuum que caracteriza o que Bill Nichols (2005, p. 142 e seguintes) chama de modo expositivo de documentário. De outro lado, a voz de Carelli revela seu caráter pessoal e ensaístico – (des)construindo sua autoridade ao exibir as marcas de sua autoria e fazendo do discurso em primeira pessoa a âncora de um comentário que entrelaça a observação participante e a autoridade etnográfica (Clifford, 1998) que constituem o modo participativo de documentário (Nichols, 2005, p. 153 e seguintes) e a busca de autoconsciência e crítica da representação que marcam o modo reflexivo de documentário (Nichols, 2005, p. 169 e seguintes). A força de Corumbiara advém das imagens valiosas registradas em diferentes momentos das últimas duas décadas e meia por Vincent Carelli e da capacidade do videocineasta de tecer uma narrativa contundente, abordando a condição dos índios no Brasil contemporâneo por meio da situação exemplar daqueles que habita(va)m a gleba Corumbiara. A oscilação indecidível entre o passado e o presente da ação que a forma verbal “habita(va)m” pretende sugerir, como uma cifra, remete à questão fundamental do habitar e da morada quando se trata de pensar historicamente a questão indígena no Brasil (e no mundo). Na história dos índios no Brasil (e no mundo), nas narrati-

vas que preenchem de significados o termo “Brasil” (e nas narrativas que preenchem de significados o termo “humanidade”), o que está em jogo é o lugar que se ocupa no mundo, o demorar-se em sua morada e no mundo como morada, o pertencimento a coletividades e a questão do comum e da comunidade. Corumbiara entra nesse jogo, entre as narrativas do “Brasil” e as narrativas da “humanidade”, fazendo lembrar a violência que sempre acompanha o ato de narrar e a fabricação de comunidades e coletividades. Em Corumbiara, a violência que funda toda narrativa nacional brasileira se mostra em seu processo de atualização histórica e reprodução cotidiana. Para se constituir uma nação, é preciso alimentar um processo (interminável) de reiteração de seus símbolos. É preciso (re)inventar, por meio de ritos e mitos, práticas e discursos, o objeto a que se refere o significante vazio da nação. O “Brasil” precisa ser sempre (re)produzido (performativamente, isto é, num processo de repetição que nunca chega ao fim, ao termo, à completude). No Brasil contemporâneo, onde a chamada “fábula das três raças” constitui um horizonte crucial de construção da nação como “comunidade imaginada” (Anderson, 2008), é notável o estado de emergência em que se encontram as polifônicas contranarrativas da nação, que tentam fazer com que nos lembremos dos “outros 500”, das histórias silenciadas, embora constitutivas, do Brasil. Como uma dessas contranarrativas, Corumbiara revela que a violência fundacional da nação – reinscrevendo a “descoberta” como “conquista” violenta – deve ser reiterada cotidianamente contra os sobreviventes, contra suas vozes e sua memória. O que está em jogo é a política da narrativa nacional brasileira. Quem tem o poder de narrar? Qual é o sujeito da nação? Quem é silenciado, o que é reprimido na constituição do sujeito da nação? Quem é con-

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vocado, obrigado a falar? Quem dá voz ao Brasil? De que maneira somos interpelados a ocupar um lugar na nação e em sua narração?

tivo de controle governamental sob o véu da promessa da cidadania e dos direitos humanos. Carelli continua:

Poética da invisibilidade O que Vincent Carelli chama de “impasse do índio do buraco” constitui um momento significativo do filme para a problematização da política da narrativa nacional brasileira. Trata-se do caso da busca pelo que parece ser o único sobrevivente de uma série de massacres em Corumbiara, cujos indícios incluem profundos buracos no chão das moradas. Encontrado em 1998, o “índio do buraco” recusa o contato. Ouvimos e vemos trechos da conversa entre Vincent Carelli e Marcelo Santos que se desenrola em 2006, entrelaçados (por montagem alternada) ou mesclados (por sobreimpressão de som e imagem) com a tentativa de fazer contato com o “índio do buraco” em 1998. A situação é ambivalente: a recusa do contato – ao mesmo tempo ativa, decidida e furtiva – dificulta a tentativa de Vincent Carelli e de Marcelo Santos, junto com o Alemão, de registrar em vídeo a existência do índio, que precisa ser comprovada para todos os efeitos legais, para chegar, talvez, à punição dos responsáveis pelo que se insinua como um violento e amplo massacre. Como afirma Carelli: “o índio só passará a existir legalmente se conseguirmos uma imagem dele”.

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A busca pela imagem constitui uma tentativa de ajudar o “índio do buraco” mas depende do desrespeito a sua recusa do contato. O índio ataca a câmera e, depois, Carelli comenta: “Ele só tentou me flechar por causa da câmera. O Alemão se expôs muito mais do que eu e ele não fez nada. Por ironia da história, é a câmera que fez ele existir perante a Justiça.” Trata-se da ironia do espetáculo (Debord, 1997) como lógica dominante do capitalismo contemporâneo: a visibilidade se torna um disposi-

Quando eu consegui contornar a casinha, ficar atrás daquela árvore que era colada na casinha... que eu podia pegar com a mão e começar a tirar as palhas da casa e deixar ele nu, ali, na frente da gente... quando eu senti essa possibilidade e que fazia horas que ele resistia, deu um incômodo profundo, que eu comecei a me sentir mal... A recusa do “índio do buraco” revela a opacidade e a violência irredutíveis da narrativa nacional brasileira, o núcleo de invisibilidade que a habita, o elemento ao mesmo tempo estranho e familiar (unheimlich) que a assombra, o exterior constitutivo que ela busca colonizar. Mesmo quando se fala ou se age em nome dos índios, como Carelli, uma estrutura política de representação condiciona as relações interculturais. Diante da impossibilidade de escapar a essa estrutura, que se pode chamar de colonialidade, surge o pesadelo de Carelli, que encerra, como uma cripta, o mistério que o “índio do buraco” representa para a política da narrativa nacional brasileira e até mesmo para a política da narrativa da “humanidade” que se articula em torno do aparato discursivo dos direitos humanos: Eu tinha tido um pesadelo, naquela perseguição... [...]. Eu lembro daqueles antigos [...] seriados de televisão, de safari na África, de turismo... [...]. Os que cuidavam das reservas pegavam e atiravam com aquele dardo de anestesiante, aí pegavam o leão, tratavam o


dente do leão. E eu tinha tido um pesadelo, fazendo isso com ele... que o único jeito [...] era cercar o cara, dar um tiro de anestesiante, quanto ele acordasse, pronto, tava feito o contato... Como mostra o exemplo paradigmático das narrativas filmográficas de Tarzan (Ribeiro, 2008) as narrativas de safaris na África de que Carelli se recorda constituem um universo simbólico marcado pela estrutura da colonialidade e revelam, em suas fissuras e ambivalências, as contradições do humanismo e do cosmopolitismo. A estrutura da colonialidade marca a inscrição das sociedades indígenas na narrativa nacional brasileira e constitui o espaço discursivo dos direitos humanos. O ataque do “índio do buraco” à câmera como dispositivo narrativo aparece como um gesto anticolonial que responde simbolicamente à opacidade fundamental que caracteriza o pertencimento do índio à narrativa nacional brasileira. Sua recusa deve ser entendida como a reivindicação

de um direito à invisibilidade e a não participar da narrativa da nação. Seu mistério deve ser reconhecido como uma lembrança contundente da violência que nos constitui como comunidade imaginada• **Uma versão anterior desse texto apareceu no site Incinerrante.com. Referências bibliográficas ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CLIFFORD, James. A autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005. RIBEIRO, Marcelo Rodrigues Souza. Da economia política do nome de ‘África’: a filmografia de Tarzan. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, 2008.

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro: professor e pesquisador e desenvolve o website incinerrante.com. Atualmente, cursa o doutorado em Estudos Cinematográficos na Université de Montréal, onde desenvolve pesquisa sobre cinema e cosmopolitismo. Graduou-se em Ciências Sociais com Habilitação em Antropologia na Universidade de Brasília (2005) e realizou seu mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (2008), voltando-se sempre para o cinema e o audiovisual, assim como a fotografia e outras formas de imagem.

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U m te r r i t贸r io u t贸pico Um territ贸rio ut贸pico Amandine Goisbault

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co

Durante séculos, os colonos brancos têm explorado os ameríndios, roubando madeira, borracha e a fauna da Amazônia. Em 1992, após anos de conflito, um grupo de índios Ashaninka, obteve do governo brasileiro a demarcação de suas terras. Tradicionalmente semi-nômades, os Ashaninka têm consciência dos limites desse território e gerencia cuidadosamente seus recursos para sobreviver como uma comunidade. Sobre o que era uma pastagem, eles replantaram uma floresta rica e densa e construíram sua aldeia.

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Eles montaram uma cooperativa e um sistema de trabalho coletivo, criando espécies ameaçadas de extinção como as tartarugas, e monitorando as fronteiras de suas terras, frequentemente invadidas por caçadores e empresas peruanas de exploração de madeira. Eles se organizaram de uma maneira inédita, combinando seus conhecimentos tradicionais com tecnologias como vídeo, rádio e Internet.

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Eles compartilham suas experiências de desenvolvimento sustentável no plano regional, nacional e internacional, só que o mais importante é que eles transmitem seu conhecimento a seus filhos para garantir o a continuidade de se trabalho nesse território•

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Amandine Goisbault: formou-se na Universidade Sciences Po de Paris em 2008, obten 2006, vem trabalhando com documentário fotografia. Entre 2007 e 2010, trabalhou n realizou e editou o documentário “Impressões do exílio” (26’), retratos de imigrantes Campos Tôrres e Divino Tserewahú) e editou o filme “Sangradouro” sobre a história d televisão francesa.

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ndo um Master em Management da Cultura e da Mídia (Audiovisual e Cinema). Desde no Vídeo nas Aldeias, na edição e finalização de filmes e oficinas de vídeo. Em 2008, s africanos que vivem num mesmo bairro de Paris. Em 2009, co-realizou (com Tiago desta aldeia Xavante. Desde 2010, vem realizando e editando documentários para a

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A origem do mito

da Internet Internet Armand Mattelart

“A história da humanidade é geralmente descrita em termos de idade... Hoje admite-se, de uma maneira geral, que entramos numa nova era, a pós-industrial, em que a capacidade de utilizar a informação tornou-se decisiva... Esta nova era é denominada idade da informação.” Esta publicidade, da empresa norte-americana IBM, não data da explosão da Internet, e sim de 1977... A indústria de fabricação do imaginário acerca da informação, “novo recurso imaterial”, trabalhava a todo vapor. O imperativo de “saída da crise” convocava as novas tecnologias a se plantarem “à cabeceira” das economias dos grandes países industriais. A noção de “sociedade da informação” aparecia nos programas de pesquisa dos governos e das instituições internacionais. A partir de 1975, na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e, quatro anos mais tarde, na União Européia. Com o avanço das desregulamentações e das privatizações, os mitos da era da informação cruzariam com a via da “idade global”. Em março de 1994, o vice-presidente dos Estados Unidos, Albert Gore, anunciava seu projeto de infovias, ou Global Information Infrastructure, seduzindo a “grande família humana” com a promessa de uma nova ágora ateniense. É também o ano em que, pela primeira vez, aparece nos dicursos oficiais a noção de “nova economia”. Os perigos da sociedade da informação Em fevereiro de 1995, os países mais ricos do G7 ratificaram em Bruxelas a noção de global society of information, ao mesmo tempo em que decidiram acelerar a liberalização dos mercados das telecomunicações. Finalmente, em maio de 2000, na rodada européia de Lisboa, os quinze países da UE decidem envidar todos os esforços para o desenvolvimento da Internet. Como teriam as tecnologias da informação chegado a transformar-se em fetiche? Ao final do segundo conflito mundial, o desenvolvimento das máquinas inteligentes, concebidas para quebrar os códigos dos inimigos, apoiar a balística e fabricar a bomba atômica,

Leia: 62

Edição eletrônica do Le Monde Diplomatique (http://diplo.org.br/2000-08,a1810)


autorizava os cientistas a alimentarem a esperança de ver suas inovações utilizadas para fins civis. Desde 1948, Norbert Wiener já via na tecnologia da informação o meio de evitar que a humanidade mergulhasse no “mundo de Belsen e de Hiroshima”. Porém, o pai da cibernética já previa que, para que o conjunto dos “meios de coleta, utilização, estocagem e transmissão da informação” funcionasse bem, seria necessário que ela circule sem entraves. Ou seja, sem interferência do poder e do dinheiro. Cultura, idéia fraca e irrelevante Esse ceticismo o impede de compartilhar a mística do progresso infinito da ciência que, em 1945, levou Vannevar Bush -- inventor da primeira calculadora analógica completa (1931) e ex-responsável pela Comissão de Pesquisa da Defesa Nacional dos Estados Unidos -- a propor um programa de apoio maciço do Estado à pesquisa, com o objetivo de acelerar o início de uma “era póshistórica”. A guerra fria iria fazer ruir todas essas esperanças. A perspectiva humanista de Wiener é estranha à teoria matemática da comunicação, formulada, em 1949, por um de seus exalunos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Claude Shannon, engenheiro e pesquisador da Bell Telephone. Sua definição de informação é estritamente física, quantitativa, estatística. O problema em questão depende do cálculo das probabilidades: achar a codificação mais eficiente (rapidez e custo) para fazer chegar uma mensagem telegráfica a seu destinatário. Esse modelo mecânico, que se interessa apenas pela estrutura física, remete a um conceito behaviorista (estímulo-resposta) da sociedade. O destinatário é reduzido, de certo modo, a uma espécie de clone do

remetente. A construção do sentido não está inscrita no programa de Shannon. A noção de comunicação é separada da de cultura. Como observa o especialista James W. Carey, esse tropismo comunicacional remete a uma representação peculiar, própria à sociedade norte-americana: “o conceito de cultura é uma noção fraca e evanescente no pensamento social”. Esta acepção de “comunicação” acabaria se espalhando o mundo. A negação da utopia da informação Quanto à noção de “informação”, logo ela se transformaria na caixa preta, chavemestra com resposta para tudo. Principalmente porque inúmeras disciplinas das ciências humanas, desejosas de participar da legitimidade das ciências da natureza, vão transformar em paradigma a teoria de Shannon. A fluidez que envolve a noção de informação estará sempre cercando com uma auréola a da “sociedade da informação”. A tendência a equiparar a informação a um termo originário da estatística (data/ dados), e a só enxergar informação onde há dispositivo técnico, deverá se acentuar. Dessa forma, prevalecerá um conceito puramente instrumental da sociedade da informação. Com a negação da utopia social do conceito, desmorona o embasamento sócio-político de uma expressão que pretendia orientar o novo destino do mundo. O fim da ideologia A guerra fria implanta o cenário que antecipa a construção dos conceitos encarregados de anunciar, e mesmo explicar, que a humanidade se encontra no limiar de uma nova era da informação, rumo a um novo universalismo. Três focos de

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emissão aparecem sucessivamente: as ciências sociais, a avaliação projetada e a geopolítica. Primeira operação: decretar a morte da idade precedente, a da “ideologia”, característica, segundo os coveiros, do século XIX e da primeira metade do século XX. É o que fazem os participantes de uma reunião ocorrida em Milão, em setembro de 1955. Com o tema “O futuro da liberdade”, foi organizada pelo Congresso pela Liberdade da Cultura, organismo fundado em Berlim em 1950 e financiado pela CIA com o apoio de uma fundação privada, sem o seu conhecimento, dizem quatro de seus organizadores. Entre os participantes: o economista Friedrich A. von Hayek, o professor francês Raymond Aron, que tinha acabado de publicar L’Opium des intellectuels, e os sociólogos norte-americanos Daniel Bell, Seymour Martin Lipset e Edward Shils. Fim da era da ideologia, fim do político, fim das classes e de suas lutas, mas fim também dos intelectuais contestadores e da militância. Todos esses eclipses estão na ordem do dia. Postula-se que a análise sociológica está varrendo os preconceitos da ideologia, atestando a nova legitimidade da figura do “intelectual liberal ocidental”. A sociedade empresarial Uma outra tese em voga, formalizada em 1940 pelo filósofo norte-americano James Burnham -- que atravessava, na época, um processo de afastamento da IV Internacional (trotskista) -- acaba por reforçar o discurso dos “fins”: a revolução empresarial e a ascensão irresistível dos organization men, portadores de uma nova sociedade: a sociedade empresarial, que prefigura a convergência dos regimes capitalista e comunista.

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Uma comunidade pensante emerge. Comentário de Daniel Bell, cerca de vinte anos mais tarde: “Um certo número de sociólogos -- Aron, Shils, Lipset e eu mesmo -- foram levados a ver os anos 50 como marcados pelo fim da ideologia”. Em 1960, Daniel Bell, também ex-simpatizante trotskista, publica The End of Ideology. Entre 1965 e 1968, preside a Comissão para o Ano 2000, criada pela Academia (Norte) Americana de Artes e Ciências, ocasião em que trabalha o conceito de “sociedade pósindustrial”. Alergia à “democracia participativa” Nos anos 60, é legitimada a idéia de que existem métodos objetivos para explorar o futuro. Em 1973, Bell publica The Coming of Post-Industrial Society, onde vincula sua tese anterior, sobre o fim da ideologia, ao conceito de “sociedade pós-industrial”. Esta última, também chamada de “sociedade da informação”, ou “do saber”, seria desprovida de ideologia. Bell mete-se a fazer previsões. Daí o subtítulo: A Venture of Social Forecasting (Uma Tentativa de Previsão Social). Extrapolando tendências (trends) estruturais comuns nos Estados Unidos, constrói uma sociedade do tipo ideal. Uma sociedade caracterizada pela ascensão de novas elites cujo poder reside na nova “tecnologia intelectual”, voltada para a tomada de decisões, para a hegemonia da “comunidade da ciência”, uma “comunidade carismática”, universalista e desinteressada, “sem ideologia”. Uma sociedade hierarquizada, regida por um Estado-previdência, centralizador e planejador da mudança (daí a insistência sobre o papel dos métodos de monitoring e de assessment das mutações tecnológicas). Uma sociedade alérgica ao pensamento coletivo e ao tema da “democracia participativa”, problemática que, no entanto, a tele-


visão a cabo colocou na ordem do dia nos Estados Unidos.

pagar. É por este viés que o grande público se familiariza com a nova era tecno-informacional.

A visão social da ocidentalização Nessa sociedade, onde a economia tende a se transformar em “serviços técnicos e profissionais”, o crescimento é linear e exponencial. A visão da história-modernidade-progresso que prevalece está em conformidade com a teoria matemática da informação e com o modelo de evolução esboçado, em 1960, por Walt W. Rostow, em seu Manifesto Não-comunista sobre as “etapas do crescimento econômico”. O progresso chegaria aos países ditos atrasados através da difusão dos valores dos países ditos adultos. Este percurso tem um nome forjado pela sociologia da modernização: westernization, ocidentalização. As incertezas sobre o crescimento e a “crise de governabilidade das democracias ocidentais” balançaram rapidamente as hipóteses desse primeiro rascunho de sociedade da informação. 8 Mas pouco importam os flagrantes desmentidos: a visão científica conseguiu implantar a idéia de que as doutrinas organizacionais ultrapassam o político. Funcional, esta sociedade é gerida pelos princípios da administração científica. Não por acaso, a empresa Bell Telephone coloca no panteão de precursores da idéia Claude-Henri de Saint Simon, Frederic Winslow Taylor e Robert McNamara, exresponsável pela Ford Motor Co., artífice da racionalização do Pentágono no início dos anos 60 e futuro presidente do Banco Mundial. As previsões de Herman Khan A elaboração de roteiros de previsão tornase um comércio. Os professional prognosticators oferecem seus serviços a empresas e governos ávidos de conselhos e dispostos a

Por exemplo, em 1967, no âmbito da Comissão para o Ano 2000 -- presidida por Bell --, veremos Herman Kahn e seu Instituto Hudson prognosticarem que na sociedade pós-industrial (e pós-penúria), não se trabalhará mais que cinco ou sete horas por dia, quatro dias por semana, 39 semanas ao ano. E veremos, principalmente, Alvin Toffler, autor dos best-sellers Future Shock (O choque do futuro, 1970) e The Third Wave (A Terceira Onda, 1979) a quem caberá a missão de “trazer o futurismo até as massas”, segundo expressão da revista Time. 9 Ex-marxista, Toffler indicou claramente a função operacional dos argumentos futuristas. Para evitar o “traumatismo do choque do futuro”, é necessário cultivar nos cidadãos o desejo do futuro. O horizonte de esperanças que ele antecipa caracteriza-se pela democracia interativa, pela desmassificação da mídia, pela produção-consumo, pelo pluralismo, pelo pleno emprego e pela flexibilidade. E, principalmente, pelo fim do “perigoso anacronismo” da existência do Estado-nação e por uma nova divisão, que colocará face a face o velho e o novo e substituirá a oposição entre ricos e pobres, entre capitalismo e comunismo. A “diplomacia das redes” Na época, a “democracia interativa” consistia de projetos de “cidades ligadas por cabo”, concebidos por grupos de reflexão (think tanks), que se tornam ambientes de experiência da ideologia tecnocomunitária. Também não por acaso, Nicholas Negroponte, profeta da era cibernética, autor de O Homem Digital e acionista da revista

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Wired, dos aficcionados da Internet, trabalhou com este tipo de projeções urbanas para a Rand Corporation, antes de fundar, em 1979, o Media Lab do MIT. Desde o final dos anos 60, o modelo geopolítico que legitima a noção de “sociedade da informação” como “sociedade global” encontra-se explicitado nas análises de Zbigniew Brzezinski -- especialista nos problemas do comunismo e futuro assessor do presidente norte-americano James Carter para assuntos de segurança nacional -- sobre as conseqüências internacionais da convergência entre a informática e as telecomunicações. Sua tese central: os Estados Unidos tornaram-se, graças ao domínio que detêm sobre as redes mundiais, a “primeira sociedade global da história”, a que “mais comunica”; o modelo de “sociedade global” por eles representado prenuncia o destino das outras nações; é inevitável que os novos valores universais irradiados pela América cativem a imaginação de toda a humanidade e suscitem o mimetismo. Conclusão: acabou-se o tempo da “diplomacia do canhão”; caducam as noções de imperialismo, de americanização e da Pax Americana; e viva a nova “diplomacia das redes”!

da noção de soft power, baseada na nova doutrina da “segurança global”: “Mais que nunca, saber é poder. O único país que tem condições de levar a cabo a revolução da informação são os Estados Unidos (...). Força multiplicadora da diplomacia norteamericana, o eixo das tecnologias da informação inaugura o soft power -- sedução exercida pela democracia norte-americana e pelos mercados livres.” Quanto ao ideal de westernization, que se acreditava ser hoje obsoleto devido à falência das estratégias inspiradas na ideologia do desenvolvimento/modernização, recebe novo alento da sociedade global da informação: “O homem industrial de amanhã -- martela Peter Drucker em seu livro PostCapitalist Society - deverá se preparar para viver num mundo globalizado, que será um mundo ocidentalizado.” Na seqüência, este teórico do empresariado prega uma ampla aliança entre empresários e intelectuais, condição necessária para o sucesso do projeto planetário orientado pela indústria do saber: “Seus pontos de vista opõem-se, mas como dois pólos indissociáveis, não contraditórios. Um precisa do outro.”• [Tradução: Nena Mello]

Uma aliança entre empresários e intelectuais Três décadas mais tarde, eis o que dirão o cientista político Joseph S. Nye e o almirante William A. Owens, assessores do governo Clinton, por ocasião do lançamento

Armand Mattelart é professor na Universidade de Paris-VIII. Autor, entre outros, de: L’Invention de la communication, ed. La Découverte, Paris, 1997; e Histoire de l’utopie planétaire. De la Cité prophétique à la Société globale, ed. La Découverte, Paris, 2000.

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in.ca zine

[intervenções críticas]

CHAMADA PARA O SEGUNDO NÚMERO ENV I E S E U TE XTO, I L US T R AÇ ÃO , MO N T AGE M , SÉRI E OU E N S A I O F OT O GR ÁF I C O P AR A: Z I N E I N C A @ G M A I L . C O M


mas eu o vi océu céu euaí,vi

Diego Bresani

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Estar em Brasília significa confrontar-se com o monumental. Em todos os quadrantes do Plano Piloto, a cidade se impõe com seus edifícios áusteros e monocromáticos. Puro concreto, puro ferro, pura forma, vazados ou monolíticos, sua arquitetura parece moldada para o preto e branco, para o jogo de volumes, de sombra e luz. Em sua série “mas aí, eu vi o céu”, Diego Bresani rompe com a tradição formalista da fotografia sobre a cidade moderna. Ele a liberta do império da forma. Enquanto os indícios nos remetem ao concreto do momental, à cidade radiosa de Niemeyer, o olhar de Bresani nos lança para céu. Infindável, desforme, a-histórico, colorido e intangível, a monumentalidade do céu contrasta e coloca a monumentalidade da cidade em seu lugar• (CH)

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Diego Bresani: é diretor de teatro e fotógrafo em Brasília. Logo depois de se formar no Curso de Artes Cênicas pela Universidade de Brasília, estudou no ICP - International Center of Photography, em NY. Hoje tem um estúdio, Califórnia. Fotografa de dia e ensaia à noite. Vai de bicicleta para o estúdio. É apaixonado em fazer e ver retratos; blog: www.estudiocalifornia.wordpress.com

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TERMÔMETROS

TERMÔMETROS QUE FAZEM ADOECER “Produto Interno Bruto” e “taxa de crescimento” são conceitos fundamentais de nossos regimes liberal-desenvolvimentistas. Perversos e enganosos, por trás deles, esconde-se a completa desconsideração pelo “comum”, por aquilo que diz respeito a todos. Em seu texto, Patrick Viveret disseca as contradições de nossa representação da riqueza.

PATRICK VIVERET

Pode uma pessoa sensata fingir que a maré negra proveniente do naufrágio do Erika, a grande tempestade de dezembro de 1999, os acidentes de trânsito, com seu cortejo lúgubre de mortos e feridos, e a catástrofe anunciada das conseqüências da doença da vaca louca constituem boas notícias? A resposta negativa parece evidente. No entanto, milhares de pessoas que ocupam funções decisivas em nossas sociedades, nos campos econômico, político ou científico, são permanentemente guiadas em seus atos por instrumentos de medida que têm a estranha característica de contabilizar de maneira positiva todas as formas de destruição que acabamos de evocar. O famoso crescimento do produto interno bruto, que serve de bússola para a maioria de nossas autoridades responsáveis, tem a notável característica, com efeito, de zombar da

natureza das atividades por ele adicionadas, desde que estas gerem fluxos monetários: enquanto for preciso pagar a mecânicos para consertar os veículos danificados, a operários da indústria de cimento para queimar as farinhas animais suspeitas de se originarem na doença da vaca louca, a médicos para tratar das pessoas vitimadas pela poluição do ar e da água e pelas tempestades, bem como a empregados de empresas funerárias para enterrar os mortos, haverá um acréscimo de valores monetários que serão registrados nas contabilidades dos agentes econômicos; em seguida, estas inflarão, nos grandes agregados públicos da contabilidade nacional, nosso produto interno bruto cujo crescimento ou redução deverá em seguida gerar, ao menos segundo se acredita, mais empregos ou mais desemprego. Dispomos, portanto, de um termômetro curio-

Leia: Patrick Viveret, Reconsiderar a riqueza. Editora UnB, Esgotado.

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so, uma vê que nunca sabemos se ele indica a temperatura certa. Devemos regozijar-nos pela alta taxa de crescimento interno bruto? Sim, caso se trata de criar riquezas e empregos passíveis de melhorar o nível e a qualidade de vida de uma coletividade. Não, se esse crescimento se deve ao aumento dos acidentes, à progressão de doenças nascidas da insegurança alimentar, à multiplicação das formas de poluição ou à destruição de nosso meio ambiente natural. Na impossibilidade de estabelecer um mínimo de distinção, limitando-nos a uma contabilização monetária, sem proceder a uma avaliação da natureza das riquezas produzidas ou destruídas, ficamos condenados a ver nossos instrumentos atuais facilitarem comportamentos que são perigosos do ponto de vista do bem comum. 1. Os efeitos perversos de nossa representação da riqueza As formas atuais de contabilização da riqueza têm o efeito, portanto, de conceder uma espécie de prêmio à destruição e à reparação pesada, em detrimento da prevenção e de reparações menos dispendiosas, caso o “estrago” ecológico, social ou sanitário fosse menos importante. Os “destruidores” ou os beneficiários do estrago que vêem dilatar-se o volume de seus negócios, não estão interessados em limitar a destruição, e os pagantes, por sua vez (essencialmente o Estado, a seguridade social e as coletividades locais), são financiados por impostos ou contribuições incidentes sobre os fluxos monetários, estando longe de ser desprezíveis os que se ligam a atividades destrutivas. As verdadeiras vítimas do sistema, que são os chamados contribuintes, não dispõem de meios para se fazer ouvir e, em sua maioria, nem sequer imaginam a estranha mistura que compõe esse crescimento, do qual têm a melhor das impressões. Trata-se também de um prêmio dado à miopia, à lógica do curto prazo e da visão curta, porque os benefícios aparentes que os destruidores e os pagantes extraem de tal sistema não são duradouros, é claro. A médio e longo prazos, todos saem perdendo nesse jogo perigoso. Entretanto, como as contabilidades, as distribuições de dividendos e as eleições marcam o ritmo de um tempo cada vez mais curto, é difícil encontrar, mesmo no Estado – embora ele seja o guardião da construção dos desafios de longo prazo –, atores realmente interessados numa obra que é tão vasta quanto complexa. Trata-se ainda de um prêmio à falta de civismo e à amorali-

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dade, uma vez que a amoralidade metodológica da economia, como disciplina, transmite-se – a partir do momento em que a economia se torna uma verdadeira norma social e cultura no seio de uma sociedade de mercado – a todas as atividades humanas: quando a questão da rentabilidade tem primazia sobre a questão do bem, e particularmente a do bem público, é o próprio cerne do processo educativo que sofre grave perturbação. Por que transmitir a nossos filhos idéias como altruísmo, mérito ou civismo, se eles têm por modelo, permanentemente, um sucesso financeiro baseado no individualismo, no dinheiro fácil e na burla das regras e das leis como suprema arte da administração? As conseqüências dessa lógica são temíveis: elas fundam o mito dos “produtores” e dos “sugadores” – de um lado, as empresas, tidas como únicas produtoras de riqueza, embora só possam cumprir sua função transformando recursos ecológicos e humanos; e, de outro, todas as atividades sociais e ecológicas, tidas como financiadas por uma subtração da riqueza econômica. Elas condenam as associações sem fins lucrativos a mendigarem seus meios de subsistência ao Estado ou a irem buscá-los no mercado, na impossibilidade de dispor de recursos relacionados com as riquezas sociais que contribuem para criar ou preservar. Elas desconhecem as condições antropológicas e ecológicas sem as quais nenhuma riqueza econômica seria possível. E fazem do Estado e do conjunto dos serviços públicos um setor permanentemente suspeito de ser parasitário. Alguns responderão, citando Schumpeter, que a economia certamente se baseia numa forma de destruição, mas que esta é “criativa”em virtude do progresso tecnológico. Por essa perspectiva entretanto, seria preciso dispormos de um instrumento capaz de distinguir a “boa” destruição da ruim, o que, como vimos, não é o caso do PIB. Assim, somos remetidos ao problema de mudar de termômetro (cf. infra). Mas de nada nos adianta refletir sobre novos in-

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strumentos se não compreendermos as razões pelas quais os antigos foram escolhidos. Cabenos compreender, portanto, por que e como nasceram as tabelas de nossas leis econômicas que, numa verdadeira religião da economia, estrutura o cerne das crenças e dos comportamentos de nossos contemporâneos. Uma breve recapitulação histórica revela-se necessária neste ponto, para compreendermos as condições em que a economia assegurou sua autonomia em relação ao religioso, ao ético e ao político, dando novo sentido aos conceitos de riqueza, produção e utilidade. A construção dos sistemas contábeis que continuam a estruturar nossa representação, com efeito, inspirou-se diretamente nessa mudança radical. 2. Breve recapitulação histórica Riqueza, valor, utilidade: a profunda transformação cultural da sociedade de mercado. Se há um traço comum à maioria das civilizações, é a desvalorização das idéias de trabalho, produção e, de maneira geral, da esfera econômica. Longe do esquema comum ao liberalismo e ao marxismo, para o qual a economia é uma infra-estrutura determinante primordial, a história antropológica evidencia sociedades humanas em que a economia exerce um papel secundário. A divisão social dos papéis reproduziu-se numa nova divisão sexual: entre o trabalho desonroso, entregue aos escravos, e a nobre política reservada aos homens, a Grécia inventou um espaço intermediário que seria destinado às mulheres: estas, ocupadas com as tarefas domésticas (oikos, nomos = a lei da casa, que o latim traduziu por domus), ficavam encarregadas da intendência, enquanto seus maridos debatiam na ágora. Sob diversas formas, todas as civilizações situaram a economia em segundo plano, o que ainda acontece, hoje em dia, na maioria das culturas da Ásia e da África, para as quais a extensão de nosso modelo cultural, por meio de globalização, constitui um choque difícil de assimilar.


Segundo essa perspectiva, a única economia que tem valor é a “economia da salvação”. A Idade Média desenvolveu essa visão, da qual precisamos compreender a plena força: em sociedades em que a média de vida não ultrapassava trinta anos e em que a crença numa outra vida era generalizada, a única questão séria, aqui embaixo, era nos prepararmos para o Além – em particular, evitarmos a maldição eterna. A esfera moral era deduzida da visão religiosa, e o político, seu braço secular, extraía sua legitimidade do “direito divino”. Nessa sociedade da ordem, o indivíduo não existia. Era apenas uma partícula elementar de uma totalidade cósmica e social; tampouco havia razão autônoma, uma vez que esta, mesmo reabilitada por Tomás de Aquino, tinha de ser serva da Revelação.

abre, conservando o que há de melhor em seu esclarecimento, mas poupando-nos de suas conseqüências mais contestáveis. Uma tríplice revolução fundadora... Essa economia mercantil tão dominante que se transmuta na “sociedade de mercado”, capaz de subordinar o jurídico e o político, de transformar em mercadoria a vida privada, de patentear o ser vivo que hoje nos parece perigoso, é filha de três revoluções emancipadoras que nos são caras e cuja herança não nos dispomos a rejeitar sem certas precauções. A primeira, intelectual e cultural, inventou o indivíduo e a autonomia da razão. A segunda, política, rejeitou as sociedades da ordem e fundou a legitimidade do poder, não com base

“Sob diversas formas, todas as civilizações situaram a economia em segundo plano, o que ainda acontece, hoje em dia, na maioria das culturas da Ásia e da África, para as quais a extensão de nosso modelo cultural, por meio de globalização, constitui um choque difícil de assimilar.” Pois bem, ei-nos agora num mundo novo, lentamente surgido do século XVII, no qual a nova lei em ascensão, a da economia, rejeitou qualquer distinção moral, qualquer relação com o religioso, emancipou-se do político, tratou a natureza não como um cosmos misterioso, mas como um material maleável, e reconheceu apenas três categorias para se reerguer sobre as ruínas desse desejo. Como pôde produzirse essa reviravolta radical de que somos herdeiros? Não compreenderemos a força inacreditável que se opõe, em nossas, sociedades, à consideração dos desafios ecológicos, éticos e espirituais, se não retrocedermos à reviravolta mental e social que levou nossas sociedades a fazer da produção de bens materiais, vendidos num mercado, o critério por excelência do valor e do sucesso. Precisamos compreender o âmago dos tempos modernos, se quisermos, no momento em que constatamos os estragos ecológicos e sociais, entrar na nova era que se

no direito divino, mas na vontade geral dos cidadãos. A terceira, tecnológica e científica, fez do Progresso e da História o novo sentido possível da vida pessoal e coletiva. Aí reconhecemos a Europa do Iluminismo, preparada pelo Renascimento, as revoluções britânica, norteamericana e francesa e a entrada na era industrial. E paradoxalmente , foram as revoluções políticas do século XVIII e as revoluções sociais dos séculos XIX e XX que prepararam o terreno em que depois veio a crescer a economia triunfal. Qual foi, com efeito, o grande argumento inventado pela revolução política, em particular a francesa, para desacreditar as sociedades da ordem? Foi o da improdutividade. Foi por serem economicamente parasitários que o clero e a nobreza viram-se desqualificados em termos sociais e políticos. E foi esse mesmo argumento que as revoluções sociais retomaram em seguida, só que dessa vez, contra a burguesia em benefício do proletariado. Observe-se

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também que a derrubada das monarquias instituídas pelo direito divino só foi possível porque o Iluminismo inventou o indivíduo, capaz de exercer sua razão crítica. Não haveria cidadania, não haveria Republica, no sentido moderno do termo, sem esses indivíduos reunidos, racionais, que fundaram o direito e construíram a “vontade geral”. É nessa perspectiva que podemos compreender a considerável inversão cultural atestada pelas definições de riqueza, utilidade e valor surgidas no século XIX em autores como Malthus, JeanBaptiste Say e Auguste, e Léon Walras, como sublinhou Dominique Méda numa notável pesquisa histórica sobre a origem contemporânea do conceito de riqueza, pesquisa esta a que o presente relatório é particularmente grato. Assim é que Malthus, que escreveu em 1820 seus Princípios de economia política, cujo capítulo inicial concerne à definição da riqueza, almejou fornecer uma definição desse termo que permitisse à ciência nascente da

autonomia, conferindo-lhe o status de ciência objetiva, baseada em comparações quantitativas. É por isso que encontramos em Malthus a maioria das grandes contradições que ainda hoje estão entre nós: - a que se refere à soma contábil de formas de produção diversas: “Do ponto de vista prático”, escreveu ele, “não poderemos abordar nenhuma discussão sobre o crescimento relativo da riqueza nas diferentes nações se não dispusermos de um meio qualquer, por mais imperfeito que seja, para avaliar a soma desse crescimento”. A partir daí, seria grande a tentação de adotar um padrão único – a moeda – e de abandonar qualquer tentativa de avaliação da natureza das riquezas em si; - a recusa em se considerar produtivo o trabalho doméstico: “Embora se admita que os serviços pessoais são um estímulo ativo para a produção de riqueza, jamais se poderá alegar que têm nela uma participação direta”. Caso contrário, dizia Malthus, “a pala-

O que o liberalismo econômico teve de assumir foi o preço dessa promoç sociedade” e de uma economia desvinculada do político e do ético. Esse p economia garantir sua autonomia em relação a outras disciplinas. Para isso, primeiro lhe foi preciso rejeitar as definições demasiadamente restritas, como a dos fisiocratas, para quem a única riqueza provinha da terra, porque Malthus fazia questão de integrar produtos ligados à emergência da indústria; contudo, ele também não queria uma definição ampla demais e qualitativa, não por razões em si, mas para evitar “introduzir muita confusão na ciência da economia política”. Vemo-nos, pois, na presença de uma convenção cujo objetivo duplo era valorizar algumas atividades mais do que outras (no caso, as formas de produção materiais e comerciais) e assegurar à economia os meios para afirmar sua

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vra [riqueza] deixaria de ter uma significação clara e útil”. Foi preciso esperarmos pelos trabalhos de Annie Fouquet e Ann Chadeu sobre a valorização do trabalho doméstico, no início da década de 1980, para que uma primeira tentativa enfim nos permitisse sair dessa contradição; - a tese da improdutividade dos serviços públicos, que não brilha por sua clareza: “Se um funcionário do governo faz exatamente o mesmo tipo de trabalho que o empregado do comerciante [...], ele deve ser considerado um trabalhador produtivo; e esse é um dos exemplos numerosos e freqüentes de trabalhadores que são sempre ou ocasionalmente produtivos e que pertencem à classe da sociedade cuja maioria pode ser justificada-


mente considerada improdutiva”. - por último, a tese que introduz um argumento “de trás para frente”, a fim de cortar pela raiz qualquer debate sobre a mudança do instrumento de medida transformando seus adversários, paradoxalmente, em pessoas obcecadas com a mensuração, incapazes de ver “outras fontes de felicidade que não as provenientes de objetos materiais”, os quais não poderiam, “sem um enorme abuso, ser incluídos na categoria dos objetos grosseiros de que se compõe a riqueza das nações”.

próprio para satisfazer as necessidades, os desejos do homem, tal como este é. Ora, sua vaidade e suas paixões às vezes fazem nascer nele necessidades tão imperiosas quanto a fome. Somente ele é o juiz da importância que as coisas, a seu ver, têm e da necessidade que sente delas. Nós só podemos avaliar isso pelo valor que ele lhe atribui.”

O segundo autor-chave, J-B. Say, introduziria, com a definição de utilidade, uma grande inovação cujas conseqüências ainda continuamos a vivenciar. Foi em seu Tratado de economia política que ele propôs chamar a utilidade de “faculdades que têm algumas coisas de poder satisfazer as diversas necessidades dos homens”. Say introduziu um vínculo fundamental entre três conceitos que temos a oportunidade de encontrar até nossa época contemporânea:

“O que está em jogo é a emancipação de toda filosofia moral [...] J.-B. Say percebe muito bem que, com essa concepção radical de utilidade [...] , ele dispensa qualquer juízo moral e se felicita por isso. É que essa dispensa exime a economia política da responsabilidade pelo julgamento ético, e com isso ele traça uma nítida linha demarcatória entre essa disciplina ainda nova [...] e a ciência do homem moral e do homem em sociedade”.

Assim, como observou Jean-Joseph Goux, a economia desligou-se não apenas da moral, mas de toda e qualquer referencia externa:

ção de um desejo desligado de qualquer norma, de um indivíduo “fora da preço foi, essencialmente, o abandono da busca do ‘bem comum’ (...)” a utilidade, o desejo, e o sacrifício, inseridos no bojo do processo de criação de um quarto elemento, tão decisivo quanto ainda misterioso: o valor. “Por que”, escreveu ele, “a utilidade de uma coisa faz com que ela tenha valor? É que sua utilidade torna-a desejável e leva os homens a fazer sacrifícios para possuí-la”. E, se alguém lhe respondia que existem coisas “que têm valor e não têm utilidade, como um anel no dedo e uma flor artificial”, Say retrucava: “Vocês não vislumbram a utilidade dessas coisas porque só chamam de útil aquilo que o é aos olhos da razão, ao passo que é preciso entender por essa palavra tudo aquilo que é

Por fim, devemos ter me mente o sobrenome Walras, de pai e filho, que levaria às mais radicais conseqüências lógicas essa redefinição econômica da utilidade. O primeiro, Auguste Walras, em De la nature de a richesse et de l’origine de la valeur [“A natureza da riqueza e da origem do valor”], resumiu bem a defasagem crescente entre ética e economia: “Há, portanto, entre a mora e a economia política a diferença de que a primeira só chama de úteis os objetos que satisfazem necessidade ratificadas pela razão, ao passo que a segunda atribui esse nome a todos os objetos que o homem possa desejar, seja em nome de sua preservação, seja como efeito de suas paixões

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e seus caprichos”. Como explicou Jean-Joseph Goux, “[...] a riqueza econômica ficou pronta para dar um novo salto. Não tardaria a abandonar, sem maiores escrúpulos, seu titulo de economia política, tornando-se economia pura [...] [e] servindo sua indiferença axiológica e seu movimento de abstração e desmoralização ao extremo de rejeitar como metafísica qualquer questão referente às razões e às desrazões do útil, bem como ao que determina de maneira mais profunda o valor ou seu desvalor atribuído às coisas” Léon Walras, o filho, célebre teórico da economia marginalista, sistematizou ainda mais essa evolução, em seus Elementos de economia política pura (1926): “Digo que as coisas são úteis a partir do momento em que podem servir para um uso qualquer e permitem a satisfação. Assim, não há por que nos ocuparmos aqui das mudanças pelas quais, na linguagem da conversa corrente, classificamos o útil ao lado do agradável, entre o necessário e supérfluo. Necessário, útil, agradável e supérfluo, tudo isso é, para nós, apenas mais ou menos útil [...] o fato de uma substância ser buscada por um médico para curar uma doença, ou por um assassino para envenenar uma família, é uma questão importantíssima para outros pontos de vista, mas totalmente indiferente para o nosso. Para nós, a substância é útil nos dois casos, e talvez, mais no segundo do que no primeiro.” ... do qual emergira nossa modernidade... foi essa reviravolta, portanto, que fez surgir um novo mundo em que a nova lei ascendente, a da economia, rejeita qualquer distinção moral, qualquer relação com o religioso, emancipa-se do político e só reconhece três categorias para se reerguer sobre as ruínas do mundo antigo: o indivíduo, o desejo e a razão calculista a serviço desse desejo. Esse nascimento foi acom-

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panhado por uma energia impressionante, tanto mental quanto mecânica, e sem dúvida não foi por acaso que foi nesse domínio energético que a Revolução Industrial – uma revolução do desejo técnico que partejou máquinas de alto rendimento energético – realizou suas maiores proezas. E foi essa mesma energia que tornamos a ver em ação quanto, depois da Segunda Guerra Mundial, tratou-se de reconstruir a Europa devastada e de fazê-la entrar inteiramente na segunda Revolução Industrial. Todavia, antes de abordar esse segundo grande momento histórico, que se acha na raiz de nossas representações atuais da riqueza, retornemos a duas grandes conseqüências dessa transformação radical. A primeira concerne, em essência, à tradição liberal. A segunda – e talvez isso pareça mais surpreendente – toca na tradição marxista. O que o liberalismo econômico teve de assumir foi o preço dessa promoção de um desejo desligado de qualquer norma, de um indivíduo “fora da sociedade” e de uma economia desvinculada do político e do ético. Esse preço foi, essencialmente, o abandono da busca do “bem comum”, transformando-se os vícios privados, pelo truque de prestidigitação da “mão invisível do mercado”, em virtudes públicas. Isso é bem resumido pelo exemplo da droga que, do ponto de vista econômico, tem o mesmo valor, quer sirva para curar, quer para envenenar; é que a economia, em sua busca de autonomia, rompe as pontes com o universo do valor, no sentido ético do termo. Nas sociedades em que o peso do religioso, do ético e do político continua a ser grande, esse amoralismo radical da economia moderna produz apenas efeitos limitados. Mas, quando a economia torna-se tão determinante que, para retomar o conceito de Polanyi, o que se instaura já não é apenas uma econômica de mercado, porém uma “sociedade de mercado” a tal ponto que o próprio político calca seus valores, suas refe-


rências e seus critérios de eficácia e eficiência nos do econômico, o equilíbrio do conjunto societário fica sob uma grave ameaça: passamos de um universo em que aquilo que realmente tem valor não tem preço para um outro universo, que vemos instalar-se diante de nossos olhos, no qual a-quilo que não tem preço não tem realmente valor. Seria de se supor que, diante dessa abordagem, poderia ter nascido uma visão alternativa. Mas isso não ocorreu porque o marxismo, nesse campo da representação da riqueza, veio a partilhar a mesma base cultural do liberalismo. Com efeito, as duas grandes ideologias dos séculos XIX e XX foram forjadas e harmonizadas, apesar da violência de seus conflitos sociais e políticos, com base na idéia de que o essencial, a infra-estrutura passou a residir na economia, que é fundadora, por meio do trabalho produtivo, de qualquer riqueza possível. Por conseguinte, encontramos nessas duas grandes tradições os mesmos pontos cegos – justamente aqueles que foram ratificados pelos sistemas de contabilidades nacionais nascidos depois da Segunda Guerra Mundial: - a irreflexão ecológica, em função da qual a natureza é tratada como puro fator de produção, sem que os bens abundantes e gratuitos que são o ar, a água, e a terra tenham algum valor em si; - a irreflexão ética, seja a do liberalismo, para o qual qualquer desejo tem o valor econômico, desde que possa custear-se, seja a do marxismo, para o qual não existe moral que transcenda a história; - a irreflexão política, na qual o Estado fica reduzido a ser a garantia do mercado, na versão liberal, ou o instrumento da dominação de classe, na versão marxista; por conseguinte, não há uma autonomia real do político que permita construir uma idéia verdadeira da democracia: reduzida a uma dimensão mínima no liberalismo, esta é denunciada como formal no marxismo. - A irreflexão antropológica, na qual o homo economicus é tido como um calculista racional do mercado ou da história; não há consideração séria, nessas duas grandes representações, da amplitude do fato passional e do continente subterrâneo que viria a ser revelado pela psicanálise. Quando a Europa, confrontada com suas ruínas, teve de inventar uma contabilidade que facilitasse sua reconstrução, é concebível que ela tenha pensado menos nesses pontos cegos econômicos, éticos e humanos: a tarefa prioritária era produzir bens agroalimentares e industriais de grande quantidade. E os sistemas nacionais de contabilidade serviriam para isso. 3. A contabilidade nacional e o fascínio da era industrial O conceito de crescimento econômico. Como assinalou Jean Gadrey, foi quando o Estado tomou as rédeas da política industrial e do planejamento (na França, depois da Segunda Guerra Mundial) que as idéias que acabamos de evocar transmudaram-se em instrumentos de medida, em instituições e em cifras lançadas no debate público como indicadores do progresso. Foi então que o conceito de crescimento

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econômico, que mede a variação positiva do PIB (produto interno bruto), tornou-se central e passou praticamente a se identificar com a idéia de progresso.

vidualização das soluções e soluções “sob medida”) quanto no tocante ao papel fundamental da inteligência humana, que transformou o arranjo clássico da era industrial.

Partamos da definição dada por esse autor ao crescimento econômico: “Trata-se do índice de progressão, de um período a outro, dos fluxos de bens produzidos e/ou consumidos num dado espaço institucional: empresa, setor, espaço nacional, regional etc”. Para funcionar bem, essa operação pressupõe que “as transformações da produção digam respeito essencialmente às unidades, que encontremos os mesmos padrões de produto ao longo dos sucessivos períodos e que existam convenções estáveis quanto ao que é importante conservar como tipos de produtos contabilizados”. Ela concerne aos fluxos, portanto, e, acima de tudo, independe da qualidade destes – dos bens produzidos ou consumidos.

Além disso, como observou Jean Gadrey, a pretensa economia do “bem estar” era, na realidade, uma economia do “muito possuir”, o que não deixa de ter conseqüências pesadas no plano cultural, o mesmo civilizador.

Esse tipo de instrumentos voltamos a assinalar, sempre se apresenta, portanto, como uma convenção erigida em função de objetivos: com os fisiocratas, era preciso valorizar a terra e a agricultura; como Malthus, Smith e Say (mas também com Ricardo e com Marx), tratava-se de valorizar a entrada na primeira Revolução Industrial; na Europa, após a segunda Revolução Industrial. Podemos compreender o caráter útil e parcialmente operacional dessas definições no contexto do período “fordista”, caracterizado pela produção e pelo consumo em massa, de base primordialmente material de bens fortemente padronizados, o que era beneficiado pelas economias de escala, pela mecanização da agricultura e pela automação industrial. Mas tudo se modificou com as conseqüências da transformação trazida pela informática, tanto no que concerne aos produtos em si (processos de “desmassificação”, variedade crescente, inovações que reduzem os ciclos de vida, indi-

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Outro termômetro a manejar com precaução: a produtividade. O problema duplicou-se com o outro indicador-fetiche de nosso modelo de crescimento – a produtividade, que mede o tempo humano gasto na fabricação de um produto. É compreensível que, no caso de uma produção material, esse indicador seja interessante: graças ao trator, o camponês gasta menos tempo lavrando seu campo; graças ao robô, o automóvel é constituído com mais rapidez e custa menos caro; graças ao computador, realizam-se cálculos complexos mais depressa etc. Em suma, a máquina, destinada a criar cada vez mais bens como menos trabalho humano, tem de ser incessantemente alimentada. Mas o que acontece se sairmos do universo dos bens para entrar no dos “laços”? Com efeito, só haverá solução para o problema do desemprego gerado pelos progressos da produtividade se forem criados novos empregos em setores em que o progresso da produtividade não expulse permanentemente o ser humano. Por algum tempo, supôs-se que eles seriam encontrados no conjunto do setor terciário, que, depois do êxodo rural, recuperaria as pessoas afetadas pelo “êxodo industrial”. Mas a revolução da informática começou a destruir milhões de empregos nos chamados serviços “pradonizáveis”: um distribuidor automático de ingressos pode substituir o gesto do vendedor no guichê, e setores econômicos inteiros, como os bancos e as empresas de seguros, vêm sendo afetados pelo subemprego.


O único setor não atingido, por sua própria natureza, é o dos serviços relacionais: quando a essência do serviço prestado reside na relação humana, substituir o ser humano por uma máquina torna-se um absurdo. Um professor pode utilizar o computador para melhorar sua pedagogia, mas não pode ser substituído pelo computador, pois aquilo de que necessitam seus alunos, acima de tudo, é estar em contato com um adulto que os ajude a crescer e aprender o ofício difícil e apaixonante de ser um ser humano, ofício central do qual todos os demais, na ordem dos saberes e das habilidades, não passam de declinações. Assim é que os principais pólos de desenvolvimento de nossas economias repousam agora em setores como a educação e a saúde, que exigem uma intervenção humana muito intensa, tanto em termos do tempo dedicado quanto da qualidade da relação. E, nesse campo, o conceito de produtividade torna-se nitidemente contraproducente. Tomemos o exemplo, como propõe Jean Gadrey, dos serviços de saúde. A abordagem em termos de produtividade pressuporia que medíssemos os fluxos de atos, de tratamentos médicos e cirúrgicos e de pacientes tratados. Vê-se com clareza que isso seria absurdo. Em matéria de saúde, o que importa não é o número de vezes que vamos ao médico, porém saber se ficamos curados. Ora, com a contabilidade atual, as políticas preventivas têm o efeito paradoxal de reduzir o crescimento. Portanto, dispomos de um instrumento forjado para favorecer um crescimento matéria, de natureza industrial ou agroalimentar, que se torna globalmente inadaptado e até, em grande parte, contraproducente, quando se trata de enfrentar três grandes desafios do futuro, que são a entrada na era da informática e da revolução do ser vivo, a importância dos desafios ecológicos, que se tornou vital, e o papel fundamental doravante desempenhado pelos serviços, em especial por serviços relacionais como a educação, a saúde e as atividades de proximidade em nosso desenvolvimento. Em suma, é hora de mudarmos os

termômetros! 4. a dupla face da moeda: comércio afável e guerra econômica É ainda mais conveniente nos debruçarmos sobre esses curiosos termômetros na medida em que sua graduação – as unidades monetárias – se modifica cotidianamente. Com efeito, sabemos que a primeira das funções da moeda é ser uma unidade contábil: quando se deseja ultrapassar a troca sob a forma de escambo, percebe-se que é útil adotar, no seio de uma coletividade, uma única unidade de cálculo e redigir todos os valores nessa unidade, a fim de facilitar o intercâmbio dos bens. Deparamos aí com a mesma necessidade que deu origem a outros sistemas de medida, para trocar tempo (horas, minutos, segundos) ou pesos (quilos, gramas, etc), ou que originou, no campo das distâncias, a escolha do sistema métrico, mais universal que os sistemas baseados na morfologia humana, como o pé e a polegada. Justamente: ser-nos-ia possível imaginar a confusão que seria introduzida por uma bolsa de quilos e metros que mudasse de valor todos os dias? A moeda como meio de troca e como padrão. Mas é isso que acontece com a moeda. Como unidade contábil, ela é, com efeito, um padrão que permite adicionar elementos heterogêneos, e é graças a ele que a troca pode multiplicar-se. Entretanto, uma verdadeira unidade contábil não pode ter valor em si, como cabeças de gato ou, durante um breve período histórico, metais preciosos como o ouro e a prata. Esse curto período da história da humanidade revelou-se decisivo na representação da moeda, uma vez que ainda hoje falamos em “prata”, embora o último vinculo matido por uma moeda (o dólar) com um metal precioso (o ouro) tenha sido cortado, em 1971, pelo presidente norte-americano da época Richard Nixon. Desde então, vivemos na era da moeda informatizada, simples sinal eletronicamente

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transmitido por depósito, cartão de crédito ou cheque. As cédulas monetárias que levaram tanto tempo para se impor, porque era difícil confiar num simples pedaço de papel, assim como as nossas moedas “sonantes”, já não representam senão uma pequeníssima parte (menos de 15%) da massa monetária em circulação. Podemos apos-tar que, se não houvesse uma economia do crime, de lavagem de di-nheiro e malas cheias de cédulas, essa massa seria ainda mais reduzida. O que equivale dizer que a moeda não é dinheiro e que, historicamente, nunca o foi.

tua-se ainda mais na medida em que a moeda é efetivamente declarada uma “reserva de valor”. Que entendemos por isso. Exatamente? Que o valor monetário atual será mantido, caso a troca seja adiada no tempo, em vês de se produzir de imediato. É esse mecanismo de reserva de valor que permite a poupança e o investimento, mas permite também a acumulação e a especulação. É compreensível que essa função de reserva de valor (a terceira, após a função de padrão e a de meio de troca) tenha desempenhado um papel cada vez mais decisivo com o advento do capitalismo. O problema é que, historicamente, o risco de a moeda se desvalorizar é muito mais fundamentado que o inverso. Os

“Longe de ficar do lado de um mercado regulado e pacífico, a moeda torna-s em que a falta de moeda, num dos pólos gera a miséria física (e, às vezes, psíq Isso não nos impede de falar em dinheiro, de continuar a acreditar (“com absoluta convicção”, será preciso dizer?) que a moeda tem valor em si, e de, inversamente, tirar o valor dos seres humanos e da natureza, os quais, no entanto, por sua troca transformadora, são as únicas fontes reais de valor. E nos traz à lembrança a história do rei Midas, que ansiava por ver tudo transformado em ouro. Atendido em seu anseio, ele foi condenado a morrer de fome e de sede, pois todo alimento e toda bebida que tocava, em conformidade com seu desejo, eram transformados num mineral. Nossas sociedades materialmente superdesenvolvidas, mas a caminho de um grave subdesenvolvimento ético e espiritual, fariam bem em meditar sobre essa lenda. É que, na ânsia de transformar tudo em moeda e acreditando que a moeda tem valor, enquanto a natureza e os seres humanos não o têm (ou têm muito pouco), elas caminham para um fim igualmente trágico. A moeda como reserva de valor. Essa confusão foi sobre a moeda como fonte de valor acen-

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príncipes, como sabemos, especializaram-se na arte de desvalorizar a moeda, a fim de pagar suas dívidas com mais facilidade. Por isso, para se ter a certeza de que a moeda preservaria seu valor no tempo, era preciso acrescentar um mecanismo que não apenas garantisse seu valor presente (uma espécie de prêmio seguro), mas até lhe desse um valor superior: e a chamada taxa de juros, que não se contenta em retribuir o serviço prestado (o empréstimo) mas elava, segundo a expressão consagrada, a que “o dinheiro trabalhe sozinho”. Aliás, é por causa dessa propriedade espantosa - a de criar a si mesmo no tempo - que o empréstimo a juros foi considerado, durante muito tempo, o primeiro dos pecados mortais, aquele que condenava o usurário à danação eterna, sem esperança de redenção. ;e que isso equivalia a atribuir ao dinheiro um poder sobre o tempo que só pertencia a Deus. Como mostrou soberbamente o historiador Jacques Le Goff, foi necessária a invenção do purgatório para que os usurários vissem seu futuro no Além menos negro e para que a negociação dos financiamentos da Igreja, aqui embaixo, se organizasse sob melhores auspícios.


de referência em que a moeda circula. Combinação das três funções. A acumulação dessas três funções, compreende-se, é cômoda, e até lucrativa para os que sabem jogar com elas, mas é fonte de incompreensão e injustiça para o que não dispõem do domínio sobre o instrumento monetário. É que essas três funções são parcialmente contraditórias. Por isso, o entesouramento (reserva de valor), que consiste em conservar moeda, opõe-se em parte à troca, que exige, ao contrário, uma circulação rápida; e a flutuação do valor da moeda cria, por sua vez, uma instabilidade que é incompatível com sua fincão de unidade contábil (padrão). Essa

Assim a apropriação (ou reapropriação) democrática da moeda é uma exigência da mesma natureza e da mesma importância que colocar em debate público nossas representações da riqueza. Na democracia, só há legitimidade para uma moeda quando ela se fundamenta na cidadania. O direito de emitir moeda, isto é, o direito de tiragem sobre a riqueza coletiva, pertence à coletividade democrática e a seus representantes. Assim como a valorização de algumas riquezas, e não de outras, resulta de escolhas, e não de uma espécie de estado de

se então vetor do desejo de onipotência e passa a estruturar relações sociais quica), enquanto seu excesso, no outro, gera (muitas vezes) a miséria moral.” incoerência constrói uma opacidade que transformou a moeda num instrumento de dominação, em benefício dos que controlam esses três níveis, porém em detrimento da maioria dos cidadãos, que não compreendem seus mecanismos. Tomemos o exemplo de uma pessoa que critique a moeda como objeto de especulação e a quem se retruque que ela quer voltar ao escambo. O argumento é inevitável a priori: como ninguém pode rejeitar seriamente a função de unidade contábil e a terceira função da moeda (reserva de valor e suas conseqüências) amalgama-se com a negação das duas primeiras. E é assim que se encerra um debate que deveria estar no âmago da deliberação democrática. Como efeito, a moeda relaciona-se não apenas como laço econômico, por meio do mercado, mas também com o laço político (é a autoridade política que garante, que a emite ou que autoriza sua emissão por terceiros) e até com o laço simbólico, como atestam as grandes fissuras presentes nas notas e sem lemas como “liberdade, igualdade, fraternidade”, que apontam para os valores fundadores da comunidade

natureza que nos baste constatar, as condições em que alguns atores têm reconhecido seu direito de criar moeda – um poder que não poderia ser mais considerável – não podem ser permanentemente mantidas na opacidade. A exigência democrática e a passagem para o euro. Essa exigência democrática é ainda mais necessária na medida em que a passagem para “o euro cotidiano”acarreta uma verdadeira transformação cultural a qual, para ter êxito, deve integrar essa dimensão simbólica e política da moeda européia, apoiando-a num espaço social e democrático. É que esse signo espantoso, que acumula três funções parcialmente contraditórias, é, antes de mais nada, uma linguagem, e, como todas as linguagens, pode ser a melhor e a pior das coisas. A melhor situa-a, evidentemente, na facilitação do intercâmbio e no processo de pacificação que lhe está ligado. A palavra “pagar” traz um vestígio disso, uma vez que Montesquieu desenvolveu sua teoria do “comércio afável”como alternativa à guerra. Ao mesmo tempo, entretanto, a moeda também é vetor da violência das relações sociais, como

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bem mostraram Michel Aglietta e André Orlean, em seu livro La violance de la monnaire [“A violência da moeda”]. Longe de ficar do lado de um mercado regulado e pacífico, a moeda torna-se então vetor do desejo de onipotência e passa a estruturar relações sociais em que a falta de moeda, num dos pólos gera a miséria física (e, às vezes, psíquica), enquanto seu excesso, no outro, gera (muitas vezes) a miséria moral. Essa ambivalência da moeda, vetor de paz ou de violência, manifesta-se também na abstração que ela traz em si. Por um lado, essa abstração permite sua universalização e facilita a troca a distancia no espaço (no caso das grandes moedas conversíveis) ou no tempo (por meio de poupança e do investimento). Mas essa moeda que permite a trocas a distância também acaba destruindo a troca na proximidade. De que serve poder comprar um produto fabricado a dez mil quilômetros de casa, se não podermos estabelecer trocas com o vizinho que vive na pobreza? De que adianta poder guardar dinheiro, para resgatá-lo vinte anos depois, se não podemos garantir a vida dos que nos são próximos no mês seguinte? É contra esse déficit de proximidade que se têm batido todos os novos movimentos de intercambio nascidos no curso dos últimos anos e que atestam um grande criatividade social. Quer se trate de redes de intercambio recíproco de saberes, dos SEL (sistemas de troca locais), dos LETS (local exchange trade systems, nos países anglófonos), das redes latino-americanas de “troca recíproca múltipla”, dos bancos de tempo italianos ou do sistema norte-americano do time dollar [“dólar por tempo”], a questão é sempre resgatar, sob diferentes modalidades, as funções pacificadoras da troca que as moedas oficiais acabaram ocultando. Ao proclamar, como diz uma formulação utilizada com freqüência nessas diversas redes de intercâmbio, que “o vínculo é superior ao bem”, trata-se também de reinserir o ser huma-

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no no coração desse intercambio, em que ele acabava desaparecendo em sua pura funcionalidade econômica de produtor ou consumidor. Avaliação democrática e desenvolvimento humano. O trabalho, como se constata, é considerável. Só poderemos tirar o melhor da transformação informacional que está em andamento, bem como da revolução do ser vivo que se inicia, se recolocarmos a economia e a moeda numa perspectiva mais ampla, em conjunção com os dois esquecidos da modernidade – a natureza e o próprio homem –, por meio da perspectiva da ecologia humana. Esse projeto requer, necessariamente, um aumento da qualidade democrática, pois é a democracia que permite incorporar preferências individuais de outra forma que não pela moeda, graças à deliberação popular e ao voto; é ela que preserva o que há de melhor no indivíduo, colocando- em relação com outros para deliberar sobre o bem comum, por meio da construção da cidadania; é ela que permite pensar numa educação do desejo da criança, para ajudá-la a crescer como um ser humano em nome de valores cívicos, ao mesmo tempo que se respeita sua liberdade em formação. A democracia, portanto, é o espaço por excelência em que se deve organizar a deliberação sobre os valores, a avaliação que a coletividade pretende promover, no intuito de favorecer um desenvolvimento que seja a um tempo sustentável e humano. Mas essa democracia constitui também, em muitos aspectos, um filão não cultivado da inteligência coletiva, largamente subutilizada, em particular no campo que nos ocupa aqui: o da deliberação sobre o valor das riquezas. Portanto, ela é também uma “democracia inacabada”, como sublinhou Pierre Rosanvallon – uma democracia a ser reinventada, que possa pôr em prática essa abordagem da avaliação democrática, alimentando-a a partir da perspectiva da ecologia humana e dos instrumentos da cidadania ativa. Nessa pesquisa, também precisaremos saber levar em conta outros


meios de escolha e de troca além da moeda. Por isso é que o tempo, juntamente com o voto, constitui um outro meio de optar por concretizar algumas virtualidades de vida, em vez de outras. Quanto à moeda em si, o desafio de sua apropriação democrática é utilizá-la plenamente em sua lógica pacificadora e reduzir sua parcela de violência. O projeto a ser construído ordena-se, portanto, em torno da instauração do novo programa a ser promovido, que é a avaliação democrática das atividades humanas, da qual a contabilização monetária é apenas um subconjunto. E essa própria avaliação se ordena, como meio, por uma finalidade, que é a de um desenvolvimento humano sustentável (ou duradouro). Quais poderiam ser seus agentes, e como definir as alianças e a estratégias deles? Essa é a pergunta que precisamos abordar agora• [Tradução: Vera Ribeiro]

Patrick Viveret: filósofo e conselheiro referendário do Tribunal de Contas e relator da Missão “Novos fatores de riqueza”, hoje situada na Delegação Interministerial para Inovação e a Economia Social do governo francês. Ele dirige o Centro Internacional Pierre Mendés France e é colaborador da revista Tranversarles Science-Culture

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‘March 28, 1941 ‘March 28, 1941 Dearest, I feel certain I am going mad again. I feel we Dearest, I feel certain I am going mad again. I And I shan’t recover this time. I begin to hear voices, a And I shan’t recover this time. I begin to hear the best thing to do. You have given me the greatest pos the best thing to do. You have given me the gre that anyone could be. I don’t think two people could h that anyone could be. I don’t think two people I can’t fight any longer. I know that I am spoiling you I can’t fight any longer. I know that I am spoi will I know. You see I can’t even write this properly. I will I know. You see I can’t even write this pr happiness of my life to you. You have been entirely pa happiness of my life to you. You have been ent that - everybody knows it. If anybody could have saved that - everybody knows it. If anybody could ha from me but the certainty of your goodness. I can’t go o from me but the certainty of your goodness. I I don’t think two people could have been happier than I don’t think two people could have been happ

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can’t go through another of those terrible times. I feel we can’t go through another of those terrible times. nd I can’t concentrate. So I am doing what seems voices, and I can’t concentrate. So I am doing what seems ssible happiness. You have been in every way all eatest possible happiness. You have been in every way all have been happier till this terrible disease came. e could have been happier till this terrible disease came. ur life, that without me you could work. And you iling your life, that without me you could work. And you I can’t read. What I want to say is I owe all the roperly. I can’t read. What I want to say is I owe all the tient with me and incredibly good. I want to say tirely patient with me and incredibly good. I want to say me it would have been you. Everything has gone ave saved me it would have been you. Everything has gone on spoiling your life any longer. can’t go on spoiling your life any longer. we have been. pier than we have been. V.’ V.’ última carta de Virginia Wolf, dirigida a seu marido

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5500k.org zineinca@gmail.com


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