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Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
2019 HISTÓRIA, ARTE E PATRIMÓNIO
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Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Lamego
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PORTO
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Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM | 2019 MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património
Disponível online em www.museudelamego.gov.pt
ATAS DAS 6AS CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM | 2019
FICHA TÉCNICA
ORGANIZAÇÃO Museu de Lamego [ML] | Direção Regional de Cultura do Norte [DRCN] Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» [CITCEM] | Faculdade de Letras da Universidade do Porto [FLUP] Santa Casa da Misericórdia de Lamego [SCML]
APOIOS Liga dos Amigos do Museu de Lamego Município de Lamego Casa de Santo António, Britiande ESTGL – Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Lamego
COORDENAÇÃO EDITORIAL Alexandra Falcão [ML | DRCN]
ABREVIATURAS CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» DCTP - Departamento de Ciências e Técnicas do Património DRCN - Direção Regional de Cultura do Norte ESEPPORTO - Escola Superior de Educação, Politécnico do Porto FLUP - Faculdade de Letras da Universidade do Porto FMD F. P. - Fundação Museu do Douro F. P. ML - Museu de Lamego SMCP - Santa Casa da Misericórdia do Porto UMinho/Lab2-PT - Universidade do Minho/Laboratório de Paisagens, Património e Território
AUTORES Adília Fernandes (CITCEM/FLUP) Carla Sofia Ferreira Queirós (ESEPPORTO | CITCEM) Carlos Mota (FMD F. P./CITCEM) Celso Francisco dos Santos (FLUP-DCTP) Francisco Ribeiro da Silva [FLUP | SCMP] Helena Lemos (ML) Hugo Barreira (FLUP-DCTP/CITCEM) Jorge Guerra Duarte (UMinho/Lab2-PT) Lígia Henriques (FMD F. P.) Maria Beatriz Correia de Albuquerque (Conservadora-restauradora) Maria Otília Pereira Lage (CITCEM/FLUP) DESIGN GRÁFICO Paula Pinto [ML | DRCN] IMAGEM DE CAPA “Visitação” [pormenor], Pedro Alexandrino, 1790, Inv. 45 © Museu de Lamego | Direção Regional de Cultura do Norte EDIÇÃO Museu de Lamego | Direção Regional de Cultura do Norte DATA DE EDIÇÃO janeiro 2021 e-ISBN 978-989-54774-0-1
O conteúdo dos textos, direitos de imagem e opção ortográfica são da responsabilidade dos autores.
MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património
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ÍNDICE
CONFERÊNCIA DE ABERTURA O préstimo social e o tesouro patrimonial das misericórdias portuguesas FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA
1.º PAINEL As obras da Misericórdia de Lamego nos 500 anos da sua existência CARLA SOFIA QUEIRÓS
O pintor António Leitão, uma possível parceria, e as obras da Misericórdia de Lamego na segunda metade do séc. XVI MARIA BEATRIZ CORREIA DE ALBUQUERQUE
A Capela da Misericórdia de Murça CELSO FRANCISCO DOS SANTOS e HUGO BARREIRA
O projeto de conservação-restauro da galeria de retratos da Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua CARLOS MOTA e LÍGIA HENRIQUES
2.º PAINEL Santa Casa da Misericórdia de Torre de Moncorvo Percursos pela História e dinâmicas de preservação do património ADÍLIA FERNANDES
Caminhos de Santiago. Pré-história das misericórdias? JORGE GUERRA DUARTE
Para a história da Irmandade da Misericórdia /(SCM) de Carrazeda de Ansiães: Da vocação beneficente assistencial e função hospitalar a outras valências (1929-2019) MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE
Santa Casa da Misericórdia de Lamego: Um arquivo, diversos percursos HELENA LEMOS
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conferência de abertura O PRÉSTIMO SOCIAL E O TESOURO PATRIMONIAL DAS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS Francisco Ribeiro da Silva
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PALAVRAS-CHAVE
Misericórdias, Acção social, Património artístico, Património cultural.
RESUMO A primeira Santa Casa da Misericórdia foi fundada em Lisboa em 1498. Daí, por recomendação e proteção régias, difundiram-se rapidamente, por todo o reino e pelos territórios da expansão portuguesa, com o mesmo programa, que era a prática das catorze obras de misericórdia, e sob a inspiração de uma espiritualidade comum, centrada na devoção a Nossa Senhora «Mater Omnium» e à Paixão de Jesus Cristo. Entretanto, cada Santa Casa seguiu o seu caminho autónomo e com especificidades identitárias próprias e únicas. Contudo, há duas facetas primordiais das Misericórdias que se podem dizer comuns e se impõem facilmente ao investigador. Uma é a dos serviços «sociais» prestados aos mais frágeis: proteção na doença, na pobreza (notória ou envergonhada), na velhice, aos presos sem meios, às donzelas sem dote, às viúvas desamparadas, aos órfãos, aos deficientes, aos cativos da Berbéria. A outra é o seu vasto, variado e valioso património artístico e cultural, que não foi adquirido por qualquer motivação colecionista, mas antes por razões de espiritualidade/devoção ou por doação de benfeitores. Uma e outra faceta ajudam a explicar por que é que, passados quinhentos anos, as Misericórdias continuam vivas e operantes no plano social e atrativas no que toca ao património.
KEYWORDS
Misericórdias, 'Social' services, Artistic heritage, Cultural heritage.
ABSTRACT The first Santa Casa da Misericórdia was founded in Lisbon in 1498. Hence, by royal recommendation and protection, they spread rapidly throughout the kingdom and the territories of Portuguese expansion with the same program, which was the practice of fourteen Works of Mercy, and inspiration of a common spirituality, centered on devotion to Our Lady "Mater Omnium" and the Passion of Jesus Christ. Nonetheless, each Santa Casa followed its autonomous way with its own unique identity and specificities. However, there are two primordial aspects of the Misericórdias that are common and easily imposed on the investigator. One is that of 'social' services provided to the weak: protection to sickness, poverty (visible or hidden), the elderly, the inmates without means, the damsels without dowry, helpless widows, orphans, the disabled, the captives from Barbary Coast. The other it is a vast, varied and valuable artistic and cultural heritage, which was not acquired by any collecting motive, but rather for reasons of spirituality/devotion or donation by benefactors. Both sides help to explain why, after five hundred years, the Misericórdias are still alive and socially active and attractive in terms of heritage.
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O PRÉSTIMO SOCIAL E O TESOURO PATRIMONIAL DAS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA FLUP | Santa Casa de Misericórdia do Porto
INTRODUÇÃO Criação e afirmação das Misericórdias
A primeira Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia foi fundada em agosto de 1498, em Lisboa, na Sé, mais precisamente na capela de Nossa Senhora da Piedade da Terra Solta, por «permissão, consentimento e mandado» da Senhora Rainha Dona Leonor, que ao tempo governava o Reino de [1] Portugal . Da capital o modelo da nova Confraria difundiu-se rapidamente por todo o reino e pelos territórios da expansão ultramarina (Norte de África, Africa Ocidental, India, China e América), numa cadência espácio-temporal impressionante: Entre 1498 e 1521, durante o reinado D. Manuel I, fundaram-se 77 Misericórdias. De 1522 até ao estabelecimento da monarquia dual em 1580, mais 132. Durante o período filipino criaram-se 104. Da Restauração de 1640 até 1750 foram 80. Entre 1750 e 1834 apenas 18. E mais 25 desde 1834 até à implantação da República, em 1910. Ou seja, 436 Santas Casas fundadas desde 1498 até à proclamação da República[2]. Tal difusão rápida e global foi favorecida e até impulsionada pela generosa proteção régia e contribuiu para conferir a sustentabilidade e alguma unidade da própria expansão portuguesa: Entre as instituições que foram características do império marítimo português e que
[1] SOUSA, Ivo Carneiro de - O Compromisso Primitivo das Misericórdias Portuguesas (1498-1500). In «Revista da Faculdade de Letras, História», Porto, pp, 259-306. [2] PAIVA, José Pedro - «O movimento fundacional das Misericórdias». In A Solidariedade nos Séculos: a Confraternidade e as Obras, Actas do I Congresso de História da SCMP. Porto, 2009, p. 405.
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ajudaram a manter unidas as suas diferentes colónias contavam-se o Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas, a mais importante das quais era a Santa Misericórdia. A Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, talvez com um ligeiro exagero, como os pilares gémeos da sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau. Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não podiam assegurar[3]. Importa enfatizar neste contexto que a Misericórdia de Macau comemorou em maio deste ano os 450 anos de existência, estando presentes no evento algumas Misericórdias portuguesas. Encontrando-nos em Lamego, faz sentido acrescentar que o impulso fundacional não foi tão forte no Alto Douro e em Trás-os-Montes. Mesmo assim, recordaremos que a fundação da Santa Casa que hoje nos acolhe remonta ao reinado do Rei Venturoso, mais exatamente a 1519. A de Freixo de Espada à Cinta já tinha vida em 1527. A de Vila Real funcionava em 1528. A de Mesão Frio terá sua origem em 1560. A da Torre de Moncorvo foi fundada no séc. XVI, em data desconhecida, mas existia em 1567 e [4] até já dispunha de paramentos dignos que, em ocasiões solenes, emprestava à igreja matriz . Para se entender o sucesso das Misericórdias é importante constatar que, por um lado, a proteção régia foi permanente, desde o ato fundador, que em muitos casos se deveu à recomendação da Corte e ao apoio à sua sustentabilidade, apoio concretizado na concessão de privilégios ou mesmo na outorga de bens, como foi o caso de três Hospitais à SCMP, em 1521. Por outro lado, desde o Compromisso Primitivo (como se pode ler no título «Propriedades»)[5], as Misericórdias foram autorizadas a aceitar propriedades, legados pios e doações de benfeitores, com os quais algumas acumularam património avultado que lhes permitiram dar execução ao Compromisso nas suas vertentes confraternal, social e espiritual. Embora tenham adotado o mesmo Compromisso (o da Misericórdia de Lisboa), as Santas Casas evoluíram de forma autónoma e diferente, mas mantiveram uma matriz comum, cujos traços são os seguintes: a) - Definição do mesmo objetivo, que era a prática das catorze obras de misericórdia, sete espirituais e sete corporais, segundo a visão tomista da pessoa humana, corpo e espírito. b) - Cultivo de uma espiritualidade centrada tanto na devoção a Nossa Senhora da Misericórdia, ou Nossa Senhora do Manto Largo, «Mater Omnium» (representada na bandeira de cada uma) como na Paixão de Cristo, celebrada anualmente com um evento forte e público que era a procissão de [3] BOXER, C.R. - O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1981, p. 263. [4] FERNANDES, Adília - «A génese da Santa Casa da Misericórdia da Torre de Moncorvo». In A intemporalidade da Misericórdia. As Santas Casas Portuguesas: espaços e tempos, coord. Maria Marta Lobo de Araújo. Braga, 2016, p. 154. [5] SOUSA, Ivo Carneiro de - O Compromisso Primitivo das Misericórdias Portuguesas … p. 304.
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Quinta-Feira Santa ou procissão das Endoenças, também chamada do Ecce Homo. c) - Partilha do mesmo tipo de organização administrativa, em que emergia a figura poderosa, prestigiada e modelar do Provedor, coadjuvado pelo Escrivão e pelos onze deputados que juntos, constituíam a Mesa Administrativa. Inicialmente foi determinado para todas o princípio do número fixo de irmãos, recrutados metade no grupo dos nobres, metade entre os oficiais (mesteirais). O número de cem Irmãos, todos homens, autorizado em 1498 para a Misericórdia de Lisboa, não foi igual para todas as que se foram criando. E não se manteve por muito tempo, antes foi crescendo à medida que as necessidades e os serviços prestados aumentavam. O princípio da exclusividade do género masculino manteve-se como regra até ao século XX, mas conhecem-se exceções temporãs, quer no que toca a admissão de irmãs, quer mesmo na eleição de uma Provedora (Condessa Dona Joana Forjaz, séc. XVII, Misericórdia de Santa Maria da Feira). Entretanto, embora mantendo a matriz comum, como foi dito, historicamente cada Santa Casa seguiu o seu caminho autonomamente e com especificidades identitárias próprias e únicas. A evolução geral mostrou a prevalência de duas facetas primordiais que foram partilhadas por todas. Essas facetas impõem-se facilmente ao investigador e ditarão o fio condutor desta comunicação: Uma é a dos serviços prestados aos mais frágeis e desvalidos, resultantes da conjugação e mistura ativa das chamadas obras corporais com as espirituais: proteção aos vivos em situação de fragilidade; aos doentes, aos pobres (notórios ou envergonhados), aos idosos, aos presos sem retaguarda familiar, às donzelas desprovidas de meios para o dote de casamento, às viúvas desamparadas, aos órfãos desprotegidos e aos deficientes, aos cativos na Berbéria, à reconciliação entre pessoas desavindas a que o Compromisso Primitivo chama de «amizades»[6]. E ainda a assistência aos finados, sobretudo aos Confrades e sua família, organizando e acompanhando o funeral e a sepultura e promovendo sufrágios repetidos pelas almas de todos, especialmente pelos benfeitores que, para tal, houvessem deixado fundos. A outra é a constatação da existência nas Misericórdias de um vasto, variado e valioso património artístico, histórico e cultural, que não foi adquirido por qualquer impulso colecionista, mas resultou das necessidades dos serviços a prestar, dos atos de devoção e de incremento da espiritualidade e do culto e ainda da devoção e doações dos beneméritos. Devo incluir no Património os Arquivos históricos que muitas Misericórdias souberam preservar, cuidar e tratar e que são, em geral, de grande utilidade para o conhecimento da instituição, das comunidades locais, da história nacional e até de transferência de bens entre continentes por elas mediadas.
[6] SOUSA, Ivo Carneiro de - O Compromisso Primitivo das Misericórdias Portuguesas… p. 306.
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Estes traços ajudam a explicar por que é que, decorridos mais de quinhentos anos, as Santas Casas da Misericórdia continuam vivas e crescem em quantidade, atingindo hoje o número de 388 em atividade no nosso país[7]. São operantes nos planos social, solidário, litúrgico e cultural e, em grande parte, mostram-se atrativas e dignas do apreço de todos pelo valor e qualidade do seu património artístico, histórico e cultural. Feita esta introdução, que genericamente resume toda a minha comunicação, pormenorizaremos um pouco mais.
I - A UTILIDADE SOCIAL DAS MISERICÓRDIAS Afirmamos acima que o programa das Misericórdias consistia e consiste essencialmente na prática de todas as 14 obras de misericórdia. Mas a documentação permite elencar e enfatizar algumas atividades de solidariedade confraternal que se revelaram mais comuns. Quais foram?
1 - A assistência hospitalar aos doentes, principalmente aos doentes pobres Este tema só por si daria para muitas conferências. Limitar-me-ei a sublinhar que, no tempo longo, o serviço hospitalar em favor dos desprotegidos foi a atividade mais visível, mais sensível e aquele que, de certo modo, imprimiu carácter às Misericórdias. Em muitas terras do país, durante séculos, falar da Santa Casa da Misericórdia era falar de tratamento de doentes pobres em ambiente hospitalar. Falar de Santas Casas da Misericórdia no Brasil é falar de Hospitais, alguns dos quais, como o de São Paulo, com uma capacidade enorme de assistência aos mais desfavorecidos. Não foi a Irmandade ou a Confraria da Misericórdia que inventou os hospitais, mas foram as Santas Casas quem, na época moderna, sobretudo embora não exclusivamente, os fundaram e os dirigiram. Importa recordar que, séculos atrás, nas grandes cidades, como Lisboa, e noutras mais pequenas, como o Porto, desde a baixa Idade Média, existiam pequenos hospitais, uns criados e dependentes das Corporações de Ofícios ou das Confrarias ou da própria administração municipal. Ora com D. João II e com D. Manuel a política foi de os juntar num único estabelecimento para dessa forma a assistência ser mais eficaz e mais abrangente. Em Lisboa tal esforço resultou na fundação do Hospital Real de Todos os Santos, conhecido por Hospital dos Pobres, cuja primeira pedra foi lançada por D. João II em 1492, mas que cuja construção só terminaria por volta de 1502. Em 1564 haveria de ser confiado à santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
[7] Maia, Lino - Misericórdias. In «Voz Portucalense», 29 maio 2019, p. 16.
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No Porto, tal esforço foi incentivado pelo Rei, mas, por razões várias, não teve êxito, sobretudo por resistência dos autóctones a cargas fiscais suplementares indesejáveis. Mas, tendo sido fundada a Misericórdia em 1499, logo em 1521 foram entregues à Santa Casa três pequenos hospitais (de Rocamador, de Santa Clara, de Cimo de Vila) que verdadeiramente eram mais hospícios e albergarias que hospitais. Por isso, entendemos que só depois do legado de D. Lopo de Almeida, em 1584, é que a Misericórdia do Porto conseguiu fundar um hospital verdadeiramente digno desse nome, a que se chamou precisamente Hospital de D. Lopo de Almeida, cujo primeiro regimento é datado de 1593 e que serviu o Porto e o seu termo e talvez o Norte por mais de dois séculos. A importância histórica que os hospitais e o tratamento de doentes tiveram na vida das Santas Casas portuguesas pode ser apreendida no quadro abaixo que compus a partir de dados oficiais respeitantes a 1903, numa altura em que, ainda em tempos de Monarquia, no governo de Hintze Ribeiro, se pensou, pela primeira vez, em criar uma espécie de serviço nacional de saúde, ou seja, um sistema de Assistência Pública tutelado pelo Estado, assente nas instituições de beneficência existentes no terreno, públicas e privadas, das quais as Irmandades da Misericórdia ocupavam lugar proeminente. Isto conseguir-se-ia, não pela incorporação no Estado dessas instituições privadas, mas antes pela sua colaboração obrigatória no programa de Assistência do Estado que aquele projeto de lei pretendia impor. A publicação precoce deste projeto em Diário do Governo provocou forte contestação das Misericórdias que, lideradas pela Misericórdia do Porto, conseguiram que o projeto não passasse disso mesmo[8]. Entretanto, anexo ao projeto foi publicado um estudo sobre o hipotético contributo dos hospitais das Misericórdias. A partir dessa publicação, concluímos que das 262 Misericórdias do Continente e Ilhas, 170 possuíam hospital.
[8] Para informações mais detalhadas ver SILVA, Francisco Ribeiro da - «O Estado Português e as Irmandades e Ordens Terceiras nas últimas décadas da monarquia liberal». In Para a História das Ordens e Congregações Religiosas em Portugal, na Europa e no Mundo, coord. José Eduardo Franco e Luís Machado de Abreu. Lisboa: Paulinas Editora, 2014, pp. 859-881.
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DISTRITO
SÓ MISERICÓRDIA
MISERICÓRDIA E HOSPITAL
TOTAL
Aveiro
2
3
5
Beja
5
12
17
Braga
1
8
9
Bragança
4
3
7
Castelo Branco
17
9
26
Coimbra
12
6
18
Évora
3
18
21
Faro
7
9
16
Guarda
6
6
12
Leiria
4
12
16
Lisboa
3
23
26
Portalegre
6
18
24
Porto
2
8
10
Santarém
4
13
17
VILA REAL
1
2
3
Viana do Castelo
2
9
11
VISEU
6
1
7
Angra
2
4
6
Horta
3
0
3
Funchal
2
2
4
Ponta Delgada
0
4
4
TOTAL
92
170
262
Tabela 1 1903 - Número de misericórdias por distrito constantes do anexo da proposta de lei de beneficência pública (55% do total das instituições).
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DISTRITO DE VILA REAL Misericórdias – 1 Misericórdia e Hospital – 2 (Chaves – M e H, Mesão Frio – M e H, Vila Real – M)
DISTRITO DE BRAGANÇA Misericórdia – 4 Misericórdia e Hospital – 3 Algozo – M Bragança – M e H Freixo – M e H Miranda do Douro – M Mirandela – M e H Vila Flor – M Vimioso – M
DISTRITO DE VISEU Misericórdias - 6 Misericórdia e Hospital - 1
(Carregal (Sernancelhe) – M Castendo (Penalva do Castelo) – M Lamego – M e H Mangualde – M Santar – M Santa Comba Dão – M Falta uma que não ficou completamente impressa – M
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2 - Assistência aos presos Na carta manuelina de fundação da Misericórdia do Porto (14.3.1499) dirigida ao Senado da Câmara, o rei lembra «especialmente os presos pobres e desemparados que nom tem quem lhes requeira seus feitos nem socorra a suas necessidades». Creio que desde a primeira hora, o auxílio aos encarcerados foi uma prioridade das Misericórdias, não só porque as cadeias eram antros e espeluncas sem o mínimo de condições para pessoas, mas também porque, sem proteção jurídica, o preso pobre corria o risco de lá permanecer por longo tempo. Os Compromissos antigos das Misericórdias (neste caso os de 1594 e 1646 da SCMP) contêm informações sobre o modo de atuação. Começava-se por elaborar o rol dos presos da Misericórdia. Nele se arrolavam os pobres, mas excluíam-se os presos por dívidas, fianças e degredos não cumpridos e também os que recusassem o auxílio da Santa Casa. Ninguém era obrigado a aceitar a ajuda da Misericórdia. Tal preocupação seria trivial no séc. XXI, mas não o era nos fins de Quatrocentos. Os socorros ministrados diziam respeito: - à alimentação: dois mordomos da cadeia proviam de pão e de carne duas vezes por semana os presos, tanto os sãos como os doentes; - à saúde: nas visitas aos presos, os mordomos cuidariam de saber se estavam bem assistidos de médico e cirurgião. E tratariam de lhes providenciar as mesinhas por estes prescritas. Acrescentarei que, em 1804, quando a Misericórdia do Porto contratou a primeira equipa de cirurgiões para o Hospital de Santo António, designou um deles para o serviço exclusivo da enfermaria dos presos da Relação. Havia na Cadeia uma enfermaria dos presos da Misericórdia. - à religião: cuidariam de que lhes fossem administrados os sacramentos; - à assistência jurídica: sabemos que, pelo menos a partir do séc. XVIII, a SCMP contratava juristas para defenderem os presos do rol. Supomos que assim já acontecia no século anterior. Em termos gerais deviam os mordomos velar para que as causas dos presos do rol fossem despachadas com brevidade. E, se fosse caso disso, promoveriam diligências para obter o perdão das partes ofendidas, para dessa forma obter a libertação mais célere dos presos.
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3 - A remissão de cativos[9] A existência de cativos cristãos nas cidades de Argel, Tetuão, Salé, Tunes e outras do Norte de África era um problema e uma ameaça grave para os países europeus, que vinha dos fins da Idade Média e que perdurou até finais do séc. XVIII ou inícios do XIX. Essa matéria interessou-me há anos atrás[10]. Ultimamente voltei a pegar nessa temática e verifiquei que ao longo de todo o séc. XVII a zona do Porto, como certamente todo o litoral lusitano, sofreu arremetidas constantes dos piratas berberescos que aprisionavam pescadores, marinheiros e até homens que trabalhavam nos campos em zonas perto do mar, jovens e adultos. O problema do aprisionamento de gente por esses predadores deve ser entendido no contexto dos medos de que padeceu o ocidente europeu na época moderna, de que fala Jean Delumeau no [11] seu livro La Peur en Occident , onde incidiu mais sobre a peste. O mar era simultaneamente um desafio positivo à coragem dos navegadores, mas também uma causa de medo das populações, porque, além das tempestades, também trazia o predador traiçoeiro e manhoso. Não foram as Misericórdias que iniciaram a libertação de cativos nem provavelmente foram as instituições que, nos séculos XVI-XVIII, mais contribuíram para a libertação dos que tiveram a má sorte de serem apanhados pelos corsários muçulmanos. O Estado desde D. Afonso V e D. Sebastião organizara meios importantes de socorro e as próprias Câmaras municipais não se alhearam do processo. Não era apenas a eventual perda de pessoas em pleno vigor físico. Receava-se muito a sua apostasia e a conversão ao islamismo. Por isso, desde a primeira hora, as Misericórdias assumiram como uma obrigação prioritária essa tarefa, como se comprova da antiga formulação da primeira das obras de misericórdia corporais que era assim enunciada: «remir cativos e visitar presos». E se todas ou quase todas juntaram fundos para a remissão de cativos, as Santas Casas do litoral terão sentido mais essa obrigação, por razões óbvias. A Misericórdia de Aveiro, por exemplo, representava cativos nas figurações da sua bandeira. E nos retábulos das Igrejas das Misericórdias de Silves e de Faro representou-se a obra de misericórdia «remir os cativos». A Santa Casa da Misericórdia do Porto na centúria de Seiscentos viu-se confrontada quase todos os anos com pedidos de esmolas por parte de mães e esposas que suplicavam pelos filhos e pelos [9] Sobre o tema há alguma informação. Ver, sobretudo, os trabalhos académicos de ALBERTO, Edite Maria da Conceição Martins - As instituições de resgate de cativos em Portugal - sua estruturação e evolução no século XV. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1994 (dissertação de mestrado). E Um negócio piedoso: o resgate de cativos em Portugal na época moderna. Braga: Universidade do Minho, 2010 (dissertação de doutoramento). [10] Ver de SILVA, Francisco Ribeiro da - Pirataria e Corso sobre o Porto. Aspectos seiscentistas in «Revista de História», vol. II. Porto: Centro de História da UP, 1979 e O Corso inglês e as populações do litoral lusitano (1580-1640). In Actas do Colóquio Santos Graça de Etnografia Marítima. Póvoa de Varzim, 1985. [11] DELUMEAU, Jean - La Peur en Occident (XIV.e- XVIII.e siècles). Paris: Fayard, 1978.
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maridos. Uma vez levados para os «depósitos» nas cidades berberescas acima referidas, aí eram escravizados e transacionados por um preço determinado pelo predador. Muitas famílias viram-se obrigadas a vender o que tinham para resgatar os seus e para obstar a que abjurassem da fé católica. Quando os bens próprios não chegavam, a solução era mendigar auxílio junto da Coroa, dos cofres concelhios e obviamente da Misericórdia que dispunha sempre de algum dinheiro procedente de legados pios deixados expressamente para esse efeito. Os resgatados pela Misericórdia do Porto eram oriundos da cidade intra-muros, mas também dos arrabaldes (Miragaia, de Massarelos, de Monchique, de Vila Nova, de São João da Foz, de Matosinhos, de Leça de Matosinhos, de Azurara) mas também há casos documentados de Arrifana de Sousa, de Fonte Arcada e do Condado da Feira. [12]
Edite Martins Alberto na sua dissertação de doutoramento chama «negócio piedoso» a esta complexa atividade que, para além dos organismos da Coroa e das entidades que davam esmolas, envolvia fiadores, capitães de fronteira, frades da Santíssima Trindade, frades Mercedários e outros agentes num sistema organizado. Devemos acrescentar que a remissão de cativos não foi apanágio apenas das Misericórdias de Portugal continental. Também a Santa Casa da Misericórdia de Goa desenvolveu intensa atividade de libertação de cativos na sua zona de ação[13].
4 - Criação de crianças abandonadas A criação dos enjeitados ou expostos era uma tarefa que tradicionalmente cabia às Câmaras Municipais. Mas as Misericórdias não se alheavam desse serviço quando a necessidade o sugeria. E, já no século XVII, as chamadas Rodas, embora apoiadas financeiramente pelas Câmara Municipais, em muitos casos eram serviço prestado pelas Misericórdias. Sendo assunto muito conhecido, não me demorarei nele.
5 - Auxílio aos pobres envergonhados A categoria de pobres envergonhados era bem caracterizada nos Compromissos. Ou seja, incluíam-se na categoria pessoas que não tivessem nada de seu e que não andassem mendigando nem nas ruas da cidade nem pelas casas particulares. As esmolas que lhes eram fornecidas pela Misericórdia consistiam em dinheiro, mas também em vestuário e roupa de cama.
[12] Um negócio piedoso: o resgate de cativos em Portugal na época moderna. Braga: Universidade do Minho, 2010 (dissertação de doutoramento). [13] SÁ, Isabel dos Guimarães - Quando o Rico se faz Pobre: Misericórdias, Caridade e Poder no Império Português, 1500-1800. Lisboa: CNCDP, 1997, p. 107.
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Nos inícios a Misericórdia do Porto nomeava seis mordomos dos envergonhados que, aos pares, visitavam entrevados, envergonhados e doentes, cada par na sua zona da cidade e em Vila Nova. Aos mordomos pedia-se que colhessem informação acerca dos protegidos, junto dos párocos, dos confessores e até dos vizinhos. Todos os socorridos eram registados em livro apropriado. Curiosamente (note-se a delicadeza e a discrição) manda-se aos mordomos que nas suas visitas de caridade não utilizem o cavalo, antes fossem a pé. O uso do cavalo era ostentação desproporcionada. E providenciariam assistência médica ou do cirurgião bem como da administração das mesinhas prescritas.
6- Dotação de órfãs Todas ou quase todas as antigas Misericórdias dispuseram de legados e fundos para dotação de órfãs casadoiras. Aliás, era relativamente frequente em Portugal que os benfeitores abonados e de mais apurada sensibilidade social pensassem nas órfãs pobres que, privadas de dote, dificilmente conseguiam constituir família e contribuir para o crescimento demográfico. Um dos exemplos foi o [14] do cardeal D. Henrique que no seu testamento contemplou duzentas órfãs de todo o Reino . Ou o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (1551-1564) que, sendo arcediago de Oliveira, na Sé do Porto, dotou órfãs do Porto através da Misericórdia e também foi benfeitor da Misericórdia desta cidade de Lamego que lhe mandou pintar o retrato. As órfãs contempladas nos legados eram donzelas tanto de ascendência nobre como plebeia. Mas não ficavam excluídas as viúvas pobres e honestas com menos de 30 anos. Em Viseu, eram eliminadas as candidatas com idade inferior a 14 anos e superior a 30[15]. A preocupação pela dotação de meninas órfãs não se verificou apenas nos benfeitores das Misericórdias de Portugal continental e insular, mas também se estendeu às terras da expansão ultramarina. Numa dissertação de doutoramento defendida na FLUP em 2007[16] ficou amplamente demonstrado quanto na Misericórdia de Macau os beneméritos atribuíram dotes para o casamento de donzelas órfãs, principalmente órfãs de portugueses, mas não só. Como esses legados tinham geralmente origem em doações com capital fixo que era colocado a juros, todos os anos as Misericórdias podiam beneficiar um número razoável de órfãs com base no
[14] BASTO, Artur de Magalhães - História da Santa Casa da Misericórdia do Porto. 2ª edição, Porto: SCMP, 1997, vol. I, pp.448449. [15] MAGALHÂES, Vera - «Sob letra de forma: a Misericórdia de Viseu à luz do Compromisso de 1626» in A intemporalidade da Misericórdia. As Santas Casas Portuguesas: espaços e tempos, coord. Maria Marta Lobo de Araújo. Braga, 2016, p. 136. [16] SEABRA, Leonor Dias de - A Misericórdia de Macau (séculos XVI a XIX) Irmandade, Poder e Caridade na Idade do Comércio. Universidade de Macau/Universidade do Porto, 2011, cap. IV.
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rendimento do capital. O que significa que muitas jovens puderam casar em boas condições e que muitas famílias foram constituídas com o apoio, discreto mas eficaz, da solidariedade fraternal.
7 - O ensino de primeiras letras/ensino profissional O ensino como meio para a promoção humana e social apareceu muito cedo nas preocupações das Misericórdias. Alguns dos moços admitidos ao serviço das Santas Casas, nomeadamente os ajudantes na sacristia e no culto, serviam de manhã e de tarde eram mandados à escola. Em favor de outros contratava-se um mestre para lhes ensinar um ofício, por exemplo, o ofício de ourives, num caso da Misericórdia do Porto. A um tal Mateus, aleijado de ambas as pernas, foi oferecida a aprendizagem do ofício de alfaiate com o mestre Gonçalo Fernandes que, em 1582, o aceitou por amor de Deus e mediante a paga de 20 reis semanais e duas boroas. Os casos de deficientes mandados aprender ofícios são recorrentes. A Misericórdia dava de comer ao protegido e oferecia ainda uma quantia em dinheiro ao mestre. O contrato de aprendizagem era de 2 ou 3 anos, [17] ao fim dos quais o novo «oficial» era livre de ir para onde quisesse . A este propósito merece uma referência, ainda que breve, a iniciativa inovadora da SCMP de muito precocemente, a partir de 1893, receber e ensinar crianças surdas em estabelecimento, o [18] Instituto Araújo Porto, que funcionou durante muitas décadas com grande utilidade social . Da mesma forma, seria omissão incompreensível não mencionar aqui o Instituto de Cegos S. Manuel fundado em 1899 e que ainda hoje subsiste através do Centro Professor Albuquerque e Castro que produz livros em braille[19].
8 - Acompanhamento dos que padeciam pena de morte O acompanhamento dos condenados à morte, já o dissemos, fazia parte das obrigações prioritárias assumidas pelas Misericórdias. A Misericórdia do Porto começou a cumprir desde muito cedo esse ritual piedoso de acompanhamento dos condenados ao cadafalso. Vimos recentemente [20] confirmada essa atividade num documento até agora desconhecido, datado de 1520 , 21 anos depois da fundação da Santa Casa. Trata-se precisamente de um acordo entre a Misericórdia e a [17] SILVA, Francisco Ribeiro da - «A Misericórdia do Porto na centúria de Quinhentos». In A Santa Casa da Misericórdia do Porto e o voluntariado em saúde. Porto: Santa Casa da Misericórdia, 2002, p. 40. [18] RIBEIRO, Maximina Maria Girão da Cunha - Resgatados do Silêncio. Surdez e Pedagogia. O Instituto Araújo Porto (18931945). Porto: SCMP/Almedina, 2018. [19] SILVA, Francisco Ribeiro da - A Misericórdia do Porto. O Empreendedorismo da Caridade e a produção de obras de arte. Porto: SCMP, 2015. [20] Este documento de 4 folios foi encontrado num códice improvável dedicado ao resgate de cativos. Ver Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Resgate de Cativos 1620 – 1668 – Banco 5º, n.º 8º, secção H (cota 2022), n.n.
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Coraria da Sé no qual, corrigindo situação anterior, se estipulavam os honorários a pagar à Coraria da Sé pela SCMP em dois tipos de acompanhamento processional: o acompanhamento ritual dos funerais de irmãos, ricos e pobres, e o acompanhamento orante dos condenados à morte. Nesse remoto ano de 1520 a SCMP não dispunha ainda do corpo de capelães privativo que a imensa atividade cultual e de sufrágio obrigou a criar no ainda no decorrer do séc. XVI. As normas de acompanhamento segundo o Compromisso de 1594 seriam assim: Quando alguma pessoa houvesse de padecer por justiça, acompanhá-lo-ão os dois irmãos mordomos dos presos e os dois irmãos que com eles servem naquela semana com as varas nos enterramentos. Irão todos os capelães da Casa em procissão e o crucifixo no couce dela levado por um capelão com quatro homens vestidos de hábito preto. A bandeira será levada por um irmão de hábito preto e mais dois de igual veste com dois tocheiros acesos. Os tocheiros e os que forem com a bandeira levarão os rostos cobertos. Os mordomos dos presos levarão as consolações que lhes parecerem suficientes para esforçarem os padecentes e levarão caldeira com água benta e hissope. Nesta ordem irão até à porta da cadeia e esperarão até a justiça tirar o padecente, que virá vestido com uma veste branca de linho que o mordomo da Casa lhe mandará. Ao sair da cadeia o padecente beijará o crucifixo, os capelães cantarão as ladaínhas e de seguida começará o cortejo. Passando em frente a alguma igreja, todos se porão de joelhos e dirão em alta voz: «Senhor Deus de Misericórdia!». O portador do crucifixo dá-lo-á a beijar ao padecente. Na capela de Nossa Senhora da Porta da Ribeira haveria um padre para dizer missa para nela o condenado ver a Deus e lhe pedir perdão pelos seus pecados. Depois caminhariam todos até ao lugar onde o sentenciado houvesse de padecer[21].
9 - Práticas creditícias Poderíamos falar de outras atividades das Santas Casas que só indiretamente têm a ver com a prática das obras de misericórdia, como seja a atividade creditícia e a aplicação de dinheiros a juros. [22] Em alguns casos, como o da Misericórdia de Pombal , essa foi uma forma de rentabilização dos legados recebidos, chegando a ser uma das principais, ou mesmo a principal fonte de receitas, a partir do séc. XVIII, para o cumprimento das tarefas sociais e solidárias. O caso de Pombal não é único. Porto, Guimarães, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Setúbal constituem outros exemplos
[21] FREITAS, Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas - História da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Porto: SCMP, 1995, III vol., pp. 163-164. [22] OLIVEIRA, Ricardo Pessa de - História da Santa Casa da Misericórdia de Pombal (1628-1910). Pombal, 2016, p. 133 e ss. 009, pp. 25-40.
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comprovados de atividade creditícia[23].
II - O TESOURO PATRIMONIAL DAS MISERICÓRDIAS 1 - O Património artístico, cultural e cultual das Santas Casas Um dos traços marcantes das mentalidades em Portugal, na Europa e um pouco por todo o mundo, nos inícios do século XXI é o modo como se olha para o património cultural. Hoje em dia o património cultural é justamente apreciado, valorizado, defendido e divulgado tanto ao nível local e nacional como até global. Não é alheio a tal mudança positiva o papel desempenhado pela UNESCO. Ora as Misericórdias, sendo detentoras de um valiosíssimo património material, mas também imaterial, não se podem dissociar desta onda valorativa. Lembremos uma vez mais que estamos a falar de instituições que contam quatro/cinco séculos de ininterrupta atividade. No entanto, convém esclarecer que, se as Misericórdias criaram e acumularam apreciável património, tanto arquitetónico, escultural e pictórico como têxtil e de azulejaria, e ainda documental e arquivístico, tal não se deve a impulsos ou a lógicas colecionistas, mas sim ao cumprimento dos altos valores de solidariedade e caridade que desde a primeira hora foram seu objetivo, seu timbre e sua identidade. A observância estrita desses valores foi incentivada pela palavra, falada e escrita, mas também por figurações plásticas. A obrigação da prática efetiva das obras de misericórdia era lembrada aos irmãos, não só através da letra do Compromisso, mas também pela representação pictórica em quadros, vitrais e azulejos das diversas obras de misericórdia, talvez mais as corporais que as espirituais. Convém esclarecer, no entanto, que a representação figurativa das obras de Misericórdia na Europa remonta aos séculos XIII e XIV podendo apontar-se vários exemplos já na Itália de Trezentos, normalmente em conexão com o tema do juízo final[24]. Em Portugal conhecem-se representações desde o séc. XVI, todas no contexto das Misericórdias. Em Lamego, segundo Vergílio Correia, a Igreja da Misericórdia possuía em 1565 uma predela (sequência de imagens na parte inferior do retábulo) onde eram representadas as ditas obras de
[23] Ver a nota n.º 399, na página 133 da obra citada na nota anterior. Ver ainda CARDOSO, António Barros «A Santa casa e o financiamento ao vinho do Porto (século XVIII)». In Actas do II Congresso de História da Santa casa da Misericórdia do Porto. Porto: SCMP, 2012, pp. 391-414. OLIVEIRA, Aurélio de - «As Misericórdias e o trato com o dinheiro (Dinheiros da Misericórdia do Porto em Galiza e Castela)». In Actas do I Congresso de História da Santa casa da Misericórdia do Porto. Porto: SCMP, 2009, pp. 25-40. [24] Ver o texto on line repositorio.ul.pt/bistream… (Não conseguimos identificar o autor).
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Misericórdia em retábulo de António Leitão. Infelizmente com o tempo acabaram por desaparecer[25]. Em compensação deve referir-se o exemplo Setecentista do cadeiral do coro alto da Sé desta Diocese de Lamego onde estão representadas em tela todas as obras de misericórdia. Durante o séc. XVII prosseguiu a representação das obras de misericórdia, mas deu-se preferência clara à representação de Nossa Senhora da Misericórdia, como diremos abaixo. No séc. XVIII foi através da azulejaria que a representação figurativa das obras de misericórdia ganhou novo impulso nas Santas Casas. Por outro lado, o exercício da caridade foi enquadrado numa espiritualidade muito específica. A Senhora da Misericórdia e Jesus Cristo padecente e crucificado são os polos à volta dos quais se desenvolve essa espiritualidade típica das Irmandades da Misericórdia, porventura herdada dos traços da chamada Devotio Moderna, patente no livro da Imitação de Cristo de Thomas a Kempis. Por isso, todas as Santas Casas, desde as mais ricas às menos poderosas, possuíram figurações pictóricas e escultóricas dos passos da Paixão, da Virgem da Piedade, da Senhora do Manto Largo ou Mater Omnium. A Misericórdia de Lamego possui por exemplo, duas Visitações, uma Quinhentista de António Leitão e outra Setecentista de Pedro Alexandrino de Carvalho, ambas expostas recentemente no Museu de Lamego. Ou a Flagelação de Cristo e Cristo atado à coluna, atribuídas a Luísa dos Reis. Permitam-me que recorde aqui a célebre pintura «Fons Vitae», pertencente ao MMIPO, que é uma das mais famosas e impressionantes representações do sacrifício do Calvário, e que comprova que a contemplação e a meditação do mistério da Paixão fazia parte do modo de vivência da Semana Santa pelos Irmãos das Irmandades da Misericórdia. Os Ecce-Homo (a Misericórdia de Lamego possui um Ecce Homo do séc. XVI, em madeira policromada) e as Senhoras da Piedade multiplicaram-se. A procissão de Endoenças em quinta-feira santa era obrigatória, sendo precedida pela bandeira e animada pela exibição pública das cenas da Paixão em pinturas que estimulavam e apelavam ao arrependimento e à penitência. Muitas Misericórdias conservam essas belas representações. De enfatizar ainda que, anualmente, no segundo dia de julho, festa da Visitação de Nossa Senhora a sua prima Santa Isabel, tinham lugar as eleições para os corpos gerentes, precedidas e preparadas pela missa e pela invocação do divino Espírito Santo. Não admira que encontremos belas obras de arte onde esses temas se repetem.
[25] CORREIA, Vergílio - Artistas de Lamego. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1923, p. 27 (citado na obra referida na nota anterior).
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2 - Património arquitetónico e litúrgico Por outro lado, uma vez criada a Confraria, a prática das obras de misericórdia exigiu a construção de equipamentos monumentais como também a utilização de inúmeros objetos e artefactos sagrados ou sacralizados. Logo que conseguiram receitas suficientes, as Santas Casas edificaram a sua igreja privativa para cujos trabalhos, por regra, convidaram os artistas mais famosos, que não eram baratos. Mas para Deus só o melhor servia. Esses templos magníficos, muitos deles classificados pelo Estado, ainda hoje marcam artisticamente a paisagem monumental de Portugal, não apenas pelas linhas arquitetónicas das fachadas e das torres, mas também pela beleza das esculturas, pelo esplendor da talha dos altares e dos retábulos, das telas e painéis e da vistosa e colorida azulejaria. Lembraremos algumas igrejas que conhecemos melhor, como a da Misericórdia do Porto, de fachada singular desenhada por Nasoni, a manuelina de Nossa Senhora da Conceição Velha, de Lisboa, as renascentistas das Misericórdias de Braga e de Beja, a barroca da Misericórdia de Viseu. E quantas mais? Entretanto, as igrejas das Misericórdias foram apetrechadas com tudo o que era necessário para o culto divino que, incomparavelmente mais que hoje em dia, fazia parte do quotidiano das Santas Casas. Os sufrágios pelos benfeitores finados só por si preenchiam cabalmente a capacidade litúrgica dos templos. O culto exigia paramentos múltiplos de diversas cores, de acordo com a época do ano litúrgico, em geral confecionados de panos finos e preciosos e obrigava à encomenda de alfaias, quantas delas de prata e por vezes ouro, fabricadas por ourives credenciados, utilizava missais, livros de horas canónicas e rituais, de páginas douradas e luxuosamente encadernados e forrados. Disto se compõe o imenso património artístico das Misericórdias. Por conseguinte, a encomenda ou a aquisição de obras de arte pelas Misericórdias resultou das necessidades do culto, do propósito de estimular a piedade dos irmãos e a prática da misericórdia. Foi bom que se tivesse percebido que a contemplação da beleza figurativa ajudava a aproximar de Deus, suma Beleza e fonte da Misericórdia. E que, em consequência, a encomenda se dirigisse preferencialmente aos artistas mais habilitados. Quando os recursos materiais escasseavam, felizmente com frequência aparecia o benfeitor a oferecer o objeto sagrado, o quadro ou a alfaia. O benfeitor é, pois, indissociável do património das Santas Casas. Não apenas do património móvel. Não apenas de objetos sacros. E foi com o dinheiro dos legados que as Misericórdias ergueram hospitais que, tal como os templos, marcaram e marcam a paisagem urbana das cidades e vilas de Portugal. Se só excecionalmente se ergueram edifícios com a grandiosidade e a marca arquitetónica do Hospital de Santo António, no Porto, quase todos correspondiam às necessidades e à importância da terra respetiva. Segundo inventário da União das Misericórdias Portuguesas, atualmente existem no país
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cerca de 1100 imóveis de interesse histórico e arquitetónico[26]. Acresce que o impulso de edificação de hospitais por parte das Santas Casas não se esgotou nos séculos passados. Hoje continuam a surgir. E não apenas hospitais. Também Creches, Lares para os idosos, Centros Sociais e outros equipamentos para a instrução, para a sociabilidade e para o apoio ao próximo. As Misericórdias são gratas aos benfeitores e, por isso, foi hábito que os edifícios adotassem o nome dos beneméritos. E não só. A partir do séc. XVIII divulgou-se o costume de se perpetuar a memória dos beneméritos através da encomenda e exposição dos seus retratos. Só a Misericórdia do Porto possui mais de 400! Quantos retratos espalhados pelas Misericórdias do país inteiro! Se é verdade que alguns deles foram executados por pintores menos talentosos, a verdade é que muitos dos grandes pintores nacionais estão presentes nessas coleções. Tive oportunidade de ver na exposição do Museu de Lamego os retratos de vários benfeitores e benfeitoras: José Isidoro Guedes (1.º visconde de Valmor), Dona Clarisse Oliveira, 2.ª Viscondessa de Valmor, D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego e Dona Mariana Josefa Leonor de Sampaio. Refira-se também o caso de artistas patrocinados pelas Misericórdias. É conhecido o caso de António Carneiro, verdadeiramente «filho» da Misericórdia do Porto, mas outros haverá, maiormente nos nossos dias.
3 - A musealização do património das Misericórdias Desde há muito as Misericórdias deram-se conta de que o seu magnífico e numeroso espólio artístico deveria ser exposto em espaços próprios para fruição e progresso cultural das suas comunidades e também dos visitantes externos. Nos nossos dias, aproveitando a consciência social da valia do património acumulado, muitas criaram museus ou salas de exposição das suas peças mais representativas. Estatísticas que amavelmente nos foram fornecidas pela União das Misericórdias Portuguesas há dois ou três anos atrás, indicavam que 36 Misericórdias possuem museu e mais 14 tinham exposição permanente em pequenos núcleos museológicos, casas-museu ou espaços musealizados. Outras 24 alimentavam projetos de criação de espaços semelhantes. Quando as Misericórdias forem capazes de funcionar em rede e de usar as novas tecnologias para exibirem em suporte virtual todo o seu espólio artístico, o mundo espantar-se-á de assombro.
[26] Informação recolhida em texto publicado pelo Dr. Mariano Cabaço da União das Misericórdias Portuguesas.
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Entretanto, falando de museus, permitam-me que lembre um exemplo bem conseguido, o MMIPO (Museu e Igreja da Misericórdia do Porto) fundado em 15 de julho de 2015 que em 2106 mereceu o prémio da APOM de Museu português do ano, em 2017 foi integrado na Rede Portuguesa de Museus e em 2018 foi nomeado para o prémio de Museu Europeu do Ano.
4 - Arquivos e Bibliotecas Uma boa parte das Misericórdias possui arquivos históricos os quais, dada a aproximação das Irmandades às comunidades onde se implantaram, são muito de grande préstimo não apenas para o conhecimento histórico das instituições em si mesmas mas também da história das comunidades locais nos seus múltiplos aspetos. As muitas monografias que têm sido publicadas sobre Santas Casas da Misericórdia, os estudos abrangentes que em Portugal se têm produzido sobre as suas atividades seculares e ainda a obra enciclopédica Portugaliae Monumenta Misericordiarum provam as potencialidades destes arquivos para a recuperação e conservação da Memória Coletiva. Todavia, é preciso não esquecer que manter os arquivos e sobretudo mantê-los em condições de acessibilidade e de utilização não é fácil, dados os custos que a sua conservação e organização exigem. Todos sabemos que papeis antigos, arrumados a monte, empilhados e cobertos de pó, continuam a ser património, mas em termos de reconstituição da memória de pouco servem. Por vezes as receitas são curtas e não chegam para outros serviços mais urgentes e de maior impacto. Mas os provedores e mesas administrativas vão percebendo que tanto é património uma pintura bela e bem emoldurada como um códice antigo ou um mero livro de Atas. O dever de os preservar a todos é igual.
CONCLUSÃO Quinhentos anos de História não cabem numa comunicação de poucas dezenas de minutos. Olhando para esse passado e confrontando-o com o presente, o que me parece mais interessante é que esse peso histórico não impede os dirigentes atuais de prosseguirem o caminho, na fidelidade à herança do espírito fundacional, compendiado nas 14 obras de misericórdia, com as inovações e adaptações que os novos tempos vão exigindo. Hoje o culto e a devoção não deixaram de ser traços identitários das Misericórdias, mas o seu peso é quase residual em relação ao passado não muito longínquo. Antigamente era prática comum que quem tinha posses, deixava bens em favor da própria alma, ao cuidado das Misericórdias, o que se traduzia em pompas fúnebres e em quantidade enorme de missas e algum remanescente para as contas das Santas Casas. Isso acabou. Mas não acabaram os pobres, os idosos desvalidos ou sem retaguarda, os doentes com poucas posses, os que
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nascem com condicionalismos desfavoráveis, físicos ou mentais, os que a vida deixa estropiados, sem recursos ou sem emprego. É certo que o Estado social teoricamente assume a responsabilidade por todos esses. Nós sabemos, todavia, que sem o auxílio das Santas Casas da Misericórdia e de outras IPSS, os meios do Estado não resolveriam os problemas. Por outro lado, quase desapareceram os grandes legados em favor das Santas Casas. O que significa que as Misericórdias têm que encontrar a sua sustentabilidade diária noutro tipo de recursos. O principal são as verbas contratualizadas com o Estado, mediante serviços a prestar ou já prestados. A contratualização com o Estado é indispensável nas circunstâncias atuais. Mas cria dependências e constrangimentos indesejáveis à autonomia das instituições. Não é a fiscalização da gestão que causa problemas porque essa existe, pelo menos desde o séc. XVII. É a inspeção «inquisitorial» que é ditada pela ideologia dos grupos que estão no poder central ou das pessoas que superintendem nos órgãos regionais intermédios. De qualquer modo, dificuldades e problemas sempre os houve, mas sempre foi encontrada a solução. Terminarei reafirmando que as Misericórdias, mantendo o foco na satisfação das necessidades da pessoa e na promoção da sua dignidade até ao fim, serão sempre úteis e atuais.
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1.º painel | conferência AS OBRAS DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO NOS 500 ANOS DA SUA EXISTÊNCIA Carla Sofia Ferreira Queirós
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PALAVRAS-CHAVE
Inventário, Misericórdia, Lamego, Incêndio.
RESUMO Ao longo dos 500 anos da sua existência, a Santa Casa da Misericórdia de Lamego desempenhou um papel fundamental na vida da cidade e dos seus habitantes, não só do ponto de vista assistencial, mas também religioso, cultural e artístico. Muito embora a documentação que até nós chegou não nos permita traçar uma linha precisa da história da sua primitiva igreja, uma vez que esta desapareceu e com ela todo o seu espólio e grande parte da documentação, pretendemos com este estudo evidenciar a importância da Misericórdia de Lamego, detentora de um vasto e rico património que nos atesta a história e a memória de outros tempos e outras gentes que ao longo das suas vidas ou no final delas legaram a esta instituição os seus bens mais preciosos, acabando por fazer da Misericórdia de Lamego senão a mais importante, uma das mais significativas e de maior impacte instituições da cidade.
KEYWORDS
Inventory, Misericórdia, Lamego, Fire.
ABSTRACT Throughout its 500 years of existence, the Santa Casa da Misericórdia of Lamego has played a fundamental role in the life of the city and its inhabitants, not only from the point of view of care, but also from the religious, cultural and artistic point of view. Although the documentation that has come until today does not allow us to draw an accurate line of the history of its early church, since it has disappeared and with it all its booty and much of the documentation, we intend with this study to highlight the importance of the Misericórdia of Lamego, holder a vast and rich heritage that attests the history and memory of other times and other people who, throughout their lives or at the end of their lives, have bequeathed this institution their most precious assets, eventually turning Misericórdia of Lamego if not the most important, one of the most significant and impactful institutions in the city.
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AS OBRAS DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO NOS 500 ANOS DA SUA EXISTÊNCIA CARLA SOFIA FERREIRA QUEIRÓS ESEPPORTO/CITCEM
INTRODUÇÃO Quando há cerca de nove anos, participámos no Seminário Internacional que decorreu em Vila Real, a propósito da Misericórdia desta cidade, apresentamos à comunidade científica, ou pelo menos foi essa a nossa pretensão, a breve história da primitiva igreja da Misericórdia de Lamego. Breve no sentido em que volvidos estes anos a igreja da Misericórdia continua envolta em grande secretismo, com muitas perguntas por responder e imensas dúvidas por esclarecer, nada mais conseguindo atestar relativamente a esta história com grandes lacunas. Pelas razões já apresentadas e pela falta de documentação, perdida certamente ao longo dos [1] anos, este trabalho corresponde, em grande parte, ao artigo já publicado aquando deste seminário .
1. Das origens à fundação da Santa Casa da Misericórdia de Lamego
[Figura 1] Planta da cidade de Lamego e seus arredores, levantada por J. Auffdiener, em 1793 e copiada por Manuel Epifânio de Saldanha Machado, em 1818. (Fonte: GEAEM/DIE). [1] QUEIRÓS, 2011: 162-176.
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As origens da Misericórdia de Lamego explicam-se no contexto da fundação das Misericórdias do Reino, a partir da fundação da Misericórdia de Lisboa, em 1498, a primeira e a mais antiga do país. Para isso contribuiu a devoção da rainha Dona Leonor como regente do reino, viúva de D. João II e a quem D. Manuel I confiara a regência enquanto se encontrava em Castela para ser jurado herdeiro desta Coroa, mas também o importante papel desempenhado pelo seu confessor Frei Miguel de Contreiras, religioso da Ordem da Santíssima Trindade. Podemos, assim, dizer que a Misericórdia de Lisboa serviu de exemplo a todas as outras que se lhe seguiram, no que toca à organização e aos estatutos, embora as misericórdias como confrarias e irmandades já existissem antes de 1498. Porém, somente depois de 1498-1500, quando é elaborado o texto do seu compromisso que regulamenta o seu funcionamento, é que as Misericórdias se estabeleceram em todas as cidades, vilas e lugares principais do Reino, dando cumprimento à vontade do monarca. A rápida difusão das Misericórdias no século XVI deveu-se não só à sua eficaz organização, mas também ao facto destas instituições responderem às necessidades da época que se vivia. Quase sempre, desde a sua origem, as Misericórdias não tiveram sede própria, acabando por ocupar espaços e edifícios pertencentes a outras instituições de cariz religioso ou civil e mesmo de particulares, situação esta que se revelou passageira, uma vez que durante o século XVI começaram a erguer os seus próprios edifícios vinculados ao carácter religioso, assistencial, caritativo, cultural e artístico da própria instituição. Tudo leva a crer que o documento mais antigo referente à Misericórdia de Lamego data de 20 de abril de 1519 como consta de hum termo em hum livro da ditta caza, feyto no referido dia e anno nas cazas da camara desta cidade; à qual convocou a nobreza o doutor Antonio Correa, corregedor da mesma cidade, natural de Sima Coa desta provincia; e em prezença dos officiaes da sobreditta camara, e povo declarou, que o ditto Senhor lhe mandava constituir irmandades da Mizericordias nas cidades da sua jurdiçam; e a beneplacito de todos se instituio esta, para o que consta dar cada pessoa cem reis e quatro varas de estopa ou seo valor; e elegerão logo por provedor da ditta Irmandade ao corregedor, e lhe constituirão irmãos da meza; e esteve esta Irmandade de muitos annos em o convento de Sam Francisco [2] desta cidade, emquanto senão fez igreja própria . Tal como aconteceu com muitos outros livros, também este teria desaparecido, perda essa já notada por outros autores que se ocuparam do assunto das misericórdias[3]. [2] QUEIRÓS, 2002: 807. Cfr. A.N.T.T. – Dicionário Geográfico de Portugal, MPRQ, vol. 19, n.º 42, fls. 235-236. [3] PAIVA, 2004: 374. Em 1897 na sua obra As Misericórdias ainda Costa Goodolphim mencionava este mesmo documento. Não sabemos se baseado na descrição do Vigário da Sé Diogo António Vieira se de facto o teria visto.
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Fundada em 1519, terá um enorme impulso a partir de 1597[4], quando Filipa Rodrigues do Amaral, irmã de Diogo Rodrigues do Amaral, cónego que foi da Sé de Lamego, em testamento doa todos os seus bens ao Hospital da cidade, administrado pela Santa Casa da Misericórdia e manda «consertar a Capella de Nossa Senhora da Anunçiassão do dito Hospital pera nella se enterrar seu corpo e fazer sepultura e mais obra que quizer como lhe bem parecer»[5]. A partir desta data e apesar de não possuirmos nenhum documento que o prove, o que é certo é que a Santa Casa da Misericórdia de Lamego foi alargando os seus domínios e aumentando a sua importância no quotidiano da cidade. Baseando o seu compromisso no da Misericórdia de Lisboa, como é referido pelo Vigário da Sé, [6] Diogo António Vieira, em 1758 , fundamental em várias valências, a Misericórdia Bem conservou, e ahinda hoje observa as obrigaçoens que a todas impoz seu primeyro Fundador, pois tem por glorioso brazam: Ser amparo das Orfas! Socorro das Veuvas! Azylo dos pobres! Guia dos Caminhantes e peregrinos! Libertadora dos prezos! Alivio dos doentes! Mizericordioza para com os defuntos pobres! Despertadora dos pecadores! E [7] ultimamente Vivo Exemplar da humildade . No que toca às Regalias He esta Santa Casa da Misericordia da protecção Real, e izenta do Ordinario. Toma contas à Misericordia da cidade do Porto de hum legado que nella deyxou Dom Lopo de Almeyda, de que recebe de perpina todos os anos dez mil reis, que aquelle lhe paga. Tem provisão para ter açougue particular para os Irmãos da meza, e do geral se lhe dar a vaca necessária para os prezos que admite a reção, e livramento. Tem outra para render para Caza da Siza dos mercados que se fazem todos os mezes. Tem o previlegio de a Irmandade do Espirito Santo em os enterros da freguesia, que fica assim a não poder passar a porta da Igreja da Santa Caza, indo aos três enterros, sem que saya a Irmandade da Mizericordia dia para acompanhar; o que também faz em o primeyro Domingo de Junho, em que esta Irmandade da Mizericordia vay em romaria todos os anos ao Convento de Santo Antonio de Ferreyrim, distante desta cidade huma légua; e a vem acompanhar athe a porta da sua Igreja. Tem a regalia de hirem nas tumbas da caza todos os defuntos desta cidade, e não podem hir em cayxam sem sua licença. No que concerne às Indulgências
[4] AZEVEDO, 1877: 15. [5] A.S.C.M.L. – Tombo 2º dos Irmaos desta S. Caza. Anno 1716 (Treslado do Testamento e doação de Phelipa Rodrigues do Amaral que fez a Caza do Hospital desta cidade de Lamego, 1597, fls. 26-28v. [6] A.N.T.T. – Dicionário Geográfico de Portugal, MPRQ, vol. 19, n.º 42, fl. 245. [7] A.N.T.T. – Dicionário Geográfico de Portugal, MPRQ, vol. 19, n.º 42, fl. 239.
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Concederão os Sumos Pontifices indulgencias plenárias a esta Santa Caza, pelo que: tem breve de indulgencia plenária para todos os deciplinantes, que se açoutarem em Quintafeyra Santa. Tem outro porque se concede a todo o Irmão a graça de indulgencia plenária todas as vezes que entrando na sua igreja rezar hum Padre Nosso, e Ave Maria. Tem outro no qual se concede todo o Irmão que comungar em Quinta-feyra Santa à missa conventual da ditta Igreja que ganhe todas as indulgencias concedidas a quem visitar a Igreja de Santa Maria Mayor de Roma, a do Loretto, e do Hospital de Jeruzalem como consta das Bullas, que [8] estão no archivo da Caza .
2. Da fundação ao desaparecimento da primitiva igreja da Misericórdia Não obstante, a história da Santa Casa da Misericórdia de Lamego contar com Quinhentos anos de existência, desde a sua fundação, a documentação que até nós chegou, sobretudo, a respeitante aos seus primórdios é quase inexistente, nomeadamente, aquela que nos permitiria trazer à luz da historiografia da arte portuguesa, os artistas responsáveis pelas empreitadas de construção da sua igreja, assim como aqueles que dignificaram o seu interior, certamente, uma das mais ricas do século XVI, em Lamego. Referimo-nos aos livros de contas, de receitas e despesas, assentos e de contratos de obras referentes aos séculos XVI, XVII e XVIII. Alguns destes livros, sobretudo, os da centúria de Quinhentos referidos por Vergílio Correia, simplesmente, desapareceram. Apenas, e somente através dos seus estudos, pudemos constatar a existência de artistas que trabalharam para a Misericórdia de Lamego nos séculos XVI e XVII: André Gonçalves[9] (torneiro) que, em 1560, recebeu 1.000 réis por umas grades de uma porta; Diogo Fernandes[10] (serralheiro) que, em 1561, trabalhava para a Misericórdia, não especificando a obra; João do Rêgo[11] (pedreiro) que, em 1561, recebeu 12.500 réis para levantar a capela e o arco e pela abertura de uma fresta; em 1563, realizou obras na capela, não especificadas; em 1567/68, recebeu 3.900 réis para fazer as capas da capela, segundo as que fez na casa da tulha e capela do bispo; [12] António Leitão (pintor) que, em 1565, recebeu 9.150 réis pela pintura e douramento do retábulo para além do lustro que teria de dar às obras da Misericórdia que estavam no banco, assim como o conserto dos rostos de Nossa Senhora da Visitação e do Rei de Portugal; em 1571, recebeu 4.000 réis por pintar sete varas e um crucifixo grande e as imagens dos altares e a bandeirinha que anda pela [8] A.N.T.T. – Dicionário Geográfico de Portugal, MPRQ, vol. 19, n.º 42, fls. 244-245. [9] CORREIA, 1923: 22. [10] CORREIA, 1923: 15-16. [11] CORREIA, 1923: 62-63. [12] CORREIA, 1923: 26-28.
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cidade nos dias que se tiram as almas do Purgatório e raspagem e douramento da caixinha para encerrar o Santíssimo Sacramento; João António[13] (imaginário) que, em 1568, recebeu 500 réis para fazer e pintar quatro imagens para os altares; Manuel Esteves[14] (carpinteiro) que, em 1573, teria feito os arcazes da sacristia; João Fernandes[15] (serralheiro) que, em 1573/74, recebeu 19.500 réis por umas grades de ferro que estão nos peitoris do altar-mor; Simão Antunes[16] (pintor) que, em 1573/74, recebeu 300 réis pela pintura das letras do púlpito e porta da casa que vai para o cabido; António Vieira[17] (pintor) que, em 1636/37, recebeu 2.400 réis pela pintura e douramento de umas grades. Este mesmo António Vieira seria o mesmo que, em 1605, teria ido para Lisboa aprender o ofício de pintor com o pintor Gregório Antunes, segundo uma escritura de contrato que o seu pai, com o mesmo [18] nome, realizou com o mestre pintor lisboeta .
Segundo o códice 547 existente na Biblioteca Pública Municipal do Porto e que deu origem às edições de Augusto Dias, a Irmandade da Misericórdia teria estado desde a sua origem e durante alguns anos no Convento de São Francisco, até ser construída a sua igreja, o que muito provavelmente, pensamos, aconteceu por volta da segunda metade do século XVI como provam as referências que nos deixou Vergílio Correia. Certamente, teria sido uma igreja pequena, mas bem guarnecida, a julgar pelos inúmeros artistas que lá trabalharam nesta altura e a diversidade de obras feita. Porém, a grande campanha construtiva teria acontecido por volta do último quartel do século XVII, como atestam as escrituras de contratos de obras de pedraria que chegaram até nós. Muito provavelmente, teria sido nesta época que a igreja da Misericórdia foi ampliada, atingindo novas proporções que se mantiveram até ao seu desaparecimento, e que se justificam pela importância crescente desta instituição. O primeiro data de 14 de agosto de 1680[19] e trata-se de uma escritura de obrigação de obra de pedraria e carpintaria de levantar as paredes da Casa da Misericórdia e o forro da Igreja entre o Provedor António de Matos Teixeira e os irmãos da Misericórdia e o carpinteiro Domingos Monteiro, morador na cidade de Lamego e o mestre pedreiro João Cardoso, morador em Nazes, arrabalde da cidade. Por esta obra se lhes daria, na totalidade 80.000 réis: 45.000 réis pela obra de pedraria, da [20] responsabilidade de João Cardoso , que teria que estar feita e acabada até ao mês de outubro deste [13] CORREIA, 1923: 4-5. [14] CORREIA, 1923: 14. [15] CORREIA, 1923: 16-17. [16] CORREIA, 1923: 5. [17] ALVES, 2001, vol. III: 275; CORREIA, 1923: 66-68. [18] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 379/9, fls. 40-41. [19] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 529/46, fls. 53v-54; ALVES, 2001, vol. II: 240-241. [20] ALVES, 2001, vol. I: 159-160.
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ano; e os restantes 35.000 réis seriam pagos ao carpinteiro Domingos Monteiro para levantar o forro da igreja, obra esta que teria de estar acabada até ao mês de setembro. Sete anos mais tarde, no dia 11 de agosto de 1687[21], na cidade de Lamego e na Casa do Despacho da Santa Casa é assinada uma nova escritura de obrigação de obra entre o antigo bispo de Lamego Dom Frei Luís da Silva, agora bispo da Guarda, e o mestre pedreiro Francisco Monteiro, morador em Souto Covo, termo da cidade. Estava em causa a obra de pedraria do frontispício da igreja da Santa Casa da Misericórdia. Por esta obra daria o bispo 300.000 réis, ficando obrigado o mestre pedreiro a fazer a dita obra pela planta que se lhe mostrou e a fazê-la dentro de oito meses até ao dia de Páscoa. Refere-se, ainda, na mesma escritura, que no cima da porta entre as duas cartelas e onde está uma janela redonda, se havia de fazer uma janela rasgada e quadrada na forma das que estão na Sé para que o coro ficasse com boa luz. E pelo dito mestre foi dito que ele se obrigava a fazer a dita obra com toda a segurança e fortaleza de muito boa pedra como a da capela do Senhor da Sé. [22]
Em 23 de junho de 1688 surge uma nova escritura lavrada nas notas do tabelião Francisco de Moura Coutinho entre o arcediago da Sé Reverendo Tomé de Gouveia de Altero e provedor da Santa Casa e o mesmo Francisco Monteiro, mestre de cantaria, desta feita de parceria com Domingos Gomes, mestre de cantaria, natural de Vila Real, para estes fazerem um ladrilho de pedra de cantaria em frente da Casa e frontaria da igreja «desde a esquina da Igreja athe baixo; ficando a escada dentro do ladrilho […] tudo hade ser ladrilhado athe a parede de pedra de cantaria bem lavrada […] fazendolhe os degraos para a parte da Rua que forem nessesarios, de sorte que fique o dito ladrilho na forma e altura do sollar da porta da Igreja e o livel della […]». Por esta obra lhes pagariam 75.000 réis e deveria estar concluída até ao final de agosto do mesmo ano. Seis dias mais tarde, em 29 de junho de 1688[23], os mesmos mestres pedreiros de cantaria, Francisco Monteiro e Domingos Gomes, assinaram nova escritura de contrato e obrigação com o mesmo arcediago da Sé, para o conserto do arco cruzeiro da igreja da Misericórdia levantando os pes direitos do dito Arco de sorte que fique o Arco levantado com as ultimas adoellas delle no olivel da linha que esta e fica digo que esta na Igreja, e fica pegada ao dito Arco, ficando outra vez o dito Arco com a largura que hoje tem, sem que lhe demenua adoella algua e fazendo este conserto com tudo o mais que for nessesario no Arco e paredes das bandas, assim de cantaria como de alvenaria pondo elles pedreiros as madeiras e estadas que lhe forem nessesarias para a dita obra, e que sendo caso que alguma das adoellas do Arco ou outra qualquer pedra delle quebre serão obrigados a fazella novamente e a polla na dita obra por sua conta [21] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 85/5, fls. 71-73; ALVES, 2001, vol. II: 241-242; COSTA, 1982: 318. [22] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 470/40, fls. 17v-18; ALVES, 2001, vol. II: 14. [23] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 470/40, fls. 22-22v; ALVES, 2001, vol. II: 14-15.
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e por esta obra lhes pagariam 30.000 réis. Esta teria de ser acabada até ao último dia do mês de setembro de 1688. No final desta escritura é referido que os ditos mestres têm recebido à conta desta obra e da do ladrilho da qual fizeram escritura 60.000 réis que eles ditos mestres confessaram ter recebido. Por último, o mesmo arcediago da Sé celebrou com os mesmos mestres pedreiros de cantaria Francisco Monteiro e Domingos Gomes, em 2 de julho de 1688[24], uma escritura de contrato e obrigação de obra da tribuna da igreja da Misericórdia. Esta seria feita na parede da Igreja do lado da Casa do Despacho pela banda de baixo do Pulpito; toda em redondo de pedra de cantaria que há de ter quinze palmos de comprido e de altura a que pedir a obra e a Arte emsinar a qual tribuna, hade ser de dous arcos com hua coluna no meio, tudo de cantaria e os dous meios Arcos e peitoril terão sua muldura pelo sobreleito para a parte da Igreja com seu colarinho e reçaltiado o peitoril pela parte de baixo […] fazendo elles pedreiros todas as guarnicois por o redor da tribuna de alvenaria, e cantaria que for nessesaria para que fique a obra prefeita e dando as madeiras que nessesarias lhe forem por sua conta. Por esta obra lhes seriam pagos 20.000 réis, comprometendo-se a acabar a obra até ao último dia do mês de setembro do dito ano.
Para o séc. XVIII, cingimo-nos a algumas fontes manuscritas e impressas. Segundo a primeira dessas fontes, o códice 547, balizado pelo autor, Augusto Dias, entre 17211736, a igreja da Misericórdia localizava-se entre a rua de Almacave e a rua de São Francisco, situandose a igreja no fim da rua de Almacave. Possuía uma capela-mor com teto pintado e o altar-mor tinha uma tribuna dourada e apainelada, com a imagem de vulto de Santa Isabel de que é padroeira a Senhora da Visitação. No cruzeiro existiam dois altares com retábulos de arco dourado: o do lado do Evangelho, da invocação do Senhor Ecce Homo com a sua imagem de vulto e, o do lado da Epístola, da invocação de Cristo Crucificado. Do lado do Evangelho possuía outro altar com a invocação de Cristo Crucificado com a sua imagem de vulto e conhecido pelo altar do Senhor dos Aflitos. Tinha, ainda, a igreja uma tribuna de grades de ferro pintadas, onde a mesa assistia nas funções públicas. O acesso à tribuna fazia-se pela Casa do Despacho que ficava no mesmo andar levantada; a igreja era de grandes dimensões e tinha várias frestas de vidraças e o teto era pintado, sendo guarnecida de painéis e guarda-roupas que serviam de cartório, onde estavam inscritos em tábua as listas dos irmãos da
[24] A.D.V. – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 470/40, fls. 24-24v; ALVES, 2001, vol. II: 15-16. O autor refere o mês de junho, quando na realidade se trata do mês de julho.
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Santa Casa, distinguindo-se os irmãos nobres dos mecânicos e, de forma separada, a lista dos que foram provedores. No topo desta Casa do Despacho estava a «Mesa guarnecida com pano de veludo azul com franjas e rodeada de bancos de espaldas de Moscóvia para os Irmãos da Mesa, e para o Provedor uma cadeira da mesma» que se encontrava encostada num retábulo de talha dourada, no cimo do qual estava uma imagem de Cristo Crucificado «coberto com cortinas de damasco róseo, a qual vai em procissões, que os irmãos fazem». Esta igreja tinha na sua porta principal um pátio quadrado de pedra de cantaria e cercado pela mesma e deste pátio subia-se por uma escada que dava acesso a uma varanda sobre arcos de pedra lavrada por onde se entrava para a Casa do Despacho. A igreja tinha, ainda, uma sacristia e mais duas casas. Seguia-se junto a esta igreja, o [25] Convento de São Francisco . Por esta descrição inferimos que a atual rua de Almacave, no século XVIII, se dividia em três ruas, divisão esta feita pela existência das três igrejas: Almacave, Misericórdia e São Francisco. Para além do códice 547, que nos dá a primeira descrição da igreja da Misericórdia, se assim estiver corretamente datado, a primeira referência documental manuscrita relativa à igreja da Misericórdia é-nos dada pelo Primeiro Livro do Tombo dos prazos, rendas e foros pertencentes à Santa Casa da Misericórdia, datado de 21 de fevereiro de 1757. Segundo este livro, em 10 de maio de 1752 na cidade de Lamego foi feito um «Termo […] para a medição dos bens que a caza da Sancta Mezericordia possue e a Igreja della» e «agora para se medir a Igreja, Ospital, e mais couzas […]»[26]. Este tombo é extremamente importante, na medida em foi escrito seis anos antes das Memórias Paroquiais de 1758 e nos permite confrontá-lo não só com o códice, mas também com estas Memórias, de forma a verificar se houve alterações no exterior e interior da Igreja, para além de nos descrever outros edifícios pertencentes à Santa Casa de forma cuidada, ao mesmo tempo que nos revela a proximidade da igreja com a cerca do Convento de São Francisco de Lamego. [27]
Começa este Tombo por descrever o que contem a Igreja : Asentada para se medir a Igreja, e mais officinas e cazas da Mezericordia
Aos vinte e seis dias do mez de Mayo de mil setecentos sincoenta e dous annos nesta cidade de Lamego na caza da Sancta Mezericordia della, aonde eu ezcrivão vim com o Doutor Jozé Mendez da Fonseca juis deste tombo, e o procurador delle o Reverendo Doutor Bernardo
[25]DIAS, 1950: 74-78. [26] A.S.C.M.L. – Livro n.º 3 A, fl. 10. [27] A.S.C.M.L. – Livro n.º 3 A, fls. 10v-13.
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Rebello da Fonseca, e juntamente os Louvados nomeados para a medição dos bens que a mesma Sancta Caza possue João Monteiro Cardozo, e Paulo Ribeiro para effeito de se dar principio a medição delles e da dita Igreja, e mais officinas da caza, o que com effeito se fez na prezença do Provedor, e Irmaos da meza pella maneira seguinte de que fiz este termo eu Manoel da Costa Pinto Zuzarte ezcrivao que o ezcrevy. Relação do que contem em sy a Igreja da Sancta Caza da Mezericordia, em edição della: He esta Igreja toda ladrilhada de cantaria, e forrada e tem altar mayor da invocação da Vizitacão de Nossa Senhora a Sancta Izabel, e tem sua tribuna em que se se expõem o Santissimo Sacramento nas festas da caza; e he toda apainellada com perfeitos quadros, com molduras douradas e tem debaixo da tribuna hum nicho em que se fazem os Passos nas domingaz da caresma, e a tribuna também he dourada, tem para a parte da Epistolla hua grande frezta, com grade de ferro, e vidraça, que deita sobre a Rua da Mezericordia; tem de hum, e outro lado na dita cappella mayor asentos com gradez de ferro; e para a parte do Evangelho tem hua porta por onde se entra para a Sacrestia. Abaixo do Arco cruzeiro tem dous altares colaterais; hum da Imagem de Nosso Senhor Cruxificado para a parte da Epistola; e outro para a parte do Evangelho da Imagem do Senhor Ecce Homo; e junto aos dous altares, e na largura da Igreja por baixo dos mezmos tem gradez de pau preto todaz torneadas com seos bojos, e bronzeadas com bronze dourado; e para a parte da Epistola tem hum púlpito, e abaixo deste hua grande fresta com gradez de ferro e vidrassas; para a parte do Evangelho esta a tribuna em que se asenta a meza nas funcoiz da caza, e festas a qual hé fixada e tem suas culunas de pedra com gradez de ferro que deitão sobre a Igreja e debaixo da dita tribuna está hua porta por onde se entra para a caza das tumbas, e por sima da porta principal tem o coro em que rezão os Beneficiados com suas gradez de pau pintadas, para o qual se sobe de prezente por hua ezcada que esta para a parte do Evangelho junto ao Arco em que se forma o mesmo coro, que esta pintado perfeitamente, e tem sua estante, e hua Imagem de Nosso Senhor Cruxificado, e cadeiras e anteparos tudo pintado; Tem esta a Igreja a porta principal para a banda do Sul a qual he grande, e o frontespicio todo de cantaria lavrada com suas colunas da mesma pedra de cantaria lavrada lizamente e no sima do pórtico hua targe de pedra lavrada com as Armas do Illustrissimo Dom Frey Luis da Sylva Bispo que foi deste Bispado sendo Provedor da Caza por mandar fazer o frontespicio desta Igreja com a perfeição com que se acha obrado, e por sima desta targe tem outra com as Armas Reais por ser esta Sancta caza da Real proptecão, e dos lados desta targe tem duas claraboyas com suas gradez de ferro, e vidrassaz; […];
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Medição da Igreja Principiouse a medir a Igreja desta Sancta Caza para os louvados do norte para o sul dezde o firmamento da tribuna athe o frontespicio da parte de dentro, e tem de comprido vinte e duas varas e meya, e medida do nazcente ao poente na capella mayor tem no vão della de largo seiz varas e hum palmo, e o corpo da Igreja medido abaixo das gradez tem a mesma largura de seiz varas, e hum palmo; Medição da Sachrestia Para a parte do Evangelho esta a Sacrestia a qual he sobradada, e forrada, e tem a porta para a mesma banda do Evangelho por onde se sae para a Igreja, e para a parte do poente tem hua fresta sobre a cerca dos Religiozos de São Francisco, e para a parte do norte tem os caixois aonde estão em guarda os ornamentos em que se revestem os sacerdotes, com hum oratório no meyo em que esta hua Imagem de Nosso Senhor Cruxificado, e por baixo hum nicho em que esta a Imagem de Nosso Senhor Morto: a qual os louvados medirão do nascente para o poente pella parte do norte por onde tem quatro varas e meya, e do norte para o sul pella parte do puente, tem outras quatro varas e meya, e do poente para o nascente pello sul tem a mesma medição por ser quadrada: tem da parte do nacente hua porta por onde se entra para a Tribuna, e para a parte do sul tem hua porta por onde se entra para a caza da cera; Medição da Caza da Cera Item a caza da cera logo mistica parede em meyo com a Sacrestia, a qual se médio do nascente para o puente pella parte do norte tem de comprido sete varas menos hum palmo, e medida do norte ao sul pella parte do poente tem de largo quatro varas e meya e medida de poente para o nacente pella parte do sul tem outo varas, e do sul ao norte pella parte do nacente tem sinco varas menos hu palmo tudo dentro daz paredez: tem hua fresta com sua vidraça que deita sobre a cerca do convento de São Francisco; e he esta caza sobradada e forrada e tem entre o poente e nascente digo, e sul hua escada de pedra e hua porta por onde se entra e sobe para a caza do dezpacho, e entre o mesmo sul e nacente tem hua ezcada de pedra e no fundo hua porta por onde se entra para a caza das tumbas; Medicão da caza do dezpacho Item hua caza que serve para os dezpachoz e mais couzas pertencentes a esta Sancta Caza, a qual se médio do nascente para o puente pella parte do norte tem sinco varas, e do norte para o sul pella parte do nascente tem de comprido onze varas, e do nascente para o puente pello sul tem sinco varas, e do sul para o norte pello puente tem de comprido onze varas: he esta caza sobradada e forrada, e tem para a banda do norte hua tribuna de talha dourada
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em que esta a Imagem de Nosso Senhor Cruxificado em vulto perfeitissimamente obrada, e logo por baixo a cadeira em que se asentão os Provedores prezidindo na meza a qual he redonda coberta com seu pano de veludo azul, e os asentos em redondo para os Irmaos da meza de Mescovia com pregadura meuda dourada na qual meza serve hua ezcrivaninha com os tinteiros necessários e prato de prata liza e campainha: tem pella parte do poente duas frestas atravessadas, que tem suas grades de ferro, e vidraças, que deitão sobre a cerca dos relegiozos de São Francisco, entre as quais está inbutida na parede hun guarda roupa, caixoiz tudo fixado, e pella parte do sul tem hua porta de cantaria lavrada por onde se sae para a varanda, e pella mezma banda tem hua janella rasgada taobem de cantaria com seu perapeito, e grade de ferro liza, e junto desta para a parte do nascente hua grade de pau por onde se sobe para o coro com sua porta; e logo adiante da dita ezcada os guarda roupas com suas portas de almofadas e seos caixois que servem da guarda do cartório pertencente a esta Sancta Caza, e pegado a estas hua porta por onde se entra para a tribuna com anteparo de madeira nas costas da mesma a qual tribuna tem do poente para o nacente hua vara de largo e de comprido do sul ao norte tem seis varas. Item junto a caza do dezpacho e logo parede em meyo hua varanda sobradada e forrada de rompantes e apainellada: a qual medida pella parte do nascente do norte para o sul deitando sobre o adro e ladrilho da Igreja tem de comprido doze varas e hum palmo, e medida do nascente ao poente no fim della tem de largo duas varaz e trez palmos aonde ezta o campanário em que se sustenta o sino, e logo pegado no fim da mezma baranda esta hua grande portada de cantaria e esta formada de calunas de pedra lavrada liza, com seu perapeito taobem de cantaria no fim da varanda saindo pella dita porta está hua escada de pedra de cantaria lavrada com seu guardamão da mezma sorte por donde se desse para o Atrio e Ladrilho da Igreja; Medição do Ladrilho Item hum ladrilho de pedra de cantaria com sua guarnicão da mezma, e duas gradez de ferro hua para o nacente, e outra para o sul por onde se entra para o dito Adro o qual se médio de puente para o nacente pella parte do sul partindo com a caza do dezpacho da Veneravel Ordem Terceira de São Francisco, e com a Rua publica tem onze varas e hum palmo, e medido do sul para o norte pella banda do nacente partindo com a mezma rua publica the intestar no frontespicio da Igreja tem treze varas, e trez palmos, e medido do nascente para o poente pella parte do norte devidido todo pello mesmo frontespicio da Igreja tem treze varas menos hum palmo, e medido do norte para o sul pella parte do poente partindo com a parede que cerca a baranda e devide a cerca dos religiozos de São Francisco, tem dez varas, e dous palmos: tem pella mesma banda do poente Arcos com
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culunas em que se forma a baranda. Dezte Adro sae hua porta para a parte do norte para a caza chamada das tumbas; Medição da caza das tumbas Principiouse a medir esta caza chamada das tumbas do sul para o norte pella parte do nascente devidida pella parede da Igreja, tem de comprido onze varas; e medida do nascente ao poente pello norte partindo por parede com a caza da cera por onde tem hua porta que vai para a mezma caza, tem quatro varas e três palmos, e medida do norte para o sul pella parte do poente por donde tem huma fresta grande com sua grade de ferro que bota para a cerca dos Religiozos de São Francisco por onde parte com a mesma tem onze varaz, e medida do poente para o nascente pella parte do sul partindo com o Adro medido tem quatro varas e meya: he esta caza sobradada, e para a parte do norte tem outra porta que sae para a caza das tulhas para onde se dece por huma ezcada de pedra; Medição da caza das tulhaz Item hua caza que serve de despejos, e tulhas, que tem duas frestaz, que lancão sobre a cerca dos padres de São Francisco com suas gradez de ferro, que se não médio de todos os quatro lados por estarem nella as tulhas, e hum anteparo no meyo da madeira, e so se médio em comprimento do sul para o norte, e tem doze varas e hum palmo, e medida do poente para o nacente tudo de paredez adentro tem de largo quatro varaz e meya, e junto á porta que vem da caza das tumbas para o lado direito, tem hum recanto de parede, que he o asento da escada que sobe para a caza da cera; […][28]. A segunda fonte manuscrita trata-se das Memórias Paroquiais de 1758 que nos revelam que a Igreja foi ereta na antiga casa dos morgados de Vale de Oleiros, motivo pelo qual se encontrava no pavimento da capela-mor uma sepultura com as suas armas e com uma inscrição onde era patente a proibição de se enterrar na dita capela outros membros que não fossem os da família por «estes haverem dado o sytio para se edificar este templo: de cuja caza, e morgado he hoje senhor e [29] administrador Antonio Jozeph Guedes de Magalhaens Ozorio» natural da freguesia da Sé . Porém, e relativamente à relação de bens feita pela Santa Casa da Misericórdia em 1752, constatámos que houve algumas modificações: é o caso do púlpito que não é mencionado pelo vigário da Sé Diogo António Vieira.
[28] A.S.C.M.L. – Livro n.º 3 A, fls. 13-17. Continua esta descrição com o relato exaustivo e descritivo dos terrenos, oficinas, hospital novo, açougue e hospital velho. [29] QUEIRÓS, 2001: 807.
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A terceira fonte manuscrita data de 1765[30]. A partir desta data e até 1918, a Santa Casa da Misericórdia de Lamego realizou um inventário de todos os seus bens (pratas, estanhos, paramentos, missais e cadernos, imagens, quadros, tumbas, cruzes, bandeiras e madeiras) que registou em livro e de que damos conhecimento. Assim, e segundo o mesmo livro, o escrivão Manuel Moura Coutinho, a respeito dos paramentos, das imagens e dos quadros enumera: […]. Tres Forontais de Damasco branco hum do Altar-mor com galoens e franja de ouro e os dois dos Altares Collaterais com galoens e franja de retros-----------------------------------------------------Hum panno do Pulpito do mesmo Damasco com seus galoens e franjas de ouro--------------------[31] […] Hua Imagem do Senhor Crucificado, que serve no Altar mor com seus caixilhos de prata lavrada sem resplandor nem coroa---------------------------------------------------------------------------------------Huma Imagem de outro Senhor Crucificado com caixilhos de Bronze, o qual se acha na Sanchrestia---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Outra Imagem do Senhor Crucificado que vai nas procissoens com seus remates de Bronze sobre dourados e resplandor do mesmo que esta na Caza do despacho--------------------------------Mais outra Imagem de outro Senhor Crucificado que esta no coro----------------------------------------Duas Imagens grandes hua do Senhor ecce homo, outra do Senhor Prezo a Culluna que estam no Altar collateral da parte do Evangelho-------------------------------------------------------------------Mais hua Imagem do Senhor Crucificado grande que esta no Altar collateral da parte da Epistolla com as Imagens de Nossa Senhora, e São João e Santa Maria Madalena------------------Mais outra Imagem do Senhor Morto que esta na Sanchrestia com seu caixam ou tumulo----Hua Imagem de Nossa Senhora de marfim com sua coroa de prata que esta na Caza do despacho-------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------[32] […] Hum coadro do descendimento da Crux que levou a contentamento da Meza em o anno de
[30] A.S.C.M.L. – Livro n.º 6 A. [31] A.S.C.M.L. – Livro n.º 6 A, fl. 2. [32] A.S.C.M.L. – Livro n.º 6 A, fls. 5-5v.
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1751 o Reverendo Abbade de Barcos com a obrigacam de que por sua morte tornaria para a Caza o qual ficou em caza do Abbade----------------------------------------------------------------------------------Coatro coadros grandes a saber hum da Senhora do Rozario, outro de Santa Thereza, que estam na Sanchrestia, e os outros dois do Martirio de Santo Estevam, e de São Luis que estam na Caza do despacho---------------------------------------------------------------------------------------------------Dois coadros mais piquenos, hum de santo Antonio, outro de São Francisco que estam na Sanchrestia---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Hum coadro do Senhor levantado na Crux que esta na Caza do despacho------------------------------[…] Sinco paneis grandes da paixam de Christo, que estam na Caza da Cera, e hum na Sanchrestia---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------[33] -[…]. Por este inventário, inferimos a existência de três altares na igreja (um mor e dois colaterais), não referindo, contudo, se eram em talha, e as respetivas imagens. Já nos finais do século XIX, mais concretamente, em 1877, D. Joaquim de Azevedo na sua Historia Ecclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego, a propósito da descrição de alguns estabelecimentos dános conta que a igreja da Misericórdia ficava afastada do Hospital, o que não é novidade, e que não se podia apontar uma data precisa para a sua fundação, embora existam alguns indícios e datas que apontem para a sua reconstrução e ampliação. Segundo o mesmo autor, a primitiva igreja seria bastante mais pequena, devendo chegar apenas até onde se situa, atualmente, no último quartel do século XIX, o arco cruzeiro, uma vez que a capela-mor, segundo ele, é mais moderna, já que no lugar dela se dava serventia para o açougue que ficava encostado ao edifício para o lado poente. Ora, se confrontarmos esta descrição com a do Tombo, podemos inferir que o açougue se encontrava localizado na rua do Castelo que fica afastada da rua da Misericórdia[34]. Tendo em conta o mesmo autor, no arco cruzeiro da igreja existia uma inscrição que provava a data de levantamento do arco pelo provedor Álvaro de Sequeira, em 1640. Para além disso, nos capitéis das colunas do pórtico estava gravada a data de 1688 e, no centro, as armas do bispo Dom Frei Luís da Silva que governou o bispado de Lamego entre 1677 a 1685, tal como já tinha sido referido no Tombo e que a escritura de 11 de agosto de 1687 comprova.
[33] A.S.C.M.L. – Livro n.º 6 A, fls. 5v-6. [34] A.S.C.M.L. – Livro n.º 3 A, fl. 16.
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Na sua Historia continua a descrição da igreja, dizendo que a mesma era pequena, mas bem decorada, o teto de madeira e apainelado, mas não possuía pinturas e o da capela-mor era estucado e foi obra da responsabilidade do bispo Dom João António Binet Pincio (1786-1821) que foi provedor da Santa Casa. Uma vez mais, confrontámos este relato com os descritos no Tombo e Memórias Paroquiais, onde se refere que esta igreja era muito comprida e larga e o teto era todo apainelado, pintado com quadros de molduras douradas, tanto o corpo como a capela-mor. Por esta descrição, concluímos que teria havido uma alteração na igreja, sobretudo, na capela-mor. D. Joaquim de Azevedo diz-nos, ainda, que a igreja possuía não só um altar-mor com uma [35] «elegante tribuna dourada, e um bom retábulo» com a representação da Visitação de Nossa [36] Senhora a Santa Isabel, obra do pintor Pedro Alexandrino de Carvalho (painel este que se encontra, atualmente, na posse do Museu de Lamego), mas também dois altares laterais com as imagens de Jesus, de vulto. Comparando esta descrição com as anteriores, verificámos que ou por esquecimento do autor ou por inexistência das obras, os altares colaterais não tinham retábulos dourados em arco, eram laterais e não colaterais e o púlpito não existia. Provavelmente, teria sido esquecimento, uma vez que na descrição do Tombo, também não há referência a retábulos e somente a altares, o mesmo não acontecendo com o códice 547 e com as Memórias Paroquiais. Quanto ao púlpito[37], tanto no códice como nas Memórias Paroquiais, não é referido, exceto no Tombo de 1752 e no inventário de 1765. Refere ainda que o adro da igreja se encontrava gradeado com grades de ferro e que junto à mesma e pegada a ela havia ainda a casa das sessões da Mesa e o celeiro ou tulha. Relativamente aos espaços, D. Joaquim de Azevedo também não faz menção ao coro e à sacristia[38]. O coro também não é mencionado no códice 547, mas já é referido em 1752, 1758 e 1765.
[Figura 2] Vista sobre a rua de Almacave, antes do incêndio de 1911. (Fonte: José Costa). [35] AZEVEDO, 1877: 17. [36] ALVES, 2001, vol. I: 176; AZEVEDO, 1877: 17; COSTA, 1986: 375. [37] COSTA, 1986: 375. O autor também não o menciona. [38] COSTA, 1986: 375. O autor também não a menciona.
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Para o século XX, cingimo-nos a duas datas cruciais: 1911 e 1913. Segundo informação colhida num livro de Actas de Sessões da Mesa[39], a igreja terá sido parcialmente destruída pelas chamas, no incêndio que ocorreu na rua de Almacave no dia 26 de junho de 1911[40] «que ficará gravado na história de Lamego como um acontecimento que enlutou esta terra. O templo da Misericórdia […] também foi atingido pelas chamas, e todo se destruiria, e com ele algumas suas riquezas, se não fosse o esforço de muitas pessoas»[41].
[Figura 3] Lamego. Incêndio da rua de Almacave em 26/06/1911. (Fonte: Arquivo de Imagem de Lamego).
[Figura 4] Lamego. Incêndio da rua de Almacave em 26/06/1911. (Fonte: Arquivo de Imagem de Lamego).
[39] A.S.C.M.L. – Livro n.º 13 (6 B), fls. 110-111. Sessão extraordinaria da Mêsa de 14 de Julho de 1911. [40] CABRAL, 2002: 10-12; LARANJO, 1988: 22; SILVA, 2002: 132. Este último autor corrobora a mesma data baseando-se no livro de Cordeiro Laranjo, p. 22, nota 29. [41] A.S.C.M.L. – Livro n.º 13 (6 B), fl. 111. Sessão extraordinaria da Mêsa de 28 de Julho de 1911.
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A partir desta data e até 1913 são inúmeras as atas de Sessões da Mesa e da Junta Geral da Irmandade, onde se dá conta da gravidade do incêndio; dos estragos que causou na igreja; dos ofícios trocados entre a provedoria e a Companhia de Seguros Garantia do Porto relativamente à indemnização a receber pelos prejuízos causados; da recusa por parte da Santa Casa em aceitar a indemnização por considerar o valor da avaliação injusto; das intenções da Câmara em querer trocar a igreja da Misericórdia pelo velho templo das Chagas ou da Graça, ambos propriedade da Câmara, alegando que uma vez destruídas completamente as casas do lado poente da rua de Almacave haveria necessidade de alargar a rua que era estreita e, assim sendo, uma vez que a rua tinha de ser reconstruída, o alargamento impunha-se e a igreja da Misericórdia teria de ser «sacrificada» e não restaurada. Plano este que consistia em alargar a rua pelo lado poente, seguindo uma linha reta com início na esquina de uma casa que fica ao lado da igreja de Almacave, à esquina da frente da igreja de [42] São Francisco ; do pagamento da indemnização por parte da Companhia; da realização de uma [43] nova apólice referente à igreja e ao seu espólio ; da aceitação da igreja das Chagas por parte da Santa Casa, cabendo à Câmara a demolição da igreja, todo o material em pedra da mesma, o pórtico com as suas colunas e os transportes do material reservado à Santa Casa para um lugar que não fosse superior em distância à igreja das Chagas, nomeadamente, toda a madeira, os altares e as imagens[44] e da aplicação do dinheiro recebido pela indemnização e da venda do material do «velho templo»[45] no restauro da igreja das Chagas. A partir de meados de julho de 1913, tanto a Mesa como a Junta reúnem-se por diversas vezes para dar parecer positivo à proposta da Câmara; proceder à mudança da mobília, altares e outros artigos pertencentes à antiga igreja para a das Chagas[46], até 15 de agosto de 1913, quando se dá a bênção e
[42] A.S.C.M.L. – Livro n.º 13 (6 B), fl. 111-112. Sessão extraordinaria da Mêsa de 28 de Julho de 1911. Segundo esta sessão, ficámos a saber que a Câmara de Lamego teria enviado um ofício à Mesa da Santa Casa, datado de 30 de junho de 1911, quatro dias após o incêndio, dizendo que como parte da igreja da Misericórdia terá de ser aproveitada para o alargamento da rua, espera que a Santa Casa não mande restaurar a igreja dos estragos causados pelo incêndio, oferecendo em troca e à escolha duas igrejas que pertencem ao município: a da Graça e a das Chagas. Perante este ofício a Mesa entendeu que não deveria levantar entraves à Câmara, não só por a julgar justa, mas também por ser vontade do povo lamecense, «apesar do muito respeito que deve haver pelo antigo templo da Misericórdia de secular existência e de nobres tradições», alegando que não deve, «só pelo respeito do passado, entrincheirarmo-nos nelle, para defendermos a todo o tramo a sua conservação e existência, contra os sopros violentos do progresso e do gosto moderno, que exigem para as cidades e grandes povoações largas ruas e avenidas onde a luz e o ar possam dominar completamente, não se importando que para isso tenham de ser destruídos palacios antigos, templos religiosos e outras relíquias do passado […]. Se o passado nos merece respeito com mais razão deve merecer o futuro. Portanto, se a cidade de Lamego precisa do templo da Misericordia, ou antes, do seu terreno em que este assenta, para um grande melhoramento, a Santa Casa deve entregar-lho». [43] A.S.C.M.L. – Livro n.º 13 (6 B), fls. 120v-121. Sessao ordinaria da Mesa de 14 de Dezembro de 1911. [44] A.S.C.M.L. – Caixa: Diversos, processo n.º 472 A. Ofício n.º 90 da Câmara Municipal de Lamego, enviado à Santa Casa da Misericórdia e datado de 12 de junho de 1913. [45] A.S.C.M.L. – Livro n.º 2 B, fl. 40v. Acta da Sessão da Junta Geral da Irmandade da Santa Casa da Misericordia de Lamego realizada em 6 d'Agosto de 1911. [46] A.S.C.M.L. – Livro n.º 14 (7 B), fl. 11-11v. Sessão ordinaria da Mêsa de 8 de Julho de 1913.
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inauguração da nova igreja da Misericórdia, a funcionar a partir desta data na igreja do extinto Convento das Chagas[47]. Estamos em crer, por isso, que o ano de 1913 marca o desaparecimento da igreja da Misericórdia, onde teria estado há mais de 300 anos como é referido em Actas da Irmandade[48]. Quanto ao seu espólio, não sabemos o que terá acontecido. Se tivesse ardido, a Câmara não se referiria a ele, a Mesa também não e a nova apólice não teria sido feita. Sabemos, porém, que relativamente aos azulejos e guarda-vento da igreja da Misericórdia, foram oferecidos à Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios a pedido do Juiz da mesma Irmandade, tal como prova a Acta das Sessões da Mesa de 24 de Agosto de 1913[49] e que, em 1914[50], o provedor tinha «feito a venda dum dos altares lateraes da extinta Egreja da Misericordia para a capela do povo de Juvandes, freguezia de Villa Nova de Souto D`El Rei deste concelho pela quantia certa de oitenta escudos», altar e não retábulo pertencente à primitiva igreja, muito provavelmente o que hoje se encontra na capela de Nossa Senhora da Graça, do povo, ainda que não haja provas documentais que seja este o que proveio da igreja da Misericórdia, pois sabemos que as andanças destas estruturas eram constantes. Interrogamo-nos se os restantes retábulos também partilharam de igual sorte, encontrando-se dispersos pela diocese de Lamego nalguma igreja ou capela ou então foram mais longe, vendidos a algum particular, queimados por falta de espaço ou por não se coadunarem com a estética vigente ou, simplesmente, deixados ao abandono, numa viagem sem retorno.
[Figura 5] Lamego. Rua de Almacave, atualmente (Fonte: Arquivo de Imagem de Lamego). [47] A.S.C.M.L. – Livro n.º 14 (7 B), fls. 13v-14v. Sessão ordinaria da Mêsa de 8 de Agosto de 1913. [48] A.S.C.M.L. – Livro n.º 13 (6 B), fl. 112v. Sessão extraordinaria da Mêsa de 28 de Julho de 1911. [49] A.S.C.M.L. – Livro n.º 14 (7 B), fls. 14v-15v. Sessão ordinaria da Mêsa. [50] Informação gentilmente cedida pela Dr.ª Helena Lemos que tivemos oportunidade de confirmar em arquivo. A.S.C.M.L. – Livro n.º 14 (7 B), fl. 32. Sessão ordinária da Mesa de 8 de Julho de 1914.
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CONCLUSÃO
Em termos de conclusão, podemos inferir que a primitiva igreja da Misericórdia continua imbuída em grande secretismo, no que toca aos artistas e artífices responsáveis pela sua construção e ornamentação, assim como o que foi feito ao espólio da igreja quando a Câmara de Lamego, a pretexto de expropriar o terreno para alargamento da rua onde esta se encontrava edificada, propôs à Santa Casa desta cidade, a troca da sua igreja pela do Mosteiro das Chagas. São quase nulos os nomes, datas e documentos referentes à sua fundação, assim como permanecem anónimos os nomes dos autores de quase todas as obras de pintura, imaginária e talha, nomeadamente, os quatro retábulos que decoravam o seu interior e que, ao longo dos séculos, trabalharam para esta Irmandade. Relativamente à talha e pintura julgámos terem existido, pelo menos três retábulos-mores: um primitivo, maneirista, onde figurava o painel da Visitação do pintor/dourador quinhentista António Leitão que, atualmente, se encontra na capela de Santa Ana pertencente a Cepões, freguesia da diocese de Lamego; um segundo retábulo-mor, posterior às obras de 1688, de transição para o estilo nacional ou nacional, o mesmo que é descrito pelas Memórias Paroquiais de 1758 já com a sua tribuna dourada e apainelada, onde para além de pinturas da Paixão do Senhor e do painel da Visitação (na banqueta), está patente um outro painel (por detrás da tribuna) com a invocação da Nossa Senhora da Misericórdia; e, por último, um terceiro retábulo-mor, de feição neoclássica, com a mesma invocação da Visitação da autoria do pintor Pedro Alexandrino de Carvalho, obra esta que se enquadra na alteração da capela-mor referida por D. Joaquim de Azevedo. Desapareceu o edifício, o espólio, mas também quase toda a documentação, mesmo aquela que Vergílio Correia nos deu a conhecer. É provável que o incêndio de 1911, a constante mudança de instalações da Santa Casa da Misericórdia de Lamego até culminar na atual sede, situada no palácio dos Vilhenas, e o próprio desleixo a que foi sujeito o seu arquivo, característico dos tempos modernos que relegou para um segundo plano os papéis “velhos”, tenham contribuído para este anonimato, já que o arquivo que atualmente existe, apesar de conter um generoso acervo documental, não possui grande informação no que toca às obras. Os poucos documentos encontrados referentes a estas, encontram-se, sabiamente, guardados no Arquivo Distrital de Viseu, mas ainda assim, não foram muito elucidativos quanto à desaparecida igreja da Misericórdia.
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FONTES MANUSCRITAS
ARQUIVO da Santa Casa da Misericórdia de Lamego – Caixa: Diversos, processo nº 472 A. – Tombo 2º dos Irmaos desta S. Caza. Anno 1716 (Treslado do Testamento e doação de Phelipa Rodrigues do Amaral que fez a Caza do Hospital desta cidade de Lamego, 1597). – Primeiro Livro do Tombo dos prazos, rendas e foros pertencentes á Sancta Caza da Mizericordia desta Cidade de Lamego, Livro n.º 3 A (1752-1757). – Livro que ha de servir para inventariar todos os bens da Igreja da Sancta Caza da Mizericordia, e Imagens, como também da Sanchrestia, Caza da Cera, e do Despacho e das Tumbas este anno de 1765 e para os mais que se seguirem, Livro n.º 6 A (1765-1918). – Livro de Actas das Sessões da Junta Geral da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Lamego, n.º 2 B, Junho de 1902/Novembro de 1983. – Livro d'Actas de Sessoez de Mesa, n.º 13 (6 B), Dezembro/1908-Março/1913. – Livro d'Actas de Sessoez de Mesa, n.º 14 (7 B), Abril/1913-Novembro/1924.
ARQUIVO Distrital de Viseu – Fundo Notarial, Livro de Notas de Lamego, n.º 85/5, fls. 71-73; n.º 379/9, fls. 40-41; n.º 470/40, fls. 17v-18; n.º 470/40, fls. 22-22v; n.º 470/40, fls. 24-24v; n.º 529/46, fls. 53v-54.
ARQUIVO Nacional Torre do Tombo – Dicionário Geográfico de Portugal, MPRQ, vol. 19, n.º 42.
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as
Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
1.º painel | conferência O PINTOR ANTÓNIO LEITÃO, UMA POSSÍVEL PARCERIA, E AS OBRAS DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO NA SEGUNDA METADE DO SÉC. XVI Maria Beatriz Correia de Albuquerque
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ATAS DAS 6AS CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM | 2019
PALAVRAS-CHAVE Leitão, Retábulo, Maneirista, Misericórdia.
RESUMO António Leitão, pintor do século XVI, é uma figura sui generis pelo facto pertencer à nobreza rural de Castelo Bom e assumir o munus de pintor, algo raro à época. Ingressou na corte da Infanta D. Maria, como moço de câmera, pela mão de seu tio Domingos Leitão, figura de proa na diplomacia da época. Gestor de conflitos e negócios ao serviço de D. Leonor, de sua filha D. Maria e de D. João III, o diplomata percorreu as várias cortes europeias ao serviço da coroa. Na corte de D. Maria, interessou-se, com Francisco de Holanda, filho do iluminador António de Holanda, pelo estudo da pintura, apesar de na sua família ninguém a exercer essa atividade. Acompanhando o tio, com a função de soldado, deve-o ter auxiliado nos afazeres diplomáticos, uma vez que um dos testemunhos referenciados menciona que se António Leitão não tivesse regressado a Portugal, teria ficado no lugar de embaixador da Infanta. Pela nossa pesquisa, nada nos indica que tenha exercido a atividade de pintor nesta região ou que tenha feito alguma aprendizagem nesse sentido. No entanto, somos levados a pensar que frequentara, pelo menos, o meio artístico flamengo. Casou com uma mulher flamenga que terá adoptado o nome Luíza dos Reis quando veio viver para Portugal. Luíza dos Reis era também pintora e tida como uma mulher “muito bem disposta e muito fermosa”. O facto de ser pintora leva-nos a crer que alguns dos seus familiares o tenham sido e talvez, por isso, também tivesse aprendido a pintar, seguindo desde criança todo o aprendizado comum à arte. Nessa época tal atividade não era própria ao género feminino, mas a menção que dela é feita como pintora, por várias testemunhas, credibiliza esse facto. António Leitão regressou da Flandres em data indefinida, provavelmente para a Corte da Infanta D. Maria. Mais tarde, por volta do ano de 1560, é enviado a Roma para aprofundar os conhecimentos de pintura. Muito bem recebido pelo embaixador Lourenço Pires de Távora na cúria romana, talvez por deferência ao tio António Leitão, só volta a Portugal por volta de 1562, altura em que aquele embaixador português regressa, em fim de comissão. Depois de regressar de Roma, foi viver para Castelo Bom, acompanhado pela mulher e filhos, como um verdadeiro fidalgo. A sua casa era farta e provida de muitos criados. Esse era também o local de residência dos irmãos. O artista e família foram viver posteriormente para a freguesia de Almacave, em Lamego, local de residência de artesãos e artistas. Nos anos que medeiam entre 1564 e 1571, exerceu a atividade de pintor, trabalhando para a Misericórdia de Lamego. 1571 é o último ano de registo documentado da sua obra como pintor na cidade. Durante os vinte anos que viveu em Lamego realizou obras artísticas na Misericórdia dessa cidade e noutras localidades próximas, tais como Foz Côa e Freixo de Espada à Cinta. O retábulo da Misericordia de Lamego deve ter sido iniciado por volta de 1564, uma vez que sabemos que no ano de 1565 o pintor se encontrava a terminar esse trabalho. O retábulo era apainelado representando cenas da paixão de Cristo. Ao centro destaca-se o painel da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, orago da Misericórdia. Sobre este, em tribuna, um outro, alusivo à Virgem da Misericórdia. Coube também a António Leitão o douramento do retábulo, prática bastante frequente entre os pintores da época, como podemos comprovar através do documento das contas da Misericórdia onde se refere o pagamento feito ao artista pelo ouro e prata utilizados no mesmo. São diversas as testemunhas mencionadas nos processos de Habilitação do Santo Ofício que referem Luíza dos Reis como pintora. Tal facto não é mencionado no contrato uma vez tratar-se de uma mulher casada. Aventamos a teoria de ter trabalhado com o marido em parceria, prática muito comum entre os artistas da época, reforçada pelas circunstâncias do matrimónio. Aduzimos inclusive a hipótese de serem dela duas tábuas da Paixão de Cristo: Cristo da Cana Verde e a Flagelação de Cristo, que se encontram atualmente no Museu de Lamego, provindas da Misericórdia de Lamego, e que pensamos que fariam parte do retábulo da Misericória. É obra de grande qualidade artística, de gosto vincadamente flamengo e clássico ao encontro das preferências dos encomendantes da região muito familarizados com este estilo. Por sua vez o painel da Visitação apresenta muitas das soluções maneiristas, destacando-se de imediato a verticalidade da representação, contrariada apenas pela curvatura das figuras centrais - Maria e Isabel - bem como pela exuberância das cores. A estrutura compositiva do painel reflete o novo gosto maneirista: o espaço é denso, ocupado por um grande número de personagens (oito no total) apertadas, evidenciando-se o horror vacui!
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ABSTRACT
KEYWORDS Leitão, Altarpiece, Mannerist, Misericórdia.
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António Leitão, painter of the sixteenth century, is a sui generis figure because he belongs to the rural nobility of Castelo Bom and takes on the munus of painter, something rare at the time! He entered the court of the Infanta D. Maria, as a camera man, by the hand of his uncle Domingos Leitão, figurehead in the diplomacy of the time. Conflict and business manager at the service of D. Leonor, his daughter D. Maria and D. João III, the diplomat toured the various European courts at the service of the crown. At the court of D. Maria, he was interested, with Francisco de Holanda, son of the illuminator António de Holanda, for the study of painting, although in his family nobody to carry out this activity. Accompanying his uncle as a soldier, he must have assisted in his diplomatic duties, since one of the testimonies referred to mentions that if António Leitão had not returned to Portugal, he would have remained in the position of Infanta's Ambassador. By our research, nothing indicates to us that he has exercised the activity of painter in this region or that he has done some learning in that sense. However, we are led to think that he had at least attended the Flemish art scene. He married a Flemish woman who would have adopted the name Luíza dos Reis when she came to live in Portugal. Luiz dos Reis was also a painter and considered as a woman "very well disposed and very beautiful." The fact that she is a painter leads us to believe that some of her relatives have been and perhaps, therefore, had also learned to paint, following from childhood all learning common to art. At that time this activity was not proper to the feminine gender, but the mention that is made of it as a painter, by several witnesses, credits this fact. António Leitão returned from Flanders indefinitely, probably to the Infanta D. Maria Court. Later, around the year 1560, he was sent to Rome to deepen his knowledge of painting. Very well received by Ambassador Lourenço Pires de Távora in the Roman curia, perhaps in deference to Uncle António Leitão, he only returned to Portugal around 1562, when that Portuguese ambassador returned, at the end of his commission. After returning from Rome, he went to live in Good Castle, accompanied by his wife and children, as a true gentleman. Her house was full and had many servants. This was also the place of residence of the brothers. The artist and family went to live later in the parish of Almacave, in Lamego, home of craftsmen and artists. In the years that average between 1564 and 1571, exerted the activity of painter, working for the Misericórdia of Lamego. 1571 is the last year of documented registration of his work as a painter in the city. During the twenty years that he lived in Lamego he made artistic works in the Misericórdia of that city and in other nearby places, such as Foz Côa and Freixo de Espada à Cinta. The altarpiece of Misericordia de Lamego must have been started around 1564, since we know that in the year 1565 the painter was finishing this work. The altarpiece was paneled depicting scenes of Christ's passion. To the center stands the panel of the Visitation of Our Lady to St. Elizabeth, orago of the Misericordia. It also belonged to António Leitão, the gilding of the altarpiece, a practice that was quite frequent among the painters of the time, as we can see from the Misericórdia accounts document, which refers to the payment made to the artist for the gold and silver used in it. There are several witnesses mentioned in the processes of Qualification of the Holy Office that refer to Luíza dos Reis as a painter. This is not mentioned in the contract since it is a married woman. We ventured the theory of having worked with the husband in partnership, practice very common among the artists of the time, reinforced by the circumstances of the marriage. We are even assuming that they are two tablets of the Passion of Christ: Christ of the Green Cane and the Flagellation of Christ, which are currently in the Museum of Lamego, coming from the Mercy of Lamego, and which we thought would be part of the altarpiece of Mercy. It is a work of great artistic quality, with a strongly Flemish and classic taste to meet the preferences of the commissioners of the region very familiarize with this style. On the other hand the panel of the Visitation presents many of the Mannerist solutions, standing out immediately the verticality of the representation, contradicted only by the curvature of the central figures Maria and Isabel - as well as by the exuberance of the colors. The compositional structure of the panel reflects the new Mannerist taste: the space is dense, occupied by a large number of characters (eight in total) tight, evidencing the horror vacui!
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O PINTOR ANTÓNIO LEITÃO, UMA POSSÍVEL PARCERIA, E AS OBRAS DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO NA SEGUNDA METADE DO SÉC. XVI MARIA BEATRIZ CORREIA DE ALBUQUERQUE Conservadora-restauradora
1. Os pintores António Leitão e Luiza dos Reis António Leitão, pintor do século XVI, é uma figura sui generis pelo facto pertencer à nobreza rural de Castelo Bom e assumir o múnus de pintor, algo raro à época. Ingressou na corte da Infanta D. Maria, como moço de câmara, pela mão de seu tio Domingos Leitão, figura de proa na diplomacia da época. Gestor de conflitos e negócios ao serviço de D. Leonor, de sua filha D. Maria e de D. João III, o diplomata percorreu as várias cortes europeias ao serviço da Coroa. Familiares do pintor exerciam diversos cargos na corte de D. Maria, tendo outros permanecido em Castelo Bom, Pinhel e Riba-Côa, exercendo cargos de relevo. A importância e valor desta família na região são relatados nestes termos:
“ (...) disse que ouuira dizer q procedia de annos a esta parte dos Leitões de Castelo Bom homens muito principais dos melhores deste Reyno, e tidos e avidos por cristãos velhos (...)”[1]
As informações que chegaram até nós devem-se a António Faria[2], que nos traça a genealogia do pintor, movimentações da família e cargos que ocupa. Estas foram obtidas através das Habilitações do Santo Ofício referentes a dois netos do pintor e ao seu genro, a saber: Dr. António Homem Leitão e Mateus Homem Leitão, feitas entre 1634 e 1638, e Gregório Rodrigues, feitas em 1622, respetivamente. As diferentes testemunhas citadas nos processos mencionam quem eram os familiares que conheceram, fazendo referência a António Leitão, sua mulher e filhos. [1] Habilitações do Santo Ofício, Dr. António Leitão Homem, Maço 6, Diligência 247, feita em 1634-ANTT-: testemunha, Herónimo Herédia Barbosa, morador na vila de Pinhel, dizia-se parente do pintor António Leitão mas não sabia em que grau. Ele era filho de Leonor Barbosa e de António Herédia (fidalgo Aragonês) e neto de Franca Leitão casada com Tristão Leitão, irmã de João Gomes Leitão, pai de António Leitão o pintor. [2] FARIA, António Machado de, “Dois pintores quinhentistas de escola estrangeira”, Revista Arqueologia e História, Vol. X, Lisboa, 1963.
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Outro contributo fundamental deveu-se a Vergílio Correia , com a publicação de um contrato referente aos trabalhos que o pintor fez para a Misericórdia de Lamego, de cujo retábulo não se sabia o paradeiro, até à descoberta por nós do painel da Visitação que se encontra atualmente na capela de Santana em Cepões, e que fazia parte do retábulo apainelado que o pintor realizou para a Misericórdia. Na corte de D. Maria, interessou-se, com Francisco de Holanda, filho do iluminador António de Holanda, pelo estudo da pintura, apesar de na sua família ninguém a exercer essa atividade. Talvez tenha sido o ambiente artístico e intelectual da corte que motivou António Leitão a interessar-se pela pintura, embora não tenhamos qualquer informação que o confirme. Não nos podemos deixar de interrogar, no entanto, por que razão escolheu esta profissão quando o mais natural teria sido seguir uma carreira de serviços públicos, como aqueles que desempenhara o tio, a viver na Flandres durante a década de 50 do século XVI. Acompanhando o tio, com a função de soldado, deve-o ter auxiliado nos afazeres diplomáticos, uma vez que um dos testemunhos referenciados menciona que se António Leitão não tivesse regressado a Portugal, teria ficado no lugar de Embaixador da Infanta. Pela nossa pesquisa, nada nos indica que tenha exercido a atividade de pintor nesta região ou que tenha feito alguma aprendizagem nesse sentido. No entanto, somos levados a pensar que frequentara o meio artístico flamengo. Casou com uma mulher flamenga que terá adotado o nome Luíza dos Reis quando veio viver para Portugal. Luíza dos Reis era também pintora e tida como uma mulher “muito bem disposta e muito fermosa”. O facto de ser pintora leva-nos a crer que alguns dos seus familiares o tenham sido e talvez, por isso, também tivesse aprendido a pintar, seguindo desde criança todo o aprendizado comum à arte. Nessa época tal atividade não era própria ao género feminino, mas a menção que dela é feita como pintora, por várias testemunhas, credibiliza esse facto. António Leitão regressou da Flandres em data indefinida, provavelmente para a Corte da Infanta D. Maria. Mais tarde, por volta do ano de 1560, é enviado a Roma para aprofundar os conhecimentos de pintura. Muito bem recebido pelo embaixador Lourenço Pires de Távora na cúria romana, talvez por deferência ao tio António Leitão, só volta a Portugal por volta de 1562, altura em que aquele embaixador português regressa em fim de comissão. António Leitão deve ter permanecido cerca de dois a três anos em Roma, uma vez que em 1564 já se encontrava a trabalhar para a Misericórdia de Lamego. O facto de ter sido enviado para a Cúria Romana, ao cuidado do Embaixador, proporcionou-lhe
[3] CORREIA, 1923, pp.26-28.
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contactos ao mais alto nível no meio artístico, até porque nesta data se encontravam em Roma numerosos artistas, chegados de toda a Itália e da Flandres, para realizarem as obras do Ano Santo de 1575. Depois de regressar de Roma, foi viver para Castelo Bom, acompanhado pela mulher e filhos, como um verdadeiro fidalgo. A sua casa era farta e provida de muitos criados. Esse era também o local de residência dos irmãos. A sua posição social permitia-lhe ter mula e cavalo de Estado e a informação abaixo transcrita comprova que mantinha ainda funções públicas: “trazia um chapéu de ueludo uerde com huma trança de ouro” e “ hum anel douro grande com as armas da senhora Jnfanta nelle”. [4]
O artista e família foram viver posteriormente para a freguesia de Almacave, em Lamego, local de residência de artesãos e artistas. Parece-nos incongruente que um nobre do seu estatuto social preferisse Almacave à freguesia mais prestigiante da Sé, porém não sabemos a razão desta escolha. Nos anos que medeiam entre 1564 e 1571, exerceu a atividade de pintor, trabalhando para a Misericórdia de Lamego. 1571 é o último ano de registo documentado da sua obra como pintor na cidade. Durante os vinte anos que viveu em Lamego realizou obras artísticas na Misericórdia dessa cidade e noutras localidades próximas, tais como Foz Côa e Freixo de Espada à Cinta. O retábulo da Misericórdia de Lamego deve ter sido iniciado por volta de 1564, uma vez que sabemos que no ano de 1565 o pintor se encontrava a terminar esse trabalho. O retábulo era apainelado representando cenas da paixão de Cristo. Ao centro destaca-se o painel da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, orago da Misericórdia. Sobre este, em tribuna, outro, alusivo à Virgem da Misericórdia. Ambos de igual tamanho como nos indica o trecho que passamos a transcrever:
“ Tem o altar mor tribuna dourada e apainelada com insignes pinturas da Payxão do Senhor e no meyo junto à banqueta hum grande paynel da Visitação da Senhora à Santa Isabel, que he o seo Orago, por sima do qual tem hua tribuna dourada, que cobre outro paynel de igual grandeza, em cujo está ricamente pintada a Imagem de Nossa Senhora com o titulo da Misericordia”.[5]
Coube também a António Leitão o douramento do retábulo, prática bastante frequente entre os [4] FARIA, 1963, p. 195. [5] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 236 - ANTT.
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pintores da época, como podemos comprovar através do documento das contas da Misericórdia onde se refere o pagamento feito ao artista pelo ouro e prata utilizados no mesmo. São diversas as testemunhas mencionadas nos processos de Habilitação do Santo Ofício que referem Luíza dos Reis como pintora. Tal facto não é mencionado no contrato uma vez tratar-se de uma mulher casada. Aventamos a teoria de ter trabalhado com o marido em parceria, prática muito comum entre os artistas da época, reforçada pelas circunstâncias do matrimónio. Aduzimos inclusive a hipótese de serem dela duas tábuas da Paixão de Cristo: Cristo da Cana Verde e a Flagelação de Cristo, que se encontram atualmente no Museu de Lamego, provindas da Misericórdia de Lamego, e que pensamos que fariam parte do retábulo da Misericórdia. Luíza dos Reis provinha certamente de uma família de pintores; de outra forma e sendo ela mulher, esta atividade ser-lhe-ia negada. O mais provável era que o seu pai fosse pintor e que ela, desde criança, o tivesse auxiliado no tratamento dos pincéis, preparação das tintas e com ele tenha aprendido a arte de pintar. Facto similar aconteceu em época posterior com pintora Josefa de Óbidos (1630-1684), cujo aprendizado foi feito junto de seu pai, o pintor Baltazar Gomes Figueira. O facto de ser solteira permitiu-lhe a liberdade de singrar como grande pintora reconhecida no seu tempo, com uma vastíssima obra, tendo inclusive sido retratista da família real portuguesa. Outro exemplo é o da monja pintora soror Maria dos Anjos ou Maria Josefa dos Anjos (1631-1677) filha do pintor eborense Pedro Nunes, contemporânea de Josefa de Óbidos. Ao aprender o ofício de pintora [6] com seu pai , destacou-se no meio conventual. Apesar da sua condição de freira, teve sempre a liberdade para poder pintar. Por isso Luíza dos Reis não seria caso único; e talvez não se tivesse destacado tanto, pelo facto de ser casada ou por não haver contratos com o seu nome, não chegando por isso aos nossos dias mais informações sobre a sua atividade como pintora. Saliente-se que, nesta época, eram frequentes os laços de parentesco entre os artistas. Citemos como exemplo os mestres de Ferreirim: Garcia Fernandes contraiu matrimónio com uma filha de Francisco Henriques. Este, por sua vez, casara com uma irmã do pintor Jorge Afonso, sogro de Gregório Lopes. Cristóvão de Figueiredo casara também com uma filha de Pero Anes, mestre de carpintaria, que trabalhou em quase todas as obras régias, e tinha por compadre Gregório Lopes. Decorrentes destas uniões familiares ocorrem parcerias laborais, criando-se assim um grupo muito coeso muito próximo da corte de D.Manuel I e de D.João III. Este grupo acabará por fundar [7] uma oligarquia mesteiral que repartia entre si encomendas e benesses régias .
[6] SERRÃO, Vitor, “Artes no feminino na Évora do século XVII: Maria Josefa dos Anjos, uma mulher com inclinação e génio para pintar”, Congresso Internacional, Um reino de mulheres, expressões literárias, culturais e artísticas nas instituições monástico-conventuais femininas, Évora, 23 de Abril, 2019. [7] CAETANO, Joaquim Oliveira, Garcia Fernandes, um pintor do renascimento eleitor da Misericórdia de Lisboa, Museu de S. Roque, Lisboa 1998, pp.20-21e 39.
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Não seria portanto de estranhar que António Leitão se casasse com uma pessoa do meio artístico e com ela trabalhasse. Apesar das pinturas da Flagelação e Senhor da Cana Verde ainda se expressarem num estilo clássico, este não era de forma alguma estranho a estes encomendantes ainda fortemente marcados pelas obras de Vasco Fernandes, Gaspar Vaz, Cristóvão de Figueiredo, Garcia Fernandes e Gregório Lopes, pintores de topo que trabalharam para a corte e para os grandes mecenas do reino, e que nas primeiras décadas do século XVI afluíram a Lamego e seus arredores criando obras marcantes. Numa descrição do primitivo retábulo da Misericórdia há uma referência às pinturas da Paixão de Cristo considerando-as notáveis como que as destacando das pinturas centrais do retábulo.
“Tem o altar mor tribuna dourada e apainelada com insignes pinturas da Payxão do Senhor e no meyo junto à banqueta hum grande paynel da Visitação da Senhora à Santa Isabel, que he o seo Orago, por sima do qual tem hua tribuna dourada, que cobre outro paynel de igual grandeza, em [8] cujo está ricamente pintada a Imagem de Nossa Senhora com o titulo da Misericordia”
Por essa razão parece-nos que não seria inusitada a coexistência no mesmo retábulo de dois estilos: um, mais clássico, de influência flamenga e outro, mais vanguardista, de influência italiana, mas ainda seguindo modelos clássicos, uma vez que o pintor António Leitão no painel da Visitação segue o modelo compositivo do painel da Visitação que o pintor Vasco Fernandes realizou para o retábulo da Sé de Lamego. Analisando estas duas pinturas, ambas são pinturas a óleo de dimensões similares, executadas em painéis de madeira de castanho. No painel da Flagelação, Cristo aparece no centro da composição profusamente iluminado [Figura 1], contrastando com um fundo negro; este contraste reforça e cria a ilusão de volumetria do corpo. Cristo encontra-se atado a uma coluna de tons avermelhados e laivos de azul, tem as mãos amarradas, sobrepostas, encontrando-se virado para o público. Do seu rosto, de expressão triste, rolam duas lágrimas, único indício da violência sofrida [Figura 2]. De toda a cena se desprende uma ambiência de serenidade! O seu corpo é bem executado anatomicamente, musculatura bem marcada e um rosto e mãos delicados. No painel do Senhor da Cana Verde [Figura 3], ocorrem em simultâneo duas cenas: a principal em que Cristo se encontra sentado sobre um tecido drapeado, de rosto sereno incidindo a luz sobre si e destacando-o, está coroado com uma coroa de espinhos e com as mãos atadas sobrepostas e apoiadas nas pernas no momento em que recebe uma cana que lhe é dada por uma figura masculina, descomposta, que dele escarne! É um momento de espera até ser levado perante Pôncio Pilatos! A segunda cena ocorre ao fundo, é o segundo ponto de luz da composição! Num terraço próximo de vários edifícios [8] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 236 - ANTT.
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minuciosamente desenhados, Pôncio Pilatos, o homem de turbante, apresenta Barrabás, acompanhado por um soldado, à multidão que se encontra no terreiro [Figura 4]. Em ambos os painéis é de salientar a minúcia e perícia com o desenho, os contrastes entre luz e sombra, as nuances da cor, a expressão dos sentimentos e o rigor anatómico. Estas características de forte influência flamenga vêm corroborar, em nossa opinião, a hipótese da obra ser de autoria de Luiza dos Reis.
[Figura 1] Painel da Flagelação de Cristo. Fotografia © Museu de Lamego. [Figura 2] Painel da Flagelação de Cisto - Rosto. Fotografia © Museu de Lamego.
[Figura 4] Painel do Senhor da Cana Verde Apresentação de Barrabás à multidão. Fotografia © Museu de Lamego. [Figura 3] Painel do Senhor da Cana Verde. Fotografia © Museu de Lamego.
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[Figura 5] Painel da Visitação de Santana – após intervenção de conservação e restauro, capela de Santana –Cepões - Lamego. Fotografia © António Ventura, Instituto Politécnico de Tomar.
A representação da Visitação, [Figura 5] do ponto de vista iconográfico, explicita características originais e pouco comuns, como veremos seguidamente. O pintor optou pela exploração das possibilidades expressivas do espaço exterior, seguindo o percurso comum em quase todas as Visitações já representadas. O desenvolvimento desta representação pictórica tem algo de similar com o encontro de Santa Ana e S. Joaquim, na Porta Dourada. Ambos os pares, Santa Ana / S. Joaquim e Maria e Isabel, se saúdam próximo da entrada de casa, no exterior. É o encontro da confirmação e da congratulação do anúncio do Anjo sobre o nascimento de um filho. No painel, as personagens encontram-se dispostas segundo uma perspetiva, procurando o alongamento das linhas verticais, enquanto as horizontais parecem querer concentrar-se, fórmula que é muito frequentemente usada no Maneirismo, período a que o pintor pertence. A diferença entre o texto-base e a representação pictórica prende-se, talvez, com o enquadramento cénico que o pintor quer realizar. No entanto, do ponto de vista simbólico, não poderemos deixar de frisar que, no painel da Visitação da capela de Santana, Maria é colocada num plano superior e é Isabel, embora mais velha, que sai de casa para receber a mãe do Salvador. O espaço estende-se em profundidade. Num plano bastante próximo, a porta de um edifício
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acastelado com um torreão, a partir do meio do qual se circunscreve um arco em ruína, propicia o encontro. Nesse torreão, por debaixo do arco, abre-se uma janela com grades, e logo em cima, vê-se outra janela frestada, também em arco. No corpo do edifício, numa terceira janela, à esquerda, está debruçado um homem de turbante; em baixo, aparece uma abertura em forma de cruz e, mais acima, num pequeno nicho, uma figura masculina segura na mão um livro. A análise mais pormenorizada deste edifício levou-nos a uma leitura simbólica do mesmo. O estado de ruína parece indicar o fim de um tempo passado e a reforçar esta mudança surge, debruçado à janela, o Homem do Tempo. Mais atrás, o emolduramento arquitetónico abarca esta Visitação tão explicitamente reveladora: a do início do tempo messiânico. Num primeiro plano, as personagens revelam uma graça decorativa e requintada, cumprimentando-se solenemente, tocando nos braços uma da outra. Prostrada de joelhos perante Maria, Isabel usa uma touca branca, que lhe cobre o cabelo e o pescoço[9] e lhe cai sobre os ombros, emoldurando-lhe o rosto [Figura 6]. Esta peça de vestuário utilizada como sinal de dor, viuvez, recato, velhice ou desprezo pelo mundo, é também sinónimo de estatuto social elevado e [10] respeitabilidade . Um panejamento verde colocado na cintura oculta o estado avançado de gravidez, que Isabel tinha omitido até essa altura. O trajo é muito simples: o vestido cobre-lhe os pés e a pequena bolsa que tem presa à cintura é o seu único adorno.
[Figura 6] Pormenor - Rostos das duas figuras femininas. Fotografia © António Ventura, Instituto Politécnico de Tomar.
[9] PALLA, Maria José, O Corpo, Vestido da Alma, Museu de Grão Vasco, Colecção Estudos IV, Viseu, 1994, pp. 8-9. [10] COUTINHO, B. Xavier, Nossa Senhora na Arte, Livraria Martins, Porto, 1959, pp. 18-19.
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Do lado direito, sob um pallium branco, Maria, vestida de branco como uma donzela, debruça-se ligeiramente sobre a prima, deixando que se perceba, por baixo, um corpinho, ricamente decorado com pedras preciosas e pérolas. Essa cor, que evidencia o estado de pureza em que se encontra, pois o casamento com José não tinha sido consumado, revela a conceção virginal de Maria. O entrançado de cabelo sobre a nuca, que a auréola de santidade deixa visível, ajuda a prender o véu transparente que lhe cobre a cabeça e lhe cai sobre os ombros. Aos pés está a cana que utilizou durante a caminhada. Se nos detivermos um pouco sobre a simbologia do vestuário, reparamos com facilidade que a roupa interior, decotada e ricamente ornamentada com rendas e bordados, é aquela com que, no século XVI, se apresentam as mulheres de estatuto social elevado. Maria é representada como a grande dama[11], de forma a que seja notada a sua superioridade e elevação como mãe do Messias. A riqueza desse vestido branco debruado com uma barra dourada torna-se ainda mais evidente, em contraste com a simplicidade de Isabel. Ainda do ponto de vista simbólico, a cana representará a longa caminhada que Maria terá que percorrer até ao momento da morte de Jesus. No segundo grupo de personagens encontram-se José, Zacarias e um anjo [Figura 7]. Embora não [12] sejam mencionados no Evangelho de Lucas, a partir do século XVI, a escola de Veneza difunde a sua representação, passando a ser muito frequente nas Visitações.
[Figura 7] Pormenor - Rostos de Zacarias, o anjo e José. Fotografia © António Ventura, Instituto Politécnico de Tomar.
[11] COUTINHO, 1959, p. 185. [12] RÉAU, Louis, Iconografía del Arte Cristiano, Nuevo Testamento, Ediciones del Serbal, Barcelona, 1996, T.I, Vol. 2, p. 210.
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José saúda Zacarias com o chapéu de palhinha; Zacarias retribui o cumprimento com um aperto de mão colocando, simultaneamente, a outra no ombro de José. José, de barba longa e grisalha, está vestido com uma túnica de cor magenta e uma capa vermelha; tem calçados uns borzeguins - botas altas de cabedal forte com atacadores, que eram utilizadas pelo povo na realização de atividades árduas[13]; a auréola de santidade termina a composição da figura. Zacarias traja amplas vestes douradas com uma barra decorada no fundo, símbolo da classe social a que pertence e da função que desempenha no Templo[14]. Na cabeça usa um magnífico turbante branco, com copa de veludo vermelho, que lhe cai sobre o ombro esquerdo e que lhe faz sobressair a barba longa e grisalha. É frequente, durante o século XVI, os judeus de classe social elevada serem representados com turbante, considerado como um acessório exótico e oriental[15]; calça sandálias leves que se prolongam até meio da perna. A terceira figura que aparece em segundo plano e se encontra entre José e Zacarias é o anjo, representado como um jovem adolescente, de cabelos louros. O diadema que traz na cabeça, em forma de cruz, está decorado com uma pedra vermelha ao centro, e quatro pérolas nas extremidades. Está vestido com uma túnica verde, símbolo da esperança. As asas são negras e encontram-se abertas. Num terceiro plano, estão representadas duas mulheres, ricamente vestidas, com adornos de ouro e pérolas. A da direita tem um chapéu veneziano de fitas multicolores, vermelhas, verdes, azuis e douradas, entrelaçadas, fitas que, de influência oriental, estiveram muito em voga no século XVI[16]. A personagem da esquerda, tem um manto transparente, semelhante ao véu de Maria, apresentando ainda um diadema de pérolas que combinam com as pérolas dos vestidos de ambas [Figura 8].
[13] OLIVEIRA, Fernando, O Vestuário Português no Tempo da Expansão - Séc. XV e XVI, Edição para a Comemoração das Descobertas Portuguesas, [s/d], p. 30. [14] PALLA, 1994, p. 15: “O traje dos judeus mais ricos é constituído por uma roupa larga e ampla (sinal de poder), aberta ao meio, tecida em panos raros e caros (brocado, damasco), com mangas sumptuosas, por vezes talhadas noutro tecido.” [15] PALLA, 1994, p. 15. [16] RODRIGUEZ, Carmelo Sólis, Luís de Morales, Fundacion Caja de Badajoz, Badajoz, 1999, p. 216. Luís de Morales irá representar, frequentemente, figuras femininas com este tipo de chapéu, com especial destaque para as representações de Maria, designada como a “Virgen del Sombrero”. Pérez Chánchez afirma que Morales terá recorrido a um livro de gravados francês como fonte de inspiração. Trata-se do livro de gravados de François Desprez, Receuil de la diversité des habits qui sont à présent en usage, publicado em Paris em 1567, que coincide com o ano em que o bispo D. Juan de Ribera lhe encomenda as tábuas da virgem “vestida de cigana”, no ano de 1567. Em Portugal, é também frequente a utilização deste tipo de chapéu, que já é utilizado desde o príncipio do século XVI. Em 1506, a Visitação do retábulo da Sé de Lamego de Vasco Fernandes, embora não utilize o mesmo colorido, tem um formato similar.
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[Figura 8] Rostos de Maria e Isabel. Fotografia © António Ventura, Instituto Politécnico de Tomar.
Em muitas Visitações estas duas personagens são identificadas como Maria de Cleofás e Maria [17] Salomé, ambas irmãs de Maria . Durante o século XVI, especialmente depois do Concílio de Trento, a [18] lenda do triplo casamento de Santa Ana foi condenada e deixou de se representar . [19]
Réau refere que as figuras femininas representadas são criadas de Isabel e de Maria . Em alguns casos, como no da Visitação com dama veneziana, de Hans Rottenhammer[20], as Marias ou as criadas, serviram de pretexto, para se representarem figuras cortesãs. Por esta razão, aparentemente tão secundária, estas duas personagens aparecem ricamente adornadas com joias. A Visitação de Santana apresenta características que, iconograficamente, se poderão considerar únicas: nela estão representados todos os elementos que, nas outras Visitações, aparecem separadamente, Zacarias, José, as duas Marias ou criadas e o anjo. Por sua vez, o painel da Visitação apresenta muitas das soluções maneiristas, destacando-se de imediato a verticalidade da representação, contrariada apenas pela curvatura das figuras centrais Maria e Isabel - bem como pela exuberância das cores. A estrutura compositiva do painel reflete o novo gosto maneirista: o espaço é denso, ocupado por um grande número de personagens (oito no total) apertadas, evidenciando-se o horror vacui!. O eixo do quadro está deliberadamente deslocado para a direita, dando a ideia de instabilidade e [17] COUTINHO, 1959, p. 56: “ Segundo a tradição, Santa Ana casou três vezes (trinubium) sucessivamente com Joaquim, Cleofás e Salomé, casamentos de que nasceram três filhas: Maria (casada com S. José), Maria (casada com Alfeu) e Maria (casada com Zebedeu).” [18] COUTINHO, 1959, p. 59. [19] RÉAU, 1996, T.I, Vol. 2, p. 210. [20] AIKEMA, BROWN, 1999, pp. 658-659.
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descontinuidade. As personagens centrais da composição não são o centro da mesma, como se verificava no Renascimento. A composição é diversificada e complexa, composta não só por eixos verticais e horizontais, observados no edifício e nas figuras que se encontram por trás de Maria e Isabel, uma característica clássica, mas também por uma complexidade de eixos oblíquos, linhas circulares e em S. Estas linhas encontram-se nas figuras de Maria e Isabel, em que o serpenteado e o curvilíneo dos corpos, é um pouco forçado criando instabilidade para dar precisamente este movimento[21]. As linhas oblíquas contrapõem-se às verticais; sendo essa característica visível nos braços das figuras que se encontram atrás das duas principais, na cana que está aos pés e no olhar de Maria e Isabel [Figura 9].
[Figura 9] Hans Rottenhammer (1564/65-1625), Visitazione com dama veneziana, 1596 | Óleo sobre tela 73,3 x 86,4 cm | Norimberga, Germanisches Nationalmuseum, inv. GM 1594 in © AIKEMA,Bernard e BROWN, Beverly Louise, Il Rinascimento a Venezia e la pittura del Nord ai Tempi di Bellini, Durer, Tiziano, Bompiani, Venezia, 1999, pp. 658-659.
O espaço é desordenado pela densidade das personagens, e a envolvência é irreal e estilizada. A estrutura arquitetónica, que serve de fundo, funciona, essencialmente, para preencher um espaço. O edifício é confuso, com neblinas misteriosas e instáveis, instabilidade essa provocada pelas ruínas, o que contraria o naturalismo clássico, onde os espaços envolventes são reais, devidamente definidos e até minuciosamente representados. As personagens não seguem as proporções clássicas, as figuras são alteadas e elegantes, tanto as femininas como as masculinas O alongamento dos corpos acentua-se nos rostos e no excessivo comprimento das pernas em relação ao resto do corpo. Na Visitação, aqui representada, verifica-se a falta da expressão de emoções: os acontecimentos [21] BOULEAU, Charles, Charpentes La géometrie secréte des peintres, Éditions du Seuil, 1963, pp.148-152.
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ocorrem com placidez; há uma contenção e elegância na demonstração de sentimentos, comportamento próprio da aristocracia. As pessoas cumprimentam-se e tocam-se de forma cordial, sem intimismos. Os dois elementos masculinos, José e Zacarias, saúdam-se com um aperto de mão, e José tira o chapéu em sinal de respeito, uma vez que está perante um sacerdote, que lhe é superior do ponto de vista social. Por sua vez, Maria e Isabel cumprimentam-se, tocando-se nos braços. O único fator dissonante é o facto de Isabel se encontrar de joelhos, numa situação de subordinação, apesar de, na sua expressão, não haver manifestação desse facto. O estar de joelhos contraria o primeiro projeto do pintor que as colocava ao mesmo nível. Desta mudança de planos podemos deduzir que teria sido já um reflexo do Concílio de Trento, que promulgava a hierarquização das figuras divinas e estabelecia diferentes escalas de subordinação. A mudança de plano é definitivamente uma imposição dos mecenas, mas que é imposto por uma circunstância particular. D. Sebastião adoptou as normas do Concílio de Trento como lei do reino, em 1564, data em que se inicia a elaboração deste painel. Em 1565, e na altura em que o painel se encontrava quase pronto, os encomendantes pedem a sua remodelação. No mesmo período realizou-se, o Sínodo Diocesano, em Lamego, onde as normas tridentinas foram aceites, o que acelerou, pensamos nós, a decisão dos encomendantes. Não podemos deixar de referir ainda as duas figuras femininas que se encontram por trás de Zacarias: são as que aparecem mais ricamente ornadas, apesar de serem figuras secundárias na cena, com particular destaque para a figura da esquerda. Para além deste facto, a figura da esquerda, olha deliberadamente para o público. Não se trata de um rosto tipo, mas sim personalizado, o que nos permite crer tratar-se, de um retrato de alguém relacionado com o pintor ou com o mecenas. Neste caso, e se este painel pertence mesmo ao retábulo da Misericórdia, havia um outro painel; o de Nossa Senhora da Misericórdia, onde era normal que os mecenas se fizessem representar, pelo que aquela figura poderá representar a mulher do pintor, o que não é caso único. Já o pintor Diogo Teixeira, nas quatro Visitações que executa, irá retratar sempre a sua filha, curiosamente em posição idêntica à que aqui é representada (ricamente ornada, e a olhar para o público). Parece-nos poder afirmar ser a mulher do pintor já que os seus brincos são iguais aos brincos da rainha D. Catarina, (no retrato atribuído a Cristóvão Lopes, que se encontra atualmente no Museu de Arte Antiga, Lisboa), e muito semelhantes aos que D. Leonor usa no retrato do seu casamento com D. Manuel I (obra de Garcia Fernandes, 1541, Museu de S. Roque, Lisboa), situação que só se compreende pela forte ligação do pintor à corte, podendo ser estes brincos uma oferta da Infanta D. Maria a Luiza dos Reis. Um outro caso que não podemos deixar de mencionar é a Visitação de Rottenhammer (1596), em que o pintor, retrata a sua mulher, em destaque na cena, ricamente vestida e ornada ao gosto veneziano, cujo olhar também se dirige para o público [Figura 10][22]. É também curioso o rosto do anjo, a olhar de [22] AIKEMA, e BROWN, 1999, p. 658.
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frente para o público, com seu rosto é personalizado. Alguns dos traços, como a forma das sobrancelhas e do nariz, são muito semelhantes aos da figura feminina da esquerda. Podemos levantar a hipótese, não querendo forçar, que estes dois personagens possam ser membros da mesma família, talvez mãe e filho. Quanto à outra figura feminina, a da direita, destaca-se o magnífico toucado multicolor e o perfil romano, de nariz longo e fino, e de olhar contemplativo. O exotismo oriental é patente no trajar de algumas figuras, denotando até uma tónica profana; observamos esses elementos no turbante (usado pelos judeus abastados) da figura de Zacarias, e no do homem debruçado sobre a janela, bem como no toucado da figura feminina. Há a destacar também o surgimento de duas figuras invulgares neste tipo de representação: o anjo, por trás de José e Zacarias, um caso único como já referimos; e a figura do homem do turbante, debruçado à janela.
[Figura 10] Painel da Visitação de Santana | Fotografia a preto e branco. Fotografia © António Ventura, Instituto Politécnico de Tomar. Legenda: ____ Linhas Explícitas ____ Linhas Implícitas
A cor predominante no painel da Visitação é o magenta vibrante, a cor por excelência do maneirismo, inventada por Pontorno, utilizada por todos os pintores desta época. Para além destas cores predominam ainda: os brancos, verdes, amarelos e vermelhão. A luz, neste painel da Visitação, incide sobre os rostos destacando-os e colocando-os em primeiro plano. A luz incide de uma forma particular sobre as duas figuras principais, Maria e Isabel, com especial destaque para Maria onde as vestes de cor branca, refletem a luz dando-lhe um brilho
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particular. Esse brilho é intencional, cheio de simbolismo; Maria é a mãe do Messias e Ele é a luz que iluminará a Humanidade. A luz projetada sobre os panejamentos cria zonas de sombra e dá maior volumetria; as pregas e as dobras ajudam a dar a ilusão de uma maior profundidade e tridimensionalidade à representação. Nos rostos são também determinadas zonas de sombra e luz obtidas com pinceladas escuras nos contornos. Do ponto de vista técnico, o pintor tem dificuldade em colocar as personagens no plano verificando-se uma ausência de perspetiva e um plasmamento das figuras, que parecem coladas umas às outras, não havendo profundidade nem distanciamento entre elas, facto que é mais ou menos disfarçado pelo grande número de personagens presentes na cena. Podemos observar este facto de forma mais marcada na figura de José, a quem o pintor teve dificuldade em posicionar, especialmente o braço. Através da refletografia do infravermelho, podemos observar o desenho subjacente em alguns pontos do painel. O pintor utilizou o carvão para desenhar as linhas, no friso do corpo central do edifício, marcadas, ou por linha com carvão, ou através de cartão. O pintor, no painel da Visitação, demonstra todo o seu génio na representação dos rostos, especialmente, nos femininos, que todos parecem personificados, e no tratamento da mancha de cor, com uma pincelada livre e solta. Contudo apresenta algumas debilidades no desenho algo duro e limitado por espaços enquadrantes. É também curioso o modo como o pintor cuida, com especial interesse, de alguns pormenores, como é o caso das jóias das duas figuras femininas secundárias desde os brincos às joias que estão colocados sobre a cabeça da figura feminina que olha em frente. As pérolas são tratadas ao pormenor e com grande realismo, através de empastamentos de tinta e velaturas. O pintor executa com particular primor, os cabelos das figuras, desenhando-os com leveza como podemos observar na figura de Maria, caídos sobre os ombros ou por cima da orelha da figura feminina, com toucado veneziano. Preocupa-se em demonstrar com realismo os elaborados penteados das figuras, especialmente de Maria e da figura feminina que olha de frente cujos caracóis a salientam, relativamente às outras figuras, ou nos entrançados de cabelo, nas quais coloca véus e joias. Esta facilidade, em executar alguns destes pormenores, contrasta com alguns erros grosseiros que se observam em representações anatómicas. É o caso das mãos apertadas de José e Zacarias e a mão de José segurando o chapéu, em que o polegar tem o dobro do tamanho do que seria normal; ou a mão de Maria sobre o braço de Isabel grosseiramente desenhada. Os ombros de José não são proporcionados, o braço cuja mão aperta a de Zacarias, parece deslocado e curto. Apesar dos erros que referimos, executa outros elementos com grande qualidade como são o caso dos rostos, alguns pormenores decorativos e a utilização da cor. É recetivo à modernidade, uma vez que as suas obras refletem o novo gosto da maniera romana, do mesmo modo que os outros
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pintores romanizados. Ao deslocar-se para a região beirã, onde exerce a atividade de pintor, leva aos pintores locais uma nova linguagem pictórica e o que de mais moderno se fazia então. Incentiva-os, deste modo, a que procurem nos grandes centros essa novidade. É disso exemplo, o caso do pintor Gonçalo Guedes que, dez anos depois da chegada de António Leitão à cidade de Lamego, procurou em Lisboa um pintor maneirista conceituado para iniciar a sua aprendizagem.
2. IGREJA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO: FUNDAÇÃO E CAMPANHAS DE OBRAS As Misericórdias tornam-se, no século XVI, instituições de assistência e confraternidade permanentes, desdobrando-se por muitas atividades de apoio aos pobres, indigentes, órfãos e desprotegidos. Os confrades da Misericórdia geriam hospitais e albergarias, recolhiam esmolas, promoviam, funerais e ajudavam presos e condenados, oferecendo ainda saídas processionais e [23] manifestações religiosas impressionantes pela sua dimensão penitencial e disciplinante . Fortemente impulsionadas e protegidas pelo poder régio, as Misericórdias são autorizadas a possuir bens de raiz, e a constituir um património considerável obtido, essencialmente, de doações e legados pios. Tal importância económica fez com que se aproximassem desta instituição as figuras mais gratas, os grupos sociais dominantes dos meios urbanos metropolitanos e ultramarinos, que passavam a controlar as Misericórdias como provedores e mesários. É no âmbito deste panorama nacional, que Lamego institui a sua Misericórdia, no ano de 1519. As informações que nos chegaram sobre a sua fundação e orgânica provêm essencialmente das Memórias paroquiais de 1758, cujo autor é o Vigário da Sé Diogo António Vieira que terá possivelmente consultado os arquivos da Misericórdia de Lamego. Muitos destes documentos desapareceram após o incêndio ocorrido no dia 26 de Junho de 1911 e ao armazenamento pouco cuidado da documentação nos anos que se seguiram. A fundação da Misericórdia de Lamego ocorreu no dia 20 de Abril de 1519, a mando de El Rei D. Manuel, como nos atesta o pequeno trecho do documento que transcrevemos: “(...) posto que El Rey Dom Manoel instituio depois as casa della das quaes sendo hua a desta Cidade que foi erecta em 20 de Abril no anno de 1519 por provisão do mesmo Senhor, como consta [24] de hum termo em hum livro da ditta caza feyto no referido dia(...)” . O ato da constituição foi realizado na casa da Câmara de Lamego pelo representante do rei, o doutor António Correia, corregedor da cidade de Lamego e de Riba-Côa, que convocou a nobreza local e toda a população e, na presença dos oficiais da Câmara, aprovou e declarou que, por vontade [23] SOUSA, Ivo Carneiro de, V Centenário das Misericórdias Portuguesas, Lisboa 1998, p. 11. [24] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 235 - ANTT.
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real, se instituía a irmandade da Misericórdia de Lamego, ficando cada pessoa obrigada a dar cem réis e quatrocentas varas de estopa ou valor igual. Na mesma data foi nomeado o provedor, tendo sido escolhido para o cargo o próprio doutor António Correia. Elegeram-se ainda os irmãos da mesa. A Misericórdia de Lamego recebeu compromissos iguais aos da de Lisboa [25] , que foram posteriormente reconfirmados pelo rei D. Sebastião, em 1573[26]. Como a Irmandade da Misericórdia não tinha sede foi-lhe cedido o convento de S. Francisco, sito na rua de Almacave, enquanto não se construiu sede e igreja próprias. Segundo Diogo António Vieira, a Misericórdia terá permanecido durante muitos anos no convento de S. Francisco, não tendo sido precisa a data em que foi construída a nova igreja e a casa do despacho”(...); e esteve esta irmandade muytos annos em o convento de Sam Francisco desta cidade, em quanto se não fez Igreja própria.”[27] Pela leitura de diferentes fontes julgamos que a construção da mesma tenha ocorrido entre 1550 e 1560. Sabemos que na década de sessenta se realizam inúmeras obras na Igreja especialmente no interior e de carácter decorativo, obras que se prolongam pela década de setenta. Para que estas obras tivessem ocorrido na igreja, do ponto de vista arquitetónico, esta já teria de estar em fase de conclusão, embora em nossa opinião, há pouco tempo. Os trinta ou quarenta anos que medeiam entre a fundação da Irmandade e a construção da sua sede e igreja estarão relacionados com a necessidade de angariar fundos e património para poder empreender tamanha construção, que envolveu um grande número de artistas e artesãos. O local onde foi construída a nova igreja da Misericórdia e respetiva casa do despacho e anexos, situava-se na proximidade do convento de S. Francisco. Este terreno era pertença do morgado de Valdoleiros, João Rodrigues Rebelo, que o doou à Santa Casa da Misericórdia de Lamego. Com esta doação, que deve ter ocorrido por volta de 1545 ou 50, instituiu uma capela na capelamor com exclusividade para jazigo pessoal e de seus descendentes. A campa rasa que aí se encontrava tinha o brasão da família e a seguinte inscrição: “para que ali se não enterre mais ninguém que os descendentes de Val d´Oleiros, cujos antigos morgados deram o chão e as suas antigas casas que se demoliram para se fazer e alargar a capella e [28] seus anexos” . Não sabemos quem terá sido o arquiteto ou mestre pedreiro que executou a obra da igreja da
[25] CÓDICE 547, da Biblioteca Pública Municipal do Porto (cerca de 1733), fol.. 26 - BPMP. [26] Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, privilégios próprios e comuns, Livro 13, fol. 30-31 - ANTT: Misericórdia de Lamego, Alvará de confirmação de compromisso. [27] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 236 -ANTT. No seguimento da sua narração sobre o acto da instituição da Santa casa da Misericórdia de Lamego o mesmo vigário refere; “E elegerão logo por Provedor da ditta Irmandade ao referido Corregedor, He constituirão”. [28] JOSÉ, 1760, p. 151-152.
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DATA
NOME
ARTE OU OFÍCIO
OBRA REALIZADA
1560
André Gonçalves
Torneiro
Executa as grades da porta da igreja no valor de 1000 rs
1561
Diogo Fernandes
Serralheiro
Executa trabalhos para a misericórdia não especificados
1563
António Coelho
Pedreiro
Intervém como mediador da pedra empregue nas obras de João do Rego na capela da Misericórdia
1563
João do Rego
Mestre Pedreiro e Arquitecto
Faz as obras da capela da Igreja da Misericórdia
1565
João Fernandes
Carpinteiro
Realiza trabalhos para a Misericórdia não especificados
1565
António Leitão
Pintor
Executa o retábulo para a capela mor da Igreja da Misericórdia, pelo custo de 9.150 rs.
1567-68
João António
Imaginário
Faz quatro imagens para os altares
1568
João do Rego
Mestre Pedreiro e Arquiteto
Fez as capas da capela que estavam por fazer as da frente e as de traz, pelo custo de 3.900 Rs.
1570
António Leitão
Pintor
Pinta sete varas, imagens dos altares a bandeira, crucifixo grande, e douramento da caixa para guardar o Santíssimo
1573
Manuel Esteves
Carpinteiro
Faz os arcazes da Sacristia
1573-74
Simão Antunes
Pintor
Pinta as letras do púlpito e a porta da casa que vai para o cabido
1573-74
João Fernandes
Serralheiro
Faz as grades de ferro para peitoris no altar mor que custaram 12.500 rs.
1636-37
António Vieira
Pintor
Pintou e dourou umas grades
1668
Domingos Gomes
Pedreiro
Fizeram o conserto do arco da Igreja e a obra da tribuna
1688
Francisco Monteiro
Pedreiro
Trabalha em conjunto com Domingos Gomes
1732
Domingos Lourenço Cruz
Pedreiro
Está a trabalhar nas obras do novo hospital
[Tabela 1] Artistas e artesãos que trabalharam na Igreja e Hospital da Misericórdia de Lamego.
Misericórdia, mas podemos no entanto propor o nome do mestre pedreiro e arquiteto João do Rego, uma vez que este se encontrava a realizar as obras de cantaria na capela da Misericórdia no [29] ano de 1563 . João Rego era certamente um pedreiro prestigiado na cidade, tendo sido contratado pelo bispo D. Manuel de Noronha para fazer uma capela no claustro da Sé de Lamego e uma tulha. Visto tratar-se de um pedreiro qualificado, poderia ter sido também o responsável pela construção
[29] CORREIA, 1923, p. 63
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da igreja e da casa do despacho da Misericórdia. Podemos deduzir que nos anos de 1563–64 as grandes obras arquitetónicas da igreja da Misericórdia já estariam terminadas, iniciando-se então o revestimento do espaço interior. Para elaborar o retábulo da capela-mor, obra de considerável porte e importância, foi escolhido o pintor António Leitão. A obra deve ter sido iniciada por volta de 1564, uma vez que, no ano de 1565, o pintor se encontrava a terminar esse trabalho. O retábulo era apainelado e representava cenas da paixão de Cristo e, ao centro, o painel da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel - que era o orago da Misericórdia – e, sobre este em tribuna, um outro alusivo à Virgem da Misericórdia, ambos de igual tamanho, como nos indica o trecho que passamos a transcrever: “ Tem o altar mor tribuna dourada e apainelada com insignes pinturas da Payxão do Senhor e no meyo junto à banqueta hum grande paynel da Visitação da Senhora à Santa Isabel, que he o seo Orago, por sima do qual tem hua tribuna dourada, que cobre outro paynel de igual grandeza, em [30] cujo está ricamente pintada a Imagem de Nossa Senhora com o titulo da Misericordia” .
Coube também ao pintor, o douramento do retábulo, prática bastante frequente entre os pintores da época, como podemos ver no documento das contas da Misericórdia onde o pintor é pago pelo ouro e prata utilizado no retábulo: “Aos xj dias de janeiro de 1565 anos na casa do Cabido da Mia estando juntos o pdor e Irmaõs e Anto leitam e fizerõ conta do drº do Retavollo asi da pintura como do ouro e acharõ que a casa lhe ficava devendo nove mil e cento e cincoenta Rs, de dous mil e quinhentos pais douro e dusentos de prata e duzentos rs de quebra de huas moedas q lhe derõ em que se montou os ditos nove mil e ceto e Lta rs que loguo recebeu e cõ elles se deu por bem pago entregue e satisfeito e a casa e pvedor e Irmãos delle cõ decrarã que ho q fosse pera cõcertar na pintura dele q elle o faria e cõ isso a casa ficou contente e satisfeita e o derõ a elle por quite e livre e desobrigado da pintura e ouro e de tudo o q elle era obrigado e por verdade se mandou fazer este asento por todos asinado e eu o Ldo Antº de gouvea escrivã da casa q o escrevi e no dito dia mês e era acima dita e decrarõ que as obras da Mia que estão no banco elle lhe daria mais lustro e os Rostos de nosa Sra da visitação e [31] ellRej de portugal cõcertaria, e asinarão aqui...”
A leitura do documento supra transcrito refere que, a pedido do provedor e dos irmãos da Misericórdia, o pintor teve de fazer algumas alterações nas pinturas já realizadas. Alterações essas [30] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 236 - ANTT. [31] CORREIA,1923, p. 27.
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que incidiram sobre o painel da Visitação e mais especificamente nos rostos de Maria e Isabel; no painel da Virgem da Misericórdia, a figura do rei de Portugal foi também modificada. Nesse mesmo ano trabalha também para a igreja da Misericórdia o carpinteiro João Fernandes. O seu trabalho não é especificado, mas podemos aventar a hipótese de ter sido ele o responsável pela colocação do retábulo de António Leitão ou pelo fornecimento das madeiras para a estrutura do mesmo. Para decorar os retábulos colaterais o provedor António Gaspar contrata o escultor ou imaginário João António no ano de 1567-1568, ficando este responsável pela feitura das esculturas dos ditos retábulos. As duas que chegaram aos nossos dias, as do Senhor atado à coluna e a do Ecce Homo [Figuras 11 e 12], encontravam-se no retábulo do lado do Evangelho, e aí permaneceram desde a sua feitura até ao grande incêndio da rua de Almacave, em 1911. No outro retábulo colateral existia um conjunto do Calvário, cujo rasto se perdeu após o incêndio. “....Duas imagens grandes e uma do Senhor Ecce Homo, outra do Senhor Prezo a Culluna que
[Figuras 11 e 12] As esculturas do Senhor atado à coluna e do Ecce Homo © Museu de Lamego.
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estam no Altar Collateral da parte do Evangelho Mais hua imagem do Senhor Crucificado grande que esta no Altar Collateral da parte da Epistolla [32] com as imagens da Nossa Senhora, e S. João Evangelista e Maria Madalena...” . Fl. 5 verso
Do escultor João António, desconhecemos totalmente a sua origem, formação ou outros trabalhos. Sabemos apenas que fez estas esculturas, mas não as pintou, certamente por não fazer parte da sua aprendizagem; por essa razão no ano de 1571 o provedor Diogo Gonçalves contrata novamente o pintor António Leitão, que já havia sido contratado para a obra do retábulo da capelamor, para a pintura das esculturas dos altares e outros trabalhos menores.
“(...) Amtº leytao pymtor de pymtar sete varas e de pymtar o crucefixo da bandrª e a cruz e de pymtar o crucifixio grande e de pimtar as Images dos altares e a bandeirinha que anda plla cidade os dias que se tiram as allmas do purgatorio e de dourar e rapar a caixinha para encerar o [33] santisimo sacramto e do ouro pª ella q foram trezentos pais de ouro quatro mill rs (...)” .
Podemo-nos interrogar como é que um pintor tão conceituado como António Leitão, ainda por cima de origem nobre, realizando os painéis do retábulo do altar mor da igreja da Misericórdia, fez também o seu douramento, pintou esculturas, varas, bandeirinhas, etc; trabalhos hoje considerados pouco dignos para um artista! No entanto devemos atender a que na época, em Portugal, os pintores, escultores e arquitetos eram considerados artífices e não artistas, fazendo parte de uma corporação oficinal. No Regimento dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa do ano de 1573, a pintura é ainda tida como um trabalho oficinal[34]. Os pintores encontram-se inseridos na Confraria de S. Jorge, situação que é reconfirmada por D. João III. O escultor João António será um precursor da escultura barroca em madeira que irá proliferar nos séculos seguintes nesta região e por todo o país. As duas peças são de dimensões consideráveis à escala humana, esboçando o gosto maneirista. Ambas figurais, serenas, de brandos movimentos e sem exteriorização de sentimentos, com a musculatura muito marcada e exagerada; a figura do Senhor atado à coluna apresenta um [32] ASCML – Livro 62 - Inventário dos bens da Igreja da Misericórdia de Lamego-do ano de 1765, e os mais que se seguiram. [33] CORREIA,1923, p. 27-28. [34] CORREIA, Vergílio, O livro do Regimento dos officiaes mecânicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lisboa, 1572, Imprensa da Universidade de Coimbra, Separata Subsídios para a História da Arte portuguesa, 22, Coimbra 1926, p.104-105.
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movimento de torsão excessivo, quase de desequilíbrio, bem característico da forma maneirista de expressar o movimento. No ano seguinte o arquiteto João do Rego volta à igreja da Misericórdia para terminar um trabalho na capela que havia ficado por fazer. O texto é explícito:
“ Concertousse o pdor e Irmaos com Joam do Rego pedreiro que fizesse as capas da capella q estavao por fazer per diante e per detraz, as bracas segundo fizera as da casa da tulha e capela do bispo pello preco dellas q custarõ tres mil e novecentos Rs (....)”[35].
Entre os anos de 1573 e 74 são feitos os arcazes da sacristia pelo carpinteiro Manuel Esteves[36] e o pintor Simão Antunes[37] pinta as letras do púlpito e a porta da casa que dá para o cabido; por último João Fernandes[38], serralheiro, executa as grades de ferro para os peitoris no altar-mor. João Fernandes faz parte de uma dinastia de pelo menos três gerações que se dedicaram ao trabalho do ferro; Francisco Fernandes (avô) morou na praça de Almacave e Diogo Fernandes (pai) perto da igreja da Misericórdia, tendo também vindo a trabalhar para esta instituição, em trabalho não especificado no ano de 1561. Virgílio Correia pensa inclusivamente que Diogo Fernandes possa ter sido o autor da grade de ferro da capela do claustro da Sé, mandada fazer pelo bispo D. Manuel de [39] Noronha . As obras da igreja da Misericórdia foram prosseguindo pelos séculos XVII e XVIII. No ano de 163637 o pintor António Vieira pinta e doura umas grades para a Misericórdia, obra não especificada no livro de despesas e receitas da Santa Casa. Neste período há vários indícios de reconstruções e ampliações, como é o caso do levantamento do arco do cruzeiro, mandado fazer em 1640 pelo provedor de então, Álvaro Sequeira, como se lia numa inscrição[40]. Esta obra parece ter tido problemas mais tarde, uma vez que, em 1688, os pedreiros Francisco Monteiro e Domingos Gomes, foram contratados para fazer a reparação do arco, e nesse mesmo ano executaram a reparação da tribuna do mesmo templo[41]. Outra obra de monta consistiu na reconstrução da fachada do templo por volta do ano de 1688 a [35] CORREIA,1923, p. 63. [36] CORREIA, 1923, p. 14. [37] CORREIA,1923, p. 5. [38] CORREIA, 1923, p. 16. [39] CORREIA,1923, p. 15. [40] AZEVEDO, D. Joaquim de, História Eccesiastica da cidade e bispado de Lamego, Porto,1878, pp.16-17. [41] CORREIA, 1923, pp. 22 e 49.
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mando do bispo D. Frei Luiz da Silva. Na fachada encontravam-se as suas armas, o que nos leva a pensar que o bispo exercia também as funções de provedor da Irmandade. Era frequente, na época, alguns bispos da diocese de Lamego exercerem o cargo de provedor da Misericórdia e mesmo que [42] não tenha exercido o cargo D. Frei Luiz da Silva participou com uma quantia avultada nessa obra . Prosseguindo com a leitura comparativa entre a da igreja da Misericórdia feita por Diogo António Vieira, em 1758 e uma outra descrição da década de 30 do século XVIII, apercebemo-nos que a igreja era toda azulejada e o teto apainelado[43]; o coro era gradeado e rodeado de cadeiras com espaldar; na capela-mor existia um retábulo apainelado, como já foi referido, pintado por António Leitão, o teto da mesma capela era em madeira pintado; no cruzeiro, dos lados do Evangelho e da Epístola havia dois retábulos em talha dourada, ambos com esculturas de vulto: no primeiro encontrava-se o Ecce Homo; no segundo, um Cristo Crucificado, também designado por Senhor dos Aflitos, de grande devoção popular pelos milagres que fazia. Na igreja havia ainda uma tribuna com grades de ferro, local de onde os mesários e o provedor assistiam aos ofícios religiosos, ao mesmo nível do coro como [44] refere este excerto do documento que selecionámos:
“(...) He toda a Igreja azolejada e apainelado o tecto: tem boas grades de pao preto bronzeadas, tem seo coro com grades, rodeado de cadeyras de espaldar, e duas grandes frestas com vidraças... tem huma tribuna com grades de ferro pintadas a onde asiste a meza nas funçoens [45] publicas, para esta se vay pela caza do despacho que fica no mesmo andar.”
Através dos inventários que se fizeram na Santa Casa da Misericórdia ficamos também a saber que existiam outras peças. Chegaram até nós cinco inventários referentes aos anos de 1765, 1773, 1793, 1843 e 1915. As obras prosseguem em 1790, ano em que o provedor da Misericórdia, fez a reforma da capelamor, substituindo o teto de madeira por um de estuque, ao gosto da época, e desmantelando o antigo retábulo de António Leitão que substituiu por um retábulo neoclássico. O novo retábulo colocado ao centro é uma tela de grandes dimensões, representando a Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, obra realizada pelo pintor Pedro Alexandrino[46], que a assinou e a datou em 1790, como
[42] CORREIA,1923, p. 17. [43] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 237 - ANTT. [44] CÓDICE 547, da Biblioteca Pública Municipal do Porto (cerca de 1733), fol.. 28 - BPMP. [45] Dicionário Geográfico, Lamego vol. 19, nº41, fol. 236-237 - ANTT. [46] AZEVEDO, 1878, p. 17.
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[47]
se pode ver no lado esquerdo da tela . A razão pela qual substitui o anterior retábulo prende-se, certamente, por uma mudança de gosto, porque as memórias paroquiais de 1758, referem que o retábulo de António Leitão se encontrava em bom estado. Este, depois de desmantelado, deve ter sido ofertado por este bispo, dos quais pensamos que um desses painéis ainda exista, e que se encontre na capela de Santana, santa pela qual o D. Binet Píncio tinha grande devoção, tendo inclusive dedicado o novo Seminário de Lamego a Santana. A Santa Casa da Misericórdia desempenhou do ponto de vista social um papel muito importante, e deve ser vista como um polo de criatividade artística chamando a si um número considerável de artistas e artesãos.
[47] Por razões que nos são desconhecidas esta tela escapou ao incêndio da Igreja da Misericórdia que ocorreu em 1911, e encontrava-se nos depósitos da Câmara Municipal de Lamego, até a data de 1918, tendo sido cedida nesse ano ao Museu de Lamego, inaugurado no mesmo ano, onde actualmente se encontra.
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as
Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
1.º painel | conferência A CAPELA DA MISERICÓRDIA DE MURÇA Celso Francisco dos Santos Hugo Barreira
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PALAVRAS-CHAVE Misericórdia; Murça; Capela; Retábulo pétreo.
RESUMO Num primeiro olhar, o alçado do edifício da capela da Misericórdia da Cidade de Murça é simples, homogéneo e articulado. Poderíamos supor uma organização dos alçados interiores canónica como em arquiteturas similares: nave única de planta retangular e capela-mor, também com a mesma forma mas de dimensões menores, ampla e profunda. Na leitura da frontaria, a partir da via, destaca-se um alçado de proporções regulares: um retângulo pouco acentuado sobre o qual repousa um frontão semicircular de proporções modestas. No entanto, a singularidade da capela da Misericórdia torna-se evidente quando nela entramos. A espectativa de uma nave simples é completamente malograda. A planta, e o alçado do corpo que designaremos por nave está completamente seccionada. Um vasto retábulo pétreo divide o volume desta nave a cerca de dois terços do seu desenvolvimento. Desta divisão resulta uma espacialidade interior incomum. O corpo da nave está subdividido tanto do ponto de vista da planta como do alçado, sendo coberta por uma abóbada de canhão homogénea. A estranha e profundamente complexa organização do espaço interior aumenta quando atentamos nas galerias duplas e sobrepostas aos pés da nave. Pelas evidências que conhecemos, percebemos que a estas galerias aceder-se-ia tanto pelo exterior do edifício, como pelo seu interior, atravessando portas de moldura simples, à esquerda e à direita do espaço para os fiéis. As quatro galerias são, para o observador atual, de função desconhecida, quer à luz da documentação quer pela impossibilidade de comparação com exemplares semelhantes. A análise da arquitetura da capela da Misericórdia de Murça levanta, deste modo, algumas questões pertinentes. Quais foram as fases da elaboração do plano da construção? Quais as cronologias da construção? Quais os seus patronatos? Qual seria a articulação com outras arquiteturas? Como explicar o retábulo pétreo? A observação do edifício, e a descrição que dele fizemos, permitem perceber que mais serão as questões levantadas que as respostas obtidas. A capela constitui como uma extraordinária surpresa, notável pelas suas características arquitetónicas, quer no que diz respeito às estruturas, quer no que diz respeito à plástica decorativa. Pese embora a sua qualidade, pouco se sabe sobre as suas origens e as possíveis transformações que conduziram ao atual estado do edifício. A ligação entre o edifício e a instituição da Irmandade da Misericórdia de Murça, sugerida pela atual denominação, encontra-se envolta em muitas dúvidas e carece de concretas evidências documentais, o que é reforçado pela inexistência de uma cronologia segura para a fundação e funcionamento da própria instituição. Os vários trabalhos existentes sobre o edifício consolidaram uma interpretação da capela em estrita articulação com a Misericórdia de Murça, pese embora as várias lacunas que apresentam e a insuficiência das evidências documentais. Do mesmo modo, foi levantada, por alguns autores, a hipótese, tradicionalmente aceite, de este ter sido originalmente uma capela particular dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Começaremos assim pela definição daquilo que designamos por cronologias críticas para as principais hipóteses de interpretação do edifício: a possibilidade de se tratar da capela de Nossa Senhora da Conceição, com diversas menções na documentação mais antiga; as questões inerentes à fundação da Misericórdia de Murça, e a sua nova (?) criação já no século XX; as referências ao edifício propriamente dito. Exploraremos depois as principais questões pelo edifício levantadas, terminando na formulação de novas hipóteses para a interpretação do mesmo.
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KEYWORDS Misericórdia; Murça; Chapel; Stone altarpiece.
ABSTRACT At a first glance, the elevation of the building of the chapel of the Misericórdia (Holy House of Mercy) of the City of Murça is simple, homogenous and articulated. We could suppose a canonical organization of the interior as in similar architectures: single aisle of rectangular plan and a main chapel, also with the same form but of smaller dimensions, wide and deep. In the reading of the frontispiece, from the road, stands an elevation of regular proportions: a little accentuated rectangle on which rests a semi-circular pediment of modest proportions. However, the uniqueness of Misericórdia's chapel becomes evident when we enter it. The expectation of a simple aisle is completely frustrated. The plant, and the elevation of the body that we will designate by aisle is completely sectioned. A large stone altarpiece divides the volume of this aisle by about two-thirds of its development. Out of this division results an unusual interior spatiality. The body of the aisle is subdivided both from the point of view of the plant and the elevation, being covered by an homogeneous cannon vault. The strange and deeply complex organization of the interior space increases when we look at the double galleries superimposed on the feet of the aisle. From the evidence we know, we realize that these galleries would be accessed both from the outside of the building and from the inside, through simple frame doors, to the left and to the right of the space of worship. The four galleries are, for the present observer, of unknown function, either in the light of the documentation or by the impossibility of comparison with similar examples. The analysis of the architecture of the chapel of Murça's Misericórdia thus raises some pertinent questions. What were the phases of the construction plan? What are the chronologies of construction? Who were its patrons? What would be the relation with other architectures? How to explain the stone altarpiece? The observation of the building, and the description we made, allow us to perceive that some questions remain unanswered. The chapel is an extraordinary surprise, notable for its architectural features, both in terms of structures and decoration. Despite its quality, little is known about its origins and the possible transformations that led to the building's present configuration. The connection between the building and the institution of Misericórdia Brotherhood, suggested by the current denomination, is surrounded by many questions and lacks concrete documentary evidence, which is reinforced by the lack of a secure chronology for the foundation and functioning of the own institution. The various investigations on the building consolidated an interpretation of the chapel in strict articulation with the Misericórdia Brotherhood, despite the various gaps they present and the insufficiency of the documentary evidence. It was also formulated by some authors na additional hypothesis, traditionally accepted, of this being originally a private chapel dedicated to Nossa Senhora da Conceição (Our Lady of Conception). We thus begin with the definition of what we call a critical chronologies for the main hypotheses of interpretation of the building: the possibility of being the chapel of Nossa Senhora da Conceição, with several mentions in the ancient documentation; the questions inherent to the foundation of the Misericórdia Brotherhood, and its new creation (?) already in the twentieth century; and also the references to the building itself. We will then explore the main issues raised by the chapel, ending with the formulation of new hypotheses for its interpretation.
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A CAPELA DA MISERICÓRDIA DE MURÇA CELSO FRANCISCO DOS SANTOS FLUP-DCTP
HUGO BARREIRA FLUP-DCTP/CITCEM
Introdução A Capela da Misericórdia de Murça é um edifício que se constitui como uma extraordinária surpresa, notável pelas suas características arquitetónicas, quer no que diz respeito às estruturas, quer no que diz respeito à plástica decorativa. Pese embora a sua qualidade, pouco se sabe sobre as suas origens e as possíveis transformações que conduziram ao atual estado do edifício. A ligação entre o edifício e a instituição da Irmandade da Misericórdia de Murça, sugerida pela atual denominação, encontra-se envolta em muitas dúvidas e carece de concretas evidências documentais, o que é reforçado pela inexistência de uma cronologia segura para a fundação e funcionamento da própria instituição. A investigação que desenvolvemos sobre o edifício decorreu no âmbito das intervenções decorrentes da construção da Barragem do Tua. Nesse sentido, beneficiamos das possibilidades decorrentes do acompanhamento da intervenção, bem como dos seus resultados, encontrando-se, à data desta publicação, o edifício já totalmente reabilitado. O presente texto resulta assim daquele que foi produzido no contexto do projeto de investigação encomendado pela Direção Regional de Cultura do Norte, e que ainda não se encontra publicado, concentrando-se nas questões fundamentais para o desenvolvimento de uma interpretação da Capela da Misericórdia de Murça. Foram já realizados vários estudos sobre o edifício e a instituição, quer no âmbito da História Local, de que destacamos o de António Luís Pinto da Costa[1], baseada em levantamentos documentais inéditos, quer no âmbito da História da Arte ou da História da Arquitetura, do qual [2] destacamos o de Maria Eunice da Costa Salavessa , que procura articular a análise do edifício com alguns aspetos da história de Murça, ou ainda as referências à capela nas Teses de Doutoramento de
[1] COSTA, 1992. [2] SALAVESSA, 2006.
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Luís Alexandre Rodrigues[3] e de Joana Balsa de Pinho[4]. Estes e outros trabalhos consolidaram uma interpretação da capela em estrita articulação com a Misericórdia de Murça, pese embora as várias lacunas que apresentam e a insuficiência das evidências documentais. Do mesmo modo, a partir da interpretação da documentação e do próprio edifício, foi levantada, por alguns autores, a hipótese, tradicionalmente aceite, de este ter sido originalmente uma capela particular dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Não tendo sido possível encontrar nova documentação que nos permitisse aprofundar estas questões, optámos por apresentar uma sistematização das evidências documentais, já publicadas ou por nós encontradas, e dos dados recolhidos no contexto da intervenção. Nesse sentido, começámos pela definição daquilo que designamos por cronologias críticas para as principais hipóteses de interpretação do edifício: a possibilidade de se tratar da capela de Nossa Senhora da Conceição, a fundação da Misericórdia de Murça e as referências ao edifício propriamente dito. Em seguida, passaremos à exploração das principais questões pelo edifício levantadas, terminando na formulação de novas hipóteses para a sua interpretação.
[Figura 1] Fachada principal da capela a partir da rua Marquês de Valle Flor. Fotografia: HB, 2019. [3] RODRIGUES, 2001. [4] PINHO, 2012.
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CRONOLOGIAS CRÍTICAS
A capela de Nossa Senhora da Conceição
A referência mais antiga à capela de Nossa Senhora da Conceição data de 1661 e diz respeito a uma obrigação à sua fábrica[5]. Em 1706, António Carvalho da Costa, na Corografia Portugueza, diznos que, além da igreja matriz e do mosteiro, “tem cinco Ermidas, tres do povo, & duas de particulares; huma das do povo da invocação de Santiago, foy antigamente Priorado, & Parochia, que [6] se passou para a Villa” . As Memórias Paroquiais de “Murça de Panoya”, redigidas pelo reitor da paróquia, José Caetano de Sousa, não mencionam a Misericórdia nem a sua capela, referindo apenas a Capela de Nossa Senhora da Conceição, particular, a qual fora fundada por Fernando Borges Leitão, sendo então administrada por seu neto, José de Sá Távora Carneiro, o qual seria administrador dos [7] órfãos do Município desde 1722 . Pinto da Costa menciona que, em 1775, o administrador da capela seria Duarte José de Sá Carneiro de Sousa[8]. Nesse mesmo ano, a 20 de fevereiro, D. José autorizava a solicitação de extinção da capela[9]. Surge a referência a uma capela da mesma invocação em 1818, num Inquérito presente no Livro 769 de Visitas e Devassas[10], atestando-se a sua decência. São aqui também referidas as capelas de São Sebastião e de São Domingos, que nas Memórias Paroquiais já haviam sido referidas como pertencentes à freguesia, bem como a capela de São Francisco, também mencionada em 1758, e ainda uma capela dedicada a Santa Rita, que voltaremos a encontrar no Arrolamento de Bens [11] Cultuais de 1911 , o qual nos informa que ficaria no Lugar do Seixo. Estranhamente, na lista das capelas de 1818 é ainda mencionada “Ada Mizericordia”, o que levanta a hipótese de a identificação com a capela de Nossa Senhora da Conceição não ser inteiramente linear. Por fim, em 1832, segundo Pinto da Costa, a capela de Nossa Senhora da Conceição passaria a pertencer ao primeiro Conde de [12] Murça . Note-se, contudo, que o autor se refere à capela atualmente conhecida como da Misericórdia, mantendo o argumento que se tratariam de um só edifício que então receberia as suas [5] Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. [6] COSTA, 1706: 465. [7] “Memórias Paroquiais: Murça de Panóia, Moncorvo”: 1937-1938. COSTA, 1992: 163. O reitor menciona ainda as capelas de São Sebastião, de São Domingos e de São Francisco, além da igreja paroquial e do mosteiro beneditino. [8] COSTA, 1992: 169. [9] COSTA, 1992: 201. [10] ADB – Visitas e Devassas, Livro 769 – 1818 – 3ª Parte de Vila Real. [11] ADSGMF – Arrolamento de Bens Cultuais de 3-8-1911. [12] COSTA, 1992: 169.
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armas. Em 1911, não é mencionada a capela de Nossa Senhora da Conceição[13].
A Misericórdia de Murça
A referência mais antiga que conhecemos sobre a Misericórdia de Murça data de 8 de maio de 1717 e diz respeito a uma provisão de D. João V satisfazendo uma petição da própria irmandade. [14] Publicado por Pinto da Costa , o documento assegurava a concessão, por parte do rei, de todos “os privilegios que erão concedidos a todas as mizericordias” para o “mesmo templo e ospital que estavão fundando”, e os quais a confraria, “por descuido dos mesmos irmãos”. Ainda segundo o mesmo autor, a Misericórdia funcionaria numa capela da igreja matriz e teria os visitadores do arcebispo de Braga a inspecionar bens, rendimentos, contas e serviços. É ainda Pinto da Costa quem [15] nos fornece uma nova informação, dizendo que “por essa data” Fernando Borges Leitão, D. Madalena de Faria e José de Sá Carneiro instituem vínculo de dez missas anuais por alma. Não nos tendo sido possível confirmar estas e outras informações, que o autor sustenta na documentação, ficam por esclarecer os pormenores relativos à possível fundação da Misericórdia de Murça nos inícios de setecentos. É também Pinto da Costa quem estabelece a ligação entre a capela de Nossa Senhora da Conceição e a capela da Misericórdia tendo por base a figura de Fernando Borges Leitão à qual atribuí a fundação do templo[16]. O mesmo autor refere que, em 1799, na compra da casa do capitão-mor de Crasto Vicente, vizinha da capela, pela família Ferreira Pinto, é dito que aquela confrontava com “as [17] guardarias da Misericórdia”, as quais estariam a cargo de padres franciscanos . Estranhamente, a instituição não é mencionada nas Memórias Paroquiais de 1758, nem a sua possível capela na igreja [18] matriz, sendo apenas mencionada a Irmandade do Santíssimo Sacramento . Um novo dado surge através do assento de óbito, datado de 4 de janeiro de 1885, de António de [19] Jesus, “exposta da Mizericordia d' esta Villa” , falecida com oitenta anos. Levanta-se, assim, a hipótese de, no início do século XIX a instituição ainda funcionar. Como vimos, em 1818, é referida a [13] São apenas mencionadas a igreja matriz, a capela de São Domingos, a capela da Misericórdia, a capela de São Sebastião e a capela de Santa Rita. [14] COSTA, 1992: 162. [15] COSTA, 1992: 168. [16] COSTA, 1992: 154. [17] COSTA, 1992: 204-205. [18] “Memórias Paroquiais: Murça de Panóia, Moncorvo”: 1937-1938. À pergunta número 12, o reitor responde: “Nem Misericórdia”. [19] COSTA, 1992: 163.
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existência de uma capela da Misericórdia, voltando a ser mencionada em 1830, quando o seu administrador mandara fazer duas casulas e manípulos[20]. Em 1886, no decorrer de uma inspeção aos bens do extinto “Convento da Villa de Murça” é visitada por Manoel Pereira Coutinho a “formosa Capella da Misericordia”[21]. Já no século seguinte, [22] em 1911, o Arrolamento dos Bens Cultuais refere uma “capella denominada da Misericordia”, tratando-se do edifício atual. É, porém, somente em 30 de junho de 1923 que é criada a Irmandade da [23] Santa Casa da Misericórdia da Vila e Concelho de Murça , desconhecendo-se, à época, a existência [24] da fundação anterior. A instituição adquire, em 1928-29, a capela do mesmo nome , construindo ou alterando outros imóveis no decurso do seu funcionamento ao longo das décadas seguintes.
A capela da Misericórdia
A referência cronológica mais antiga que conhecemos é a data de 1692 inscrita na frontaria do edifício. Com exceção do que foi já referido a propósito da primitiva instituição da Misericórdia, e que nos levanta muitas questões, uma capela com esta denominação só seria novamente mencionada em 1818 e em 1830. Em 1832, segundo Pinto da Costa, a capela passaria a pertencer a Miguel António de Melo, primeiro Conde de Murça[25]. Note-se que este era casado com a sua sobrinha, Maria José de Melo e Albuquerque, descendente do senhor de Murça, Manuel José Guedes de Miranda e Lima de Mendonça e Albuquerque, falecido em 1825[26]. Não podemos invalidar a hipótese de o edifício estar relacionado com os senhores de Murça, dado que desconhecemos como [27] foi feita a integração no património do conde . Como vimos, o edifício recebe as suas armas na frontaria e no retábulo-mor em data que não conseguimos determinar. Em 1886, Manoel Pereira [28] Coutinho , ao inspecionar a igreja do extinto mosteiro de Murça, visita a capela, designando-a como da Misericórdia, não restando qualquer dúvida, pela descrição que dela é feita, que se trata do edifício atual. [20] ADB – Visitas e Devassas, Livro 217 – 3ª Parte de Vila Real, f. 33. [21] ANTT – Relatório Sobre os Objectos Existentes no Extinto Convento de Murça, f. 3. Manoel Pereira Coutinho era secretário e conservador do “Museu de Bellas Artes de Lisboa” tendo sido incumbido de inspecionar a igreja do “extinto convento de Murça” por ordem ministerial. Foi acompanhado nas suas diligências pelo administrador do concelho. Elaborou um relatório, datado de 17 de abril de 1886. [22] ADSGMF – Arrolamento de Bens Cultuais de 3-8-1911. [23] COSTA, 1992: 286. [24] COSTA, 1992: 287. [25] COSTA, 1992: 169. [26] COSTA, 1992: 218. [27] Pinto da Costa refere que a habitação dos condes de Murça foi vendida em hasta pública em 1909. COSTA, 1992: 222. [28] ANTT – Relatório Sobre os Objectos Existentes no Extinto Convento de Murça.
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De acordo com Pinto da Costa, em finais do século XIX, a capela estaria já no domínio público e em mau estado, o que levaria a uma campanha de sensibilização por Camilo de Castro, Basílio de Oliveira, José de Oliveira e António Joaquim Rodrigues[29]. Em 1909, Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, no seu Diccionario referem que “são monumentos importantes a capella da Misericordia [30] e a capella-mór do extinto convento.” No Arrolamento de 1911 é novamente mencionado, de forma inequívoca, o edifício, com o nome atual, referindo-se que há público que a frequenta. Entre 1923 e 1924 teria funcionado como igreja matriz, a título provisório, enquanto nesta decorriam obras, [31] recebendo o sacrário que viera do mosteiro e fora para a igreja em 1834 . O mesmo autor menciona ainda que, na década de 20, o edifício se encontraria ao abandono, nele se guardando o equipamento [32] da festa de Santiago . No final da década, a capela é, como referimos, comprada pela Irmandade da Miserircórdia, [33] que repara o seu telhado . Ainda segundo o mesmo autor, a compra teve por objetivo não só a serventia da instituição, mas também o “evitar a perda de uma obra d'arte antiga, cujo merecimento histórico é já manifesto”[34]. Entre 1958 e 1959 o edifício é intervencionado[35], recebendo uma nova e mais profunda intervenção entre 1985 e 1987[36]. Foi, por fim, classificado como imóvel de Interesse Público em 21 de dezembro de 1974[37].
Questionando o edifício
[Figura 2] Implantação da capela e relação com o edifício a norte. Fotografia: HB, 2019. [29] COSTA, 1992: 170-171. [30] PEREIRA, 1904: 1343. [31] COSTA, 1992: 150. [32] COSTA, 1992: 170. [33] COSTA, 1992: 287. [34] COSTA, 1992: 287. [35] COSTA, 1992: 287. Veja-se também: Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. [36] Sistema de Informação para o Património Arquitetónico. [37] Decreto n.º 735/74.
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O exterior
Confrontando com a rua Marquês de Valle Flor, uma das vias estruturantes da vila de Murça, e ligeiramente recuado em relação à face daquela, o que lhe permite formar um pequeno adro delimitado por gradeamento, o edifício parece, à primeira vista, estabelecer uma ligação com a habitação de grandes dimensões que se encontra à sua esquerda, a sul. Poderíamos associar o conjunto a soluções de casa nobre com capela muito comuns na região duriense, como por exemplo, a chamada Quinta da Fonte, em Celeirós (Sabrosa), que possui uma capela cuja frontaria é aparentada com a da capela de Murça. Tal poderia sugerir a hipótese de o edifício se tratar da primitiva casa da capela, embora muito alterada nos séculos XIX e XX. Ao analisarmos o edifício de habitação, quer de um ponto de vista exterior, quer de um ponto de vista da sua organização interna, são evidentes as suas características urbanas e é claramente percetível que este terá sido construído num bem adiantado século XIX tendo sido alterado ao longo dos anos seguintes. De acordo com o Arrolamento de 1911[38], a capela confrontava a nascente com a rua pública, a norte com a propriedade de “Maria Barbara” e a sul e a poente com a propriedade do “Doutor Basilio Constantino d'Almeida Sampaio”. Na atualidade, a capela ainda permanece rodeada pela expansão dos corpos anexos ao edifício de habitação a sul e a poente. Evidencia-se, assim, um crescimento em nada articulado com a capela, chegando a obstruir os vãos dos corpos posteriores, mercê igualmente da progressiva alteração de cota do terreno. Uma análise cuidada da implantação permite confirmar que não existem pontos de comunicação entre a casa e a capela e que o estreito corredor que entre os mesmos se desenvolve pouco mais permite que a serventia do acesso exterior ao arco sineiro e a entrada de luz nos vãos do corpo principal da capela. O corredor teria funcionado como canal para o escorrimento de águas, referindo Pinto da Costa que as paredes do templo foram prejudicadas pela exploração suinícola nas estruturas a sul e a poente, algo que a intervenção [39] também permitiu corroborar . É, deste modo, provável que o edifício de habitação tenha sido construído sem qualquer relação com a capela, alinhando a sua frontaria e cércea primitiva pela préexistência, aparentando, deste modo, tratar-se de uma casa com capela. A articulação queda-se, porém, pelo alinhamento das fachadas, mantendo-se a separação entre as propriedades e criandose um pequeno espaço para a serventia funcional de alguns elementos da capela. A face do corpo principal da capela voltada para o Norte evidencia, porém, e como referimos, indícios de uma primitiva estrutura de suporte a uma passagem ao nível de um primeiro andar que se articularia com um conjunto de compartimentos no interior, os quais se encontram atualmente [38] ADSGMF – Arrolamento de Bens Cultuais de 3-8-1911, f. 29. [39] COSTA, 1992: 170-171. O autor baseia-se nas memórias inéditas, datadas de 1984, do Padre Fernando de Freitas que, na década de 20, teria visto alguns animais perdidos na sacristia.
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inacessíveis. Ao examinarmos a parede do edifício de habitação a norte percebemos igualmente uma alteração do material de construção, salientando-se a possibilidade de ter existido uma estrutura de comunicação entre o edifício e a capela sobre o corredor exterior que permite o acesso ao logradouro. O edifício de habitação, atualmente em ruínas, apresenta características que permitem sustentar a hipótese de se tratar de um edifício seiscentista, tal como o aparelho utilizado, a cornija ou as molduras dos vãos. Observando a frente edificada ao longo da via, percebemos que este poderá ser parte de um edifício de maiores dimensões, entretanto fracionado, hipótese sustentada pelo retomar do desenho da cornija no último edifício do alinhamento. Sofrendo cada fração uma transformação individual, a unidade do conjunto ter-se-ia perdido. A fração arruinada, junto à capela, evidencia, pelos materiais utilizados, soluções típicas de aproveitamentos de uma estrutura de maiores dimensões entretanto reduzida e fechada nas suas antigas áreas de comunicação. O estado atual da frente edificada permite ainda levantar a hipótese da existência de uma loggia ou de algum tipo de recuo ao nível do sobrado na fachada principal do hipotético edifício de grandes dimensões. Afastada a hipótese de a capela se articular com a habitação a sul, tal como a conhecemos, apresentamos, assim, a hipótese de aquela se ter articulado com uma antiga habitação de maiores dimensões, a norte, entretanto desaparecida, hipótese esta sustentada pelas evidências materiais em ambos os edifícios e que carece, até ao momento, de confirmação documental.
O interior
Estamos perante um edifício extremamente complexo e que se destaca pela qualidade do seu desenho, das soluções nele utilizadas e pela respetiva execução. O autor do projeto estaria certamente familiarizado com soluções eruditas e sofisticadas, podendo o edifício ser relacionado com algumas soluções da zona da Meseta Central. A relação com as habitações foi já por nós explorada, levantando-se a hipótese de o edifício se ter articulado com uma habitação a norte, sustentada quer pela existência do compartimento interno na parede da capela, quer, sobretudo, pela alteração do aparelho de ambos os edifícios. Está ainda por explicar a função desses compartimentos ou vãos laterais, os quais, pela exiguidade das suas dimensões, cumpriam, apenas na medida da estrita necessidade, a função de tribunas ou locais de assistência aos ofícios, não se podendo, porém, excluir essa hipótese. As sofisticadas estruturas de circulação, iluminação e ventilação, em jeito de parede habitada, que podemos ainda observar na parede esquerda, revelam que, à semelhança de outras soluções presentes no edifício, estamos perante um projeto complexo, pouco habitual, e, ao que tudo indica, concebido como um programa de raiz.
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Percebemos também que a atual sacristia, o corpo posterior mais baixo, deveria ser uma adição posterior, bem como uma série de elementos no exterior e no interior da capela. Destaca-se a multiplicação de vãos de comunicação para o exterior nos corpos principais, em número aparentemente exagerado, pese embora a possibilidade de, a sul, a capela ter tido uma diferente relação com o espaço exterior. Não conseguimos justificar a existência de tantos vãos nem a sua funcionalidade. Do mesmo modo, como explicar a vasta área posterior ao retábulo, desenvolvida em dois níveis sobrepostos e servida por escadas internas nas paredes esquerda e direita? Tratar-se-ia de um retro coro, como habitualmente se denomina? Ou seria um espaço relacionado com as funções do edifício ao serviço da confraria da Misericórdia? Não o conseguimos explicar, mas seria pouco provável, dada a sua relação com o altar, que se tratasse de um local para assistir aos ofícios. A observação do retábulo pétreo, que apresenta um belo e seguro desenho, levanta igualmente algumas questões. Embora claramente alinhado com o posicionamento em altura da cornija da nave e do arranque dos arcos das capelas laterais, o retábulo articula-se mal, na sua implantação, com as estruturas daquelas, obrigando a alguma fragmentação dos elementos, resultando igualmente pouco feliz a sua relação de quase esmagamento face ao perfil da cobertura. Esta solução, algo contrastante com o bom desenho e com a boa execução dos elementos arquitetónicos e dos elementos plásticos, poderia ter resultado de eventuais dificuldades surgidas na montagem da estrutura, o que poderia explicar a existência, na face posterior, de alguns elementos de reforço aparentemente redundantes. Com esta primeira hipótese de ajustes pontuais inerentes à montagem dos elementos de cantaria, avançamos uma outra, que resulta da observação da relação entre os três altares. A proximidade do retábulo pétreo e dos retábulos laterais dificulta a sua utilização simultânea, como seria habitual na época, tendo em conta a exiguidade do presbitério. Deste modo, poderia o retábulo pétreo ter sido avançado e um pouco alterado em data posterior à construção? Tal poderia explicar a difícil articulação entre o retábulo e as estruturas das capelas, bem como o reduzido espaço entre os altares das mesmas. Não tendo sido encontrada documentação que comprove uma alteração, e tendo em conta a ainda difusa relação entre o edifício e o funcionamento da Misericórdia antes do século XX, não podemos aprofundar esta hipótese. Os elementos observados sugerem, porém, uma terceira possibilidade. Embora se desconheça o autor do risco e esteja por comprovar quem foi o comitente do edifício, não deixa, porém de ser notório um contraste entre as soluções projetadas e algumas das soluções construídas, sobretudo, no que diz respeito à funcionalidade dos elementos e ao que já observámos em relação à posição do retábulo. Assim, podemos estar perante um projeto feito por um autor que não o implantou, ficando a direção dos trabalhos a cargo de um outro construtor. A observação da planta e o número de vãos permitem também levantar a hipótese de estarmos perante um projeto de um edifício originalmente
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mais longo e que, por algum motivo, no decurso da construção, teria sido adaptado às dimensões atuais[40]. A hipotética truncagem de um projeto original, com características diferentes, poderia explicar o aspeto algo compactado da nave principal e o elevado número de vãos, bem como um eventual avanço do retábulo ainda na fase de construção original, de modo a obter uma nova funcionalidade para os vãos posteriores. A cobertura do compartimento do primeiro andar do chamado retro coro, posterior ao retábulo pétreo, aparenta ter sido alterada posteriormente e poderá esconder a continuidade da estrutura da nave, algo que não foi possível perceber na intervenção. Existem, porém, neste espaço, evidências de uma estrutura de suporte ao nível da cornija do corpo principal, cuja funcionalidade não foi possível perceber.
[Figura 3] Interior da capela na transição para a capela-mor evidenciando-se o retábulo pétreo. Fotografia: CFS, 2017.
[40] Tal poderia estar relacionado, inclusivamente, com as características do terreno e da alteração da sua cota.
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Para uma leitura da capela da Misericórdia de Murça
[Figura 4] Pormenor das colunas do portal. Fotografia: HB, 2019.
Pese embora a sua complexidade, o edifício apresenta uma considerável unidade cronológica. Podemos filiar o desenho do corpo principal na segunda metade do século XVII, o que parece estar em consonância com a data de 1697 inscrita na frontaria. A consistência das principais soluções exteriores e interiores, tais como a frontaria, as paredes da nave, a sua cobertura e respetiva decoração ou a obra de talha das capelas laterais, aponta para uma única campanha que, eventualmente, poderá ter sofrido alterações no decorrer da construção do projeto de arquitetura ou em data posterior. O último corpo do eixo deverá ser um acrescento, possivelmente do século XVIII. Embora relacionável com a cronologia apontada, o retábulo pétreo e a sua implantação no interior da nave, bem como os compartimentos por este definidos no seu espaço posterior, levantam uma série de questões que, como vimos, dificultam a definição de uma cronologia. Nova campanha parece ter decorrido já no século XIX, com a passagem da capela para a propriedade dos condes de Murça, a inclusão das armas no interior e no exterior e, possivelmente, do nicho com a imagem de Nossa Senhora da Conceição na frontaria e da nova pintura da falsa abóbada do comportamento posterior ao retábulo ao nível térreo. Não sendo possível, de momento, excluir nenhuma das hipóteses atrás levantadas, não
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podemos, no entanto, deixar de reforçar que a relação entre o edifício e a primeira instituição da Misericórdia está ainda por esclarecer. Do mesmo modo, a possibilidade de estarmos perante a capela privativa de Nossa Senhora da Conceição, fundada por Fernando Borges Leitão, igualmente ligado à fundação da Misericórdia, encontra-se difícil de sustentar face à presença, em 1818, de ambas as capelas na documentação. A ausência de qualquer referência à instituição da Misericórdia ou a uma capela do mesmo nome nas Memórias Paroquiais de 1758 reveste o percurso do edifício no século XVIII de uma inquietante aura de mistério. Esta começa a dissipar-se no século seguinte, sendo segura a intervenção dos condes de Murça no edifício, comprovada pelas suas armas, o que denota eventual transferência de [41] propriedade cujas circunstâncias estão ainda por esclarecer . Não será, contudo, de excluir uma eventual ligação com os Senhores de Murça, podendo tal explicar a aparente aproximação a soluções internacionais. Comprovamos que, em 1886, o edifício seria já conhecido como capela da Misericórdia, o que aponta para uma relação anterior com a instituição, sendo possível que as referências documentais de 1818 e de 1830 dissessem respeito a este edifício. Em 1911 não encontramos referências à capela de Nossa Senhora da Conceição[42] mas apenas ao edifício com a designação atual. As características arquitetónicas do edifício permitem relacioná-lo, como vimos, com uma capela privada articulada com uma habitação. Contudo, mesmo dentro desta tipologia, estamos perante soluções pouco comuns. Do mesmo modo, as soluções adotadas não se aproximam das que, habitualmente, encontraríamos nos edifícios associados às Misericórdias, ficando por esclarecer as suas particularidades. As suas paredes habitadas aproximam-no das soluções da arquitetura militar, as suas proporções e tribunas evocam a tensão do maneirismo, enquanto os seus elementos plásticos o aproximam do barroco. O misterioso retábulo pétreo parece, no panorama português, um elemento exterior evidenciando uma possível filiação internacional. À semelhança de um criptograma cifrado pela passagem do tempo, a capela da Misericórdia de Murça é um curioso palimpsesto arquitetónico que se evidencia como corpo estranho em que terra que lhe parece ser igualmente estranha. Sem documentação escrita que nos permita avançar para além da hipótese, mais não podemos fazer que deixar de olhar para o sedutor documento arquitetónico, o qual, na sua língua misteriosamente erudita e internacional, nos parece, a cada momento, interpelar com a sua aparente ausência de sentido.
[41] Pinto da Costa refere que a antiga casa dos condes de Murça apresenta as armas dos Carneiros. Não conseguimos, porém, perceber como se deu esta passagem. Note-se que, como vimos, em 1758, é mencionado José de Sá Távora Carneiro, neto de Fernando Borges Leitão, como proprietário da capela de Nossa Senhora da Conceição. Veja-se: COSTA, 1992: 169; 222. [42] Que não fora igualmente mencionada em 1886, embora a lista de Manoel Pereira Coutinho não fosse exaustiva.
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SIGLAS E ABREVIATURAS
ADB – Arquivo Distrital de Braga ADSGMF – Arquivo Digital da Secretaria Geral do Ministério das Finanças ANTT – Arquivo Nacional Torre do Tombo
FONTES DOCUMENTAIS
ADSGMF – Arrolamento de Bens Cultuais de 3-8-1911. Disponível em: http://purl.sgmf.pt/154000. (Última consulta: 30/12/2017). ADB – Visitas e Devassas, Livro 217 – 3ª Parte de Vila Real. ADB – Visitas e Devassas, Livro 769 – 1818 – 3ª Parte de Vila Real. ANTT – Relatório Sobre os Objectos Existentes no Extinto Convento de Murça. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4726450. (Última consulta: 30/12/2017). ANTT - “Memórias Paroquiais: Murça de Panóia, Moncorvo”. In DICIONÁRIO GEOGRÁFICO DE PORTUGAL [online], 1758, Vol.25, nº. 263, p. 1937-1944. Formato TIFF. Representação digital disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4240910. (Última consulta: 30/12/2017). Decreto n.º 735/74 de 21 de dezembro do Ministério da Educação e Cultura - Secretaria de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica - Direcção-Geral dos Assuntos Culturais. Diário do Governo n.º 297/1974, Série I de 1974-12-21.
BIBLIOGRAFIA
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Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
1.º painel | conferência O PROJETO DE CONSERVAÇÃO-RESTAURO DA GALERIA DE RETRATOS DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE PESO DA RÉGUA Carlos Mota Lígia Henriques
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PALAVRAS-CHAVE
Salvaguarda patrimonial; Conservação-restauro; Sustentabilidade; Exposição.
RESUMO
Pintada entre o final do século XIX e o início do século XX, a maioria das obras que constituiu a galeria de retratos de benfeitores da Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua (SCMPR) encontrava-se em mau estado de conservação. A instituição tutelar, consciente do valor patrimonial e artístico deste conjunto de obras, que retratam as principais personalidades benfeitoras do Hospital D. Luís I de Peso da Régua, estabeleceu em 2012 um contrato com o Museu do Douro (MD) para o seu depósito e restauro. Este artigo apresenta os resultados da intervenção de conservação-restauro integrada desta coleção, contemplando a investigação, o restauro e a sua divulgação.
KEYWORDS
Heritage safeguard; Conservationrestoration; Sustainability; Exhibition.
ABSTRACT Painted between the end of the 19th and the beginning of the 20th century, the majority of the works that constitute the gallery of portraits of the benefactors of Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua (SCMPR) was in bad conservation condition. Aware of the heritage and artistic value of this set of paintings, that depict the major benefactor personalities of the Hospital D. Luís I in Peso da Régua, the guardian institution celebrated a contract with the Douro Museum (MD), in 2012, for its deposit and restoration. This article presents the result of the integrated conservation-restoration intervention on this collection, which regards the investigation, restoration and its exposure.
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O PROJETO DE CONSERVAÇÃO-RESTAURO DA GALERIA DE RETRATOS DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE PESO DA RÉGUA CARLOS MOTA Fundação Museu do Douro F.P. / CITCEM
LÍGIA HENRIQUES Fundação Museu do Douro F.P. Projeto Integrado de Conservação-restauro A urgência por uma intervenção de restauro científico a um conjunto de retratos antigos, sentida pela mesa administrativa da Misericórdia de Peso da Régua, foi o ponto de partida deste projeto. A tomada de consciência do valor cultural deste conjunto de arte móvel, em avançado estado de degradação, motivou o pedido de um parecer interventivo à conservação-restauro do MD.
[Figura 1] Vista parcial da exposição Santa Casa da Misericórdia – coleção de retratos. Retratos de D. Luís I. Fotografia MD – Carlos Mota.
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As obras foram incorporadas a 5 de março de 2010 na coleção do Museu do Douro (MD), sob forma de depósito. Tal situação gerou a necessidade de identificar e caracterizar os bens culturais incorporados, dando-se início ao estudo histórico-artístico, que foi enquadrado no programa de mestrado em contexto de trabalho de João Duarte. Na sequência desta abordagem é estabelecido, no ano 2011, um protocolo entre a Fundação Museu do Douro e a União das Misericórdias Portuguesas para a preservação, avaliação e conservação do património das Misericórdias, com particular incidência na Região Demarcada do Douro. Razões de agenda levaram a que se retomasse o projeto apenas em 2012. Nessa altura, realizaram-se as ações de levantamento fotográfico documental e analítico da área a intervencionar. Em concreto, fizeram-se fotografias gerais, de pormenor e fotografias de florescência visível com [1] radiação UV . Estas últimas foram possíveis através da cooperação do Museu de Lamego, em particular do então especialista residente em fotografia de obras de arte, José Pessoa. As análises de ponto dos materiais das obras realizaram-se com o apoio e colaboração do Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora, onde se efetuaram exames através da técnica de microespetroscopia de infravermelho com transformada de Fourier (μ-FTIR)[2]. No seguimento do contrato estabelecido com a FMD, a 23 de março de 2010, para o depósito e o restauro deste conjunto de pinturas da SCMPR, estruturou-se um projeto integrado de conservaçãorestauro com base no princípio da sustentabilidade interventiva (VIÑAS, 2005). Com esta metodologia contemporânea privilegiou-se o emprego de materiais de origem natural, ecológicos, com custos e operacionalidade viáveis, e ao longo dos processos interventivos criaram-se mecanismos de divulgação e de educação para a salvaguarda dos bens patrimoniais.
Do estudo histórico-artístico A primeira fase da intervenção integrada corresponde ao estudo histórico-artístico deste conjunto de retratos portugueses pintados, datados entre 1879 e 1905. Da necessidade de compreendê-los, partiu o incentivo ao estudo da coleção no âmbito do curso de mestrado em História da Arte Portuguesa da Universidade do Porto, entre março de 2010 e novembro de 2011. Este estudo tinha como principal objetivo fazer a identificação quer dos retratados quer dos autores das obras. Neste sentido, conseguiu-se apurar a identificação de quatro pintores, cujas obras [1] Este processo fotográfico proporciona informação superficial do estado da obra, graças ao registo da diferente fluorescência dos materiais à superfície (GÓMEZ, 1998). [2] μ-FTIR é o método de microespetroscopia de infravermelho mais utilizado, devido à elevada sensibilidade, resolução e rapidez de registo dos constituintes presentes numa micro amostra de pintura (LEITE, 2008).
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estavam assinadas, designadamente a de Francisco José Resende (1825-1893)[3], João Marques de Oliveira (1853-1927)[4], José Afonso de Oliveira Soares (1852-1939)[5] e João António Correia[6] não sendo possível identificar um quarto pintor, cuja tela não se encontrava assinada. Da investigação resultou a atribuição de identificação de alguns retratados através do método de comparação por fotografias de época. Identificou-se assim o retrato de D. Luís I, de Francisco José da Silva Torres, de Pedro Verdial e de José Vasques Osório. Foram atribuídas identificações a José Vaz Lemos Seixas Castelo Branco e a António Bernardo Ferreira III.
[Figura 2] Núcleo de retratos da autoria de Francisco José Resende, da exposição Santa Casa da Misericórdia – coleção de retratos. Fotografia MD – Carlos Mota.
Por escassez de fontes documentais, ficaram por identificar seis retratados. No âmbito deste estudo foram ainda referenciados três retratos, nomeadamente D. Luís I, D. Antónia Adelaide Ferreira e José Vasques Osório, que não tendo sido depositados no Museu do Douro, integraram a exposição dedicada à coleção de retratos dos Benfeitores da Santa Casa da Misericórdia do Peso da Régua (DUARTE, 2011). [3] Foi professor na Academia Portuense de Belas Artes, pintor do Romantismo português. [4] Artista, professor, que chegou a ser diretor na academia Portuense de Belas Artes, foi um dos introdutores do Naturalismo em Portugal. [5] Pintor autodidata, ilustre reguense que se destacou nas artes plásticas e na literatura. [6] Professor e diretor da Academia Portuense das Belas Artes.
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Do levantamento documental, análises e diagnóstico das obras A segunda fase do projeto procurou encontrar a melhor estratégia para o tratamento de doze retratos pintados, que correspondem a cerca de 86% da Galeria de Benfeitores da SCMPR. Tal estratégia foi definida com base na reflexão sobre os resultados do levantamento e exame fotográfico, do estudo e análise dos materiais constituintes das obras e do diagnóstico do seu estado de conservação. Este estudo científico, como referido, foi enriquecido através do apoio do Museu de Lamego e do Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora. As dúvidas sobre a técnica e os materiais das camadas pictóricas das obras da autoria de Afonso Soares, oito pinturas, que correspondem ao maior grupo de retratos de autor desta Galeria, revelaram-se o principal obstáculo desta fase. As obras, através da sua observação a olho nu, apresentavam características da técnica do óleo, mas, os testes de solubilidade de sujidades revelaram que o fundo da composição não resistia à ação da água. Desde logo, a situação levantou incertezas sobre a natureza técnica das pinturas, obrigando a análises mais avançadas. Com efeito, recolheram-se pequenas amostras da superfície de uma pintura, que posteriormente foram analisadas através da técnica de espectroscopia FTIR, no laboratório HERCULES, tendo os resultados confirmado que a obra foi executada a óleo. Especificamente as camadas mais superficiais são constituídas por Pigmentos+Caulino+Óleo+Proteína. Por que motivo estas camadas superficiais não resistiam à ação dos solventes aquosos? Da observação dos resultados do exame fotográfico de fluorescência da radiação UV da superfície das obras constata-se que a camada de proteção é heterogénea. O verniz, ao contrário do que é habitual, havia sido limitado às figuras, localização essa que suscitou a dúvida – entre outras –, da autoria da intervenção, entretanto esclarecida através das análises comparativas com outros retratos da mesma mão. As semelhanças encontradas levam-nos a crer estarmos perante intervenções autênticas, sendo pertinente concluir-se que, talvez, a técnica tenha sido usada para sugerir volumes na composição.
[Figura 3] Fluorescência visível de radiação UV num retrato da autoria de Afonso Soares. Observamos a extensão do verniz limitada sobre a figura e a presença de pequenos retoques sobre o fundo. Fotografia MD – José Pessoa.
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Ora, é precisamente nas áreas correspondentes à ausência de verniz que a solubilidade pela ação dos solventes aquosos se verifica. Tal situação leva-nos a colocar a hipótese de se relacionar com o estado de degradação do óleo. De um modo geral identificaram-se sobre a camada superficial das pinturas depósitos de sujidades, esbranquiçados na forma de manchas, provocados por escorrências longitudinais de um líquido, que, possivelmente, catalisou a fixação de microrganismos sobre estas áreas. Ainda na camada pictórica, foram observados uma rede generalizada de estalados, áreas com perdas significativas ou em risco iminente de destacamento, observando-se inclusivamente a tela por existirem lacunas de preparação. Os destacamentos, lacunas e zonas em risco de perda na camada pictórica, quando surgem, grosso modo, indicam que as condições ambientais onde as obras se encontram não são adequadas à sua preservação. Ao nível do suporte têxtil assinalaram-se enfolamentos, sobretudo nos cantos; vincos na periferia, provocados pelas réguas do bastidor sob as telas, resultantes do relaxamento provocado pela deficiência do sistema de tensão e pelos rasgões[7]. Existia corrosão sobre os elementos metálicos (tachas de ferro) que uniam as telas aos bastidores e pequenas manchas de ferrugem sob os seus contornos. Bastante degradados achavam-se também alguns bastidores, que denunciavam ataques intensos de insetos xilófagos. Verificava-se acumulação de sujidade entre os bastidores e as telas, nomeadamente pedaços de estuque e areias, que provocavam deformações na superfície. A observação das pinturas sobre fluorescência de radiação UV permitiu-nos detetar repintes, a presença, extensão e o estado de conservação da camada de proteção (o verniz). Localizámos alguns repintes um pouco por todos os fundos das obras de Afonso Soares. As molduras, nestes casos de época, e sem dúvida elementos que importa preservar, apresentavam-se em mau estado de conservação, com manchas escuras e acumulação de sujidade sobre a superfície, inúmeras lacunas volumétricas nos frisos decorativos, desgaste, zonas em risco de destacamento e com pulverulência ao nível do revestimento metálico, repintes de purpurinas e vários elementos metálicos (pregos) corroídos. Verificaram-se ainda depósitos de pingos de tinta, desgaste provocado por limpezas abrasivas, mossas, fendas, cantos abertos e repintura nas molduras.
[7] Os rasgões surgem pela fragilidade dos materiais e/ou pelo impacto físico, resultando na deformação da tela e perda de camada pictórica.
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[Figura 4] Espectro µS-FTIR – Na camada exterior branca da amostra 154 branca encontraram-se branco de chumbo e óleo. Gráfico Laboratório HERCULES.
Assim, o esclarecimento de todas as dúvidas foi imprescindível para determinar a metodologia de tratamento que, entre outros fatores, depende do estado de conservação e da natureza da técnica de pintura.
Conservação-restauro contemporânea Tratar do património cultural móvel seguindo os conceitos da conservação-restauro contemporânea implica uma conjugação global e sistemática de recursos humanos especializados em comunicação com o público, em utilização de materiais ecológicos e dos meios económicos, considerando a sustentabilidade interventiva como defende Salvador Viñas (2005). À habitual intervenção multidisciplinar, que envolve diretamente especialistas das ciências humanas, das ciências exatas e conservadores-restauradores, acresce o envolvimento do público. Em várias ocasiões, o espaço de trabalho foi aberto ao público para que a intervenção fosse compreendida, discutida e sensibilizasse os observadores, contribuindo para a disseminação das boas práticas da conservação-restauro. O outro objetivo da estratégia de contacto do público com este domínio cientifico-tecnológico (ANTUNES, 2010) foi contribuir também para a educação pela salvaguarda patrimonial.
[Figura 5] Ação de sensibilização para importância da conservação-restauro da coleção de retratos da SCMPR. Fotografia MD – Marco Peixoto.
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As principais dificuldades ao longo do processo interventivo verificaram-se ao nível dos recursos humanos e de equipamento. A dimensão, quantidade e o mau estado de conservação das obras determinaram o reforço de recursos profissionais, de forma a constituir uma equipa[8] que conseguisse ultrapassar as dificuldades e cumprisse o calendário. Foi possível a contratação de uma [9] conservadora-restauradora , da especialidade de pintura de cavalete, por cerca de um mês e meio. Num curto espaço de tempo formou-se uma equipa eficaz para tratar as degradações encontradas. De julho a meados de setembro de 2012 as patologias das pinturas foram praticamente solucionadas. Todavia, o volume do trabalho de restauro nas molduras, em muitos casos, foi superior ao que se verificou nas pinturas. Da equipa inicialmente constituída ficou apenas em funções o conservador[10] restaurador e uma auxiliar de serviços gerais e administrativos , sem formação na área e a meio período. O reforço de recursos humanos era impreterível e conseguiu-se através da integração de mais uma colaboradora do museu, pertencente à equipa de guias, que possui formação técnica em conservação e restauro[11]. Já as dificuldades encontradas ao nível de equipamento prenderam-se essencialmente com as limitações do espaço físico e com a sua tímida adequação às práticas de conservação-restauro, condicionantes que, aliás, geraram atrasos significativos nos procedimentos. A seleção da metodologia e a escolha dos materiais para o tratamento alcançou-se através da avaliação dos resultados da investigação científica desenvolvida no projeto. Ao mesmo tempo, respeitaram-se os princípios éticos e deontológicos de procura pela estabilização dos materiais, emprego de produtos e de técnicas “compatíveis”, cujas escolhas também foram ponderadas com a noção de custo benefício. Optou-se preferencialmente por materiais ecológicos, pela “ação mínima” para que resultasse a “máxima” preservação possível do original (BRANDI, 1999). Iniciámos os tratamentos com a desmontagem das pinturas das molduras e com a limpeza da sujidade superficial, por via húmida, exigindo testes de solubilidade para uma correta seleção do agente de limpeza (KLEINER, 1991). A superfície das pinturas foi, na maioria dos casos, parcial ou totalmente empapelada para fixação das áreas em risco de destacamento, através da aplicação de um adesivo proteico sobre papel japonês. Este método, quando executado de forma integral, também protegeu de forma temporária as pinturas, para que não se danificassem durante o restauro. O tratamento dos rasgões conseguiu-se através do reforço da tela, com a fixação de pequenos pedaços de têxtil, através de um adesivo composto à base de acetato vinílico (BERGER,
[8] Apesar do MD ser um Museu de território, criado pela lei 125/97, os serviços de museologia integravam apenas um conservador-restaurador, duas museólogas e uma auxiliar por meio tempo. Tendo o museu como objetivos estudar, preservar, conservar, restaurar, interpretar e expor bens culturais relevantes para a história da Região Demarcada do Douro, a equipa revelava-se bastante reduzida. [9] Dr.ª Mafalda Jorge. [10] Fernanda Fonseca. [11] Dr.ª Enara Teixeira.
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RUSSELL, 2000). A seleção deste adesivo sintético justifica-se por ser um dos mais desenvolvidos para o procedimento, pelas suas características comportamentais estáveis, por ser termoplástico e pouco penetrante, especificidades que permitem a sua remoção caso seja necessário.
[Figura 6] Retrato do Rei D. Luís I antes e depois da nossa intervenção de restauro. Fotografias MD – Marco Peixoto.
Uma das telas, a mais fragilizada, o retrato de Pedro Verdial, necessitou de reforço integral do verso, tendo sido reentelada. Trata-se de uma técnica onde se aplica um têxtil novo sob o original, sendo, na atualidade, empregue apenas em situações incontornáveis. Neste caso, a união das duas telas conseguiu-se também pelo adesivo referido anteriormente. O empapelado foi removido e simultaneamente realizámos a limpeza da superfície. A tela foi esticada sobre uma nova grade, mais robusta, chanfrada e biselada, para que a sua superfície permaneça sem deformações ou novos vincos. Esta opção justifica-se pela fragilidade da grade devido aos sucessivos ataques de insetos xilófagos.
[Figura 7] Retrato do benfeitor Pedro Verdial antes e depois da intervenção de restauro. Fotografias MD – Marco Peixoto.
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Depois de solucionadas e/ou estabilizadas as patologias de suporte, foi necessário concluir a resolução dos problemas nas camadas superficiais. Nesta etapa, o tratamento das obras consistiu na reintegração pictórica das lacunas, sempre, segundo o método diferenciado, com o objetivo de garantir a distinção entre o original e o restauro. Procura-se que o resultado estético de cada lacuna reintegrada não entre em conflito com a sua envolvente, tendo obrigatoriamente que completar o todo quando se observa a obra a, pelo menos, um metro e meio, e sendo identificável quando a área reintegrada se observa a curta distância. Desta forma, garantimos o princípio do respeito pelo original, restituindo a integridade ao objeto.
[Figura 8] Pormenor do resultado da reintegração pictórica diferenciada. Fotografia MD – Carlos Mota.
Para finalizar as intervenções sobre o estrato pictórico foi aplicado um verniz. Em alguns casos optou-se por um verniz de baixo peso molecular, um acetato polivinílico (BORGIOLI, 2007), noutros optou-se por um verniz natural, o damar. A opção por um verniz sintético justifica-se por apresentar um índice de refração semelhante ao verniz damar e a outros vernizes naturais, bem como por oferecer maior resistência à fotodegradação. Com ele, consegue-se uma superfície muito lisa que diminui a dispersão da luz, resultando maior brilho e cores mais saturadas.
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No caso das obras da autoria de Afonso Soares, a decisão de aplicar esta nova camada de proteção deve-se ao facto das características óticas das cores se encontrarem comprometidas. Algumas obras apresentavam áreas baças, sem o brilho característico da técnica a óleo, sendo para nós fundamental travar a patologia, sem ignorar a técnica do autor. Relembramos que os resultados dos exames da superfície daquelas pinturas sobre florescência de radiação UV revelaram que o verniz se limitava às figuras, razões que justificaram a aplicação de cera microcristalina exclusivamente no fundo das composições, para conseguirmos a diferenciação de brilhos.
[Figura 9] Retrato de D. Antónia Adelaide Ferreira, antes e depois da intervenção de restauro. Fotografias MD – Marco Peixoto.
Também na pintura que retrata Francisco da Silva Torres, da autoria de Francisco José Resende, optou-se pelo emprego do mesmo verniz sintético, precisamente pelo facto de apresentar áreas baças. Nas restantes pinturas optou-se pelo referido verniz natural, pelo facto de ser desnecessário o levantamento integral da camada de verniz original, sendo, neste caso, a opção mais compatível para a consolidação/ regeneração desta camada de proteção. O tratamento das molduras contemplou a colagem dos elementos soltos através do emprego de uma resina epóxida, dado que os adesivos naturais não atingem o nível de resistência necessária para o restabelecimento da unidade. No preenchimento das fissuras e pequenas lacunas volumétricas optou-se por pasta de celulose e a reintegração cromática foi produzida com pigmentos minerais aglutinados em goma natural. A montagem das pinturas nas molduras foi restabelecida com a introdução de pinças de madeira, feitas por medida e presas com parafusos, para conferir maior estabilidade aos conjuntos.
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[Figura 10] Retrato, segundo atribuição de João Duarte (2011), de José Vaz Lemos Seixas Castelo Branco, antes e depois da intervenção de restauro. Fotografias MD – Marco Peixoto.
Durante o trabalho de restauro foi realizado um registo audiovisual, com o objetivo de produzir um documentário e um diaporama sobre a intervenção para integrar numa exposição e, ao mesmo tempo, servirem de apoio a futuras visitas e ações de sensibilização. Se por um lado, estas ações contribuíram para um pequeno deslize nos tempos de intervenção, por outro lado a satisfação e o encorajamento que o público transmitiu, animou-nos para superar os imprevistos. Acreditamos que esta atuação contribuiu de forma significativa para a sensibilização do público acerca da necessidade de preservação destes bens culturais.
Exposição “Santa Casa da Misericórdia - Coleção de Retratos” Tradicionalmente as exposições de bens culturais resultam de processos de investigação em torno de coleções ou temas que determinam a seleção de objetos. A conservação-restauro intervém nesses objetos estabilizando-os, quase sempre longe do olhar do público, para mais tarde serem apresentados. No MD a conservação-restauro tem pretendido contrariar esta tendência de ocultar a intervenção do restaurador ao seguir uma linha de atuação contemporânea, que deixa de intervir exclusivamente fechada nos “bastidores”, expondo o seu trabalho ao público. Iniciámos este compromisso em 2009 com o projeto de conservação-restauro dos painéis de Joaquim Lopes (18861956), pertencentes à coleção da Casa do Douro e que serviu de mote para a produção da exposição Mestre Joaquim Lopes – Douro, patente na sala central da sede da FMD de dezembro de 2010 a outubro de 2011 (MOTA, TAVARES, 2000) e que recebeu comentários positivos de especialistas (ANDRADE, 2009; PORFÍRIO, 2010). Esta linha foi continuada e aprofundada na exposição Santa Casa da Misericórdia – Coleção de Retratos. Neste caso, mais uma vez, o projeto para salvaguarda de uma coleção deu origem à produção de uma exposição. Assumindo um papel educativo sobre a importância da preservação
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deste património, mostrou ao público o carácter interdisciplinar da intervenção de conservaçãorestauro e a complexidade de tratar um bem cultural. Concebida com carácter temporário, mas itinerante, esteve patente ao público de janeiro a dezembro de 2013 no MD e contou com 32.751 visitantes. A exposição apresentou um estudo histórico e artístico das obras, e, em paralelo, a intervenção de conservação-restauro através de duas realidades: a primeira, por imagens e descrição do estado de conservação anterior, com a mostra das metodologias adotadas para o seu tratamento; a segunda, com a exposição de duas obras sem a ação da conservação-restauro, onde apenas se identificam patologias e propostas de tratamento. Estas pinturas, embora não integradas no conjunto dos onze retratos depositados no museu, pertencem à coleção da SCMPR, encontrando-se habitualmente expostas no salão nobre da instituição.
[Figura 11] Trecho da exposição Santa Casa da Misericórdia – coleção de retratos. O retrato de José Vasques Osório apresenta-se a par da fotografia usada por Marques de Oliveira para produzir a obra. Fotografia MD – Carlos Mota.
Apesar de não ter sido possível construir dentro da exposição um espaço para executar a intervenção de restauro nas referidas obras, como havíamos planeado, apresentámos o [12] documentário audiovisual “Restauro de um retrato” [do benfeitor Pedro Verdial] em simultâneo com a obra e um diaporama fotográfico. Assim se apresentaram as fases de todas as intervenções, dando ao visitante mecanismos para refletir e compreender as diferentes etapas de maturação dos [12] Disponível online na atualidade em <https://www.youtube.com/watch?v=-K3FtiIgGeU>.
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trabalhos, os constrangimentos e as soluções conseguidas. Mais tarde, em 2017, a exposição esteve patente de 1 de fevereiro a 31 de março, na Galeria de Exposições do Auditório Municipal do Peso da Régua. Os objetivos desta exposição são mostrar e apresentar a história da coleção e simultaneamente, educar e sensibilizar para a necessidade da conservação-restauro dos bens culturais, neste caso representativos de três atitudes perante o património: a que os criou, a que os deixou cair em esquecimento e aquelas que no futuro se vão preocupar com a sua preservação.
A terminar com perspetivas para o futuro O projeto para salvaguarda da coleção de pintura da SCMPR revela que o MD, através da conservação-restauro, tem capacidade para se articular estrategicamente com outras instituições. Desta forma obtém, com poucos recursos, resultados científicos importantes e surpreendentes, como os das fotografias sob florescência de radiação UV, conseguidas pela parceria com o Museu de Lamego, e pelos resultados das análises FTIR, através da colaboração do Laboratório HERCULES da Universidade de Évora. Os conceitos deste projeto de conservação-restauro ultrapassam os de restaurar para recuperar e apenas deixar de legado às gerações futuras. Procura-se antes atuar de forma interativa com a comunidade, contribuindo para a sensibilização e educação para salvaguarda patrimonial, pois só se preserva o que de forma consciente se conhece. O sucesso das intervenções de conservaçãorestauro no património cultural coaduna-se com a conjugação de esforços no sentido de transmitir à sociedade atual, e consequentemente às futuras, a importância da preservação dos legados patrimoniais para que a nossa intervenção seja sustentável.
[Figura 12] Síntese por criança da visita à exposição Santa Casa da Misericórdia – coleção de retratos no âmbito do projeto Bios - Segredos realizado pelo Serviço Educativo do MD. Fotografias MD – Carlos Mota.
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Agradecimentos Agradecemos à equipa e a todas as pessoas que contribuíram de forma direta ou indireta para a concretização e divulgação deste projeto. Aproveitamos ainda a oportunidade para agradecer as seguintes participações: António Candeias, Andreia Magalhães, Bárbara Amaro, Cláudia Monteiro, Enara Teixeira, Fernanda Fonseca, Fernando Seara, Fernando Cardoso, Filipe Barros, Gisela Miguel, Helena Freitas, João Duarte, José Matos, José Pessoa, Luís Carvalho, Mafalda Jorge, Manuel Mesquita, Mariza Adegas, Marco Barradas, Natália Fauvrelle, Samuel Guimarães, Sara Monteiro, Susana Marques, Susana Rosa e Teresa Vasconcelos.
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2.º painel | conferência SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE TORRE DE MONCORVO PERCURSOS PELA HISTÓRIA E DINÂMICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO Adília Fernandes
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PALAVRAS-CHAVE Santa Casa da Misericórdia; Torre de Moncorvo; História; Património.
KEYWORDS Santa Casa da Misericórdia; Torre de Moncorvo; History; Heritage.
RESUMO A investigação desenvolvida, para uma aproximação à história da Santa Casa da Misericórdia de Torre de Moncorvo – sede civil e religiosa de uma das mais extensas comarcas do Antigo Regime –, não nos permitiu encontrar a data precisa da sua fundação. Autoriza-nos, contudo, a comprovar a sua duradoura existência desde o século XVI e a enfatizar a permanência da sua missão. Aos propósitos de assistência espiritual e de salvação da alma associaram-se gestos dirigidos à salvação do corpo, a partir de meados do século XIX, com a anexação do Hospital do Divino Espírito Santo. A duradoura existência e a pluralidade e heterogeneidade de funções que atravessam as Santas Casas supõem uma diversificada e abundante documentação. Porém, vicissitudes de vária ordem redundaram na sua precariedade, realidade que atinge a de Torre de Moncorvo, nomeadamente, para os tempos mais recuados. Liga-se a essa vasta e multifacetada ação um património artístico e simbólico, igualmente relevante para a configuração da identidade destas instituições, que tem sofrido perda e degradados estados de conservação. Para a Misericórdia de Moncorvo, a salvaguarda de tal espólio é objeto da nossa atenção, já concretizada na recuperação das Bandeiras Processionais, valioso conjunto datado do século XVII e “resgatado” de um pungente quadro de ruína. O mesmo interesse é alargado ao Livro Antigo, importante e rara coleção cuja análise está em curso. As obras que integra, e que ultrapassam as que os fins da instituição requeriam, denota a presença de ilustres figuras do panorama cultural nacional entre os responsáveis que a geriram, exemplificadas pelo Visconde de Vila Maior.
ABSTRACT The research on the history of Santa Casa da Misericórdia of Torre de Moncorvo – civil and religious headquarters of one of the largest counties of the Antigo Regime –, did not allow us to ascertain the precise date of its founding. It did, nevertheless, allow us to prove its long existence, since the 16th century, and to emphasize the unchanging nature of its mission. Apart from providing spiritual assistance and the salvation of the soul, there were also some attempts towards the salvation of the flesh, as of mid-nineteenth century, resulting from the annexation of the Hospital do Divino Espírito Santo. The long-lasting existence and the plural and heterogeneous nature of these charities presuppose a varied and wide range of documentation. However, many different circumstances have resulted in its precariousness, which includes Torre de Moncorvo, namely, in what concerns its early days. To these vast and multiple scopes of action, we should add an artistic and symbolic heritage, equally relevant for the configuration of those institutions' identity, which has been subjected to loss and decay. Regarding the Misericórdia of Moncorvo, the safekeeping of such an estate also deserves our attention, already materialized through the recovering of the Processional Banners, a valuable set dating from the 17th century and “rescued” from harrowing decay. We have also focused our attention on the Old Book, a significant and rare collection, which is currently under analysis. The works that integrate, which exceed the institution's purposes, reflect the presence of distinguished figures of the national cultural scene among the people in charge of managing it, such as the Viscount of Vila Maior.
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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE TORRE DE MONCORVO PERCURSOS PELA HISTÓRIA E DINÂMICAS DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO ADÍLIA FERNANDES FLUP-CITCEM
[Figura 1] Fachada da igreja da Misericórdia de Torre de Moncorvo, templo renascentista. O edifício adjacente, correspondente ao espaço de reuniões da Mesa, ostenta o brasão da Misericórdia.
1 – Torre de Moncorvo – breve enquadramento histórico Torre de Moncorvo sobressaiu, no Antigo Regime, como uma das mais extensas comarcas. Integrou o grupo das vinte e três correições, surgidas após a organização judicial de 1767, e o das vinte e uma provedorias existentes no final do século XVIII. Em termos eclesiásticos, e na sequência das alterações implementadas pelo Liberalismo, o Vicariato de Moncorvo deixou de pertencer à arquidiocese de Braga, a favor da diocese de Bragança, em 1881. A prosperidade económica, devida, principalmente, à riqueza agrícola do Vale da Vilariça, sustentou a renovação urbanística da vila no
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século XVI. Incluiu a construção da imponente igreja matriz, cujas rendas justificaram as diligências do procurador de Moncorvo junto da Corte, em Madrid, para que se “fizesse bispado” da comarca, estatuto que não conheceu. A partir da segunda metade do século XVIII, entrou num deficiente quadro económico. Entre as causas que conduziram a essa debilidade destaca-se a perda da atividade industrial, nomeadamente, a da cordoaria, resultante da transformação do linho cânhamo na Real Feitoria implantada na vila e que servia as armadas, e a da seda. Esta indústria foi afetada, sobretudo, pelas perseguições do Santo Ofício, por se atribuir aos judeus o tráfico da seda desde “tempos antiquíssimos”. Moncorvo acolhia uma importante e ativa comunidade judaica. A comarca manteve-se, desde o fim do Antigo Regime, num deficiente quadro económico, ou, mais especificamente, produtivo, num contexto de ruralidade e isolamento. Estas circunstâncias espelharam-se nas precárias condições de vida das populações.
2 – Santa Casa da Misericórdia 2.1 – As fontes O crescente interesse dos investigadores, pela história das Misericórdias, tem dado lugar a uma valiosa produção historiográfica. Muitos dos estudos afiguram-se como um verdadeiro alerta junto dos responsáveis sobre o valor dos seus arquivos e a urgência da sua preservação. A apreensão da história e da memória destas instituições, tendo como recurso a sua produção documental, pode reportar-se à obra de Artur Magalhães Basto, História da Santa Casa da Misericórdia do Porto, de 1834. Difundiu-se, a partir daqui, a informação sobre este modelo confraternal, que se propagou de Lisboa, onde foi criado em 1498, às grandes cidades, às pequenas vilas e povoações e aos espaços atlânticos e orientais. A partir da segunda década de 70 do século XX, por influência dos Analles, incrementou-se a reconstrução do passado das Misericórdias. A afirmação da história das mentalidades e o alargamento das tradicionais áreas temáticas de investigação abriram novas vias de pesquisa, como a sociabilidade, a morte, a pobreza, a caridade, a marginalidade, o exercício do poder, a festa, a criança. Estes temas mergulhavam na documentação [1] das Santas Casas e cativaram os estudiosos . A dinâmica dos movimentos de defesa do património cultural, patente nos anos 80, reforçou a urgência do tratamento da herança documental destas irmandades, assinando-se protocolos entre diferentes organismos para o desenvolvimento de projetos nesse sentido. Entre estes, conta-se o Recenseamento dos arquivos locais: câmaras municipais e Misericórdias[2], integrado no Inventário do Património Móvel, iniciativa estatal mas em consonância com as diretivas da Comunidade Europeia. [1] PENTEADO, 1998: 90-97. [2] MARIZ, 1995-1998.
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Propunha estender-se o conceito de bens arquivísticos de valor cultural a toda a informação com mais de 50 anos. O recenseamento, que não contemplou todas as Misericórdias, permitiu traçar uma gestão de políticas de intervenção e de responsabilização das entidades detentoras pela organização e salvaguarda do património identificado. Possibilitou, também, constatar as deficientes medidas de conservação, a ausência de procedimentos arquivísticos e a perda de documentos por razões várias, concretamente, ambientais e de acondicionamento. Este cuidado com os acervos das Misericórdias incluiu os que procediam das antigas confrarias, irmandades e hospitais que incorporaram. A pertinência da sua organização prendeu-se, prioritariamente, com os arquivos históricos. Detentores de uma multiplicidade de registos documentais, correspondendo à sua institucionalização, pluralidade e heterogeneidade de funções que desenvolveram e à evolução que sofreram, tornaram possível a análise de um assinalável conjunto de temáticas. Registamos, sem pretensões de exaustividade, as seguintes: as novas formas de espiritualidade laica do período tardo-medieval; a caracterização dos poderes no Antigo Regime; o processo de centralização e afirmação do poder régio; as conceções da pobreza e as soluções destinadas a colmatá-la, bem como à doença; o sistema da justiça e prisional; as atitudes perante a morte e a salvação da alma; a estrutura fundiária; as variações conjunturais dos preços e a desvalorização monetária[3]. Ao nível interno das instituições, o espólio documental remete-nos para os órgãos de gestão, da periodicidade das suas reuniões e dos assuntos que debatiam; da distribuição dos cargos pelos irmãos e do seu exercício; das questões patrimoniais; da situação financeira e da atividade assistencial. Estes núcleos de dados são comuns às instituições, fundamentadas numa homogeneização de princípios organizativos. Contudo, há especificidades ligadas a cada uma, [4] advindas, desde logo, da localização geográfica . A precariedade da diversificada e abundante documentação que a duradoura existência – apanágio das Misericórdias – prevê, é uma realidade que atinge muitas delas, nomeadamente, a de Torre de Moncorvo. O que resta do arquivo definitivo, com exclusivo interesse para a História, limitase a livros dispersos, sem sequência cronológica e escassos para o tema e período que cada um refere. Desde logo, o espólio disponível não faculta o conhecimento integral dos primeiros tempos desta Santa Casa. Exige-se o recurso a outros arquivos – em particular, o Arquivo Histórico Municipal de Torre de Moncorvo, o Arquivo Distrital de Bragança, o Arquivo Distrital de Braga, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo – para um consistente entendimento da sua história mais recuada. O Concílio de Trento, ao confirmar as Misericórdias como confrarias laicas sob proteção régia,
[3] MANOEL, 2009: 175. [4] ARAÚJO, 2007: 357-378.
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imprimiu uma direção social enquadrada por cultos, ritos e práticas religiosas. Assim, corriam em paralelo funções religiosas e cultuais, com atividades de assistência e solidariedade. Esta vasta e multifacetada ação, desempenhada ao longo do tempo, convive com um património artístico e simbólico, abrangente e valioso. Igualmente necessário para a configuração da identidade destas instituições, e complementar dos arquivos históricos, testemunha o conjunto dos ritos e práticas que enquadram e edificam a espiritualidade do sentido social que perseguem. Cola-se aos ofícios, às exéquias, aos itinerários processionais, à organização e praxis assistencial e de solidariedade. O património móvel, obras de arte ou testemunhos históricos – o pendão da confraria, as bandeiras, as imagens, pintadas (a iconografia da Virgem do Manto) ou esculpidas, a prataria, os paramentos, as tochas, os círios, as cruzes, as varas e os balandraus dos mesários, as andas utilizadas como féretros no transporte dos pobres e presos falecidos –, não têm evitado a perda e degradados estados de conservação, de difícil ou impossível recuperação. Deste modo, e para a Misericórdia de Moncorvo, o espólio é uma ténue imagem de um passado rico, fiel à doutrina da Igreja e atenta à fragilidade da condição humana. Permite-nos, porém, um olhar mais preciso sobre as diferentes valências que traçam o seu perfil, pretexto para uma empenhada cautela com o restauro e a preservação das peças que restam[5]. Relevante para o enquadramento da instituição em causa e período cronológico selecionado é, ainda, o conjunto de livros impressos dos séculos XVI a XVIII. Oferece-se um avultado número de publicações, de autoria nacional e estrangeira. A sua reunião pode ligar-se à sustentação dos princípios que a norteiam, mas, ainda, à opção dos responsáveis pela gestão da Misericórdia e do Hospital do Divino Espírito Santo. Entre eles, pontuam nomes ilustres como o do Visconde de Vila [6] Maior, figura notável da cultura portuguesa do século XIX . 2.2 – Aproximação à História A Santa Casa da Misericórdia de Torre de Moncorvo é quinhentista, tal como as misericórdias transmontanas de Bragança, Chaves, Vila Real e Freixo de Espada à Cinta. O acervo arquivístico, embora conte com fundos para os séculos XVII a XIX, compõe-se, essencialmente, dos que concernem ao século XX. Os hospitais da Misericórdia são privilegiados com um mais vasto número de dados. Para desenharmos a origem e a história da Santa Casa da Misericórdia de Torre de Moncorvo[7] [5] A análise dos elementos identificadores deve-se a Adriano Vasco Rodrigues, Ana Carqueja Rodrigues e Vítor Serrão. [6] FERNANDES & BASTO (2014). [7] Consubstanciada na publicação intitulada A Misericórdia de Torre de Moncorvo – Percursos pela História (2016): Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus. O estudo permitiu-nos, ainda, comprovar, documentalmente, a existência da Misericórdia da freguesia de Carviçais, do concelho de Torre de Moncorvo. Abre-se, desta forma, uma nova via de pesquisa. Concluímos, em 2017, na UMinho, o estágio científico avançado de pós-doutoramento com o tema: A Misericórdia de Torre de Moncorvo – os finais do Antigo Regime e o Estado Liberal.
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servimo-nos de variadas referências documentais, que não indicam a data da sua fundação, mas que a situam no século XVI. Entre essas referências, conta-se a carta enviada pela câmara municipal de Torre de Moncorvo ao arcebispo de Braga, Frei Bartolomeu dos Mártires (1558-1598), em 29 de agosto de 1567. Deu a saber que a igreja, cabeça de comarca, não dispunha de vestuário para poder [8] dizer-se missa aos domingos e festas, tendo que o solicitar à Misericórdia . Esta passagem, que coloca a Santa Casa no século XVI, prova que tinha paramentos dignos. É amplamente referido que estas instituições, apesar de serem laicas, tinham uma forte ligação à Igreja, desde logo pelo cumprimento das obras de misericórdia associadas ao enterro dos mortos e à oração pelos vivos e defuntos. Precisavam, por esse motivo, de um aparato móvel para os ofícios divinos. As Misericórdias investiram fortemente neste setor, porque lhes proporcionava grande visibilidade e a [9] possibilidade de atraírem legados e recursos financeiros . Reforça, essas evidências, que situam a Santa Casa no século XVI, a Igreja da Misericórdia, edificada no lugar da primitiva igreja de Torre de Moncorvo e com um traçado renascentista que a identifica com o mesmo século. O edifício adjacente no lado esquerdo, com uma janela de ângulo denominada de “varanda de Pilatos”, serviu de consistório da Mesa e ostenta o brasão da Irmandade. Felgueiras Gayo pronuncia-se sobre o nome dos fundadores. Menciona João Álvares Pereira, natural de Bragança, casado com Dona Brites Nunes de Meireles, de Moncorvo, onde ficaram sepultados. A filha, Eva Nunes de Meireles, casou com Francisco Borges, escudeiro, nomeado “requeredor” da alfândega daquela cidade. Acusado de [10] judaísmo e de heresia, conhece os cárceres da Inquisição de Lisboa. Morreu em 1559 . Como tentativa de situarmos, cronologicamente, a Misericórdia de Torre de Moncorvo, evocamos, ainda para o século XVI, o registo da capela que lhe é instituída. Em 17 de fevereiro de 1594, o licenciado [11] António Botelho, abade de Castro Vicente, deixa-lhe a obrigação de sete missas . É de 1843 a cópia do Compromisso de 1774. Lemos, num documento apenso, de 1767, que o Compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pelo qual se havia regido a Misericórdia de Torre de Moncorvo, não tinha a devida e plena observância, pela incomparável diferença entre as Irmandades, com as indizíveis vantagens daquela. Exigia-se, pois, a adaptação deste instrumento normativo às circunstâncias locais. A Mesa determinou, em 26 de julho daquele ano, que se elegessem irmãos idóneos para elaborarem um novo Compromisso. Não chegando a efetuar-se “uma tão Pia, como louvável deliberação”[12], retomou-se este assunto no ano seguinte, dando-se-lhe execução.
[8] ADB – Gaveta das Cartas, Ms. 51 (29 de agosto de 1567). [9] RAMOS: 2015. [10] GAYO: 1940, pp. 33 e 140. [11] AHMTM – Inventário das Capelas desta Commarca de Torre de Moncorvo, fl. 30. [12] ADBG – Cópia do Compromisso da Misericórdia de Torre de Moncorvo, 1843, cx. 0139.
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Distribuído por 41 capítulos, o Compromisso estrutura e orienta o funcionamento e a atividade da Misericórdia. A alusão ao reduzido número de irmãos, quarenta nobres e quarenta oficiais, leva-nos a inferir que era de dimensão modesta, em conformidade com a importância regional que lhe correspondia e com a hierarquia que se ia estabelecendo entre as misericórdias dos centros urbanos [13] e as das outras localidades . Em 1882, o número de irmãos era de cento e noventa e seis, contra a determinação estatutária que estipulava, apenas, oitenta. Esta realidade pode explicar-se pelos benefícios, materiais e espirituais, que as Santas Casas facultavam aos detentores destas funções, patamares, ainda, para a ascensão social e política, tornando-as atrativas. Numa prática comum a todas, exerciam-nas num movimento de rotatividade. O juiz demarcante Columbano Pinto Ribeiro de Castro Vela assinalou, no Mappa da Província de Trás-os-Montes, de 1794, a existência do Hospital do Divino Espírito Santo, também designado por Hospital Real. Era padroado real e podia ser administrado pelo provedor da comarca ou pelo juiz de fora. O interior da sua capela ostenta uma epígrafe com as Obrigações da instituição, para a qual nos chama a atenção a inscrição no exterior do edifício: “Dentro estam escritas as obrigaçois deste hospital. 1726”. Juntou-se-lhe um hospital particular para receber passageiros pobres, instituído em 1491, por determinação testamentária. Vêm a fundir-se sob o nome de Hospital Real do Espírito Santo. A partir de 1865, entrou na posse da Santa Casa e marcou presença até 1904, quando surgiu o Hospital Rainha D. Amélia, erigido no ano anterior graças a um grupo de beneméritos. O estudo do hospital da Misericórdia denota um núcleo populacional profundamente carenciado a que prestava assistência. Os rendimentos de que usufruía advinham, sobretudo, de um considerável número de propriedades sitas no fertilíssimo Vale da Vilariça. Sujeitas às inundações provocadas pelas cheias do Rio Sabor, era instável o valor das culturas das courelas. As más colheitas refletiam-se na administração do estabelecimento e, por conseguinte, na classe pobre e desvalida que dele se socorria. O tombo das propriedades do hospital, do século XVIII, regista a sua identificação, localização, confrontação e medidas. O hospital desenvolveu um importante conjunto de cuidados junto de militares, por ser Torre de Moncorvo uma região fronteiriça e de fácil acessibilidade fluvial e terrestre. A vulnerabilidade, decorrente destes aspetos, observou-se, entre outros momentos de risco, na Guerra de Sucessão de Espanha (1701-1714), ou na Guerra entre Liberais e Absolutistas (1828-1834). As quantias a receber eram apresentadas junto do governador civil, acompanhando-se de pedidos para uma satisfação urgente, perante a falta de meios para acorrer às despesas. Os registos relacionados com o hospital, para o século XVIII, permitem traçar o movimento geral de doentes – militares, pobres e presos – os profissionais envolvidos, os gastos, as doenças mais incidentes e o receituário aplicado facultado
[13] XAVIER, 2005: p. 11.
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pela botica, numa grande variedade de remédios, de composição e origem diversa, comuns a boticas de instituições afins. Não dispomos de documentos normativos do período liberal. Todavia, outras fontes denunciam o intervencionismo do Governo, a partir da institucionalização da Monarquia Constitucional, em 1833[14] 1834 . A tutela do Estado abrangia não apenas as misericórdias, como os hospitais e outros estabelecimentos pios, numa tendência que as designará, nos termos do Código Administrativo de 1880, “quais corporações administrativas”. A correspondência trocada entre a Santa Casa de Moncorvo e os governadores civis de Bragança, que surgiram na sequência da criação dos distritos, em 1835, comprova essa interferência, concretamente, nos entraves colocados por estes magistrados à anexação do hospital. Alegavam uma gestão desfavorável e insuficientes rendimentos da Misericórdia, fatores que impediriam o bom funcionamento das duas instituições.
3. Considerações finais A existência da Santa Casa de Moncorvo foi atravessada por grandes dificuldades no exercício da sua atividade, consequência da modéstia das rendas e do reduzido significado das esmolas e dos legados pios. Apesar de ter usufruído, em 1611, de um decreto real que proibia as outras misericórdias da comarca, confrarias e irmandades de recolherem as esmolas das “novidades” antes da instituição de Moncorvo o fazer[15], privilégio que lhe trazia desafogo económico e financeiro, a sua viabilidade foi uma constante nas preocupações dos responsáveis. A contingência de “fechar a porta aos pobres e desgraçados”, que atravessa os documentos compulsados, invocava formas de lhe dar resposta, desempenho que incumbiu a uma estrutura organizativa e funcional de carácter elitista. Se os estudos que respeitam às Santas Casas da Misericórdia demonstram as continuidades, regras e comportamentos padronizados, também revelam as divergências locais derivadas das especificidades das regiões em que se implantam e dos homens que as fundam e gerem. O que respeitou à instituição de Moncorvo trouxe a oportunidade de descortinar percursos, que complementam ou alteram o conhecimento desta região, e de perceber o quanto estas irmandades são expressões notáveis da identidade e da história nacionais. No quadro destas expressões, específicas e globais, integra-se o património material, vertente indispensável para a compreensão dos desígnios da existência da Santa Casa. Neste sentido, desenvolve-se uma ação da sua preservação e recuperação, materializada, já, no valioso conjunto das bandeiras processionais, datadas do século XVII, com exceção da bandeira de Nossa Senhora do Manto, atribuída ao século XVIII. Estão patentes na Igreja da Misericórdia. O sucesso desta iniciativa, premente e prioritária face [14] LOPES, 2001: pp. 79-117. [15] MENDES, 1981: p. 324.
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ao estado de ruína das peças, ficou a dever-se à conjugação de gestos de apoio, tanto ao nível financeiro como de procedimentos técnicos. Com iguais propósitos de salvaguarda do património – e correspondente disponibilização aos estudiosos – está em curso a análise do Livro Antigo, coleção em que sobressai um raro núcleo quinhentista.
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LOPES, Maria Antónia (2001) – As Misericórdias de D. José ao final do século XX. In PAIVA, José Pedro, coord. – Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, vol. I, pp. 79-117. PENTEADO, Pedro (1998) – Os arquivos e a História das Misericórdias em Portugal: problemas e perspetivas. In HESPANHA, António Manuel, dir. – Revista Oceanos – Misericórdias – Cinco Séculos, n.º 35. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, pp. 90-97. RAMOS, Odete (2015) – A gestão dos bens dos mortos na Misericórdia de Arcos de Valdevez: caridade e espiritualidade (séculos XVII-XVIII). Arcos de Valdevez: Santa Casa da Misericórdia de Arcos de Valdevez. XAVIER, Ângela Barreto (2005) – Introdução. In PAIVA, José Pedro, coord. – Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, vol. IV, p. 11.
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2.º painel | conferência CAMINHOS DE SANTIAGO. PRÉ-HISTÓRIA DAS MISERICÓRDIAS? Jorge Guerra Duarte
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PALAVRAS-CHAVE Santa Casa da Misericórdia, Freixo de Espada à Cinta, Peregrinações, Estruturas assistênciais.
KEYWORDS Holy House of Mercy; Freixo de Espada à Cinta; Pilgrimages; Assistance structures.
RESUMO Este estudo é em linhas gerais uma tentativa de apresentar, a hipótese que nos encontramos a estudar e desenvolver, ”Caminhos de Santiago – Antecedentes das Misericórdias?” Ora, ao longo da evolução do nosso estudo, temos verificado a existência de um variado conjunto de informações, indiciando-nos que as estruturas assistenciais, que se teriam transformado no reinado do rei Venturoso na Santa Casa da Misericórdia de Freixo de Espada à Cinta, poderiam ter tido o seu alvor muito anteriormente, quando estas terras nordestinas eram percorridas por todos aqueles que enxameavam os caminhos nas grandes peregrinações jacobeias, deixando à posteridade toda uma riqueza emocional, composta por indícios arqueológicos, artísticos, económicos e culturais.
ABSTRACT This study is broadly an attempt to present, the hypothesis we find ourselves studying and developing,” Ways of Santiago - Background of Mercies?” Now, throughout the course of our study, we have verified the existence of a varied set of information, indicating that the assistance structures, which would have become the reign of the “Venturoso” king in the Holy House of Mercy of Freixo de Espada à Cinta, they could have had their dawn much earlier, when these northeastern lands were traversed by all those who swarmed the paths in the great Jacobean pilgrimages, leaving to posterity all the emotional wealth of archaeological, artistic, economic and cultural evidence.
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CAMINHOS DE SANTIAGO. PRÉ-HISTÓRIA DAS MISERICÓRDIAS? JORGE GUERRA DUARTE Universidade do Minho/Lab2-PT
Sabendo que, no fundo, esta apresentação não passa de uma hipótese imensamente discutível, vamos tentar contribuir para dar mais uma salutar achega, sobre as estruturas de assistência que provavelmente existiam neste concelho antes da fundação da Santa Casa da Misericórdia de Freixo de Espada à Cinta. Chamamos à atenção que esta hipótese de estudo se focaliza essencialmente na vila transmontana acima citada, podendo servir ou não, de pressuposto genérico para outros concelhos do país. Contudo, tentaremos levantar um pouco mais o véu sobre o passado, ainda relativamente mal estudado, desta distinta e respeitável vila transmontana. Inevitavelmente, teremos de referir a existência neste concelho de Freixo de Espada à Cinta das mais variadas estruturas de apoio, a quantos por aqui se dirigiam para Compostela, na ânsia de chegar sem demora ao túmulo do Apóstolo Tiago, ou que regressando da sua peregrinação, nestes locais encontravam um eficaz lenitivo, ou bálsamo, para as agruras e dificuldades inerentes às suas longas caminhadas. Por incrível que pareça, nunca saberemos onde se iniciava a peregrinação e o andarilhar pelos caminhos. Que veredas e planícies cruzavam, que florestas, bosques e pontes atravessavam, quantos rios e barcas se passavam, quantas agruras, dores e cansaço se ultrapassavam. O sacrifício terminava sempre em Compostela, diante do túmulo do apóstolo Tiago. Salientemos que a devoção ao culto jacobeu é com certeza muito anterior ao processo da independência de Portugal, uma vez que no norte peninsular, o número de paróquias que tinham S. Tiago por orago ou padroeiro era relativamente numeroso e, por conseguinte, estes locais assumiam uma importância religiosa e social de relevo, uma vez que este Pregador era o patrono dos exércitos cristãos na luta contra as hordas sarracenas[1].
[1] MARQUES, José – O Culto de S. Tiago no Norte de Portugal. In «Lusitânia Sacra», 2ª Série. Porto, n.º 4 (1992), p. 100.
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Note-se ainda, um factor de elevada importância para a religiosidade a norte do rio Mondego: a [2] Igreja compostelana exerceu a sua jurisdição em terras portuguesas até finais da Idade Média . A regular movimentação de pessoas por motivos espirituais e religiosos é à época um fenómeno corrente e, os destinos mais populares eram Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela, uma vez que estavam directamente relacionados com a figura de Cristo (Terra Santa) e os Apóstolos (Roma e [3] Compostela) . Nunca será por demais apresentar uma sucinta reflexão sobre os ancestrais e prováveis caminhos que poderiam ter existido nesta região peninsular e transfronteiriça cujos limites são natural e necessariamente permeáveis, tendo como espinha dorsal e estruturante o rio Douro e toda a rede capilar hídrica que é sua dadora. A paisagem é composta por milenares fraguedos e escarpas, profundos vales férteis encaixados entre as altas montanhas de cumes rochosos, que anunciam fronteiras politicas e administrativas, mas que são incompetentes para impedir a vontade indómita do Homem em abrir caminhos, ou para estabelecer relações de amizade, comerciais, ou mesmo de parentesco entre as duas margens e, desta forma, as fronteiras administrativas entre regiões ou países nem sempre se ajustam com as divisões culturais. A estes inumeráveis cenários naturais, a acção humana acrescentou transformações que ajudaram a transformar um território fantástico, numa imensa mais-valia histórica e paisagística. Com efeito, as rotas percorridas pelas tribos que por aqui habitavam e posteriormente as transumâncias com os rebanhos em busca de pastagens, converteram-nas em percursos aproveitados mais tarde para comércio, expedições ou viagens exploratórias. Ora seguindo o curso dos rios, ora percorrendo os planaltos, foram-se formando caminhos de péposto, atalhos, veredas, caminhos carreteiros, estradas em terra-batida ou calçada de técnica romana ou medieval. Assim se foi tecendo um conjunto de vias de circulação que evoluíram sempre na tentativa de encurtar distâncias e aumentar a segurança das viagens. Estes percursos eram muitas vezes interrompidos por cursos de água, pelo que, para os ultrapassar, era necessário em alguns locais a construção e manutenção de pontes e barcas, uma vez que com o decorrer dos séculos aumenta o número de pontos de passagem e ligação entre as rotas castelhanas, leonesas, galegas e as portuguesas[4]. Por outro lado, as pontes exercem uma extraordinária função social como poderosos meios de aproximação dos homens, por facilitarem a circulação e oferecerem proteção e [2] Idem. [3] DUARTE, Ana Catarina F. – Caminhos de Santiago: O Caminho Português como factor de desenvolvimento no concelho de Barcelos. Porto: FLUP, 2016, p. 27. [4] MORENO, Humberto Baquero – Vias portuguesas de peregrinação a Santiago de Compostela na Idade Média. In «Revista da Faculdade de Letras – História», Série II. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. 3 (1986), p. 77-89.
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segurança. No que respeita ao nordeste transmontano, a via romana que ligava Bracara Augusta a Asturica [5] Augusta, serviu de base para a abertura de outras estradas durante o período medieval , tanto que a [6] partir do século XIV esta região se encontrava unida a Castela, por três vias principais : - A que partia de Amarante, por Campeã, Lamas de Orelhão e Bragança, com variante de Lamas para Torre de Moncorvo e Freixo de Espada à Cinta; - Outra, de Guimarães por Carrazedo, Valpaços e Bragança; - E ainda a de menor circulação que seguia de Braga a Bragança, por Chaves. Acreditamos que com o decorrer dos séculos todas as terras que ladeavam estes caminhos foram conquistando, pouco a pouco, o estatuto de pontos de encontro e troca de culturas e ideias, locais onde se realizavam os mais variados negócios ou pactos entre as nações europeias. Cresceu também a sua importância económica, pois estas rotas foram naturalmente aproveitadas por artesãos e burgueses[7]. Na via que nos interessa para este estudo, a “Via da Prata”, também conhecida como Caminho do Sudoeste ou Caminho Leonês, tem ponto de partida em Sevilha. No entanto, pouco antes de chegar a Zamora, há uma via alternativa que entra em território português. Ora, segundo Baquero Moreno [8] num artigo sobre as diferentes vias do Caminho na Idade Média , as vias existentes em Trás-osMontes eram de reduzida afluência de peregrinos. A principal seria a estrada oriunda de Viseu e daqui para Lamego, Poiares da Régua, Vila Real, Vila Pouca de Aguiar e Chaves. Outra via partia de Penamacor, seguindo por Almeida, Escalhão, Barca D' Alva, Freixo de Espada à Cinta e Bragança. Refira-se que para além dos peregrinos portugueses, alguns peregrinos da região leonesa e do reino [9] de Castela percorriam estas vias . Por outro lado, Arlindo Cunha afirma que depois da Reconquista e da fundação da nacionalidade, [10] as peregrinações a Compostela tornaram-se uma prática transversal às diferentes classes sociais .
[5] MORENO, Humberto Baquero – Alguns documentos para o estudo das estradas medievais portuguesas. «Revista de Ciências do Homem». Lourenço Marques, série A, vol. V (1972), p. 97-110. [6] MARQUES, José – Caminhos portugueses de peregrinação a Santiago de Compostela: pressupostos históricos e condicionalismos de uma caminhada. [S.I]: Associação para a Defesa, Estudo e Divulgação do Património Cultural e Natural. In separata «Revista Mínia», 3ª série, n.º 6 (1998), p. 3-44. [7] MARQUES, José – Idem. [8] MORENO, Humberto Baquero – Vias portuguesas de peregrinação a Santiago de Compostela na Idade Média. In «Revista da Faculdade de Letras – História», série II. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. 3 (1986), p. 77-89. [9] MORENO, Humberto Baquero – Idem. [10] CUNHA, Arlindo de Magalhães Ribeiro da – Brevíssima História da Peregrinação Jacobeia em Portugal. Disponível em <http://www.santiagoanaunia.it/>.
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Justamente, neste período histórico a assistência não era de forma alguma uma função do Estado, podendo afirmar-se sem qualquer discussão, que os actos de piedade eram praticados de uma forma individual, conforme as posses de cada um. Tentavam-se socorrer o maior número de necessitados, porque no entender da mentalidade desta época, o exercício da caridade era a forma mais activa e rápida de os homens fazerem a remissão de todos os pecados, e merecerem as graças [11] de Deus . Por conseguinte, não é de estranhar que as instituições de beneficência e assistência aos indivíduos sem meios de prover às suas necessidades, tenham sido criadas por espírito de caridade cristã, uma vez que esta actividade era vista, não como uma obrigação da coroa, mas sim como um acto de piedade particular. Resulta então que estas instituições se fundaram por acção e influência de ordens religiosas e militares, concelhos, confrarias, ou simples particulares, na intenção de não só melhorar a vida dos desprotegidos, mas também de promover a salvação da alma aos seus instituidores[12]. Estas são instituições dispersas no espaço, muitas vezes sem estatuto, vivendo de doações, esmolas ou legados e que se repartiam em várias tipologias[13]: . Albergarias (destinadas a peregrinos, acumulavam frequentemente as funções de abrigo e hospital); . Hospitais (eram geridos sobre a responsabilidade dos irmãos que frequentemente pertenciam às ordens dos Hospitalários, Templários e Rocamador); . Gafarias (onde se abrigavam e tratavam os leprosos, sendo muito numerosas até aos finais do século XIV); . Mercearias (fundadas por um legado de Afonso IV, destinavam-se à protecção de pessoas honradas, mas empobrecidas). Destas quatro tipologias, apenas existem no concelho em estudo registos das duas primeiras, o que mais para a frente iremos desenvolver. Contudo, chamemos à atenção que numa terra inóspita, desordenada, quase desabitada e em que as fronteiras são marcadas pelas arribas das margens do Douro, estas instituições tinham um papel proveitoso e objectivo. Quase podemos intuir que, os viandantes ao palmilharem estas solitárias terras arriscavam morrer quando assaltados por malfeitores, o topónimo Vale de Ladrões é muito significativo, ou lutavam com mil dificuldades pela falta de caminhos transitáveis e seguros.
[11] PEREIRA, Nuno Moniz – A assistência em Portugal na Idade Média. Lisboa: Ed. Clube do Colecionador dos Correios, 2005, p. 55. [12]PEREIRA, Nuno Moniz – Idem. [13] TINOCO, Ismael – A Pobreza e a Marginalidade na Idade Média Portuguesa: o exemplo dos leprosos. In «Acesso Livre».
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Como atrás referido, desde o século X e nos alvores da nacionalidade, já tinham surgido diversas paróquias com S. Tiago como orago ou padroeiro celeste, por certo, expressão da devoção e culto, que continuou a crescer, mercê do fluxo destas percorridas peregrinações, que obrigaram ao [14] desenvolvimento e expansão das estruturas assistenciais aos peregrinos . Ora, não nos podemos esquecer que Dar Pousada aos Peregrinos será componente essencial no Compromisso das Misericórdias, uma vez que na antiguidade, dar pousada aos peregrinos era assunto de vida e de morte, pelo complicado e arriscado das travessias. Esta foi uma época na qual a individualização da prática da caridade e uma ideologia fortemente marcada pelo cristianismo, veiculada pelos clérigos, sobretudo pelos religiosos regulares (ordens monásticas, primeiro, e ordens mendicantes a partir dos alvores do século XIII), fizeram triunfar um modelo familiar, disseminado e plurifacetado de assistência[15]. Para além de razões de natureza histórica e patrimonial, outra tão ou mais importante pesou também na opção que tomamos na escolha deste estudo. Na verdade, o Caminho de Santiago não nos é estranho, porque uma das suas rotas passa por este concelho, onde neste momento trabalho e vivo, tomando o nome de Calçada de Alpajares. Iniciemos então a descrição dos factos que estão ao nosso alcance a fim de podermos justificar o nosso estudo e defesa da hipótese que justifica o título desta comunicação. Todos temos a consciência que o ano 1000 serve como charneira na evolução das mentalidades no Ocidente medieval. O medo da miséria e das epidemias, o medo da violência e do outro, que somados ao medo do além e da morte, vão moldar o espírito do homem medieval. Ora, ao acreditar e esperar pela ressurreição dos mortos, aceita que quando morrer, toda uma vida o esperará nas trevas eternas, temendo acima de tudo o dia do Juízo Final, as punições no além, e os suplícios do inferno, tomando assim consciência da sua verdadeira impotência, face ao destino[16]. Daí que a atitude do homem em relação à morte se transforme numa visão fatídica, omnipresente e assunto de terror. Nestes conturbados tempos, o mundo feudal é levado ao extremo, ou seja, é com o trabalho do camponês, que se sustentam os homens da igreja e da guerra. Como as ferramentas eram muito frágeis, a maioria de madeira, a sua produção resume-se em épocas fartas, a colher uns poucos de grãos pelos que são semeados. A pouca produção destinava-se na maior parte, aos que oravam e [14] MARQUES, José – A assistência no norte de Portugal nos finais da Idade Média. In «Revista da Faculdade de Letras – História», série II. FLUP, vol. 6 (1989), p. 11-94. [15] COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto – A Ordem Militar do Hospital em Portugal: dos finais da Idade Média à Modernidade. In Militarium Ordinum Anacleta. Fundação Eng. António de Almeida, n.º 3-4 (1999/2000), p. 102-124. [16] DUBY, George – Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos.1ª ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1998, p. 54.
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combatiam, cabendo ao camponês alimentar-se com o pouco que lhe restava. É aqui neste meio de [17] escassa produção, de domínio senhorial, que nasce o medo da miséria . Nas choupanas onde viviam não havia divisões, e todos dormiam próximos uns aos outros, desenvolvendo-se desta forma laços de protecção e solidariedade que fortaleceram o ânimo do [18] homem no ano mil . A sua forte religiosidade ensinava a suportar as privações do corpo em prol dos benefícios do espírito, e é nesta proximidade entre as pessoas que se desenvolve a capacidade de alguém se colocar no lugar do outro, proporcionar conforto àquele que está próximo, fortalecendo a união para enfrentar a vida, as carências e as aflições. Mas maior que a dor da privação, que pode ser passageira, é o medo da miséria permanente que assusta[19]. No início do século XI a economia do ocidente Europeu começa a crescer, devido à alteração da estrutura familiar promovida e reformulada pela Igreja, que prega a prática da monogamia, essencial ao dogma cristão, proporcionando-se desta forma um ambiente estável, e favorável à educação e proteção dos filhos[20]. Nesta mesma altura deu-se também uma grande evolução na agricultura, uma vez que o ferro começa a substituir os utensílios de madeira, proporcionando um melhor domínio das terras e o consequente aumento da produção de produtos alimentares. Este crescimento da produção agrícola, com base nas melhores técnicas de cultivo e na melhor organização do núcleo familiar, vai [21] ajudar a criar um ambiente mais favorável ao aumento da taxa de natalidade . Devido a este fenómeno, a população dos centros urbanos cresce de forma exponencial e rápida, passando a deparar-se com poucas possibilidades de ocupação, e nas margens das cidades começam a despontar as periferias medievais, onde a miséria era uma constante. O pior é que a miséria encontra aqueles que migram muito fragilizados uma vez que estão agora distantes dos laços de solidariedade das suas famílias[22]. Nas periferias urbanas, a miséria e as doenças inspiram o surgimento no século XIII das ordens mendicantes que vão centrar a sua evangelização na oração, na pregação, no serviço aos pobres e nas demais obras de caridade. Por responderem à necessidade de evangelização das cidades, receberam forte apoio dos papas[23]. [17] DUBY, George – As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. 2ª ed. Lisboa-Portugal: Ed. Estampa 1994, p. 123-152. [18] DUBY, George – Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos.1ª ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1998, p. 58. [19] DUBY, Georges – Idem. [20] DUBY, Georges – Idem. [21] DUBY, Georges – Idem. [22] LE GOFF, Jacques - Monges e religiosos na idade média. 1ª Ed. Lisboa: Editora Terramar, 1994, p. 54-128. [23] LE GOFF, Jacques - Idem.
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A principal característica destas ordens reside no facto de a sua sobrevivência depender das esmolas e dádivas dos outros, porque renunciaram à posse de quaisquer bens, comprometendo-se a viver radicalmente na pobreza e na humildade. Essas esmolas são obtidas principalmente através da [24] pregação e de outras obras referentes ao seu apostolado . A solidariedade agora precisava ser reforçada. No nosso país surgem as Santas Casas, algumas absorvendo os albergues, a antiga malha da solidariedade agora é refeita nos novos bairros periféricos. As novas ordens procuram os centros urbanos devido ao grande movimento de urbanização que se inicia no século XI e abarcará nos séculos XII e XIII grande parte da Europa, afirmando-se este novo mundo urbano através de novos valores e de comportamentos[25]. No século XIV é a peste negra que ceifa milhares de vidas, sendo à época desconhecidas as verdadeiras causas da doença. O comércio, as peregrinações europeias, rumo à terra santa, movimentam a Europa e a epidemia alastra. Aquele que vem de longe é sempre suspeito, e as cidades fecham-se, a peste negra ceifa um em cada três cidadãos europeus. A medicina da época desconhece a origem da doença, competindo então à oração tentar expurgar o mundo dos pecados dos [26] homens . Na Europa passa a assistir-se ao retomar de um espírito profundamente religioso, quase fundamentalista, organizando-se grandes procissões nas ruas das cidades, ostentando as relíquias [27] de santos . Se não havia um inimigo definido, os bandos de soldados, por vezes mercenários sem dono, saqueavam populações inteiras. Por volta do ano mil os camponeses viviam o temor dos saques e da violência, que somente será aplacada com a trégua de Deus e a paz de Deus que são instituídas pela [28] Igreja. "Que nenhum cristão mate outro cristão" , norma estipulando que não será permitido aos cristãos atacarem populações civis e que em algumas datas a guerra deve ser cessada em virtude de serem datas cristãs[29]. Assim, convencionou-se que durante as grandes festas religiosas a exemplo da Páscoa e do Natal, ou nas romarias em direção a terra santa ou aos relicários venerados na Europa, estabelecia-se uma trégua, a trégua de Deus, que proibia os confrontos bélicos entre cristãos[30].
[24] COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto – A Ordem Militar do Hospital em Portugal: dos finais da Idade Média à Modernidade. In Militarium Ordinum Anacleta. Fundação Eng. António de Almeida, n.º 3-4 (1999/2000), p. 102-124. [25] GONÇALVES, Rafael Afonso – O Despertar dos Mendicantes para os outros Mundos (séculos XIII e XIV). S. Paulo: Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, 2011, pág. 40-64. [26] DUBY, George – As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo. 2ª ed. Lisboa-Portugal: Ed. Estampa 1994, p. 123-152. [27] DUBY, George – Idem. [28] Palavra de ordem do Bispo de Narbona, lançada em 1054, que serviu para estimular ainda mais a implantação da Paz de Deus. [29] COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto – A Ordem Militar do Hospital em Portugal: dos finais da Idade Média à Modernidade. In Militarium Ordinum Anacleta. Fundação Eng. António de Almeida, n.º 3-4 (1999/2000), p. 51. [30] COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto – Idem.
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O medo do além sempre esteve presente no imaginário medieval. Neste período ninguém duvidava da existência de outro mundo, habitado pelas almas dos defuntos, continuando uma vida no sobrenatural, que se fazia tão presente quanto o natural. O medo dos castigos, o medo do inferno era grande. As imagens sacras lembravam a todo instante a grandeza do castigo aos pecadores, e as [31] bênçãos aos merecedores no mundo pós-morte . Havia o medo do que estava por vir, o castigo e o pânico do inferno fazem com que a Igreja institua o purgatório, como um local intermediário onde existe a possibilidade de redenção dos pecados. O purgatório é instituído quando os movimentos comerciais de trocas e negociações são intensos, o que nos permite crer que assim se possibilita pensar a possibilidade de “negociar” com Deus. Esta etapa atenuava o medo do inferno[32]. Foi no final do século XII que o “comércio” entre o Todo-poderoso e os homens se inicia, ou seja, todos os benefícios e boas acções dos vivos podem ser transferidos para a conta do defunto, a fim de ajudá-lo a livrar-se da sua culpa, ajudando desta forma as almas que estão no purgatório a abreviarem o tempo em que deviam purgar-se daquilo que as conspurcava[33]. O outro mundo era preocupação constante e fazia da morte um ritual de solidariedade ao corpo do falecido. Ocorriam ritos de passagem que se iniciavam antes da morte, reunindo os familiares e envolvendo tempo de preparação, uma vez que era durante a celebração destes rituais religiosos [34] que o indivíduo se despojava dos seus pertences e se arrependia dos pecados . É sabido que ainda antes da fundação da nacionalidade, era prática comum entre as elites cristãs, por norma, fazer doações a mosteiros aos quais se impunham como obrigação pro anima, que estas revertessem a favor dos mais desamparados e desfavorecidos, caso de pobres, peregrinos, órfãos e [35] cativos . Estes mosteiros eram na sua grande maioria de fundação privada laica, e tinham como peculiaridade apresentar alta taxa de indiscriminação nos serviços prestados[36]. Exceptuando as gafarias, devido ao carácter contagioso da doença, as restantes instituições, designadas por hospitais, albergues, mercearias, casas para pobres, juntavam sob o mesmo tecto pessoas com situações de fragilidade muito diversas[37].
[31] DUBY, George – Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos.1ª ed. São Paulo: Ed. UNESP, 1998, p. 53 e seg. [32] DUBY, George – Idem. [33] DUBY, George – Idem. [34] DUBY, George – Idem. [35] COELHO, Maria Helena Cruz – A acção dos particulares para com a pobreza nos séculos XI e XII. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média: actas. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1973, tomo I, p. 238-400. [36] COELHO, Maria Helena Cruz – Idem. [37] PEREIRA, Nuno Moniz – A assistência em Portugal na Idade Média. Lisboa: Ed. Clube do Colecionador dos Correios, 2005, p. 72.
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Acresce que a ajuda prestada era, recorrentemente, muito escassa e temporária. Para além dos cuidados de saúde que algumas instituições disponibilizavam, e que muitas vezes não passava do acompanhamento do doente e da recitação de orações, aquilo que se oferecia aos necessitados condizia com a rudimentar condição da existência material nestes conturbados tempos. Assim, tecto, roupa, lume, água e sal, por períodos não superiores a três dias, era o que por norma estas [38] instituições forneciam a quem as procurava . A concepção da caridade cristã marcou decisivamente as práticas assistenciais medievais, funcionando como seu fundamento e estímulo. Esta interpretação implicava a prática de obras de misericórdia que eram a materialização desse amor pelo próximo, com que se louvava e amava a Deus. No fundo como afirma Marta Lobo de Araújo “Dar aos pobres é emprestar a Deus”[39]. É então por essa época que também se iniciaram os primeiros sistemas de apoio organizado aos peregrinos, quer num quadro solidário, quer segundo uma vertente comercial, com a construção de mosteiros, igrejas e albergues[40]. As Misericórdias surgiram por impulso régio, com o objectivo de ajudar a colmatar as profundas deficiências do 'sistema assistencial português', constituído até então pelos mais diversos institutos caritativos, no apoio aos doentes miseráveis, peregrinos, forasteiros, caminhantes, presos, leprosos e [41] pobres nos seus diferentes segmentos . Como é sabido, as Misericórdias não resolveram totalmente o problema, mas minoraram-no ao darem aos seus irmãos, variadas oportunidades de [42] praticarem as obras de carácter corporal e/ou espiritual, apanágio destas Confrarias . Surgiram então a partir de finais do século XV as Santas Casas, com o objectivo de dar uma certa coesão a estas instituições, de fundação particular ou institucional, dispersas pelo país, e também para reunir e administrar o seu património com a finalidade de dar uma resposta mais eficaz no âmbito da assistência, não só no apoio a todos os pobres e desprotegidos do sistema vigente, mas também aos peregrinos em trânsito a caminho de Santiago de Compostela[43]. Este destino de peregrinação seria uma alternativa aos longínquos locais da Terra Santa e, com certeza, atraía numerosa gente, que logicamente necessitava de cuidados assistenciais. Nestas peregrinações, o longo tempo de viagem agravava sobremaneira, as já precárias [38] PEREIRA, Nuno Moniz – Idem. [39] ARAÚJO, Maria Marta Lobo de – Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e de Ponte de Lima (séculos XVI-XVIII). Barcelos: SCMVV-SCMPL, 2000, pp. 35-48. [40] CUNHA, Arlindo de Magalhães Ribeiro da – Brevíssima História da Peregrinação Jacobeia em Portugal. (s/d). Disponível em <http://www.santiagoanaunia.it>. [41] ABREU, Laurinda – Misericórdias: patrimonialização e controlo régio (séculos XVI e XVII). In «Ler História», n.º 44 (2003), pp. 5-24. [42] ABREU, Laurinda – Idem. [43] ABREU, Laurinda – Idem.
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condições de higiene e dieta alimentar, que associadas às dificuldades de alojamento e falta de descanso expunham os peregrinos a uma debilidade física favorável à contracção de inúmeras doenças. Importava, por isso, receber cuidados assistenciais que minorassem todo o mal-estar físico, daí que o acolhimento num local onde recebessem cuidados de saúde e protecção, afigurava-se [44] como algo de suprema importância . Por conseguinte, um dos importantes elos destas instituições de assistência eram os muitas vezes chamados hospitais-albergarias, estabelecimentos assistenciais de dimensões reduzidas destinadas a recolher um pequeno número de pobres doentes[45]. Estes hospitais eram sustentados por um certo património inicial doado pelos respectivos fundadores e aumentado posteriormente através de bens, tanto rústicos como urbanos, deixados por via testamentária, dotando-os de rendimentos capazes de se governarem com uma certa e relativa autonomia. Estes eram provenientes essencialmente de rendas, venda de cereais, vinho e animais de abate, casais, vinhas e herdades[46]. Era natural que estas instituições gozassem de muitos favorecimentos e privilégios reais e concelhios como por exemplo, a isenção de pagamento da maioria dos impostos lançados no reino e nos concelhos. Podemos imaginar estes pequenos hospitais locais como casas térreas, com compartimentos feitos e forrados de madeira de pinho e cobertos de colmo. Poderiam não ter portas e as camas seriam enxergas por cima de tábuas, para a acomodação dos pobres e [47] peregrinos . Mais tarde por vicissitudes várias, passariam para a administração das Câmaras, e a partir de 1521 estas estruturas transitaram para a tutela das Misericórdias, uma vez que o apoio assistencial aos peregrinos fazia parte da prática das suas obras corporais. Como já aventado mais acima, durante uma parte da Idade Média, o concelho de Freixo de Espada à Cinta, foi ponto de passagem de muitos peregrinos que se deslocavam para Santiago de Compostela, quer naturais do reino quer estrangeiros, recebendo pousada, assistência médica e alimentar nas instalações à época existentes, a fim de prosseguirem o seu destino. Ora, é muito provável que as comunicações levadas a cabo na Idade Média, tenham sido bem mais numerosas e frequentes do que poderíamos supor. Por exemplo, na região estudada imaginemos o território coberto por florestas de freixos, carvalhos, nogueiras, pinhais, e todo um conjunto de animais selvagens e famintos que por aqui deambulariam, conjuntamente com pontos de refúgio de [44] COSTA, Paula Maria de Carvalho Pinto – A Ordem Militar do Hospital em Portugal: dos finais da Idade Média à Modernidade. In Militarium Ordinum Anacleta. Fundação Eng. António de Almeida, n.º 3-4 (1999/2000), p. 52. [45] SOUSA, Bernardo Vasconcelos e (dir.) – Ordens Religiosas em Portugal. Das Origens a Trento. Guia histórico. Lisboa: Livros Horizonte, 2006, pp. 35-38. [46] SOUSA, Bernardo Vasconcelos e (dir.) – Idem. [47] QUARESMA, José Simões – Albergaria, Hospital e Misericórdia de Aldeia-Galega do Ribatejo. Montijo: Ed. do autor, 1948.
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malfeitores . Podemos concluir as imensas dificuldades que toda esta situação implicaria às comunicações, com uma rede viária certamente rudimentar, com uma população escassa e disseminada em que os núcleos populacionais se encontravam muito distantes uns dos outros. As ligações viárias deveriam ser autênticas façanhas, pelo que, a morosidade e os perigos existentes [49] seriam uma constante . Pela morosidade das deslocações, a necessidade de lugares para descansar e alimentar homens e animais, eram um imperativo. É evidente que, com o recurso à aposentadoria, este problema podia ser facilmente contornado. É também verdade, porém, que esta situação era de tal modo onerosa, por acomodações, aos aposentadores, e abusos, violências, esbulhos e roubos por parte dos aposentados, e, não raro, ficando estes últimos impunes, que, nas cortes, sempre foi alvo de constantes queixas pelos procuradores dos concelhos que aí faziam representar-se contra a manutenção desta obrigação[50]. Perante este cenário, não é de estranhar o surgimento de estruturas próprias para apoio as viajantes: as albergarias. A maior parte delas eram de iniciativa concelhia ou de particulares, e as regras reguladoras da sua [51] exploração eram, normalmente, fixados por diploma régio . Um factor de realce da regularidade maior ou menor de deslocações – obrigatórias ou não - no interior do reino residia no aumento crescente do número de albergarias, assinalando-se, no século XIV, uma sistemática correria por todo o território, apesar dos abusos nesses locais continuarem a existir, tal como nas habitações dos particulares. Apesar de tudo, este facto atesta, sem dúvida, o desenvolvimento das relações entre os habitantes das diferentes terras, atraindo simultaneamente para as localidades diversas vantagens óbvias. Concelhos houve e até simples aldeias que estabeleceram albergarias, o mais perto das vias de deslocação terrestres, por onde passavam comerciantes e outros. Os estalajadeiros encarregados da exploração delas obtinham do rei a concessão de privilégios que os colocassem ao abrigo dos abusos e aos estabelecimentos, facilitando a sua manutenção[52]. Estas casas, destinadas a dar pousada a caminheiros ou viajantes, podiam fornecer-lhes alimentação, roupas de cama, azeite para
[48] ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de – Os caminhos e assistência no norte de Portugal. In A pobreza e a assistência aos pobres na Península Ibérica durante a Idade Média. Actas das 1.as Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval. Lisboa, 1972-1973, tomo I. [49] SOUSA, João Silva de – Os transportes na Idade Média. In «Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências», Nova Série, n.º 11 (2011). [50] MARQUES, José – A Assistência no Norte de Portugal nos finais da Idade Média. In «Revista da Faculdade de Letras – História», série. II. Universidade do Porto, vol. 6 (1989), pp. 11-94. [51] GONÇALVES, Iria – Privilégios de Estalajadeiros Portugueses (Séculos XIV e XV). Separata da «Revista da Faculdade de Letras de Lisboa», III Série, n.º 11 (1967), pp. 5-19. [52] GONÇALVES, Iria – Idem.
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iluminação e outras facilidades, além da segurança de pessoas e bens, que o hospedeiro se obrigava [53] a acautelar . Nestas estruturas, havia também acomodações para as cavalgaduras que nelas encontravam abrigo, palha e água bastante para o seu sustento. As albergarias facilitaram as comunicações e as deslocações necessárias, e atenuavam um pouco o pesado encargo da aposentadoria passiva de um povo já bastante sobrecarregado de obrigações (realçamos o facto de o direito de aposentadoria só ter sido, de facto, abolido, em pleno século XIX). Por conseguinte, vamos socorrer-nos da toponímia e/ou das lendas populares, a fim de tentarmos desvendar onde se situariam as referidas estruturas assistênciais neste concelho. Não nos podemos esquecer que todo o lendário é uma narrativa transmitida oralmente pela população, visando explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais, misturando factos reais, com imaginários ou fantasiosos, e que se vão modificando através do imaginário popular ao longo das décadas. Daí o aforismo popular, “quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto”. Iniciemos então por apresentar uma lenda da aldeia de Poiares, termo de Freixo de Espada à Cinta: “- Há na egreja [do Mosteiro dos Templários] uma antiquissima cruz, de pau-santo, e de muito valor archeologico. […] Segundo a tradição, andando uma mulher surda-muda a guardar gado, no sitio de Santa Barbara, 1 kilometro a E. de Poiares, estando a fiar, sentada em um monte de pedras soltas, lhe cahiu o fuso, sumindo-se por entre as pedras, e puxando pelo fio, viu brilhar o que quer que fosse, e foi correndo dar parte aos habitantes da povo, falando claramente. Aquelles, pasmados de ouvirem fallar a surdamuda, correram ao sitio, e arrumarado as pedras, acharam a tal cruz e dois sinos. Para commemoração d'este achado, collocaram no sitio da apparição, uma grande cruz (cruzeiro) de granito: e, todos os annos, em dia de Santa Cruz (3 de maio), levam da egreja, em procissão, a cruz, até ao logar onde foi achada, e alli dão tres voltas em redor do cruzeiro, regressando á egreja, depois de terem alli feito as suas ladainhas e orações”[54]. Suponhamos então que depois de atravessarem o Douro, os caminhantes e peregrinos se deparavam com uma espécie de muralha natural, de montanhas aparentemente de muito difícil transposição, a não ser que tomassem o único caminho visível e transitável, rasgado pelas fendas desconformes existentes nas margens da Ribeira do Mosteiro, a montante apelidada de Santiago. O Barão de Forrester no seu grande mapa do Douro, a todo este percurso que nos leva de Barca d'Alva [53] SOUSA, João Silva de – Os Transportes na idade Média. In «Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências», Nova Série, n.º 11 (2011). [54] PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de – Portugal Antigo e Moderno. Lisboa: Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873], Tomo VII, p. 120.
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à desaparecida Ponte do Diabo chama-lhe Estrada dos Templários. Podemos nós então deduzir que esta Ribeira do Mosteiro e a Estrada dos Templários se referem à existência de um ancestral Mosteiro dos Templários referido na Lenda? Não nos custa a acreditar que sim, porque a toponímia assim o justifica. E como atrás foi referido esta é uma das ordens que vai fundar mosteiros que protegem e dão assistência aos peregrinos a caminho de Compostela. Ponte do Diabo porque a lenda lhe atribui a sua construção, a pedido de um almocreve em troca da [55] alma . Mais uma lenda que tem como protagonistas o Diabo e o Homem, saindo sempre este a ganhar, mostrando a superação do querer humano a qualquer adversidade. Esta ponte desabou há muitos anos, nos finais do século XIX, devido a uma enorme trovoada e enchente, sobrando actualmente só o arranque dos seus pilares na margem. Pensamos então, que nos alvores da nacionalidade e ainda durante mais um século ou dois, a infraestrutura local de assistência e repouso dos peregrinos se situaria precisamente no Mosteiro a que acima se faz referência, e que quando estas estruturas passaram para a administração municipal, foi transferido também fisicamente para o perímetro urbano da vila, passando a ser uma daquelas albergarias/hospitais como já vimos. Ao longo dos séculos XIV e XV, porque o aboletamento em casas particulares chegou mesmo a contribuir para o despovoamento de algumas terras, foram criadas muitas hospedarias por todo o país, quer por iniciativa dos concelhos, quer de particulares. A partir do estudo da concessão de [56] cartas de privilégio aos estalajadeiros é possível localizar as respectivas estalagens . No caso em [57] estudo, juntando-se a leitura do relatório do Barão de Rosmithal , que foi peregrino a Santiago em 1466, ficamos a saber que Freixo de Espada à Cinta possuía três estalagens e Fornos (freguesia de Freixo) concorria com igual número. [58]
No que concerne ao objecto do nosso estudo, num documento citado por Eugénio dos Santos, a Câmara de Freixo (1673), proprietária da igreja de Nossa Senhora do Vilar, localizada no lugar onde hoje se implanta o Convento de S. Filipe Nery, cede ao padre Francisco da Silva a «igreja, a casa do ermitão, a hospedaria dos romeiros (que estavam em degradação) e os bens de raiz». Como daqui se pode deduzir, ficamos a saber que os bens e do antigo mosteiro foram transferidas para a igreja de Nossa Senhora do Vilar, que pertencia ao município. Ora, até 1521 houve zonas do país que iam [55] <https://www.facebook.com/museudodouro/posts/868521573191824>. [56] GONÇALVES, Iria – Privilégios de Estalajadeiros Portugueses (Séculos XIV e XV). Separata da «Revista da Faculdade de Letras de Lisboa», III Série, n.º 11 (1967), pp. 5-19. [57] PLOTZ, Robert – Peregrinos Alemanes “Ad Sanctum Jacobum”. Portugal na memória dos peregrinos. Santiago de Compostela: Xunta da Galicia, 2002. [58] SANTOS, Eugénio dos – O Oratório no Norte de Portugal: Contribuição para o estudo da história religiosa e social. Porto: Centro de História da Universidade do Porto/Instituto Nacional de Investigação Científica, 1982, 130-155. (Textos de História, 4).
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evoluindo as suas infraestruturas de apoio aos caminhantes pobres e peregrinos, através de instituições fundadas por ordens religiosas, por particulares e pelos concelhos. Também podemos supor pelo que atrás está explicito, que alguns monges da ordem religiosa militar dos Templários, de alguma forma se tenham fixado e fundado um mosteiro nesta zona de fronteira entre os cristãos e os mouros, nos alvores da Reconquista. Como curiosidade apontamos o facto de pela mesma época, toda a região compreendida entre a margem direita do rio Douro e Freixo de Espada à Cinta, pertencer ao extinto concelho e castelo de Alva, facto que nos levará sempre a intuir que o dito mosteiro pertenceria a este concelho. Por outro lado, com a extinção do concelho de Alva e perda de todos os seus privilégios para Freixo[59], além de muitas outras vicissitudes próprias da História, foi toda esta estrutura de assistência deslocada para o perímetro urbano da vila e a partir de 1521, anexado à Santa Casa da Misericórdia de provável fundação com carta de compromisso outorgada por D. Manuel I[60].
CONCLUSÃO Para livrar a alma do inferno, e mais tarde do purgatório, o auxílio aos necessitados era visto como um importante legado, oferecido nesta vida presente, para funcionar como chave da porta do Céu futuro e perene. Este aspecto deve ser vincado e realçado para se entender o choque que esta profusão doutrinária teve no homem medieval, efeito gravado e perpetuado durante séculos no espírito dos homens. Como exemplos mais palpáveis do acima afirmado, foi o caso da distribuição de esmolas feita à saída das igrejas, pelas ruas, os alimentos, roupas e o abrigo que se forneciam aos pobres, doentes e peregrinos que passavam à porta onde habitavam os que tinham mais posses. Por outro lado, na Europa medieval faziam-se as grandes peregrinações, repetindo-se até à exaustão o auxílio e socorro aos pobres e peregrinos. Foi o caso provável de Freixo de Espada à Cinta, onde podemos conjeturar que a Misericórdia tenha sido criada antes de 1521, portanto, ainda no reinado de D. Manuel I, uma vez que o arcebispo de Braga, Diogo de Sousa, em abril de 1527, autorizou a abertura da igreja da Misericórdia ao culto, cuja construção terá demorado cerca de duas dezenas de anos. A historiografia aponta o início da construção da igreja por volta de 1514/15 e a sua conclusão perto [59] DUARTE, Jorge Manuel Guerra Cardoso – Freixo de Espada à Cinta, entre as lendas e a História (1155-1512). Ed. Câmara Municipal de Freixo de Espada à Cinta, 1994, p. 29. [60] Portugaliae Monumenta Misericordiarum / ed. lit. Centro de Estudos de História Religiosa da Faculdade de Teologia – Universidade Católica Portuguesa; coord. científico José Pedro Paiva. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2002, Vol. 3: A Fundação das Misericórdias: o Reinado de D. Manuel I. 2004, p. 379 e seg.
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de 1527 porque foi a 19 de abril de 1527 que o arcebispo D. Diogo de Sousa autorizou a abertura da capela ao culto. Apesar deste pedido para o início do culto, não cremos que o coroamento da igreja tenha sido realizado nesta altura, mas mais tardiamente, dadas as suas características e de acordo com as pistas documentais: em 1554 temos a ata mais antiga da Misericórdia, onde ficou registada a necessidade de se proceder à venda de bens para se concluir a igreja. Já no ocaso da Idade Média, decurso do século XIV / inícios da Idade Moderna, regista-se um certo esmorecimento da devoção em torno da figura de Santiago, pois esta passa a centrar-se mais na figura de Jesus Cristo. Por outro lado, as grandes peregrinações europeias entraram em declínio devido a dois importantes fatores: o terrível surto de peste negra que assolou a Europa; as lutas religiosas derivadas da reforma protestante e contra-reforma católica. Com a Restauração, são dadas instruções às autoridades eclesiásticas para que os peregrinos frequentassem padroeiros em Portugal, caso de São Gonçalo ou a Senhora da Lapa. Mas a grande quebra de popularidade pode ser em grande medida atribuída ao surgimento de outro foco de culto em Fátima, substituindo definitivamente a devoção jacobeia pela devoção mariana.
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PLOTZ, Robert - Peregrinos Alemanes “Ad Sanctum Jacobum”. Portugal na memória dos peregrinos. Santiago de Compostela: Xunta da Galicia, 2002. Portugaliae Monumenta Misericordiarum / ed. lit. Centro de Estudos de História Religiosa da Faculdade de Teologia – Universidade Católica Portuguesa; coord. científico José Pedro Paiva. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2002, Vol. 3: A Fundação das Misericórdias: o Reinado de D. Manuel I. 2004. QUARESMA, José Simões (1948) - Albergaria, Hospital e Misericórdia de Aldeia-Galega do Ribatejo. Montijo: Ed. do autor. SANTOS, Eugénio dos (1982) - O Oratório no Norte de Portugal: Contribuição para o estudo da história religiosa e social. Porto: Centro de História da Universidade do Porto/Instituto Nacional de Investigação Científica. (Textos de História, 4). SOUSA, Bernardo Vasconcelos e, dir. (2006) - Ordens Religiosas em Portugal. Das Origens a Trento, guia histórico. Lisboa: Livros Horizonte. SOUSA, João Silva de (2011) - Os Transportes na idade Média. In «Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências», Nova Série, n.º 11. TINOCO, Ismael (2014) - A Pobreza e a Marginalidade na Idade Média Portuguesa: o exemplo dos leprosos. Universidade Federal do Rio de Janeiro. In «Acesso Livre» n.º 2 (jul./dez.).
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2.º painel | conferência PARA A HISTÓRIA DA IRMANDADE DA MISERICÓRDIA / (SCM) DE CARRAZEDA DE ANSIÃES: DA VOCAÇÃO BENEFICENTE ASSISTENCIAL E FUNÇÃO HOSPITALAR A OUTRAS VALÊNCIAS (1929-2019). Maria Otília Pereira Lage
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PALAVRAS-CHAVE Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães; Hospitais concelhios; Economia Social; Douro.
RESUMO No âmbito da história das Misericórdias portuguesas, temática de longa duração e diversidade, objecto de vários estudos e trabalhos, a “história das misericórdias dos séculos XIX e XX, […] está por fazer, sendo tal vazio, dificilmente, explicável” (LOPES, 2008: 81). Apesar da lacuna de fontes historiográficas directas e da ausência de monografias sólidas, procura esboçar-se, com base em pesquisas de terreno e arquivo, numa amálgama de tempos e elementos, alterações jurídicas e políticas, as principais fases de sobrevivência e linhas de evolução da Irmandade da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, nos [1]
séculos XX e XXI, desde a aprovação dos fundacionais Estatutos (10 Dezembro 1929) assinados pelo presidente da Assembleia, Manuel de Mello de Sampayo, Visconde de Alcobaça. Documento histórico a interpretar, porque ilustrativo do ideário e organização das misericórdias no Estado Novo (órgãos centrais de assistência com papel supletivo do Estado, organismos primordiais concelhios), e paradigmático do “juramento de compromisso” dos responsáveis da instituição, representado nos estatutos, o que é realidade excepcional deste movimento que congrega irmãos leigos, supõe órgãos directivos (Provedor, Assembleia, Mesa e Conselho Fiscal) afirma objectivos e regras de intervenção assistencial e de beneficência, na assunção da missão confiada, garante de disponibilidade e entrega. [2]
Entidade de economia social , a Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, quase centenária, gestora de propriedades e património acumulado, recursos e rendimentos crescentes, doações beneméritas, com acordos e subsídios do Estado e autarquia local, tem-se mantido, com obras e alterações a sublinhar, como instituição que presta apoios sociais, culturais, educativos e religiosos às comunidades deste concelho transmontano-duriense. Com o propósito de facultar um serviço de proximidade desinteressado nas áreas da assistência e beneficência, continua, como agente intermediário, a assumir funções de solidariedade social e protecção a pessoas idosas e crianças necessitadas, auxílio a excluídos ou em situação de pobreza, inerentes ao respeito pela dignidade humana. À acção abrangente desta actual instituição privada de solidariedade social (IPSS), de reconhecida importância política na localidade, outrora “corporação de piedade e beneficência, que tem por fim geral o exercício de obras de misericórdia e beneficência e em especial a fundação, administração e sustentação do hospital a construir pela mesma irmandade na vila de Carrazeda de Anciães” (Cap.1º, artº1-Estatutos) se ficou a dever a edificação dos dois primeiros e únicos hospitais que aí funcionaram, em instalações próprias bem equipadas, desde 1939 a 1951/52 e de 1951/52 até ao fecho definitivo, já depois de, em 1975/76, terem passado para gerência do Estado, como todos os hospitais concelhios. O primeiro Regulamento Geral conhecido do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, data de 1938, e o seu articulado minucioso será analisado para melhor compreensão da ambiência económico-social e cultural e condições de vida das populações locais nas décadas de 1940-50. Esse programa de intervenção, durante mais de 60 anos, na saúde e higiene dos naturais e residentes no território concelhio e concelhos vizinhos, poderá explicar que, desde a fundação da Misericórdia se contem entre os elementos das elites locais que foram seus Provedores, um comerciante abastado, um proprietário de farmácia, conceituados médicos e directores hospitalares, para além de juristas e professores que lhes sucederam. Outras responsabilidades e actividades vieram acrescentar, ou substituir, as dos antigos hospitais concelhios perdidos pelas misericórdias em Novembro de 1975, contexto político de novos desafios vivenciados pela Misericórdia de Carrazeda, a qual desde a década de 1970 até ao ano de 2003, regista 110 irmãos nascidos entre 1923 e 1950, representando as mulheres ¼ do total. Esta Misericórdia emprega pessoal fixo diversificado (serviços gerais, administrativos, sociais, religiosos, cozinha, saúde e ajudantes, educadores de infância, auxiliares, animadores culturais, assistentes sociais) em várias valências: Centro de Dia e Lar de Santa Águeda (1991); Jardim Infantil (1987); Centro de Apoio Domiciliário – Alimentar, Saúde e Higiene (1994); Pólo de Animação Cultural; Bairro Habitacional (2001). Outras realizações se concretizaram, incluindo projectos participados e candidaturas a programas nacionais e europeus. Nesta perspectiva da história recente da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, entidade de economia social (HESPANHA; NAMORADO, 2009) ancorada na tradição laico-professional das Misericórdias (associações constituídas na ordem jurídica canónica para enfrentar carências sociais e praticar atos de culto católico, com espírito da doutrina e moral cristãs) – estudo de caso em construção –, visa-se o conhecimento do seu peso relativo na diversidade da história contemporânea das misericórdias d(n)o Douro.
[1] Poderão decorrer do decreto de 23.7.1928 sobre “o florescimento das misericórdias existentes e a criação delas nos concelhos onde ainda não existam”, promulgando numerosas isenções. O registo definitivo dos actuais Estatutos da Misericórdia de Carrazeda data de 18/12/1986. Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães.2001, [p.2]. [2] Compromisso – Modelo: http://santarem.udipss.org/pt/documentos/noticias/estatutos_misericordias.pdf.
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KEYWORDS Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães; County hospitals; Social Economy; Douro.
ABSTRACT In the context of the history of Portuguese mercies, a theme of long duration and diversity, the subject of various studies and works, the "history of the mercies of the nineteenth and twentieth centuries [...] is yet to be done, and such an emptiness is hardly explicable" (LOPES, 2008: 81). Despite the lack of direct historiographical sources and the absence of solid monographs, it seeks to outline, based on field and archive research, an amalgam of times and elements, legal and political changes, the main survival stages and Brotherhood of the Mercy of Carrazeda de Ansiães, in the twentieth and twenty-first centuries, since the approval of the founding Statutes (December 10, 1929) signed by the President of the Assembly, Manuel de Mello de Sampayo, Visconde de Alcobaça. Historical document to be interpreted, as illustrative of the ideology and organization of the mercies in the Estado Novo (central organs of assistance with a supplementary role of the State, primordial agencies), and paradigmatic of the "oath of commitment" of the responsible of the institution, represented in the statutes, which is an exceptional reality of this movement that brings together lay brothers, supposes governing bodies (Ombudsman, Assembly, and Fiscal Council) affirms objectives and rules of assistance and charity intervention, assumption of the mission entrusted, guarantee of availability and delivery. Entity of social economy, the Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, almost a hundred years old, manager of properties and accumulated assets, increasing resources and incomes, benevolent donations, with agreements and subsidies of the State and local authority, has been maintained, with works and changes to underline, as an institution that provides social, cultural, educational and religious support to the communities of this county of Transmontano-Douro. With the purpose of providing a service of disinterested proximity in the areas of assistance and charity, it continues as an intermediary agent to assume functions of social solidarity and protection for elderly and needy children, help to excluded or in poverty, inherent in respect for human dignity. To the comprehensive action of this current private institution of social solidarity (IPSS), of recognized political importance in the locality, formerly "a pious and charitable corporation, whose general purpose is the exercise of works of mercy and beneficence, and especially the foundation, support of the hospital to be built by the same brotherhood in the town of Carrazeda de Anciães "(Chap.1, art. 1-Statutes) was due to the construction of the first two and only hospitals that worked there, in well-equipped facilities, from 1939 to 1951 / 52 and 1951/52 until the definitive closure, after 1975/76, had passed into State management, like all county hospitals. The first known General Regulation of the Santa Casa de Misericórdia Hospital, dates from 1938, and its detailed articulation will be analyzed for a better understanding of the economic-social and cultural environment and living conditions of the local populations in the 1940-50 decades. This intervention program, for more than 60 years, in the health and hygiene of natural persons and residents in the territory of the municipality and neighboring municipalities, may explain that since the founding of the Misericordia it has been included among the elements of the local elites that were its Providers, a merchant wealthy, a pharmacy owner, respected doctors and hospital directors, as well as lawyers and teachers who succeeded them. Other responsibilities and activities included adding to or replacing those of the former municipal hospitals lost in mercy in November 1975, a political context of new challenges experienced by Misericórdia de Carrazeda, which from the 1970s to the year 2003 had 110 brothers born between 1923 and 1950, representing women ¼ of the total. This Misericórdia employs fixed personal diversified (general, administrative, social, religious, kitchen, health and helpers, nursery teachers, auxiliaries, cultural animators, social workers) in various capacities: Santa Águeda Day and Home Center (1991); Children's Garden (1987); Center for Domiciliary Support - Food, Health and Hygiene (1994); Cultural Animation Pole; Housing Neighborhood (2001). Other achievements have been made, including projects in the field and applications for national and european programs. In this perspective of the recent history of the Holy House of Mercy of Carrazeda, an organization of social economy (HESPANHA; NAMORADO, 2009) anchored in the laico-professional tradition of the Misericórdias (associations constituted in the canonical legal order to face social needs and practice acts of Catholic worship, with a spirit of Christian doctrine and morality) - a case study under construction -, the aim is to know its relative importance in the diversity of the contemporary history of the mercies of the Douro.
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PARA A HISTÓRIA DA IRMANDADE DA MISERICÓRDIA / (SCM) DE CARRAZEDA DE ANSIÃES: DA VOCAÇÃO BENEFICENTE ASSISTENCIAL E FUNÇÃO HOSPITALAR A OUTRAS VALÊNCIAS (1929-2019). MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE FLUP / CITCEM INTRODUÇÃO Dada a escassez de trabalhos historiográficos e monográficos sobre as Misericórdias portuguesas na época contemporânea[3], delineia-se, com base em estudos históricos e sociológicos de referência, o seu contexto de evolução, durante o “turbulento” século XX[4], esboçando numa perspectiva diacrónica, tendências dominantes das relações entre o Estado, Igreja e Misericórdias, actuais instituições particulares de solidariedade social e entidades de economia social e solidária do terceiro [5] sector . Essa complexa densidade histórica informa a aproximação historiográfica e institucional à Santa [6] Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães , nas fases essenciais do processo de seu desenvolvimento e afirmação como prestigiada instituição local, administrada por irmãos voluntários eleitos democraticamente. A partir das abordagens anteriores, tenta-se delinear a posição detida no panorama das Misericórdias durienses, por esta Santa Casa da Misericórdia, dotada de uma história recente ancorada na longa duração das Misericórdias portuguesas. [3] SÁ, Isabel dos Guimarães, LOPES, Maria Antónia – História Breve das Misericórdias Portuguesas (1498-2000). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p. 98-131. [4] PAIVA, José Pedro e FONTES, Paulo F. Oliveira - Introdução ao volume IX dos Portugaliae Monumenta Misericordiarum, / ed. lit. Centro de Estudos de História Religiosa da Faculdade de Teologia – Universidade Católica Portuguesa; coord. científico José Pedro Paiva. - Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2002, p.7-36. [5] VIEIRA, Naldeir dos Santos; PARENTE, Cristina; BARBOSA, Allan Claudius Queiroz (2017). “Terceiro setor”, “economia social” e “economia solidária”: laboratório por excelência de inovação social”, Sociologia: Revista da FULP, Número temático, pp. 100-121. [6] É devido reconhecimento grato ao sr. provedor da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, Professor Ricardo Paninho Pereira por toda a disponibilidade de acesso a informações e documentos da instituição. Agradece-se a cedência de documentos fotográficos à arquivista municipal Margarida Saavedra e à funcionária da Biblioteca Municipal, Adriana Barata dos Reis.
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1. AS MISERICÓRDIAS PORTUGUESAS NA ÉPOCA CONTEMPORÂNEA: NATUREZA JURÍDICA, SERVIÇOS DE SAÚDE E ASSISTÊNCIA SOCIAL Na sua história de quase 500 anos, as Misericórdias foram, desde as origens, instituições civis, cuja constituição dependia da autorização do poder central do Estado que supervisionava os seus compromissos ou estatutos e atividades, não tendo a Igreja, historicamente, intervenção legal na sua fundação e funções. Esta notável sobrevivência foi atravessada por conflitos e disputas entre os poderes civil e eclesiástico pela tutela e controlo jurídico-institucional das Santas Casas.
a) Durante a I República: instituições de beneficência financiadas pelo Estado A “Primeira República não foi agressiva com as misericórdias (…). O maior efeito foi sentido na drástica redução dos actos de culto, mas enquanto instituições de beneficência 'recebem do Estado o maior respeito e apoio'”. Depois de 1914-16, “a situação das misericórdias tornou-se aflitiva, …[com]a guerra e a pneumónica, responsáveis pela depreciação dos rendimentos e empobrecimento das populações.” Durante este período, em Março de 1924, realizou-se o 1º Congresso das Misericórdias, cujas reivindicações, sobretudo de carácter financeiro, tiveram resposta imediata, mas incompleta, com a Lei de 29 de Julho de 1924 e medidas legais subsequentes que, para além de revitalizarem Misericórdias de menor dimensão e explicarem também muitas [7] fundações novas, lhes permitiam requerer ajudas financeiras . As Misericórdias asseguravam um lugar privilegiado a nível concelhio, e as instituições particulares [8] passaram a receber um auxílio financeiro do Estado para desenvolverem as suas atividades . A assistência obrigatória que incumbia às Misericórdias incluiu o "socorro aos doentes em hospitais e domicílios, proteção às grávidas e recém-nascidos, assistência à primeira infância desvalida, por meio de institutos apropriados à sua educação e ensino geral e profissional, e assistência aos velhos e inválidos de trabalho, caídos na indigência, (...) não podendo ser recusada a nenhum indigente de ambos os sexos seja qual for a sua confissão religiosa ou credo político"[9].
b) Com o Estado Novo: tutela dúbia das Misericórdias Durante a Ditadura Militar (1926-1928) as Misericórdias são legalmente órgãos centrais do sector da assistência, orientadores e coordenadores a nível concelhio, com papel supletivo do Estado. O [7] LOPES, Maria Antónia (2008). Ob cit. pp. 98-102 . [8] GUERRA, Paula, SANTOS Mónica (2013). Relações entre o Estado e a sociedade: uma diacronia pelo terceiro setor em Portugal. Instituto de Sociologia, FULP, p.4-8. Disponível https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/81591/2/44995.pdf [ consulta 30 /5/2019]. [9] FERREIRA, Sílvia, 2000, p. 132.
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Decreto de 23/7/1928 estimulou declaradamente “o reflorescimento das misericórdias existentes e a criação delas nos concelhos onde ainda não existiam” e promulgou múltiplas medidas: “isenção do imposto de selo e custas nos processos administrativos, judiciais e fiscais; alteração para 20 anos do prazo mínimo de desamortização de prédios doados ou legados para serem conservados; entrega dos legados pios não cumpridos às misericórdias; admissão de enfermeiras religiosas; concessão de [10] subsídios pelas câmaras, autorização de federação de misericórdias, etc . Neste movimento favorável à expansão e revitalização das Misericórdias, surgiram na região duriense, por exemplo, em 25 dezembro de 1927, o “projecto de estatutos de fundação da irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua…”[11], em 1929/30, os primeiros estatutos da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Carrazeda de Ansiães e em 1932 a Misericórdia de Tabuaço. Em 1929, realizou-se no Porto o 2.º Congresso das Misericórdias, fonte imprescindível para o estudo das Misericórdias no século XX, ao nível das situações concretas aí analisadas e da auto-reflexão gerada[12], com destaque nas seguintes matérias: actualização dos juros dos títulos do Estado cuja aquisição fora obrigatória; conveniência de as Misericórdias manterem na sua orientação beneficente e caritativa os princípios doutrinários que inspiraram a sua fundação; e interesses das [13] misericórdias em geral . Mas, nem as suas reivindicações, nem as do 3º Congresso, em Setúbal, 1932, tiveram as respostas desejadas. As Misericórdias mantiveram, durante séculos, a sua natureza jurídica e tutela originais até à publicação do Código Administrativo de 1940 (ano também da Concordata), que veio alterar sua a natureza jurídica, definidas como “estabelecimentos de assistência ou beneficência criados e administrados por irmandades ou confrarias canonicamente erectas” (art. 433). Ao conferir-se a entidades do direito canónico o poder de iniciativa da sua criação, embora mantendo-se a aprovação obrigatória dos estatutos pelo governo, as Misericórdias passaram a estar sob duas tutelas: a do Estado e a da hierarquia católica. Esta duplicidade entre poderes político e eclesiástico foi adensada pelo decreto-lei de 7.11.1945, justificado por divergências face a reacções da Igreja (controlo episcopal e restrição à admissibilidade de não praticantes). As Misericórdias eram consideradas estabelecimentos de assistência ou beneficência com compromissos “elaborados de harmonia com o espírito tradicional das instituições para a prática da caridade cristã”, mas obrigatoriamente aprovados pelo Ministro do Interior. Tal gerou a indignação da hierarquia católica e de muitas [10] LOPES, Maria Antónia (2008) - Ob cit. pp.103-104. [11] GONÇALVES, Manuela Silva, GUIMARÃES, Paulo Mesquita - Misericórdias do distrito de Vila Real. Fontes para a memória colectiva da Região, p. 413. Disponível http://www.cepese.pt/portal/pt/publicacoes/obras/a-misericordia-de-vila-real-e-asmisericordias-no-mundo-de-expressao-portuguesa/. [ consulta 30/6/2019] [12] Ibidem. [13] LOPES, Maria Antónia (2008) – Ob cit. p.105.
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Misericórdias, ambiente de confusão e conflito, a nível histórico e jurídico, que marcou o 4.º [14] Congresso das Misericórdias, em Dezembro de 1958 . Aí se votou a sua "restauração da genuinidade canónica”, questão importante a exigir estudo detalhado já que eram estas que suportavam no país a assistência social e, quase todos os serviços de saúde. Nos anos 1960 e 1970 as mudanças a nível assistencial induziram a revitalização das Misericórdias. Para além da inauguração de novos serviços (asilos para deficientes, creches, maternidades, colónias de férias e ainda a sopa dos pobres), ganharam importância manifestações de cariz cultural como os cortejos de mérito ou oferendas para angariação de fundos, quermesses e cortejos etnográficos. Vulgarizou-se a contratação de religiosas para os serviços hospitalares. Foram diminuídas restrições à aquisição de bens imóveis a título gratuito, o que parece ter incentivado os legados. Os associados passaram a pagar cotas, aumentaram os subsídios estatais e os valores das doações de particulares. Entretanto, é aprovado o Estatuto da Saúde e Assistência que estabelece as bases da política social do país, de que as Misericórdias são os organismos locais. Com a aprovação do novo Código Civil (1966) é-lhes permitido a aquisição e conservação de bens imóveis a título gratuito e, mediante autorização do governo, a título oneroso. São-lhes prodigalizadas grandes ajudas financeiras pela Direcção Geral de Assistência (para equipamento hospitalar), por comissões municipais de assistência, governos civis, câmaras municipais, juntas de freguesia e Fundação Calouste Gulbenkian. Desde 1968, o rendimento do produto líquido do Totobola da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa [15] foi canalizado, parcialmente, para as Misericórdias . Os anos 1960 marcaram mudança relevante em Portugal a nível da política social, na previdência e assistência e correspondente coordenação, registando-se tendência generalizada das medidas sociais a todo o território e população, e integração da «previdência social». Porém, não se registou alteração da tradicional diferenciação dos esquemas de proteção social, previdência e assistência. (HESPANHA et al., 2000). Permaneceram insuficiências e contradições da intervenção pública e grande diferenciação nos privilégios às instituições particulares. Estas, se fundadas em actos éticoreligiosos, enquadradas no sistema de saúde e assistência, gozavam de estatuto mais elevado, sendo o seu património ampliado com financiamento público, ao contrário do que sucedeu com associações mutualistas[16]. Reforçou-se o papel da Igreja Católica, com a concessão às Misericórdias, na área da saúde (gestão de unidades hospitalares) e acção social, e estimularam-se instituições [17] particulares de assistência de direito canónico .
[14] LOPES, Maria Antónia (2008)- Ob cit, pp 109-111. [15] LOPES, Maria Antónia (2008) – Ob cit. p. 115-118. [16] HESPANHA, Pedro, et al., 2000, p.121. [17] GUERRA, Paula, SANTOS Mónica (2013) – Ob. cit.
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c) Em Democracia: Misericórdias, IPSS e entidades de Economia Social Nas vésperas da Revolução de 25 de Abril de 1974, mantinha-se o enquadramento jurídico das [18] Misericórdias dos anos 1940/50. Por essa altura, as 351 Misericórdias portuguesas existentes dedicavam-se sobretudo à assistência hospitalar, disponibilizando 2/3 das camas hospitalares do país. Pelo Decreto-Lei nº 704/74 de dezembro, os hospitais centrais e distritais das Misericórdias integraram a rede nacional hospitalar sendo administrados por comissões nomeadas pelo Governo. No Dec-Lei 618/75 dispôs-se o mesmo para os hospitais concelhios, mantendo-se os seus edifícios na propriedade das Misericórdias, mas ocupados a título gratuito pelo Estado[19]. Consumava-se assim o esvaziamento do escopo tradicional principal das Misericórdias e da sua acção tendencial dominante. Sob pena de extinção, as Misericórdias viram-se obrigadas a praticar outras modalidades de acção social. No pós 25 de Abril, assistiu-se à constituição em Portugal de uma estrutura de Estado Providência ou Estado de bem-estar social de inspiração keynesiana visando um sistema de acção social universal e integrado, em resposta a objectivos económicos, necessidades e solicitações sociais[20]. Face às implicações decorrentes, houve movimentações, reivindicações várias e contraditórias e intervenções públicas, designadamente por parte da Igreja. Destaca-se a realização do 5.º Congresso das Misericórdias de Viseu em 1976, em cujo âmbito se constituiu a União das Misericórdias Portuguesas (UMP), com ereção canónica pelo bispo de Viseu em Janeiro de 1977. No encerramento do Congresso, o ministro dos Assuntos Sociais do Governo de então, manifestou vontade política de apaziguamento e colaboração, embora sem cedência na devolução dos hospitais, que inviabilizaria a [21] “construção de um Serviço Nacional de Saúde” . [22]
O 1.º Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), 1979 , que orientado por uma filosofia intervencionista, estabelece uma estrutura a organizações sem fins lucrativos envolvidas no trabalho social através de protocolos com a Segurança Social para a prestação de serviços, define as Misericórdias como “associações constituídas na ordem jurídica canónica”. [18] Base de dados das Misericórdias Portuguesas da CASES, 2015: existem “atualmente em Portugal, 398 Misericórdias activas e 80 inactivas de que há memória ou vestígios patrimoniais.” [19] LOPES, Maria Antónia - “Misericórdias”. In Reis, António; Rezola, Maria Inácia; Santos, Paula Borges (coord.), Dicionário de História de Portugal, vol. 5, Porto, Liv. Figueirinhas, 2017, pp. 392-398. [20] Os traços distintivos do Estado Providência português: o carácter dual, fragmentado e corporativo das prestações sociais, o hibridismo e promiscuidade entre sector público e privado; as lógicas clientelistas e particularistas fruto da debilidade autonómica do Estado face a interesses partidários; uma posição de dependência e assistencialista nos padrões culturais da população. GUERRA, Paula, SANTOS Mónica (2013), Ob. cit. [21] LOPES, Maria Antónia (2017) – Ob cit., pp. 392-398. [22] Numerosos artigos deste Estatuto, revisto e aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, (por sua vez, alterado pelos Decretos-Leis n.os 9/85, de 9 de janeiro, 89/85, de 1 de abril, 402/85, de 11 de outubro, e 29/86, de 19 de fevereiro), passaram a ter nova redação no actual Estatuto das IPSS publicado pelo Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de novembro e ainda pela Lei nº 76/2015 de 28 de julho, a 1.ª alteração a esse Decreto-Lei e a 6ª alteração ao Estatuto das IPSS.
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“Adquiriram personalidade jurídica e foram reconhecidas como instituições privadas de solidariedade social, mediante participação escrita da sua ereção canónica, feita pelo ordinário diocesano aos serviços competentes do Ministério dos Assuntos Sociais”. Em 1983, o 2.º Estatuto das IPSS, modelo de regulação menos directivo, destacando a garantida autonomia «total» das iniciativas ligadas à Igreja Católica, manteve essa definição. Afirmava expressamente que as Misericórdias podiam ser extintas pelo ordinário diocesano ou pelos tribunais, atenuando ainda mais a tutela administrativa. Assim se consumava a transformação da natureza jurídica e tutela das Misericórdias portuguesas que passavam a ser de índole confessional, o que, declaradamente na letra da lei, nunca tinham sido, durante a sua longa história. Na Lei da Segurança Social (Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto), é reconhecido às instituições privadas papel insubstituível na produção directa e exercício das actividades e serviços ligados à Igreja Católica, obrigando-se o Estado a conceder-lhe “apoios de natureza material, técnica e financeira” (HESPANHA, 2001). A reivindicada autonomia das instituições e suas organizações federativas, bem como “a sua suposta legitimidade para defender e representar os interesses dos sectores mais desfavorecidos torna-se, algo dúbia” (ibidem). Nos anos 1980 mantinha-se a histórica turbulência da disputa estatutária das Misericórdias, no âmbito do direito canónico, traduzindo-se na sua caracterização como “associações privadas de fiéis” ou “associações públicas de fiéis” alterando-se os contornos da manifestação dos conflitos agora internalizada no poder episcopal, mas sempre em torno da perseguida autonomia por parte das Misericórdias. Desde meados de 1980, designadamente, por efeito da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, das alterações macroeconómicas e políticas de reestruturação de sectores nacionais e por via dos fundos estruturais, assiste-se, a alguma modernização e desenvolvimento de projectos contra a exclusão (Programas de Luta Contra a Pobreza, etc.) mediante parcerias com instituições do terceiro sector ou economia social. Muitas dessas iniciativas, algumas à margem do sistema de segurança social, criaram formas complementares e privadas de intervenção social. O que implicou diversificação do terceiro sector cujas organizações têm repartido com o Estado funções de regulação, reclamando legitimidade «ética» e crédito para representar e defender necessidades de segmentos populacionais mais carenciados, sendo financiadas pelo Estado, ainda que surjam como [23] parte da sociedade civil autónoma . O ordenamento jurídico nacional define as bases gerais da Economia Social, com a Lei n.º 30/2013 de 8 de Maio, que consagra, no art.º 4º, al. c), as Misericórdias como entidades da Economia Social, dispondo sobre medidas de incentivo à sua atividade. O Estatuto das IPSS (2014), alterou o regime das Misericórdias, cujos estatutos se adequaram à nova
[23] GUERRA, Paula, SANTOS Mónica (2013) – Ob.cit.
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[24]
lei .
2. PARA A HISTÓRIA DA IRMANDADE DA MISERICÓRDIA (SCM) DE CARRAZEDA DE ANSIÃES. 2.1. Apresentação
[25]
[I] Logótipo da Misericórdia de Carrazeda
.
Esta Santa Casa da Misericórdia, com sede na vila de Carrazeda de Ansiães, distrito de Bragança, estatutariamente reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) e entidade do espaço da Economia Social, regista desde a década de 1970 até 2003, 110 irmãos laicos nascidos entre 1923 e 1950, representando as mulheres ¼ do total. Tem por atribuição uma multiplicidade de desígnios, prosseguindo, genericamente, diversos fins operacionais nas áreas da assistência social, saúde pública, património, educação e formação [24] O artigo 5º, nº 4, do Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de novembro, determina que no prazo de um ano as Misericórdias devem adequar os seus Compromissos à nova lei, sob pena de perderem a qualificação como IPSS e o respetivo registo ser cancelado. A Conferência Episcopal Portuguesa promulgara o Decreto Geral para as Misericórdias, de 23.4.2009, e o Decreto Geral Interpretativo, de 2.5.2011, acordando o Compromisso de 2.5.2011 com a União das Misericórdias Portuguesas, proposta de modelo considerada necessária para se explicitarem os preceitos legais e determinar como devem ser observados por cada bispo na sua diocese. Assim, a Conferência Episcopal Portuguesa, em Assembleia Plenária ordinária em Fátima, de 13 a 16 de abril de 2015, aprovou este novo Compromisso-Modelo para as Irmandades da Misericórdia, revogando o Modelo de Compromisso aprovado na sequência do D.L. 519-G2/79. Novo Compromisso – Modelo http://santarem.udipss.org/pt/documentos/noticias/estatutos_misericordias.pdf [Consulta 3/4/2018]. [25]Descrição da heráldica e simbologia (2002) , inscrita em brasão, estandarte e selo, artº 4º dos Estatutos da Misericórdia de Carrazeda em vigor (2016). Segundo José Bènard Guedes (1985) a cor verde, ramo de oliveira e espiga são elementos aproveitados das armas do concelho; palma, símbolo do martírio de Santa Águeda, padroeira da freguesia de Carrazeda; coroa mariana (tradição da coroa real, usada sempre nos escudos das Misericórdias que afirma a protecção e realeza de Nossa Senhora da Misericórdia) e restantes elementos seguem as regras de outras Misericórdias. Heráldica das Misericórdias “Elucidário Nobiliárquico”, vol. 1, nº12, dez. 1928, p. 378-380.
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[26]
profissional, habitação e turismo social, empreendedorismo, exploração agrícola/florestal . [27]
Neste amplo enquadramento, disponibiliza, no presente , às populações locais, as seguintes respostas sociais, para além de outras actividades:
DESCRIÇÃO
CAPACIDADE
UTENTES
HORÁRIO
Creche
59
42
07:45 - 19:00
Estabelecimento de Educação Pré-escolar
50
43
07:45 - 19:00
Serviço de Apoio Domiciliário (Alimentar, Saúde e Higiene), iniciado em 1994 (Idosos)
100
100
09:00 - 17:00
Centro de Dia
30
10
08:00 - 20:00
Estrutura Residencial p/ Pessoas Idosas (Lar de Idosos e Residência)
50
50
24 H
OUTRAS ACTIVIDADES Cantina Social (âmbito do PES) Programa de Ajuda Alimentar a Carenciados Outras Respostas Dirigidas a Crianças e Jovens
Pólo de Animação Cultural
[Quadro 1] Respostas sociais (2018/2019). Fonte: 2016 GEP - Gabinete de Estratégia e Planeamento; ETNAGA
[II] Centro de Dia e Lar inaugurado em junho 1991, presta todos os serviços de apoio diário de higiene, alimentação, ocupação dos tempos livres, apoio médico e enfermagem. Oferece actividades de lazer, visitas guiadas, passeios e serviço religioso.
[26] Declaração da Direcção-Geral da Segurança Social de 5 de fevereiro de 2016. [27] Carta Social do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, para a Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães (natureza jurídica de Irmandade da Misericórdia/SCM), actualização, março 2019.
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[III] Jardim Infantil- Creche e Educação Pré-escolar (inauguração junho 1987).
Para a prossecução de suas valências, dispõe de uma equipa de pessoal permanente, com funções gerais e especializadas em vários serviços (administrativos, sociais e religiosos, saúde, cozinha, educadores de infância e auxiliares, animadores culturais, assistentes sociais e ajudantes) bem como de uma frota automóvel própria constituída por 14 viaturas de apoio domiciliário (carrinhas, 1 autocarro e 1 unidade móvel) que, remodeladas em 2015, fazem uma média de 80 km /dia, só no concelho.
[28]
[IV] Mapa de Valências - Concepção aplicada às valências Melhorar a alimentação quotidiana dos idosos, combater o isolamento, criar condições para o desenvolvimento da autonomia, sociabilidade e exercício da cidadania. Proporcionar ensino pré-escolar, preparando crianças para ingresso no ensino primário e desenvolver actividades para torná-las autónomas física e mentalmente. [28] Disponível em http://www.misericordiacarrazedadeansiaes.com/main.php?mapaValencias. [consulta em 3/6/2019]
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Dotada de considerável património urbano e rústico concelhio, e com resultados líquidos [29] positivos do seu exercício corrente , esta instituição tem promovido outras iniciativas destacadas pela sua raridade, a nível duriense e nacional, mormente em dois domínios: habitação social, assente em propriedade imobiliária urbana constituída por 39 casas (32 no bairro do Pereiro, 6 no bairro da Misericórdia e 1 no bairro da Câmara); produção agrícola, com a oferta de hortas sociais em propriedade rural (quinta dos Pereiros), doada por irmão benemérito, nos anos 1990.
[V] Habitação social: Bairro do Pereiro inaugurado a seguir a 2001 com 32 casas, tipo T1, T2, T3 e T4, habitadas com rendas sociais, Bairro da Misericórdia com 6 casas e 1 habitação no Bairro da Câmara.
Realçam-se, ainda, projectos e programas mais recentes: Projecto de recuperação e ampliação do edifício do hospital desactivado de Carrazeda, para instalação de um Lar Residencial para Idosos (ERPI) e Unidade de Cuidados Continuados, com a capacidade de 60 utentes, obras orçadas no contrato da empreitada em mais de 2 milhões de euros, que arrancaram em 2017 e se encontram a decorrer. Programa CLDS, Contrato Local de Desenvolvimento Social, designado Causa 3G – Carrazeda de Ansiães Une e Socializa Apoiando, promovido, a partir de 2017, pela Misericórdia em parceria com a Câmara Municipal, num combate articulado à pobreza persistente e inclusão social de cidadãos, mediante promoção da empregabilidade e empreendedorismo (problemas prementes concelhios). Assentou num projecto de intervenção em 3 eixos: Eixo 1- Emprego Formação e Qualificação; Eixo 2Intervenção familiar e parental, preventiva da pobreza infantil; Eixo 3- Capacitação das Comunidades [30] e Instituições. Consubstanciaram um total de 20 actividades segmentadas . [29] Resultados favoráveis nos correspondentes relatórios e contas dos anos 2015-2018, média anual de c. 50.000,00€. http://www.misericordiacarrazedadeansiaes.com/main.php?noticias [consulta 2/5/2019]. [30] PEREIRA, Ricardo Paninho, [et.al.], (2019). CLDS/ Causa 3 G: Une e Socializa Apoiando. Carrazeda de Ansiães: Santa Casa da Misericórdia, Câmara Municipal, PO ISE- Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego, Brochura, il.15p.
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Esta Santa Casa, “lugar de abrigo nas contrariedades da vida” e “espaço de solidariedade e [31] acolhimento” , cujos principais grupos etários de intervenção são a 3.ª idade e a 1.ª infância, tem hoje uma diversidade de recursos e serviços tradicionais e modernos que disponibiliza, em proximidade concelhia, a sucessivas gerações da população carenciada e desprotegida a vários níveis. Conta com rendimentos próprios, fruto de investimentos económicos em áreas de sua intervenção, mas também de protocolos e parcerias com várias entidades, patrocínios e doações de benfeitores. Beneficia de patrocínio de Grupo (Girban) de equipamentos e maquinaria industrial com sede em Espanha) e de parcerias e protocolos com os Ministérios da Educação, do Trabalho e Segurança Social e com entidades concelhias: Câmara Municipal de Carrazeda (contratos de desenvolvimento social local; apoio domiciliário na saúde; Comissão de Protecção de Menores em Risco; Rede Social) e Escola Profissional de Carrazeda (Administração e estágios profissionais). 2.2. Processo histórico de afirmação institucional
[31] Idem. Mensagem do Provedor, p. 1.
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Fundada nos finais de 1929, com vocação e funções principais de natureza beneficente, piedosa, assistencial e hospitalar, a Irmandade da Misericórdia de Carrazeda de Anciães, organização sem fins lucrativos, nomeada, a partir de 1939, Santa Casa da Misericórdia (SCM) de Carrazeda de Ansiães que se manteve e mantém activa, ampliou e diversificou a sua acção na sociedade e comunidade locais nos domínios social, educativo e formativo, cultural, habitacional e recreativo-cultural, com realização periódica de festividades tradicionais e religiosas. É membro da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) fundada em 1977. Os primeiros Estatutos conhecidos[32] da Irmandade da Misericórdia de Carrazeda de Anciães, constituídos por 18 capítulos e 79 artigos, foram assinados a 10 de dezembro de 1929, pelo Presidente da Assembleia, Manuel de Mello de Sampayo, Visconde de Alcobaça, influente proprietário duriense a residir em Ribalonga, aprovados no ano seguinte, por Portaria de 14 de novembro de 1930 e publicados em D. G., nº 269, II Série, de 17 de novembro 1930. De acordo com este compromisso fundacional (capítulo I.º), a Irmandade da Misericórdia de Carrazeda “uma corporação de piedade e beneficência” tinha “por fim geral o exercício de obras de misericórdia” e especial a fundação, administração e sustentação do hospital a construir pela mesma irmandade na vila de Carrazeda de Anciães” (art.º 1.º), e era constituída por “um número ilimitado de irmãos de ambos os sexos e de maior idade distribuídos pelas “classes de irmãos efectivos, auxiliares, honorários e beneméritos” (art.º 3.º). O governo da Irmandade e do Hospital, uma vez fundado, incumbia aos seguintes órgãos: Assembleia Geral dos irmãos efectivos e Mesa Administrativa, presidida pelo Provedor (art.º 20.º). Pode então situar-se a fundação da Misericórdia de Carrazeda na sequência e âmbito da publicação, sob a Ditadura, do decreto de 23.7.1928 que visou “o florescimento das misericórdias existentes e a criação delas nos concelhos onde ainda não existam”, promulgando para esse fim, numerosas isenções e outras medidas de incentivo. A promulgação dos seus estatutos fundacionais, anterior ao Código Administrativo de 1936, inscreveu-se num movimento de retoma para as Misericórdias do disposto nesse diploma de 1928, que as considerava organismos primordiais de assistência em cada concelho.
2.3. Fases essenciais de acção e principais linhas de evolução Tradicionalmente guiada pelos preceitos das 14 obras de misericórdia, espirituais e corporais e [32] O registo provisório de Estatutos posteriores da Misericórdia de Carrazeda foi convertido em definitivo a 18/12/1986 (Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães. [s.l.: s.n.], Agosto 2001, [p.2].O registo definitivo dos seus novos Estatutos “compromisso” constituído por 43 artigos, redigidos em conformidade com o disposto no Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social”, foi efectuado em 13/1/ 2016 e publicado pela Direcção-Geral da Segurança Social, (Declaração da D.G-S.S. de 5 de fevereiro de 2016). Estão em vigor e revogaram os anteriores.
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orientada sucessivamente, por preocupações de natureza caritativa, filantrópica e assistencial, de acordo com seus Compromissos (estatutos), esta Santa Casa da Misericórdia regista, em seu trajecto institucional ininterrupto e quase centenário, as seguintes fases de afirmação e principais linhas de desenvolvimento (Anexos. Tabela 3). 1.ª Fase (anos 1930): instalação Durante a fase de instalação (anos 1930) a Irmandade da Misericórdia (SCM) de Carrazeda, organismo primordial de assistência concelhia, com sede ainda provisória, foi governada por uma comissão administrativa, tendo procedido ao lançamento da construção do primeiro Hospital do concelho de Carrazeda de Ansiães.
[Figuras 1 e 2] 1º Hospital de Carrazeda-Santa Casa da Misericórdia (1939-1951/52). Foto Manuel Joaquim.
Quase uma década mais tarde, a 9 de novembro de 1938, foi aprovado em sessão da Comissão Administrativa ainda presidida por Armando Nunes Sampaio, o Regulamento Geral do Hospital aprovado por Despacho Ministerial de 6 de dezembro de 1938. Era constituído por um articulado minucioso de XVI capítulos e 82 artigos sobre fins, organização e administração hospitalar, corpo clínico, de enfermagem e pessoal administrativo e auxiliar, arsenal cirúrgico, admissão, consultas, internamento e tratamento de doentes, suas categorias, comportamento, deveres e penalidades, dietas alimentares, regime de visitas, etc. A análise global deste elucidativo documento indicia as difíceis condições de vida rural e clivagens clivagens da ambiência económica e sócio-cultural, à época[33]:
[33] Existem no Arquivo Municipal de Carrazeda de Ansiães, numerosas caixas de registos de indigentes e pobres (19491955), atestados de pobreza (1960-1976), guias hospitalares e registos de internamentos em hospitais do Porto (19641965/1955-1974).
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“o hospital da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães tem por fim principal a prestação gratuita de socorros clínicos, dietéticos e de enfermagem aos doentes indigentes e extremamente pobres naturais deste concelho ou aqui residentes há mais de 6 meses desde que a Mesa ou Provedor verifiquem que nem uns nem outros têm ascendentes ou descentes em linha recta ou colateral até ao 1.º grau ou segundo que possam satisfazer as despesas de seu internamento (artº 1.º); A administração do Hospital pertence à Mesa da Santa Casa da Misericórdia (art.º 2.º); Os serviços técnicos são efectuados por quatro ou cinco médicos: 3 efectivos (1 director clínico e 2 de enfermaria) e 1 ou mais substitutos. (art.º 4.º) (…) Não podem ser admitidos no Hospital: 1º - doentes cm moléstias crónicas e incuráveis, salvo para tratamento de alguma fase aguda da doença; 2º - doentes alienados; 3º - crianças até aos sete anos; 4º mães, acompanhadas de filhos ( art.º 23.º) (…) serão tratados neste Hospital os doentes que tiverem recursos, mediante uma diária fixada pelo regulamento (art.º 25.º); Os doentes… considerados vítimas de acidentes de trabalho… ao abrigo da lei especial dos mesmos acidentes, podem ser admitidos neste Hospital. (art.º 26.º) No Hospital há duas categorias de doentes pensionistas: a) Pensionistas de 1.ª classe [a que são reservados os quartos individuais com preços de pensão diária (fora os tratamentos, remédios, etc.) de 20$00]; b) Pensionistas de 2.ª classe [destinados a enfermarias, com pensão diária (fora os tratamentos, remédios, etc.) de 10$00]; estes dividem-se em 2 grupos: Grupo I – doentes pobres de outros concelhos, subsidiados; indivíduos do concelho com alguns rendimentos; sinistrados desde que alguém suporte despesas de internamento; e Grupo II – Irmãos Auxiliares com cotas anuais pagas; presos subsidiados oficialmente; sócios efectivos das Casas do Povo e indivíduos do concelho que a Mesa entenda poderem pertencer ao Grupo I (Capitulo VII art.ºs 33.º, 34.º, 35.º e 36.º) (…) Todos os doentes, com execpção dos pensionistas, de 1.ª classe, no acto de internamento, terão de apresentar um fiador que assuma as responsabilidades das despesas e se comprometa pela retirada do doente quando tiver alta. (art.º 37.º) (…) Aos visitantes de fora do concelho e estrangeiros, não se lhes recusará a entrada, devendo na visita serem acompanhados. Se o visitante for de elevada posição social, será prevenido o Director Clínico, ou um dos directores da enfermaria, a fim de o acompanhar. (art.º 46.º) (…) As dietas hospitalares são 4 com a seguinte classificação: a) Primeira; b) Segunda; c) Terceira; d) Dieta ou ração ordinária [mais diversificada] (art.º 54.º) Cada dieta hospitalar é confecionada com os géneros constantes das tabelas seguintes (art.º. 55):
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DIETAS
LEITE
VITELA
ARROZ
UNTO
Primeira
____
250 grs.
30 grs.
25 grs.
Segunda
1 litro
150 grs.
20 grs.
15 grs.
Terceira
2,5 litros
____
____
____
OBS.
2.ª Fase (anos 1940-1950): hospitais concelhios, realizações emblemáticas - escopo tradicional principal da acção das Misericórdias.
[Figura 3] Grupo de pessoas ligadas ao funcionamento do primeiro hospital.
O primeiro edifício hospitalar da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, ainda sem serviços privativos de farmácia e casa mortuária, manteve-se apenas em funcionamento durante pouco mais de 10 anos, até ao início da década de 1950, altura em que transitou para um novo edifício construído de raiz e inaugurado em 1952.
[Figura 4] Cortejo de mérito - angariação de fundos para o hospital. Foto de particular (T. M.).
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[Figuras 5 e 6] Cortejo de caridade, carro da freguesia Seixo de Ansiães. Oferendas. Fotos de particular (T. M.).
[Figuras 7 e 8] Construção segundo edificio do Hopsital da Misericórdia de Carrazeda (c.1950). Foto arquivo SCMC
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[Figura 9] Inauguração segundo hospital de Carrazeda (c. 1954). Fotos de particular (T. M.). [Figura 10] Inauguração segundo hospital de Carrazeda (c. 1954). Comitiva oficial: bispo D. Abílio Vaz das Neves, ministro Arantes de Oliveira, presidente da Câmara Carrazeda, Jerónimo Barbosa. Foto de particular (T. M.).
3.ª Fase – “Previdência social” (assistencialismo caritativo, critérios ético-religiosos) e outras modalidades de acção social (anos 1960 e 1970): Projecto pioneiro em habitação social - “bairro de casa para pobres”, apoio da Direcção dos Serviços de Urbanização; aquisição da primeira ambulância do hospital, subsídio (25.000$00) da Direcção Geral dos Hospitais; e construção faseada de 24 moradias de renda social, subsídio do Ministério das Obras Públicas (248.000$00 escalonado). 4.ª Fase – Revitalização da Misericórdia/IPPS (anos 1980): Acolhimento e assistência a idosos e crianças em idade pré-escolar – construção, funcionamento e desenvolvimento do Lar da 3.ª Idade Santa Águeda e Jardim de Infância. A Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, ofereceu à Santa Casa da Misericórdia o pagamento do projecto do Lar da 3.ª Idade no valor de 1.000.200$00. Inicia-se a constituição de uma frota automóvel própria para apoio à prestação dos diferentes serviços. 5.ª Fase – Estratégias de investimento, diversificação e expansão (anos 1990 a 2019): “Reparar, recuperar, reutilizar” património edificado na zona histórica da vila, ampliação e modernização de infra-estruturas; “Expandir” – Educação e Formação profissional, cultura, recreio e cidadania social, empreendedorismo económico-social e cultural. Para além da concretização de várias realizações: Centro de Apoio Domiciliário - Alimentar, Saúde e Higiene (1994); Pólo de Animação Cultural; Bairro
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[34]
Habitacional (2001), Unidade Móvel de Saúde (2004) foram desenvolvidos e/ou estão em curso outros projectos participados (construção de Unidade de Cuidados Continuados…), com base em acordos de cooperação com entidades estatais e Câmara Municipal de Carrazeda, candidaturas em parceria a programas nacionais e europeus, nomeadamente na Luta contra a Pobreza e Exclusão Social.
[Figura 11] Carro da SCMCA no cortejo etnográfico, 1998. Arquivo Municipal Carrazeda Ansiães.
2.4. Governantes: provedores e mesários
1.º provedor (1938-1966) – Armando Nunes Sampaio. Foto arquivo SCMCA. [34] Candidatura Programa Operacional Saúde XXI, Eixo Prioritário I: Promover a Saúde e Prevenir a Doença - Acordo de cooperação entre a Administração Regional de Saúde do Norte, a Câmara Municipal e a Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda. "A Unidade Móvel domiciliária, serviço que presta cuidados de saúde multidisciplinares no domicílio...", criada pelo Decreto-Lei n.º 281/2003 (art.º 29º), justifica-se pelo “envelhecimento da população, a evolução das tecnologias médicas, a modificação dos hábitos e de estilos de vida, as alterações dos núcleos familiares e a contenção de custos…”
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Quem dirigiu esta Santa Casa da Misericórdia durante o seu já longo trajecto? Este é um domínio quase desconhecido a merecer estudo prosopográfico dos dirigentes para se poder perceber a que corpo social pertenciam, qual a sua formação ou inserção profissional e política, em que época da sua vida ou carreira acederam aos lugares, em que outras instituições se integravam e/ou dominavam, se se perpetuaram ou não no poder, se o exercício desses cargos significava a constituição de um estatuto social, o seu reconhecimento ou reforço, alterações da tipologia social das chefias, mudanças na composição dos grupos dominantes ou variação na estima social que a comunidade [35] conferia à sua Misericórdia . A análise global da identificação de Mesários da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, desde 1939 (tabela 2 anexa) até hoje, revela a existência de cinco provedores, maioritariamente, com mandatos sucessivos e nove mesas administrativas de constituição variável. Os elementos aí identificados (provedores, vice-provedores e tesoureiros) todos residentes no concelho e quase todos também daqui naturais, apresentam esta tipologia social: dois médicos (um director clínico do Hospital da Misericórdia e outro, delegado de saúde), um proprietário de farmácia, um advogado, dois professores de ensino primário com cargos concelhios na área do ensino, um gerente do Grémio da Lavoura, proprietários rurais, agricultores e comerciantes, mais ou menos abastados, e funcionários municipais. Observa-se que a recondução, por eleição, dos dirigentes desta Santa Casa da Misericórdia se tem caracterizado por uma relativa endogamia familiar, pela reprodução sócio-profissional e continuidade sócio-política das designadas “forças vivas” locais e, genericamente, por mandatos sucessivos prolongados de provedores. Nestes, dotados de estatuto e estima social e reconhecidos pela comunidade, destacam-se pela maior duração de permanência no cargo: a) o primeiro provedor, Armando Nunes de Sampaio, proprietário, agricultor e comerciante abastado, que já havia sido presidente da comissão administrativa da Irmandade da Misericórdia e que se manteve no cargo de provedor desta Santa Casa, entre 1939 e 1966, durante 27 anos; b) Armando dos Santos Moreira professor de ensino primário e delegado escolar do concelho que foi provedor, durante 20 anos, de 1975 a 1995, conseguiu bom entendimento com as entidades oficiais e civis, apesar de iniciar funções num período conturbado da história da sociedade portuguesa e das misericórdias; c) o actual provedor, Ricardo Manuel Paninho Pereira, professor de ensino primário e membro dos corpos dirigentes da Escola Profissional de Carrazeda de Ansiães o qual, sucessivamente reeleito desde 1995, se mantém na liderança da Misericórdia de Carrazeda, há 24 anos. Quanto aos outros dois provedores, o médico João Baptista Lopes Monteiro, teve um mandato de quatro anos (1966-1970), e o advogado Fernando de Castro Martins, três mandatos sucessivos (1970-1975), os primeiros de um ano, cada, e o último de três anos. Conclui-se ter-se registado assim, significativa estabilidade no [35] LOPES, Maria Antónia (2008) – Ob. cit., p. 82-83.
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governo desta instituição. Refira-se por fim que a endogamia familiar e reprodução social verificadas nos mesários, caraterizam também, alguns dos beneméritos da Misericórdia (nove benfeitores individuais e cinco doadores (farmácias e indivíduos, para além da Junta de Freguesia da vila).
3. POSIÇÃO DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE CARRAZEDA DE ANSIÃES NO PANORAMA DAS MISERICÓRDIAS DURIENSES Como se deduz da cronologia de fundação de 14 Misericórdias da região duriense (tabela 3 anexa) a Misericórdia de Carrazeda de Ansiães é das mais recentes, sendo-lhe coetânea a refundação das Misericórdias de Murça e da Régua e, posteriores, as de Tabuaço e Sabrosa. Outras sete Misericórdias de maior longevidade histórica (Lamego, Freixo-de-Espada-à-Cinta, Vila Real, Mesão Frio, S. João da Pesqueira, Vila Flor e Moncorvo) foram fundadas durante o século XVI, e a de Vila Nova de Foz Coa, datará do início do século XVIII. A (re) fundação das restantes Misericórdias aqui contempladas, ocorre no século XX. Na generalidade, a sua fundação encontra-se associada à criação de hospitais, passando depois a disponibilizar valências e serviços de idêntico teor nos domínios da assistência, acção social e educativa. No caso da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, para além disso, é de realçar a sua continuidade activa e o pioneirismo de iniciativas precoces e persistentes, na área da habitação social e em hortas sociais
CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta abordagem histórica preliminar, numa perspectiva multiescalar, à Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda, IPSS e entidade de economia social solidária (HESPANHA; NAMORADO, 2009), ancorada na tradição laico-professional das Misericórdias portuguesas (associações constituídas na ordem jurídica canónica para prover a carências sociais e actos de culto católico, no espírito da doutrina e moral cristãs), visou-se reconstituir a micro-história desta instituição local, no âmbito de tendências dominantes da evolução contemporânea das Misericórdias portuguesas, tentando percepcionar a sua posição relativa na diversidade histórica das Misericórdias durienses.
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FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Fontes Estatutos da Irmandade da Misericórdia de Carrazeda de Anciães. Aprovados a 10 de dezembro de 1929, em Assembleia e Portaria de 14 novembro de 1930 (D.G. nº 269, 2ª Série 17 novembro 1930). Arquivo SCMCA. Regulamento Geral do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Anciães de 9 de novembro de 1938, aprovado por Despacho Ministerial de 6 de dezembro de 1938. Arquivo SCMCA. Listagem geral de sócios, 11/1/2004 (válida). C. M. de Carrazeda de Ansiães Associados/Irmãos (admitidos entre 1923-2003). Arquivo SCMCA. Lista de Mesários da SCM de Carrazeda de Ansiães. Arquivo SCMCA. Relatórios e contas da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, 2015 a 2018. Disponível em <http://www.misericordiacarrazedadeansiaes.com/main.php?noticias>. [Consulta em 2/5/2019].
Referências Bibliográficas HESPANHA, Pedro; NAMORADO, Rui (2009) - Os desafios da economia solidária. «Revista Crítica de Ciências Sociais», n.º 84, p. 3-5. GONÇALVES, Manuela Silva; GUIMARÃES, Paulo Mesquita [s.d.] - Misericórdias do distrito de Vila Real. Fontes para a memória colectiva da Região, p. 413. Disponível em <http://www.cepese.pt/portal/pt/publicacoes/obras/a-misericordia-de-vila-real-e-asmisericordias-no-mundo-de-expressao->. [Consulta em 30/6/2019]. GOODOLPHIM, Costa (1897) – As Misericórdias. Lisboa: Imprensa Nacional. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE CARRAZEDA DE ANSIÃES (2001) - Brochura, A5, 32 p., il. SÁ, Isabel dos Guimarães; LOPES, Maria Antónia (2008) - História Breve das Misericórdias Portuguesas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. PAIVA, J. P. (2011) - Portugaliae monumenta misericordiarum. Misericórdias e secularização num século turbulento (1910-2000). Vol. 9, t. I. UMP. PEREIRA, Ricardo Paninho, [et.al.], (2019) - CLDS/ Causa 3 G: Une e Socializa Apoiando. Carrazeda de Ansiães: Santa Casa da Misericórdia, Câmara Municipal, PO ISE-Programa Operacional de Inclusão Social e Emprego, Brochura, il. 15 p.
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RUIVO, Nívea Paula de Freitas (2017) - Proposta de Desenvolvimento de uma Rota da Misericórdia em Trás-os-Montes e Alto Douro. Mirandela: IPB /ESCAT. Dissertação de Mestrado em Marketing Turístico.
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ANEXOS Tabela 1 – Percurso da Santa Casa da Misericórdia Carrazeda de Ansiães ANOS
REALIZAÇÕES, PROJECTOS E ACTIVIDADES
1929
A 10 de Dezembro, foram aprovados os primeiros estatutos conhecidos da Irmandade da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, em “sede provisória da mesma” os quais determinavam (art.º 79º e último) que, depois desta aprovação “será eleita nova Mesa Administrativa … mas as funções da Mesa assim eleita cessarão no fim do ano corrente em que terá lugar a eleição da Mesa para o triénio seguinte em conformidade com o preceituado nestes Estatutos.” Estes foram assinados em 10 de Dezembro de 1939, pelo Presidente da Assembleia, Manuel de Mello de Sampayo, Visconde de Alcobaça, abastado proprietário duriense, a residir na aldeia vinhateira de Ribalonga deste concelho.
1938
Foi aprovado em sessão de 2 de Outubro, da Comissão Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, o Regulamento Geral do Hospital desta Santa Casa, assinado a 9 de Novembro, pelo Presidente da Comissão Administrativa, Armando Nunes Sampaio, e aprovado por despacho ministerial de 6 de Dezembro deste ano.
1939
Continuava como presidente da Comissão Administrativa, Armando Nunes Sampaio, comerciante conceituado, natural deste Concelho e residente na Vila de Carrazeda de Ansiães, o qual, embora seu nome não conste no Livro dos Irmãos, se crê ter sido um dos fundadores da Misericórdia, juntamente com Alexandre Correia Rainha, proprietário da farmácia Rainha, e com Vitorino Cabral Sampaio, natural deste concelho e digníssimo médico de algumas gerações da população local. Consta que o Dr. Cabral Sampaio, inscrito na 1.ª página do Livro da Irmandade, foi o pioneiro da criação do Hospital da Misericórdia deste Concelho, e o seu primeiro director clínico, para além de Provedor desta Santa Casa durante longos anos. Este hospital, ou seja o primeiro hospital de Carrazeda, funcionou de 1939 até 1951-52, no mesmo edifício construído de raiz que passou mais tarde, a pertencer à Casa do Douro e onde funcionou a sua Delegação, até inícios do século XXI.
1951
(Dezembro) data de constituição da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães, como empresa/ (CAE): actividades de apoio social para pessoas idosas, com alojamento.
1952
O edifício do hospital tornara-se pequeno e sem condições para as necessidades, pelo que a Misericórdia adquiriu terrenos para construção do novo hospital, que começou a funcionar no início dos anos 1950, com abertura celebrada por cortejo de oferendas. No novo edifício funcionou o hospital c. 50 anos, chegando a ter pequeno Bloco Operatório, e estar equipado com Raíos-X, grande benefício local. Esse edifício foi desactivado e encerrado nos inícios do século XXI (substituído pelo actual Centro de Saúde Pública, construído de raiz, pelo Estado), encontrando-se, hoje, em obras de recuperação e ampliação para instalação de novos serviços residenciais e de saúde, a cargo da Misericórdia.
1966
Foi eleito provedor o digníssimo médico Dr. João Batista Lopes Monteiro, natural do concelho e residente na aldeia de Arnal, que durante quatro anos dirigiu a Misericórdia. Na sua provedoria iniciou-se a construção de um bairro de casas para pobres, que hoje se chama Bairro da Misericórdia.
1968
Inicio do projecto de “Construção de um Bairro de Casas para pobres” elaborado na Direcção dos Serviços de Urbanização (Director Geral, Eng. Alfredo Macedo dos Santos). Concessão pelo Ministro das Obras Públicas, de subsídio de 248.000$00 para construção de 24 moradias assim escalonado: 50.000$00 em 1968; 100.000$00 em 1969; 90.000$00 em 1970. (ofc.º n.º 2744 de maio, Direcção de Urbanização de Bragança). Ponderadas as possibilidades da Misericórdia e o subsídio concedido, foi aberto concurso público para abjudicação da 1.ª fase desta obra, o qual compreendeu a construção de um bloco de seis moradias.
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ANOS
REALIZAÇÕES, PROJECTOS E ACTIVIDADES
1970 /1973
Foi provedor Fernando de Castro Martins, advogado, natural da aldeia do Seixo de Ansiães e residente, com escritório aberto, na vila de Carrazeda de Ansiães. Durante a sua vigência concluíram-se as obras das seis moradias do Bairro da Misericórdia e adquiriu-se a primeira ambulância, em funcionamento no concelho, pertença do Hospital. Concessão de subsídio de 25.000$00 atribuído pela Direcção Geral dos Hospitais, para aquisição da ambulância.
1975 a 1995
Foi provedor o Prof. Armando dos Santos Moreira. O hospital, como a maior parte dos hospitais concelhios das Misericórdias, passou para a gerência do Estado, sendo eleita uma comissão instaladora que pela primeira vez reuniu com a Mesa da Santa Casa no dia 6 de Julho de 1976 para dar cumprimento ao transmitido no ofício n.º 2.300/DSAG, de 12 de Maio de 1976, da Direcção Geral da Assistência Social. Em face do Decretolei n.º 718/75 de 11 de Novembro, fez-se a entrega do edifício e dos bens constantes da relação elaborada para o efeito e arquivada. Nestas circunstâncias tornou-se altamente difícil a acção da Misericórdia, que se dedicava quase exclusivamente aos problemas da saúde e se viu assim desligada desta acção, gerindo apenas os bens que restavam, duas pequenas e humildes casas no “fundo da vila” e o novo Bairro das seis moradias. Em 1978, reuniu a Mesa com a Assembleia Geral para decidir sobre a solicitação da Câmara Municipal de Carrazeda, e cedência a esta, de um terreno pertencente à Misericórdia, para implantação de moradias a construir pelo Fundo de Fomento de Habitação, tendo acordado quanto à cedência de tal terreno. Em reunião da Assembleia Geral, a 20 de Novembro de 1982, esta aceitou por unanimidade a primeira proposta apresentada pela Mesa, quanto à indemnização a pagar pela Câmara à Santa Casa pela cedência do dito terreno onde foi construído o bairro do fundo de Fomento da habitação. A dita proposta considerava o valor do terreno com c. de 4.000 m2 igual ao do primeiro andar de um dos blocos construídos pela Câmara. No dia 11 de Dezembro de 1981 a Mesa Administrativa reuniu para proceder à abertura das propostas presentes ao concurso público aberto para a execução da obra do Jardim de Infância e, no dia 23 do mesmo mês e ano, para abertura das propostas para execução do Lar da 3.ª Idade. Assim se iniciaram duas obras de vulto para esta Instituição, projectadas para resolver grandes carências do concelho e que se têm vindo a adaptar a profundas alterações da sociedade portuguesa. A Câmara Municipal de Carrazeda de Ansiães, sendo seu presidente Mário Joaquim Mendonça de Abreu e Lima (filho do antigo e último presidente desta autarquia, no Estado Novo), ofereceu à Santa Casa da Misericórdia o pagamento do projecto do Lar da 3.ª Idade no valor de 1.000.200$00. O Jardim de Infância foi o primeiro edifício a ser concluído. Entrou em funcionamento em Outubro de 1986, com uma Creche e Pré-primária, sob a orientação de pequena comunidade da Ordem das Doroteias chefiada pela Irmã Maria do Céu que iniciou e orientou os trabalhos em 1991. Foi inaugurado, em 28 de Junho 1987, pelo então Secretário de Estado da Segurança Social, Dr. Bagão Félix. O Lar da 3.ª idade começou a funcionar em Junho de 1991 sendo inaugurado a 8 de Setembro, pelo então Ministro da Segurança Social, Dr. Silva Peneda que se empenhou nos finais da sua construção e apetrechamento. Nesse dia foi entregue a primeira carrinha (marca Renault), único transporte que a Santa Casa possuía e possui durante algum tempo.
1995/1997
Foi provedor da mesa administrativa desta Santa Casa da Misericórdia, Ricardo Manuel Paninho Pereira, professor de ensino primário, residente em Carrazeda, que traçou como grande prioridade a definição de estratégias e acções de âmbito social, capazes de contribuir de forma significativa para o desenvolvimento do concelho. Aprovou-se a candidatura ao Projecto de Apoio a Idosos – PAII “Tecer Solidariedades”, para melhorar em quantidade e qualidade o Apoio Domiciliário aos Idosos, o que permitiu a cobertura total do concelho, com um total de 80 idosos; foram ainda realizadas acções de formação de jovens através do PAII/Forum. No campo da Formação Profissional, realizou-se em 1998, um curso de Jardinagem e em 2000, o curso de Auxiliares de Acção Social e ainda o Curso de Cestaria, integrado no Projecto de Luta Contra a Pobreza, que decorreu com um Grupo de Etnia Cigana, para facilitar a sua integração. Em 1999/07/06 a Mesa deliberou fazer-se representar na constituição da Cooperativa de Ensino – Ensino Ansiães – Escola Profissional de Carrazeda de Ansiães, aí tendo sido o provedor, ora presidente da assembleia geral ora presidente do conselho fiscal. Outra candidatura importante decorreu no âmbito do Programa de Luta Contra a Pobreza, projecto denominado “Com Dignidade Viver o Futuro”, vocacionado sobretudo para o apoio à inclusão de minorias étnicas, mas também para apoio a crianças de fracos recursos económicos, a frequentar o pré-escolar. Este projecto interveio em situações de extrema pobreza, permitindo melhorar habitações de idosos em grandes dificuldades.
176 MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património
ATAS DAS 6AS CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM | 2019
ANOS 1998/2015
REALIZAÇÕES, PROJECTOS E ACTIVIDADES Em 1998 arrancou a construção de um novo bairro social, o denominado “Bairro do Pereiro”, constituído por 32 habitações do tipo T1, T2, T3 e T4, totalmente habitadas, com rendas sociais. Realização de obras de reparação e ampliação do Lar de Santa Águeda, aumentando a oferta para mais 18 camas, contando com o internamento de 49 utentes Idosos; remodelado e modernizado todo o seu equipamento. Criou-se um consultório médico para apoio aos utentes, um quarto para doentes terminais, foram revistos todos os acessos, adaptaram-se equipamentos para os utentes de cadeiras de roda, e ampliaram-se os balneários do pessoal trabalhador da Instituição. A cozinha que serve de apoio à totalidade das infra-estruturas da Misericórdia, foi totalmente remodelada dentro da actual legislação (HACCP). No domínio da Educação, foi ampliada mais uma sala no Jardim de Infância, para além da remodelação do seu equipamento e instalação de uma Ludoteca, com computadores e quadro interactivo, um Parque Infantil e um Polivalente. Ao nível da Higiene e Segurança no Trabalho, para além do rastreio anual de todo o pessoal trabalhador, foram criadas condições de segurança e alerta através de um sistema de detecção e alarme de incêndios em todas as instalações, devidamente aprovado no respectivo Plano de Emergência. Na área do Património edificado da Santa Casa, recuperaram-se no fundo da vila, centro histórico, edifícios herdados de doadores, designadamente duas casas antigas em ruínas, tendo aí sido criado um Pólo de Animação Cultural onde funcionam vários cursos de formação profissional, sendo também local destinado às reuniões periódicas do plenário da Instituição. Outro conjunto de quatro casas foi objecto de um contrato de comodato com a Câmara Municipal que o recuperou e aí instalou depois da obra executada e inaugurada aí instalou o Centro Interpretativo do Castelo de Ansiães, em funcionamento. Aproveitando também a existência de um antigo edifício, próximo do Lar onde funcionou a morgue, anexa ao segundo hospital, o mesmo foi totalmente remodelado e adaptado a capela mortuária, colmatando-se assim uma lacuna existente no concelho. Procedeu-se ainda à construção de um novo edifício situado entre as duas valências: Lar e Jardim de Infância, onde se instalaram os novos serviços administrativos, o gabinete da provedoria e dois armazéns, um para estacionamento de viaturas e outro para armazenar produtos de limpeza e acondicionar alimentos, apetrechado com câmara frigorífica e câmara de congelação. Remodelou-se a montagem de novo equipamento para o aquecimento de todas as instalações. Para reduzir custos de manutenção das infraestruturas e energia necessária ao funcionamento das várias valências da Misericórdia, investiu-se em novas tecnologias e medidas “amigas do ambiente”: captação de águas próprias para banhos e regas dos jardins, aquecimento de água com 20 painéis solares, 20 painéis para produção de energia fotovoltaica e instalação de 30 painéis fotovoltaicos no Jardim de Infância.
FONTE: Elaboração própria, a partir de actas da Mesa Administrativa, da Assembleia Geral e outros documentos administrativos, compilados por Inês Moreira, esposa de Armando Sousa Moreira, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda (1975-1995).
Tabela 2 – Identificação de Mesários da Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda (1939-2019) ANOS 1939
NOMES - Armando Nunes Sampaio - Alexandre Rainha - Vitorino Cabral Sampaio
1966
- Joao Baptista Lopes Monteiro - Alfredo Manuel F. Martins Sampaio - Eugénio Rodrigo Cardoso de Castro
PROFISSÕES E PROVENIÊNCIA - Proprietário, lavrador e comerciante abastado natural e residente no concelho. - Proprietário da Farmácia Rainha, residente no concelho. - Médico e director clínico hospitalar, natural e residente no concelho.
- Médico e delegado de saúde, natural e residente no concelho. - Proprietário e comerciante, natural e residente no concelho. - Proprietário e funcionário público, natural e residente no concelho.
MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património 177
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ANOS 1970
NOMES - Fernando de Castro Martins - Manuel Rui Araújo Meneses Pimentel - José da Costa Lages
1971
PROFISSÕES E PROVENIÊNCIA - Proprietário e advogado, natural e residente no concelho. - Proprietário e engenheiro agrónomo, natural e residente no concelho. - Proprietário e comerciante, natural e residente no concelho.
- Fernando de Castro Martins - Alfredo Ferreira Pinto Teixeira
- Funcionário da Câmara Municipal de Carrazeda, residente no concelho
- José da Costa Lages
1972
- Fernando de Castro Martins - José da Costa Lages
1975 a 1995
1995 a 1997
- António Augusto Carvalho
- Dirigente do Grémio da Lavoura de Carrazeda, natural e residente no concelho.
- Armando dos Santos Moreira
- Professor de Ensino primário e delegado escolar, natural e residente no concelho. - Funcionário público, residente no concelho.
- João Manuel Pires - Armando José do Nascimento
- Funcionário da Cooperativa Agrícola, natural e residente no concelho.
- Ricardo Manuel Paninho Pereira
- Professor de Ensino Primário, residente no concelho. - Funcionário da Câmara Municipal de Carrazeda, residente no concelho. - Funcionário público de Notariado, natural e residente no concelho.
- Mário Pereira Gonçalves - Aníbal Tito Fernando dos Reis
1997 a 2015
- Ricardo Manuel Paninho Pereira - Mário Pereira Gonçalves - Abílio Augusto Cardoso
178 MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património
- Comerciante, natural e residente no concelho.
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ANOS 2015 a 2019
NOMES
PROFISSÕES E PROVENIÊNCIA
- Ricardo Manuel Paninho Pereira - Mário Pereira Gonçalves - Abílio Augusto Cardoso
Obs. Para além do provedor, vice-provedor e tesoureiro, aqui por essa ordem nomeados, a mesa administrativa compõe-se hoje de mais dois vogais.
Tabela 3 –Cronologia da fundação de Misericórdias da (na) Região do Douro MISERICÓRDIAS
DATA DE FUNDAÇÃO
Santa Casa da Misericórdia de Lamego
1519
Santa Casa da Misericórdia de Freixo de Espada-à-Cinta
anterior a 1521
Santa Casa da Misericórdia de Vila Real
Data de fundação polémica. Costa Godolphim indica o ano 1528; um conjunto de circunstâncias aponta para que a fundação seja contemporânea das primeiras misericórdias em Portugal (1518).
Santa Casa da Misericórdia de Mesão Frio
1560
Santa Casa da Misericórdia de São João da Pesqueira
após 1567
Santa Casa da Misericórdia de Vila Flor
1570 (Estatutos D. G., nº 269, II Série, 17 nov. 1930)
Santa Casa da Misericórdia de Moncorvo
(data incerta) Século XVI
Santa Casa da Misericórdia de Vila Nova de Foz Côa, Almendra
anterior a 1708
Santa Casa da Misericórdia de Murça
(data incerta 1717) Refundada 1923
Santa Casa da Misericórdia de Peso da Régua
1881 (projecto fracassado); 1927
Santa Casa da Misericórdia de Alijó
1901 /1909
Santa Casa da Misericórdia de Carrazeda de Ansiães
1929
Santa Casa da Misericórdia de Tabuaço
Fundada em 1932 para construir um edifício hospitalar, só concretizado em 1960 quando começou a funcionar.
Santa Casa da Misericórdia de Sabrosa
1988
FONTE: Elaboração própria a partir de sites de Misericórdias, Paiva (2002-2011), Gonçalves, M. Silva, Guimarães, P. Mesquita (s.d.); Ruivo, Nívea Paula de Freitas (2017).
MISERICÓRDIAS NO DOURO História, Arte e Património 179
as
Atas das 6 CONFERÊNCIAS DO MUSEU DE LAMEGO / CITCEM
2.º painel | conferência SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO: UM ARQUIVO, DIVERSOS PERCURSOS Helena Lemos
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PALAVRAS-CHAVE Santa Casa da Misericórdia; Sociedade; Religião; Lamego.
KEYWORDS Santa Casa da Misericórdia; Society; Religion; Lamego.
RESUMO Pretendemos, através desta comunicação, demonstrar a colossal variedade de informação que é possível extrair do arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lamego, uma instituição com meio milénio. Tendo em conta a pertinência e diversidade dos assuntos, optamos por abordar três casos em particular: O testamento de Adriano de Sena Lemoz. Um lamecense endinheirado fixado no Brasil, que em 1863 levanta a ponta do véu da escravatura e as complexas relações do poder; Cortejos religiosos extintos: Visitação; Rainha Santa Isabel e do Voto. Por fim, de modo mais aprofundado, o calamitoso incêndio da Rua de Almacave em 1911. E a "consequente" transferência do espaço religioso e dependências anexas, pertencentes à Santa Casa da Misericórdia, para a desejada igreja do arruinado Mosteiro das Chagas.
ABSTRACT Through this communication we intend to demonstrate the colossal variety of information that is possible to extract from the Santa Casa da Misericórdia de Lamego's archive, half millennial institution. Considering the relevance and diversity of the subjects, we choose to approach three different cases in particular: The Adriano de Sena Lemoz's will. A wealthy from Lamego, living in Brasil, that in 1863 lifts the slavery's curtain and the complex relationships of the power. Extinct religious processions: Visitação; Rainha Santa Isabel and Voto. Finally, in a detailed way, the calamitous fire of the Almacave street in 1911. And the "consequently" transfer of the religious space and attached facilities, that belongs to the Santa Casa da Misericórdia, to the intended church of the ruined Chagas monastery.
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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO: UM ARQUIVO, DIVERSOS PERCURSOS
HELENA LEMOS Museu de Lamego
De forma mais ou menos organizada, consciente ou não, os arquivos das instituições nascem no momento da criação destas.
[Figura 1] Pormenor do ASCML – Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lamego.
Apesar das lacunas, causadas por diversas calamidades e certamente de alguma incúria, o arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lamego, com meio milénio é, ainda assim, um baú de tesouros a explorar. É nosso objetivo, através deste artigo, ao abordar três temas diferentes, demonstrar quão diversificado um arquivo pode ser, fazendo-nos percorrer questões éticas, morais, religiosas, políticas e económicas…
1. Na consulta dos testamentos, um, em particular, nos chama atenção, o de Adriano de Sena [1] [2] Lemos . Nasceu por volta de 1820, filho do segundo matrimónio do advogado , Joaquim de Lemos, com Mafalda Carolina de Lemos. [1] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [2] Formado em direito pela Universidade de Coimbra entre 1793-1798. In Arquivo da Universidade de Coimbra. Desempenhou funções de “Vereador, Procurador da cidade e Almotacé durante o Antigo Regime”. In PEREIRA, Lucília (2011) – O Município de Lamego: (1799-1851) Elites e Poder Local, p. 168.
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[Figura 2] Pormenor do testamento de Adriano de Sena Lemos – ASCML.
[Figura 3] Pormenor do registo de batismo de Antónia Lemos – AMDL.
Adriano parte para o Brasil, com cerca de 20 anos. As possíveis dificuldades económicas advindas pelo falecimento prematuro do pai, em 1826, somar-se-ão problemas familiares, que intuímos através de alguns detalhes, como o registo dos filhos do segundo casamento do progenitor, como [3] [4] naturais e não legítimos, o reconhecimento tardio do novo matrimónio e, sobretudo, a omissão dos irmãos, no seu testamento, realizado em 1863, onde se declara que é solteiro e sem filhos e que [5] tem “negociado” . Não nos foi possível, todavia, apurar a que negócios se dedica. Contudo, deve 20 anos de [6] ordenado a Izabel Pereira da Conceição, referida como Senhora . Uma posição claramente superior aos restantes trabalhadores que vai enumerar, tendo certamente algum tipo de proximidade com o legatário, mas que ainda assim, é explorada durante duas décadas. Deixa-lhe “a preta Benedicta no valor de quatro centos mil reis, para a servir por dez annos, findos os quaes lhe dará a sua Carta de Liberdade, deixo-lhe mais a preta Roza no valor de oito centos mil reis”[7], sem que tenha a possibilidade de vir a ser forra. [3] AMDL, Livro de Baptismo da Paróquia de Almacave – 1817 a 1824. [4] AMDL, Livro de Óbitos da Paróquia de Almacave – 1826 a 1837, fl.24-25. [5] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [6] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [7] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871.
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[8]
Deixa ainda na sua “terça, a preta Floriana, e a mulata Maria” , que poderão passar à condição de [9] “libertas no valor de 100:000 reis cada uma” . Apesar da distinção que faz da sua tez atribui-lhe o mesmo valor. Desconcertante é também a seguinte passagem: “Declaro que tendo prometido ao Preto Antonio Calafate, dar-lhe a liberdade, depois de ter pago a importancia que o mesmo me custou, e mais tres annos de serviço, destes lhe faço perdão de anno e meio, tendo por conseguinte a inteirar só o resto que lhe falta por completar o custo e mais anno e meio, ficando em poder do meu testamenteiro, ate completar esta minha deliberacção, tanto o resto da importancia, como o que ganhar no anno e meio de serviço, será aplicado para as Mesas da Igreja da Senhora dos Remedios, da Cidade de Lamego no Reino de Portugal”[10]. Depreende-se uma relação relativamente próxima entre Adriano e este escravo, através da expressão “tendo prometido”[11] e o perdão de ano e meio de trabalho. Porém, tendo a sua propriedade, muito provavelmente, o alugava para diferentes ocupações. Tornando-se num escravo [12] de ganho, uma vez que refere “o que ganhar no anno e meio de serviço” . Uma prática bastante [13] generalizada e que permitia a Antonio Calafate uma maior mobilidade e poder, também, “viver sobre si” (COSTA, 2014, 7). Não podemos deixar de referir que Adriano procurava fazer o bem e eternizar o seu nome, como benfeitor dos Remédios, através da exploração de António Calafate, todavia não nos foi possível determinar se chegou a haver tal benefício. Lega a familiares e amigos diferentes quantias económicas e à Santa Casa da Misericórdia de Lamego o que restar depois de cumprido o seu testamento[14]. As primeiras leis restritivas à escravatura em Portugal, exclusivamente Metrópole e Índia, dão-se no reinado de D. José (RIJO, 2012, 127). No entanto, esta só é extinta em todos os domínios portugueses em 25 de fevereiro de 1869[15]. Em 1822, dá-se a independência do Brasil (PEDREIRA & COSTA, 2006, 340), não se aplicando a extinção da escravatura. Adriano de Sena Lemos acabará por morrer, provavelmente, em 1871. No ano da Lei do Ventrelivre no Brasil, e 17 anos antes da extinção da escravatura[16], pela da Lei Áurea, que poria fim a 450 [8] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [9] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [11] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [12] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [13] PINHEIRO, Paula Moura (2019) – Escravatura Africana em Portugal Continental [temporada 9, episódio 1]. In PINHEIRO, Paula Moura (Produtor Executivo) – Visita Guiada. Lisboa: Rádio Televisão de Portugal 2. [14] ASCML, Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871. [15] Direcção Geral do Ultramar. 1º Repartição. [16] Esta lei “declarava livre os filhos de mulher escrava nascidos no Brasil a partir da data da aprovação da lei”, a 28 de setembro de 1871. In CARDIA, Mirian Lopes (2017) – Lei do Vente Livre. Brasil: Arquivo Nacional. Ministério da Justiça e Segurança Pública.
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anos de esclavagismo[17].
2. Variadas são as celebrações religiosas, que se perderam, com o avançar dos séculos, na Irmandade da Santa Casa da Misericórdia. Sendo, por vezes, referida a falta de adesão dos irmãos. É sobre essas que nos debruçaremos. Em 1514, o rei D. Manuel I institui, em Portugal, a procissão da Visitação a realizar, no dia da Irmandade da Misericórdia, a 2 de julho[18], em todas as localidades do país, quer houvesse Misericórdia, ou não (SÁ, 2002, 38). Atualmente, existem apenas dois santuários marianos no país que ainda lhe prestam culto, em Vimioso e Montemor-o-Novo (GIL, 2003, 130; 206). A Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel torna-se orago das Misericórdias, uma vez que o auxílio prestado por estas instituições implicava sempre uma deslocação, uma visita quer fosse esta feita às prisões, em cortejos processionais ou ao espaço privado de lar, replicando o gesto de Nossa Senhora que partiu em auxílio à sua prima (SÁ, 2002, 39).
[Figura 4] Visitação. Pintura a óleo sobre madeira de castanho. Autoria de António Leitão, para a antiga igreja da Misericórdia em 1565. Fotografia: DRCN/Museu de Lamego/ José Pessoa. [Figura 5] Visitação. Pintura a óleo sobre tela. Autoria de Pedro Alexandrino, para a antiga igreja da Misericórdia em 1790. Fotografia: DRCN/Museu de Lamego/ José Pessoa. [17] CATTIER, Daniel; GÉLAS, Juan; GLISSANT, Fanny (2018) – 1789-1888 Novas Fronteiras da Escravidão. [episódio 4]. In LABIB, Jean; GLISSANT, Fanny (Produtor) – Rotas da Escravidão. França: Compagnie des Phares et Balises Arte France. [18] A Igreja Católica festeja atualmente a Visitação a 31 de maio, para que seja celebrada antes do nascimento de São João Baptista a 24 de junho, e assim cumprir o evangelho de São Lucas.
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A Santa Casa da Misericórdia de Lamego também comemorava este dia, sendo mencionado, normalmente, como Festividade da Vezitação a Santa Izabel[19], referida pela última vez em 1902, como Festividade da Padroeira[20]. A celebração implicava a requisição de diferentes eclesiásticos[21] e de “musica de capella”[22], realizando-se também neste dia as eleições da mesa, para as quais os irmãos da Misericórdia do Porto eram obrigados a confessar-se (PAIVA, 2005, 427).
Comemoravam, de seguida, a 3 de julho[23], o dia da Rainha Santa Isabel, referido de forma mais pormenorizada em 1866 – “Considerou-se que a festividade da Rainha Sancta Isabel é feita á muitos annos com tão pequeno apparato, que mais parece tibieza de reconhecimento a tão distincta sancta, principal instigadora destes piedozos estabelecimentos de charidade, do que dezejo de economisar os redditos da Casa; Rezolveu p[or] tanto, a Mesa que este anno se lhe fizesse a festividade com mais explendor, havendo, alem da exposição do Sanctissimo, como é costume, sermão, musica vocal e instrumentação. O mesario D[outor] Barreto offereceu-se logo para pregar - gratis - esse sermão. Foram commissionados os mesarios - Correa da Rocha e Vaz Per[eira] para arranjarem pelo menor preço a musica para a dicta função.” [24] Integrada nesta celebração realizavam-se peditórios que consequentemente permitiam a distribuição de esmolas pelos mais pobres[25], replicando a caridade desta rainha de origem aragonesa. No primeiro domingo de junho, a Misericórdia de Lamego organizava a Procissão do Voto, referida nas atas de mesa, da segunda metade do século XIX até 1902[26], sendo coadjuvada pela Ordem Terceira[27], talvez em adoração ao Santo Cristo, e realizada de madrugada até, pelo menos, 1866, quando passou a ter lugar da parte da manhã – “Rezolveu a Mesa que a Procissão do Voto que é obrigação fazer-se todos os annos no primeiro domingo de Junho, e que costumava fazer-se das 4 p[ara] as 5 horas da manha, sahisse este anno ás 10 horas da manhã, a ver se assim concorria maior numero de irmãos, e se dava assim a este acto toda a solennidade que merece; e nesse intuito se determinou que a Imagem do Sancto Christo fosse debaixo do palio, em lugar da umbella, como ate aqui se praticava, [28] fazendo-se para isso os necessarios convites e participações”.
[19] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl.182. [20] ASCML, Livro d´Actas de mesa, nº 11 – 1898 a 1903, fl.138v. [21] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl.73v. [22] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl.86r. [23]ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl.8r. [24] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl.73r. [25] ASCML, Livro das Actas dos Irmãos da Mesa - 1850 a 1857, fl. 28r. [26] ASCML, Livro d´Actas de mesa, nº11 – 1898 a 1903, fl. 138v. [27] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl. 73v. [28] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl. 62v.
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Não podemos deixar de referir, ainda que se mantenha até aos nossos dias, a mais importante celebração religiosa – A Semana Santa, que se desenrola por diferentes cerimónias, com a colaboração da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos[29], na procissão de Sexta-Feira Santa[30].
[Figura 6] Cristo atado à coluna e Ecce Homo. João António (escultor) e António Leitão (pintor), em 156768 e 1571, respetivamente. Fotografia: DRCN/Museu de Lamego/ Paula Pinto.
[29] ASCML, Livro das Actas dos Irmãos da Mesa - 1850 a 1857, fl. 15r. [30] ASCML, Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872, fl. 62r.
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[Figura 7] Rua de Almacave após o incêndio de 26 de junho de 1911. In Lamego Antigo (em bibliografia).
3. Ao anoitecer de 26 de junho de 1911, os sinos a rebate interrompem a indolência de Lamego. Um pavoroso incêndio deflagrou na Rua de Almacave[31]. Iniciou-se na mercearia de José do Santos Figueiredo, já depois das 21 horas, alimentado por materiais inflamáveis e tóxicos, percetíveis pelos cheiros exalados a gasolina, enxofre e gasóleo[32]. Através de uma explosão expande-se para os prédios vizinhos – "galgava terreno, augmentando o terror, o assombro e a desordem; exhaurindo os que trabalhavam e obrigando a succumbir, aniquilados sob uma derrocada de inexhoraveis desgraças, os que soffriam a pressão violentissima e feroz de [33] supremas afflicções" – às 6 horas da manhã seguinte, estavam completamente destruídas 21 casas, apesar do combate das Companhias Municipais e voluntários, auxiliados, ainda, pela Companhia dos [34] Bombeiros Voluntários do Peso da Régua – "Temos, portanto, menos de meia hora para a destruição de cada predio (...) Houve casas, e não das mais pequenas que levaram muito menos de meia hora a [35] arder" .
[31] A assombrosa catastrophe, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911, p. 1. [32] Uma noite tragica, in A Fraternidade, ano I, n.º 31, 1 de julho de 1911, p. 1. [33] A assombrosa catastrophe, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911, p. 1. [34] Arquivo Municipal de Lamego, Livro de Actas - 1908 a 1912, fl. 121v. [35] A assombrosa catastrophe, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911, p. 1.
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[Figura 8] Vista sobre a rua de Almacave, após o incêndio de 26 de junho de 1911. In Lamego Antigo (em bibliografia).
Contudo, houve ainda oportunidade para pilhagens. Disso nos dá conta o jornal O Progresso, que [36] faz referência ao desaparecimento de peças de valor na ourivesaria Rocha . [37]
"A pessima situação economica" da cidade agravou-se pela destruição desta rua comercial. O impacto foi de tal ordem que diversas individualidades se apressaram a prestar solidariedade para [38] com Lamego . Situação plasmada na imprensa nacional, com O Século a noticiar o sucedido três dias [39] depois . [40]
[41]
Além de estabelecimentos comerciais, do jornal O Progresso , do Hospital Militar e habitações particulares estavam também instaladas nesta rua três igrejas: a igreja de Almacave, paroquial, a igreja de São Francisco do extinto convento e a igreja da Misericórdia.
[Figura 9] Pormenor da Rua de Almacave. Planta da Cidade de Lamego e dos Seus Arredores, em 1793. Cortesia do sr. Lobão Ferreira /CML. [36] Aviso, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911, p. 1. [37] AML, Livro de Actas - 1908 a 1912, fl. 120r. [38] Uma noite tragica, in A Fraternidade, ano I, n.º 31, 1 de julho de 1911, pp. 1 e 2. [39] O incendio de Lamego, in O Século, 29 de junho de 1911, p. 5. [40] As desgraças despertam, também, sentimentos de verdadeira solidariedade. Com a destruição completa do jornal O Progresso, é lhe oferecida uma nova redação na rua da Seara por Manuel Luiz de Senna (in, O nosso agradecimento, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1465, 12 de agosto de 1911, p. 2.) e a impressão na tipografia do jornal A Fraternidade, por José de Menezes. In, A assombrosa catastrophe, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911, p. 1. [41] AML, Livro de Actas - 1912 a 1916, fl. 10r.
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Inspirado pelas campanhas reformistas levadas a cabo pela Implantação da República e visto tratar-se de uma rua estreita como podemos constatar através da figura 10. O presidente da Câmara, Francisco Lopes de Sousa Gama, um fervoroso republicano e anti-clerical (Braga-Amaral, 2013, 27), beneficiando da destruição da rua de Almacave, propõe o seu alargamento[42] "pelo lado poente tirando uma linha recta da esquina do lado da egreja d´Almacave, da casa de D. Antonia Alves d´Almeida, à esquina da egreja de S. Francisco, continuando até a frente da Praça Miguel Bombarda, para o que se tem de aproveitar toda a entrada e respectivo adro da egreja de S. Francisco e parte da egreja e adro da [43] Mesericordia" .
[Figura 10] Vista sobre Lamego, assinalando-se o edifício primitivo da igreja da Misericórdia. In Lamego Antigo (em bibliografia).
Para tal, torna-se necessário a expropriação de todos os proprietários. A Ordem Terceira opõe-se ferzomente. Os particulares reconfortados pelas indemnizações recebidas através dos seguros, ao [44] contrário da Santa Casa da Misericórdia de Lamego , acabam por concordar. A Irmandade da Santa Casa da Misericórdia desperta um desejo antigo expresso a 14 de março de 1911: Pelo thesoureiro senhor José Mendez Guerra foi proposto e approvado propôr á Camara Municipal, a troca de edifico em que está o Cartorio e Egreja pela Egreja das Chagas e côro para [42] O projecto de alargamento, bem como de expropriação, da rua de Almacave encontra-se em parte incerta, não sendo possível a sua consulta. [43] AML, Livro de Actas - 1908 a 1912, fl. 122v. [44] A Santa Casa da Misericórdia de Lamego entra em disputa com a companhia de seguros Garantia, uma vez que pretendia indemnizar apenas a Misericórdia em 600$000 reis. Um valor muito inferior ao indicado pelo delegado da companhia, uma indemnização superior a um conto de reis. In Liquidação regateada, O Progresso, ano XXVII, n.º 1463, 29 de julho de 1911, p. 1.
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installação do Cartorio, a fim, não só de melhorar as installações da Santa Casa, mas de permittir á Camara o alargamento da rua d´Almacave.[45]
A 29 de junho de 1911, a Câmara Municipal de Lamego envia à mesa da Santa Casa da Misericórdia um ofício "para que esta não faça obras na sua egreja que o incendio acaba de damnificar"[46] e propondo a troca da igreja da Misericórdia pela da Graça[47], em posse da câmara pela extinção das ordens religiosas, em 1834. Visto que a igreja das Chagas, igualmente de pertença camarária, por [48] decreto de 29 de outubro de 1910 , “é natural que tenha de sêr apeada para um complemento d´obras [49] de publica utilidade” . A Sessão Extraordinária da Mesa da Santa Casa da Misericórdia, a 28 de julho de 1911, é fundamental para percebermos todas as deliberações tomadas a serem aprovadas pela Junta Geral, [50] convocada através de anúncio no jornal A Fraternidade . Além disso, são expressos pela primeira vez sentimentos de tristeza pela destruição da rua, bem como nos é dado a entender como foi afetado o templo da Misericórdia – "foi atingido pelas chamas, e todo se destruiria e com elle algumas suas riquezas, se não fosse o esforço de muitas pessoas que teem uma profunda dedicação por esta Santa Casa"[51]. Todavia, pouco afetado acreditamos ter sido o conjunto arquitetónico da Santa Casa da Misericórdia, uma vez que no Livro de Inventário não se registou nenhum abatimento de bens, na sequência do incêndio[52]. Para isso, contribuiu, certamente, o corte de incêndio levado a cabo pelos bombeiros, auxiliados por populares, na parte superior e inferior da rua, para assim limitar o fogo[53]. A Santa Casa da Misericórdia aceita a cedência do espaço, onde se encontra instalada a sua igreja e diversas dependências administrativas (Cartório, Casa da Cera, do Despacho, da Tumba)[54], visto tratar-se de "uma aspiração do publico d´esta cidade que deseja e quer que seja largada (sic) a sua antiga [55] rua d´Almacave" . No entanto, recusa categoricamente a igreja da Graça, uma vez que “é absolutamente modesta tanto internamente como externamente (...) vae resistindo aos tempos pela [56] continua esmola dos crentes” . Contrapõe referindo a possibilidade de troca com a Igreja das [45] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 103v. [46] AML, Livro de Actas - 1908 a 1912, fl. 122v. [47] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 110. [48] AML, Livro de Actas - 1912 a 1916, fl. 45v. [49] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 111r. [50] Santa Casa da Misericordia - Convocação da Junta Geral, in A Fraternidade, ano I, n.º 34, 22 de julho de 1911, p. 2. [51] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 111v. [52] ASCML, Livro dos Inventários, 1765 a 1917, fl. 78. [53] Uma noite tragica, in A Fraternidade, ano I, n.º 31, 1 de julho de 1911, p.1. [54] ASCML, Livro dos Inventários, 1765 a 1917, fl. 1v. [55] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 111-112. [56] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 112r.
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Chagas porque esta, “é magnificente, pelas tradições, pela sua elegancia e pelas reliquias artisticas e altares. (...) apesar das suas riquezas artisticas, que encantam quem as vê e pode apreciar, encontra-se fechada por ter terminado a causa que motivou a sua fundação – a extinção do mosteiro – e por tal motivo, as suas reliquias, que honram esta terra, encontram-se por assim dizer abandonadas e condennadas a desapparecerem com a acção do tempo e em poucos annos. Se a Santa Casa é um patrimonio da cidade o templo das Chagas, ou antes os valores artísticos e historicos que n´elle se encontram tambem o são. Ora nenhuma instituição como a Santa Casa melhor e com mais razão pode ser possuidora dessas reliquias de arte e prover pela sua conservação desde que ellas são partes integrantes de uma egreja, e tem uma razão de ser, quanto á sua origem, igual aquella que justifica ou explica a existencia de um templo onde se venera a ideia de Deus. Para interesse da cidade, devemos entregar á illustre Camara Municipal o terreno onde ha mais de trezentos annos asssenta o templo da Misericordia. Tambem para interesse da cidade e para respeito dos sentimentos dos seus habitantes deve a mesma cidade por intermedio do seu municipio entregar á Santa Casa, para egreja da Misericordia o templo das Chagas. O encargo ainda não é pequeno porque a accommodação das Chagas para Misericordia é dispendiosa”[57]. Sem nenhuma resolução, o impasse é explanado no decorrer de 1912 por Francisco Lopes de Sousa Gama, presidente da Câmara, em sessão camarária dizendo que "não tinha podido acordar-se com a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia (...) estando certo que só decretada a expropriação por utilidade publica se poderá conseguir a sua aquisição"[58], oferecendo para isso a quantia de 3.238:290 réis[59]. As expropriações iam sendo feitas aos restantes proprietários após as demolições forçadas durante os anos que se seguiram ao incêndio. Torna-se, no entanto, curioso que logo sejam postos à [60] venda casas e terrenos baratos na rua de Almacave , sendo responsável pelo negócio, como advogado, o dr. Alfredo Pinto de Azevedo e Sousa, administrador do concelho. Não podemos deixar de referir as suspeitas que lhe são lançadas pelos incêndios ocorridos na cidade (RICA & CABRAL, 2006, 120). Porém, são variadas as suas localizações, como por exemplo, na rua Torta em setembro [61] [62] de 1911 , ou na Meia Laranja em julho de 1913 . Ocorridos e expandidos devido aos materiais construtivos das habitações e dos produtos armazenados. Situação para a qual se chama atenção a 16 de agosto de 1913, no jornal A Fraternidade – "Continuamos a ser mimoseados com os incendios. Lamêgo tem de ser aniquilado por esta forma – e a proposito excelentissimos edis: as Posturas [57] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 112. [58] AML, Livro de Actas - 1912 a 1916, fl. 11r. [59] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl.160v. [60] Casas e terrenos baratos, in O Progresso, ano XXVII, nº 1462, 23 de julho de 1911, p.1. [61] Grande incendio, in O Progresso, ano XXVII, nº 1471, 23 de setembro de 1911, p. 1. [62] Incendio, in O Progresso, ano XXIX, n.º1565, 12 de julho de 1913, p. 1.
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municipaes não prohibem que junto ou debaixo das padarias e dos fornos se armazenem lenha para os mesmos?"[63] Consciente de todas as dificuldades, a Misericórdia de Lamego procurava ainda assim, efetuar o seu culto. Continuando, por exemplo a adquirir cera em flor para a reforma da que se encontrava na igreja[64]. No entanto, nas festividades da Semana Santa, auxiliava-se da igreja da Graça e da Ordem Terceira de São Francisco, para a sua realização, tendo em conta, certamente, o grande número de pessoas que ocorriam a estas demonstrações de fé[65]. No decorrer de junho de 1913 é finalmente resolvida a disputa. A 12 de junho em sessão camarária é discutida a melhor forma de se expropriar a Santa Casa da Misericórdia, tendo em conta que teria um custo superior a 6000$00, valor impossível de atingir pelo erário público. Propõe por isso, que a [66] Santa Casa da Misericórdia receba a igreja das Chagas, permitindo a expropriação da sua igreja , respeitando as seguintes clausulas: 1ª Fica pertencendo à Camara Municipal de Lamego a antiga igreja da Mesericordia, sita na rua de Almacave, incluindo todo o terreno da mesma igreja, que exceder ao preciso para o alargamento da rua; 2ª Todo o material em pedra da mesma egreja, à excepção do portico com suas colunas, fica pertencendo á Camara; mas o material de madeira e doutra natureza, bem como os altares e imagens, ficam pertencendo à Santa Casa da Misericordia; 3ª A demolição da igreja da Mesericordia fica a cargo da Camara Municipal, como tambem a cargo da Camara ficam os transportes do material reservado á Santa Casa para um logar que não seja superior em distancia aquêle onde está situada a igreja das Chagas; 4ª A igreja das Chagas com o coro inferior e superior, com todos os seus altares, imagens e mais pertenças fica sendo propriedade da Santa Casa da Mesericordia; 5ª Fica a Camara com o direito de a todo o tempo expropriar a igreja das Chagas, na posse e propriedade da Mesericordia, logo que se reconheça nisso necessidade e utilidade publica, pagando então a Camara á Santa Casa, como indemnisação, a importancia de seis mil escudos, a fora (sic) o valor do edifício que a Santa Casa construir para secretaria, nos termos da condição 8ª que será pago à parte, se fôr tambem expropriado, ou qualquer prejuizo que sofra com a expropriação da egreja; [63] Epidemia de incêndios, in A Fraternidade, ano III, n.º 142, 16 de agosto de 1913, p. 1. [64] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 179r. [65] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913, fl. 141v. [66] Inspira-se em exemplo dado pelo Governo, que expropria na Póvoa de Varzim, uma capela sendo cedido um outro espaço religioso, para que se possa incorporar o terreno numa alameda. In Arquivo Municipal de Lamego, Livro de Actas 1912 a 1916, fl. 47v.
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6ª A Santa Casa da Mesericordia custeará por sua conta as reparações a fazer na igreja das Chagas, para que ela possa servir ao culto privado da Mesericordia; 7ª Do terreno anexo à Igreja, e para o lado da Alamêda Municipal, fica pertencendo à Santa Casa da Mesericordia uma superficie retangular de 216 metros quadrados, a qual ocupará no lado da mesma Avenida um comprimento até 12 metros, a contar da esquina da igreja, devendo o outro lado do retangulo ir até 18 metros; 8ª Que este terreno é para a Santa Casa poder nêle construir um edificio para a sua secretaria e outras repartições e acomodações, ficando ainda a Santa Casa com o direito de poder abrir portas e janelas para o restante terreno, que continua na propriedade da Camara; 9ª Pode a Camara Municipal a todo o tempo demolir a actual sacristia da igreja das Chagas e o chamado Mirante, sem ter que pagar a Santa Casa qualquer indemnisação, a não sêr o valôr dos reparos necessarios e a fazer na parte externa e interna do templo, motivados por tal demolição.
[Figura 11] Igreja das Chagas, sacristia e mirante, início do século XX. In Lamego Antigo (em bibliografia).
10ª Que, porem, a demolição da sacristia só poderá realisar-se nos termos expostos, depois da Santa Casa ter construido o edificio da Secretaria, referido na condição 8ª."[67]
A proposta é aceite pela Santa Casa da Misericórdia, em sessão extraordinária de 13 de junho de 1913, sendo provedor o dr. Alfredo Pinto d´Azevedo e Sousa[68], pelo entendimento de assim se auxiliar a Câmara Municipal de Lamego, “na reconstrução e alargamento da rua de Almacave ha muito
[67] AML, Livro de Actas - 1912 a 1916, fl. 46. [68] Acumula o cargo de Administrador do Concelho, Provedor da Santa Casa da Misericórdia e Presidente da Comissão dos Bens Eclesiásticos.
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reclamado pelo publico.[69]
Em julho, são autorizados, pela mesa da Misericórdia, os reparos necessários na Igreja da Chagas, bem como é dada autorização à Irmandade dos Remédios, para que utilizem as instalações para a preparação das festividades de Nossa Senhora do Remédios[70]. No mês seguinte, a Santa Casa da Misericórdia, através do jornal O Progresso, convida todos os irmãos a concorrer à missa, na nova igreja da Misericórdia, a realizar pelas 10:30, seguindo-se depois a Festividade da Assunção, como determina o Compromisso[71].
[Figura 12] Comunicado da abertura da igreja das Chagas como nova igreja da Misericórdia. «Santa Casa da Misericórdia», in O Progresso, ano XXIX, nº1569, 9 de agosto de 1913, p.3.
O jornal A Fraternidade, de forma extremamente crítica, dá-nos conta de como foram essas celebrações: Á hora aprazada e anunciada, pelo largo foguetorio, lá fomos vêr o que havia. Assistencia pouco numerosa e, em geral, pouco escolhida. Desinteresse d´uns e cobardia de outros. Signaes dos tempos. A egreja pareceu-me pouco limpa o que não é estranhavel visto que não houve tempo, suficiente, para se tratar da sua limpeza. Gosto muito de ser justo. Se eu
[69] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa nº 14 - 1913 a 1924, fl.10r. [70] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 14 - 1913 a 1924, fl. 11-12. [71] Santa Casa da Misericórdia, in O Progresso, ano XXIX, n.º 1569, 9 de agosto de 1913, p. 3.
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mandasse fazia retirar, da egreja, o altar que pertenceu ao coração de Jesus e devolvia-o, com a imagem, e tudo que lhe dizia respeito aos seus direitos possuidores: A egreja ficava mais ampla e o todo mais harmonico. A pintura do arco cruzeiro cheirou-me a borras de vinho. Qualquer outra côr, que o diga o nosso amigo Napoles, podia cazar melhor com o tecto. O digno provedor deve estar radiante, porque, enfim, conseguiu o seu desideratum. As escolas continuam na mesma. Para que serve o sabêr lêr? O homem culto despreza, sempre o cacique armado em Regulo. [72]
Dinheiro da misericordia em foguetes, acho forte.
O abandono da antiga igreja dará lugar à dispersão de todos os bens. Ainda no mesmo mês, a Misericórdia cederá o guarda-vento e um conjunto de azulejos à Irmandade de Nossa Senhora dos [73] Remédios . No ano seguinte, em julho de 1914, um dos altares laterais será vendido para a capela de [74] Juvandes . O conjunto arquitetónico da Santa Casa da Misericórdia acaba por ser demolido, permitindo que o espaço excedente do alargamento da rua fosse adquirido pelo Banco de Portugal, provavelmente, por iniciativa de Alfredo de Sousa, para aí instalar nova agência, com a condição de se proceder à sua imediata construção (RICA, 2014, 133). No entanto, tal não se verificou, sendo apenas edificado já no período do Estado Novo. Atualmente, ocupam esta área o Arquivo e Biblioteca Municipal de Lamego.
[Figura 13] Pormenor da rua de Almacave depois do desmantelamento da igreja da Misericórdia. Após 1913. In Lamego Antigo (em bibliografia). [72] Reabertura da egreja das Chagas, in A Fraternidade, ano III, n.º 142, 16 de agosto de 1913, p. 2. [73] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 14 - 1913 a 1924, fl. 15. [74] ASCML, Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 14 - 1913 a 1924, fl. 32r.
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MANUSCRITOS AML - Arquivo Municipal de Lamego: Livro de Actas - 1908 a 1912. Livro de Actas - 1912 a 1916.
ASCML - Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Lamego: Cópia de Testamento de Adriano de Sena Lemoz – 1871, inventário n.º196. Livro das Actas dos Irmãos da Mesa - 1850 a 1857. Livro d´Actas de mesa – 1863 a 1872. Livro d´Actas de Sessões de mesa, n.º 11- 1898 a 1903. Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 13 - 1908 a 1913. Livro d´Actas de Sessões de mesa n.º 14 - 1913 a 1924. Livro dos Inventários, 1765 a 1917.
AMDL - Arquivo Museu Diocesano de Lamego: Livro de Baptismos da Paróquia de Almacave – 1817 a 1824. Livro de Óbitos da Paróquia de Almacave – 1826 a 1837.
PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS «A Fraternidade»: Epidemia de incêndios, in A Fraternidade, ano III, n.º 142, 16 de agosto de 1913. Reabertura da egreja das Chagas, in A Fraternidade, ano III, n.º 142, 16 de agosto de 1913. Santa Casa da Misericordia - Convocação da Junta Geral, in A Fraternidade, ano I, n.º 34, 22 de julho de 1911. Uma noite tragica, in A Fraternidade, ano I, n.º 31, 1 de julho de 1911.
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«O Progresso»: A assombrosa catastrophe, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911. Aviso, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1459, 1 de julho de 1911. Casas e terrenos baratos, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1462, 23 de julho de 1911. Grande incendio, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1471, 23 de setembro de 1911. Incendio, in O Progresso, ano XXIX, n.º 1565, 12 de julho de 1913. Liquidação regateada, O Progresso, ano XXVII, n.º 1463, 29 de julho de 1911. O nosso agradecimento, in O Progresso, ano XXVII, n.º 1465, 12 de agosto de 1911. Santa Casa da Misericórdia, in O Progresso, ano XXIX, n.º 1569, 9 de agosto de 1913.
«O Século»: O incendio de Lamego, in O Século, 29 de junho de 1911.
BIBLIOGRAFIA Arquivo da Universidade de Coimbra. Disponível em <http://pesquisa.auc.uc.pt/details?id=213533&ht=joaquim|lemos>. [Consulta realizada em 11/07/2019]. BRAGA-AMARAL, José (2013) – Município de Lamego. Presidentes de um século 1909-2009. Lamego: Câmara Municipal de Lamego. CARDIA, Mirian Lopes (2017) – Lei do Vente Livre. Brasil: Arquivo Nacional. Ministério da Justiça e Segurança Publica. Disponível em <http://www.arquivonacional.gov.br/br/ultimasnoticias/736-lei-do-ventre-livre.html> [Consulta realizada em 11/07/2019]. CATTIER, Daniel; GÉLAS, Juan; GLISSANT, Fanny (2018) – 1789-1888 Novas Fronteiras da Escravidão. [episódio 4]. In LABIB, Jean; GLISSANT, Fanny (Produtor) – Rotas da Escravidão. França: Compagnie des Phares et Balises Arte France. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=tcpOOp_SYQM&t=2843s> [Consulta realizada em 11/07/2019]. COSTA, Jéssyka (2014) – Escravos nos Anúncios: compra, venda e aluguel de cativos em Manaus (18541884). In Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: Saberes e práticas científicas.
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Figura 8: [Consulta realizada em 15/07/2019] https://photos.google.com/share/AF1QipP_4tmKfNBNPdByDj_lO1U_zn1_JYOc075QDIyiaiv5 DDl_hho_5ag4GR6zyNhWZA/photo/AF1QipPQPWSc_pE3XZkw28L_GV xKakqxz7wGDG7njBY _?key=TVZJbnRzQ1lMUWJ3dHptNDhaZEFmQTR2WDZsRUB
Figura 10: [Consulta realizada em 15/07/2019] https://photos.google.com/share/AF1QipP_4tmKfNBNPdByDj_lO1U_zn1_JYOc075QDIyiaiv5 DDl_hho_5ag4GR6zyNhWZA/photo/AF1QipMqL7myxqtBf5qCyGMSlxUT sq9IZd3Rhn6fco_W ?key=TVZJbnRzQ1lMUWJ3dHptNDhaZEFmQTR2WDZsRUhB
Figura 11: [Consulta realizada em 15/07/2019] https://photos.google.com/share/AF1QipP_4tmKfNBNPdByDj_lO1U_zn1_JYOc075QDIyiaiv5 DDl_hho_5ag4GR6zyNhWZA/photo/AF1QipPBIKhv4e39JzDIVYMkR21iV xykou1i83V29z7N?ke y=TVZJbnRzQ1lMUWJ3dHptNDhaZEFmQTR2WDZsRUhB
Figura 13: [Consulta realizada em 15/07/2019] https://photos.google.com/share/AF1QipP_4tmKfNBNPdByDj_lO1U_zn1_JYOc075QDIyiaiv5 DDl_hho_5ag4GR6zyNhWZA/photo/AF1QipN9wNvi88Wqm8w35UcVhNoIuOuDhbLMKdDVT qdp?key=TVZJbnRzQ1lMUWJ3dHptNDhaZEFmQTR2WDZsRUhB
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