FICHAS TÉCNICAS
CATÁLOGO COORDENAÇÃO EDITORIAL
| Luís Sebastian Nuno Resende
COORDENAÇÃO CIENTÍFICA AUTORES DOS TEXTOS
| Nuno Resende
| Ana Sampaio e Castro Ana Cristina Sousa Célia Taborda David Ferreira Hugo Barreira Lúcia Rosas Luís Corredoura
EXPOSIÇÃO
Luís Sebastian
INICIATIVA
Maria Leonor Botelho
ORGANIZAÇÃO |
Manuel Pedro Ferreira
FINANCIAMENTO
Miguel Rodrigues
APOIO |
DESIGN GRÁFICO
| Cristina Dordio
FOTOGRAFIA | Ana Sampaio e Castro
Museu de Lamego | Vale do Varosa
| DRCN / ON2, O Novo Norte | QREN | FEDER | UE
Liga dos Amigos do Museu de Lamego Escola de Hotelaria e Turismo do Douro-Lamego
Nuno Resende Salvador Magalhães Mota
| Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN)
DIREÇÃO
| Luís Sebastian (DRCN | Museu de Lamego) | Nuno Resende
COMISSARIADO CIENTÍFICO PROJETO MUSEOGRÁFICO
| Nuno Resende Luís Sebastian (DRCN | Museu de Lamego)
Biblioteca Nacional Digital APOIO À ORGANIZAÇÃO
Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa
GESTÃO DE RECURSOS HUMANOS E FINANCEIROS | Paula
Diocese de Lamego
DESIGN
Hugo Pereira. DRCN ©
FOTOGRAFIA
Instituto Geográfico do Exército
EXECUÇÃO E MONTAGEM
José Pessoa. Museu de Lamego. DRCN ©
TRATAMENTO AUDIOVISUAL
Luís Corredoura
TEXTOS
Luís Sebastian. Museu de Lamego. DCRN ©
TRADUÇÃO
Nuno Resende
SONOPLASTIA
Pedro Martins. DRCN ©
TEMA MUSICAL
Sofia Catalão. DRCN ©
IMAGENS
GESTÃO FINANCEIRA | Paula PRODUÇÃO EDIÇÃO
Duarte (DRCN | Museu de Lamego)
|Outros Mercadus
| DCRN | Museu de Lamego | Vale do Varosa
FINANCIAMENTO
| DRCN / ON2, O Novo Norte | QREN | FEDER | UE
| WGroup ISBN | 978-989-98657-9-2 IMPRESSÃO
DEPÓSITO LEGAL
| Alexandra Falcão (DRCN | Museu de Lamego)
Bruno Marques. DCRN ©
| 395817/15
Duarte (DRCN | Museu de Lamego)
| Cristina Dordio | Pedro Martins | Outros Mercadus, Lda. | Digitalframe, Lda.
| Nuno Resende | Paulo Vaz (Escola de Hotelaria e Turismo do Douro-Lamego) | Luís Sebastian (DRCN | Museu de Lamego) | Luís Sebastian (DRCN | Museu de Lamego)
| Museu de Lamego (Lamego, Portugal) Biblioteca Nacional de Portugal (Lisboa, Portugal) Morgan Library (New York, United States of America) Bodleian Library (Oxford, United Kingdom) Bibliothèque National de France (Paris, France) Bibliothèque de la ville de Troyes / Mediatheque Grand Troyes (Troyes, France) Österreichische Nationalbibliothek (Wien, Österreich) Bibliothèque Municipale de Toulouse (Toulouse, France)
4 ANA CRISTINA SOUSA | accsousa@letras.up.pt Professora auxiliar do DCTP – Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigadora do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» ANA SAMPAIO E CASTRO | ana.sampaioecastro@gmail.com Doutoranda em Arqueologia Histórica – FLUP Bolseira da FCT DAVID FERREIRA DCRN - Direcção Regional de Cultura do Norte CÉLIA TABORDA Universidade Lusófona do Porto HUGO BARREIRA | hbarreira@letras.up.pt Assistente convidado do DCTP – Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» LÚCIA ROSAS | lrosas@letras.up.pt Professora catedrática do DCTP – Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigadora do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» LUÍS CORREDOURA Universidade de Évora
TÁBUA DE AUTORES LUÍS SEBASTIAN DCRN - Direcção Regional de Cultura do Norte Director do Museu de Lamego MANUEL PEDRO FERREIRA | mpferreira@fcsh.unl.pt Professor Associado Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa Presidente do CESEM MARIA LEONOR BOTELHO | mlbotelho@letras.up.pt Professora auxiliar do DCTP – Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigadora do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» MIGUEL RODRIGUES DCRN - Direcção Regional de Cultura do Norte NUNO RESENDE | nmendes@letras.up.pt Professor auxiliar do DCTP – Departamento de Ciências e Técnicas do Património Faculdade de Letras da Universidade do Porto Investigador do CITCEM - Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» SALVADOR MOTA Professor Associado da FCS da UCP – CR. Braga Membro do CEFH e CITCEM
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LUIS SEBASTIAN DRCN | MUSEU DE LAMEGO DIRETOR DO MUSEU DE LAMEGO
Na década de noventa do século XX assistimos em Portugal a um despertar para a importância e potencial do que podemos designar de herança monástica. Intervenções de recuperação e/ou adaptação de mosteiros como o de São Martinho de Tibães ou Santa Maria do Bouro, ou conventos como os de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, foram em grande parte consequência deste movimento, mas igualmente seus impulsionadores. À mudança na forma como olhávamos então este património, juntou-se o desafio técnico e científico do seu estudo e recuperação patrimonial e turística, o que levou, por si só, a uma revolução na área, com o surgimento de termos tão sintomáticos quanto «Arqueologia Monástica». Já em 1998, no âmbito das comemorações dos 900 anos da Ordem de Cister, realizou-se no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça o Colóquio Cister: Espaços, Territórios, Paisagens, pela mão do agora extinto Instituto Português do Património Arquitetónico (IPPAR). Deste resultaria a Carta de Alcobaça, documento onde ficariam definidas especificamente as principais linhas orientadoras de salvaguarda, recuperação e valorização do Património Cisterciense Nacional. É neste contexto que se iniciam diversas intervenções
em edifícios monásticos, entre os quais se inclui o
Já em 2012, com a afetação do Museu de Lamego
Mosteiro de São João de Tarouca, e mais tarde, o
à DRCN, este passa por sua vez a assumir a gestão di-
Mosteiro de Santa Maria de Salzedas.
reta do projeto Vale do Varosa, permitindo uma par-
Já com a extinção do IPPAR e a criação da Direção Regional de Cultura do Norte (DRCN) em 2007, um
tilha de meios, potenciais e sinergias, pela primeira vez possíveis.
especial interesse é dado à região duriense, entre-
Nesta continuidade, o projeto «Cister no Douro»
tanto classificada pela UNESCO como Património da
nasce da dupla intenção de divulgar o património
Humanidade em 2001. Dentro da herança histórica,
cisterciense duriense e de contribuir para a conso-
e inclusive pelo papel direto que teve na construção
lidação da sua investigação. A persecução deste
do Douro vinícola, a presença cisterciense na região
duplo objetivo foi materializada em dois distintos mas
impôs-se novamente, e de forma natural, como ele-
complementares suportes: expositivo e editorial
mento de destaque.
O suporte expositivo materializou-se na construção
Neste âmbito, em 2009, a DRCN inicia o projeto Vale
de uma instalação multimédia itinerante, de formato
do Varosa, que apesar de transversal ao vale deste
versátil e adaptável, totalmente sustentada em ima-
pequeno rio afluente do Douro, incluía como princi-
gem impressa e projetada, de discurso acessível,
pais monumentos os mosteiros cistercienses mascu-
bilingue, tendo por alvo um público generalista e di-
linos de São João de Tarouca e de Santa Maria de
versificado, nacional e internacional, destinada a ser
Salzedas. Dando consequência a intervenções ante-
instalada em espaços públicos de grande afluência.
riores, entre as quais se destaca a integral escava-
O suporte editorial consubstanciou-se numa publi-
ção arqueológica do mosteiro medieval de São João
cação que, indo para além do convencional formato
de Tarouca, realizada entre 1998 e 2009, este projeto
de catálogo, procurou reunir um diversificado con-
Vale do Varosa veio não só tornar possível grandes
junto de investigadores que, no todo, contribuíssem
obras de recuperação do edificado, mas igualmente
para uma visão geral e multifacetada do fenómeno
apostar na maior divulgação deste património.
cisterciense na região, à luz do conhecimento atual.
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MARIA ALEGRIA MARQUES
A presente obra assume-se como o repositório de mais uma das muitas e sedutoras experiências com que o Museu de Lamego tem brindado o público nos últimos anos. Com efeito, ela é, afinal, o Catálogo de uma exposição organizada por esse Museu e pela Direcção Regional de Cultura do Norte, sobre a presença cisterciense no Douro. Edita a obra o Museu de Lamego, em mais uma acção de relevo nos seus fins culturais. Comissionada por um jovem académico, de provas dadas, – Nuno Resende –, já de si, a exposição assumiu-se como um evento pouco comum, por vários aspectos. Em primeiro lugar, assinalemos o ineditismo da sua inauguração: na Cidade Invicta, tendo tido por local a estação da Casa da Música, do Metro do Porto, um local muito frequentado, mas pouco utilizado em matérias culturais. Em segundo lugar, sublinha-se a actualidade das técnicas utilizadas, imagem e som, bem de acordo com o sentido de inovação e modernidade que se liga à Ordem que se pretendia celebrar. Assumia-se, assim, quer pelo apelo do espaço, quer pelas técnicas utilizadas, como um convite ao cidadão que passava, atraindo-o e envolvendo-o numa mensagem em que a
imagem e o som projectados tinham um papel pri-
sou a região e os séculos, e outros a ficarem-se pelo
mordial.
nome pouco mais que circunscrito à região onde se
Pretendia-se, assim, que cidadão que passava,
implantaram.
«ouvia» e, acaso, «via», e «visitante» que «via» e «ou-
Não encontraremos, nela, uma história das citadas
via» se tornassem, afinal, um único, na interrogação
abadias. Antes, ela oferece uma reflexão sobre al-
de um passado e na fruição de uma herança.
guns aspectos, por vezes muito pouco conhecidos ou
Quanto à obra que ora se apresenta, como o nome
porque circunscritos, ou porque pouco estudados, o
indica – Cister no Douro –, ela debruça-se sobre o
que significa que a obra é compartimentada e muito
conjunto de mosteiros situados na bacia do Douro
diversificada nas suas temáticas.
que se ligaram a Cister, embora tenhamos de re-
No entanto, podemos achar também textos de
conhecer que é bastante alargado o conceito ge-
âmbito mais lato, enquadradores de problemáticas
ográfico em questão. Situados a Sul do Douro, mais
e de tempos, como o são aqueles que se debruçam
ou menos afastados desse rio, são eles, os mosteiros
sobre a extinção das ordens religiosas («O decreto
de S. João de Tarouca, Santa Maria de Salzedas, S.
de extinção das ordens religiosas: impacto nos mos-
Pedro das Águias, Santa Maria de Aguiar, São Pedro
teiros cistercienses do Douro») e nos elucidam sobre
e São Paulo de Arouca e Nossa Senhora da Assunção
o modo como os homens e, sobretudo, os poderes,
de Tabosa.
do século XX e já do XXI se posicionam acerca do
Como se conclui, constituem um conjunto alarga-
entendimento da herança cisterciense e do modo
do e heterogéneo, quer pela qualidade dos seus ha-
da sua preservação e transmissão aos vindouros («A
bitantes – homens ou mulheres –, quer pelo tempo em
classificação do património imóvel: do Estado Novo
que surgiram – a maioria surgiu na época medieval
aos nossos dias»), temáticas que, afinal, ultrapassam,
–, quer, ainda, pelo protagonismo que lograram no
até, a herança cisterciense.
contexto da história da Ordem de Cister em Portugal,
Especifiquemos alguns elementos da obra.
com alguns a granjearem uma fama que ultrapas-
Em primeiro lugar, realce-se que ela reúne a cola-
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boração de 12 autores – Ana Sampaio e Castro, Célia
da Ribeira de Aguiar, respectivamente); do carácter
Taborda, David Ferreira, Hugo Barreira, Lúcia Rosas,
atractivo do mosteiro, com a existência de um burgo
Luís Corredoura, Maria Leonor Botelho, Manuel Pedro
à volta da casa monástica, prova do seu relaciona-
Ferreira, Miguel Rodrigues, Nuno Resende, Salvador
mento e interpenetração com a comunidade envol-
Magalhães Mota e Saul Gomes –, que assinam, indi-
vente, como em Salzedas.
vidualmente ou em conjunto, 23 entradas. Como se
Já a espiritualidade nos surge por via do tratamen-
conclui, constituem, um conjunto assinalável, na sua
to de temas específicos, ilustrados em textos acerca
maioria de jovens e promissores autores, ao lado de
do significado do claustro (ilustrado com a elegante
alguns nomes já consagrados nos estudos portugue-
realização em Tabosa); da apresentação e interpre-
ses, muito embora a sua ainda ou relativa juventude.
tação de programas iconográficos quer expressos
Quanto às matérias versadas, cingindo-se às casas
em pintura, quer em escultura, em casos diversos
cistercienses do vale do Douro ou a aspectos mui-
como Tarouca, Salzedas e Arouca; da consideração
to específicos delas, tornam a obra heterogénea, ao
da música nos mosteiros cistercienses, aqui represen-
mesmo tempo que atraente, porque diversificada.
tada pelo caso de Arouca; e, por fim, pela ilustração
Por opção ou por condição, as diversas casas mo-
do quotidiano dos monges, seja por via da reflexão
násticas apresentam uma cobertura bastante varia-
acerca da vivência do tempo nos mosteiros, seja
da, talvez até mais que o esperado, uma vez que al-
pela consideração das várias facetas do quotidiano
gumas temáticas se podem rastrear em todas elas.
num mosteiro.
De todo o modo, encontram-se assuntos clássicos
Contudo, e atendendo a que não há categorias
nos estudos cistercienses, sejam de natureza mate-
puras, alguns dos itens enunciados acabam por cru-
rial, do mundo das infra-estruturas económicas ou
zar-se com outras realidades. Assim, a espiritualida-
das realizações artísticas, sejam do campo da espi-
de linda com a liturgia e a simbólica, como no caso
ritualidade.
do estudo do anel de oração de Tarouca, da escultu-
Assim, são tratados problemas de implantação
ra de Santa Bárbara em Cimbres, ou dos programas
das abadias, aqui ilustrados através do caso de São
iconográficos de capitéis, cadeirais, decoração de
Pedro das Águias; da arte primitiva de Cister (capi-
coros, com os últimos e penúltimos a levarem-nos
tel de Salzedas, do século XII, ao que tudo indica da
também à descoberta da arte, seja na expressão
chamada abadia velha); da organização do domí-
da escultura e da pintura, seja, ainda, ajudando à
nio e das características e realizações da economia
compreensão das mentalidades, pois tais peças são
cisterciense (os coutos, com os respectivos marcos e
também o reflexo de um tempo e dos homens e não
outros sinais arquitectónicos, e as granjas, ilustrados
só daqueles que os realizaram, mas também e com
com o caso do padrão de Cimbres e da singular torre
mais interesse ao nosso intento, daqueles ou daque-
ou ponte fortificada de Ucanha, e da granja de Foz
las que as encomendaram.
Finalmente, há que considerar ainda outros dois
a fotografia» e «O mosteiro de Arouca e o cinema»).
importantes campos que o responsável pela obra
No ano em que se perfazem 900 anos sobre o reju-
houve por bem fazer considerar. Referimo-nos às ex-
venescimento que representou a fundação de Clara-
pressões literárias cultivadas ou suscitadas por estes
val por Bernardo de Fontaine, saúda-se a publicação
mosteiros, campo em que cumpre destacar o inte-
desta obra. Fruto de uma parceria entre duas institui-
ressante e importante artigo sobre o controverso «Frei
ções que, claramente, assumem o seu papel e a sua
Bernardo de Brito e os escritores cistercienses nos
responsabilidade em matérias culturais e na valori-
mosteiros do Douro», e, de um outro modo, também
zação e dinamização de uma região que a Ordem
um outro, intitulado «O romantismo literário e os mos-
de Cister moldou – ou ajudou a moldar – ao longo de
teiros cistercienses do Douro: uma voz feminina entre
séculos (salientem-se as reminiscências ainda pre-
ruínas», misto de história e memória. E, por considera-
sentes até na organização física do espaço durien-
se a memória, leiam-se os muito interessantes capí-
se), saúdem-se os autores e o Coordenador da obra.
tulos sobre pratos, ponto de partida para uma história
Pelo seu labor, Cister no Douro não é, apenas, uma
de família ligada a mosteiros cistercienses, no caso
memória, muito menos um slogan. Na expressão dos
Tarouca e Salzedas («Vasconcelos: história social de
artigos que se seguem, descobrem-se realizações
um prato»), bem como para apresentar uma ten-
multifacetadas, expressão de cultura e saber, de arte
dência individualizante entre as casas das diversas
e de técnica, que ajudaram ao moldar da persona-
ordens e congregações, bem como, in limine, en-
lidade única de um espaço, simultaneamente fautor
tre os seus membros («Tigela brasonada de faiança
da alma dos homens que o habitam e que, por isso,
coimbrã»).
ganha em dimensão na projecção de uma memória
E se estas peças são, elas próprias, retalhos de
ímpar do passado das suas terras.
vidas, exemplos de modas, expressões de técnicas correntes, são também a manifestação de memórias. De um tempo, de comunidades, de vidas. Nem se conceberia uma obra deste teor sem esta importante parte da vida dos homens, a memória e a consideração de algumas das suas diversas formas. Já apresentámos alguns estudos que representam também essa preocupação. Mas, num tempo de apelo constante a técnicas e tecnologias, não se pode admirar que os autores tenham considerado dois campos de certo modo inovadores nos estudos cistercienses, a fotografia e o cinema («Marques Abreu e
Pampilhosa, 30 de Abril de 2015
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NUNO RESENDE | COMISSÁRIO CIENTÍFICO DE CISTER NO DOURO
CISTER NO DOURO: MODO TDE COMPOSIÇÃO
13 O que o leitor tem entre mãos é um catálogo de exposição. Este esclarecimento é necessário porquanto durante o último século as historiografias e a museologia nos habituaram à ideia dos conteúdos expositivos apresentados em listagens ou «filas» de objectos, por vezes descritos até à exaustão. Funcionalidade, materialidade e sequencialidade – como se a forma, o lugar e o tempo fossem sempre determinantes para um conhecimento que, na solidão de uma sala de museu, nos confronta violentamente com a obra de arte – esta por vezes apenas compreensível através de legendas ou de um percurso delineado na arquitectura. Não obstante tal experiência (nem sempre agradável e frequentemente redutora), entre o observador, a obra e o lugar, esta ideia serviu para desenhar a exposição temporária Cister no Douro, onde a morfologia do claustro, – espaço fechado – se transmutou em lugar de confluência, atracção e confronto. Assim nasceu, em 2014, este projecto expositivo o qual, através da simulação de um lugar claustral e recorrendo apenas à imagem e ao som, traçou uma viagem ao percurso da implantação e desenvolvimento da Ordem de Cister na região do Douro. O título, ainda que vago por associar duas realidades à partida dissemelhantes (uma histórica e humana e outra natural e geográfica) fundamenta-se nessa difusa articulação entre ambas. Cister, uma antiga mas obscurecida ordem religiosa que o liberalismo português votou ao esquecimento e o Douro, expressão supra-territorial que hoje constitui uma marca inegável de atracção turística, ainda que essencialmente reconhecida pelo seu valor paisagístico. Mas se a paisagem é uma construção (e é-o, naturalmente, quando mais não seja pelos olhos de quem a interpreta) Douro e Cister cruzam-se para narrar um percurso iniciado no século XII entre os habitantes das comunidades da região e os monges brancos que se instalaram a poucas léguas a sul do rio, num dos seus afluentes, denominado Varosa. A ordem não se restringiu, porém, à parte setentrional da bacia hidrográfica do Douro, acompanhando o movimento humano e político que ao longo dos séculos XII e XIII estendeu os limites do crescente reino de Portugal para além do Tejo. Mas a concentração de um conjunto notável de
edifícios cistercienses erguidos ainda durante a idade média ao longo da antiga fronteira cristã que foi o curso do Douro (Santa Maria de Aguiar, São Pedro das Águias, Salzedas, São João de Tarouca e Santa Maria de Arouca), não pode passar despercebida na geografia religiosa nacional. De resto, a vitalidade não se perdeu durante a medievalidade, porquanto na época Moderna, para além da renovação espiritual e arquitectónica dos velhos mosteiros, dois novos espaços nasceram no mesmo território, aumentando a presença e o testemunho cisterciense na «margem» sul do Douro: São Pedro das Águias e Nossa Senhora da Assunção de Tabosa, este um instituto de monjas bernardinas sujeito aos rigores dos planaltos beirões. Não é, pois, esta relação construída no anacronismo tantas vezes aproveitado pela moderna burocracia de gabinete que, longe de compreender (ou querer compreender) a importância de se preservar o espírito
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das coisas no seu lugar original, subverte geografias e cronologias para servir os projectos turísticos. Não é o Passado, a História ou a Memória que se devem vergar às necessidades económicas do Presente, ou aos desejos futurísticos das comissões de planeamento, mas antes o desejável contrário – o de que o património possa contribuir, na sua autoridade temporal, para articular e proporcionar o bem-estar das comunidades ao seu redor e o conhecimento aos visitantes que nele procuram a individualidade perdida entre a dissolução estética da sociedade contemporânea. Constituem, pois, os termos Cister e Douro, uma feliz associação consolidada pelos estudos que ora se apresentam neste catálogo. Propício à construção de um reino o Douro, outrora fronteira, tornou-se território de acção para a vocação aculturadora da ordem de Cister – aculturação aqui aplicada no triplo sentido da palavra cultura, enquanto instituição espiritual (culto), fundada na matriz beneditina da oração e do trabalho (cultura) e cujo elementos se entregavam à construção do saber (Cultural). Confirmam-no os autores do presente conjunto de ensaios, alguns inéditos e reveladores, ora destacando expressões materiais da Ordem, através da sua missão edificadora que semeou, afora as igrejas e respectivas casas monásticas (cat. 1, 8), os marcos (cat. 5), as granjas (cat. 6) as pontes e vias (cat. 8) que são ainda o testemunho da transformação do território duriense; ora elencando a importância dos locais sob a sua jurisdição como centros de produção ou atracção artística (cat. 2, 9, 10, 13, 14), em que objectos, indivíduos, práticas sociais (cat. 15, 17) e culturais (cat. 4, 11) modelaram a expressão homogeneizante deste conjunto de mosteiros. Organizado cronologicamente (doutra forma não poderia ser, pois é impossível fugir ao curso do tempo), este catálogo procura elencar um conjunto de aspectos nem sempre presentes numa exposição convencional. Desde logo ao recusar entregar ao objecto a primazia do individual. Esse modelo de catalografia, centrado na descrição (por vezes exaustiva e exauriente) da peça, na elaboração de uma fortuna crítica e na indicação do percurso da mesma até ao seu plinto expositivo, reprime a compreensão das razões e das funções, dos meios e das práticas e, sobretudo, do seu significado total. Quando exposto numa vitrina o
objecto não respira e nós não respiramos com ele – ainda mais por que «prejudicados» pelas medidas preventivas e de salvaguarda que as boas práticas de conservação reservam (ainda bem, claro!) para que não haja contacto físico entre ambos. Neste catálogo não há somente objectos, há propostas, há ideias – umas fundadas na materialidade de um capitel (cat. 2), de um anel (cat. 3) ou na de dois pratos de faiança (15, 16), outras nas folhas de um romance (cat. 19), numa fotografia de ruínas ou nos fotogramas de um filme sobre um amor trágico (cat. 21). Mas se cada um dos exemplos indicados apresenta materialidade (e logo factualidade) - mormente através dos seus suportes (pedra, madeira, papel, cerâmica, película, etc.ª) – também acolhe leituras e interpretações diversas, mesmo quando apenas se dirige o olhar para parte desse objecto, como no caso aqui apresentado que revê com mais atenção a imagem (ou imagens) da pintura de um desaparecido conjunto de tábuas associado a Salzedas (cat. 10). Afinal de contas, não andaremos há muito a olhar para fragmentos e a apreciá-los sem os compreendermos? Aliás, não teremos já perdido demasiado tempo muito tempo a observar de perto o que ao longe se veria melhor? E sempre presos à ideia de criação (da obra) esquecemos a sua destruição que é também parte da sua materialidade, neste caso anulada ou transformada em ruína, por exemplo, para regressarmos ao fragmento que, no caso de Cister no Douro, constitui um dos tópicos mais relevantes da sua História (cat. 19). Espoliados do seu património humano logo depois de 1834 (cat. 18) os homens e mulheres dos mosteiros de Cister viram o seu acervo perder-se, em parte enquanto materialidade, mas anos e décadas o mesmo património reconverteu-se num conjunto de propostas que apontam para novos caminhos (cat. 22). Aos autores desta obra foi pedido que, no conjunto das suas aptidões e conhecimentos construíssem um diálogo com e entre os objectos, as ideias, as formas, os textos e contextos, no sentido de construir (ou reconstruir), entre palimpsestos, ruínas e fragmentos, não uma obra nova, nem definitiva, mas um alfobre de soluções para, de mais longe e com mais liberdade procurar desenhar uma imagem com maior definição do Passado, da Memória colectiva e do Património – que é, afinal, a súmula de tudo. E o Douro, na sua luminosidade característica, nos seus horizontes rasgados e na intemporalidade do seu lugar como encontro de caminhos, cremos, assim o permitiu.
NORMAS DE PUBLICAÇÃO Ao longo desta obra o leitor encontrará remissões para assuntos ou temáticas tratadas por outro autor ou autores através da indicação «cat.» seguida do número respectivo do verbete catalográfico. As referências bibliográficas e de fontes indicadas nos verbetes pela forma AUTOR, DATA: página ou fólio, remetem para a secção final «Fontes e referências bibliográficas», salvo indicação em nota final. Para a elaboração da secção «Fontes e referências bibliográficas» foi seguida a norma internacional APA com ligeiras modificações adequadas à referenciação de fontes primárias impressas portuguesas. Todos os artigos e respectivo conteúdo são da responsabilidade do(s) seu(s) autor(es), nomeadamente na utilização no Acordo Ortográfico em vigor.
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01
SÉCULOS XII-XX
MOSTEIRO DE SÃO PEDRO DAS ÁGUIAS
MOSTEIRO DE SÃO PEDRO DAS ÁGUIAS MARIA LEONOR BOTELHO
Na margem sul do rio Douro, São Pedro das Águias
construído num local que apenas uma vocação ere-
(Tabuaço, Granjinha) afirma-se pelo carácter original
mítica pode justificar. Se o movimento eremítico já
da sua implantação (figura 1) na orografia das mar-
tinha alguma expressão entre nós no século XII (MAT-
gens do rio Távora. O carácter isolado deste eremi-
TOSO, 1972), ocorreu assim uma maior receptividade
tério e que os condes portucalenses, em comunhão
à nova forma de vida monástica, cujas afinidades ao
com a paisagem agreste envolvente, estava bem
nível de um «culto da solidão» e do despojamento,
de acordo com os preceitos ascéticos da Ordem
da auto-subsistência e da comunhão profunda com
religiosa de São Bernardo de Claraval (1090-1153). É
a natureza, se tornam evidentes.
de suma importância o facto de este templo ter sido
Figura 1 | Implantação do Mosteiro de São Pedro das Águias. Foto Pedro Martins © DRCN
Tendo em conta as fontes documentais, só em 1205
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é que o Mosteiro de São Pedro das Águias foi citado
cas, com as cabeceiras dirigidas para Oriente. Como
pela primeira vez e nas atas dos Capítulos Gerais de
se sabe, existem razões teológicas que justificam a
Cister (SOUSA, 2005: 113 e BARROCA, 2000: II, I, 603). A
orientação das igrejas cristãs e que permitem estabe-
sua filiação a São João de Tarouca deve ter ocorrido
lecer uma série de paralelismos com as mesquitas e
algures durante os finais do século XII. Todavia, sabe-se
sinagogas no que toca à relação dos edifícios com
que este mosteiro já existia no século XII, sob a forma
os pontos geográficos (GUERRA, 1986). Além disso, ao
de eremitério e que os condes portucalenses, D. Henri-
românico liga-se intimamente a teoria da «teologia so-
que e D. Teresa, o coutaram com um extenso território
lar», a importância simbólica do nascer e do pôr-do-sol
(PÉREZ, 2010: 257-270).
(figura 2). Ocupando toda a largura do socalco, a en-
Implantada num pequeno balcão, entre altas fragas
trada ocidental de São Pedro das Águias está a curta
e declive abrupto sobre a margem esquerda do rio Tá-
distância do maciço rochoso, quase esbarrando com
vora, esta igreja está assim perdida em isolamento e
este. A igreja de São Pedro das Águias assume, pois,
implantada no sentido do declive por imposição da
um lugar de destaque no panorama geral do româ-
regra de orientação das construções religiosas români-
nico português, não só pela sua original implantação,
Figura 2 | Alçado sul e implantação do Mosteiro de São Pedro das Águias. Foto Pedro Martins © DRCN
mas também pelo carácter cuidado de toda a sua fábrica construtiva e escultórica, esta última irmanada do eixo Braga-Rates (BOTELHO, 2013, 513-526). Característica abadia de montanha, São Pedro das Águias ergue-se num «vale perigoso» (MARQUES, 1998: 317), conforme classificação do visitador quinhentista Bronseval. No que à igreja concerne, único vestígio remanescente da estrutura monástica que no século XVI ainda mostrava ao visitador o dormitório e as ruínas do seu claustro(figura 3), só a implantação no sentido do declive pode justificar o desnível existente entre a capela-mor e o corpo da igreja, este último ocupando uma cota bem mais elevada do terreno. Deste modo, no acesso ao interior da nave única há degraus descendentes e o seu piso interior vai baixando progressivamente em direcção à cabeceira rectangular. O carácter de isolamento é cedo notado: em 1227 documenta-se um pedido do abade de São Pedro das Águias para mudar a respectiva abadia de local, qual abadia de montanha, edificada inicialmente em local quase inacessível (MARQUES, 1998: 53). Mais tarde, aquele que veio a ficar conhecido como «antigo mosteiro» foi abandonado pelos próprios cistercienses que acabaram por fundar um «novo» nas proximidades (Tabuaço, Távora), em finais do século XVI. Tendo em conta as características arquitectónicas e escultóricas, mas também a tipologia da epígrafe do portal lateral Norte (figura 4), propiciatória e apotropaica e que transcreve, adaptando, o texto do Salmo 121,8 – «O Senhor guardará a tua saída e a tua entrada, desde agora e para sempre» (apud BARROCA, 2000, II, I, p. 600-604), é bem possível que a igreja de São Pedro das Águias tenha sido edificada no século
Figura 3 | Portal principal (pormenor). Foto Pedro Martins © DRCN
19
Figura 4 | Portal principal: pormenor dos capitéis e figuras guardiãs. Foto Pedro Martins © DRCN
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XII, muito embora a cabeceira possa ser, neste caso,
na encontramos uma nítida influência do românico do
mais tardia. A ser assim, na construção deste eremité-
foco bracarense, nomeadamente na composição de
rio não se seguiu a regra de construção de uma igreja
animais afrontados, feita no sentido das aduelas.
na época românica e que geralmente era iniciada
Em São Pedro das Águias materializa-se, assim, de
pela cabeceira. Tal facto apenas poderá ser justifi-
forma significativa, uma relação muito peculiar entre
cado pela reduzida proximidade entre a fachada
o território envolvente e a orografia que acolhe a ex-
ocidental e a escarpa abrupta, o que não invalidou,
pressão física dos vestígios remanescentes dos mos-
contudo, que no seu portal, composto por três arqui-
teiros que integraram a Ordem de Cister a partir do
voltas que se apoiam em leões-atlantes, quais figuras
século XII, assumindo-se, seguramente, como um dos
guardiãs (figura 5), se desenvolvesse uma profusa e
edifícios de mais original implantação neste contexto,
túrgida ornamentação escultórica. Na arquivolta inter-
não só em Portugal, como ainda no quadro europeu.
Figura 5 | Pormenor da inscrição do portal lateral norte. Foto Pedro Martins © DRCN
21
02
SÉCULOS XII-XX
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DAS SALZEDAS
CAPITEL DE CLAUSTRO COM LEÕES AFRONTADOS LÚCIA MARIA CARDOSO ROSAS
Exemplar de exceção no românico português, dada
mânico de Salzedas. Apesar destas afinidades entre o
a raridade de peças com escultura figurativa prove-
românico do Poitou e o capitel de Salzedas, é sabido
nientes de claustros da época, e dada a qualidade
que as comparações formais nem sempre permitem
do seu desenho e fatura, o capitel com dois leões
estabelecer relações entre oficinas ou mesmo deter-
afrontados exposto no núcleo museológico de Santa
minar a origem de um modelo, tal a amplitude da dis-
Maria de Salzedas convida a uma reflexão sobre a
seminação dos temas e das formas.
arte românica portuguesa e, mais concretamente, sobre o sentido das imagens figuradas em capitéis.
O tema dos leões afrontados é, sem dúvida, um dos mais glosados na arte românica da europa ocidental.
Embora a cabeça esculpida no capitel de Salzedas
Encontramos este tema em capitéis de portal, arco
apresente alguma ambiguidade quanto à espécie
triunfal, colunas que dividem as naves, tímpanos, re-
animal que representa, já que pode figurar um qual-
levos encastrados nas fachadas ou capitéis de claus-
quer felino, a verdade é que a presença da juba,
tro. Além do significado simbólico e iconográfico que
apenas incisa na peça, não oferece dúvidas quanto
certamente tem, a figura do leão presta-se às cons-
à identificação de um leão. François de La Bretèque
tantes que melhor caraterizam a escultura românica:
notou, a propósito da ambiguidade de algumas repre-
o gosto pela simetria, o preenchimento do campo es-
sentações da época medieval que, por muito bizarra
cultórico com a comprida cauda que permite efeitos
que seja a anatomia do leão, a juba funciona como
visuais multímodos, como o prolongamento ornamen-
o signo principal da sua identificação (BRETÈQUE, 1985:
tal do corpo do animal, o desdobramento de uma
145). Cremos, no entanto, que em alguns casos a juba
figura com uma cabeça comum nas duas faces de
não seria esculpida mas unicamente pintada. Há re-
um capitel ou a disposição que vemos na peça de
presentações de leões que não a figuram, como a
Salzedas: dois leões com uma única cabeça, escul-
de um capitel da igreja de Saint-Pierre de Parthenay-
pidos na mesma face da imposta-capitel. Este tema
le-Vieux (Poitou-Charantes) onde a inscrição LEONES
é frequente em Castela, Leão e França, nomeada-
não deixa lugar para dúvidas sobre a identificação
mente na região do Poitou onde o tema do leão, aí
dos animais. Neste caso a solução formal das cabe-
particularmente glosado, já mereceu o estudo de M.
ças apresenta semelhanças com o capitel de Salze-
I. Takeshita. Entre os vários modelos, o autor menciona
das. Num exemplar com policromia da igreja de Sain-
a solução que apresenta dois leões esculpidos num
te Radegonde (Poitou-Charantes) está representado
mesmo capitel com uma cabeça comum, indicando
um leão cuja juba é realçada a traços negros sobre
numerosos exemplares patentes nas igrejas do Poitou
fundo amarelo, assim como os olhos, o nariz e a boca,
(TAKESHITA, 1980: 43-45).
ou seja os elementos mais expressivos da figura. Este
O tema dos leões afrontados tem inúmeras varian-
exemplar tem igualmente semelhanças, tanto no re-
tes, ora apresentando leões com duas cabeças que
levo como no desenho, com o capitel do claustro ro-
se afrontam na esquina do capitel, como no exemplar
23
24
do interior da igreja de S. Pedro de Rates (Póvoa de
No românico português não é tarefa fácil entender
Varzim), ora se adossam na aresta e voltam as cabe-
o sentido das imagens e, muito menos, as possíveis re-
ças que ocupam as duas faces do capitel, ora ainda
lações temáticas entre os capitéis ou outros elementos
se mostram afrontados na mesma face de um capitel.
esculpidos presentes numa mesma igreja. O número
Noutros casos os leões engolem uma figura humana,
de capitéis românicos historiados com temas religiosos,
como no arco triunfal da igreja de S. Salvador de Bra-
míticos e profanos, não ultrapassará uma centena e
vães (Ponte da Barca) ou, em composição de mais
meia (ALMEIDA, 2001: 160) e poucos são os que apre-
claro sentido, integram a cena vetero-testamentária
sentam um claro sentido. A figuração não aparenta,
de Daniel na Cova dos Leões (charola de Tomar), um
na maior parte das vezes, fazer parte de um programa
dos temas mais comuns do românico do ocidente eu-
iconográfico.
ropeu.
As interpretações que a historiografia tem produzido
25
Figura 1 | Capitel do Claustro, Núcleo Museológico do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Foto Luís Sebastian. © Museu de Lamego, DRCN
sobre esta questão são pouco conclusivas, ambíguas
cultura dos capitéis: a noção de programa que, apli-
e até forçadas. Contudo, há exemplares que mere-
cada à escala do décor da igreja, tende a sugerir que
cem uma renovada atenção à luz das noções propos-
praticamente tudo foi previamente definido, deven-
tas por Jérôme Baschet, Jean-Claude Bonne e Pierre-
do encadear-se com o objetivo de criar um discurso
Olivier Dittmar (BASCHET et al., 2012a). A noção de
contínuo e unificado, e a noção de que a distribuição
agencement destina-se a repensar a disposição dos
dos capitéis não corresponde a qualquer organização
capitéis, ou seja as relações das suas relações, com a
coerente. A noção de agencement pretende ser mais
configuração arquitetónica e funcional do lugar ritu-
ampla, mais rica e mais subtil do que as anteriormente
al. Esta noção pretende escapar aos dois postulados
referidas (BASCHET, et al., 2012b), fornecendo um esti-
opostos que habitualmente enformam a análise da es-
mulante modelo operativo.
Se a questão da dificuldade interpretativa se coloca relativamente aos capitéis, encontramos um problema semelhante no que diz respeito aos temas esculpidos nos portais (cat. 1). Sendo a escultura românica portuguesa muito marcada pelo gosto da escultura vegetalista e geométrica, fenómeno que radica na influência das pré-existências dos séculos da Alta Idade Média e da artesania moçárabe, não é muito frequente encontrarmos programas figurativos com a erudi-
26
ção, dimensão e complexidade dos exemplares dos outros reinos hispânicos. Os portais axiais de S. Salvador de Bravães S. Pedro de Rates e S. Salvador de Ansiães são, neste sentido, e de certa forma, excecionais no panorama do românico português, embora estejam longe de apresentar a mesma escala programática e figurativa, quando comparados com outros exemplares europeus. No entanto, a raridade de programas iconográficos com temas religiosos não significa a inexistência de um sentido das imagens nos portais. Uma grande parte da escultura românica portuguesa afirma a conceção do portal como Porta do Céu ou Pórtico da Glória e tem um claro sentido apotropaico expresso ora em signos como o nó de Salomão, o pentalfa ou os discos helicoidais, ora na presença de animais míticos, como as harpias ou terríficos como a serpente, o cão e o leão (ALMEIDA, 2001: 158-159). Animal de guarda, e símbolo mais erudito que o cão ou a serpente, o leão está presente com esse sentido no portal sul de S. Pedro de Rates, na fachada ocidental de Santa Maria Maior de Tarouquela (Cinfães), suportando o tímpano do portal axial de S. Pedro das Águias (Tabuaço), em mísulas de S. Fins de Friestas (Valença) e em S. Salvador de Ansiães (Carrazeda de An-
Figura 2 | Capiteis igreja. Foto Pedro Martins © DRCN
siães), onde dois leões de olhos bem abertos servem
abade (DIAS, 1997) onde S. Bernardo pergunta o que
de gonzos na parte interna do portal principal, de-
fazem nos claustros, entre outros seres, os leões ferozes,
monstrando claramente o seu simbolismo de animal
e se refere aos capitéis esculpidos com uma só cabe-
de guarda. A propósito deste exemplar, C. A. Ferreira
ça e vários corpos ou um corpo com várias cabeças.
de Almeida refere que, conforme a crença de então,
Embora a arquitetura cisterciense tenha, em corres-
se acreditava que o leão, mesmo dormindo, estava
pondência com o texto de S. Bernardo, utilizado raras
sempre de olhos abertos (ALMEIDA, 2001: 159).
vezes a figura humana ou animal, preferindo os temas
Na simbólica medieval todos os animais são ambi-
geométricos e vegetalistas esculpidos de forma conti-
valentes, assumindo um caráter positivo ou negativo.
da, a verdade é que a escultura arquitectónica figu-
O leão pode simbolizar os animais hostis e ser a pró-
rativa surge nos mosteiros cistercienses, principalmente
pria imagem do demónio, conforme a mensagem de
a partir das primeiras décadas do século XIII. É disso
S. Pedro: sede sóbrios e vigiai, pois o vosso adversário,
exemplo, como demonstrou M. Aitana Monge Zapata,
o diabo, como um leão a rugir, anda a rondar-vos,
o mosteiro de Santa María de la Sierra (Segovia) cuja
procurando a quem devorar (1 Pe. 5, 8). A Bíblia, que
filiação em Cister foi realizada por monges vindos de
menciona o leão 157 vezes, projeta essa imagem am-
Cîteaux, em data anterior a 1219. Apesar de se encon-
bivalente. Nos salmos (Sal. 7, 3; Sal. 9, 9; Sal. 22, 13. 21;
trar em estado de ruína, mantém uma profusão de
Sal. 56, 5; Sal. 90, 13) e em outras passagens (2 Tm. 4,
capitéis animalistas. Sendo embora um mosteiro ante-
17), o leão é uma criatura claramente hostil e perigo-
riormente beneditino, a construção que se conserva
sa (GARCÍA GARCÍA, 2009: 34). Já a visão positiva do
deve corresponder a uma edificação já cisterciense
leão está presente tanto no Apocalipse, onde Cristo
(MONGE ZAPATA, 2011: 333.).
é aclamado como o Leão de Judá (Ap. 5, 5), como
A sagração de Santa Maria de Salzedas ocorrida
no Antigo Testamento onde o leão é visto como uma
em 1225, altura em que os monges terão abandona-
animal forte e valente. No Fisiólogo e nos bestiários o
do a Abadia Velha (cat. 8), mosteiro que ficou inaca-
caráter positivo do leão está relacionado com a sua
bado (CASTRO, 2014: 16-17), indica que a época da
própria natureza, sendo uma das suas virtudes a de
sua construção estava já distante dos rigores de auste-
dar vida às crias que nascem nado-mortas. Esta res-
ridade construtiva da Ordem de Cister. No interior da
surreição é interpretada à imagem do próprio Cristo,
igreja conservam-se capitéis figurativos, sob as pilastras
porque se realiza ao terceiro dia do nascimento (DUR-
da época moderna, que a recente intervenção reve-
LIAT 1985: 75).
lou. Certamente que um mais completo conhecimen-
Sendo Santa Maria de Salzedas um mosteiro da ordem cisterciense e tendo este texto como mote um capitel figurativo que pertenceu ao claustro, é inevitável referirmo-nos à célebre Apologia a Guilherme,
to das peças românicas de Salzedas merecerá uma renovada atenção.
27
03
SÉCULO XII
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO DE TAROUCA
A SACRALIZAÇÃO DOS ESPAÇOS: O ANEL DE ORAÇÃO DO MOSTEIRO DE S. JOÃO DE TAROUCA
ANA SAMPAIO E CASTRO
Fundado em 1140, através da carta de couto
do Capítulo medieval, situada na ala dos monges, na
concedida por D. Afonso Henriques, o mosteiro cis-
continuação do transepto. Esta parede apresentava
terciense masculino de S. João de Tarouca (Tarouca,
uma técnica de construção similar a todas as outras
Viseu, Portugal) foi alvo de intervenção arqueológica
medievais: duas faces de silhares graníticos sobrepos-
entre 1998 e 2007, no âmbito de um amplo plano de
tos, com uma altura entre os 40 a 60 cm e com uma
reabilitação e musealização da responsabilidade da
espessura total entre os 100 a 112 cm. O espaço entre
Direção Regional de Cultura do Norte/Secretaria de
os silhares, tendo estes uma largura entre os 20 a 50
Estado da Cultura.
cm, era ocupado por pedra de média e pequena
O mosteiro encontra-se implantado no vale do
dimensão e argamassa de baixa aderência, sendo
rio Varosa, no cruzamento de duas linhas de água,
exatamente neste local encontrado o anel. Este po-
apresentando uma planta tipicamente cisterciense
sicionamento revela que a sua deposição ocorreu
(figura1). Até à sua extinção, em 1834, toda a área
após a colocação da primeira fiada de silhares e res-
monástica foi sofrendo várias alterações com a rea-
petivo enchimento com pedra e argamassa, depre-
daptação de espaços e construção de novos edifí-
endendo-se assim que a segunda fiada terá selado o
cios a norte.
anel no interior desta parede.
A intervenção arqueológica, direcionada para a
O anel em prata (figura 2) apresenta um diâmetro
identificação dos vários espaços existentes, permitiu
de 20 mm com 3 mm de largura e 0,7 mm de espes-
a identificação da função de cada uma das salas.
sura, tendo de peso 0,85 g. A altura máxima das letras
Neste contexto o anel de oração foi exumado em
é de 1,8 mm, encontrando-se gravadas através de
2001 aquando da definição da parede norte da Sala
punção e incisão, sendo a primeira técnica mais re-
Figura 2 | Anel de oração. Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
29
deste tipo de «legendas devocionais acrósticas». De
0,2 mm de profundidade. A segunda técnica foi ape-
facto os exemplares conhecidos já para o século XVI-
nas utilizada nos segmentos circulares das letras S, B,
XVII apontam para um valor apotropaico das letras
G, R e D e com uma profundidade inferior a 0,1 mm.
contra a Peste, sendo que no caso deste anel o seu
O conjunto de letras maiúsculas estão associadas
valor pode indicar a invocação de poderes contra os
em sete grupos e separadas por sete cruzes gre-
malefícios, os incêndios e as tempestades. Esta carga
gas potentadas: + Z + DIA + SAB + Z + MGF + BFRS.
simbólica leva-nos a considerar que aquando da sua
Tipologicamente podem ser classificadas dentro do
deposição possa ter existido uma pequena cerimó-
Alfabeto Carolino, sendo que este tipo de alfabeto
nia com um sentido apotropaico e esconjurador.
iniciou-se, entre nós, na primeira metade de século
Cronologicamente a análise gliptográfica do con-
XII, dominando a segunda centúria e parte do sécu-
junto monástico medieval sugere que a igreja terá
lo seguinte. A sequência das letras corresponde ao
sido a primeira construção edificada, seguindo-se a
início de um verso, representando uma oração im-
ala dos monges, calefactório e cozinha. É também
petratória ou propiciatória (figura 3)(cat. 1, 2). Este
de pressupor que a edificação do claustro se tenha
anel reveste-se ainda de extrema importância cultu-
efetuado ao mesmo tempo, embora não tenhamos
ral, visto que, até à data, é o exemplo mais antigo
quaisquer dados gliptográficos que nos permitam
E B E C H+ R S+
A+
N S+
I D+
30
presentativa e tendo secção em bisel com cerca de
B I +S +S +A B
Figura 3. Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
+ D – Deus absconditus, dives, destructor mortis I – Imago Dei, intellectus invisibilis A – Alpha et Omega admirabilis + B – Bonitas Bonus Messias mediator propheta(m) I – Iesus iustus procedens iudex vivoru(m) et mortuoru(m) + S – Salvator Sanctus splendor gloria(m) + S – Salvator salutaris Dei, seggregatus ab omni malo + A – Altissimus Agnus Dei qui tullis peccata mundi B – Benignus spiritus animaru(m) sanctarum N – Novissimus sacerdos + S – Serpens exaltatus in cruce vos q(ui) credis in ipso n(on) pereat s(e)d habeat vitam eternam + H – Homo, hostia, hostium C – Candor lucis eternae, Christus, creator, consolator E – Emanuel egenus B – Bona radix Jesse, bonus et fidelis E – Excelsior calis factus expectatio gentiu(m) R – Redemptor rex regnum + S – Sancte Deus, Sancte fortis, Sancte et immortalis misere nobis
31
Figura 4 | Panela votiva. Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
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33
terior sugere que esta tenha sido depositada como
corroborar esta hipótese, pois a fundação original
preenchimento, resultando na fragmentação, sem
foi totalmente desmantelada dando lugar a um
deslocamento, das paredes da peça.
novo claustro de estilo maneirista. Contudo podemos
Esta deposição contrasta com a trivialidade do
apontar como baliza cronológica da construção
objeto: uma panela de fabrico comum com vestí-
destes edifícios, nomeadamente da Sala do Capítu-
gios de fuligem, fruto da sua continuada utilização.
lo, os últimos decénios de século XII e os primeiros da
A aparente banalidade poderá conter uma carga
centúria seguinte, corroborando assim a datação da
simbólica, uma vez que não serviu de recetáculo a
produção do anel de oração.
qualquer matéria orgânica então desintegrada, pois
A intencionalidade desta deposição poder-se-á re-
como foi verificado encontrava-se preenchida inte-
lacionar com um outro artefacto exumado durante a
riormente com terra. Embora a maioria das deposi-
intervenção arqueológica: uma panela de cerâmica
ções conhecidas em contextos de construção se re-
preta (figura 4) encontrada no alicerce da Sacristia
portem a moedas, têm vindo a ser detetados outros
original. Encontrava-se colocada na sua posição na-
objetos mais triviais, como por exemplo uma espinha
tural e no topo do aterro colocado para a elevação
de peixe colocada com um fragmento de cerâmica,
do piso lajeado da Sacristia. Para além do seu posi-
sob um dos ladrilhos de um piso de tijoleira relaciona-
cionamento perfeitamente vertical, o facto da terra
do com a reformulação da antiga casa da moeda
que se encontrava no seu interior ser idêntica à ex-
no Porto, em cerca de 1628.
Figura 1 | Planta do mosteiro medieval de S. João de Tarouca. Figura Luís Sebastian. © Museu de Lamego, DRCN
04
SÉCULOS XII - XIII
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE AROUCA
A MÚSICA NA ORDEM DE CISTER E OS ANTIFONÁRIOS DE AROUCA
MANUEL PEDRO FERREIRA
A música tem um papel central no culto cristão; ela
liturgia e à música religiosa. Isto foi facilitado por uma
projecta a palavra revelada, sacralizando-a e ajudan-
notação musical («notação aquitana») que represen-
do a modular o decorrer do tempo de acordo com o
tava espacialmente a posição das notas em torno de
ritmo da liturgia (FERREIRA, 2007) (cat. 13). O carácter
uma linha horizontal de referência, permitindo assim a
do antigo canto litúrgico é transversal aos vários ritos,
cada indivíduo aprender sozinho uma melodia nova.
quer do Oriente, quer do Ocidente latino. Na Penín-
Recordemos que a dimensão musical da liturgia ca-
sula Ibérica, após a unificação política imposta pelos
tólica era baseada no canto a uma só voz, ou seja,
Visigodos, impôs-se um rito «hispânico» de que há tes-
com uma única linha melódica, ainda que a execu-
temunho musical fragmentário no Palácio Episcopal
ção coral fosse dominante. No repertório romano-
de Lamego. Trata-se de um bifólio, que serviu durante
franco coexistiam então o canto gregoriano tradicio-
séculos como capa de livro, que inclui, entre outros
nal e peças de variada índole: melodias recentes para
itens, o «Sono» Refugium meum deus meus, a «Laudes»
o Ordinário da Missa, ofícios completos suscitados por
Laudate dominum a terra montes, e a leitura das La-
novas devoções ou festividades, hinos comemorativos
mentações de Jeremias (III, 1-3) para o quinto domin-
compostos em diferentes épocas, e um grande núme-
go da Quaresma (FERREIRA, 2010: 58-81). Atendendo a
ro de amplificações do canto gregoriano destinadas
que a Catedral de Lamego foi reestabelecida na sua
a solenizar ou sublinhar a sua inserção litúrgica, mor-
dignidade eclesiástica pelo rei de Leão e Castela, no
mente «tropos» e sequências de Aleluia com ou sem
terceiro quartel do século XI, é possível que este frag-
texto próprio («prosa»). Com a chegada triunfal, em
mento fosse originalmente parte de um livro de origem
meados do século XII, da Ordem de Cister, foi impor-
castelhana ou leonesa. Após 1080 deu-se a substitui-
tada e disseminada no ocidente da Península uma
ção do rito hispano-visigótico pelo rito romano-franco
versão sistematicamente depurada e bastante parti-
(o rito da cidade de Roma, reinterpretado e suplemen-
cular das melodias gregorianas e um hinário preten-
tado pelos clérigos do Império carolíngio aquando da
samente restaurado, baseado na tradição milanesa;
sua adopção na segunda metade do século VIII). As
a notação musical usada até ao início do século XIII,
antigas melodias hispano-visigóticas, registadas por
neumas do nordeste francês dispostos sobre pauta,
escrito através de neumas melodicamente imprecisos,
com características particulares, é sintomática da fi-
deixaram de ser ensinadas e foram esquecidas, com
liação em Claraval dos mosteiros cistercienses portu-
poucas excepções. Para que os clérigos pudessem
gueses (extensiva a quase todos os mosteiros galegos,
aprender as melodias romano-francas (o chamado
em contraste com o sucedido em Leão, onde Cîteaux
«canto gregoriano»), importaram-se livros, métodos de
estabeleceu o importante mosteiro de Carracedo, ou
ensino e professores, maioritariamente vindos do sul e
Castela, dominada por Morimond).
sudoeste de França (sobretudo da Aquitânia), que ti-
A Ordem de Cister distinguiu-se, nos primeiros séculos,
nha uma pujante tradição regional no que respeita à
pela definição, imposição centralizada e observância
35
36
estrita de regras em todos os campos da actividade
participarem regularmente no Capítulo Geral, reu-
monástica. Na definição dessas regras, os cistercienses
nido anualmente em Cister para discussão de casos
foram norteados pela vontade de regresso às fontes
particulares e aprovação de normas estatutárias. Por
primitivas. Assim aconteceu com a Regra de S. Bento,
vezes havia dispensas transitórias. Por volta de 1200, a
com a pronúncia do latim, com a selecção do hinos e
tolerância máxima de não-comparência para aba-
com a eleição da tradição melódica gregoriana.
dias distantes como as da Escócia era a presença a
É, de facto, sabido que na primeira metade do sé-
cada quatro anos, extensível a cinco por motivo de
culo XII a Ordem de Cister procurou chegar a uma edi-
força maior; mas já em 1211 a regra para o abade de
ção do canto gregoriano o mais fiel possível às origens;
Aguiar (então um dos mosteiros mais importantes do
para tal começou por adoptar a tradição de Metz, re-
reino de Leão) era a comparência ano sim, ano não.
putada a mais antiga, mas, perante a insatisfação de
Ora, em 1197 são desculpados pelo Capítulo Geral os
muitos monges (que recusavam admitir a autentici-
abades ibéricos que não haviam comparecido por
dade do seu idiomatismo germânico), a Ordem criou
causa das incursões muçulmanas ocorridas no centro
uma edição musical própria (FERREIRA, 2003).
da Península, mas encarrega-se o abade de Aguiar
Tal como explicado pelo próprio S. Bernardo no Pro-
de distingui-los dos que faltaram sem motivo, e que
logus in antiphonarium, os seus antecessores, por volta
devem, portanto, cumprir uma penitência (BORGES,
de 1110, decidiram que «nos louvores divinos devia
1998; CANIVEZ, 1933).
cantar-se segundo o que fosse mais autêntico»; de-
Neste contexto, a originalidade dos livros cistercien-
pois de se adoptar o antifonário da catedral de Metz,
ses copiados em Portugal é necessariamente limitada,
e tendo concluído que este era corrupto, os monges
mas pode ser identificada na adopção de tradições
continuaram a usá-lo até que num Capítulo Geral re-
locais (sobretudo relativas ao santoral), no desenvolvi-
alizado entre 1135 e 1140, «decidiram que devia ser re-
mento do culto mariano, na adição de hinos e mesmo
visto e corrigido» (GUENTNER, 1988: 152). Esta segunda
na composição polifónica (FORTU, 2014). O principal,
reforma, promulgada entre 1142 e 1147, foi preparada
senão único, centro de produção manuscrita de livros
sob a supervisão de S. Bernardo por uma comissão de
de coro em Portugal era Alcobaça. O repertório cis-
especialistas, provavelmente presidida por Guido Au-
terciense foi posteriormente adoptado pelos mosteiros
gensis, abade e autor de um detalhado tratado musi-
femininos de Lorvão e Arouca, refundados com patro-
cal, Regulæ de arte musica (MAÎTRE, 1995).
cínio real nas primeiras décadas do século XIII.
Os livros de canto, em qualquer parte da Europa
A adopção do uso Cisterciense implicava o recur-
onde houvesse mosteiros cistercienses, deviam copiar
so aos livros, ao conselho e à instrução providenciada
até ao mínimo detalhe o modelo centralmente apro-
por monges cistercienses. O mosteiro cisterciense mais
vado. As actualizações das rubricas e do repertório
próximo, S. João de Tarouca era, a par do mosteiro de
eram facilitadas pela obrigatoriedade de os abades
Alcobaça, um dos mais importantes mosteiros portu-
gueses. Os manuscritos de Arouca, contudo, nunca o
grande diversidade de opiniões, muitas vezes infun-
mencionam. Em contrapartida, o testamento da Rai-
dadas. A óbvia pertença deste par de antifonários a
nha Mafalda beneficia Salzedas, perto de Lamego, e
uma série de manuscritos musicais que inclui também
Alcobaça a sul. Dona Urraca Viegas de Tuías, dama
o Gradual de Lorvão (actualmente na Torre do Tom-
importante da região de Lamego, ligada ao mostei-
bo), o antifonário do mosteiro burgalês de Las Huelgas
ro de Salzedas, onde foi sepultada, havia educado
e o fragmento musical nº 11 da Biblioteca Nacional,
D. Mafalda como se fora sua filha, deixando-lhe em
faz com que a datação deva ter em conta toda a
herança grande parte das suas propriedades. Pela
série, bem como a produção manuscrita alcobacen-
leitura do testamento de D. Mafalda, tomamos co-
se que lhe serve de contexto, o que aponta para a
nhecimento de que Alcobaça lhe devia uma quantia
última década do século XII (FERREIRA, 2013). A análise
considerável, embora a tivesse presenteado com uma
das iniciais iluminadas revela a presença de um estilo
Bíblia. É assim provável que Alcobaça tenha fornecido
decorativo típico de Alcobaça — a avaliar pelos res-
livros litúrgicos a Arouca e ajudado a implementar as
pectivos Missais e Legendário —, e próximo daquele
suas novas rotinas monásticas.
que, desenvolvido ao longo do século XII, se encontra
Arouca conserva um importante grupo de manuscritos litúrgicos. Entre estes, avultam quatro códices
disseminado por volta de 1200 a norte e sul do Canal da Mancha (MIRANDA, 1995, 1998; FREILE, 2007).
que perfazem dois antifonários completos, compre-
Quanto ao par 22/23, o seu estilo decorativo, se
endendo cada um deles dois volumes; o conjunto
bem que relativamente rico, é claramente diferente
mais antigo — Mss. 21/25 (olim 1*/2*) — é datável dos
do par 21/25 (as iluminuras encontram paralelos, por
finais do século XII, e o restante — Mss. 22/23 (olim
exemplo, no Sacramentário de Fitero, de c. 1200); a
3*/4*) —, do primeiro quartel do século XIII (FERREIRA,
sua origem é possivelmente espanhola. Este não seria
2009). O facto de que um coro monástico requeria
caso único em Arouca, pois o seu Colectário, estu-
dois antifonários, um para cada lado do coro, e a
dado por Manuel Joaquim, foi importado da Galiza
circunstância de nenhum outro antifonário ter esta-
(JOAQUIM, 1957); neste manuscrito, a análise dos ín-
do, que se saiba, em uso em Arouca, sugere que am-
dices litúrgicos permite concluir que o conjunto das
bos os antifonários acima referidos estão em Arouca
capítulas e colectas e, provavelmente, a secção do
desde c. 1225; a análise interna dos mesmos aponta
Ofício de defuntos datam de c. 1228 ou copiam sem
para a mesma conclusão.
alteração um modelo desse ano, enquanto o calen-
Os volumes 21/25 são um dos mais brilhantes testemunhos da tradição manuscrita de Clairvaux, trans-
dário e as notas de cômputo que encabeçam o volume foram escritos em 1231.
plantada para Alcobaça primeiramente aquando da
Não são somente a impressionante qualidade artísti-
sua fundação, e novamente em finais do século XII.
ca, a data recuada e o bom estado de conservação
A sua datação e a sua origem têm dado azo a uma
que fazem dos antifonários 21/25 de Arouca testemu-
37
38
nhos artísticos e musicais de primeira ordem, mas tam-
duas peças a duas vozes acrescentadas ao Gradu-
bém a presença, no Ms. 25, de uma adição rara: um
al de Hauterive (Oxford, Bodleian Library, lat. liturg.
hino a São Bernardo, escrito para duas vozes por volta
d.5), que, embora incaracterísticas, se costumavam
de 1225, num estilo bastante arcaico para a época.
considerar o primeiro exemplo histórico conhecido de
O códice recebeu nova encadernação em 1483; um
polifonia cisterciense. O discante a S. Bernardo passa
bifólio solto, escrito nas páginas interiores, foi integrado
portanto a partilhar com estas peças o estatuto de
no volume e corresponde desde então aos seus fólios
mais antiga polifonia cisterciense, sendo ainda, das
2 e 3. No fólio 2v, vêem-se dois hinos em honra de S.
três composições, a única a ilustrar uma devoção ca-
Bernardo, copiados na primeira metade do século XIII,
racterística da Ordem de Cister (edição musical e gra-
provavelmente por altura da introdução em Arouca
vação em CD in FERREIRA, 2008).
do uso monástico cisterciense (FERREIRA, 2010: 212-54).
Apresentam-se de seguida alguns excertos do texto
O hino que encima o fólio, «Exultat celi curia», aparece
musicado, numa tradução semanticamente exacta,
com notação musical para duas vozes, dispostas uma
embora poeticamente aproximativa:
por cima da outra. Apesar do aspecto modesto, trata-
Exulta a corte do Céu, alegre com júbilo festivo;
se do documento polifónico mais antigo até hoje en-
folga a Santa Madre Igreja com o seu santo filho.
contrado em Portugal. Para além deste facto, que por
Bernardo, desde pequeno, grande virtude mostrou;
si só lhe asseguraria uma importância excepcional, o hino de Arouca é sensivelmente contemporâneo de
do mundo, em virginal graça, vencedor desabrochou.
Figura 2 | Arouca, Museu de Arte Sacra, Ms. 21 (Antifonário, c. 1195). Início do responsório Quadraginta dies et noctes. Fotografia Diogo A. Veiga © CESEM.
F igura 1 | Arouca, Museu de Arte Sacra, Ms. 21 (Antifonário, c. 1195). Início do responsório Angelus Domini descendit. Fotografia Diogo A. Veiga © CESEM.
[...] Amante da solidão, servir a Deus desejava;
XVII, sem cota, com encadernação mole de carnei-
palavras de admirável doçura escrevia, lia e ensi-
ra castanha. O volume transmite composições sacras normalmente a 4 vozes (por vezes a 5 ou a 3 vozes) de
nava. [...] Bernardo, que as tentações do mísero mundo
cem identificados incluem o célebre Cristóbal de Mo-
tinha desprezado, ofereceu, da vida, o perfume, como um perfumoso
rales (representado por um raro Magnificat), os compositores Manuel Mendes e Francisco Vellez, ligados a
nardo. [...] Maravilhosa era a sua simplicidade e grande a
Évora, e Aires Fernandes, ligado a Coimbra, todos do século XVI; e ainda músicos activos por volta de 1600,
sua paciência; enorme era a sua caridade e também a sua sapi-
como António de Oliveira, Simão dos Anjos de Gouveia e Frei João Leite Azevedo, também conhecido
ência. Em louvor da santa Virgem Maria, livros fez editar;
por D. João dos Mártires; completa a lista de autores
da Mãe de Deus e do Homem nos legou louvor
um enigmático «Brasil». O códice foi recentemente objecto de uma dissertação exemplar, que demons-
exemplar. Anote-se ainda a presença em Arouca de um livro de música polifónica da primeira metade do século
vários autores, muitos deles anónimos; os que apare-
trou a sua vinculação interna ao ambiente cisterciense (CARVALHO, 2012).
Figura 3 | Arouca, Museu de Arte Sacra, Ms. 25 (Antifonário, c. 1195). Início do responsório Vidi speciosam sicut columbam. Fotografia Diogo A. Veiga © CESEM.
Figura 5 | Arouca, Museu de Arte Sacra, Ms. 23 (Antifonário, c. 1220). Pormenor: iluminura com figura de rainha (D. Mafalda?). Fotografia Diogo A. Veiga © CESEM.
F igura 4 | Arouca, Museu de Arte Sacra, Ms. 22 (Antifonário, c. 1220). Cânticos para primeiro domingo do Advento e sábado anterior, incluindo o início do responsório Aspiciens a longe. Fotografia Diogo A. Veiga © CESEM.
39
05
SÉCULO XII
CIMBRES COUTO DO MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS
O COUTO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS: O MARCO TERRITORIAL DE CIMBRES ANA SAMPAIO E CASTRO
Durante a Idade Média a delimitação de domínios
2 – Caminhos: «strada mourisca», «viam couam» e
era comummente demarcada fisicamente através
«viam antiquam» (AZEVEDO, 1958: 315-316; 354-
da colocação de marcos ou padrões de pedra. Os
355).
mais usuais são aqueles de secção circular e dispos-
3– Termos territoriais: «divisionem Sancti Felicis»,
tos verticalmente no solo, apresentando uma ins-
«cautum Palacioli et Sever», «cautum de Leo-
crição no topo relativa ao proprietário do domínio.
mir», «parte per Serzedo», «dividit per Sancto
Eram colocados em locais onde não existiam qual-
Martino das Caas», «Ceimada», «Lamego» e
quer tipo de elementos geográficos ou humanos que
«Hermamar» (AZEVEDO, 1958: 291-292; 315-316;
pudessem servir de limite, sendo escolhidas áreas onde poderiam ocorrer disputas territoriais com outros senhores ou populações.
354-355). Uma das primeiras notícias referentes ao couto de Argeriz data de 1135, onde Egas Moniz e Teresa Afon-
A fixação dos limites de um couto seguia pelo me-
so adquirem propriedades em S. Pedro e Cimbres1
nos dois tipos de elementos – geográficos e humanos.
(cat. 9). Argeriz agregava um vasto território, corres-
No primeiro podem-se incluir referências a linhas de
pondente, grosso modo, a cinco freguesias atuais:
água ou elevações. O segundo apresenta normal-
Ucanha, Granja Nova, Vila Chã da Beira e Salzedas
mente como limites monumentos funerários, cami-
do concelho de Tarouca e Cimbres do concelho de
nhos, termos territoriais de outros domínios ou estru-
Armamar, sendo detido por Egas Moniz e após a sua
turas antrópicas.
morte a sua segunda esposa, Teresa Afonso, herdou
No caso do couto do mosteiro cisterciense masculi-
metade (FERNANDES, 1984: 28).
no de Santa Maria de Salzedas observamos o recurso
Após a fundação do mosteiro de Santa Maria de
a elevações: «montem qui dicitur Aveis», «montis qui
Salzedas e doação do seu couto por Teresa Afonso, o
dicitur Maoes», «sumitatem de Lamelas», «Saxo», «Poi-
topónimo Argeriz desapareceu, sendo substituído por
jo», «Ledanarium», «montem de Almudafaz», «Montem
aquele de origem monástica.
Rasum» (AZEVEDO, 1958: 291-292; 315-316; 354-355) e
Entre 1152 e 1164 sucedem-se vários documentos
a linhas de água: «fontem de Felmiro», «Barosa», «pe-
relativos ao couto de Argeriz, sendo referidos os seus
lago de Mauriano», «fontem de Salgueiro», «aquam
limites em três deles. O primeiro, de 1152, é a carta
de Torno», «fontem de Centanaes» (AZEVEDO, 1958:
de doação de D. Afonso Henriques a D. Teresa Afon-
291-292; 315-316).
so. No segundo, de 1155, D. Teresa Afonso recebe
Relativamente a elementos humanos existe a presença de: 1 – Monumentos funerários: «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de Pelagio Randis» (AZEVEDO, 1958: 315-316).
permissão real para a transferência do couto para o mosteiro de Salzedas. E o documento de 1161 onde D. Afonso Henriques outorga a carta de «firmidão» ao mosteiro com a isenção dos direitos reais. Analisando o trio documental e iniciando o percur-
41
so do término do couto a sul (figura 1), verificamos as
laciolo et revertitur in torno et quomodo dividitur
seguintes referências:
cum Sever atque cum seixas», correspondendo
1 – «per portum de Alvares», podendo ser atribuída
à divisão com o couto de Passô («palaciole»),
à passagem do rio Varosa, provavelmente de
sendo situada na junção do rio Torno com a ri-
poldras, junto à atual localidade de Dalvares
beira de Santiais. Este limite segue o curso do
(FERNANDES, 1985: 57).
rio Torno («per aquam de torno»), dividindo tam-
2 – «per illum montem qui dicitur Averiz» ou «et per
bém com o couto de Sever e por Seixas.
montem de Almudafaz», correspondendo à
9 – «et dividit per illum cautum de Leomir et parte
elevação junto à presente povoação de Val-
per Serzedo», «postea dividit cum Leomir per la-
devez.
ginam de seixa» ou «et cum Serzedas», refere-se
3 – «per illum fontem de felmiro» ou «fonte de Sal-
à partição pelo couto de Leomil e pela atual
gueiro», possivelmente alude a uma nascente
freguesia de Sarzedo (concelho de Moimenta
de uma linha de água que corre em direção ao rio Varosa.
da Beira). 10 – «et per sanctum Martinum de Cas», «deinde ad
4– «et quomodo dividitur cum summitatem illius
sartaginem», «postea ad fontem de salgueiro»,
montis qui dicitur Maoes», reporta-se à eleva-
«deinde per ledanarium» ou «et cum sancta
ção junto do atual sítio de Mões.
Maria de Lobazaim et cum sartagine et cum
5 – «et per illam divisionem sancti Felicis» ou «dein-
Sancto Martino per vallem de Cadellas et per
de ad cautum de cruzilada de sancto Felice»,
illum saxum de Ledenario». Limite pelo couto
refere-se a Sanfins, povoação com términos
de S. Martinho das Chãs, posteriormente in-
próprios nesta época (FERNANDES, 1985: 99).
tegrado no couto de Santa Cruz de Lumiares
6 – «per summitatem de Lamellas», corresponden-
(FERNANDES, 1985: 100), sendo «sartaginem»
do à elevação nas proximidades do lugar de
ou «sartagine» a fronteira oeste, entre os sítios
Lamelas.
de Lameira Longa e Carvalhos, do couto de
7 – «et vadit per illum furatorium», «deinde ad capi-
Santa Maria de Lobozaim. Este último, embora
ta de furadorio» ou «et per caput de furadoiro»,
tendo-se perdido o topónimo, corresponde-
embora presentemente não exista uma corres-
ria à localidade de Castelo, no concelho de
pondência para este topónimo podemos supor
Moimenta da Beira (FERNANDES, 1985: 58). A
tratar-se do cume («caput») de algum outeiro
referência a «fontem de salgueiro» provavel-
denominado de «furatorium».
mente relaciona-se com a nascente da ribeira
8 – «et dividit per illum cautum palaciole et Sever
de Temilobos e «per vallem de Cadellas» ao
et per illas sexae», «deinde per aquam de torno
vale formado por esta mesma linha de água.
cum palaciolo» ou «quomodo dividitur cum pa-
«Ledenario» ou «ledanarium» reporta-se ao
Figura 1 | Limite do couto do mosteiro de Sta Maria de Salzedas. Figura Ana Sampaio e Castro
43
monte Ladário, atual Senhora da Graça (Cim-
2) e 2 - que, possivelmente, aqui foram colo-
bres, Armamar), ainda assim denominado por
cados evitando disputas territoriais com estas
Fr. Baltasar dos Reis (2002a: 12) nos inícios de século XVII.
44
povoações. 12 – «et per illo poio et venit ad Barosam», «postea
11 – «et per illa strada mourisca et per Ceimada»,
per Laginam», «deinde per valem viridem», «di-
«postea per viam covam», «postea ad arcam
viditur cum Lamego per pelago de Mauriano»
de Pelagio Randis», «postea ad arcam de
ou «atque cum illa ficulnea de area petrina et
Mendo hermezendis», «deinde aqua vertente
cum Lameco per vallem viridem et intrat in Ba-
cum Queimada» ou «et cum sancta Cruce per
rosam». «poio» deverá corresponder ao monte
aucturas atque cum Hermamar et per illam ar-
onde se ergue a capela de S. Lourenço, iden-
cam de Pelagio Randiz et per illam viam anti-
tificando-se aqui também um marco (Marco
quam usque in montem rasum». A referência a
5). «per Laginam» adequa-se ao limite anterior
«strada mourisca», «viam antiquam» ou «viam
a este marco, entre o monte designado por
covam» corresponde a uma via que de Quei-
Raso e a capela de S. Lourenço. «vallem viri-
madela ligava a Santa Cruz de Lumiares (CAS-
dem», topónimo atualmente inexistente, pode
TRO, 2014: 46). «arcam de Pelagio Randiz» e
ser interpretado como o vale imediatamente
«arcam de Mendo hermezendis» sugere como
a seguir à elevação da capela de S. Louren-
limite túmulos de senhores que nesta época
ço, dirigindo-se para o rio Varosa. «pelago de
eram colocados em locais de passagem (FER-
Mauriano» é o atual Poço de Mourão, junto
NANDES, 1985: 59), tendo posteriormente sido
ao rio Varosa. «ficulnea de area petrina» é de
substituídos por marcos (Marco 3 e 4). «sancta
difícil interpretação, podendo contudo cor-
Cruce per aucturas», «Ceimada», «Hermamar»
responder à fronteira entre o monte Raso e a
e «montem rasum» refere-se aos términos de
capela de S. Lourenço, pois a linha posterior
Santa Cruz de Lumiares, Queimada, Armamar
é Lamego e «vallem viridem». O limite oeste
e monte Raso. Este limite está bem definido no
do couto era definido pelo rio Varosa até ao
terreno através de marcos - Marco 1 ( figura
primeiro ponto.
Figura 2 | Marco de Cimbres. Foto Luís Sebastian. © Museu de Lamego, DRCN
1. «in termino de Argeriz subtus Ledanarium discurrentibus rivulis Torno at Barosa» (FERNANDES, 1995: 204).
45
06
SÉCULOS XII - XIX
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE AGUIAR
AS GRANJAS DE SANTA MARIA DE AGUIAR: O CASO DA FOZ DA RIBEIRA DE AGUIAR LUÍS CORREDOURA
A presença da Ordem de Cister ao longo das mar-
as separava. No entanto, dado o facto de a Granja
gens do Douro ocorreu em vários pontos, consoante
da Foz da Ribeira de Aguiar ainda hoje estar intima-
a localização do mosteiro (cat. 1) e a facilidade de
mente associada à maior riqueza local, i.é, à produ-
acesso ao curso de água. Em relação ao cenóbio de
ção vitivinícola, o presente ensaio incidirá sobre esta
Santa Maria de Aguiar , situado nas proximidades de
propriedade, em tempos património dos monges de
Figueira de Castelo Rodrigo, c. de 20km a sul do Dou-
Cister, uma das onze granjas que outrora estava asso-
ro, as propriedades que este complexo monástico
ciadas ao mosteiro em questão.
1
detinha junto ao grande curso de água poder-se-iam
Em termos de implantação, a mencionada granja
resumir, basicamente, a duas: Granja de S. Cibrão e
situava-se na freguesia de Almendra, concelho de
Granja e Pesqueira da Foz da Ribeira de Aguiar. Em
Vila Nova de Foz Côa, numa «península» bordejada
termos geográficos, não era grande a distância que
pelo rio Douro, a norte, e pela ribeira de Aguiar, a sul
47
F igura 1 |Granja e Pesqueira da Foz da Ribeira de Aguiar. Extracto da carta militar nº141 à escala aprox. 1: 50 000 -. Cerca de 3Km a nascente da actual «Quinta da Granja» localizase o monte Castelo, sítio onde se encontram as antigas ruínas da cidade de Calábria. (imagem a partir de cartografia do Instituto Geográfico do Exército).
e poente, encontrando-se alcantilada (figura 1) no alto de declivosas encostas que descem até ao leito destes cursos de água. O seu acesso realiza-se através de um caminho de terra batida que entronca na E.N. 322 e que também permite chegar às ruínas existentes nas imediações do antigo povoado conhecido como Calábria. Presentemente propriedade da empresa Sogrape, ligada à produção vinícola e comércio de vinhos, a «Quinta da Granja» – designação actual do local – estende-se por cerca de 80
48
hectares cobertos de vinha. Situada num local privilegiado, não obstante os sinuosos acessos, apresenta um grande potencial para exploração turística, graças à paisagem envolvente, e fundamentalmente vitivinícola. Das construções existentes, há a salientar o complexo de apoio à quinta, localizado no extremo poente da mesma, sobre o local de encontro das águas da ribeira de Aguiar com o rio Douro. Edificado num estilo puramente vernacular, não foi possível averiguar como é a distribuição dos espaços interiores, situação que também impediu um melhor discernimento quanto à antiguidade das construções, supondo-se que o existente remonta, quanto muito, ao século XIX – quiçá edificado sobre outras mais prístinas –. Uma série de construções avulsas, usadas como dependências pelos trabalhadores agrícolas junto à construção principal também desvirtuam o local, impedindo uma melhor percepção da verdadeira dimensão da (figura 2) implantação do edifício principal. Na margem oposta àquela onde se situam estas construções, existem umas ruínas interessentes cujo acesso se afigura quase impossível. Não se sabe se pertenceram ao complexo cisterciense e qual terá sido a sua função (figura 3). Em termos históricos, a Granja da Foz da Ribeira de Aguiar está indissociavelmente ligada à história da Granja de S. Cibrão, visto ambas terem sido a «ponta da lança» do Mosteiro de Santa Maria de Aguiar nas margens do Douro, rio sobremaneira impor-
Figura 2 | Ortofotomapa da actual «Quinta da Granja». A parte urbana da quinta localiza-se no extremo poente da propriedade. (Serviços Técnicos da C. M. de Vila Nova de Foz Côa)
49
tante para o escoamento da sua produção agrícola.
concelho de Castelo Rodrigo, sendo a mesma en-
De igual modo, não se poderá olvidar a importância
dossada ao abade Raimundo, ao seu prior Hilário e
que as pesqueiras situadas nesta granja terão tido no
a todo o mosteiro de Aguiar, na qual é confirmada a
fornecimento de peixe aos monges de Aguiar, condi-
doação da granja da foz de Aguiar e anunciado que
cionados que estavam por uma dieta que lhes restrin-
ninguém poderá pescar nas suas levadas4. Outra referência digna de nota que surge na docu-
gia o consumo de carne.
50
Referênciada pela primeira vez no ano de 1176,
mentação do arquivo de «Aguiar» depois das men-
quando o rei Fernando II de Leão doa esta pesqueira
cionadas prende-se com o aluguer que o mosteiro
ao Mosteiro de Santa Maria de Aguiar, representado
fez, em 1466, desta pesqueira e dos seus moinhos a
pelo abade D. Hugo2, a doação da Granja da Foz
um tal Gil Fernandes5.
de Aguiar acabaria por ser confirmada em 1217 pelo
No «Tombo da Fazenda do Mosteiro de Nª Sra de
sucessor do rei de Leão, D. Afonso IX3.
Aguiar, 15436» é referido que «a foz de Aguiar é uma
Em 1222 é emitida uma carta pelos alcaides do
Figura 3 | Vista nascente da parte urbana da «Quinta da Granja» p
quinta que o Mosteiro tem no Douro a qual parte [a
p
F igura 4 | Vista panorâmica da encosta sul da «Quinta da Granja», repleta de vinhedo. A ribeira de Aguiar delimita este lado da propriedade.
ribeira de
descrição dos limites desta quinta foi truncada (figura
rias do Mosteiro de Santa Maria de Aguiar da Con-
4) na restante folha] (…). A Foz de Aguiar traz arren-
gregação de Santa Maria de Alcobaça da Ordem
dada Francisco Martins, morador em Almendra, por
de S. Bernardo», redigidas em 1785, refere que nesta
nove anos que se começaram por S. Marinho de mil
data «ainda o Mosteiro possui esta quinta que borde-
quinhentos e quarenta e dois anos e há-de pagar
ja os rios Aguiar e Douro6».
cada ano trinta fanegas de trigo e cem barbos de
Desamortizada aquando da extinção das ordens
dois palmos e duzentas e cinquenta bogas, um bode
religiosas em 1834 (cat. 18), passou pelas mãos de
e quatro perdizes e o pão por Santa Maria de Agosto
vários proprietários, até ter sido adquirida há alguns
e as perdizes pelo natal e o bode pela Páscoa e as
anos pela empresa Sogrape Vinhos. A actual «Quinta
bogas e barbos pela Quaresma».
da Granja», cujo nome demonstra bem ser uma remi-
Fr. Manuel de Figueiredo, «cronista dos cistercienses
niscência de outros tempos, é nos dias presentes uma
de Portugal e Algarves», nas suas «Abreviadas Memó-
das principais unidades produtoras de uvas para vinho desta empresa.
1. Fundado ou filiado algures entre 1171 e 1175. 2. In AN/TT, “Aguiar”, m.7, doc.12. 3. In AN/TT, “Aguiar”, m.1, doc.28. “Adefonsus dei grati Legionis Rex. Totis qui litteras istas uiderint Salutem et gratiam. Sapiatis quod/Ego Concedo et Autorgo Abbatj et fratribus de Aguilar illas pesqueiras de fouze de / Aguilar.ut habeant eas in pace et possideant.sicut unquam melius habuerunt.et possederunt./ liberius.De illa autem uinea que ibi est. Mando quod adueniant se cum suis dominis.et de / beneplacito eorum comparent eas si uoluerint comparare.Et defendo firmiter et incauto quod / nullus faciat predictis Abbatj et fratribus de Aguilar tortum nec forciam nec demagis.super / predictis pesquariis.Et qui inde aliud fecerit. iram meam habebit et quantum prendiderit dup / plabilt.et mihi.C.Morabitinos pectabit.Datum in Almeida.X.die Januarij.(…) ». 4. In AN/TT, “Aguiar”, m.3, doc.139. 5. In AN/TT, “Aguiar”, m.6, doc.15. 6. In AN/TT, “Aguiar”, m.12, doc. 31. 7. Cit. por Júlio António BORGES (2001: 215).
51
07
SÉCULO XV
UCANHA COUTO DO MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS
A PONTE FORTIFICADA DE UCANHA
ANA SAMPAIO E CASTRO
Classificada Monumento Nacional pelo decreto
apresenta balcões, assentes em cachorros, com ma-
de 23 de Junho de 1910 (DG, 1ª série, n.º 136) a ponte
tacães servindo para o lançamento de projéteis. Este
fortificada de Ucanha (Ucanha, Tarouca), construída
tipo de balcões surge no final de século XIII, durante
sobre o rio Varosa, constitui um dos raros exemplares
o reinado de D. Dinis, tornando-se popular durante
ainda sobreviventes deste tipo de construções (figura
todo o século seguinte e prolongando-se até ao iní-
1). A ponte, em cavalete, apresenta quatro arcos
cio de século XVI (NUNES, 2006: 56). Atualmente o
quebrados e dois talhamares triangulares a montan-
topo da torre tem telhado de quatro águas, obra
te. A torre, de planta quadrada, tem o piso térreo
realizada pela DGEMN nos finais dos anos 30 do sé-
vazado por arco de volta perfeita, sendo o interior
culo passado e enquadrada em várias intervenções
constituído por três pisos distintos. Os alçados oeste
aqui efetuadas por esta instituição, nomeadamente
e este do primeiro piso têm pequenas frestas para a
obras de demolição e reconstrução dos pisos interio-
entrada de luz. No segundo andar são observáveis
res. Em fotografia publicada em 1933 nas «Memórias
janelas geminadas de perfil gótico nas faces oeste
de Mondim da Beira» (VASCONCELLOS, 1933: 83, 85),
e este. O centro dos quatro alçados do terceiro piso
a torre ainda conserva as ameias originais, quatro em
F igura 1 | Vista geral da ponte fortificada de Ucanha. Foto Pedro Martins © DRCN
53
54
cada aresta e uma a meio de cada face, sendo lar-
bre o rio Côa, apresenta um tabuleiro em cavalete,
gas e altas, apontando para uma solução caracterís-
três arcos quebrados, dois talhamares triangulares a
tica do século XV (NUNES, 2006: 38-39).
montante e dois contrafortes escalonados a jusante,
Marcando a entrada no couto do mosteiro de San-
sendo constituída por silhares siglados. A torre, situa-
ta Maria de Salzedas e como se lê em inscrição loca-
da a sul, de planta retangular, atualmente só apre-
lizada na face exterior este, a torre foi edificada por
senta o andar térreo, não se entrevendo qualquer
iniciativa do então abade do mosteiro, D. Fernando,
silhar siglado. Alguns autores atribuem uma cronolo-
que ocupou o cargo entre 1453 e 1474 (VASCON-
gia anterior ao Tratado de Alcanices (1297), embo-
CELLOS, 1933: 84). Contudo, Fr. Bernardo de Brito (BRI-
ra ainda dentro do reinado de D. Dinis, motivando
TO, 1602: 292) aponta a data precisa de 1465 para
a sua construção o controle eficaz do trânsito nesta
a edificação da torre, embora não apresente dados
importante passagem entre dois reinos (BARROCA,
concretos que refiram este ano específico. Coloca-
2008-2009: 238). Para além desta só chegaram até
mos a hipótese da ponte atual já existir aquando da
nós representações iconográficas ou descrições,
construção da torre, pois como é observável no alça-
como no caso da ponte fortificada de Barcelos, que
do oeste a torre foi adossada à ponte (Figura 2), para
apresentava uma torre quadrada com três arcadas
além de que as marcas de canteiro presentes na torre são distintas daquelas encontradas nos silhares da ponte (figura 3 e 4). Até ao foral de D. Manuel (1504) que proíbe o pagamento de portagem, a torre serviria como depósito de géneros pagos pelos viandantes que a transpunham. Por aqui passava a via em direção a Lamego, para noroeste, e para sudeste para a zona de Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira, sendo provável a sua filiação romana, pois por aqui passaria uma estrada ligando Lamego à Beira Interior (CASTRO, 2013: 110). É assim possível a existência, no local da atual ponte de Ucanha, de uma travessia de cronologia mais recuada, ainda que não restem qualquer tipo de vestígios materiais, indicando contudo uma construção em materiais perecíveis. Em Portugal apenas subsiste mais um exemplo desta arquitetura, a Ponte de Sequeiros, no Sabugal. So-
Figura 2 | Alçado oeste da torre. Fotografia Ana Sampaio e Castro
e associada ao Paço Condal (FLORES, 1999: 305). A
Em França os exemplares que ainda subsistem datam
de Ponte de Lima, com uma ponte constituída por 24
todos entre finais de século XIII e a centúria seguinte
arcos e uma torre quadrangular em cada extremida-
como a Ponte de Vieux (Orthez), Valentré (a oeste
de ou de Amarante, que exibia uma torre de defesa
de Cahors) e Sospel (Côte d’Azur). Na Grã-Bretanha
quadrangular situada na margem esquerda do rio e
restam duas construções deste género, a Ponte de
destruída em 1763 (SARDOEIRA, 2009: 8).
Warkworth, a norte de Newcastle, dos finais de sécu-
Na Europa são conhecidas em Espanha as pontes
lo XIV, inícios do século XV e Monmouth no País de
fortificadas de Besalú (Gerona), reformada no século
Gales, tendo aqui a torre sido adossada nos finais de
XIV e com a mesma cronologia a de Frías (Burgos).
duzentos, inícios de trezentos.
55
Figura 3 | Quadro com as marcas de canteiro mais comuns da ponte. Figura Ana Sampaio e Castro
Figura 4 | Quadro com as marcas de canteiro presentes em silhares e aduelas da torre. Figura Ana Sampaio e Castro
08
SÉCULOS XVI - XXI
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS
O MOSTEIRO E O BURGO
ANA SAMPAIO E CASTRO NUNO RESENDE
O lugar do Burgo, situado às portas da igreja e mos-
estava o dito lugar de Argeriz. A reforçar a hipóte-
teiro de Santa Maria de Salzedas (figura 1) constitui a
se de um povoado antigo neste local temos ainda
materialização urbanística das relações de indivídu-
as evidências arqueológicas. De facto, na encosta
os leigos ao serviço da comunidade cisterciense, ou
oeste da elevação da capela de Nossa Senhora da
dela dependentes, quase desde a sua fundação, no
Piedade, encontram-se numerosos vestígios de frag-
século XII, até à atualidade (figura 3 cat. 22).
mentos de cerâmica comum medieval e cerâmica
Aquando do início de construção do mosteiro, em
de construção. A este exemplo junta-se o do Burgo
1168, provavelmente existiria já um pequeno aglo-
próximo do mosteiro de S. João de Tarouca, situado
merado populacional nas suas proximidades. Como
a poucos quilómetros de Salzedas, que já existiria an-
refere A. de Almeida Fernandes (FERNANDES, 1995:
tes do estabelecimento monástico (SEBASTIAN et alii,
203) o território, designado por Argeriz, que se tornou
2008: 143).
couto monástico tinha como povoado principal Villa
É após a implantação do mosteiro que este núcleo
Plana de Argeriz, situado no sopé da elevação onde
se terá transferido para o local presente, designado
se ergue atualmente a capela de Nossa Senhora da
por Burgo (figura 2). Atualmente este pequeno aglo-
Piedade. Esta capela, edificada no século XVIII sob
merado, na sua maior parte desabitado, é constituí-
égide monástica, deverá ter substituído uma mais an-
do por um conjunto de estruturas justapostas, onde o
tiga, possivelmente a igreja de S. Salvador de Argeriz
espaço privado é mais representativo, originando um
a qual, segundo um documento datado de 1153, o
tecido denso e irregular com ruas estreitas, sinuosas e
seu presbítero trocou pela de S. Silvestre de Britiande
descontinuadas (figura 3).
(FERNANDES, 1984: 28).
De um modo geral este conjunto apresenta habi-
Uma das primeiras referências documentais onde
tações com dois pisos, paredes exteriores em alvena-
encontramos Villa Plana de Argeriz data de 1144
ria de pedra no andar inferior, normalmente utilizado
(FERNANDES, 1995: 204) e em 1150 é mesmo referida
para guarda das alfaias agrícolas e/ou de gado, e
a villa de Argeriz numa carta de venda de propriedades efetuada a D. Teresa Afonso (FERNANDES, 1984: 15). Fr. Baltazar dos Reis (2002: 23-24) no manuscrito Breve relação da fundação e antiguidade do Mosteiro de Santa Maria de Salzeda de início de século XVII menciona um local denominado por vinhas de Argeriz, localizado num vale, junto da igreja de S. Salvador de Argeriz, edificação então ainda existente, onde no dito sittio de Argeriz se achão oje alicesses e vestigios de edificios antigos, aonde parece que
Figura 1 | Fachada a igreja de Salzedas. Foto Pedro Martins © DRCN
57
58
Figura 2. Ana Sampaio e Castro
Figura 3 | Arruamento do Burgo de Salzedas. Foto Luís Sebastian
de tabique no piso superior e nas divisões internas.
deve-se a fatores como o clima ou a facilidade de
Esta técnica encontra-se, sobretudo, na designada
acesso a materiais autóctones, evitando um custo
arquitetura vernacular das regiões do Alto Douro,
acrescido na construção das habitações e paralela-
Trás-os-Montes e Beira Alta. Consiste na aplicação
mente criando um ambiente mais estável no interior
de terra argilosa, amassada com água e fibras ve-
das divisões.
getais (palha) como enchimento e sob elementos de
Até à época moderna o lugar parece indissociável
madeira que são colocados na vertical, horizontal
do mosteiro. No foral outorgado, em 1504, ao Cou-
ou inclinados. Embora só se encontre documentada
to de Salzedas ainda se não refere qualquer povoa-
entre nós a partir de século XVII, é contudo provável
ção nomeada como Burgo ou Salzedas, sendo ape-
que tenha uma cronologia mais recuada, uma vez
nas indicados os lugares de Granja Nova, Ucanha,
que na Europa terá sido utilizada desde a Idade Mé-
Cimbres, Meixedo, Murganheira, Vila Pouca, Formilo
dia (PINTO, 2013: 32). A popularidade desta técnica
e Valdevez (CASTRO, 2014: 36). Porém, no Numera-
mento de 1527 aparece referido o mosteiro da Cer-
século XVII, colhemos algumas expressões da vivência
zeda, com 14 moradores o que poderia incluir a co-
humana à sombra do Mosteiro. E a própria autonomi-
munidade monástica e eventuais leigos (COLLAÇO,
zação do lugar, revelada na alteração das designa-
1931: 130). Efetivamente se aos 14 moradores corres-
ções Burgo e Mosteiro, empregadas sistematicamen-
ponder um número entre os 60,2 e os 67,2 indivíduos
1
te até 1696 e depois substituídas definitivamente no
podemos calcular o número de habitantes do Burgo
formulário da documentação paroquial por Salzedas
através de uma indicação cronologicamente próxi-
(ADL, Paroquiais, Mistos 1690-1723, fls. 2-2 v.º).
ma. Trata-se da referência do visitador cisterciense
Titulava-se então a paróquia como do Bom Jesus
D. Edme de Selieu que, tendo passado em Salzedas
de Salzedas ou do Santíssimo Nome de Jesus de Sal-
em Janeiro de 1533, indicou para o mosteiro 23 pro-
zedas, sendo regida por um cura apresentado pelo
fessos e 3 noviços (BRONSEVAL, 1970). Subtraindo os
abade do mosteiro. Os livros paroquiais revelam-nos
ocupantes do mosteiro aos 60-67 indivíduos atrás re-
a inconstância dos ciclos curas nomeados, que se su-
censeados talvez possamos contabilizar pouco mais
cedem em pequenos intervalos – alguns de menos
de três dezenas de indivíduos a habitar o Burgo no
de um ano.
início do século XVI.
A cartografia antiga também não indica, quer
Infelizmente sabemos muito pouco sobre os ho-
gráfica, quer toponimicamente nem o Burgo, nem
mens e as mulheres que ali viviam que formariam
Salzedas. Na região, apenas a carta de Fernando
uma mescla de lavradores, oficiais mecânicos e,
Álvaro Secco (SECO, 1559-1561) assinala São Pedro
porventura, alguns comerciantes e serviçais com
das Águias e as de d’Abeville (D’ABEVILLE, 1654), F.
vínculos ao mosteiro. É provável que a edificação
de Wit (WIT, 1670) e de Jaillot (JAILLOT, 1711) sinalizam
do novo complexo monástico no século XIII enredas-
o topónimo Tarouca. Na cartografia de setecentos
se na sua órbita vários oficiais e obreiros, foreiros e
surge a Ucanha, indicada na Província da Beira por
outros colonos atraídos pela pujante atividade cons-
Carpinetti (CARPINETTI, 1769 - 1779). Mas em nenhu-
trutiva e humanizadora que implicava acalentar a
ma outra carta, até ao século XIX, surge o Mosteiro
formação de comunidades laboriosas, não apenas
ou o Burgo de Salzedas.
para a construção, mas para o arroteamento e cul-
É, contudo, um memorialista das luzes, o Padre Luís
tivo de terra bravia. Seriam talvez alguns destes ho-
Cardoso que, através do seu Dicionário Geográfico
mens que no dia 6 de Janeiro de 1533 assistiram à
de 1751 nos traz as primeiras notícias monográficas
sagração do novo abade de Salzedas, na presença
sobre o Burgo. Segundo a sua descrição era lugar da
do visitador D. Edme que, não obstante ter conside-
Provincia da Beira, Bispado, e Comarca de Lamego,
rado o lugar solitário e desabitado, se espantou com
Concelho, e Termo da Villa de Ucanha, sendo Dona-
a multidão assistente (BRONSEVAL, 1970: 517-519).
tarios delle os Religiosos do Mosteiro de Santa Maria
Dos registos paroquiais de Salzedas, iniciados no
de Salzedas (CARDOSO, 1751: 307). Tinha 75 vizinhos
59
e a paróquia, com um altar, estava dentro do lugar,
dos registos de casamentos, baptismos e óbitos no
com o orago Bom Jesus2. O cura era, como já refe-
lugar de Salzedas, entre 1690 e 1799, obtivemos o se-
rimos, da apresentação do Dom Abade. Para além
guinte gráfico:
da invocação patronal, cultuava-se dentro da igreja matriz S. Caetano e S. Sebastião. Na paróquia existiam ainda três irmandades, a do Rosario, das Almas, e do Bom Jesus e cura dela estendia a sua jurisdição pelos lugares de Meixedo, Cortegada, Murganheira, e Vila Pouca, em cujas aldeias erguiam-se as «Ermi-
60
das de S. Salvador, S. Barbara, S. Marinha, S. Antonio, S. André, S. Luzia, e Espirito Santo. Acrescentava ainda o memorialista que os frutos, que em mais abundancia recolhem os moradores desta Freguesia, são, trigo, milho painço, centeyo, azeite, vinho, e castanha em abundancia; tambem cria muita caça, de coelhos, lebres e predizes» (CARDOSO, 1751, II: 307). Sem dados estatísticos regulares disponíveis até ao
p
Fonte: Livros de Registos Paroquiais de Salzedas (Arquivo Diocesano de Lamego).
século XIX, apenas podemos comparar a indicação do Numeramento de D. João III que indicava os 14
O pequeno Burgo do século XVI converteu-se, pois,
moradores da Cerzeda com os 75 vizinhos referidos
ao longo dos séculos XVII e XVIII num lugar com no-
no Dicionário Geográfico de 1751. Naturalmente
tável vitalidade demográfica. Ao nível de nascimen-
notamos um incremento da população, que acom-
tos, o lugar de Salzedas manteve-se abaixo do regis-
panha a tendência nacional e até internacional.
to anual de 100 indivíduos para, a partir do primeiro
Contudo como se terá processado este movimento
quartel do século XVIII, evidenciar um considerável
demográfico localmente? Sob a jurisdição espiritual
aumento quer em número de casamentos, quer de
e temporal do mosteiro, como se reflectiria esta rela-
nascituros/batizados. E a progressão continua expo-
ção na demografia?
nencialmente até finais do século XVIII, em particular
Valioso documento do tipo qualitativo, os registos
a partir da década de 1770.
paroquiais são, também, fontes de teor estatístico
A que se deveu tal crescimento? Só um estudo
que permitem uma análise da demografia local,
mais aturado sobre a exploração da terra e dos seus
cujo movimento pode ajudar-nos a compreender a
recursos e a sua administração pela principal entida-
relação dos seus habitantes com o mosteiro sob cuja
de dominial local – o mosteiro – poderá explicar com
sombra habitavam. A partir de uma contabilização
rigor este aumento demográfico. Mas um aspeto, o
da proximidade a uma estrutura arquitetónica de
ção começou pela capela-mor.
grandes dimensões, explica, em parte, a fixação hu-
O documento contabilístico de 1750 explica a ra-
mana no local. A necessidade de assegurar o traba-
zão da obra: por ameaçar ruína a igreja necessitou de
lho braçal, a deslocação de matéria-prima e a sua
intervenções que começaram pelos fundamentos da
transformação – processo destinado a abastecer os
cabeceira – a qual e pela aspereza do terreno onde
habitantes do mosteiro e a sustentar a maleabilidade
se situava exigiu um gasto considerável. Para o proje-
arquitetónica do complexo, poderá ter contribuído
to foram chamados a Salzedas Gaspar Ferreira, para
para o incremento demográfico, sobretudo ao longo
fazer o risco da mesma capela e António de Andra-
do século XVIII.
de, para o desenho da tribuna e coro. A descrição
São conhecidos dois períodos de grande atividade construtiva em Salzedas: um no início da época
do decurso da obra é reveladora da complexidade e grandeza (a expressão é do redator) do projeto:
moderna que corresponde aos abadessados de D.
[…] Em quebrar pedraria para a Capela Mor, fac-
Brás de Cimbres e D. Damião Rodrigues e outro, já
tura della, e forro com muro arroda, materaes perten-
em pelo século XVIII de que é testemunho a estrutura
centes a ella, como madeira para andaimes, pregos,
actual da igreja. Embora nos centremos no espaço
varios ferros, Grades para as frestas, arame e feitio
eclesial, a atividade construtiva e reconstrutiva man-
das [...] Cal, tijolo para as abobedas, e factura dellas,
teve-se ao longo do século XVII, nomeadamente na
telha e Conducção aguço de picos, ferragem de
edificação da ala sul e segundo claustro (CASTRO,
Carros e para madeira para elles, Carpinteiros e as
2014: 34). Muitas destas intervenções, à falta de do-
muitas juntas de boys que se comprarão para condu-
cumentação são atestadas por cartelas datadas e
zirem a pedraria, e mais materiaes para a ditta obra
breves referências esparsas pela documentação
polvora e, chumbo, vidros que vierão do Porto para
(COSTA, 1984: 540).
as vidraças das frestas; e mas Couzas […] (TT, Mosteiro
No entanto a obra que definiu, cremos, uma rutura
de Alcobaça, 3.ª Inc., mç. 4, doc. 184, fl. 3)
com o edifício medieval foi a que marcou o abades-
Esta obra, quase fundacional, em nada reflete,
sado trienal de frei Pedro Castelo Branco (1747-1750)
portanto, o trabalho de Carlos Guimach que durante
– a quem José Leite de Vasconcelos indica como fi-
algum tempo foi indicado pela historiografia da arte
lho de Salzedas (VASCONCELOS, 1933: 399). Na folha
como o obreiro da nova igreja de Salzedas. De resto,
contabilística referente ao seu primeiro período de
a sua presença em Portugal a partir de, pelo menos,
governo assinalam-se várias intervenções dispersas,
o ano de 1690 (GOMES, 1996) não coincide nem com
quer pela cerca, quer fora dela (em moinhos, muros,
a cronologia de edificação da estrutura de Salzedas
etc.ª), quer nos dormitórios e celas (TT, Mosteiro de Al-
(iniciada por volta de 1747), nem com a linguagem
cobaça, 3.ª Inc., mç. 4, doc. 184). É, contudo, a igreja
arquitetónica do frontispício cuja construção deverá
que mereceu a atenção do abade, cuja reedifica-
ter ultrapassado os limites do século XVIII.
61
62
Já quanto à presença em Salzedas do arquiteto
contabilística. A partir da década de 1730 registam-
Gaspar Ferreira esta é corroborada pela vasta obra
se várias alusões a mortes relacionadas com obras
que deixou nas regiões da Beira Alta e do Mondego
no convento: em 1734 Jerónimo, solteiro, carpintei-
tendo trabalhado como mestre entalhador e arquite-
ro da Província de Entre Douro e Minho faleceo de
to em projetos para Coimbra (Biblioteca, 1718), Viseu
um desastre no real mosteiro de Salzedas (ADL, Pa-
(1720 e 1733), Mangualde (1721), Santa Comba Dão
roquiais, Salzedas, Óbitos 1710-1739, cx. 3, l.º 1, fl. 80);
(1737), Arouca (Mosteiro, 1744 e 1746) e Montemor-
em 1750, José, solteiro, cahio das obras do convento,
o-Velho (Hospital, 1752-1754) estes últimos trabalhos
(ADL, Paroquiais, Salzedas, Óbitos 1739-177, cx. 3, l.º
registados contratualmente (ALVES, 2001, I: 335-341;
2, fl. 27); em 1755 Manuel de Araújo, cayo nas obras
FERREIRA-ALVES, 2008: 123), a que agora se acrescen-
deste Mosteiro de Salzedas, de que logo falleceo
ta a referência ao risco da capela maior de Salzedas,
(ADL, Paroquiais, Salzedas, Óbitos 1739-177, cx. 3, l.º 2,
executado por volta de 1750.
fl. 49). É de resto pertinente assinalar a proveniência
Os livros de registo paroquial são consentâneos
minhota destes e de outros oficiais que muito embora
com o frenesim atrás descrito pelo redator da folha
não tenham falecido nas obras do mosteiro viviam
Figura 4 | Sacristia da igreja de Salzedas: paramenteiro e pinturas de Bento Coelho da Silveira (1677-1685). Foto Pedro Martins © DRCN
em Salzedas nesta época, como Manuel Gomes, ofi-
Leal à época em que a obra foi suspensa acrescenta
cial de pedreiro natural de São Mamede de Ferreira,
às suas palavras uma importância que não podemos
arcebispado de Braga, falecido naquele lugar em
ignorar. Segundo ele, quando Junot invadiu Portugal
20-9-1754 (ADL, Paroquiais, Salzedas, Óbitos 1739-177,
em 1807, a obra da fachada de Salzedas parou, e
cx. 3, l.º 2, fl. 43). É, pois, natural que esta migração de
nunca mais, até hoje, se concluiu (LEAL, 1878: 373).
oficiais cuja mão-de-obra servia o estaleiro da nova
É provável que o conturbado clima político e eco-
igreja monástica influísse no crescimento da comuni-
nómico contribuísse para o abandono do projecto
dade de Salzedas dando expressão à vitalidade de-
arquitectónico. No entanto, as razões inerentes à pa-
mográfica a partir da década de 1730.
ragem das obras ou de, pelo menos, ao seu abranda-
Mão anónima assinalou, num códice pertencente ao espólio de Leite de Vasconcelos, a paragem das
mento em finais do século XVIII, são-nos ocultas pela documentação disponível e para já reconhecida.
obras durante o abadessado de Gregório Pereira
Não obstante, no início do século XIX constituía Sal-
(1796-1797), mas não o explica. Segundo o redator
zedas um núcleo urbano onde se registava a preva-
do dito códice, o abade Gregório Pereira, de Lisboa,
lência de mão-de-obra especializada nos ofícios da
continuou com o frontispício e o deixou no estado
cantaria, como testemunham as várias referências a
em que actualmente se acha e se não fora a sus-
pedreiros dali naturais a trabalharem em igrejas da
pensão que ouve de obras a deixaria completa por
região (ALVES, 2008: 48, 71).
que se conhecia nelle hu grande desejo de o mandar acabar […]3. Embora reconhecido pela ausência de referências
Em finais do século XIX Salzedas tinha 251 moradores, sendo o lugar mais populoso do termo da Ucanha (SERRÃO, 1970: 40).
à origem das suas fontes, a proximidade de Pinho
Figura 5 | Claustro novo de Salzedas e vista sobre o remate inacabado do frontispício da igreja. Foto Pedro Martins © DRCN
1. Para cálculo do número de habitantes por fogo adoptámos a proposta de J. José Alves Dias que afina a média anteriormente desenvolvida de 4/5 indivíduos para os valores coeficientes de 4,3 e 4,8 pessoas p/ fogo (DIAS, 1996, I: 39). 2. A esta igreja refere-se frei Baltasar dos Reis, nestes termos: Junto desta Igreja [a monástica] á porta principal della mandou esta Sñora [Dona Maria de Sousa] fazer hua Cappella para a gente secular poder ouvir missa, porquanto era Custume usado, não entrar pessoa algua Leiga nas Igrejas dos Mosteiros desta Religião como ainda oje se uza em alguns Mosteiros de outros Reinos, a qual Igreja oje serve de Capella E freguesia de alguns Lugares que tem aobrigação de virem a ella ouvir Missa. Tem esta igreja, da porta principal da Igr.ª do Mosteiro ata porta della sette varas E de largo tem quatorze (REIS, 2002: 22). A igreja paroquial teria, assim, sido mandada edificar em vida de D. Maria de Sousa (século XIV), assinalando a existência de um pequeno núcleo de habitantes que justificasse tal fundação. 3. M useu Nacional de Arqueologia, Espólio de José Leite de Vasconcelos, Códice sobre a fundação do Mosteiro de Salzedas, fl. 25 v.º.
63
09
SÉCULO XVI
CIMBRES | COUTO DO MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS
ESCULTURA DE SANTA BÁRBARA EM CIMBRES
NUNO RESENDE
A escultura de Santa Bárbara da igreja matriz de
precioso e raro, tendo comunicado a «descoberta»
Cimbres(figura 1), até ao presente exemplar singular
num artigo publicado no Boletim da Casa Regional
conhecido no contexto de importação de arte reli-
da Beira Douro (CARVALHO, 1953). O primeiro autor
giosa em Portugal – única pela particularidade do
desenvolveu, posteriormente, em 1959, num opús-
seu recorte plástico e pela ausência de obras simi-
culo algumas questões iconográficas e de proveni-
lares conhecidas – constitui, no entanto, um registo
ência onde desenvolveu a sua análise ao trabalho
material das trocas comerciais e das relações diplo-
escultórico que admitiu pudesse ter sido executado
máticas do reino português com a europa nórdica
na Europa do norte, associando-lhe o trabalho gotici-
entre os séculos XV e XVI.
zante de Claus Sluter, escultor de circulação franco-
O seu reconhecimento enquanto peça escultórica
flamengo (CARVALHO, 1959: 21).
excepcional remonta a 1953, quando um médico e
Aludiu à notável peça, quase meio século depois,
investigador local, João dos Santos Carvalho, acom-
João Soalheiro no catálogo O Compasso da terra,
panhado do director do Museu de Lamego, João
em 2006 (SOALHEIRO, 2006, II: 120)1, sugerindo a sua
Amaral, ambos a reconheceram como espécime
incorporação no património local, dentro da esfera
F igura 1 | Escultura de Santa Bárbara de Cimbres: recorte a meio-corpo. Foto Luís Sebastian
65
66
das relações de um abade de Salzedas natural de
do devocionário medieval europeu, revela carac-
Cimbres, Dom Brás, a quem aludiremos mais adiante.
terísticas iconográficas e formais que a posicionam
Porém, as circunstâncias que levaram ao depósito
como tendo saído das mãos de um artífice contem-
desta escultura nesta pequena igreja rural são ainda
porâneo e próximo a mestres quatrocentistas e qui-
desconhecidas, tendo sido apenas afloradas em 1953
nhentistas flamengos e alemães.
e 1959 pelo citado articulista que, ao tentar reconsti-
De resto embora sem esculturas contemporâneas
tuir o percurso da peça, nos descreve uma situação
identificadas a que possamos buscar comparações
paradigmática das circunstâncias inerentes a muitas
directas quer a gravura, quer a pintura flamengas
obras de arte religiosas. Segundo o autor, abordando
e alemã, da transição do século XV para o século
a proveniência da escultura, refere:
XVI fornecem-nos pistas para a datação da Santa
Sabe-se somente que há poucos anos atrás era
Bárbara em Cimbres. Autores como o gravador ale-
pertença de uma obscura velhota de nome igual
mão Israel van Meckenem (1445-1503) (figura 3) ou
ao da Santa e que por morte dela passou à Capela
o Mestre de Frankfurt (1460-c.1533) (Colecção do
do Espírito Santo, onde hoje se encontra (CARVALHO,
Mauritshuis, Inv. 855, c. 1510-1520) revelam nas suas
1953: 72).
representações de Bárbara formas aproximadas à
Ora, o pequeno excerto é suficientemente expres-
que inspirou o autor da nossa escultura: a mártir, em
sivo para desejarmos rever algumas atribuições e até
pé, exibe numa das mãos o livro e na noutra a pal-
cronologias que na historiografia da arte portuguesa
ma sendo ladeada por uma torre cujas dimensões se
têm tomado como pretexto o local de depósito dos
aproximam à da figura. É sobretudo no tratamento
objectos. O próprio carácter móvel das peças obsta
das vestes, no arranjo dos cabelos e na arquitectura
a considerações absolutas, e por vezes demasiado
da torre que encontramos paralelos ao nível do de-
inflexíveis, sobre encomendas e autorias. Hoje con-
senho. Em dois dos seus trípticos o mestre de Frankfurt
servada na igreja de Cimbres (figura 2), em 1953 na
pinta uma Bárbara invariavelmente ataviada com a
capela do Espírito Santo e, anteriormente, na mão
mesma indumentária: manto, corpete cingido por
de um particular, a escultura de Santa Bárbara é, no
uma fita pouco apertada sobre o ventre e envergan-
entanto, um documento sobre uma época e, dentro
do uma luxuosa coifa.
desta, dos poderes que na região podem ter contribuído para a sua existência.
Na pintura Sagrada Família com anjo músico (15101520) do Museu do Prado, a Santa apresenta-se sen-
Produzida talvez em contexto oficinal desenvolvido
tada, com o livro sobre o regaço tendo atrás um
no território da actual Bélgica ou regiões periféricas
pano da torre cuja estrutura grandiosa é truncada
(tendo em consideração a florescente actividade de
pelos limites da tábua. Porém, num outro painel do
produção artística no eixo Antuérpia-Médio Reno),
mesmo período, hoje exposto no Mauritshuis (figura
esta imagem, a de uma das mártires mais afamadas
6), o artista representa a mártir em pé que, quase de
costas, deixa entrever o livro aberto sobre a mão esquerda. Acompanha-a uma torre cuja estruturação arquitectónica é muito semelhante à da escultura de Cimbres: três registos marcados por várias fenestrações rematados por campanário com cúpula esférica. O único elemento que distancia a Bárbara de Cimbres das do mestre de Frankfurt é o cabelo. No caso da primeira ressalta o trabalho da trança dupla que emoldura a face e cai sobre os ombros – tipo de apresentação feminina muito associada a um gosto germânico que pode afinar a área geográfica do centro de produção onde esta escultura poderá ter sido executada (figura 7). Devemos outrossim chamar a atenção para outras duas imagens que, em Portugal, se aproximam em modelo e composição à imagem de Cimbres. A primeira apareceu à venda em 1971, referida num leilão organizado pelos antiquários Dinastia. A breve entrada do catálogo da leiloeira descreve-a como escultura em pedra, da Escola Alemã, remetendo o autor da descrição para obras dos escultores alemães, muito especialmente Tilman Rimenschneider nas figuras do túmulo do Imperador Henrique II e de sua mulher Cunegundes, na catedral de Bamberg (S.a., 1971: 7) (figura 8). A segunda foi apresentada no catálogo No tempo das Feitorias (DIAS, 1992: 164165), como imagem depositada na igreja de Entradas do concelho de Castro Verde. Trata-se de uma escultura das oficinas de Malines que se aproxima em dimensão e recorte (embora distante na configuração da indumentária e atavios) à Santa Bárbara de Cimbres – modelo em voga na viragem do século XV para o século XVI, na Europa.
Figura 2 | Escultura de Santa Bárbara (paróquia de Cimbres) Foto Luís Sebastian
68
Normalmente expedidas através da costa, por co-
ra formado pelos lugares do Mosteiro, Ucanha, Meixe-
mércio marítimo (recordemos a importância das Fei-
do, Murganheira, Vila Pouca, Valdevez, Granja Nova
torias Portuguesas na Flandres) estas imagens eram
e Formilo. Embora fosse na Ucanha a cabeça do dito
desembarcadas nos portos nacionais e daí transpor-
couto, era no mosteiro que se provia à administração
tadas até aos seus vários destinos: igrejas, oratórios
temporal do território que através dos abades e seus
particulares, mosteiros, etc2. Nesse sentido não é inu-
adjuvantes tratavam do recebimento dos dereitos
sitada a presença de uma peça desta cronologia
que particularmente a cada huu dos ditos lugares
em Cimbres, sobretudo no contexto religioso e ad-
sam cotheudos decrarados per seos contratos e es-
ministrativo da época: tratava-se de um curato filial
cripturas, como especifica o teor do foral manuelino
da importante igreja monástica de Salzedas, em cujo
outorgado em 1504. Neste ano já o lugar de Cimbres,
território se construíra como comunidade e paróquia
à semelhança dos seus congéneres vizinhos, estava
ao longo da Idade Média3.
devidamente povoado com todos os foros e liberda-
Cimbres, hoje freguesia do concelho de Armamar,
des, certamente ratificados por contratos firmados
foi uma das povoações do couto de Salzedas, outro-
quase imediatamente ao coutamento, pois seria ne-
Figua 3 | Gravura representando Santa Bárbara, de Israhel van Meckenem (1455 - 1503) (Rijksmuseum: RP-P-1955-523).
F igura 4 | Desenho do toucado de Santa Bárbara de Cimbres, publicado em CARVALHO, 1959.
cessário dar expressão à humanização do território,
da Igreja, como prova a sua condição de criado de
ora despovoado, ora acometido por crises agrícolas
D. Jorge da Costa. Referimo-nos, afinal, à ligação a
e sociais. De resto em 1527, no âmbito do primeiro
uma das mais importantes e influentes figuras da his-
registo estatístico nacional, já Cimbres apresentava
tória política e religiosa de Portugal quatrocentista:
um conjunto de 55 moradores, sendo o quarto maior
aquele que foi arcebispo de Évora, Lisboa e Braga e
núcleo urbano dentro do Couto de Salzedas, a seguir
ocupou os mais altos cargos na cúria romana entre
à Ucanha, à vila ou burgo e à Granja Nova (apud
1477 e 1508. Poderá ter sido, aliás, na companhia do
COLLAÇO, 1931: 130).
cardeal Alpedrinha que Dom Brás efectuou algumas
O facto de se lhe associar, já no século XIV o nome
das sete viagens a Roma, na última das quais, ao que
de um dos abades de Salzedas – D. Afonso de Cim-
parece em 1507, o consagrárão em Bispo de Biblion.
bres (abade de 1429 a 1456) –, é de certa forma reve-
Já detinha este título, juntamente com o de bispo
lador da existência de uma elite local – elite que pro-
de Osma, quando recebeu a mitra abacial de Sal-
duzirá, menos de um século depois daquele prelado,
zedas, que envergava (a acreditarmos em Baltasar
um outro abade, de nome Brás.
dos Reis), no ano de 1503 (REIS, 1943: 72). Embora não
Nascido talvez durante o último quartel do século
saibamos o seu apelido o Episcopologio Español cha-
XV, Brás de Cimbres provinha de uma família da pe-
ma-o Blas de Fernando (apud GUITARTE IZQUIERDO,
quena nobreza regional, cujo extraordinário percurso
1994: 24), pelo que, consideramos fosse o seu apelido
o genealogista Alão de Morais narrou, ainda que a
Fernandes, porventura de origem patronímica.
voo de pássaro, na sua Pedatura Lusitana.
O papel de Blasius Abba Salzedae não foi mera-
Embora, como explica o genealogista, lhe fosse im-
mente a de um amanuense, como sugere o cronis-
putada ascendência nobre paterna pelos Rebelos de
ta frei Baltasar dos Reis. O seu abadessado coincide
Caria, Brás seria filho de uma hua forneira pello que E
com um dos mais fecundos períodos de produção
por ser criado do Cardeal D. Jorge da Costa tomou
artística em Portugal e especificamente na região de
por armas o escudo partido ao 1.º A roda de S. Cata-
Lamego onde, durante os primeiros terços do sécu-
rina do Cardeal, E ao 2.º hu feixe de lenha aludindo
lo XVI laboraram vários artistas nas empreitadas do
ao officio de sua mãe e assi estão nas Salzedas (Mo-
retábulo maior da sé de Lamego (1506-1511) e nas
rais, 1948,III: 26). E, não obstante estas poucas linhas
obras da igreja de Ferreirim (1533-1534).
possam transmitir a ideia de uma inusitada ascensão
E dentre todos os abades perpétuos de Salzedas,
social em Portugal de quatrocentos, a sua condição
cuja informação biográfica é, como se sabe, es-
de ilegítimo não teria limitado o acesso a um lugar
cassa, devemos salientar as referências que lhe são
eclesiástico – o caminho para fulgurante carreira.
dirigidas, quer pelo já referido Alão de Morais, quer
Pelo contrário. De resto tudo indica que o percurso
por cronistas, nomeadamente Manuel Faria e Sousa
de Brás resulte das boas relações que possuía no seio
(1590-1649) que na sua obra Europa Portuguesa (ed.
69
1680) assinalou uma notável encomenda do abade
dos olhos, de tal modo, que sendo o retabolo de al-
de Cimbres:
tura muy grande, por onde as figuras, que ficavão no
El singular Retablo de la Iglesia de las Salzedas todo
alto houverão de parecer menores, de tal modo foy
de figuras de relieve, fabrica admirable de D. Blas de-
a industria do Artifice compassando a estatura das
cimo quinto Abbad de aquel Monasterio. Siendo de
imagens, e dando a cada uma dellas tanto mayor
mucha altura son las Imagens ultimas de lo alto a la
grandes, quanto a vista hia mais faltando, que ficáo
vista del proprio tamaño que las de abaxo: a imita-
todas juntas parecendo de hum tamanho (SILVA,
cion de las que serven en la Coluna de Trajana de
1725: 125). Importa acrescentar, ainda, outros dados à biogra-
Roma (SOUSA, 1680: 214).
70
Esta descrição, até ao presente ignorada pela his-
fia de D. Brás, nomeadamente alguns elementos para
toriografia, não só enfatiza o papel empreendedor
a reconstituição das suas relações pessoais. Efectiva-
de Dom Brás, mas adianta, outrossim, alguns ele-
mente, em nota à genealogia do abade, Alão de
mentos desconhecidos sobre a estrutura da igreja
Morais associa-lhe o nome de Luís Eanes, seu criado,
medieval. Efectivamente, no início do século XVI a
que D. Bras […] mandando o a França com 200 Urs.
igreja de Salzedas recebeu uma obra retabular que a colocaria entre o conjunto de grande empreitadas artísticas que então se executavam um pouco por todo o reino, nomeadamente em Coimbra, Lisboa e Funchal. E parece verosímil associar-se a esta obra a figura de Arnao de Carvalho que em 1510, na cidade de Lamego, emparceirou com Ângelo Ravanel, mestre borguinhão, como testemunha o acto público notarial de 29 de Janeiro daquele ano (apud CORREIA, 1924 110-111 e CORTEZ, 1957: 11). Virgílio Correia situou-o em 1523 em Salzedas, onde residia e onde provavelmente assistia à obra do retábulo, então em curso (CORREIA, 1924: 85). De tal forma foi a obra de Dom Brás marcante no panorama artístico português que, quer os homens do seu tempo, quer os que depois dele vieram ainda dois séculos depois se lhe referem: Fez na Casa hum retabolo de figuras de vulto, feitas com proporção, e grandeza conveniente à distancia
F igura 5 | Reprodução de escultura de Santa Bárbara (leiloada em 1971), pub. em S.A., 1971.
p.ª comprar ouro p.ª dourar o retabolo das Salzedas
raciocínio dos críticos amadores de 1953, nomeada-
se deixou ficar em Paris estudando levãtãdo-se cõ o
mente o conhecimento sobre a materialidade de
dr.º (MORAIS, 1948,III: 262).
um retábulo, dourado, de figuras de relevo – à seme-
Não obstante a inusitada acção do dito Luís (que
lhança dos que ainda se conhecem para Coimbra
o genealogista indica como filho de um abade de
ou Funchal – de resto ambas empreitadas de artistas
São João de Tarouca), o mesmo viria a casar com
nórdicos, não será a Santa Bárbara de Cimbres efec-
a filha de Dom Brás, chamada D. Guiomar Fernan-
tivamente uma remanescência daquela obra – pa-
des. O casal foi sepultado no mosteiro de Salzedas,
limpsesto da destruição setecentista que imprimiu ao
como consta do testamento comum que o genealo-
edifício o desenho actual?
gista em parte transcreveu: e mt.º desejamos nossos
Obviamente apenas a documentação nos pode-
corpos seram levados ao d.º Mostr.º (das Salzedas)
rá esclarecer esta questão, mas as pistas levantadas
pella criação q tivemos daquella casa, E amor q lhe
apontam-nos outros caminhos, nomeadamente os
temos, E obrigação que q lhe somos, E por hi iazarem
que cruzam o abadessado de Dom Brás e a sua (pre-
nossos paes. E avós e filho [...] (MORAIS, 1948, III:262):
tensa) interferência na encomenda dos quatro pai-
– dando assim expressão a estratégias nepotistas que
néis atribuídos a Vasco Fernandes e hoje desmembra-
dominariam ambos os mosteiros cistercienses.
dos (RODRIGUES, 1992, 2001, 2004). É provável que a
Apresentados os factos impõe-se agora colocar
escultura em Cimbres tivesse lugar naquele retábulo
uma questão, de resto já levantada no artigo de
– uma vez que, até como refere Frei Baltasar dos Reis,
1953: qual a proveniência desta escultura? A respos-
ao dito retábulo composto por vinte E hu paineis com
ta seguiu-se, no mesmo texto, quase impensada: É
figuras de vulto grandes se acrescentaram outras pe-
de crer que tenha vindo do vizinho mosteiro de Salze-
quenas que na obra se puserão (REIS, 1936: 20).
das. Às perguntas feitas e às respostas devidamente
Mas e quanto aos ditos painéis - teriam eles lugar
reflexionadas não se pode se não reproduzi-las. Mas
no seu imponente retábulo de figuras de vulto (cat.
tendo em consideração os dados que acrescem ao
10)?
1. O autor designa-a por Santa Catarina o que naturalmente é lapso. 2. S erá pertinente destacar a origem e o percurso da imagem da Virgem do Leite, da igreja de Tarouquela (DIAS, 2000 e BOTELHO&RESENDE, 2014: 207) 3. Cabe aqui salientar a presença, geograficamente próxima (em Tarouca), de uma Santa Bárbara de influência flamenga identificada em 2006 por Rui Maurício na sequência da segunda fase de Inventário da Diocese de Lamego (MAURICIO, 2006, II: 102-103).
71
10
SÉCULO XVI MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE SALZEDAS (ASSOCIADO)
SÃO SEBASTIÃO E SANTO ANTÃO: DUAS PINTURAS REVISITADAS. ANA CRISTINA SOUSA NUNO RESENDE
Figu
A primeira referência documental a esta pintura
Em Vasco Fernandes e Gaspar Vaz, sobretudo nes-
de São Sebastião é a que, com segurança, a situa
te último, é ainda manifesta a influência de um mes-
na igreja de Salzedas em 1919. Nesse ano, José de
tre flamengo, que é aquele cuja mão é dominante
Figueiredo, do Conselho de Arte e Arqueologia da
nos cinco painéis que restam do antigo retábulo da
1ª Circunscrição, requisitou que lhe fossem entregues,
capela-mor da Sé de Lamego, e a que chamaremos
afim de os estudar e beneficiar, os quadros do sécu-
«mestre de Salzedas» pois aí êle aparece-nos isola-
lo XVI, São Jorge [sic] e São Sebastião, existentes na
do nos dois paineis que há anos encontrámos nesta
Igreja de Salzedas1(figuras 1 e 2).
igreja; mas essa influência limita-se quási só ao ma-
Parece certo que os dois quadros foram levados
neirismo dos cabelos, vistos sob uma forma especial e
para Lisboa, onde José de Figueiredo os examinou,
acentuadamente linear, sem esquecer que êsse ma-
redigindo, em 1924, um artigo para a revista Lusitania
neirismo reveste já, nos dois pintores, um carácter sui
atribuindo a sua execução a um Mestre de Salzedas
generis e menos exótico, caldeado e transformado
e cuja obra individualizava em relação a Gaspar Vaz
na sua visão essencialmente nacional2 [sublinhado
e Vasco Fernandes – pintores cujas autorias causa-
nosso] (FIGUEIREDO, 1924a).
vam, então, polémica nos meios historiográficos:
Figura 1 | Pintura representando São Sebastião (Paróquia de Salzedas/ Diocese de Lamego).
73
O mesmo autor acrescentou ao conjunto outros
F igura 2 | Pintura representando Santo Antão (Paróquia de Salzedas/Diocese de Lamego).
dois painéis depositados no Museu Municipal do Por-
tros compromissos na região, concretamente a res-
to – um, de Santa Catarina, o outro, de Santa Luzia,
ponsabilidade de fazer um retábulo para a igreja do
e ambos com a respectiva legenda em flamengo
mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Não se conhe-
– atribuindo a autoria do hipotético políptico ao re-
cem quaisquer informações escritas. No entanto, a
ferido mestre de Salzedas (FIGUEIREDO, 1924b). Estas
partir de algumas associações, é possível dar à ideia
duas pinturas estariam no Museu do Porto desde 1908
alguma coerência (RODRIGUES, 2000, I: 198).
(SOARES&CARVALHO, 2004: 44-45)3.
74
Embora consensual esta atribuição não se firma,
A proposta de José de Figueiredo viria a ser rejei-
como já vimos (e como a autora refere) nem em
tada alguns anos depois por Luís Reis Santos que, em
qualquer referência documental nem em elementos
1946, associando aos painéis de Salzedas as repre-
que factualmente associem as duas tábuas de São
sentações femininas que integravam o acervo do
Sebastião e Santo Antão a Salzedas (pelo menos an-
MNSR, considerou serem as quatro pinturas típicas da
tes de 1919) e menos ainda, que as duas pinturas de
segunda época de Vasco Fernandes, afinando o pe-
Santa Luzia e Santa Catarina tenham tido a mesma
ríodo da execução dos «dois dípticos» para os anos
proveniência. Em suma, não existe qualquer prova
de 1511 a 1520 (REIS-SANTOS, 1946: 23)4.
que relacione as quatro tábuas com uma estrutura
Em Outubro de 1950, na Exposição de Arte Sacra
retabular destinada àquela igreja de Salzedas e to-
realizada no Museu de Lamego, as duas pinturas de
das as afirmações expostas pelos mais diversos auto-
Salzedas são já definitivamente atribuídas à lavra
res baseiam-se em meras suposições.
do notável artista Grão Vasco (VAZ, AMARAL&PIRES,
De facto, os inventários existentes para Salzedas
1950). E nesta condição continuaram a ser apresen-
são inconclusivos quanto à proveniência das tábuas.
tadas nas exposições e roteiros seguintes, onde figu-
No inventário de 1834, elaborado na sequência da
raram, em 1959 (S.A., 1959), em 1967 (S.A., 1967), 1968
extinção das ordens religiosas, são referidos doze al-
(S.A., 1968), em 1992 (RODRIGUES, 1992), em 2005
tares laterais todos ornados com imagens e costuais
(apenas o painel de S. Sebastião: SERRÃO, 2005) e
de pau e, na sacristia, quinze quadros grandes em
em 2006 (RESENDE, 2006).
volta da mesma samchristia (apud CASTRO, 2014:
Em 2000, a investigadora Dalila Rodrigues, que
95). O acervo sumariamente indicado nas fontes cor-
abordou e reviu a obra de Vasco Fernandes à luz da
responde ao trabalho pictórico associado à retabu-
historiografia nacional, reiterou a atribuição de Luís
lística (ainda existente ao longo das paredes laterais
Reis-Santos quanto à execução das tábuas de Salze-
da igreja) e ao conjunto que orna o paramenteiro e
das e a das do acervo do Museu Nacional Soares dos
a sacristia, obra documentada e atribuída a Bento
Reis, considerando o conjunto como obra retabular:
Coelho da Silveira (SOBRAL, 2006a; SOBRAL, 2006b).
Na sequência desta importantíssima empreitada
De resto, as grandes empreitadas seiscentistas e se-
artística de Lamego, [Vasco Fernandes] assumiu ou-
tecentistas teriam arredado o património medieval,
substituindo-o por intervenções ao gosto da época (cat. 8). Corresponderiam, efectivamente, as quatro pinturas a um primitivo retábulo de Salzedas? E seria este um retábulo-mor, um retábulo lateral ou um dos retábulos colaterais? A estrutura da igreja medieval de Salzedas persiste, ainda, sobre as reconstruções levadas a cabo nos séculos XVI, XVII e XVIII (figura 3). À parte os três absidíolos e a capela-mor original o templo apresenta
75
ainda parte da volumetria medieval, revelando-se na planta longitudinal de três naves - uma central e duas laterais – um edifício de grandes dimensões. Infelizmente o que arqueologia permitiu revelar a nível da estrutura e fundações (CASTRO, 2014a) não nos possibilita um conhecimento mais profundo sobre o património integrado. Nos altares e capelas colaterais (quatro, segundo o cronista Baltasar Reis) quais seriam as invocações aí cultuadas? Não o sabemos. Porém, não obstante esta ausência de informação sobre o corpo da igreja, convém elencar alguns dados sobre a estrutura da capela-mor medieval de que subsistem algumas descrições. Desde logo a referência a uma cerimónia de sagração, ocorrida em Janeiro de 1533, e à qual assistiu o cisterciense D. Edme de Salieu durante sua visita a este mosteiro (cat. 9). Este acto deve corresponder à inauguração de um novo retábulo ou até a profundas remodelações levadas a cabo na capela-mor. Tais obras coincidem com os abadessados de D. Brás de Cimbres (15031530) e de D. Damião Rodrigues (1530-1540). O primeiro, como já referimos (cat. 9) parece ter sido um activo reformador de Salzedas, a quem se imputa a p
Figura 3 | Igreja de Salzedas: nave central. Foto Pedro Martins © DRCN
edificação do retábulo mor da igreja, assinalado no
res contra a peste dando, como exemplo, o políptico
século XVII por Manuel Faria e Sousa como obra ad-
da autoria de Mathias Grünewald realizado entre os
mirável. Este retábulo era constituído por figuras de
anos de 1512 e 1516 e que actualmente se expõe no
vulto, como o descreveu frei Baltasar dos Reis:
Museu de Unterdinden em Colmar (França). Os dois
O Retablo da Capella mor he dos melhores que
volantes representam São Sebastião (à esquerda) e
se podem achar Em Espanha, tem vinte E hu painéis
Santo Antão (à direita) a ladear uma tábua central
com as figuras de vulto grandes, afora outras peque-
de maiores proporções que expõe uma rica icono-
nas que na obra se puserão (REIS, 1943: 20).
grafia do Calvário, obra com características plásticas
Obra escultórica, portanto, sem lugar para pintura,
76
e cromáticas que muito individualizam este autor.
como se infere das várias descrições colhidas entre os
A análise iconográfica da imagem de São Sebas-
séculos XVII e XVIII (cat. 9). De resto e dado o cuidado
tião sugere, de facto, outras leituras e outras proveni-
dos cronistas no elogio da fábrica, forma e dimensões
ências. O mártir é representado jovem, com cabelos
do retábulo, porque ignorariam o trabalho pictórico?
longos arruivados e imberbe, em pé, vestido como um
E mais ainda por que ignorariam o trabalho de pin-
rico cavaleiro com traje de viagem, mangas farpa-
tura de um autor cujo nome nunca deixou de firmar
das e soltas, capa e botas com esporas. A presença
interesse entre os memorialistas desde o século XVI?
da espada que sobressai por baixo do amplo manto
Vítor Serrão recorda esta mistificação do pintor pelos
e a correia e bainha aludem, ainda, à sua condição
seus principais mecenas ainda em vida do artista, re-
de soldado de que fala Réau (1998: 197). Na mão
forçada a partir do século XVII por rasgados elogios
esquerda segura a seta do martírio e na direita o que
que tocam o universo da credulidade e da supersti-
parece ser um chapéu de cavaleiro, embora apre-
ção colectiva. A viagem a Itália e a sua colaboração
sente um outro pousado na cabeça, negro, de abas
com Perugino contam-se entre esse fenómeno de
viradas para cima típico da indumentária deste perí-
glorificação do artista (SERRÃO, 2002:105-106).
odo5. Vítor Serrão refere que esta iconografia do san-
A ligação das duas tábuas de São Sebastião e San-
to é rara mas não inédita na arte portuguesa, recor-
to Antão é, de facto, indiscutível. A medida de ambas
dando o exemplo da predela do retábulo da autoria
(108,5x60 cm), a ausência de pintura nos rebordos su-
dos mestres Vicente Gil e Manuel Vicente, pintado
perior e inferior (lugar de antiga moldura), o enqua-
em data próxima (c. 1504-1515), para a Capela do
dramento das figuras no espaço rochoso, os muros
Hospital de Nossa Senhora de Campos da Misericór-
de separação entre os taumaturgos e a paisagem
dia de Montemor-o-Velho (SERRÃO, 2005: 74; CASIMI-
de arquitecturas de traça nórdica, associada ao fac-
RO, 2004, II: 1321-1323). No entanto, cremos que se
to dos dois santos serem antipestíferos, corroboram
trata de uma representação atípica na produção
a ideia de um conjunto pictórico. Louis Réau (1998:
artística portuguesa, na qual dominou o modelo do
197) acentua esta relação dual de santos protecto-
Mártir jovem, belo, desnudo e sagitado que surge a
partir dos séculos XIII ou XIV e que se impôs por toda
nel esquerdo, uma representação de São Sebastião
a Europa a partir de meados do século XV (LANZUE-
vestido como cavaleiro, com espada embainhada,
LA HERNÁNDEZ, 2006: 236). Esta iconografia convi-
arco e três flechas. A obra pertenceu à capela de
veu durante algum tempo com a do santo vestido
São João de Latrão, na Madeira, mandada edificar
como nobre cavaleiro, tal como a que se apresenta
por Nuno Fernandes Cardoso, rico mercador e pro-
na tábua em análise, mas a brutal representação do
dutor de açúcar e sua mulher Leonor Dias. A data da
suplício dramático do mártir cravejado de setas, ali-
encomenda ocorreu entre 1512 e 1515 tendo o co-
mentada pelas narrativas hagiográficas da Legenda
mitente determinado, em testamento, o programa
Áurea (séc. XIII) e mais tarde do Flos Sanctorum, aco-
iconográfico das principais representações. O histo-
lhiam maior atenção dos fiéis, comovendo o espírito
riador Eberhar von Bodenhausen atribuiu, em 1905, o
e despertando emoções (Hippolyte Delehaye cit in
Tríptico da Misericórdia ao pintor flamengo Jan Pro-
LANZUELA HERNÁNDEZ, 2006: 237).
voost (1662/5-1529), um dos mais reconhecidos da
Esta figuração de São Sebastião vestido como um
sua geração, que trabalhou em Antuérpia, cidade
jovem e rico cavaleiro surge, de facto, com frequên-
com forte presença portuguesa no primeiro quartel
cia, na pintura dos séculos XV e primeiro quartel do
do século XVI. O restauro da obra, com o recurso às
XVI, nas cidades italianas (Pietro Perugino (1476);
técnicas de reflectografia, estudo do desenho e aná-
Benozzo Gozzoli (1464-65); Rafael Sanzio (1501-2);
lise comparativa com outras obras do autor vieram
Gionvanni Antonio Boltraffio (dos finais da década
confirmar esta atribuição (CARVALHO et alli: 2012). A
de 90 de Quatrocentos); na Alemanha (Mathias Grü-
organização deste tríptico permite sugerir uma estru-
newald -1512-1516); nos Países Baixos (Jacob Corne-
tura semelhante para as duas tábuas associadas a
lisz van Oostsanen – 1509-1513); Castela (na obra
Salzedas que fariam, desta forma, parte de um con-
de Jorge Inglês , 1465), Aragão (na obra de Miguel
junto entretanto desmantelado e cuja tábua central
Ximénez, 1494)8 e Catalunha (Joan Mates9, cerca de
se perdeu ou se encontra dispersa. É possível que as
1417-1425; Jaume Ferrer10, cerca de 1450; Mestre da
tábuas dos dois santos antipestíferos estivessem as-
Sé de Urgell , cerca de 1495-1498); Retábulo de São
sociadas a uma invocação de Nossa Senhora, aten-
Sebastião e Santa Tecla da Catedral de Barcelona,
dendo à importância que o culto à Virgem assumiu
de 1486-98; Retábulo da Coroação e Retábulo do
em épocas de epidemias de peste: Imaculada Con-
Ecce Homo da Catedral de Teruel, do séc. XV e finais
ceição, Virgem da Piedade, da Graça ou da Miseri-
de XV/princípios do XVI respetivamente; São Sebas-
córdia (LANZUELA HERNÁNDEZ, 2006:249), tal como o
tião da igreja Santos Justo e Pastor de Villar del Cobo,
demonstra o exemplar do MNAA referido. Jean Delu-
Teruel, do séc. XV), entre outros.
meau referiu as constantes representações de Maria
6
7
11
O tríptico de Nossa Senhora da Misericórdia12 do
entronizada entre santos protectores da peste (e re-
Museu Nacional de Arte Antiga apresenta, no pai-
cebendo por sua mediação as preces dos enfermos)
77
78
na pintura europeia a partir do século XIV (DELUMEAU
descrições apresentadas obrigam-nos a recordar a
cit in LANZUELA HERNÁNDEZ, 2006:249). Se os comiten-
importância que a importação de obras de arte da
tes da Madeira optaram pela parelha São Sebastião
Flandres e de outros centros de produção artística as-
/São Cristovão, os do Douro escolheram a associa-
sumiu no período em estudo bem como a presença
ção São Sebastião/Santo Antão. Importa, igualmen-
de artistas de origem flamenga no nosso território, que
te, valorizar as características de representação des-
circulavam livremente pelo país. E se as duas tábuas
te santo taumaturgo. Santo Antão apresenta a sua
de Salzedas foram associadas às duas de Santa Ca-
iconografia habitual, um ancião de barbas grisalhas,
tarina e Santa Luzia guardadas no Museu Nacional
cabeça coberta, pés descalços e uma longa capa
Soares dos Reis, não se compreende também que
de lã, alusiva ao hábito da sua ordem (RÉAU, 1998:
as inscrições titulares das santas em francês (ou em
113), mas ricamente debruada com peles, mais con-
flamengo como refere José de Figueiredo em 1924),
forme à indumentária de um rico cidadão da Flan-
circunstância extravagante notada (mas ignorada),
dres do que à de um humilde eremita do deserto. Na
em 1946 por Luís Reis Santos, não tenham sido alvo de
mão esquerda o Tau e na direita uma pequena con-
reflexão. Basta salientar, novamente, o notável per-
ta ou bolota que aqui parece substituir o porco, um
curso do Abade D. Brás de Cimbres e o seu círculo
dos seus atributos mais correntes.
de influências e contactos na Europa da viragem do
O tríptico de Nossa Senhora da Misericórdia e as
século XV para o século XVI (cat. 9). Para a região em análise, importa igualmente refletir outrossim sobre a tão citada passagem da carta do Bispo de Viseu, D. Fernando Gonçalves de Miranda ao Cabido da cidade, datada de 22 de Setembro de 1500, relativa ao retábulo para a capelamor da diocese, que, neste contexto, serve apenas para confirmar o prestígio e a regularidade com que se recorria a obras forâneas: [...] mas ajnda me apreso muyto a poder acabar ho retavollo pêra esa see como vos tenho escripto já e escrepveime ho que vos parece se ho faremos de prata ou de tintas por que de qualquer maneira que quisermos de frandres se ha de trazer mylhor e mays barato [...] (apud RODRIGUES, 2000: 214-215). Não sendo possível, no atual estado da investigação, avançar com dados mais concretos sobre a au-
p
F igura 4 | «Fragmentos - Expressões de Arte Religiosa do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas»: pinturas de Santo Sebastião e Santo Antão. Foto Pedro Martins © DRCN
toria e origem dos dois painéis ditos de Salzedas, pa-
século XIX e inícios de XX e que a atribuição ao pintor
rece ficar provado, no entanto, que o destino original
Vasco Fernandes assentou, desde o primeiro momen-
destas tábuas não foi a igreja do Mosteiro, que a sua
to, numa cadeia de suposições sem qualquer suporte
presença no cenóbio se ficou certamente a dever
científico (figura 4).
à problemática da mobilidade de obras de arte do
79
1. Cf. SGMF, CJBC/VIS/TAR/ADMIN/012, Proc. 5938, L. 10, fl. 388; proc. 5939, l. 10, fl.. 388.A designação São Jorge poderá ser engano ou gralha. Efectivamente nada na iconografia do santo que configura par com São Sebastião nos remete para o mártir da Capadócia, invariavelmente representado como um cavaleiro. No entanto a figura encapelada permaneceu por identificar até à década de 1990, sendo referida na catalografia como Santo Peregrino. Trata-se, naturalmente, de Santo Antão, acompanhado do tau e exibindo entre dedos da mão direita o que poderá ser uma bolota, um dos alimentos do porco, alusão à sua qualidade de patrono dos animais domésticos. 2. E acrescentava, em nota, no mesmo artigo: Embora nada possamos dizer de definitivo por agora quanto à identificação dêstre mestre, não podemos deixar de constatar desde já as suas afinidades com a obra averiguada de António de Holanda (FIGUEIREDO, 1924). 3. E mbora sem registos sobre a sua aquisição, supõe-se que aquele coleccionador portuense as teria adquirido na região de Lamego, cf. obra citada no texto. 4. «Consideradas por José de Figueiredo, as dos santos, primeiramente da escola quatrocentista florentina e, depois, de mestre flamengo; e as das santas de um continuador português do autor dos dois painéis anteriores e, mais tarde, do próprio Mestre de Salzedas, estas quatro tábuas, apesar da ortografia das inscrições que se vêem nas duas últimas, são típicas da segunda época de Vasco Fernandes, e dir-se-á terem pertencido ao mesmo conjunto» (REIS-SANTOS, 1946: 23). O autor repete esta interpretação em 1962 (REIS-SANTOS, 1962). 5. Agradecemos a colaboração da Doutora Deolinda Carneiro, do Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim na leitura e identificação dos elementos que compõem o traje de São Sebastião. 6. Oostsanen, Jacob Cornelisz van (1509-1513). https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RP-P-1887-A-12207 (240 mm × w 188 mm, digitalização de gravura sobre papel). [Amesterdão]: Rijksmuseum. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.37436. 7. Cf. Inglés, Jorge (1465 [ca.]). [Retablo de San Jeronimo]. http://ceres.mcu.es/pages/Viewer?accion=42&AMuseo=MNEV&Museo=MNEV&Ninv=CE0009&t xt_id_imagen=1&txt_rotar=0&txt_zoom=10&txt_contraste=0&txt_totalImagenes=13&dbCode=1&txt_polarizado=&txt_brillo=10.0&txt_contrast=1.0 (fotografia digital). [Valhadolide]: Museo Nacional de Escultura. Disponível em: http://ceres.mcu.es/pages/ResultSearch?Museo=MNEV&txtSimpleSearch=Retablo%20 de%3Cb%3E%20San%20%3C/b%3EJer%F3nimo&simpleSearch=0&hipertextSearch=1&search=simple&MuseumsSearch=MNEV|&MuseumsRolSearch=15&listaMu seos=[Museo%20Nacional%20de%20Escultura]. 8. Cf. Ximénez, Miguel (1494). [San Juan Bautista, San Fabián y San Sebastián] http://www.museunacional.cat/sites/default/files/015858-CJT.JPG (fotografia digital). [Barcelona]: Museu Nacional d’Arte de Catalunya. Disponível em: http://www.museunacional.cat/es/colleccio/san-juan-bautista-san-fabian-y-san-sebastian/miguel-ximenez/015858-cjt. 9. MATES, Joan (1417-1425). [Calvario; San Sebastián] http://www.museunacional.cat/sites/default/files/042340-000_16714.JPG (fotografia digital). [Barcelona]: Museu Nacional d’Arte de Catlunya. Disponível em: http://www.museunacional.cat/es/colleccio/calvario-san-sebastian/joan-mates/042340-000. 10. FERRER, Jaume (1450[ca]). [San Sebastián] http://www.museunacional.cat/sites/default/files/114745-000.JPG (fotografia digital). [Barcelona]: Museu Nacional d’Arte de Catlunya. Disponível em: http://www.museunacional.cat/es/colleccio/san-sebastian/jaume-ferrer/114745-000. 11. Maestro de La Seu d’Urgell (1495-498[ca]). [San Sebastián] http://www.museunacional.cat/sites/default/files/200469-000.JPG (fotografia digital). [Barcelona]: Museu Nacional d’Arte de Catalunya. Disponível em: http://www.museunacional.cat/es/colleccio/san-sebastian/mestre-de-la-seu-durgell/200469-000.
11
SÉCULOS XVI-XIX
MOSTEIROS DE SÃO JOÃO DE TAROUCA | SANTA MARIA DE SALZEDAS SÃO PEDRO DAS ÁGUIAS | SANTA MARIA DE AGUIAR.
FREI BERNARDO DE BRITO E OS ESCRITORES DOS MOSTEIROS CISTERCIENSES DO DOURO
NUNO RESENDE
1. Quando aquele que viria a tornar-se Cronista Mor da Ordem de Cister em Portugal, frei Bernar-
em 1536) e que traçam uma imagem exemplar da casa.
do de Brito, chegou a São João de Tarouca (figura
Conquanto os visitadores de 1533 (apud BRONSE-
1), em 1589, para ouvir as prelecções filosóficas de
VAL & COUCHERIL, 1970) sejam parcos em referên-
frei Teodósio de Lucena, o mosteiro era um impor-
cias, elogiosas ou de censura, ao estado do mosteiro
tante pólo cultural da região. Tal se infere da leitura
de São João (tendo a comitiva realizado uma incur-
das visitações que anos antes o visaram (em 1533 e
são pela igreja, sacristia, biblioteca, dormitório e re-
F igura 1 | Vista sobre o mosteiro de São João de Tarouca (2010). Foto Pedro Martins © DRCN
82
feitório) concluiu M. Alegria Marques – comparando
Bernardo de Brito (figura 2) chegou, portanto, a
esta visita com os apontamentos de outras contem-
São de Tarouca com 21 anos, depois de ter passado
porâneas – que São João seria mosteiro bem ordena-
por Roma e de ter tomado o hábito cisterciense no
do (MARQUES, 1998: 74). Esta organização espelha-
mosteiro de Alcobaça, em 1585, casa onde profes-
se na visita de 1536 (apud GOMES, 1998), quando as
sou, sendo o seu mestre de noviciaria frei Francisco
observações dos visitadores atentaram sobretudo
de Santa Clara.
em questões morais e menos ao funcionamento da
Nascido em Almeida, em 1568, com o nome secu-
casa, que parecia regular. Embora com menos reli-
lar de Baltasar de Brito, filho do militar Pedro Cardo-
giosos do que anos antes (chegara a ter 25 religio-
so de Andrade e de D. Maria de Brito de Andrade
sos e em 1536 havia apenas oito monges de cogula,
– ambos de famílias da nobreza regional – o futuro frei
quatro barbatos e três noviços) o capital humano
Bernardo cresceu em contexto de monarquia dual,
de Tarouca ainda serviu para suprir as ausências em
num território outrora fronteiriço que a união ibérica
Santa Maria de Aguiar e da Estrela que os visitadores
diluiu. É provável que proximidade a casas cistercien-
consideravam mosteiros menos providos de mãos e
ses como a de Santa Maria de Aguiar (figura 3) influís-
de vozes (apud GOMES: 316-319).
sem na família de Baltasar o desejo de encaminhá-lo
A acção reformadora do Cardeal D. Henrique à
para a ordem cisterciense, muito embora o seu bió-
frente de Alcobaça e da ordem de Cister em Portu-
grafo refira que o pai o mandou a Roma estudar para
gal alcançou S. João de Tarouca que, ao longo da
viver no Seculo herdeiro dos seus serviços militares (S.
primeira metade do século XVI, sofrera com as ques-
BOAVENTURA, 1827: 108). Religioso ou militar, a carrei-
tões comendatárias (fora tornada Comenda em
ra de Baltasar só poderia singrar na aproximação aos
1540) e com a interferência de D. João III no sentido
poderes da monarquia ibérica, num tempo em que
da sua extinção (GOMES, 2006)1. Depois da morte do
as centralidades se definiam no acesso, ainda que
monarca e com a anuência do papado, em 1559 D.
efémero e volátil, a certas instituições.
Henrique restabeleceu São João de Tarouca, Salze-
Nesse sentido, a Ordem de Cister com forte implan-
das e Santa Maria Aguiar dos direitos e posses de que
tação a sul do Douro assumia através das suas casas,
haviam sido desviados abrindo caminho aos aba-
uma rede privilegiada de expressão cultural e econó-
dessados trienais (GOMES, 2006: 389-390). Começou
mica, no momento em que a corte se trasladara ao
então um período de recuperação e prosperidade
centro da Península Ibérica. Embora a historiografia
para São João de Tarouca – mosteiro definitivamen-
de pendor nacionalista tenha insistido na ideia do
te restaurado em 1562 (cf. GOMES, 2006: 389, nota
esvaziamento social e económico de Portugal sobre
56) – para o que terá contribuído a fundação de um
o domínio dos Filipes a revitalização institucional de
colégio destinado ao ensino de latim, obra ou missão
ordens como a de Cister pode ter estimulado o de-
do já então regente D. Henrique (LOBO, 1840: 6).
senvolvimento de núcleos regionais de poder.
Figura 2 | Frei Bernardo de Brito: reprodução de pintura a óleo [produzida entre 1600 e 1650?] (Biblioteca Nacional).
Iniciador de uma obra emuladora do poder régio – a Monarquia Lusitana – frei Bernardo de Brito tirou partido de um dos mais importantes recursos dos mosteiros cistercienses: a memória escrita preservada nos seus cartórios e bibliotecas. Como o próprio afirmou: nas horas que me ficavam livres das obrigações essenciaes, gastava em lição perpetua nos Livros antigos, notando em cada hum deles o que achava tocante aos Lusitanos […] (apud S. BOAVENTURA, 1827: 110). Em 1597 publicou o primeiro volume da sua Monarchia Lusitana, assinando-se Cronista Geral e Religioso da Ordem de S. Bernardo. Seguiu-se, em 1609, a segunda parte da mesma obra, intercalada pela Geografia antiga da Lusitania (1597) e pela Primeira parte da Chronica de Cister (1602). Existem, porém, vários registos dos seus escritos e obras começadas ou intentadas (apud S. BOAVENTURA, 1827: 131-136). De formação humanista, frei Bernardo de Brito procurou no passado clássico um presente glorioso, para que visse o Mundo as Obras da Nação Portugueza, e deixassem as Estrangeiras de nos tractar com o afrontoso nome de Bárbaros (apud S. BOAVENTURA, 1827: 110). E como acrescenta o citado biógrafo que, se para a redacção da primeira parte da Monarquia Lusitana não foi necessário a seu Auctor ver Cartorios, nem pergaminhos; porque daquele tempo tão antigo não havia outras Memórias, salvo as que se achão nos Historiadores Gregos, e Latinos já então impressos […] porem para continuar a Obra conforme o preceito d’ElRei, era necessário andar, e ver mais terras que Alcobaça […] (S. BOAVENTURA, 1827: 111). Embora não seja possível reconstituir o percurso de
83
84
investigação de frei Bernardo de Brito grande parte
J. Leite de Vasconcelos, próximo ainda ao tempo
da memória historiográfica certamente a colheu nos
do desmantelamento elaborou uma breve análise
acervos monásticos, nomeadamente nos de Arouca
sobre os cartórios e bibliotecas de Salzedas e São
(figura 4), Salzedas2, Santa Maria de Aguiar (figura 3)
João de Tarouca – que lhe eram familiares nascera
e São João de Tarouca, cujas bibliotecas e cartórios
nas proximidades de ambos os mosteiros. No seu livro
constituíam importantes repositórios de saber.
Memórias de Mondim da Beira alude ao percurso de
Efectivamente, não obstante o estado de aban-
certos manuscritos e ao destino de muitos livros das
dono de alguns mosteiros cistercienses da região
respectivas bibliotecas (VASCONCELOS, 1933: 154-
do Douro ainda durante o início da época moder-
170; 206-211; 339). Interessa-nos particularmente as
na (veja-se o caso de Santa Maria de Aguiar, cf.
notas que Vasconcelos coligiu a partir do documento
BRONSEVAL&COCHERIL, 1970), as suas bibliotecas
intitulado Inventario de toda a livraria typographica e
fundadas na Idade Média possibilitaram a forma-
manuscrita de São João de Tarouca, realizado em 21
ção, de um expressivo conjunto de escritores, com
de Julho de 1834, onde o autor assinala a referência
proveniências diversas mas que deixaram associa-
a obras de carácter eclesiástico (catequéticas, his-
dos os seus nomes aos mosteiros onde professaram
tóricas, hagiográficas, de parenética, jurisprudência
e (ou) onde viveram. Embora espoliadas pelo regime
e direito), mas também de filosofia e de medicina,
liberal as livrarias e arquivos dos mosteiros constituíam
retiradas a uma sala com cerca de doze estantes
expressivos acervos culturais, em parte dispersos, de-
preenchidas com um mais de um milhar e meio de
sintegrados depois de 1834.
volumes (VASCONCELOS, 1933: 339-340). Na livraria
Figura 3 | Mosteiro de Santa Maria de Aguiar. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 4 | Mosteiro de Santa Maria de Arouca. Foto Pedro Martins © DRCN
N
de Salzedas, segundo o autor inferior em volumes a
acervos bibliográficos permitiram a sistematização
São João de Tarouca, a repartição das obras fazia-se
de uma lista de nomes de monges cistercienses as-
por temas e assuntos similares (VASCONCELOS, 1933:
sociados aos mosteiros do Douro que deixaram obra
347-350).
publicada, inédita ou desaparecida. No intuito de
2. As fontes seis e setecentistas, impressas e manus-
organizar esta informação dispersa aqui deixamos
critas, algumas referenciadas nas livrarias dos mos-
breves notas biográficas e bibliográficas sobre cada
teiros de Salzedas e Tarouca e ainda disponíveis em
um dos referidos autores.
85
AUTORES DOS MOSTEIROS CISTERCIENSES DO DOURO3 Anastácio de Linhares Natural de Linhares Professou em Santa Maria de Aguiar Redigiu: [1] - Exposito moralis in sex alas Seraphin Isaiae [data desconhecida] Fonte: COD431 Baltasar dos Reis Fal. 1621 Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu [1] - Libro da fundaçam do Mosteiro de Salzedas (1612). Fonte: MUÑIZ, 1793 Basílio de Almeida Natural de Almeida Professou em Santa Maria de Aguiar Redigiu [1] - De verbo abreviato [data desconhecida]. Fonte: BN, Cod. Alc. 431 Benedito de São Bernardo N. Castro Daire Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: [1] - Collecção Curioza de varias couzas pertencentes aos Religiozos Cistercienses de Portugal, por FR. Benedicto de S. Bernardo Monge Cisterciense Luzitano do Real
Mosteiro de Santa Maria de Salzedas [data desconhecida, século XVIII]; [2] - Fundação do Convento de S. Bernardo de Tavira [sem indicação de data]; [3] - Summario do Cartorio de Alcobaça [sem indicação de data]; [4] - Formulario de Varias Cartas, Alvaras, etcª [sem indicação de data]; [5] Summario do Cartorio de San Bernardo de Coimbra [sem indicação de data]; [6] - Radius Bibliothecae Alcobacensis [sem indicação de data]; [7] - Radiolorum raddi Bib. [sem indicação de data]; [8] - De Oratoris, Eremitis, seu Capellis Monachorum [sem indicação de data]; [9] - Indulta Apostolica pro Alcobaciensi Monasterio [sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 307). Fonte: BN, Cod. Alc. 394; MUÑIZ, 1793 Bernardo de Castelo Branco N. em Guardão, 1655; fal. Alcobaça, 1725 Professou em São João de Tarouca (1671) Foi o responsável pela causa da beatificação das rainhas D. Sancha e D. Mafalda, graça que alcançou para a Coroa Portuguesa em 1705. Foi cronista-mor do reino e académico da Academia Real de História (PEREIRA&RODRIGUES, 1903: 23) Publicou: [1] - Discursos Sacros (Roma, 1706); [2] - Sermão do auto da fé, que se celebrou na cidade de Coimbra em 6 de agosto de 1713 (Coimbra, 1714); [3] - Sermão de acção de graças pela aclamação d’el-rei D. João IV, pregado no
collegio de S. Bernardo de Coimbra, etc (Coimbra, 1714); [4] - Resposta à invectiva que fez José da Cunha Brochado, sobre a pergunta que fizera, se nas Memorias Historicas que escrevia d’el-Rei D. Pedro I por ordem da Academia, havia de chamar a este principe Cruel ou Justiçoso (1722). Fontes: MUÑIZ, 1793 e PEREIRA&RODRIGUES, 1905.
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Bernardo Figueiroa N. Melgaço Fal. 1708 Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: [1] - Fundação do Mosteiro de S. Maria de Fiãens [sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 143) Fonte: MUÑIZ, 1793 Cristóvão de Santiago Fal. 1615 Natural da Serra da Estrela Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: [1] - Recopilação das Doações, privilégios, e mais noticias, pertencentes ao Convento de Salzedas (apud S.A., 1776: 311-312); [2] - Hum grande volume in Folio em que se copilou a Substancia das Doaçoens e Privilegios e Titulos principaes do dito Mosteiro [de Salzedas] (BN, Cod. Alc. 431) [sem indicação de data] Fonte: BN, Cod. Alc. 431/S.A., 1776 Feliciano Coelho Fal. 1636 (Alcobaça) Professou em Santa Maria de Salzedas Foi Geral da Congregação em 1627 Redigiu: [1] - Tractatus orandi, & Meditandi (Lisboa, 1624) (MUÑIZ, 1793: 95) Fonte: MUÑIZ, 1793 Francisco de Azevedo Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: Desconhece-se a extensão e teor da sua produção escrita. Fonte: MUÑIZ, 1793. Gerardo das Chagas N. (Vilas Boas ou Touro); Fal. 1611 (Salzedas) Professou em Santa Maria de Salzedas Foi Doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra e Geral da Ordem (1591) (MUÑIZ, 1793: 94) Redigiu: [1] - Desenção do direito que tem à Ordem de S.
Bernardo de Portugal no padroado dos Mosteyros da mesma Ordem (1594). Fonte: MUÑIZ, 1793 Hilário das Chagas Século XVI (1575, seg. MUÑIZ, 1793: 94) Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: [1] - Memoria da Fundação de Alcobaça. Memoria de todos os Mosteiros de S. Bernardo que El rei D. Manoel mandou visitar: Lembrança de como foi fundado o Mosteiro de Cister. Catalogo dos Primeiros vinte Abades de Alcobaça [sem indicação de data] Fonte: MUÑIZ, 1793 Julião de Resende Professou em São João de Tarouca Redigiu: [1] - Ethimologiae nominum S. Scripture [data desconhecida]; [2] - Glossa in Evang. Mathei [sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 276) Fonte: MUÑIZ, 1793 Lourenço de Lisboa N. 1620 (Sande); fal. 1673 (São João de Tarouca) Professou em São João de Tarouca (1620) Redigiu: [1] - Batalha de Montes Claros (verso) [em data desconhecida]; [2] - Descripção de Lamego até a barca da Regoa [sem indicação de data] (MACHADO, 1752:30)4 Fonte: BN, Cod. Alc. 431/MACHADO, 1752 Luís de São Bento N. Porto; fal. 1767 Professou em São João de Tarouca Redigiu: [1] - Diccionario Ministral de todos os Ministros que tem havido no Reyno [em data desconhecida]; [2] - Relação dos effeitos que produzio na Villa de Alcobaza o terremoto do I. de Novembro de 1755 [sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 307) Fonte: MUÑIZ, 1793 Luís Lainez N. Sabugal Professou em Santa Maria de Salzedas Redigiu: [1] - Relação do Antigo Santuario de N. Senhora da Abbadia do seu principio ate ao prezente (1776); [2] - Historia Genealogia das Illmas Familias Souzas, e Fonsecas [sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 185). Fonte: MUÑIZ, 1793
Luís Sá N. Óbidos Professou em Santa Maria de Salzedas Doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra, Catedrático de Prima e Reitor da mesma instituição. Redigiu: [1] - Officia Virginis Bonae mortis. Verae Vitae. Inmaculate Conceptionis. Dolorosae Passionis Filli & Solitudinis matris (Coimbra, 1647); [2] - Serm. de Aclamaçam (Coimbra, 1641); [3] - Serm. pelo Bom Sucesso das Armas Portuguesas (Coimbra, 1641); [4] - Serm. pelo livramento de S. Magest. (Coimbra, 1647); [5] - Inauguratio de Stemate Lusitano [sermão pelas exéquias de D. Teodósio] (Coimbra, 1654); [6] Tres sonetos a Pancurpia, de Fr. Christovão de Osorio (Lisboa, 1628); [7] - Arbor meilor, fructus optimus [sem indicação de data]; [8] - Manoplia Catholicorum contra Jansenistas [sem indicação de data]; [9] - Diadema intellectuale [sem indicação de data]; [10] - Tonitrum Crucis [sem indicação de data]; [11] - Escudo Cisterciense [sem indicação de data]; [12] - De Gratiu & libero arbytrio [Coimbra, sem indicação de data] (MUÑIZ, 1793: 293). Fonte: MUÑIZ, 1793. Manuel da Conceição Professou em São João de Tarouca (1676) Redigiu: [1] - Fundação Real do Mosteiro de Alcobaça [sem indicação de data]5 (MACHADO, 1752: 225). Fonte: MACHADO, 1752. Manuel de Figueiredo N. Vila Real Professou em São João de Tarouca. Foi cronista da Ordem de Cister em Portugal. Redigiu: [1] - Relação das acçoens com que nos Real Mosteiro de Alcobaza se renderão a Deos as Graças pelos felicíssimos anos del Rey D. Joze I, Celebrandose no Mesmo Mosteiro a Inauguração da Estatua Equestre deste Monarcha [Lisboa, 1775]; [2] - Cartas a respeito da Heroina de Aljubarrota Brites de Almeida que com a Pa, do seu forno matou sete soldados do Egercito inimigo no dia 14 de Agosto de 1395 [Lisboa, 1776]; [3]- Dissertação Historica Critica em que claramente se mostram fabuloso os factos, com que está enredada a Vida de Rodrigo Rey dos Godos que este Monarcha na batalha de Guadalete morreo; que são apócrifas as peregrinações da Imagem milagrosa de N. Senhora venerada no termo da Villa da Pederneira; que não é verdadeira a Doação, que muitos crêm fez a mesma Senhora D. Fuas Roupinho, Gobernador de Porto de Mós [Lisboa, 1776]6; [4] - Res-
posta a um Togado da Corte sobre o mesmo assumpto [ver 3] [sem indicação de data]; [5] - Introdução para a História Ecclesiastica do Bispado Lamecense [Lisboa, 1787]; [6] - Dissertação Historia-Critica-Apologetica convincente da novíssima opinião que seguio que o Infante D. Luiz Duque de Beja fora deseherdado do Direito da sucessão do Reyno, pela desigualdade do Casamento [1788]; [7] - Descripção de Portugal, apontamentos e Notas da sua Historia antiga, e Moderna, Eclesiastica, Civil e Militar [1788]; [8] - Supplemento a Descripção de Portugal em satisfação da carta que hum Prelado do Reyno escreveo ao Author da mesma obra [1788]; [9] - Provas da votiva acção do primeiro monarca de Portugal, que na marcha para escalar Santarém prometteo à Deos a fundação de hum Mosteiro Cisterciense, se pelas intercessoens de S. Bernardo ficasse Senhor da Fortaleza que hia atacar [Lisboa, 1788]; [10] - Origem verdadeira do Conde D. Henrique Soberano independente de Portugal, e por Varonia da Casa de Borgonha, Ducado, terceiro neto de Roberto o Devoto, ofrecida a todos os Portuguezes [1789]; [11] - Dissertação Historica, e critica para distinguir D. Pedro Afonso filho do Conde D. Henrique, Religioso Cisterciense de Alcobaza, de D. Pedro Affonso filho do Rey Affonso Henriques [1789]; [12] - Mapa nominal de todos os Abades de Alcobaça, Geraes da Congregação de San Bernardo, com todas as declarações, e circunstancias, que os facem conhecidos, e respeitados [Lisboa, 1789]; [13] - Dissertação histórica e Critica, que mostra não deu o Senhor D. Affonso Henriques ao Mosteiro Real de Santa Cruz de Coimbra o domínio temporal de Leiria, nem na Jurisdicção Ecclesiastica, que lhe doou, foi compreendida à Villa de Aljubarrota, que não hé em parte alguma do seu termo sujeita as determinações do Foral de Porto de Mós [1790]; [14] - Vida da Augustissima Rainha Santa Teresa filha do segundo Rei de Portugal, e Religiosa Cisterciense; escrita por Joseph Pereira Bayão, suplementada com Dissertações, notas y documentos por Fr. Manoel de Figueiredo [Lisboa, 1791]; [15] - Satisfação aos reparos, e perguntas que fez hum Viajante Historiador Portuguez examinando os Retratos dos Antiquissimos Monarchas Portuguezes, que estan na Hospedaria do Real Mosteiro de Alcobaça [1792]; [16] - Carta a hum brigadeiro de Tras os Montes sobre a origem das pensoens vulgarmente chamadas: Votos de Santiago [sem indicação de data] [17] - Catalogo e Supplemento Chronologico-Historico e Critico dos Substitutos dos Esmoleres Mores dos Reis de Portugal, 4. gr. dos volum. Historia da Esmolaria Mor de Portugal, e Catalogo dos Propietarios e Substitutos do mesmo Emprego com 30 Documentos, que mostrão sempre os Abbades de Alcobaza tiverão a propriedade do
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mesmo Ministerio, regalia de aprezentarem aos Monarchas quem os servisse nos seus impedimentos, fol. Segunda Parte da Alcobaza Ilustrada7 [sem indicação de data]; [18] - Catálogo dos Arcebispos, e Bispos Cistercienses de Portugal e memorias de Alguns Monges ilustres que professárão o mesmo Instituto. Fundação do Collegio de Espirito Santo de Coimbra, e Catálogos dos Dons Abbades reitores Lentes da Universidade e Doutores do mesmo Collegio [sem indicação de data]; [19] - Catalogo dos Monges de San Bernardo que forão Chronistas Mores do reyno de Portugal [sem indicação de data]; [20] - Catalogo dos mesmos Monges da mesma Ordem, que desta forão Chronistas [sem indicação de data]; [21] Catalogo dos Monges da mesma Ordem que forão Deputados, e Qualificadores do Santo Officio [sem indicação de data] [22] - Serie dos Monges, que tiverão na dita Ordem os Privilegios de Ex Geraes [sem indicação de data]; [23] Serie dos Lentes de Artes da dita Ordem [sem indicação de data]; [24] - Fundação, e catálogo dos Abbades do Mosteiro de Ceiza [sem indicação de data]; [25] - Fundação, e Catalogo dos Abade do Mosteiro do Desterro [sem indicação de data]; [26] - Fundação e Catalogo dos Abbades Reitores do Collegio de nra. Senhora da Conceição de Alcobaza [sem indicação de data]; [27] - Catalogo dos Priores de Odivellas, Creação da sua Abbadia, e Catalogo dos seus Abbades [sem indicação de data]; [28] - Correçoens, e Adiçoens dos 4 Tomos da Bibliotheca Lusitana no que he respectivo aos Cistercienses [sem indicação de data]; [29] - Colleção dos Escriptores Cistercienses omitidos nos 4 Tomos da Bibliotheca Lusitana; e dos que escreverão depois de impressos os mesmos volumes [sem indicação de data]; [30] - Catalogo dos Presidentes da Congregação de Alcobaza por falecimiento do Rmos. Geraes [sem indicação de data]; [31] - Memorias dos Comendatarios de Alcobaza D. Jorge de Almeida, D. Jorge de Ataide, e D. Fernando de Austria, que não tiveram jurisdição no Mosteiro [sem indicação de data]; [32] - Memorias do Arcebispo de Braga D. Fr. Alexandre de Portugal Commendatario do Mosteiro de Ceiza [sem indicação de data]; [33] - Memorias para a Historia do Cardeal Monarcha D. Henrique I Geral da Congregação de Alcobaza, divididas por épocas das suas Dignidades, e Soberania E inscripçoens para os novos retratos dos Abades perpétuos, Commendatarios, e Triennaes do Mosteiro de Alcobaza de 1152 até 1789 [sem indicação de data]; [34] - Principio e renovação do Laus Perenne do Mosteiro de Alcobaza, e memoria abreviada do Monge Cistercienses Portuguez Fr. Thomaz de Brito, que aplicou muitos bens para mayor solemnidade do mesmo Laus Perenne, e culto do Santissimo Sacramento; com o
catalogo dos Priores de Alcobaza que administrão os mesmos bens de 1660 até 1789 [sem indicação de data]; [35] Resposta, e satisfação a hum Amigo mostrando que foi o Mosteiro de Alcobaza ate o Reinado de D. Affonso 4 Archivo Real, ou Torre do Tombo [sem indicação de data]; [36]- Duas cartas que mostrão como exemplos, Historiadores e Juristas, obtiveram os Reys de Portugal, Castella, e mais Monarchas de Hespanha Bullas Apostolicas para perceberem os Dicimos das terras conquistadas e os doárão a muitas Cathedraes, Igrejas, e Mosteiros [sem indicação de data]; [37] - Dissertação Historica, e Critica que faz certa a existência, e os efeitos da segunda Doação que D. Affonso Henriques faz ao Prelado, e Monges de Alcobaza no anno de Christo 1183 abalizando as terras já doadas na primeira doação, e doandole os Dizimos das suas produçoens [sem indicação de data]; [38] - Historicas reflexoens com as quaes se explicão as letras do Caliz preziozo de Alcobaza, mostrando quem deu esta peza ao Mosteiro; seguindo em tudo diversa idea das estampadas por alguns Autores Portuguezes [sem indicação de data]; [39] - Principio do Anniversario de D. Alffonso Henriques que celebrão os Monges de Alcobaza com ornamento festivo no dia 7 de Dezembro [sem indicação de data]; [40] - Instituição da Capella de D. Pedro I no Mosteiro de Alcobaza, e aplicação da hipoteca por el Rey D. Fernando, com tudo o mais que respeita a este assumpto [sem indicação de data]; [41] - Principio e circunstancias do Anniversario que celebrão os Monges de Alcobaza no I de Fevereiro pelo Cardeal Monarcha [sem indicação de data]; [42] - Reflexoens, e fundamentos que desmanchão quanto se oppoz contra a Doação que o Conde D. Henrique fez ao Mosteiro de Lorbão doandole quazi todas as terras, e Padroados, de que he Donatario. Collecção de Apontamentos históricos para convencer o Memorial do Cabido de Leiria, que pertendia lhe pagasse do Mosteiro de Alcobaza a terça parte dos Dizimos de muitas terras que possuía no Bispado Leiriense [sem indicação de data]; [43] - Duas Cartas históricas, e Juridicas respondendo ao dito Cabido [de Leiria] sobre o mesmo assunto. Collecção de apontamentos territoriais, e divisórios do Patriarchado de Lisboa, e do Bispado de Leiria para instruir Engenheiros que formarão o Mapa dos Confins, e divisoens das mesmas Dioceses, para se juntar a cauza que correo sobre o mesmo objecto da terça dos Dizimos [sem indicação de data]; [44] Collecção de Apontamentos históricos, que servirão de base ao Memorial que acabou de convencer a pouca justiça da mitra Patriarchal que obrigava o Mosteiro de Alcobaza a pagarlhe a terça dos Dizimos das Quintas, que possue no destrito do mesmo Patriarchado [sem indicação de data]; [45] -
Discurso histórico, que aponta as partes, figuras e Cores de que devem ser formadas as Armas Cistercienses [sem indicação de data]; [46] - Títulos, e Arvores de muitas Familias de Portugal [sem indicação de data]; [47] - Parecer histórico e jurídico, em que sustenta não hé obrigado o Alcaide Mor de Alcobaza a concertar a Cadea da mesma Villa [sem indicação de data]; [48] - Mapa de todos os Monges da Congregação de Alcobza, feito en todos os Triennios decorrentes de 1762 até 1789. Resposta a um Prelado regular sobre os Contratos que Felipe I fez com alguas Congregaçoens respectivos aos Padroados de alguns Mosteiros, que ficarão pagando pensoens a Capella Real [sem indicação de data]; [49] - Instituição e prezente Estado dos Lugares do Religiozos do Padroado Real nos Mosteiros de Odivellas, Esperanza, Santa Anna de Lisboa, Chagas de Villaviçoza, Santa Monica de Evora, e nuestra Senhora da Graza de Abrantes, conforme a disposição da Rainha D. Catherina, e compromisso do Cardeal Rei, e confirmação de Clemente 8 [sem indicação de data]; [50] - Resposta a pergunta se os Dons Abbades Geraes Esmoleres Mores são Conselheiros dos Monarchas Portuguezes como Esmoleres Mores, ou como Abbades de Alcobaza, em que se mostra quando principiárão a ter a mesma honra, e pela Collecção dos documentos do Cartorio de Alcobaza as occazioens em que os mesmos Monarchas tratarão com o titulo de seus Conselleiros os Abades Perpetuos, e triennaes do mesmo Mosteiro [sem indicação de data]; [51] - Mapa dos Monarchas, e Princepes sepultados no Cruzeiro de Alcobaza, para onde os treladou o Abbade Fr. Jorge de Mello: e requerimento a sua Magestade pedindo Licença para serem trasladados os mesmos Corpos Reaes a nova Caza feita pera seu deposito [sem indicação de data]; [52] - Voto histórico em que mostra não há Ley, ou preceito regio que prohiba dentro das Igrejas de S. Julião da Villa da Pederneira; Estado de possuidores da Quinta do mesmo nome; e parecer sobre o direito; e parecer sobre o direito de quem pretendia suceder na mesma Quinta ao ultimo possuidor [sem indicação de data]; [53] - Principio dos Capitulos Geraes Cistercienses de Portugal, origem, e numero dos seus vogaes; dos que forão casados em alguns tempos, e dos que se concederão, e os que actualmente os tem; Ordem das suas Eleiçõens, e declarazão das alternativas dos Geraes, Diffinidores, Abbades, e Procuradores Geraes [sem indicação de data]; [53] - Explicazão de Thomar sobre as antiguidades, e Profissoens dos Leigos nas Ordens Monasticas, e cores dos hábitos, resposta a hua Personagem sobre antiguidades, e posse da oferta, que Senhor D. Affonso Henriques fez, e paga a Coroa Portugueza a nuestra Senhora de Claraval, que deu
fundamento para o Cisterciense Caramuel nos Philipus Prudens ventilar, e os Reino ficava devoluto ao mesmo Mosteiro por morte do Cardeal rey? [sem indicação de data]; [54] Parecer histórico sustentando que a carta da mesma oferta a Senhora de Claraval, e de proteczão ampla aos Cistercienses, não foi privilegio Grazioso, mas acto remuneratório, e assento das Cortes de Lamego [sem indicação de data]; [54] - Livro Mestre do Mosteiro de Alcobaza com declarazão de todas as suas Officinas, e trastes, que nestas existem; de todos os seus prédios rústicos, e urbanos, alfaias, e moveis, que a todos os respeitão, origens, e actuaes estados das suas rendas [sem indicação de data]; [55] - Livro Mestre do Mosteiro de Cos, feito com a formalidade dos antecedentes [sem indicação de data]; [56] - Regulamento para governo do Celleireiro Mor de Alcobaza no pagamento das vestidorias, viáticos, pitanzas, Lavapes dos pobres em quinta feira Santa, e otras despezas certas da mesma Officina [sem indicação de data]; [57] - Critica do Kalendario Cisterciense de 1771 mostrando estava em muitos pontos contrario aos preceitos dos Usos de Cister, Leys, Rituaes, e costumes da Ordem [sem indicação de data]; [58] - Allegazão Historica Critica e Juridica feita no litigio, em que se disputaba o Paadroado [sic] da Igreja de S. Maria de Porto de Mos, para mostrar, que: Ecclesia Sanctae Mariae Portus Molarum, he a Igreja de Santa Maria de Puerto de Mos, que foi doada ao Mosteiro de Alcobaza por D. Affonso 3; assim se julgou [sem indicação de data]; [59] - Parecer histórico, e jurídico sobre a duvida de pertencerem os Expedientes, e os Emolumentos das Provizoens dos Eleitos em Capitulo Geral de Alcobaza ao Secretario deste Corpo, ou aos do Rmo. D. Abbade Geral [sem indicação de data]; [60] - Index de 7 Tomos de Cartas escriptas pelos Monarchas Portuguezes aos Prelados de Alcobaza8 [sem indicação de data]; [61] - Reforma e adicionamento para o Expediente de todas as merces, e mais dependências, que respeitarão a Real Abbadia de Alcobaza [sem indicação de data]; [62] - Formulario para as Vicitas dos Padres Geraes, e Vizitadores; e para processar as cauzas crimes da Congregazão [sem indicação de data]; [63] - Mapa Historico de todas as facendas, que possue o Real Mosteiro de Alcobaza, com declarazoens, e citas dos títulos das suas aquiziçoens, e tempos das posses, apprezentado ao Corregidor da Comarca de Liria para satifazão des Ordens Regias [sem indicação de data]; [64] - Regulamento para o Expediente da Meza de Facenda de Mosteiro de Alcobaza, cobranza de suas rendas, e distribuição de todos os seus ramos [sem indicação de data]; [65] - Parecer Historico-Juridico refutando os votos contrarios, e mostrando não devião ser alienados os Paosaes
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[Passais] das Igrejas de Evora, Turquel, e Cella, pelo não compreender a Ley de 4 de Julho de 1768 [sem indicação de data]; [66] - Instruczoens históricas, e Juridicas para serem tratadas na Junta das Confirmazoens de D. Joze I as dependências da Congregazão de S. Bernardo, cum hum Mapa de todos os títulos desta Congregazão, apprezentados na mesma Junta, datas, e declarazoens substanciaes das cautelas dos ditos títulos [sem indicação de data]; [67] - Discurso Historico, e Juridico mostrando não devia Mosteiro de Alcobaza pagar anualmente quarenta mil reis ao Seminario de Santa Catherina de Lisboa [sem indicação de data]; [68] - Memorias das Vida, e Governos dos Rmos. Geraes da Congregação de S. Bernardo Fr. Pedro de Mendonza, Fr. Joze Cardozo, Fr. Manoel de Barboza, Fr. Luiz Pereira, Fr. Caetano de Sampayo, Fr. Nuno Leitão, Fr. Manoel de Mendoza, Fr. Antonio Caiado, Fr. Antonio Caldeira, Fr. Alexandre Vasconcellos, Fr. Antonio da Mota, e Fr. Antonio de Magalhaens [sem indicação de data]; [69] - Assento de todos os Religiozos que falecerão na Congregação no decurso de 10 Triennios [sem indicação de data]; [70] - Memorial Historico, e Juridico apprezentado a Coregidor de Leiria para mostrar que o D. Abbade Geral Esmoler Mor pode apprezentar todos os Officios das terras de que he Donatario, não se encartando os apprezentados no tempo que determinão as Leys [sem indicação de data]; [71] - Mapa de todos os Padroens de Juro Real da Congregação de S. Bernardo, com declaraçoens dos seus capitães, antiguidades, venzimentos dos seus reditos, libros, e folhas, em que estão registrados na Torre do Tombo [sem indicação de data]; [72] - Mapa de todos os Cazamentos, Baptizados, Obitos, e indivíduos que vivião na Comarca de Alcobaza nos anos de 1773, 74, 75 e 76 [sem indicação de data]; [73] - Parecer Historico, e Juridico Expondo os fundamentos para serem revindicadas as facendas da Coroa que os Corpos de mão morta alienarão, com o pretexto da Ley de 4 de Julho de 1768 [sem indicação de data]; [74] - Colleczão de todos os Epitaphios abertos em muitas Igrejas, Capitulos, e Claustros da Congregação de Alcobaza [sem indicação de data]; [75] - Serie de todos os Ouvidores com alzada, que houve na Comarca de Alcobaza de 1521 até 1644. E provas das suas Jurisdizoens [sem indicação de data]; [76] - Mapa, e Notas de todos os Padroados nas Igrejas da Congregação de S. Bernardo; [77] - Memorias do Mosteiro Cisterciense de S. Christovao de Lafoens, que conthem a Vida do seu Fundador D. João Peculiar Arcebispo de Braga [sem indicação de data]; [78] - Dissertação que mostra não foi o mesmo Prelado Eremita Augustiniano: Notas respectivas a vida do mesmo Veneravel Fr. João Cirita Abbade da mes-
ma Caza [sem indicação de data]; [79] - Descripção do Concelho de Lafoens, e do dito Mosteiro com o Catalogo dos seus Abades Vitalicios, e Jurisdiçoens que tem [sem indicação de data] [80] - Descripção do sima Coa, no Estado actual, e seculos antecendentes, e do Mosteiro Cisterciense de Santa Maria de Aguiar, com o Catalogo dos seus Abbades Vitalicios, Triennaes, e Jurisdiçoens, que tem [sem indicação de data]; [81] - Resposta historica, e critica ao D. Abbade de Aguiar sobre a Doação que Affonso Rey de Leão filho de Fernando 2 e Urraca de Portugal fez ao mesmo Mosteiro doandolhe as terras, e jurisdiçoens da Villa de Bouça situada no mesmo Reino [sem indicação de data]; [82] - Index da Pologia do Padre Mestre Cisterciense Vasques respectiva a conservação dos Ritos, e Ceremonias da mesma Orden [sic] [sem indicação de data]; [83] - Relazão da hospedagem, que a N. Augustissima Soberana D. Maria I fizeram o Prelado, e Monges do Mosteiro de Alcobaza no dia 14 de Outubro até dia 18 do dito mez, em que sua Magestade, e Real Familia fizeram Corte o mesmo Mosteiro [sem indicação de data]; [84] - Historia Corographica da Comarca de Alcobaza com exacta descripção de todas as partes do Mosteiro, Jurisdiçoens, e Regalias, e de quanto respeita a suas terras no Ecclesiastico, Civil, e Militar: Com hua descripção das fundaçoens dos Mosteiros que forão, e ainda estão subjeitos aos Abbades Geraes de Alcobaza [sem indicação de data]; [85] Mapa de todas as espécies de tributos que pagão ao Rey os moradores da Comarca de Alcobaza [sem indicação de data]; [86] - Descripção da sepultura do Conde de Barcellos D. Pedro, que jaz no Mosteiro Cisterciense de S. João de Tarouca [sem indicação de data]; [87] - Mapa de todos os foros que os moradores da Comarca de Alcobaza pagão a particulares; [88] - Mapa de todos os Religiozos Cistercienses Portuguezes falecidos de 1700 até 1784 [sem indicação de data]; [89] - Critica branda do Diario Ecclesiastico vulgarmente chamado Folhinha de Algibeira, apontando os seus erros Historicos nos Catalogos dos Reys, e Rainhas de Portugal [sem indicação de data]; [90] - Dissertação histórica-critica sustentando foi verdadeiro o triunfo do Abbade João Governador de Monte Mor o Vello, e o milagre de resucitarem todos os que forão mortos com os golpes do mesmo Abbade, e seus Soldados [sem indicação de data]; [91] - Mapa de todos os Monarchas de Europa em 1787 dividido as partes de sua maioridade, nomes, e Soberanias [sem indicação de data]; [92] - Arvores genealógicas que mostrão por muitas Linhas, e Cazas de Borbon, e Palatina os parentescos, que tem os Principes noivos de Portugal, e Hespanha com os Monarchas, e Principes da Europa [sem indicação de data]; [93]
- Critica de pequeno Libro: Demetrio moderno [sem indicação de data]; [94] - Primeira, e segunda Resposta a hum Censor regio, que mostrou em hua larga Dissertação he fabulosa a origem da Familia de Tavora; e que esta não foi Padroeira do Mosteiro Cisetrciense de S. Pedro das Águias [sem indicação de data]; [95] - Resposta ao mesmo tempo Censor, e duvidas que propoz sobre a filiação Regia do Carmelitano Calzado D. Fr. João Manoel Bispo de Tiberiades, de Ceuta, e Guarda [sem indicação de data]; [96] - Memorias Geographicas, e Historicas da Comarca de Alcobaza, escriptas a instancia do sargento Mor do Regimento da Cavalaria de Almeida João Bernardo Real da Gama, que pertendia formar hum Dicionario Geographico de Portugal [sem indicação de data]; [97] - Creação de Procurador Geral Cisterciense na Cidade do Porto, com o mais que lhe respeita, e Catalogo dos que occuparão o mesmo lugar até 1783 [sem indicação de data]; [98] - Fundação dos mosteiros Cistercienses de S. Bernardo de Portalegre, e S. Bento de Evora; e Catalogo dos Confessores desta Caza [sem indicação de data]; [99] - Respostas a 193 Perguntas respectivas a Culturas, e outros assumptos, remetidas pelo Intendente Geral de Policia; addiccionadas com apontamentos, e notas para maior clareza das mesmas Respostas [sem indicação de data]; [100] - Origem, diversos Estados, e descripção do mosteiro de Cos; Catalogo das suas Abbadessas, e Confessores [sem indicação de data]; [101] - Mapas Cronologicos, e Nominaes de todos os Geraes, Deffinidores, Abbades, Vizitadores, Secretarios, Vogaes, Doutores, e Confessores, Mestres de Noviciado, Procuradores Geraes, e Priores de Alcobaza; da origen [sic] dos Capitulos Cistercienses de Portugal até 1780 Cister Purpurado; Vida, e acçoens dos Papas, e Cardeaes Cistercienses [sem indicação de data]; [102] - Titulos com Grandeza, e sem ella, que existem, e acabarão em Portugal. Vida do Cisterciense Bispo, e Arcebispo D. João Caramuel [sem indicação de data]; [103] - Vida do Arcebispo de Braga D. Lourenzo Vicente da Lourinhã [sem indicação de data]; [104] - Chronologia Bernardina, escripta por Mavillon, vertida em Portuguez, e adicionada com advertencias e notas [sem indicação de data]; [105] - Mapas dos Mosteiros de Cos, e Alcobaza, com declaração das suas fundaçoens, numero de indivíduos, rendimentos, encargos, e dividas, para serem apprezentados a N. Soberana, na conformidade das suas Ordens. Relação da Cheya, que indundou Alcobaza, na noute de 23 para 24 de Fevereiro 1774 [sem indicação de data]; [106] - Reparos, e Notas do Almanak de Lisboa de 1788 e advertências para o do anno de 1789; [107] - Catalogo dos Vice Reys, e Gobernadores da Asia Portugueza de D. Francis-
co de Almeida até o prezente [sem indicação de data]; [108] - Catalogo nominal dos Infantes, e Infantas portuguezes que casarão fora do Reyno, com as noticias respectivas aos Consorcios, e sucessoens [sem indicação de data]; [109] Catalogo dos Reys, e Rainhas de Portugal, e de seus filhos e filhas, emendado nos erros, e descuidos com que ate agora tem corrido, com hum dilatadíssimo Prefacio, em que se illustrão muitos dos substanciaes pontos de Historia Portuguezas [sem indicação de data]; [110] - Diccionario Fluvial Portuguez principiado; e Collecção total das notícias para a mesma obra [sem indicação de data]; [111] - Reparos dos 5 Tomos da Bibliotheca Lusitana [sem indicação de data]; [112] - Entrada, e progressos da Tipographia em Portugal [sem indicação de data]; [113] - Catalogos dos Vice Reys, e Governadores de Portugal no Governo Filippino [sem indicação de data]; [114] - Catalogo dos Secretarios de Estado dos Monarchas Portugueses [sem indicação de data]; [115] - Catalogo dos Regentes do Reyno de Portugal na menoridade, e impedimentos dos seus Monarchas; [116] - Index de todas as regalias dos Chefes Cistercienses de Portugal, como Esmoleres Mores do Rey, Geraes da Ordem, e Abade de Alcobaza [sem indicação de data]; [117] - Historia de Santa Mafalda Raynha de Castella, na qual por documentos se provão as acçoens da sua Vida, e Virtudes9. Prefacio do Libro da Receita, e despeza da Bibliotheca do Mosteiro de Alcobaza, que contem hua instrução para os Bibliothecarios: A Historia da mesma antiga, e moderna Bibliotheca, e Catalogo dos seus Bibliothecarios de 1657 ate 1789. Vida do Barão de Laudon e descripção de Belgrado, vertidas de Castelhano, e supplementadas com grandes, e pequenas notas10 [sem indicação de data]; [118] - Vida do Chronista Mor Fr. Bernardo de Brito, e a sua Geographia antiga de Lusitania, notada [sem indicação de data]11. Fonte: MUÑIZ, 1793. Matias da Conceição N. 1629; fal. 1687 (Tavira) Natural da Vila de Pombal Professou em São João de Tarouca (1646) Foi Abade de Santa Maria de Aguiar (1683)12 Redigiu: [1] - Viridiario poético [sem indicação de data]; [2] - Fundação do Real Mosteiro de Alcobaça em Outava [sem indicação de data]; [3] - Rithma em 7 cantos em 8.º anno de 1676; [4] - Vida e Morte do Veneravel P.e Antonio da Conceição Religiozo da Congregaçam de S. João Evangelista em Verso Anno de 1678; [5] - Vidas das Rainhas S. Isabel, do Infante S. Fernando, da Princesa S. Juana, e do Card. D.
91
Henrique [sem indicação de data]; [6] - Historia das Imagens de N. Senhora em Portugal, e da Procissam dos Nus [sem indicação de data]13 Fonte: BN, Cod. Alc. 431/MUÑIZ, 1793/MACHADO, 1752. Pôncio de Pinhel Natural de Pinhel Professou em Santa Maria de Aguiar Redigiu: [1] - Sermones Divi Augustini in Epistolam Joannis; Expositio Joannis Constantinopolitani […]. Fonte: BN, Cod. Alc. 431.
92
Teotónio de Condeixa Natural de Condeixa Professou em Santa Maria de Aguiar Redigiu: [1] - De verbo abreviato. Fonte: BN, Cod. Alc. 431.
Excluímos desta listagem os religiosos naturais da Diocese de Lamego que nasceram à sombra ou na proximidade dos mosteiros cistercienses a sul do Douro, ou que noutros institutos, mais distantes, se formaram, como os casos de frei Bernardino Soutomaior, natural de Britiande (MUNIZ, 1793: 325); e ainda os de vários escritores e professores que transitaram por aquelas casas (o exemplo de frei Manuel da Rocha)14. Porém a relação apresentada é representativa das redes de circulação de saber entre os mosteiros cistercienses e do grau de intelectualidade de alguns dos seus religiosos. Tendo em conta a amostragem (21 autores e 165 obras) e a janela cronológica (séculos XVII e XVII) devemos salientar as temáticas e assuntos mais abordados pelos escritores, tendo à cabeça da lista as questões de crítica histórica (40), ligadas a aspecto de direito e jurisprudência (nomeadamente associadas à posse de património e jurisdições - obras na sua maioria manuscritas); obras memorialísticas, referentes à história fundacional das casas monásticas (26), biografias e róis biográficos (22) claramente laudatórios sobre figuras-chave da ordem (escritores, e da história nacional (normalmente figuras régias); trabalhos de carácter diplomático e arquivístico (19), parenética e teologia (note-se o notável conjunto de panegíricos e sermões nacionalistas do período restauracionista) (12), cronística (12) e, curioso apontamento, obras poéticas (5), algumas de teor satírico. Assinala-se também a ocorrência de alguns escritos sobre genealogia familiar nobiliárquica e heráldica institucional (6)15 e direito (1). Nesta amostragem a média de 2-3 obras redigi-
das por cada autor é anulada pela vasta produção
e arquivista propugnando pela defesa da memória e
de frei Manuel Figueiredo (118 obras) produzida até
do património cistercienses, procurando refutar ale-
1789, em cujo ano vivia como atestava o autor da Bi-
gações que contrapunha com o acesso a um vasto
blioteca Cisterciense Espanola (cf. nota 11). Pouco se
alfobre de informações disponíveis nos cartórios e bi-
sabe sobre a sua biografia, para além de que nasceu
bliotecas monásticos.
em Vila Real e que a sua actividade literária foi profí-
Embora, frisemo-lo novamente, esta breve relação
cua a partir da década de 70 do século XVIII. Homem
não possa constituir um elemento de mediação do
de luzes, e fadigas, digno por certo de mais larga
contributo intelectual para a cultura portuguesa da
vida, e melhor fortuna, pela imparcialidade do seu
época moderna e, em particular, do Antigo Regime,
caracter, como o descreve Fr. Joaquim de S. Agosti-
a apresentação dos elementos supra parece contra-
nho numa Memória sobre os Códices Manuscritos de
dizer a vox populi oitocentista que, acicatada pela
Alcobaça (S. AGOSTINHO, 1793: 301), estaremos pe-
propaganda liberal, chamava bernardice a frase
rante um dos mais laboriosos cronistas da Ordem de
equivoca ou mal construída, como assim no-lo escre-
Cister, com uma obra marcadamente polemista em
ve D. Maria do Pilar (OSÓRIO, 1872a: 21) (cat. 19).
que o autor intervém como historiador, memorialista
1. A extinção de São João de Tarouca, ainda que temporária chegou a acontecer e incluiu Salzedas, ambos incorporados noutros patrimónios; o primeiro mosteiro no domínio dos freires da Ordem de Cristo de Coimbra e o segundo no dos freires de Avis. Cf. VASCONCELOS, 1933: 361-362. 2. M osteiro onde viria a falecer. Em 1927 ainda era visível a epígrafe da sua campa rasa na capela-mor, cf. COUTO, 1927: 31. 3. Esta lista é constituída por verbetes com os seguintes campos: Nome (secular ou religioso), naturalidade ou lugar de nascimento e data (N.), lugar de óbito e data (Fal.); Mosteiro onde professou (e data, caso exista registo); Obra(s) que redigiu (publicada e manuscrita e datas, caso existam); Fonte(s). Respeita-se a grafia dos títulos, segundo os autores das fontes consultadas. Informações adicionais são acrescentadas entre parêntesis rectos. 4. Diogo Barbosa Machado acrescenta que frei Lourenço terá redigido certas poesias satíricas pedindo que as reduzissem a cinzas, depois da sua morte (MACHADO, 1752: 30). 5. Diogo Barbosa (MACHADO, 1752: 225) transcreve as primeiras estrofes do poema, cujo manuscrito escreveu encontrar-se na Biblioteca do Marquês do Louriçal. 6. Sobre esta obra o autor da Biblioteca Cisterciense Espanola diz ter havido uma segunda parte (MUÑIZ, 1793: 129). 7. Segundo o autor da Biblioteca, a obra constaria de 37 capítulos, estando «incompleta» (MUÑIZ, 1793: 143). 8. O autor dá-nos a indicação de existirem dois volumes desta obra (MUÑIZ, 1793: 143) 9. O autor diz que «Está incompleta» (MUÑIZ, 1793: 143) 10. «Está en las licencias» - referência do autor (MUÑIZ, 1793: 143) 11. «Está en las licencias» -referência do autora, que acrescenta: «Todas estas obras se conservam en poder del Autor, que hoy vive», (MUÑIZ, 1793: 143). 12. Cf. a lista dos abades de Aguiar, publicada em COUTO, 1927: 49 ss. 13. Diogo Barbosa (MACHADO 1752: 453) acrescenta a este título a indicação […] Procissão dos Nús em Coimbra e esclarece que todas as obras do autor se encontravam na Biblioteca do Mosteiro de Alcobaça. 14. Frei Manuel da Rocha, natural de Castelo Branco (onde nasceu em 1676), professou em Alcobaça em 1692 mas ensinou Teologia em Santa Maria de Salzedas e São João de Tarouca (MACHADO, 1752: 352). 15. Dado que não nos foi possível reconhecer e consultar as obras elencadas, apenas o título nos serviu para aferir do teor das mesmas. Desconhecemos a temática ou assunto de 29 obras.
93
012
SÉCULOS XVII-XVIII
MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE TABOSA
O CLAUSTRO DO MOSTEIRO DE NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE TABOSA: UMA ARQUITECTURA «SENZA TEMPO»
ANA CRISTINA SOUSA
Construído nos primeiros anos do século XVIII, o
de casas monásticas, muitas de instituição tardia,
claustro do antigo Mosteiro de Nossa Senhora de Ta-
este mosteiro constitui (figura 1) a última fundação
bosa apresenta-se no contexto artístico da época da
feminina cisterciense em Portugal.
sua construção como uma arquitectura «senza tem-
Situado na freguesia de Tabosa do Carregal (conce-
po» e impõe-nos a necessária reflexão sobre crono-
lho de Sernancelhe), as características do mosteiro de-
logias, linguagens artísticas e periferias. Instalado na
vem ser analisadas em função do lugar ermo, inóspito
região sul duriense, com uma elevada concentração
e isolado, onde os invernos, gerados pelo Diabo «para
Figura 1 | Claustro. Foto Pedro Martins © DRCN
95
tormento da Serra», são rigorosos e se prolongam, mar-
A 22 de abril de 1692 é assinada, em casa de D.
rijas como penedos», pela «neve de cantaril» que vem
Maria Pereira, a Escritura de Doação, Dotação e Fun-
da Serra da Estrela, «mais sólida que muralha de bron-
dação do Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção,
ze, pelas trovoadas vindas das serranias, Montemuro,
acto que resulta de uma série de diligências previa-
Estrela, Santa Helena e Lapa [...], que despem os seus
mente desenvolvidas junto do rei D. Pedro II, Diocese
raios e troncos como numa batalha», por cima das po-
de Lamego e Congregação de Alcobaça, onde se
voações, «e abate árvores, derrota telhados, estoira a
regista a «Relação de Bens» dotados pela fundadora
madre às nascentes e alaga tudo» . Local muito pou-
para a sua criação (SANTOS, 2002: 44). Estiveram pre-
co povoado no século XVII (a fundação do mosteiro
sentes no acto de fundação a própria D. Maria Perei-
dará origem ao nascimento do pequeno povoado
ra, como primeira outorgante, e os Abades D. Diogo
de Tabosa), as condições do terreno obedeciam aos
de Castelo Branco e Manuel Coelho, dos Mosteiros
preceitos de isolamento, solidão, recolhimento e co-
de São Pedro das Águias e de Santa Maria de Sal-
munhão com a natureza determinados pela Ordem
zedas respectivamente, como comissários e procu-
(MARTINS, 2007: 194). A iniciativa da sua construção
radores do Abade Geral da Congregação de Alco-
deveu-se a um voto pio de D. Maria Pereira, benemé-
baça, que declararam aceitar «todos os encargos,
rita devota de Nossa Senhora da Assunção, de S. Ben-
cláusulas, condições e obrigações» registados (SAN-
to e S. Bernardo, cuja Regra foi seguida no Mosteiro,
TOS, 2002: 45). A fundação do mosteiro surge, neste
perpetuando uma determinação presente desde os
sentido, como a última das novas fundações vincu-
tempos de formação e expansão da Ordem de Cister,
lada à Abadia de Alcobaça desde a sua instituição
a de dedicar todas a igrejas «a Santa Maria, Rainha
enquanto Congregação Autónoma, em 15672. Os
do Céu e da Terra» (MARTINS, 2011: 100). O mosteiro
terrenos destinados pela piedosa senhora para edifi-
seguiu a reforma espiritual do movimento das «Religio-
cação do imóvel respeitavam aos da Quinta da Rua,
sas Recoletas», iniciado em Valladolid por Santa Tere-
seu local de residência, que herdara de Diogo Ribeiro
sa de Ávila, no século XVII, que procurou recuperar as
Homem, seu primeiro marido3.
1
96
encerramento (SANTOS, 2002: 35, 37, 47 e 64).
cados pelo «vento que corta», por «pancadas de água
práticas de recolhimento, austeridade, simplicidade
A construção do conjunto monástico iniciou-se
e rigor da vida claustral, práticas que distinguiram e
com a edificação da igreja em 1685, ainda em vida
marcaram a vida das freiras em Tabosa (COCHERIL,
do segundo marido de D. Maria Pereira. A Escritura
1986: 111; SANTOS, 2002: 41). A clausura impedia-as de
de Doação, Dotação e Fundação do Mosteiro su-
passar a cerca e colocava-as na dependência dos
gere que a sua construção já avançava à data da
mosteiros masculinos mais próximos, neste caso São
formalização. De acordo com a vontade expressa
Pedro das Águias, que dispunha de Confessor, Feitor e
pela fundadora, o Mosteiro deveria acolher 25 reli-
alguns religiosos, relação que se manteve até ao seu
giosas, incluindo quatro conversas e oito noviças.
Conhecem-se os dados de 30 religiosas que viveram
giosas a rezar nelas no «dia de Sam Louren-
no mosteiro entre 1694 e 1760, todas de estirpe privile-
ço» (10 de Agosto); no mesmo ano deu-se
giada (SANTOS, 2002: 56-57). D. Maria Pereira faleceu
início ao douramento da capela-mor, obra ter-
a 1696 e de acordo com a sua vontade e conforme
minada em janeiro do ano seguinte:
consta no documento da fundação, foi sepultada
Acabouse de Dourar a Tribuna e Tecto da Ca-
«em uma sepultura na capela-mor do dito seu mos-
pella Mor em Janeiro de mil e Seis Sentos e noven-
teiro, para que especialmente as religiosas delle, lhe
ta e Seis; e posce o Santissimo no Sacrario novo
acomodassem a sua alma» (SANTOS, 2002: 60), o que
do Retabulo dia da Converção de Sam Paullo da
confirma a sua iniciativa como um ato pio de carác-
mesma hera [25 de Janeiro] (BN, Cod. 1254 – Mic
ter perpétuo.
813 – Códices Alcobacenses, fol. 75).
As primeiras religiosas chegaram ao Mosteiro a 10
Esta informação refere o douramento mais tar-
de Setembro de 1692, oriundas da casa de Nossa Se-
dio do retábulo em relação à sua colocação na
nhora da Nazaré do Mocambo (Lisboa): 24 religiosas
igreja, como seria frequente no tempo, e o acres-
do coro e três conversas (SANTOS, 2002: 68). Segundo
cento de um novo sacrário.
o relato da Madre Brites do Menino Jesus4, os traba-
• 1696 – Em setembro do mesmo ano foi colocado
lhos de construção não se encontravam concluídos
um retábulo no coro, «com todas as mais miude-
à data, como prometera a fundadora; só a igreja se encontrava acabada, dispondo o conjunto de onze celas inacabadas: […] encontramos um começo de convento, nu, desprovido de comodidade, [...] não tinha uma úni-
zas de Santos e Peanhas»; • 1697 – Foram colocadas as grades de separação entre a capela-mor e a nave, prática corrente que procurava evitar o acesso dos leigos a este espaço sagrado «e doirouse o Arco de fora».
ca cela para nos recolhermos, tudo o mais parecia
A mesma fonte permite-nos acompanhar cronoló-
um cortelho para animais que um convento para reli-
gica e espacialmente as principais fases de constru-
giosas [...] como não tínhamos outro local, instalamo-
ção do Mosteiro. A natureza do terreno determinou
nos no coro, ali rezávamos, comíamos e trabalháva-
a organização da planta, explicando as diferenças
mos» (SANTOS, 2002: 70-71).
perceptíveis em relação a outros conjuntos monás-
A igreja e o respectivo coro continuarão a merecer
ticos daquela ordem. A estrutura foi construída so-
os maiores cuidados por parte da comunidade ao
bre terreno granítico de forte inclinação, definindo a
longo da última década do século XVII, tal como se
igreja um eixo horizontal na parte mais baixa e não
pode avaliar pela descrição contida no Livro da Re-
no ponto mais elevado do vale como era habitual
lação e das Couzas Memoravens [...]:
(MARTINS, 2011: 332). E tal como, nas proximidades,
• 1695 – 1696: execução das «cadeiras» do Coro
a Virgem milagrosa da Lapa escolheu uma «penha
e respetiva colocação, começando as reli-
bruta, que daria para construir uma aldeia» (RIBEIRO,
97
1983: 243) para aí repousar e ser alvo de devoção,
nhos de Hieronymus Cock (c. 1510 - 1570) e Hans Vre-
também em Tabosa foi necessário quebrar a pedra
deman de Vries (1527 - c. 1604) (VREDEMAN DE VRIES,
dura e transformar a antiga fraga num terreiro, tra-
1604), tão caro ao maneirismo do norte de Portugal e
balho iniciado em 1698 e terminado em Abril de 1702
cujo gosto se prolongou no tempo: é delimitado por
(figura 2) . No lado Norte estava já concluída, desde
duas pilastras de fuste canelado, capitéis toscanos,
1697, a capela térrea de São José, construída por ini-
arco de volta perfeita ao centro, formado por cin-
ciativa da primeira abadessa Madre Antónia de San-
co aduelas e apoiado em dois pilares, entablamento
ta Maria. A qualidade dos elementos arquitectónicos
constituído por friso decorado com motivos geomé-
é atestada pelo portal que se conserva, antecedido
tricos intercalando ovas, losangos e círculos concên-
por um vestíbulo de onde arrancam as escadarias de
tricos, suplantado por cornija avançada. Na continui-
acesso ao sobrado e coro alto, a escada das ma-
dade e sobre este edificado, construi-se o «Dromitorio
tinas, cuja porta se encontra hoje emparedada. O
que Vaij para o Coro», obra terminada em 1701. Ma-
portal da capela (figura 3), construído em granito de
dre Brites do Menino Jesus acrescenta que a cape-
grão mais fino do que o usado nos muros, apresenta
la ficava «muito perto da sua cela e aí comungava
uma estrutura sóbria mas bem desenhada, na linha
cada oito dias» (CARVALHEIRA, 2004: 76-77).
5
98
da tratadística nórdica, versão simplificada dos dese-
As obras de pedraria do claustro começaram nos
Figura 2 | Fachada sul do mosteiro de Tabosa: terreiro, escadaria e mirante e portal. Foto Pedro Martins © DRCN
«primeiros Dias de junho da hera de mil e Sete Sen-
disium Claustralis, no dizer de Bernardo de Claraval,
tos e três e estavam terminadas no Ultimo Dia de
constitui o epicentro do Mosteiro, determinando a or-
junho da hera de mil Sete Sentos e Coatro, Sendo
ganização dos seus espaços de vida espiritual e física
Abbades[s]a a Madre Eugenia de Santa helena» (BN,
mas permitindo, também, a antevisão do Paraíso Ce-
Cod. 1254, Códices Alcobacenses, fol. 73 Vº), tendo-
leste (MARTINS, 2007: 197-199). Esta condição impõe
se escavado parte da fraga que existia no terreno
o silêncio, a reflexão e a meditação a todos os que
para o efeito. A obra foi benzida apenas em 1724
obrigatoriamente circulam neste «interface de aces-
(CARVALHEIRA, 2004: 73).
sibilidades» que constitui o legado cisterciense (AL-
Do que resta das dependências do antigo conjun-
MEIDA, 2001: 82), um ponto de encontro privilegiado
to conventual, o claustro continua a impôr-se como
e lugar de leitura, fonte vital de luz natural para os
espaço de memória e de coesão entre os seus ele-
espaços que naturalmente o envolvem. Respeitando
mentos, «unique» segundo Maur Cocheril entre tudo
a habitual planta quadrangular com galerias porti-
o que visitou, «svelte, élegant, avec ce quelque cho-
cadas, o claustro de Tabosa une-se à igreja pelo lado
se de gracieux, pour ne pas écrire: de féminin, qui en
Este, posição pouco habitual mas explicada pelas
fait tout le charme au milieu des fleurs qui tapissent le
condições topográficas6, a Sul a Sala do Capítulo, a
préau» (COCHERIL, 1986: 122-123). Verdadeiro Para-
Sala de Visitas e o Locutório, a Oeste o calefatório, re-
F igura 3 | Vestíbulo e entrada para a capela de S. José. Foto Pedro Martins © DRCN
F igura 4 | Claustro. Foto Pedro Martins © DRCN
F igura 5 | Claustro. Foto Pedro Martins © DRCN
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F igura 13 | Portal sul (pormenor do remate e pedra de armas da Ordem de Cister). Foto Pedro Martins © DRCN
sendo o sobreclaustro constituído por balaustrada de recorte quadrangular semelhante à de São Mamede de Lorvão, que suportava colunas e um entablamento reto com cobertura em madeira que se perdeu (figuras 5 e 6). A solução aproxima-se das observadas em desenhos de perspectiva de Hans Vredeman de Vries, 1527 - ca. 1604) (VREDEMAN DE VRIES, 1604), de Hendrik Hondius (HONDIUS, 1647, fol. 21) e nos de Jacques Androuet du Cerceau (Androuet du
100
Cerceau&cock, 1549), nos quais observamos a repetição do uso da ordem toscana, o emprego da arquitrave corrida em detrimento do arco, coberturas de madeira e as balaustradas sobre os entablamentos feitório e latrinas e a Norte a Capela de São José e o
pontuados por colunas ou obeliscos no alinhamen-
dormitório já analisados. Constitui, neste sentido, um
to dos tramos. E não podemos ignorar a herança de
símbolo da vida orgânica interna, unindo a comuni-
Sebastiano Serlio (1475-1554), Andrea Palladio (1508-
dade à igreja, e constituindo um espaço funerário pri-
1580) e Giacomo Barozzi da Vignola (1507-1573),
vilegiado. O claustro de Tabosa assumiu, como todos
cujas obras serviam de «uso pessoal» a «curioso[s] e
os outros, este carácter multifuncional, encontrando-
engenheiro[s] ou architeto[s]» deste período como
se aí sepultadas algumas das freiras que ali viveram
demonstrou Manuel Joaquim Rocha em relação a
e que conquistaram fama de santidade, passando
Carlos Gimac (ROCHA, 2011: 395) (figuras 7-13) .
«para a outra vida com opinião de Santas e todas
O jardim claustral, quadrangular e a céu aberto, é
com signaes de bem aventuradas seja Deus louva-
separado das galerias por um muro baixo onde as-
do» (CARVALHEIRA, 2004: 198).
sentam as colunas, acedendo-se ao seu interior por
O claustro segue a organização de dois pisos que
pequenas aberturas. Obedece a um esquema de de-
se impôs a partir de Quinhentos apresentando, no
senho geométrico com lajedo e espaços para can-
entanto, uma tipologia única em relação aos restan-
teiros. À semelhança dos demais claustros, o espaço
tes mosteiros cistercienses portugueses, formado por
central é ocupado por uma fonte mais cenográfica e
uma estrutura arquitravada assente sobre colunas
plástica do que a traça envolvente. É composta por
de ordem toscana, que se conservam na totalida-
uma taça de planta irregular, com um elemento ver-
de (MARTINS, 2011: 315-316) (figura 4). As aberturas
tical ao centro e repuxo para a água, organização
e as mísulas que se conservam nos muros recordam
idêntica à de outros claustros cistercienses (MARTINS,
a armação de madeira que separava os dois pisos,
2011: 328) mas de debuxo próprio. Também para a
fonte podemos encontrar eco na tratadística fla-
reia Borges, nomeadamente à entrega de alimentos
menga e francesa dos séculos XVI e XVII, como o
como sopa e pão (cit. in MARTINS, 2011: 394). O piso
Second livre d’architectvre de Jacques Androuet du
superior estaria ocupado pelo «Dormitório da Enfer-
Cerceau, no qual se pode observar múltiplos dese-
maria», construído em 16989, local certamente esco-
nhos para pavimentos, fontes, poços, lareiras e vãos
lhido pela boa exposição solar que apresenta. Esta
(CERCEAU, 1561).
fachada voltada a Sul é a mais monumental e ceno-
No lado Sul do claustro distingue-se uma sequên-
gráfica do conjunto. O portal nobre preserva ainda
cia de três salas pelo qual se acede directamente: a
uma sequência decorativa de gosto barroco: ladea-
sala do Capítulo, espaço de reunião da comunidade
do por pilastras caneladas, sobreposto por varandim,
monástica terminado em 17457, o parlatório ou locu-
nicho com uma estátua de São Bernardo e remate
tório, a partir do qual as religiosas poderiam contac-
com frontão de linhas ondulantes, delimitado por pi-
tar com o exterior e onde se distribuíam tarefas e se
náculos e apresentando ao centro o brasão com as
conversava, ouvia ou transmitia mensagens verbais
Armas da Congregação de Cister em Portugal (figura
ao Abade. Segundo Nelson Correia Borges (cit. in
14). Na sequência desta ala, na parte mais alta do
MARTINS, 2011: 364), as grades, também assim desig-
terreno, como é frequente nestas casas, construi-se
nadas nos mosteiros femininos por ser este o local de
o Mirante, dependência específica dos conventos
contacto com o exterior, ficavam sempre contíguas
femininos. Apresenta a forma de um torreão avan-
à portaria. É nesta sala que se encontra igualmente
çado, com dois pisos, amplas janelas rasgadas para
o Torno ou Roda, artifício exclusivo dos conventos fe-
o terreiro no sobrado, espaço de recreação das re-
mininos e aberta para a portaria, permitindo a troca
ligiosas que permitia o olhar discreto para o exterior
de bens com o exterior e a entrega de crianças . O
(MARTINS, 2011: 408). A construção deste edifício e
último destes compartimentos seria a sala de visitas.
respetiva escadaria foram concluídos em Abril de
Nos mosteiros femininos a portaria destinava-se à ca-
170210.
8
ridade, à esmola da porta no dizer de Nelson Cor-
As características topográficas e físicas do terre-
Figuras 6 a 12 - Reproduções de gravuras de tratadística da arquitectura pub. em VREDEMAN DE VRIES & HONDIUS, 1604; ANDROUET DU CERCEAU & COCK, 1549;
101
102
no determinaram, desta forma, a organização e
Lamego, cidades que conheceram um grande de-
distribuição dos elementos no espaço. Os cursos de
senvolvimento artístico nos séculos XVII e XVIII (CAR-
água, a Poente parecem ter determinado a constru-
VALHEIRA, 2004: 72). As dificuldades levantadas pela
ção das dependências funcionais como a Cozinha,
toponímia, a dureza do granito britado e aproveita-
os Lavabos e o Refeitório. Esta realidade reafirma a
do para o levantamento das obras e alguma mão-
importância deste elemento na escolha do local e o
de-obra menos qualificada, poderão justificar muitas
respectivo impacto no edificado. A documentação
fragilidades e irregularidades observadas na cantaria
atesta também a existência de rouparias, oficinas e
de fustes e outros elementos arquitectónicos. No en-
celeiros que podem ter sido, igualmente, construídos
tanto, o equilíbrio demonstrado na planta domina-
deste lado do quadrilátero, respeitando uma práti-
da pela quadratura do claustro ao centro, pelo eixo
ca corrente nas edificações cistercienses, ou seja, as
da igreja definido a Levante e pela emblemática
áreas de serviço ocuparem em toda a sua extensão
fachada a Sul, apontam para um risco de carácter
o lado oposto ao da igreja (CARVALHEIRA: 2004: 75).
erudito, estando o seu autor familiarizado com a tra-
A Hospedaria dava continuidade a estes dois apo-
tadística quinhentista e seiscentista que adaptou às
sentos confinando com o Mirante.
exigências de contenção e simplicidade impostas
Desconhece-se a autoria do projecto e o nome
pelas recolectas. A singularidade da arquitectura de
dos responsáveis pela sua concretização. Ana Car-
Tabosa reside, de facto, no equilíbrio e harmonia do
valheira sugere que
conjunto.
os seus execu-
Em 1771, D. Manuel de Mendonça, por alegada
tantes terão
pressão do Marquês de Pombal, mandou encerrar o
vindo de
Mosteiro de Tabosa, determinando que as religiosas
Viseu
e as rendas da instituição fossem transferidas para
o
u
o Colégio de São Francisco Xavier de Setúbal e os
de
seus bens para a Coroa11. Abandonado, o Mosteiro entra numa primeira fase de ruína, tendo sido alvo de pilhagem. A ascensão de D. Maria I ao trono proporcionará, no entanto, a inversão deste processo, com a reabertura da casa e o regresso das religiosas a ela afectas, agora sem rendas e sem dotes (SANTOS, 2002: 128). O edifício monástico conheceu uma reedificação a partir de 1777 mas não é possível determinar o nível de degradação anterior e o volume de obras necessário para o retorno das religiosas.
Consideramos que o essencial da planta e organi-
Inventário dos bens do Mosteiro de 1844, realizado a
zação do mosteiro se manteve. A responsabilidade
pedido de D. Maria II, sabemos que então residiam
das obras ficaram a cargo de Frei José da Fonseca e
aí cinco religiosas e uma pupila. Cinco anos volvidos,
Castro, do Mosteiro de Salzedas, nomeado Intenden-
este número caíra para apenas uma religiosa, Tho-
te de Obras pelo Capítulo Geral, que foi «morador na
mazia Rita, «adiantada em anos, doente», a cargo
dita casa, enquanto as religiosas de Tabosa se não
de uma «engeitada […] que a dita freira criou por ca-
recolhe[ram] ao seu mosteiro» (SANTOS, 2002: 163).
ridade», que administrava os bens e que ia vendendo
As dificuldades sentidas pela comunidade agra-
«alguns trastes». Através deste documento, ficamos
varam-se entre 1810-1825, sendo as religiosas susten-
igualmente a saber que o Mosteiro tinha capacida-
tadas pela «Arca da Caridade» criada pela Con-
de para acolher 35 religiosas12 (cat. 19). Thomazia
gregação de Alcobaça e para a qual contribuíam
Rita faleceu a 27 de Março de 1850. O estado de
os mosteiros mais ricos, no concreto, neste caso, os
abandono e a inexistência de uma autoridade que
de Arouca e de Lorvão (SANTOS, 2002: 64). Com a
o protegesse, conduziram à sua rápida degradação
extinção das Ordens Religiosas em 1834 (cat. 18), na
e destruição, servindo os seus elementos arquitectó-
sequência do Decreto de 28/05, assiste-se à apro-
nicos como matéria-prima para o levantamento das
priação do seu património por parte do Estado, pro-
casas vizinhas do povoado. Só a igreja e os seus per-
cesso marcado pelo litígio com os herdeiros da fun-
tences foram preservados, entregues à população e
dadora, que reivindicavam esses bens, alegando o
à Paróquia de Tabosa, Diocese de Lamego.
estabelecido na escritura da fundação. Segundo o
1. As palavras e expressões entre aspas correspondem a expressões soltas de Aquilino Ribeiro em Terras do Demo constituindo, todo o texto, uma paráfrase de vários momentos da obra do autor. RIBEIRO, 1983: 40, 45, 47, 103. 2. Depois do nascimento da Congregação Autónoma de Alcobaça e da desvinculação portuguesa relativamente a Cister, foram criados os Mosteiros de Nossa Senhora da Piedade de Tavira (1530), Nossa Senhora da Nazaré de Mocambo (1653), Nossa Senhora da Assunção de Tabosa e a filiação de Nossa Senhora da Nazaré de Setúbal (MARTINS, 2011: 124). 3. Casou em segundas núpcias com Paulo Homem Teles, fidalgo da Casa Real, do quem igualmente ficou viúva e sem descendência, o que motivou a fundação do mosteiro no terreno da Quinta da Rua. 4. Madre Brites do Menino Jesus ingressou no Mosteiro a 13 de Julho de 1696 e foi secretária da comunidade até à data da sua morte (30 de Abril de 1761). SANTOS, 2002: 89. 5. « […] neste mesmo Anno [1698] se Comesou a tirar a fraga para se fazer o Terreiro», cf. BN, Códices Alcobacenses, cod. 1254 (mic. 813), fol. 74. 6. A s igrejas dos mosteiros situam-se normalmente a Norte do conjunto monasterial. 7. «Acabouse de fazer o Cartorio em Vespor do Apos=/tollo S. Bertolomeu, anno de mil e Sete Sentos e qua=/renta e Sinco Custou de ofesial que fes, e pintor / Sesenta mil Reis, sendo feitor o muito Reverendo padre frei jos / de Almeida, e Confessor o muito Reverendo Padre frei Bento de Afonseca” /FGBNL, Cod. 1254 - Mic 813, Códices Alcobacenses, Couzas / memoravaens da Fundação deste / Convento de Nossa Senhora da Assunpção / do lugar de Teoboza, de Recole/as da ordem de Nosso Padre S. Bernardo / O segundo que se Fundou neste Reino de Portugal, na hera de 1692 a», cf. BN, Códices Alcobacenses, cod. 1254 (mic. 813), fol. 74. 8. A Roda continuou a funcionar depois da extinção do mosteiro, a cargo da Igreja (SANTOS, 2002: 207). 9. « Fesce o Dormitorio da Enfermaria / na hera de mil e Seis Sentos e no/venta e outo», cf. BN, Códices Alcobacenses, cod. 1254 (mic. 813), fol. 74. 10. Fesce a Escada para a grade e aos / Cazas das grades e acabou-se o Te/rreiro em o mês de Abril de mil e / sete Sentos e Dous; Sendo ainda a / primeira Abbadesa a Madre Antonia de Santa Maria. /, cf. BN, Códices Alcobacenses, cod. 1254 (mic. 813), fol. 74. 11. D. Manuel de Mendonça foi mais tarde destituído do cargo e acusado de traição em relação ao governo da Ordem de Cister em Portugal (SANTOS, 2002: 64 e 124). 12. Documento datado de 1849 da Repartição da Fazenda do Governo Civil de Viseu (apud SANTOS, 2002:
103
013
SÉCULO XVIII
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO DE TAROUCA
ESPELHOS DE MODELOS: A PINTURA HAGIOGRÁFICA DO CORO DA IGREJA DE SÃO JOÃO DE TAROUCA NUNO RESENDE
Reconhecida já a autoria das obras do coro e
(SMITH, 1968: 68), por tratar-se de um coro médio
caixa do órgão da igreja do mosteiro de São João
– implantado a meio da nave central da igreja – o
de Tarouca, da lavra do entalhador Luís Pereira da
cadeiral de São João de Tarouca compõe-se de 28
Costa, do Porto, e do imaginário Ambrósio Coelho,
assentos em pau-preto, dispostos em duas ordens,
de Serzedelo (SMITH, 1968), importa olhar com mais
num total de 56 cadeiras distribuídas por dois andares
atenção para os retratos que assomam de entre o
e dois lanços. Sobre o cadeiral 16 telas com retratos
faustoso trabalho de talha.
de meias figuras masculinas, emoldurados por traba-
Como o descreveu Robert Smith, caso único en-
lho de talha dourada que apresenta características
tre as peças principais que sobrevivem em Portugal
formais do barroco joanino (por exemplo nas mísulas
Figura 1 | Ala norte do cadeiral da igreja de São João de Tarouca. Foto Pedro Martins © DRCN
105
106
quarteladas que separam as molduras dos retratos)
do nos colocamos frente ao conjunto. Confrontados
(figura 1), mas ainda presa a uma linguagem nacio-
com o brilho flamejante do ouro que insufla vida nas
nal documentada pela abundante escultura figura-
figuras representadas, somos impelidos a escutar os
tiva que marca o ritmo ornamental da composição.
diálogos que parecem sussurrar a partir das janelas
Neste sentido urge repensar as balizas cronológicas
abertas na floresta de talha.
definidas por R. Smith e outros autores em relação
Nas clareiras assomam, pois, 16 figuras masculinas
aos estilos do barroco da talha portuguesa (cat. 14).
recortadas pela cintura, cujas posições e gestos nos
R. Smith que, transcreveu excertos do contrato da
impelem a compará-las a uma dramaturgia. Todos os
obra, datado de 4 de Abril de 17291, aludiu também
actores compartilham o mesmo cenário e figurino: o
à alteração do plano inicial que implicava, segundo
alvo hábito cisterciense que contrasta com o fundo
o risco de frei Luís de São José2, a execução de pai-
escuro e inerte de onde assomam os actores para
néis em meio relevo em lugar das actuais pinturas.
nos indicar, através da gestualidade das mãos e dos
Poderá ter sido a desistência de Ambrósio Coelho,
olhares uma linguagem que é tudo menos estática,
hipotético responsável pelos painéis, que determinou
não obstante as feições quase inexpressivas que o
a preferência pela pintura como suporte narrativo.
artífice ou artífices plasmaram em cada um dos re-
Porém, a escolha da pintura a óleo em detrimento
tratados. De resto, comum neste género de pintura
do relevo constitui solução idêntica a outros cadeirais
hagiográfica, o autor ou autores da mesma não atin-
setecentistas de igrejas da ordem, nomeadamente
gem o nível de individualização recorrendo à busca
a nível regional, como em São Pedro das Águias e
pelo verismo facial ou anatómico, se não através da
Santa Maria de Arouca (cat. 14)3.
inclusão de elementos que identificam, acentuam ou
Não datadas, não assinadas, nem referidas na documentação – que apenas alude à obra da talha
destacam a figura e a sua importância ou função na hierarquia eclesiástica da ordem.
e do cadeiral do coro (cujo contrato de obrigação
Encontramo-nos ante um programa iconográfico
data de 6 de Abril de 1729)4 –, as pinturas são, pelo
pensado para um espaço particularmente importan-
seu traço, pelo tratamento da cor e da luz e pelo
te em contexto eclesial. Aqui cantavam-se os ofícios
desenho fisionómico e anatómico das figuras, quase
litúrgicos, numa organização não apenas melódica,
contemporâneas das obras de marcenaria.
mas humana, em que cada indivíduo ocupava o
Frente a frente, num registo paralelo (ver quadro 1)
seu lugar hierárquico (cat. 4). Assim o especificam os
exibem-se oito telas emolduradas pela riqueza e vi-
cerimoniais monásticos e os livros de usos e ofícios,
vacidade da talha dos caixilhos, que em caprichosas
com as suas normas sobre tempos, gestos e acções.
curvas e sobrepujanças rodeia os retratos, tornando
Como na pauta de um antifonário tudo estava regra-
o conjunto cada vez mais plástico e complexo (Smith,
do e o coro era o espelho da organização social de
1968: 68). Esta apreciação de Smith é oportuna quan-
um mosteiro (cat. 17).
Nesse sentido, a presença de retratos de santos
nos mosteiros cistercienses do Douro as representa-
ou figuras reverendas da ordem nos espaldares dos
ções dos santos cistercienses, exceptuando, claro,
cadeirais poderá revelar-se não apenas como uma
os amiúde replicados irmãos espirituais São Bernardo
forma de propaganda catequética, tão necessária
e Santa Umbelina, São Bento e Santa Escolástica. In-
numa ordem vincadamente internacional, mas tam-
variavelmente estes encontram-se ainda hoje repre-
bém como um manual comportamental. De resto, a
sentados nos retábulos das ermidas, capelas e igrejas
distância cronológica e cultural das figuras dos gran-
monásticas e paroquiais da região - nomeadamente
des cistercienses – entre veneráveis, beatos, santos,
nas que integravam o conjunto dos padroados dos
santas e mártires – espalhados por uma Europa me-
mosteiros cistercienses.
dieval, escapava (pelo menos visualmente) aos mon-
O espírito reformista do século XVIII aproveitou as
ges que em setecentos os apenas conheciam atra-
grandes renovações arquitectónicas para exaltar as
vés das hagiografias manuscritas ou impressas. Quem
figuras maiores da ordem, nomeadamente os seus
eram, portanto, aqueles heróis fundacionais que ha-
santos e patronos, destacando o papel espiritual (e
viam ajudado a erguer a «civilização» cisterciense?
até político) dos seus homens e mulheres, através dos
O que os distinguia mas, sobretudo, o que os aproxi-
respectivos modelos de santidade e de intelectuali-
mava dos comuns monges que diariamente deviam
dade. Esta afirmação é clara em São João de Tarou-
cumprir as funções e ofícios dentro do mosteiro?
ca, onde o coro médio constituiu um dos elementos
Implantado num território marcado por devoções de forte atracção popular, como São Sebastião,
mais notáveis das grandes obras reformistas que o barroco produziu nesta igreja.
São Brás ou Santa Luzia (cat. 10), cujas iconografias
Voltemo-nos, portanto, para os dezasseis retratos e
eram largamente disseminadas através de esculturas
passemos à sua identificação. Estes organizam-se em
e pinturas em templos comunitários, escasseavam
duas filas conforme a seguinte disposição e legenda:
[ALA NORTE] S. P CAS.To
S. BERME.v
[NAVE CENTRAL]
[ALA SUL] S. BADU.NO
S. THEOB.DO
S.GERARDO
[oculto]5
S.MAVRI.co
S.ALBERICO
S.GVLHERME
S.THOMAS
S.P.A BENEDI.To 12
O S.P. ALEX.3º
O S.Pe. URBANO 4.º
O S.P. EUF. 3.º
S. ESTEV.º
N.P.S BND
107
Figura 2 | Santo Estevão e Papa Urbano IV. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 3 | Papa Eugénio III e São Bernardo de Claraval. Foto Pedro Martins © DRCN
É provável que, no século XVIII, um qualquer monge habitante do mosteiro de São João, conhecedor da história da Ordem de Cister entendesse imediatamente a organização das figuras no espaço do coro. Caminhando entre os cadeirais, fazendo o percurso a partir da porta dos monges o religioso seguido, de um lado e de outro pelos olhares de abades, mártires, santos e veneráveis monges, quatro sumos
108
pontífices ligados à fundação da comunidade e pelas figuras de Santo Estêvão Harding6 (figura 2) e São Bernardo de Claraval7 (figura 3) (pedras angulares no projecto de consolidação da instituição cisterciense) compreenderia a lógica subjacente a tal disposição. O percurso assinala uma organização hierárquica do programa iconográfico (num plano horizontal, de oriente de para ocidente) de acordo com a memória histórica da ordem, em que cada figura, a norte, espelha outra, a sul, correspondente ou próxima nos atributos hagiográficos e nas características espirituais ou temporais. Efectivamente cada indivíduo contribui, individualmente, com a sua hagiografia, revelada visualmente por certos atributos, para uma mensagem particular sobre o seu múnus na ordem, mas o conjunto do programa revela preocupações de ordem propedêutica que nos remete para a afirmação de características comuns entre os representados. Estamos perante uma escolha pensada sobre um conjunto de homens que marcaram a Ordem de Cister, quer pelo seu trabalho como líderes de comunidades (abades como São Balduíno de Rieti8 (figura 4), São Teobaldo9 (figura 4), Santo Albérico10 (figura
Figura 4 | São Balduíno e São Teobaldo. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 5 | [São Roberto de Inglaterra?] e S. Albérico. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 5 | [São Roberto de Inglaterra?] e S. Albérico. Foto Pedro Martins © DRCN Figura 6 | São Maurício e São Gerardo. Foto Pedro Martins © DRCN
5), São Maurício11 (figura 6), São Bartolomeu de Firmitate12 (figura 8) e São Guilherme de Rielvaux13 (figura 7), ou da própria Igreja (os Papas Benedito XII14, Urbano IV15, Alexandre II16, Eugénio III17 e o arcebispo Tomás Becket18) (figuras 2, 3, 7 e 9), quer ainda como doutrinadores, confessores e mártires entre cujas figuras se destaca São Pedro de Castro19 (figura 8), morto às mãos dos hereges e que certa memorialística cisterciense considera o primeiro Inquisidor – lugar dispu-
109
tado com São Domingos de Gusmão. Este sentido de abnegação e sacrifical dos representados impõe-se naturalmente como formulário normativo de santidade, mas assume na comunidade de São João de Tarouca um papel particular enquanto mostruário de modelos a seguir pelos monges. De resto a presença de homens que preteriram a mundanidade, como o próprio São Bernardo ou o seu irmão São Gerardo20 (figura 6) ou ainda São Teobaldo (gerados numa época de ideal cavaleiresco) documentam uma característica da vocação religiosa medieval que se estende culturalmente a São João de Tarouca do século XVIII - casa que então albergava grande parte dos filhos de uma nobreza regional (cat. 15) consciente do seu passado linhagístico. Compõe-se, portanto, esta galeria, de retratos que transpõem um conjunto de indivíduos maioritariamente originários da sociedade medieval dos séculos XII-XIII para um palco onde poses e gestos virtuosos os transportam para um num plano de missão espiritual e temporal marcadamente barroco, acentuado pela presença cenográfica de elementos representativos dos poderes (espiritual, temporal, cultural): mitras, báculos, tiaras pontifícias, livros e papéis que os
Figura 7 | Papa Benedito XII e São Guilherme. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 8 | São Bartolomeu e São Pedro de Castro. Foto Pedro Martins © DRCN
figurados exibem ou para os quais apontam em ges-
Mas, ainda que auditivamente silencioso, o diálo-
tos teatrais. Esta dramaturgia é acentuada pela posi-
go neste programa iconográfico exibe expressões
ção das cabeças dos figurados que, a ¾ se articulam
metafóricas sobre a palavra – seja a palavra escrita
num quase-diálogo ou são entrecortadas com ma-
testemunhada nos alfarrábios que acompanham as
nifestações do divino, patentes em alguns quadros
figuras ou os gestos que traduzem percursos exem-
através da representação de feixes de luz diagonais
plares que recordam, por exemplo, a carta de São
que atraem e posicionam o olhar dos representados
Bernardo a Balduíno de Rieti dissertando sobre as
em miradas místicas.
obrigações de um prelado (apud MUNIZ, 1793: 52).
110
Figura 9 | São Tomás e Papa Alexandre III. Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 10 | Perspectiva do coro, nave central e capela maior da igreja de São João de Tarouca. Foto Pedro Martins © DRCN
Convocar à acção e propor que a palavra proferida, falada ou cantada, tornasse expressão material de um ideal espiritual seria, com certeza, o mote desta composição de pinturas hagiográficas do cadeiral de São João de Tarouca (figura 10).
1. D. Domingos de Pinho Brandão documentou todo o processo contratual do coro e cadeira no terceiro volume da sua Obra de talha dourada […], cf. BRANDÃO, 1986: 152-159. 2. A frei Luís de São José atribui-se participação nos riscos na igreja de São Vicente de Braga (1713), na capela do Desterro na cerca de Alcobaça (1717) e da bacia e varandim do órgão de Santa Maria de Arouca (1738) e duas caixas, cf. SOBRAL, 2000 e ALVES, 2008: 177. 3. Registavam-se pinturas (hagiográficas?) no cadeiral de São Pedro das Águias (mosteiro novo) que foi transplantado na década de 1940 à capela-maior da igreja de São Cipriano, no arciprestado de Resende da diocese de Lamego. 4. Veja-se a publicação do contrato em BRANDÃO, 1986: 156. 5. E mbora oculta sobre o douramento a legenda desta figura, pode tratar-se de Roberto de Inglaterra, abade cisterciense do século XIII. 6. Com Roberto e Albérico (ver adiante) Estêvão de Harding fecha o trio que se tornou o alicerce da ordem cisterciense, marcada pela cisão de Molesmes e que conduziu à fundação de Citeaux em 1098. Os três religiosos foram abades da casa-mãe de Cister. 7. Bernardo, nascido em Fontaines-les-Dijon ingressou em Cister em 1113, tornando-se um dos mais activos representantes desta nova ordem. Foi importante doutrinador, tendo deixado vasta obra parenética e epistolográfica onde disserta sobre as fundações da Igreja e dos seus problemas à luz do seu tempo. 8. Balduíno, de Rieti, viveu no século XII e foi, em 1140, apresentado por São Bernardo para abade de São Pastor. Comemorado a 24 de julho nos santorais cistercienses. 9. T eobaldo, nascido em 1200, era neto de Luís VI e foi abade de Vaux de Cernay. Era afamado orador e evangelizador. Comemorado a 7 de Julho. 10. Albérico, sucessor de Roberto, foi o segundo abade de Citeaux e a sua memória comemora-se a 26 de Janeiro. 11. Maurício, da Bretanha (século XII). Fundou a abadia de Carnoet. Comemora-se o seu dia litúrgico a 13 de Outubro. 12. Bartolomeu, que as fontes cistercienses chamam santo e dizem ter sido irmão de São Bernardo, foi terceiro abade de Firmitate (MONTALVO, 1602: 72) 13. Guilherme era natural de Inglaterra. Foi abade de Rielvau e fundador de várias abadias. Viveu no século XII e a sua memória litúrgica é recordada a 2 de Agosto. 14. Com o nome secular de Jacques Fournier, foi papa de 1334 a 1342 (em Avinhão) tendo sido anteriormente religioso cisterciense nos mosteiros de Boulbonne e Fontfroid. 15. Jacques Pantaleón subiu ao trono pontifício como Urbano IV em 1261, tendo regido a Igreja até 1264. É tido como religioso cisterciense. 16. De nome secular Anselmo da Baggio foi papa de 1061 a 1073. Apoiou a Reconquista ibérica. 17. Foi o primeiro papa cisterciense, nascido em Pisa em 1115 e falecido em Tivoli em 1153. Durante o seu pontificado promoveu a Segunda Cruzada e a ele se dirigiu São Bernardo com o tratado De consideratione (1148-1153). Beatificado em 1872 por Pio IX era já considerado venerável. Comemorado a 8 de Julho nos calendários cistercienses. 18. Originário da Normandia, Tomás encarna a figura de um cavaleiro medieval chamado à religião pela vocação e pelo estudo. Tornou-se uma das figuras mais proeminentes da Igreja em Inglaterra, tendo encabeçado o arcebispado de Cantuária em 1163. A sua oposição ao poder régio valeu-lhe o martírio, que o colocou entre os mais importantes da sua ordem e da sua época. 19. A este respeito veja-se o que escreve frei António Brandão (BRANDÃO, 1632: 37). Sobre o mártir (noutros autores dito beato) São Pedro de Castro Novo, o mesmo autor refere: «O segundo sujeito da Ordem de Cister foi o insigne Mártir S. Pedro de Castro novo, a quem os hereges matarão andando neste sagrado ministério com cargo de Legado Apostólico [...] estando um dos hereges a este santo Legado (que ia bem fora de lhe suceder semelhante caso) uma cruel lançada a traição, voltou o Santo pera seu homicida, vendo que era perigosa a ferida e a exemplo do grande Protomártir S. Estevão lhe disse com muita piedade e paciência: Deus te perdoe irmão, que eu te perdoo, fazendo despois a Deus algumas deprecações devotíssimas repousou o Santo Mártir em o Senhor» (BRANDÃO&BASTO, 1945: 92). Uma representação deste mártir encontra-se no retábulo da capela de São Pedro do Torno, próximo ao mosteiro de Santa Maria de Salzedas (SOALHEIRO, 2006). 20. São vários os veneráveis, beatos ou santos ligado à Ordem de Cister com este nome. Cremos, contudo, que a representação presente no coro de São João de Tarouca se trata de Gerardo, irmão de Bernardo. A sua memória litúrgica recorda-se a 14 de Junho.
111
014
SÉCULO XVIII
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE AROUCA
O CORO DO MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE AROUCA: UMA LEITURA ICONOGRÁFICA
ANA CRISTINA SOUSA
[...] choro e mais choro; pois de continuo estão no choro, pois das vinte e quatro horas que tem o dia natural, as três partes se gastão no choro como se exprimenta, com tanto Amor asistindo a divina Magestade que no gosto com que estão conhecem o quanto se agrada [...]. Porque as vozes por não disermos que cada hua he milagre, será clima do lugar mais não se negará que algua he vox de milagre da sancta Rainha que enleião os sentidos quando se ouvem a saber he tão profundo que a madura da musica só ellas a alcanssão, com tanta gala de cantar que se o mesmo Orpheu cantar as ouvira aprenderia com tão bom ar de cantar [...].” Religiosa de Arouca, finais do séc. XVII (apud AA.VV, 2009: 21).
113 Em 1702, a primitiva igreja medieval do Mosteiro
nasceram a nova igreja e o coro, espaços separados
de Arouca encontrava-se num estado avançado
pelas grades de clausura, divisão reforçada pelas
de degradação, como se infere do relato dos visi-
cortinas que impediam todo o contacto entre as re-
tadores de Alcobaça que então a inspeccionaram. Tendo começado a sua reedificação a partir desta data, o projeto ficou a dever-se a Carlos Gimac, o melhor arquitecto do reino (AA.VV., 2009: 30; ROCHA, 2011: 322). D. Maria Baldaia de Miranda, cantora-mor do coro em 1718, deixou-nos um testemunho desta atribuição no memorial da bênção da nova igreja. Apesar de Paulo Varela Gomes considerar que os documentos de que dispomos não são suficientes para garantir a autoria do projecto a Carlos Gimac, defendendo que as características da obra não se ajustam à dos documentos (GOMES, 1996: 145-146), o texto de 1718 expõe, de forma clara, que de Italia era o insigne architecto Carlos Gimac que della fes a planta e a Senhora D. Margarida de Miranda que Deus tem sendo Prelada se animou a chama-lo de Lisboa aqui a dar principio a tão eroico templo (…) (ROCHA: 2011, 322). A investigação aturada e as reflexões desenvolvidas nos últimos anos por Manuel Joaquim Rocha clarificam esta autoria. Do risco de Carlos Gimac
Figura 1 | Coro da igreja do mosteiro de Santa Maria de Arouca. Foto Pedro Martins © DRCN
114
ligiosas e os fiéis, excepto nos períodos previstos para
et cônsul Hispaniarum […] Olisipone fecit anno Domi-
a observação do Santíssimo Sacramento.
ni 1739. Vários documentos referem os pagamentos
A singularidade do espaço interior da igreja e do
efetuados entre 1738 e 1743 ao seu executor. Consta
coro reside na relação harmónica de cada um dos
de varandim, zona de teclado, espaldares dos tubos,
elementos no seu todo, os princípios de harmonia e
sendo decorado com talha joanina e pinturas mar-
proporção que marcaram continuamente a discus-
moreadas. A data de 1743 parece respeitar à data
são teórica e o paradigma da arquitectura clássica.
do acabamento das pinturas (BRANDÃO: 1986: 359).
A luz actua como elemento definidor e hierarquizante
O cadeiral, executado entre 1722 e 1725, domina o
do espaço, abundante ao nível da capela-mor e do
corpo central do coro, devendo-se a sua execução
coro, tornando-se mais sombria na nave (Figura 1). A
aos entalhadores António Gomes e Filipe da Silva,
nave central do coro, uma verdadeira caixa de luz
dois dos mais reconhecidos mestres da escola do Por-
branca, é profusamente iluminada por duas grandes
to (FERREIRA-ALVES, 1992: 380; FERREIRA-ALVES, 2001,
janelas que proporcionam um efeito de luz total e um
57 e 65). O primeiro, ao Paraíso e o segundo junto à
ambiente único (ROCHA, 2006: 575-576, 578 e 580).
Fábrica do Tabaco, extramuros, da cidade do Porto
O coro, com três naves, tendo a central cerca do
(BRANDÃO, 1985: 616). É considerado um dos mais ri-
dobro da largura das laterais e cobertura em abóba-
cos e cenográficos exemplares do mundo português,
da de berço, foi continuamente enriquecido, ao lon-
pela qualidade da talha e pelos originais remates
go da primeira metade do século XVIII, com um novo
que expõem meninos com cartelas e fitas, efeito úni-
mobiliário litúrgico que o nobilitou e o converteu num
co no entender de Robert Smith, que contribuiu para
dos mais emblemáticos conjuntos barrocos do mos-
acentuar o verticalismo dos espaldares (SMITH, 1968:
teiro. A presença do órgão à entrada do coro reforça
53) e impõe uma leitura contínua e ritmada ao con-
a ideia da música como um caminho de ascese e de
junto (FERREIRA-ALVES, 2001: 69) (figura 2). Apresenta
aspiração ao divino. Todos os ofícios eram cantados!
104 assentos em pau-preto sendo, assim, o segundo
Vários documentos relativos a pagamentos e uma
maior de Portugal depois do de Lorvão, com 108
escritura de quitação publicados por Domingos Pi-
(SMITH, 1968: 53).
nho Brandão (28.04.1741) permitem-nos situar a obra
Os espaldares são preenchidos com pinturas nar-
no tempo. Da autoria do organeiro de Valladolid
rativas, de autoria desconhecida. Atendendo às
residente em Lisboa, Dom Manuel Benito Gomes de
características da indumentária das personagens re-
Herrera (ou Dom Manuel Bento Gomes Ferreira como
presentadas, Robert Smith considerou que as pinturas
também assinava), o órgão foi executado em Lisboa,
acusam uma data algo posterior à talha do espaldar,
em 1739, conforme se pode ler na legenda encon-
defendendo que o cadeiral de Arouca serviu de mo-
trada no interior da peça durante o restauro de 1982-
delo ao de São João de Tarouca, realizado quatro
1983: D. Emmanuel Benedictus a Gomez ex-hispanus
anos mais tarde (cat. 13). Natália Ferreira-Alves su-
geriu também o carácter mais tardio do programa
da dita estante, e nela se fará uma só entrada no
pictórico em relação aos restantes elementos artís-
meio, em cada lado, para subirem para o coro de
ticos do coro (FERREIRA-ALVES, 1992: 380). Manuel
cima (BRANDÃO, 1985: 616).
Joaquim Rocha, partindo da análise detalhada do
A descrição detalhada do texto parece apontar
processo de Beatificação de D. Mafalda, redigido
apenas para o trabalho do cadeiral propriamente
em meados do século XVIII, e no qual se regista in-
dito e não para a talha dos espaldares que o so-
formações recolhidas junto das religiosas relativas
brepõe. O documento descreve, igualmente, de
a representações da Rainha existentes no Mosteiro,
forma pormenorizada, o fornecimento da madeira
chama a atenção para a ausência de referências
do «Brasil» e de castanho e a alimentação dos tra-
sobre as quatro pinturas da vida da Benfeitora nos es-
balhadores durante a obra por parte do Mosteiro,
paldares do coro, concluindo que à data ainda não
bem como a responsabilidade dos pregos, ferra-
existiam (ROCHA, 2011: 353). O autor sugere, por isso,
gens e outros elementos da obra, mas é totalmente
que o programa iconográfico dos espaldares poderá
omisso quanto à talha dos espaldares e respectivas
ter sido totalmente refeito à data da sua beatifica-
pinturas (BRANDÃO: 1985: 616-617). A descrição feita
ção, em 1792. A análise da documentação relativa à
em meados do século XVIII, no âmbito do processo
encomenda da obra de talha do coro permitiu-nos,
de beatificação da rainha Mafalda, é muito precisa
de facto, pensar em novas hipóteses. O contrato e
em relação a todos os elementos constitutivos deste
obrigação, realizado entre o Mosteiro na pessoa do
espaço, desde a estatuária, retábulos, estante e ca-
Padre Fr. Simão de Almeida e os entalhadores Antó-
deiral com duas ordens de cadeiras primorosamente
nio Gomes e Filipe da Silva, é bastante detalhado no que diz respeito à distribuição do cadeiral no espaço e aos elementos decorativos, descrito na forma que se contém nos riscos: […] e todo há-de ficar guarnecido de cadeiras até chegar à porta que está no fim do coro, de uma e outra banda, as quais se repartirão pelo modo que melhor parecer, as quais cadeiras levarão assim nos respaldos, assim por baixo como por cima, suas almofadas encaixilhadas e lisas, e as ante-claves levarão sua talhinha holandesa pelos lados e fronteira, e no coro ou cadeiras de baixo levará sua estante com suas quartelas ou metas na melhor forma que parecer, correspondendo as ante-claves e sustentação
Figura 2 | Cadeiral do coro. Foto Pedro Martins © DRCN
115
feitas com seu ornato e espaldares, tudo de talha
mente pensados e que obedecem a um programa
dourada (ROCHA, 2011: 337) mas não faz qualquer
coerente com objectivos catequéticos muito claros.
alusão às pinturas dos espaldares. Conclui-se, portanto, que em meados do século XVIII os espaldares,
116
PINTURAS DOS ESPALDARES
executados em data posterior à do cadeiral mas já
Consideramos, para esta leitura, as 26 telas dos es-
existentes nesta data, ainda não apresentavam pin-
paldares do cadeiral mais as quatro pinturas emol-
turas e que o programa que hoje aí vemos é mais
duradas pela talha da entrada cerimonial do coro,
tardio, certamente do terceiro quartel de Setecentos
destinada às procissões e cerimónias mais solenes,
como se pode inferir pelas vestes usadas por algumas
para a qual todos os olhares necessariamente se
das personagens do programa pictórico. A talha dos
voltavam. A leitura iconográfica deve ter em conta
espaldares, que Robert Smith elegeu como modelo
o usufruto do local, destinado exclusivamente às re-
de originalidade do «Estilo Nacional», influenciando
ligiosas que habitavam o cenóbio. Alvo de insistente
outros cadeirais portugueses como o de São João de
observação e contemplação nas muitas horas que
Tarouca, poderá ter sido executada uns anos mais
estas passavam no coro, o programa pictórico deve,
tarde em relação ao cadeiral, integrando já o gosto
por isso, ser entendido na sua componente pedagó-
joanino que então se afirmava (cat. 13).
gica, enquanto exemplo de virtude e de orientação
Quanto ao programa iconográfico das pinturas
espiritual. Considerando tratar-se, sobretudo, de ca-
dos espaldares, Robert Smith considerou tratar-se de
deirais pensados para monges e freiras que expõem
uma selecção aparentemente arbitrária, como ilumi-
filas de santos e santas, Robert Smith estabeleceu,
nuras num livro de horas medieval (SMITH, 1968: 53). A
desde logo, a relação entre os temas e a ordem de
exposição que se segue pretende demonstrar, pelo
Cister (SMITH, 1968: 14). De uma maneira geral, as
contrário, que os temas escolhidos foram cuidadosa-
pinturas do espaldar repetem temas recorrentes no
LADO DO EVANGELHO
LADO DA EPÍSTOLA
Coração com coroa de espinhos – Amor de Cristo
Coração trespassado por flecha – Amor de Maria
Última Ceia
Lava-pés
S. Bernardo e S. Gerardo
Santa Umbelina e S. Bernardo
Nascimento de Nossa Senhora
Nascimento de Cristo
S. José
S. Cristóvão
Entrada da Rainha Mafalda no Mosteiro
Vinda da Rainha Mafalda para Arouca
Nossa Senhora da Conceição
Nossa Senhora do Pilar
Rainha Mafalda lançando o hábito branco às religiosas
Morte da Rainha Mafalda
Santo António
S. Marçal
Baptismo de Cristo
Adoração dos Reis Magos
Samaritana
S. Roberto
Santa Maria Egipcíaca
Adultera
Conversão de S. Paulo
Conversão de Madalena
São Bento
São Francisco
Santo Amaro
São Bernardo
conjunto monacal. A análise do conjunto pictórico
a humanidade do pecado original, com o diadema
permitiu-nos agrupar os temas em núcleos temáticos
de doze estrelas à volta da cabeça, túnica branca e
e coerentes em termos de mensagem.
manto azul, descalça, envolta em nuvens e rodeada por querubins. Ocupa, com Nossa Senhora do Pilar, o
ICONOGRAFIA MARIANA:
centro das 26 pinturas do cadeiral determinando, no
NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO
nosso entender, a organização e leitura dos restantes
E NOSSA SENHORA DO PILAR
temas.
Os temas marianos não são estranhos num espa-
O culto a Nossa Senhora do Pilar consolida-se, em
ço cisterciense. A devoção à Mãe adoptiva, que faz
Portugal, na década de quarenta de Seiscentos, mas
com que todos os monges sejam irmãos de Jesus, foi
ganha sobretudo força após a Guerra da Restaura-
intensa desde a instituição da Ordem (BORGES, 1994:
ção. Em 1642, quatro anos antes da iniciativa de D.
264). Maria, cheia de Graça, Mãe do Salvador, inter-
João IV, Saragoça havia proclamado a Virgem do
cessora privilegiada dos fiéis junto do seu Filho e que
Pilar padroeira da cidade (MOREIRA, 1985: 45). A sua
os livra de todo o mal… é representada, no conjunto
escolha traduz a mensagem de solidez e proteção
das pinturas dos espaldares, na iconografia da Se-
da Salve Regina, clemens, pia e dulcis Virgo María,
nhora da Conceição, Virgem puríssima concebida
sólido pilar da Igreja, símbolo de união entre o Céu e
sem pecado, que deu à luz sem «mancha» perma-
a Terra e intercessora privilegiada junto do seu Filho.
necendo imaculada. Tema fundamental da pintura
Vestida de túnica rosa, manto azul e coroa na cabe-
peninsular de Seiscentos, a sua afirmação em Portu-
ça, está pousada sobre um robusto pilar de mármore
gal foi reforçada pela aclamação da Virgem como
róseo, rodeada por nuvens e querubins, segurando o
Padroeira do Reino, por D. João IV, nas Cortes de
Menino no colo.
1646, confirmada por breve de Clemente X, datado de 1671. A importância teológica, dogmática e con-
EPISÓDIOS DA VIDA DE MARIA E DE CRISTO
sequentemente artística do tema levou à definição
Centralizando as pinturas do cadeiral, as pinturas
de uma iconografia própria fixada no século XV e re-
de Nossa Senhora da Conceição e do Pilar abrem o
tirada da passagem do Apocalipse: uma Mulher ves-
caminho para os temas marianos e cristológicos. O
tida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma
Nascimento de Nossa Senhora, a que veio ao Mun-
coroa de doze estrelas na cabeça (Ap 12, 1). Esta
do para redimir a Humanidade do Pecado Original,
imagem conheceu uma grande popularidade entre
a nova Eva concebida sem pecado, ocupa natural-
pintores do barroco espanhol e foi especialmente
mente um lugar privilegiado neste programa. A com-
eternizada por Murillo: Maria sobre o globo terrestre,
posição segue a iconografia tradicional, com Santa
suspensa nos céus, com o crescente aos pés com os
Ana, num segundo plano, deitada na cama auxilia-
quais pisa a serpente do mal, redimindo desta forma
da por uma serva que lhe leva alimento, e no primei-
117
118
ro, as parteiras e serviçais que preparam o banho de
Festejado no Calendário Litúrgico no dia 6 de Ja-
Maria, verificando uma delas a temperatura da água
neiro, o Baptismo de Cristo insere-se nas “Festas das
com a mão. Do lado oposto, a Natividade de Cristo
Luzes” e da Teofania do Senhor, o que explica a re-
e respetiva adoração pela Virgem em flexis genibus,
presentação da Epifania ou da Adoração dos Reis
e pelos pastores. O sentido religioso e místico está re-
na tela fronteira, a primeira manifestação de Cristo
forçado pela luz que cobre o Menino e pelo anjo que
aos homens como Verbo encarnado, símbolo da Re-
segura a filactera onde se lê Gloria in excelssis Deo, o
denção e da Salvação e convite claro à meditação
Glória a Deus nas Alturas e paz na terra aos homens
fundamental num espaço de oração. A composição
por Ele amados (Lc 2, 14). O cordeiro, de pernas ata-
reflete, na generalidade, uma iconografia definida
das em frente à manjedoura, anuncia o Sacrifício do
nos finais da Idade Média: os três Reis, ricamente
Salvador para a remissão dos pecados, recordando
vestidos, apresentando idades diferenciadas, símbo-
as palavras de João Baptista – Eis o Cordeiro de Deus,
lo das três idades do Homem, com a negritude de
que tira o pecado do mundo! (Jo 1, 29) –, constituin-
Baltazar (o mais novo) a aludir ao carácter universal
do igualmente um convite à reflexão sobre o mistério
da Fé em Cristo. Gaspar, o mais velho, ajoelha-se
da Encarnação.
perante o Menino, cabeça descoberta em sinal de
A cena do Baptismo de Cristo reforça a presença
humildade e respeito, coroa, toucado e ceptro no
das duas figuras principais: Cristo ao centro, nas águas
chão. O Menino, envolto nos seus panos e sentado
baixas do Jordão cujo caudal se perde de vista, des-
na manjedoura, brinca com o ouro que lhe oferece
nudo e com cendal, a perna esquerda apoiada numa
o Rei, símbolo da sua condição régia, sendo susten-
rocha, em postura humilde e compenetrada; São João
tado por Maria que o olha de forma meiga e mater-
Baptista à direita, com o corpo parcialmente coberto
nal. José, atrás, rejuvenescido, observa com ternura
por uma pele de cabra e longo manto vermelho, cruz
a cena que é composta também pelo séquito dos
de madeira e filactera com a habitual inscrição Ecce
Reis e pelos pastores.
Agnus Dei, vertendo sobre a cabeça de Cristo a água
A cerimónia do Lava-pés associa-se ao episódio da
que recolheu do rio. Na margem esquerda, um anjo
Última Ceia e recorda o momento em que, Jesus, sa-
ajoelhado observa atentamente a cena de mãos ve-
bendo bem que tinha chegado a sua hora da passa-
ladas em sinal de respeito. A pomba branca do Espírito
gem deste mundo para o Pai, levou o seu amor pelos
Santo, envolvida num resplendor de luz, desce sobre a
discípulos até ao extremo, levantou-se da mesa, atou
cabeça de Cristo, fonte da nova luz e do renascimento
uma toalha à cintura, deitou água na bacia e lavou-
espiritual, entendendo-se o baptismo como um incen-
lhes os pés, secando-os com uma toalha (Jo 13, 1-5).
tivo à conversão através do Poder do Espirito Santo, re-
O pintor seguiu de perto o texto de João e representou
cordando as palavras de João: Ele há-de baptizar-vos
Jesus a lavar os pés de Pedro que gesticula, eviden-
no Espírito Santo e no fogo (Lc 3: 16).
ciando o diálogo ocorrido entre os dois (Jo 13, 6-10),
enquanto os demais apóstolos aguardam. Acto de
vida relacionadas com o mosteiro. Os temas que ne-
humildade, que Cristo quer deixar como exemplo aos
las têm lugar devem ser entendidos como registos de
discípulos, o Lava-pés anuncia também a traição de
memória da benfeitora enquanto modelo, exemplo
Judas, pois vós estais limpos, mas não todos (Jo 13, 10),
de resignação e entrega espiritual para todas as mu-
tema que parece igualmente constituir uma mensa-
lheres que escolhem o caminho da fé e da renúncia
gem de reflexão para os que frequentavam o espaço
aos bens terrenos. Mulher de vida santa, protagoni-
do coro.
za uma nova fundação da comunidade e eleva-se
Em frente a esta cena, o artista representou a Últi-
ao prestígio dos santos fundadores, trocando a regra
ma Ceia, tema fulcral do Cristianismo por represen-
beneditina pelos hábitos brancos de Cister (COELHO,
tar a instituição da Eucaristia, o mais importante dos
1989:19).
Sacramentos após o Concílio de Trento. A legenda
Do lado do Evangelho e a ladear a imagem da
Cea Sacramental na base da tela reforça a ligação
Imaculada, foram representados os temas A Entrada
do tema com a Divina Eucaristia. Os doze apóstolos
da Santa Rainha em Arouca e A Rainha Santa dei-
rodeiam uma mesa redonda e Judas, à direita, de
tando o Hábito Branco às Religiozas. No primeiro, Ma-
costas para o espectador e com o rosto voltado para
falda, ricamente vestida e coroada, acompanhada
fora do cenário, contrário à direcção de Cristo, es-
por duas servas, apresenta-se em frente de um grupo
conde atrás das costas o saco da traição. Distingue-
de religiosas vestidas com o hábito negro dos bene-
se igualmente dos companheiros pelo tom acasta-
ditinos, entre elas a abadessa com o seu báculo. Na
nhado das suas vestes e por parecer estar ausente
segunda tela a rainha, sentada e vestida com cogu-
da cena, absorto nos seus pensamentos. Cristo, ao
la branca e véu preto na cabeça, está rodeada por
centro, segura o pão com a mão direita, abençoa
um grupo de religiosas. As três primeiras albergam já
com a esquerda e olha fixamente em frente, refor-
o hábito branco de Cister e as outras quatro, vesti-
çando a solenidade do gesto que sobreviverá muito
das ainda com o hábito negro, aguardam a sua vez.
para lá do espaço físico onde a cena se insere: Tomai
Símbolo exterior de uma renovada exigência na vida
e comei, este é o meu corpo.
de oração, meditação e trabalho imposto à comunidade (COELHO, 1989: 27), que as religiosas quiseram
EPISÓDIOS RELACIONADOS COM A RAINHA MAFALDA
desta forma recordar. Em frente, do lado da Epístola, a ladear a imagem
A Rainha Mafalda marcou durante séculos a me-
de Nossa Senhora do Pilar, representou-se A morte
mória do mosteiro, determinando também a função
da Rainha Santa no mosteiro de Tuias (Marco de Ca-
dos espaços e consequentemente os programas ar-
naveses), deitada no seu leito, vestida com o hábito
tísticos do conjunto monástico. Quatro das 26 telas
branco da ordem, segurando um crucifixo na mão e
dos espaldares do coro envolvem passagens da sua
dirigindo-se com a outra para o grupo numeroso de re-
119
120
ligiosas chorosas que o rodeiam. Trata-se, certamente,
segurando com a mão esquerda o báculo e aben-
de uma referência ao crucifixo de marfim que Mafal-
çoando com a direita. Tal como na tela de São Ber-
da segurava quando expirou, objecto de grande ve-
nardo, apresenta uma mitra exatamente igual a seus
neração e por isso colocado nas maons das noviças
pés, por evidente afinidade compositiva. Entendido
quando professavam, segundo o relato de D. Joana
como o mestre espiritual de todo o monacato oci-
Teresa (ROCHA: 2010: 355). Um exemplo de boa morte,
dental (DUCHET-SUCHAUX, 2009: 89) e patriarca entre
serena e confiante para os cristãos como a descreve-
os cistercienses, a sua imagem consta repetidamen-
ram os cronistas (COELHO, 1989: 37). Do outro lado da
te nos cenóbios da Ordem. Com uma representação
imagem A vinda da Rainha Santa para Arouca, o epi-
de todo idêntica à de São Bento, Santo Amaro, mon-
sódio da trasladação do corpo de Mafalda de Tuias
ge beneditino companheiro do patriarca, reforça o
ou de Rio Tinto, de acordo com a tradição. Segundo
simbolismo fundador e a valorização da vida monás-
a lenda, a mula que transportou o corpo da rainha
tica neste programa.
ajoelhou-se várias vezes durante o percurso, tendo
O mesmo simbolismo fundador explica certamente
sido construídos nesses locais ilustres monumentos. O
a integração de S. Roberto (1024-1110) neste con-
pintor representou um desses momentos, já junto ao
junto temático, representado com uma iconografia
mosteiro de Arouca, estando a mula prostrada rodea-
atípica, de joelhos perante a imagem de Maria com
da por quatro monges brancos de Cister.
o Menino sentada numa nuvem, que lhe entrega um cinto, materialização do compromisso entre a nova
OS FUNDADORES
Ordem e o Divino, proclamando a força e os pode-
O local escolhido para a representação dos fun-
res de que está investido o seu portador (CHEVALIER,
dadores foi a parede da entrada cerimonial do coro,
1982:198). Uma estranha vassoura repousa aos pés
local privilegiado valorizado pela imagem da Rainha
do grupo, símbolo provável da renovação espiritual
Mafalda que encima o portal de acesso. São Bernar-
de Cister e da casa arrumada pelas mãos puras do
do está representado com o manto branco da Or-
seu Fundador, directamente apoiado pela Mãe de
dem, tonsurado e nimbado, empunhando o bácu-
Deus.
lo na mão direita e abençoando com a esquerda.
A presença da iconografia de São Francisco é co-
Como é habitual na sua iconografia, a mitra e res-
mum noutros espaços cistercienses, como em Lorvão,
pectivas fitas repousam no chão a seus pés, simboli-
onde consta num dos relevos do espaldar do coro. É
zando as repetidas recusas da dignidade episcopal.
também um santo Fundador, da Ordem dos Frades
São Bento foi representado numa composição idên-
Menores, instituição protegida pelos reis da primeira
tica, de corpo alongado na tela, amplo hábito negro
dinastia, nomeadamente D. Afonso II e D. Afonso III
da Ordem que fundou e cogula com capuz que lhe
e pelas infantas Sancha e Teresa. A sua rápida ca-
cobre a cabeça, com tonsura, imberbe e nimbado,
nonização em 1228 é bastante expressiva da popu-
laridade e da fama de santidade que rapidamente
Episódio igualmente recorrente nos cenóbios cis-
conquistou, o que explica a grande devoção que
tercienses, exemplificado pelo trabalho de Bento
acolheu em meios civis e religiosos. Entendido como
Coelho da Silveira na igreja de Salzedas, o pintor re-
um modelo de ascetismo no período barroco, o seu
presentou na tela fronteira a esta, a visita de Umbe-
culto foi reforçado em muitas instituições monásticas
lina, irmã de São Bernardo, ao mosteiro de Claraval.
como em Lorvão e em Arouca. A sua integração nas
Num ambiente exterior, Umbelina, ricamente vestida,
molduras do topo da entrada do coro, junto de São
revelando a sua vida de excessos e futilidade, cho-
Bento, São Bernardo e Santo Amaro, figuras basilares
ra após a recusa do irmão em a receber. No ar pa-
do monaquismo ocidental e da vida contemplativa,
recem ficar as palavras proferidas pelo cronista da
denuncia o prestígio do seu culto entre as religiosas
ordem, Bernardo de Brito: Oh, pouco venturosa de
desta comunidade de Cister. Envergando o hábito
mim! E se eu sou pecadora, não veio Cristo ao mun-
da ordem e prostrado de joelhos em terreno aber-
do para redenção dos tais?, desabafo de humilda-
to, é representado no momento da Estigmatização,
de que abrandou o coração descontente do irmão.
perante a imagem de Cristo que surge no céu, cru-
Exemplo de uma pecadora arrependida, Umbelina
cificado e envolto por seis pares de asas seráficas,
seguiu posteriormente a vida monástica, tendo pro-
segundo a visão do Poverello, paralelismo directo do
fessado no mosteiro beneditino Jully-les-Nounains, do
santo com a vida do Salvador.
qual foi superiora (SOBRAL, 1998: 314 e 324). A figura de Umbelina reaparece numa das imagens do coro,
SÃO BERNARDO
no lado da Epístola.
E OS IRMÃOS GERARDO E UMBELINA A origem social de São Bernardo, nascido na Borgonha no seio de uma família nobre e piedosa, não
OS CHRISTOPHOROI: SÃO JOSÉ, SÃO CRISTÓVÃO, SANTO ANTÓNIO
foi esquecida pelos comitentes do programa pictóri-
A inclusão de São José entre as pinturas dos espal-
co. No lado do Evangelho, depois do Nascimento da
dares do coro é explicada pela importância que o
Virgem, o artista representou os dois irmãos Bernar-
seu culto conheceu na Época Moderna, fortemente
do e Gerardo ricamente vestidos com típicos trajes
impulsionado por Santa Teresa de Ávila, Santo Inácio
barrocos. Tratando-se de um conjunto iconográfico
de Loiola e pelos cistercienses em particular (BOR-
que obriga à reflexão sobre o despojamento e os
GES, 1994: 276). Esta valorização do pai adoptivo nas
valores da vida monástica, inclui-se aqui a presença
comunidades de Cister encontra já eco no período
de Gerardo, o valente cavaleiro que mais resistiu ao
medieval, nomeadamente em São Bernardo de Cla-
abandono da vida mundana e a ingressar na vida
raval, que valoriza a relação de protecção, afecto e
monástica, conforme o relato de Vorágine na Legen-
ternura de São José para com o Menino que abra-
da Áurea (VORÁGINE, 2004, II: 513).
ça, alimenta, conduz pela mão ou pega carinho-
121
122
samente nos braços. Tal como refere Francisca Pires
com que o santo segura o Menino e o olhar de ternu-
de Almeida, citando Caroline Walker Bynum, esta
ra que pousa sobre Ele. O ramo de açucenas floridas
espiritualidade afectiva surge no século XII entre os
que prende no peito reforça esta leitura de pureza e
cistercienses, conferindo características maternais de
bondade do bom velho José (SANTOS OTERO, 1963:
carinho e afecto a figuras masculinas e, em particu-
334) escolhido para esposo da Virgem Mãe.
lar, a São José, enaltecendo-se, desta forma, as suas
O nome Cristóvão, o portador de Cristo, espelho
qualidades humanas e o verdadeiro amor paternal
de São José nos espaldares, segue a mesma linha de
enquanto imitador de Maria… Imitatio Mariae (PIRES
reflexão. Cristóvão, o gigante errante que na sua in-
ALMEIDA, 2015: 114-115 e 119). Esta afectividade é
cessante busca do amo mais poderoso do mundo, se
evidenciada na pintura do espaldar pelo cuidado
coloca ao serviço de viajantes e peregrinos ajudandoos a fazer a travessia de perigosos rios. Numa dessas passagens transporta uma criança cujo peso se vai tornando sucessivamente mais pesado, o que o obriga a apoiar-se num tronco seco, atributo que passa a fazer parte da sua iconografia e que aqui está presente na forma de uma palmeira porque justus ut palma florebit (Sl, 92-12). Entre os seus atributos comuns usa também a túnica curta até aos joelhos, a capa pelas costas, aqui de vermelho intenso, apoiando-se na palmeira como se de um cajado se tratasse. A tradição popular atribui-lhe a protecção contra a morte súbita. A presença do santo entre os temas escolhidos na pintura dos espaldares demonstra quão frustradas foram as tentativas do Concílio de Trento em apagar o culto de um santo tão associado à superstição e à magia. (MANZARBEITIA VALLE, 2009: 45). A escolha de São António explica-se igualmente pela sua iconografia protectora de Cristo, que segura com meiguice ao colo. Mas também pode ser entendida, como considerou Nelson Correia Borges, pelo facto de ter sido contemporâneo das Santas Rainhas e conhecer grande devoção entre as religiosas dos mosteiros por elas fundados, como em Lor-
Figura
3 | Pintura do coro representando a introdução do hábito de Cister em Arouca pela mão de Santa Mafalda. Foto Nuno Resende
vão, constando nas lendas de Vida de Santa Teresa
mem funções de exemplo e de ética. Mas recordam
e em relatos de intervenções miraculosas (BORGES,
igualmente os princípios fundamentais do Cristianis-
1994: 271). É representado com o habitual hábito dos
mo como a tolerância e o perdão e a sua conquista
franciscanos e cordel com três nós evocativos dos
através da fé e do arrependimento. Os episódios das
votos de Pobreza, Castidade e Obediência, com
mulheres adúlteras, os mais populares na iconogra-
o Menino ao colo sentado sobre o livro. Trata-se de
fia medieval e moderna, foram os temas escolhidos
uma iconografia popularizada a partir do século XVI
para os espaldares junto à porta do coro. A conver-
(REAU, 2000: 127), que Murillo reforçou no seguinte
são de Madalena surge em frente à conversão de
(DUCHET-SUCHAUX, 2009: 50). Na mão direita expõe
São Paulo, memória alusiva à primitiva designação
a cruz, símbolo do martírio de Cristo, cuja palavra ex-
do mosteiro dedicado aos Santos Pedro e Paulo,
pandiu pelo mundo. São Marçal, localizado em frente a Santo António e a ladear o episódio da morte da Rainha, é representado com vestes episcopais e mitra na cabeça, a apagar um incêndio com o báculo, milagre póstumo divulgado a partir do século XV (REAU, 2001: 321). O tema substitui, de forma clara, o mesmo milagre propiciado pela Beata Mafalda no Mosteiro de Arouca; trata-se de uma narrativa muito divulgada na iconografia da rainha antes ainda da sua beatificação, que se encontra representada no cadeiral de Lorvão (BORGES, 1994: 277). O tema repetia-se igualmente em duas telas que existiam no interior do coro, referidas pela Madre Maria Luísa Teresa Bernarda em 1753, com a Serva de Deus vestida de Religioza com titulos de Beata e em acção de apagar o fogo miraculosamente, um ainda em vida e outro depois de morta (ROCHA, 2010: 353-354). AS MULHERES ADÚLTERAS E AS CONVERSÕES EMBLEMÁTICAS Enquanto espaço de oração e reflexão de um cenóbio feminino, as pinturas dos espaldares assu-
Figura 4 | Pintura do coro representando a Conversão de Santa Maria Madalena. Foto Nuno Resende
123
124
homenagem àquele que é entendido como um
eterna, os três caminhos escolhidos por Madalena de
dos pilares da igreja e um dos fundadores da Igreja
que fala Vorágine (VORÁGINE, 2004, I: 382), iluminada
Universal. A conversão de São Paulo repete a icono-
pelo Espírito Santo e transbordando essa luz sobre os
grafia vulgarizada no ocidente cristão, com o santo
outros enquanto modelo de virtude e exemplo.
caído no chão junto do seu cavalo branco, ricamen-
Segue-se na tela seguinte A Adultera e, no lado
te equipado. A composição segue de perto a descri-
fronteiro, Santa Maria Egipcíaca, a prostituta de Ale-
ção dos Actos dos Apóstolos: Saulo olha para o céu,
xandria que se transformou na patrona das mulhe-
ofuscado pela luz intensa que o cega e que envolve
res arrependidas (REAU, 2001: 336). Stª Mª Egicíaca,
a figura de Cristo que aponta para o grupo. Os três
acentua o sentido de penitente, em genuflexão,
soldados, companheiros de viagem de Paulo, olham
mãos unidas e dedos cruzados com fervor no mo-
para cima com expressões de surpresa e espanto,
mento de receber a comunhão que lhe é ministrada
ouvindo a voz mas não vendo ninguém (Act 9, 7).
pelo ermitão Zósimo, tal como se infere no relato da
A importância atribuída neste programa pictóri-
Legenda Áurea (VORÁGINE, 2004, I: 239). O corpo
co às mulheres pecadoras que conquistaram a sal-
está coberto pela capa que o sacerdote lhe dera um
vação através do arrependimento, da fé e de uma
ano antes, no primeiro encontro, os cabelos longos,
vida entregue à penitência e oração é evidente num
purificados pelas águas do Jordão, com que cobriu o
espaço de vocação feminina, tendo sido converti-
corpo desnudo e queimado pelo sol durante os qua-
das em modelos de vida monástica. Maria Madale-
renta e sete anos que viveu recolhida e em oração
na, a mulher que lava os pés de Cristo com as suas
no deserto. O nimbo na cabeça, os dois anjos que
lágrimas, que os seca com os seus cabelos e os unge
a ladeiam segurando nas mãos um manto branco e
com o perfume contido no vaso (Lc 7, 36-49), o seu
os querubins que tudo observam do alto, anunciam
atributo mais comum aqui pousado sobre a mesa,
o momento que antecede a sua morte, a sua ele-
surge representada no espaldar fronteiro ao da
vação ao Céu pelos anjos e a conquista da santi-
Conversão de Saulo, constituindo um dos temas de
dade como resultado da sua entrega, sofrimento e
maior significado da época barroca. Jovem e bela,
oração. A iconografia da mulher adúltera segue de
com uns longos cabelos loiros e ricamente vestida,
perto a descrição de João e respeita à composição
personifica a devoção e arrependimento, de olhos
mais divulgada do tema no período Moderno: Jesus
lacrimejantes voltados para a luz divina que inunda
inclinado sobre o chão, a escrever com o dedo na
o espaço, orientação contrária à do espelho que lhe
terra, rodeado pelos doutores da Lei e os fariseus, em
fica em frente, memória da sua vida de cortesã e de
número de quatro, e a mulher no meio deles (Jo 8,
pecado, deixando cair aos pés a caixa de joias que
1-11), com a mão direita sobre o peito, em sinal de
se espalham pelo chão. É a imagem da penitência,
arrependimento, de rosto belo e sereno, com os olhos
da contemplação interior e da conquista da glória
pousados sobre a figura de Cristo.
Na continuidade de Santa Maria Egipcíaca, aque-
exemplo de renúncia aos bens terrenos e de entrega
la que tal como Cristo caminha sobre as águas do
à vida contemplativa e de oração, entendida como
Jordão (VORÁGINE, 2004, I: 239), que purificou os seus
caminhos de Salvação alcançáveis também através
cabelos na água deste rio e, por isso, também asso-
da vida monástica. A presença dos fundadores – São
ciada ao simbolismo do Baptismo, segue-se o tema
Bento, Santo Amaro, São Roberto, São Bernardo e
da Samaritana. A pecadora da Samaria, a quem
São Francisco – reforça estes valores da vida mona-
Cristo pede água, apresenta-se em pé, encostada
cal, de entrega através da oração e da contempla-
ao poço de Jacob, com a bilha de barro pousada
ção, a Maria e a Cristo, que mereceram igualmente
sobre o muro, a mão sobre o peito ouvindo as pa-
um lugar de destaque neste programa iconográfico.
lavras de Jesus, sentado à sua frente, que gesticula
Todos os temas são coroados pelos dois corações fe-
em sinal de diálogo. O episódio foi desde os primeiros
ridos, um com a coroa de espinhos, alusão ao sacri-
séculos do Cristianismo entendido como um símbolo
fício e martírio do filho de Deus que se fez homem, o
dos gentios ou dos estrangeiros convertidos por Cristo
Verbo feito carne no seio da Virgem Maria, cujo co-
(REAU, 2002: 336), relacionando-se igualmente com o
ração sangra trespassado por uma espada. A coroa
rito baptismal, a água viva fonte da vida eterna (Jo,
de rosas, flor de Maria, que envolve o coração ferido
4:10 e 13). Assim se explica que a cena seguinte re-
e em chamas, simboliza a dor da Mãe por Amor do
presente, precisamente, O Baptismo de XPto.
filho morto na cruz para remissão dos pecados da Hu-
Desta exposição resulta claro que o programa ico-
manidade.
nográfico apresentado nos espaldares do coro obe-
Espaço de conjugação harmónica no qual a ar-
deceu a uma escolha pensada e cuidadosamente
quitetura, a obra de talha, escultura e pintura for-
encadeada. A apologia da figura de Mafalda torna-
mam um todo sublime, acompanhada pelas notas
se evidente, memória de uma fundação e modelo
melodiosas da música que emana do órgão, o coro
da vida monástica, evidenciando-se igualmente as
de Arouca assume-se como um lugar que excede as
virtudes de piedade e expiação das mulheres adúlte-
esferas humanas no qual se imitam os Serafins que as-
ras, símbolo do arrependimento, de Santa Umbelina,
sistem a Deos no ceo (ROCHA: 2010, 356).
1. Na cidade do Porto conhecem-se várias moradas dos dois entalhadores. António Gomes morou na Rua da Porta de Carros, no Rocio de São Bento das Freiras, na Rua das Flores, Rua Nova do Bonjardim e Rua do Paraíso. Filipa da Silva na Rua Chã, Rua do Calvário, Rua Nova do Bonjardim “junto” da Fábrica de Tabaco, onde residia à data do contrato para Arouca (FERREIRA-ALVES, 2001: 57 e 65).
125
015
SÉCULO XVIII
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO DE TAROUCA
VASCONCELOS: A HISTÓRIA SOCIAL DE UM PRATO NUNO RESENDE
Ainda com pouca expressão na historiografia portu-
seu círculo familiar poderia elucidar-nos, ao nível da
guesa, o método prosopográfico aplicado ao estudo
arte, sobre gostos, procedências e clientelismos que
de abades e outros religiosos das comunidades cis-
naturalmente influíram nas empreitadas artísticas e
tercienses, poderia elucidar-nos sobre aspectos parti-
no mecenatismo de alguns abadessados.
culares da organização dos mosteiros desta ordem .
Naturalmente devemos diferenciar entre abades-
Proveniência geográfica, estatuto e formação dos
sados perpétuos e abadessados trienais, em cujos
egressos forneceriam, enquanto campos do formu-
períodos diferiu a administração das casas monásti-
lário das prosopografias, uma melhor compreensão
cas. Os abades perpétuos eram, como a designação
sobre o funcionamento da engrenagem eclesiástica
assinala, eleitos e apresentados naquele benefício
e social dentro do vários mosteiros Cister, nomeada-
até ao final da sua vida e os abades trienais indica-
mente ao nível da permanência ou preeminência de
dos para períodos menores e não consecutivos – es-
certas famílias e, ou, linhagens à frente dos destinos
tratégia que visava, entre outros aspectos, limitar o
dos mosteiros. A procedência social dos abades e o
controlo das casas monásticas por linhagens e indiví-
1
Figura 1 | Prato (perfil). Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
duos, práticas largamente difundidas durante a Idade Média. É, aliás, pertinente assinalar o caso de D. Brás de Cimbres (cat. 12), abade de Salzedas, cuja filha, Guiomar Fernandes casou com um filho do abade de São João de Tarouca e ambos viveram na órbita do primeiro mosteiro onde determinaram como última vontade ser sepultados pela criação que haviam tido naquela casa e pelo amor que lhe tinham (cf.
128
MORAIS, 1948, III:262). Quase naturalmente o genealogista Alão de Morais, que apontou a carinhosa dedicação ao mosteiro de Salzedas pelo casal acrescentou, mais adiante, na sua genealogia, que o filho de ambos, Damião Rodrigues Dom Abb.e do Mostr.º das Salzedas […] sucedeo a seu Avo D. Bras (MORAIS, 1948, III: 263). Ambos os casos, ocorridos na viragem do século XV para o século XVI são reveladores da forma como certos eclesiásticos e suas famílias tomavam os mosteiros um prolongamento do seu domínio doméstico2. Não obstante este cenário, conhecido através das inúmeras queixas apresentadas por leigos e clérigos ao longo da medievalidade e pelo esforço dos conciliares de Trento em refrear o monopólio e a impunidade de certas famílias (invocando direitos de padroado, comedorias, etc.) a época moderna não constituiu um período isento de disputas pelo controlo das casas monásticas, dos seus rendimentos e, claro, dos seus espaços de poder. No caso da nobreza portuguesa, inquilina e devedora das ordens religiosas, devemos entender a entrega dos filhos e das filhas segundas aos conventos e mosteiros não apenas numa lógica devocional ou de vocação. Assegurar o
acesso à vida religiosa aos membros secundários da família, para que não dependessem dos morgados e titulares das casas nobiliárquicas, constituía um recurso ao alcance das famílias nobres que poderia, ainda, contribuir para o controlo das casas monásticas – algumas delas autênticos panteões linhagísticos. O prato que ora se apresenta, em cerâmica vidrada, com decoração monocroma a azul sobre fundo branco, é um elemento representativo de práticas e atitudes sociais da nobreza, parte da qual procurava ascender a cargos eclesiásticos (figura 1). Não obstante a simplicidade da peça, cuja ornamentação se cinge ao friso da aba há algo que nela sobressai: o apelido Vasconcelos. Grafado no covo do prato ao longo de três registos, a sua presença remete-nos mais para o mundo doméstico da casa laica, do que para o espaço monástico, onde foi exarado em contexto arqueológico (figura 2). Esta peça de louça de encomenda (cat. 16) inscreve-se no que A. Nogueira Gonçalves denominou de faianças com marcas nominais de propriedade (GONÇALVES, 1954). Como explicar a presença deste prato em São João de Tarouca? O ingresso na ordem de Cister estruturava-se em torno de conversos, noviços e monges. Os conversos eram leigos afectos ao trabalho braçal da comunidade; os noviços aspirantes ao estado eclesiástico cuja preparação para receber o hábito durava cerca de um ano; e os monges, a quem podiam ser concedidas ordens, destacavam-se entre si pela maior ou menor formação recebida (CISTER, 1998: 13). Naturalmente fora desta tríade, uma plêiade de indivíduos, cada qual com as suas funções, dependia e
Figura 2 | Prato (inscrição). Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
129
contribuía para o funcionamento dos mosteiros, den-
(doc. em 1703, 1704, 1705), frei Paulo de Vasconcelos
tro ou fora deles (cat. 16). Mas o acesso aos espaços
(1709) e o já atrás mencionado frei Rodrigo de Vas-
monásticos estava reservado a pouco mais do que o
concelos que assina uma profissão em 1712. Outros-
conjunto de indivíduos que se inscreviam nos grupos
sim, ao longo das referências biográficas dos noviços
descritos.
são indicados vários progenitores de sobrenome
A passagem do modelo de abadessados perpé-
Vasconcelos, apelido cujos filhos bem poderiam usar
tuos para abadessados trienais ocorreu, em de São
como nome secular, quer por herança materna ou
João de Tarouca, na sequência da restauração do
paterna.
mosteiro, em 1560 (VASCONCELOS, 1933: 391). Cinco
130
anos antes a casa havia sido suprimida e todos os seus bens entregues à Ordem de Cristo. Embora não se conheçam listas exactas dos abades, entre o conjunto de nomes reunidos por Leite de Vasconcelos e M. Gonçalves da Costa, são poucos os que usaram o apelido Vasconcelos ao longo do período de administração trienal, nomeadamente frei Rodrigo de Vasconcelos (documentado em 1783) e frei António de Vasconcelos (documentado em 1797). Mas nem todos assinam com o seu nome laico e a inconstância nos apelidos não permite aferir de ligações familiares directas, quando amiúde se combinam diferentes composições de sobrenomes. No entanto, ao longo do século XVIII destacam-se alguns egressos sobre cujas vidas sabemos um pouco mais e a algum dos quais se poderá atribuir a posse desta peça de louça. Através do Livro de Noviciaria do mosteiro de São João de Tarouca, redigido entre 1692 e 1762, (TT, Mosteiro de São João de Tarouca, Livro [dos] Graos de Noviciaria]) é possível registar alguns nomes com o referido apelido, nomeadamente os de frei Feliciano de Vasconcelos, mestre e prior dos noviços (assinalado nos anos de 1702, 1703, 1731 e 1733), frei Nuno de Vasconcelos, mestre dos noviços
Figura 4 | Pintura retabular da capela de São Jorge (Mondim da Beira) representando São Sebastião. © Diocese de Lamego
Todavia, e apesar da dispersão geográfica de al-
liciana Pinto Botelho sendo o contraente natural da
guns indivíduos assim apelidados, Vasconcelos, tor-
freguesia e concelho de Ferreiros de Tendais (onde
nou-se particularmente sonante em contexto regio-
era capitão-mor) e a nubente de Mondim da Beira.
nal associando-se, a partir de finais do século XVII, a
Não obstante o desrespeito pelo costume tradicional
várias famílias da região, que tinham como epicentro
que determinava a celebração do enlace na terra
a vila de Mondim, às portas do cenóbio cisterciense
da noiva, o casal mudou-se para a vila de Mondim,
de São João de Tarouca.
onde lhes nasceram quatro filhos documentados pe-
Efectivamente, a 29 de Maio de 1677 ocorreu ali o
los registos paroquiais: Heitor (baptizado a 7-9-1688),
matrimónio entre Manuel Vaz Pinto de Resende e Fe-
Angélica (b. 18-9-1685), Feliciana (b. 3-7-1691) e Ro-
Figura 3 | Inscrição e pedra de armas da igreja de Mondim da Beira. © Nuno Resende
Figura
5 | Fachada da capela de São Jorge (Mondim da Beira). © Diocese de Lamego
131
132
drigo (5-2-1693). Pelo lado paterno eram descenden-
João de Tarouca a Mondim influiu na escolha. Mas
tes de uma família das elites municipais de Ferreiros
não poderia esta distância geográfica converter-se
de Tendais e Tendais (freguesias do actual concelho
numa apetência pelo domínio do poder que cada
de Cinfães) e por via materna, do licenciado Francis-
um destes mosteiros encerrava?
co Guedes Alcoforado, homem letrado e de haveres
Quer no ramo de Ferreiros de Tendais e Tendais,
natural de Sedielos, do então concelho de Pena-
quer no ramo de Mondim da Beira, vários foram os
guião, mas morador em Mondim da Beira pelo ca-
elementos desta família que seguiram a via eclesiás-
samento com Serafina Botelho Rebelo. A presença e
tica cisterciense. Dos seis filhos da irmã do supra cita-
a importância destes Botelhos em Mondim está aliás
do Manuel Vaz Pinto de Resende – chamada Maria
documentada, não apenas nos registos paroquiais,
de Resende - dois foram monges de Cister: frei Mau-
mas na heráldica presente na arquitectura da igreja
ro da Conceição e frei Agostinho do Pilar e, ambos
matriz de Mondim, assinalada por pedra de armas
professos de São João de Tarouca - o primeiro em
(figura 3). O poder desta família espelhava ainda na
1708 e o segundo em 1709 (cf. COSTA, 1992: 708)3. A
arquitectura e no programa artístico da capela de
inexistência de prole legítima dos irmãos destes dois
São Jorge, cujo orago e devoção secundária (São
eclesiásticos originou, aliás, a extinção deste ramo e
Sebastião) destacam o papel das armas na consoli-
a subsequente queda ou esvaziamento de uma casa
dação do estatuto desta família (figuras 4 e 5)
senhorial em Ferreiros de Tendais (RESENDE, 2013b).
Está assim atestada a nobreza e as ligações des-
Em Mondim da Beira destacavam-se os filhos do já
ta família à nobreza regional, cujo poder se firmava
referido Heitor, filho de Manuel Vaz Pinto de Resende
por casamentos entre iguais, nomeadamente com
e de Feliciana Pinto Botelho. Heitor Pinto de Vascon-
elementos das elites locais (nobreza de pelourinho)
celos casou a 17 de Agosto de 1723, em Mondim da
que repartia endogamicamente a administração do
Beira, com Benta Mesquita de Pimentel de cujo ma-
governo municipal.
trimónio nasceram oito filhos documentados. Um, de
Parece, todavia, não cingir-se a estratégia desta
nome António, morreu sem geração; Francisca fale-
família à obtenção, posse e transmissão dos cargos
ceu, ao que parece, solteira; Teresa e Jorge Gouveia
municipais de Mondim, Ferreiros de Tendais e Tendais,
Pinto casaram, ambos com geração, e Francisco
como caminho único para o controlo institucional lo-
António Pinto foi, de acordo com o Nobiliário de Fel-
cal e regional – neste caso através de matrimónios.
gueiras Gaio, Cap.am na Índia Cavaleiro da Ordem
Muitos dos filhos segundos seguiram a via eclesiástica
de Cristo (GAIO, 1938-1941: Vasconcelos §22 N23). Os
– os quais, podendo escolher entre um abrangente
restantes filhos do casal seguiram a carreira eclesiás-
leque de ordens religiosas, elegeram a Ordem de Cis-
tica: Angélica, Manuel e Luís.
ter para o seu percurso eclesiástico. Certamente a
Luís, monge de S. Bernardo alcançou a dignidade
proximidade geográfica das casas de Salzedas e São
de Abade de Santa Maria de Aguiar, Manuel a de
abade de São João de Tarouca e Angélica professou
Confirma-o, de resto, o lugar de Mondim na geo-
em Arouca (GAIO, 1938-1941: Vasconcelos §22 N24).
grafia regional: enclave entre os coutos de São João
Embora dispondo, apenas, de elementos respeitan-
de Tarouca e Salzedas e curato anexo à paróquia de
tes aos actos baptismais de três dos filhos de Heitor
São Pedro (COSTA, 1708: 252), a sua posição obriga-
Pinto de Vasconcelos, a saber: Manuel (bap. 21-10-
va as elites locais a um constante diálogo (nem sem-
1725), Jorge (bap.30-3-1727) e Teresa (bap. 26-7-
pre pacífico) com as instituições mais poderosas.
1729) nos dois últimos casos são relevantes os nomes
Manuel, filho de Heitor Pinto de Vasconcelos e de
dos padrinhos e dos participantes no acto: D. Maria
Benta Pimentel, professou a 25 de Março de 1741,
de Berredo, abadessa do Convento de Arouca (ma-
sob o abadessado de frei Leopoldo Botelho e com
drinha de Jorge) e os reverendos Manuel da Fonseca
o testemunho de, entre outros, frei Jorge Pimentel.
e Francisco Guedes, com procurações do Rev.º Dom
Deve tratar-se do Frei Manuel Pinto assinalado na lista
Abade de S. João Frei Francisco do Espírito Santo e
publicada das Memórias de Mondim da Beira, que o
com procuração de D. Teresa Bernarda de Mesquita,
documenta em 1762 como comitente das urnas dos
religiosa em o convento de Arouca. Este conjunto de
altares e o que sagrou o altar-mor (VASCONCELOS,
ligações a casas masculinas e femininas da ordem
1933: 393).
de Cister é reveladora da influência e do entrosa-
Parecerá casualidade o encontro dos mesmos
mento desta família em mosteiros cistercienses regio-
apelidos naquele acto de profissão, e o percurso algo
nais. E a ascensão de alguns dos seus elementos aos
inusitado que fizemos em redor de um vulgar prato -
lugares abaciais, transmitidos geracionalmente entre
mas até podermos cruzar as biografias de cada um
tios e sobrinhos, entre irmãos ou parentes próximos é
destes indivíduos, todos de apelidos Vasconcelos ou
outrossim testemunho de estratégias clientelares e
a ele ligados, e a sua permanência em São João de
nepotistas que sugerem a necessidade da manuten-
Tarouca, apenas podemos conjecturar sobre a tes-
ção da preeminência linhagística naquelas casas e
situra de tais relações, passíveis de materialização
ordem.
numa peça de cerâmica4.
1. Dentro dos estudos de natureza prosopográfica ou abordagens similares no contexto das comunidades cistercienses devemos salientar os trabalhos de A. Fialho Conde (2009) para o sul de Portugal e Luís Miguel Rêpas (2003) para as casas femininas. 2. S obre alguns casos irregulares nas comunidades de Tarouca e a vontade dos monarcas em as resolver ver COSTA, 1984: 547 e COSTA, 1984: 522. 3. Esta indicação de M. Gonçalves da Costa é confirmada pelo Livro de Noviciaria, onde aparecem as profissões de Frei Mauro da Conceição, a 18 de Abril de 1708 e a de frei Agostinho (que M. Gonçalves da Costa chama Amaro) do Pilar a 22 de Junho de 1709. 4. Todas as indicações respeitantes a nascimentos, datas de baptismo e matrimónio foram consultadas no Arquivo Diocesano de Lamego, cf. ADL, Paroquiais, Ferreiros de Tendais, Mondim da Beira e Tendais, livros dos anos respectivos (dado o mau estado de conservação de alguns códices não é possível a apresentação do número do fólio). Nas obras indicadas encontram-se outras referências para a reconstituição da genealogia abordada.
133
016
SÉCULO XVII (2ª METADE)
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO DE TAROUCA
TIGELA BRASONADA DE FAIANÇA COIMBRÃ
LUÍS SEBASTIAN
A louça destinada ao serviço de ingestão dos ali-
quer de aquisição, esta louça de faiança pode ser
mentos no espaço do refeitório monástico passa a
dividida em dois grandes grupos, a que convencio-
ser, predominantemente, de faiança a partir dos fi-
namos nomear de louça indiferenciada e louça de
nais do século XVI. Quer em termos de produção
encomenda (figura 1). Por louça indiferenciada de-
Figura 1 | Tigela brasonada das olarias de Coimbra. Foto José Pessoa. © Museu de Lamego, DRCN
135
136
signamos toda a louça produzida sem prévia enco-
tras palavras, através de elementos figurativos – bra-
menda e comercializada abertamente no mercado,
sões, simbólica religiosa, etc. – ou, mais diretamente,
logo, de uso corrente em contextos quer civis, milita-
através de inscrição (figura 2).
res ou religiosos, enquanto por louça de encomenda
Esta louça de encomenda pode ainda por sua vez
designamos toda a louça sujeita a prévia encomen-
ser subdividida entre louça de encomenda institucio-
da e produzida de acordo com características perso-
nal e louça de encomenda pessoal, entendendo-se
nalizadoras impostas pelo encomendador.
por louça de encomenda institucional toda a louça
No caso da louça de faiança portuguesa, a perso-
produzida de acordo com prévia encomenda da ins-
nalização de acordo com a encomenda dá-se por
tituição, no caso, adquirida pelo mosteiro e destina-
regra ao nível da decoração pintada, reaproveitan-
da ao uso no refeitório, e por louça de encomenda
do as formas, pastas e esmaltes presentes na restante
pessoal toda a louça produzida de acordo com pré-
louça indiferenciada. Já esta personalização da lou-
via encomenda de um determinado indivíduo, ad-
ça de encomenda pode ser feita de duas diferentes
quirida pelo mesmo e destinada a seu uso pessoal.
maneiras, graficamente ou caligraficamente, por ou-
Focando-nos na louça de encomenda institucional,
Figura 2 | Louça de encomenda em faiança das olarias de Coimbra e Vila Nova (de Gaia) recuperada nas escavações arqueológicas do Mosteiro de São João de Tarouca.
constatamos por regra a sua possível subdivisão em ins-
As inscrições identificativas tão simplesmente iden-
crição evocativa, inscrição identificativa, inscrição fun-
tificam o mosteiro, surgindo apenas o topónimo, sem
cional, heráldica identificativa e simbologia religiosa.
mais indicação à natureza institucional, resultando
As inscrições evocativas, por extenso ou em abreviatura, correspondem regra geral ao nome do
em S. João de Tarouca, Salzedas, ou noutras ordens, Tibães, Mafra, etc.
padroeiro da Ordem, ou a um qualquer santo de
As inscrições funcionais, que começam a surgir ten-
grande devoção local. É disso exemplo a recorrente
dencialmente a partir de cerca de 1700, desempe-
ocorrência de louça com as iniciais S.B. ou o acró-
nham um papel meramente prático, de organização
nimo S.BR.DO, relativos a São Bernardo, verificável
interna, atribuindo de forma indissociável um conjun-
desde o início do século XVII e predominante duran-
to de louças a um determinado espaço funcional,
te a primeira metade do século XVII. Ainda que não
como HOSPEDES ou HOSPEDARIA.
santos diretamente relacionáveis com a Ordem de
Igualmente sem grandes variações, a louça de en-
Cister, registam-se amiúde inscrições referentes a São
comenda institucional com heráldica identificativa
Domingos e São Francisco.
apresenta, no caso da Ordem de Cister, o correspon-
137
Figura 3 | Cronograma evolutivo da decoração de báculo sobre mitra das olarias de Coimbra
dente brasão, ou, recorrentemente a partir do século XVII, o brasão de Cister nacional (ou da Congregação de Alcobaça), com o escudo de armas dividido verticalmente, ocupando a metade direita com as armas de Portugal e a metade esquerda com o brasão de Cister. Por fim, dentro da louça de encomenda institucional com simbologia religiosa, encontramos como recorrente o uso de simbologia hagiográfica, como o cordeiro místico (ou agnus dei), símbolo evocativo de S. João Baptista, ou a chave, evocativa de São Pedro. Dentro desta, e em destaque pela sua maior ocorrência, quer em número quer em
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transversalidade aos mosteiros cistercienses para os quais contamos com recolha de vestígios cerâmicos, temos a partir dos meados do século XVII a insígnia compósita de um báculo sobreposto a uma mitra, podendo em algumas variações mais tardias, já de século XVIII, surgir apenas um destes elementos isolados (figura 3). Simbologia recorrente nos mosteiros cistercienses, em elementos de arquitetura, talha dourada, pintura, etc., esta evoca a independência do abaciado em relação ao bispado, tema caro e especialmente sensível à Ordem de Cister. O espécime em estudo corresponde a uma tigela asada com tampa lobulada produzida nas olarias de Coimbra, estendendo-se a sua produção a toda a segunda metade de século XVII. No caso, integrava uma baixela completa que contava ainda com três pratos de forma igual, mas de diferentes dimensões – pequeno, médio e grande. Recuperada nas escavações arqueológicas realizadas no Mosteiro de São João de Tarouca entre 1998 e 2007, a esta forma inicial de representação foi ainda possível juntar diversas variantes posteriores, que além de provar a sua sobrevivência até meados do século XVIII, revelam igualmente a sua permanente evolução, sempre no sentido de uma crescente simplificação da solução inicial, perdendo primeiro o escudo ladeado de volutas e encimado por elmo, para depois ou acentuar a estilização do conjunto solitário da mitra e báculo, ou apenas apresentar um destes elementos, mantendo contudo neste último caso algum do realismo da representação inicial. Estas variações evolutivas não aconteceram contudo numa linha temporal linear e contínua. Pelo contrário, vemos os seus períodos de produção sobreporem-se parcialmente, dando gradualmente lugar à fase evolutiva seguinte, com o seu período de maior popularidade a acontecer entre cerca de 1675-1725.
Para este período, e na variante de estilização quase máxima do conjunto de apenas mitra e báculo, foi ainda possível recuperar nas escavações arqueológicas no Mosteiro de São João de Tarouca um fragmento de cabo de talher – colher ou garfo (?) – com o mesmo exato motivo gravado, indicando que a partir dos finais do século XVII parece ter sido prática corrente a encomenda conjunta de louça e talheres com a mesma temática decorativa e simbólica. O fenómeno específico em que se insere esta tigela brasonada encaixa então na leitura geral de que até meados de seiscentos tivemos o predomínio da louça indiferenciada nos refeitórios monásticos cistercienses, a partir de quando vemos começar a impor-se o uso de louça de encomenda. Na segunda metade de seiscentos a louça indiferenciada é ainda em maior número que a louça de encomenda, passando esta a ser predominante apenas com o início da centúria de setecentos. Uma das consequências deste movimento, não sendo ele circunscrito à Ordem Cisterciense, é a de que a partir de meados de seiscentos verificamos, ao nível da personalização da louça, uma clara distinção entre as louças dos diversos mosteiros e conventos do reino. A este predomínio da louça de encomenda poder-se-ia entender corresponder um maior esforço de uniformização da utensilagem empregue nas mesas dos refeitórios cistercienses, e, sintomaticamente, uma maior regulamentação do quotidiano comum (figura 4). Contudo, é igualmente com a centúria de setecentos que registamos o aparecimento da louça de encomenda de uso pessoal, pelo que a esta uniformização não terão deixado de escapar os membros da comunidade com maiores posses e filiação familiar de maior prestígio (cat. 15). Figura 4 | Quadro de formas standard das baixelas de encomenda produzidas nas olarias de faiança de Coimbra.
139
017
SÉCULOS XVII-XIX
MOSTEIROS DE SÃO JOÃO DE TAROUCA E SANTA MARIA DE SALZEDAS
PRÁTICAS SOCIAIS, QUOTIDIANO E EMOLUMENTOS DOS MONGES DA CONGREGAÇÃO DE ALCOBAÇA DA ORDEM DE S. BERNARDO SALVADOR MAGALHÃES MOTA
Procuraremos no presente verbete, elucidar um
monásticas encetadas pelos cistercienses dos Reinos
pouco sobre o quotidiano dos monges de Cister após
de Castela estão estreitamente relacionadas com
a época da reforma católica e da constituição da
as reformas arquitectónicas (GONZALEZ GARCIA,
Congregação de Alcobaça da Ordem de S. Bernar-
2000:156).
do e se possível, averiguar as motivações da sua pro-
A reforma não incide apenas no alargamento dos
cura em termos de noviciado sobretudo, nas casas
espaços de cada cenóbio, no sentido de serem mais
mais importantes como Alcobaça, Tarouca (figura 1),
aconchegados e mais funcionais. A maior parte dos
Salzedas (figura 2) e Bouro, isto somente, em termos
noviços depois de fazerem a profissão, seguiam cur-
de conventos masculinos.
so de arte, ou filosofia e depois, teologia nos vários
Os conventos na época moderna sofreram impor-
colégios e mosteiros das Congregações atingindo
tantes modificações no espaço e redimensionamen-
um grau de conhecimento e de preparação que os
to, coincidindo com uma gestão mais profissionaliza-
habilitavam a exercerem determinadas funções que
da e com um aumento das rendas e dos rendimentos.
com o tempo começaram directamente ou indirec-
Fr. Maur Coheril diz-nos que os Abades Gerais de Alco-
tamente a serem remuneradas e actualizadas. Ana
baça puseram em acção um vasto programa de res-
Mouta Faria diz-nos que na carreira eclesiástica que
tauração material (COCHERIL,1978:34). José Mattoso
implicava funções de natureza religiosa, fossem elas
realça que o mesmo se passava noutras ordens reli-
culturais ou pastorais, estava associada a cada uma
giosas e instituições eclesiásticas (MATTOSO,1997:15).
sua dotação material sem a qual nenhuma função
Gonzalez Garcia é de opinião que as reformas
tinha existência reconhecida. Como é evidente a situação não deveria ser muito diferente para os religiosos conventuais. Para a mesma autora as oportunidades no âmbito do labor intelectual eram várias; o ensino nos seus diversos escalões totalmente controlado pelo clero, a música exigida à maior parte dos eclesiásticos, o acesso a cargos públicos, sobretudo se fossem nobres e com grau académico (juízes eclesiásticos, ministros, inspectores, comissários, inquisidores etc…) (FARIA,1987:30-33). O que acabou de ser dito faz descolar uma das funções principais dos monges religiosos após o Concilio de Trento, a necessidade de estudar (estudo), colocada ao mesmo nível da oração. O ensino em termos práticos achava-se dividido em 3 níveis. O
Figura 1 | Sacristia da igreja de São João de Tarouca. Foto Pedro Martins © DRCN
141
142
primeiro coincidindo com o noviciado, era obrigató-
Ambos os cursos, mas, especialmente, o de Artes,
rio e bastante selectivo. Aprendia-se o Latim, a Gra-
provavelmente por ser mais abrangente, dava aos
mática, a Religião e os Usos e Costumes da Congre-
candidatos entrada direta no curso de Teologia já
gação. Eram vigiados pelo Pe. Mestre de Noviços e
considerado de nível superior conjuntamente com os
demorava sensivelmente, um ano. Quem fosse apro-
cursos de Leis, Medicina e Cânones. António de Vas-
vado continuaria a estudar e passava a professo.
concelos, autor clássico nestas matérias, informa-nos
Quem não mostrasse capacidade e qualidades era
que para a matrícula no 1º ano da Faculdade de Te-
obrigado a sair do convento rapidamente.
ologia e de Medicina exigia-se de ordinário o grau de
Para além do noviciado que era uma espécie de
licenciado ou de bacharel em Artes e para um aluno
ensino elementar, criou-se o chamado ensino inter-
fazer a inscrição nas Faculdades Jurídicas tinha de
médio ou secundário consubstanciado nos cursos de
apresentar certidão passada pelo Principal do Colé-
Artes ou Filosofia. Para a frequência destes cursos, os
gio das Artes de haver sido examinado e aprovado
candidatos tinham de possuir determinados requisitos
no exame de aptidão para cursar estas faculdades e
como sejam: 4 anos na condição de professo, menos
de ter conhecimentos essenciais da escrita e da fala
de 30 anos de idade, não ter raça de cristão novo até
de Latim (VASCONCELOS, 1939: 2-10).
4º grau, nem mouro, nem mulato, não ter fealdade que
O curso de teologia de nível superior era feito em
prejudique o púlpito, domínio do latim e da gramática
diversas etapas, sendo a primeira o bacharelato, a
portuguesa (DIFFINIÇOENS, 1593: 40-50) (cat. 11).
licenciatura e o doutoramento considerado o último
Os candidatos tinham ainda de ser humildes, de
grau. Em Teologia o último grau coincidia também,
bons costumes, capazes e inteligentes dado que
com o de Mestre, sobretudo, para ordens religiosas.
eram sujeitos a exames por parte de examinadores
O curso era leccionado na Universidade de Coimbra
e ainda a uma selecção rigorosa feita pelos abades
e nos diversos Colégios universitários que se foram
conventuais donde eram originários, mesa do defini-
instalando na Lusa Atenas, como o do Espirito Santo
tório e abade geral (A.D.B. CI -188, fl. 109vs). O curso
fundado pelos cistercienses.
de Artes estava planeado para três anos, tinha de ser
Outra função muito importante para uma ordem
aprovado em definitório com a presença e anuên-
regular como a nossa era a oração a diversas horas
cia do Geral, ministrando-se as seguintes disciplinas:
do dia. Todos ou quase todos os monges deviam es-
humanidades (grego, latim, hebraico), Matemática,
tar presentes. Em ambas as estações do ano os nos-
Ciências e Filosofia (RODRIGUES, 1987:13-22). A Filo-
sos monges levantavam-se muito cedo, por volta das
sofia podia também ser dada em separado, como
5 / 6 horas da manhã. A jornada era preenchida com
curso autónomo o definitório atendendo ao tempo
uma série de orações, rezas e missas. Um documento
das aulas e depois dos estudantes cursarem Philoso-
de 1770 informa-nos que da parte da manhã reza-
fia seguem o de Teologia… (A.D.B. CI -188, fl. 27).
va - se a Prima, a Terça, a Sexta e a Noa, para além
da missa maior do dia. Da parte de tarde com mais
ajudavam nas suas funções. Abaixo do Abade nos
tempo livre rezava-se Vésperas e Completas. Como
monges brancos havia um Prior e por vezes um Sub
é evidente estes horários podiam variar e serem ajus-
– prior que substituíam o Abade nas suas ausências e
tados por decisões dos Capítulos e das Juntas Gerais.
impedimentos (MOTA, 1989:65 -76).
Evitava-se orar com velas e com recurso à luz das candeias de azeite por serem perigosas1. Seguia-se o trabalho, não o manual entrado em
Além de orarem, estudarem e trabalharem os monges tinham as suas horas definidas para em conjunto tomarem as suas refeições no refeitório.
desuso já desde a época medieval, mas o de gestão
As refeições tinham o seu cerimonial. Todos os reli-
e administração de cada casa religiosa. Cada mon-
giosos ao som do tanger do sino deviam estar presen-
ge, de acordo com a sua antiguidade, competência
tes no refeitório com excepção dos idosos, doentes
e conhecimentos procurava desempenhar uma ou
e acamados que comiam nas enfermarias ou nas
várias funções nos conventos. No plano da gestão
celas particulares ou, ainda, quem o D. Abade ou o
temporal sublinhamos como principais os padres bol-
Pe. Prior dessem autorização para se ausentar. Havia
seiros (recebimentos e pagamentos a dinheiro e fei-
monges que procuravam arranjar subterfúgios para
tura de livros de contabilidade), procurador (ligações
não estarem presentes, o que era sempre motivo de
com o exterior), tulheiro (recebia rendas em géneros), o celareiro (encarregado dos fornecimentos da cozinha), mestre de obras (conservação, melhoramentos e novas obras), cartoreiro e bibliotecário (tratavam do cartório e da biblioteca podendo acumular com outra função), boticário (compra e feitura de medicamentos) e hospedeiro (tratava de receber e acomodar os viajantes e convidados). No plano espiritual, igualmente importante tínhamos os padres cantor–mor (preparava os ofícios religiosos), mestre de noviços (pedagogia e ensino, sobretudo, dos mais novos) sacristão (ajudava para que nada faltasse ao santo sacrifício da missa). Acima de todas as funções e competências estava o D. Abade, verdadeiro pai e responsável máximo em cada unidade religiosa. Era eleito em Capítulo Geral em Alcobaça por um período trienal. Pertencialhe escolher os colaboradores mais próximos que o
Figura 2 | Sacristia da igreja de Santa Maria de Salzedas. Foto Pedro Martins © DRCN
143
144
reparo e condenação. Evitava-se a existência de pa-
de Alexandre VII em 1666 elogiava a abstinência mas
nelas distintas, ou seja, a feitura de pratos diferentes
permitia comer carne à Ordem 3 vezes na semana
conforme o estatuto dos religiosos. No Verão jantava-
(LEKAI, 1987:480). A prática, contudo, generalizou-se
se por volta das 12 horas e ceava-se pelas 18 horas
fora dos dias de abstinência, com excepção da 4ª
procurando rentabilizar a existência de luz natural.
feira (A.D.B. - CI – 188, fl.43), sendo constantes as refe-
No Inverno pelas mesmas razões, os monges comiam
rências ao seu consumo e por vezes às quantidades
mais cedo ao jantar por volta das 11 horas, e cea-
médias que se devia gastar com cada religioso, in-
vam por volta das 17 horas antes do sol se pôr (A.D.B.
cluindo sobras.
- CI - 188, fl. 43). Os religiosos, após o tanger dos si-
Vejamos os alimentos mais consumidos pelos reli-
nos, entravam em silêncio no refeitório, sentando-se
giosos de S. Bernardo. Uma decisão do Capítulo Ge-
conforme a hierarquia e antiguidade em termos de
ral de 1/5/1630 dizia que se devia dar ao jantar 5/4
profissão. A mesa em forma de U era presidida pelo
de vaca, 1 arrátel de carneiro, à ceia, 1 arrátel de
Pe. Prior do mosteiro já que o D. Abade, frequente-
carneiro, o pão servido, obrigatoriamente, a cada re-
mente, comia em mesa separada, acompanhando
feição teria o peso de um arrátel (entre 358 e 459 gr.)
algum visitante ou estando ausente do cenóbio. No
(VITERBO,1984:584). O vinho era o melhor que houves-
início e no final de cada refeição ouviam um trecho
se em cada convento e cada monge teria direito a
da bíblia ou uma parte alusiva à história da vida dos
um quartilho (0,375 l.) (SERRÃO,1979:Vol.V:70) a cada
santos, lido por um dos monges professos mais junio-
refeição …e recomendamos muito aos P. Abba-
res (A.D.B. - CI – 192 - Doc. 215 fl. 2).
des que dem sempre alguma coisa de antepasto…
As refeições eram servidas por conversos, embora
(A.D.B. - CI – 186, fl. 3 vs).
os monges também colaborassem passando as tra-
Atribuía-se a cada religioso uma média de 700
vessas aos parceiros. Havia uma exigência rigorosa
a 1000 gramas de carne, quase 3/4 litro de vinho e
no que diz respeito ao cumprimento dos dias de abs-
cerca de ½ Kg de pão, sem falar em frutas, legumes
tinência, que calculamos em 68 a 70 dias (OLIVEIRA,
e lacticínios que os mosteiros tinham em mediana
MCMLXXI:342) por ano onde a carne era, expressa-
abundância. Temos 2 pratos ao jantar e 1 prato à
mente, proibida sendo substituída pelo peixe. O con-
ceia. A surpresa é a relativa pouca quantidade de
sumo de carne era estritamente regulamentado (DI-
pão ingerida, se compararmos com estratos sociais
FFINIÇOENS, 1593:40). Havia a consciência que uma
inferiores. O consumo de vinho está dentro dos pa-
mesa demasiada farta, distraia os espíritos e estimula-
râmetros para a época. Tinha de ser vinho de boa
va o apetite sexual. A ideia era concentrar a energia
qualidade. Os monges gostavam mais do maduro do
dos monges em tarefas mais contemplativas e teoló-
que do verde, este último consumido mais por jorna-
gicas. Corpos débeis e fracos atingiriam mais, facil-
leiros e criados (MOTA, 2006: 97). Em contrapartida,
mente, os louvores divinos. A constituição apostólica
nesta dieta privilegiada avulta o consumo de carne
em quantidade e em qualidade, dado que a carne
Abade Geral. Para além desta ajuda, havia melho-
de vaca e a de carneiro eram das mais apreciadas
rias na alimentação em espécie, em determinadas
(CRESPO e HASSE, 1981:101).
festividades religiosas, ou em dias, considerados mais
Para além destas funções que preenchiam uma
importantes. Nestes dias excepcionais, podia-se dar
parte significativa do dia, com o tempo e à medida
até 3 ou 4 pitanças entrando ao jantar ou à ceia car-
que as rendas dos conventos permitiam procurou-se
nes de leitão, coelho, pombo e peru. Não obstante
que a carreira eclesiástica regular fosse atractiva sus-
o afirmado procurava-se minimizar custos no refeitó-
citando que filhos segundos da nobreza e do tercei-
rio (AD.B. - CI -192…,Doc. 16, Leis da Junta Geral de
ro estado, sobretudo dos escalões mais elevados a
2/3/1768, fl. 4).
ela concorressem em grande número. Os benefícios
Mas os emolumentos não se ficavam por aqui, de-
sociais e os emolumentos não eram negligenciáveis,
pendendo do religioso e da função que desempe-
levando a que o recrutamento de noviços nos cister-
nhavam dentro e fora da Congregação podiam re-
cienses não fosse um problema, pois havia excesso
ceber côngruas, ordenadas (os), assinaturas de muitas
de candidatos para as vagas existentes, até pratica-
variedades, inquirições, tenças, pés de altar, mimos,
mente à extinção dos conventos e dos bens dos reli-
missas, sermões, pregações, esmolas (para prossecu-
giosos decretada em Maio de 1834.
ção de estudos), e beneficiarem de casa, criado e
Vejamos os principais emolumentos e regalias sociais alcançados pelos religiosos brancos de Cister (Cf. a propósito o quadro a seguir mencionado). Era muito variável e ficava um pouco ao arbítrio do
VESTIDORIA
sege aparelhada (SOUSA e GOMES,1998:127-134). Coloca-se então uma questão. Que fazer a uma eventual verba amealhada se os monges faziam votos de pobreza, quando da passagem a monge
s ubsídio anual atribuído em dinheiro para renovação do vestuário. Variava conforme, se fosse casa grande ou pequena, o estatuto do monge e a época que estamos a considerar.
PITANÇA
s ubsídio relacionado com a alimentação que devia ser melhorada em certos dias determinados pelos costumes, paga em espécie ou em dinheiro para além de uma quantia a liquidar no final de cada triénio. Era muito variável e ficava um pouco ao arbítrio do Abade Geral. Para além desta ajuda, havia melhorias na alimentação em espécie, em determinadas festividades religiosas, ou em dias, considerados mais importantes. Nestes dias excepcionais, podia-se dar até 3 ou 4 pitanças entrando ao jantar ou à ceia carnes de leitão, coelho, pombo e peru. Não obstante o afirmado procurava-se minimizar custos no refeitório (AD.B. - CI -192…,Doc. 16, Leis da Junta Geral de 2/3/1768, fl. 4).
PROPINA
s ubsídio um pouco incaracterístico e aleatório mas que surge associado na documentação a despesas relacionadas com o asseio e a limpeza, mormente, a compra de sabão. Em 1772 o Geral tinha de propina 4800 reis e o comum dos religiosos 1200 (A.D.B. - CI -192 - Capítulos Gerais. Doc. 17 1, Leis da Junta Geral de 3/4/1772, fl. 6).
VIÁTICO
subsídio atribuído a religiosos que se deslocavam em serviço. A mobilidade era grande, pois que procuradores, abades, visitadores, definidores, confessores, feitores, capelães, pregadores, deslocavam - se, frequentemente. Pretendia-se que o fizessem com decência, com moderação e sem necessidades. Teve início por uma lei de 1/9/1573 do Cardeal D. Henrique, sendo objeto de legislação posterior, nem sempre conseguida. Tudo indica que nunca se estipularam porções certas. A lei de 14/6/1760 parece-nos a mais adequada. Estabelece um tostão por cada légua. Assim se um religioso fosse para o mosteiro de Bouro (Cf. - Quadro - Emolumentos atribuídos aos monges bernardos) que distava de Alcobaça 46 léguas, receberia 4 600 reis, se incluísse trem e bestas receberia mais 12200 reis (B.N.L.(R.) - COD. 1480 . Sobre as contribuições para viagens chamadas viáticos, 1770, fl. 368 – 377).
145
EMOLUMENTOS ATRIBUÍDOS AOS MONGES BERNARDOS DATAS DE REFERÊNCIA
TIPOS E CARACTERÍSTICAS
VALOR (EM REIS)
I – VESTIDORIA (VESTUÁRIO) OFICIAIS 1696
Casas grandes
10 000
Casas pequenas
8 000
OFICIAIS
146
1705
Casas grandes
10 000
Casas pequenas
10 000
PRIOR, CELAREIRO E MESTRE DA NOVICIARIA 1728
Casas grandes
24 000
Casas pequenas
12 000
TULHEIROS Casas grandes
14 400
GERAL
38 800
EX-GERAL
28 800
DEFINIDOR, VISITADOR, PRIOR, SECRETÁRIO DO GERAL, 1772
MESTRE DE NOVIÇOS E CELAREIRO
26 400
OFICIAIS Casas grandes
14 400
Casas pequenas
12 000
OFICIAIS 1782
Casas grandes
14 400
Casas pequenas
14 400
OFICIAIS 1783
Casas grandes
16 800
Casas pequenas
14 400
OBSERVAÇÕES: Na nomenclatura cisterciense Casas Grandes, masculinas e femininas, eram as de Alcobaça, Bouro, Salzedas, Tarouca, Colégio de Coimbra, Seiça, Lorvão, Arouca e S. Bento de Castris, pequenas eram todas as outras. FONTES: BNL. FIGUEIREDO, FR. Manoel de, Memórias para a História da Comarca de Alcobaça, Vol. Manuscrito enumerado de 1 a 15, In COD. 1480 – Sobre as contribuições para viagens chamadas viáticos de 14 de Setembro de 1770, fls. 368 – 377 e COD. 1482 – Regulamento das Pitanças, fls. 138 - 156, A.D.B. – CI 186 – 192 – Leis dos Capítulos e Juntas Gerais, (1630 – 1828).
EMOLUMENTOS ATRIBUÍDOS AOS MONGES BERNARDOS DATAS DE REFERÊNCIA
TIPOS E CARACTERÍSTICAS
VALOR (EM REIS)
II – PITANÇA (melhoramentos na alimentação)
1678 - 1757
PRIOR
30 000
CELAREIRO
50 000
PE. MESTRE DA NOVICIARIA
120 000| 24 000
TULHEIRO, BOLSEIRO
12 000
PE. ENFERMEIRO
2 000|4000|4800
PE. MESTRE DE OBRAS, CANTOR E MESTRE DA CAPELA
6 000
PE. HOSPEDEIRO, PORTEIRO E SACRISTÃO
4 000
Nota: P ara além das que são pagas em determinados dias, estas liquidam-se no final de cada triénio.
III – PROPINA (ASSEIO E LIMPEZA)
GERAL
4 800
EX- GERAL
3 200
DEFINIDOR, VISITADOR, PRIOR, SECRETÁRIO DO GERAL, MESTRE DE NOVIÇOS E CELAREIRO 1772
2 400
SUPRIOR, PRESIDENTE, SACRISTÃO – MOR E MENOR, MESTRE DAS CERIMÓNIAS, PADRE ENFERMEIRO, PADRE CARBONÁRIO, SUBCELEREIRO, PADRE PEDAGOGO,
2 000
OUTROS RELIGIOSOS
1 200
Nota: d ava-se em dias de S. Bernardo e outros costumados
IV – VIÁTICO (DESLOCAÇÕES – 1 TOSTÃO POR LÉGUA) Exemplos:
1770
SEIÇA = 11 léguas x 100 reis = 1 100 + 3 000 a)
4 100
BOURO = 46 léguas x 100 reis= 4 600 + 12 200 a)
16 800
FIÃES = 56 léguas x 100 reis = 5 600 + 15 400 a)
21 000
a) Aluguer de bestas para a viagem
professo? Pensamos que nada obstava a que guar-
que seria necessário quando a idade estivesse mais
dassem uma verba para gastos pessoais, como a
avançada e necessitassem de ajuda, independen-
compra de livros e apetrechos e objetos de uso pes-
temente, do amparo que o mosteiro proporcionasse.
soal. Nada obstava, a que tivessem o seu pecúlio,
Pela leitura das decisões capitulares estas matérias
147
148
nunca foram consensuais, como vimos. Por um lado,
ses, dependendo do estatuto do religioso. Se fosse
procurava-se a proibição pela proibição, por outro,
doente poderia ficar mais tempo. Cada mosteiro
procurava-se regulamentar as práticas existentes.
tinha as suas quintas ou granjas (cat. 6) preparadas
Realçaríamos ainda, um conjunto de regalias so-
para essa eventualidade (A.D.B.- CI -191…Leis da
ciais e lazeres que de alguma forma se podem con-
Junta Geral de 1/10/1752, fl. 155vs). Por serem quin-
siderar, verdadeiramente, antecipadores em relação
tas eram também espaços resguardados, longe
ao comum da sociedade, tornando a carreira do
dos seculares, portanto, propensas ao lazer, ao des-
monacato regular atractiva, razão pela qual muitos
canso e à meditação. Havia sempre alguma vigi-
mosteiros tinham muita procura.
lância sobre esses religiosos por parte da hierarquia
• Concessão de licenças apenas a professos (com
dos conventos (A.D.B.- CI – 187… Leis do Capítulo
mais de 4 anos de hábito) para se ausentarem dos
Geral de 1/5/1690, fl. 34).
mosteiros, durante um determinado período de
• Lazeres e divertimentos, quer nas quintas, quer no
tempo. O objetivo mais invocado para o pedido
próprio mosteiro na área restrita da cerca. Nesta
de concessão era para visitar a família ou tratar de
matéria não há uma posição homogénea, depen-
assuntos pessoais. O Definitório, o Abade ou o Prior
dendo muito do carácter de quem presidisse aos
concedia as licenças. Tratava-se de uma questão
destinos de cada convento e da congregação.
que dividia os diversos Abades Gerais que deram
O permitido andava muito perto do transgredido
orientações diferentes ao longo dos triénios dos
e vice - versa. Eram questões de disciplina e não
séculos XVII e XVIII. Como é evidente, os religiosos
de natureza religiosa ou teológica. O que nuns con-
eram necessários nos serviços religiosos e no cum-
ventos era tolerado noutros podia ser proibido, ra-
primento das horas canónicas, caso contrário, te-
zão pela qual se procura alguma coerência nestas
riam que aceitar mais noviços para o cumprimento
matérias:
do estipulado. Variou, sempre, entre quinze dias a
• Possibilidade de darem passeios fora da clausura,
dois meses a concessão da ausência (A.D.B.- CI
pelo menos, nos Mosteiros da Beira «…não sahirão
-191 – Leis da Junta Geral de 17/5/1757, fl. 17vs). Por
em as casas grandes menos de 5 religiosos e nas
vezes, dava-se até mais tempo, se os mosteiros não
pequenas menos de 3 com um prelado ou ancião
tivessem celas condignas ou estivessem em obras,
do mosteiro…»2.
especialmente, na ala dos dormitórios. O normal
• A música era entendida como um acompanha-
era a permissão de um mês, tal como consta de
mento indispensável nos serviços religiosos mas,
uma carta expedida ao Geral da Congregação
também, como instrumento de deleite e prazer.
pela Rainha D. Maria I, datada de 30/11/1777.
Procurava-se, no entanto, que não fosse a música
• Direito a férias nas quintas da ordem, também de
tocada pelos seculares (nem sempre conseguida)
duração variável, uma semana, um mês a dois me-
«…e porque também parece alheio do estado reli-
gioso entregar a devertimentos proprios de secula-
-191 – Leis da Junta Geral de 10/8/1755, fl. 161vs).
res… aos mais distrahidos mandarão…que nenhum
• Critica-se, asperamente, os religiosos o irem ver e
religioso posa tocar viola, rabeca ou outro qualquer
assistir a festas profanas tão impróprias como teatro
estromento dentro nos mosteiros, nem ainda nas
e touradas, escandalizando os próprios seculares …
quintas aonde estiverem de recreação, excepto
cujo erro suposto não possamos já remediar ao me-
cravo, manicordio, arpa e flauta…»3.
nos para que no tempo futuro não sirva de exem-
• Permissão de jogos de cartas e de dados a dinhei-
plo o passado…5.
ro até 200 reis (não jogarão mais nesse dia se per-
Da mesma forma, a assistência médica e medica-
derem) no tempo das recreações, sempre fora da
mentosa não era nada desprezível no contexto da
clausura, somente entre religiosos, sendo expres-
época contribuindo para que a qualidade e a espe-
samente proibido jogarem com seculares e muito
rança de vida dos religiosos fosse maior que o comum
menos a dinheiro (A.D.B. - CI -188…Leis da Junta
da população (GÓMEZ GARCIA,1997:320-322).
Geral de 4/3/1748, fl. 134vs). Da mesma forma,
Assim quase todos os mosteiros denominados ca-
eram permitidos aos monges depois de vésperas
sas grandes tinham enfermaria recebendo religiosos
em alguns dias recrearem-se com o jogo da bola e
doentes, velhos e achacados. A frente deste serviço
da laranjinha (A.D.B.- CI -188…Leis do Capítulo Ge-
estava o Pe Enfermeiro, cuja importância cada vez
ral de 4/5/1744, fl. 115 vs). Proibidos eram os jogos
mais se destacava, sobretudo, em Alcobaça, onde
denominados de parar (A.D.B. - CI -192 - Doc. 17 2
havia grande número de debilitados6. Tinha contabi-
- Leis do Capítulo Geral de 2/5/1778, fl. 11vs).
lidade própria, havendo um livro de receitas e despe-
• Restrições a que nos mosteiros de religiosas se or-
sas, recebendo dos Padres Bolseiros todas as verbas
ganizassem comédias, bailes, festas, teatros ou ou-
necessárias para suportar todos encargos, incluindo
tras semelhantes distracções seja por impulso de
pagamento de honorários do médico do partido, do
religiosas, criadas ou seculares «…quando suceder
cirurgião e do sangrador. Era coadjuvado nas suas
haver alguma comedia de fora ou entremeses que
tarefas diárias por 5 ou 6 moços dos mais jovens e
se queirão representar para as religiosas verem não
capazes para ajudar os doentes. Em Alcobaça ha-
consentirão que seja na igreja…são so para o culto
via uma média de assistência de um moço noviço
e veneração de Deos…»4
ou donato para 4 ou 5 religiosos doentes (A.D.B. CI
• Proibição, pelo direito canónico, dos religiosos ca-
-188 – Leis da Junta Geral de 26/1/1732, fl. 54 vs). Os
çarem com armas de caça, cães e aves de rapina
moços assistentes varriam as celas, faziam as camas,
por ser impróprio do seu estatuto, somente usar os
lavavam as roupas e iam buscar água e azeite para
cajados contra os coelhos e andar atrás das lebres.
alumiarem as candeias. Transportavam os doen-
Era aceitável usar armas e cães para guarda e vi-
tes para onde fosse necessário incluindo o refeitório
gilância das quintas e gados da ordem (A.D.B. - CI
onde tinham direito a refeições (comida separada)
149
150
diferentes e de melhor qualidade (A.D.B. CI -188 – Leis
procurando sempre estar a botica mui provida dos
do Capítulo Geral de 4/5/1744, fl.111). Ao Padre En-
simples e mais mezinhas necessarias as necessidades
fermeiro estavam-lhe atribuídas tarefas de chefia e
e enfermidades que sobrevierem aos religiosos fazen-
organização do serviço. Recebia e acompanhava
do e mandando fazer as agoas estilladas, emxaropes,
o abade, o médico, o cirurgião, o sangrador, o bo-
perolas, receituários e mais compostos de que se usa
ticário, o barbeiro nas suas visitas aos doentes, que
pedindo pera isso ao prelado que bem o saiba fazer
se pretendiam diárias. Tomava bem nota das mezi-
quando a casa o não houver…7. Como os remédios
nhas e xaropes a dar aos doentes, suas quantidades,
se estragavam facilmente, e era necessário repor sto-
sem qualquer engano e verificaria se os mesmos as
cks, fazendo-os de novo, muitas vezes distribuíam-se
tomavam. Entrava na cozinha para assegurar a boa
os excedentes pelos pobres que deles necessitassem
qualidade dos alimentos e temperos tanto ao jantar
ou então como acontecia em Alcobaça uma parte
como à ceia. Asseguraria que os moribundos rece-
eram vendidos, sendo as receitas utilizadas depois de
bessem a tempo os sacramentos, avisando os religio-
pagar as despesas para o ornato das capelas-mores
sos da ocorrência (A.D.B. CI -188- Leis da Junta Geral
e para a livraria (A.D.B.- CI -191…Leis da Junta Geral
de 26/10/1746, fl.125).
de 3/10/1758, fl.177). Tinha livro próprio de receita e
Ligada à enfermaria estava a botica estando à frente o Padre Boticário. Tinha a responsabilidade de
despesa, sinal evidente de autonomia em relação ao serviço anterior.
dar resposta ao receituário prescrito pelos médicos.
Relacionado ainda, com questões de saúde e de-
Os mosteiros de Alcobaça e Bouro tiveram botica
pendendo do parecer do médico e do abade ou
desde muito cedo, sendo famosa a da casa mãe
abadessa os religiosos podiam ir a banhos de mar ou
dos cistercienses que de resto, tinha contabilidade
às caldas ou ainda a outras quaisquer termas (A.D.B.
separada da enfermaria (NATIVIDADE, 1885:135-139).
- CI -192…Leis da Junta Geral de 19/6/1781, fl. 3 vs).
Salzedas e Tarouca, ao que parece, só alcançariam
Alcobaça por uma questão de poupança preferia
esse desiderato a partir da segunda metade do sé-
que os religiosos necessitados de banhos de mar fos-
culo XVIII, dado que ainda em 1758 se pedia um
sem para S. Martinho ou para a Pederneira, os outros
boticário a Alcobaça que tinha três, podendo dispo-
doentes fossem para as Caldas da Rainha e em últi-
nibilizar um (A.D.B.- CI -191… Leis da Junta Geral de
mo caso para outras estâncias termais. Aos primeiros,
3/10/1758, fl.177). O boticário deveria ser uma pessoa
atribuíam-se apenas rações e pitanças por a congre-
caridosa para lidar com os doentes, fosse bom de ci-
gação dispor de quintas na região para receber os
ência ou tivesse experiência de botica e teria …uma
monges, aos segundos pagava o arrendamento das
taboa com as receitas que devem dar a cada do-
casas até 9 600 reis e uma diária a cada monge de
ente nam se fiando nunca de sua memoria pois he
240 reis até ao máximo de um mês, os últimos resol-
cousa de tanta importancia a saude dos religiosos…
ver-se-ia caso a caso (A.D.B. - CI -192, Leis da Junta
Geral de 22/11/1790, fl. 2). Como as despesas eram
religioso, doutrinal e espiritual. Com o passar dos anos
muitas os religiosos que tivessem um pecúlio superior
a preocupação maior e que ocupava mais tempo
36 mil euros, o mosteiro só pagaria parte das despe-
aos religiosos era o estudo. Com o tempo esboça-se
sas, os outros com menos capacidade económica
uma hierarquia nos mosteiros, baseada no grau de
teria de ser financiado pelo comum do convento da
instrução que cada religioso conseguisse alcançar,
sua proveniência (A.D.B.- CI -189…Leis da Junta Geral
cumprindo uma das determinações do Concilio de
de 6/5/1785, fl. 80). Bouro utilizava as quintas e gran-
Trento, que era tudo fazer para alcançar uma melhor
jas que tinha em Terras de Bouro como suporte aos
preparação doutrinária e teológica do clero secu-
religiosos que iam a termas às Caldas do Gerês. Para
lar e regular. Não era o critério único de ascensão,
evitar estadias demasiado prolongadas, convívio
mas sem dúvida, um dos mais seguros e o que abria
com seculares e para evitar escândalos e divertimen-
a porta a cargos mais importantes da Congregação
tos, os religiosos deviam ir em grupo acompanhados
como; Abade e Prior, Geral e Conventual, Procura-
de um religioso responsável nomeado pelo abade
dor, Visitador, Definidor ou, mesmo fora da Ordem,
(A.D.B.- CI -189…Leis da Junta Geral de 6/5/1785, fl.
como; Professor, Cronista, Bispo, Juiz do Santo Ofício
80 vs.).
etc…Pelo desempenho destes cargos, havia uma remuneração, que era proporcional à função ocupa-
CONCLUSÃO. Os monges tinham na época mo-
da e que se encontrava regulamentada. Procurava-
derna uma jornada diária muito preenchida com
se desta forma pragmática, tornar mais atractiva a
orações, rezas e missas às quais se procurava a mo-
função de religioso conventual. A somar a estes emo-
bilização da comunidade. Os mais consagrados e
lumentos, temos um conjunto de práticas, regalias,
preparados ajudavam ainda o D. Abade no exer-
«direitos» sociais não negligenciáveis e em certa me-
cício de determinadas tarefas de natureza adminis-
dida, verdadeiramente, antecipadores como; assis-
trativa e espiritual. Durante o dia havia tempo para
tência gratuita na doença, medicamentos, licenças,
três refeições e um passeio a meio da tarde ou em
ida a banhos, estância em quintas da ordem etc...
alternativa a leitura de um determinado livro de cariz
1. Por exemplo, a Sexta e a Noa poderiam seguir-se à missa principal. As Completas poderiam ser rezadas ao fim da tarde antes do início da ceia. Os testemunhos falam ainda de Canonicas, Matinas e Laudes que seriam rezadas antes das Completas e ainda Graças e Meridianas (antes da Noa). Sobre o assunto consulte ainda: A.D.B. - CI - 188 – Leis que se fizeram em Capítulos e Juntas Gerais, (1708- 1749). In Leis da Junta Geral de 5/4/1728, fl.43. 2. A .D.B. - CI -192 - Capítulos Gerais. Docs. 10 a 23. Século XVII - 1828. In Doc. 21 5 - Leis da Junta Geral de 2/5/1778, fl. 1. 3. A .D.B. - CI -188 – Leis que se fizeram em Capítulos e Juntas Gerais, (1708- 1749).In Leis da Junta Geral de 4/3/1748, fl. 134vs. 4. A.D.B.- CI - 187 – Leis que se fizeram no Capítulo Geral 1663- (1705). In Leis da Junta Geral de 2/5/ 1688, fl. 27vs. 5. A.D.B. - CI -192 - Capítulos Gerais. Docs. 10 a 23. Século XVII - 1828. In Doc. 14 1 - Leis da Junta Geral de 8/11/1760, fl. 8. 6. B.N. R. – COD. 1482 – Regulamento da Pitanças, fl.138-156. In FIGUEIREDO, Fr. Manoel de - Memórias para formar a Historia de Comarca de Alcobaça,«…o que catholicamente desempenhar esta obrigação tem muito merecimento porque não há objectos de que mais fujamos naturalmente que dos indivíduos da mesma espécie a que a doença aflige, e a molestia atormenta; athe Deus os separa do mundo dos vivos. Este official atura, sofre impertinentes, só ajuda a bem morrer os criados e moribundos…costumam darlhe 4000 a 4800 reis pelo que em futuro regulamento deve ser o mais attendido….». 7. T.T. - ALC. – B – 50 – 198 – Livro dos usos antigos das cerimónias e louvaveis costumes da Ordem Cisterciense ainda que já alteradas no anno de 1630, escrito por Fr. António de Lisboa, fl. 74.
151
018
SÉCULO XIX
MOSTEIROS DE S. JOÃO DE TAROUCA, SANTA MARIA DE SALZEDAS, S. PEDRO DAS ÁGUIAS, SANTA MARIA DE AGUIAR, SANTA MARIA DE AROUCA E NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE TABOSA.
O DECRETO DE EXTINÇÃO DAS ORDENS RELIGIOSAS: IMPACTO NOS MOSTEIROS CISTERCIENSES DO DOURO
CÉLIA TABORDA
A vitória liberal, em 1834, abriu caminho para a
ordens religiosas. Pelo decreto de 28 de Maio de 1834,
grande transformação política, económica, social e
publicado a 30 de Maio, foram extintos todos os con-
religiosa que ocorreu no período de instauração do
ventos, mosteiros, hospícios e todas as casas religiosas
liberalismo e que impulsionou a modernização de
masculinas, sendo nacionalizados todos os seus bens.
Portugal.
As casas femininas mantiveram-se até morrer a últi-
Nesse processo, várias medidas legislativas foram
ma freira, altura em que os seus bens foram integra-
promulgadas, entre elas, o decreto de extinção das
dos no erário público. Só os objetos sagrados ficaram
F igura 1 | Dormitório do mosteiro de São João de Tarouca (2010). Foto Pedro Martins © DRCN
153
154
de fora. Estes foram entregues aos bispos para os dis-
justificação incluía causas que iam da ideologia à
tribuírem pelas igrejas mais pobres (Decreto de 30 de
política, passando pela economia, moral e pela pró-
maio de 1834 apud REBELLO, 1896:54-55).
pria religião. Os argumentos baseavam-se em certos
Joaquim António de Aguiar, ministro e secretário de
factos, como: pregarem contra a liberdade, utilizan-
Estado dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça de D.
do os púlpitos para caluniar e o confessionário para
Pedro, foi o mentor da referida lei. Este decreto veio
trair; substituírem os bispos e párocos junto das po-
responder ao racionalismo liberal, profundamente
pulações, levando-as a afastarem-se do verdadeiro
anticlerical, sobretudo em relação ao clero regular,
evangelho e a enveredar pela superstição; impedi-
pela sua existência ser considerada incompatível
rem, enquanto celibatários e corpos de mão-morta,
com o avanço civilizacional.
o desenvolvimento das atividades económicas e
Este diploma foi precedido de um relatório onde se explicavam as razões de tão drástica medida. A
consequentemente o aumento das finanças do Estado (SILVA, 1989: 12, 13).
Figura 2 | Claustro de Salzedas (2010). Foto Pedro Martins © DRCN
Figura 3 | Sala do capítulo do mosteiro de Santa Maria de Aguiar. Foto Pedro Martins © DRCN
A única solução possível para o ministro foi extinguir
Maria de Aguiar (figura 3). Os femininos, S. Pedro e S
«esses enormes corpos que Jesus Cristo não criou» e
.Paulo de Arouca e Nossa Senhora da Assunção de
que eram perniciosos à sociedade. Na verdade,
Tabosa (figura 4) foram extintos com a morte da últi-
o decreto tinha objetivos terrenos mais prementes.
ma freira. O primeiro em 1886 e o segundo em 1850.
Com esta lei, os liberais tentavam salvaguardar o re-
Após a publicação do decreto, os monges durien-
gime e a estabilidade das novas instituições expur-
ses tiveram que abandonar os respetivos mosteiros
gando um inimigo político. Em simultâneo, pensavam
(cat. 19). Despojados das suas casas, estes regulares
evitar o descalabro financeiro com as vendas dos
ficaram à mercê da sorte, da caridade alheia ou
bens expropriados.
do subsídio estatal. Com efeito, pelo mesmo docu-
No Douro, este diploma extinguiu os mosteiros mas-
mento, o Governo comprometia-se a pagar pensões
culinos de S. João de Tarouca (figura 1), Santa Maria
anuais para a sustentação dos frades e monges, mas
de Salzedas (figura 2), S. Pedro das Águias e Santa
apenas para os que não tivessem servido no cam-
F igura 4 |Mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa. Foto Pedro Martins © DRCN
155
156
po miguelista (SILVA, 1989: 12, 13). Por conseguinte,
Ao redistribuir a terra, surgiria uma nova classe de
ficaram excluídos do benefício: 1º- os religiosos que
proprietários que iria defender o sistema que lhes pro-
tomaram armas contra o trono legítimo, ou contra
porcionou o acesso à propriedade, alargando, desta
a liberdade nacional. 2º - Os que em favor da usur-
forma, os liberais, a sua base de apoio. Além disso,
pação abusaram do seu ministério no confessioná-
com a desamortização tentavam resolver, ou pelo
rio ou no púlpito. 3º - Os que aceitaram benefício ou
menos atenuar, o problema da dívida pública (SILVA,
emprego do governo do usurpador. 4º - Os que de-
1989: 11-14). As consequências que daqui advieram
nunciaram ou perseguiram duramente os seus conci-
foram polémicas, por se ter considerado que não se
dadãos por seus sentimentos de fidelidade ao trono
preveniram devidamente os efeitos daí decorrentes,
legítimo e adesão à carta constitucional. 5º - Os que
o destino das pessoas e dos bens.
acompanharam as tropas do usurpador. 6º - Os que
Em todos os mosteiros da região duriense o proces-
no ato do restabelecimento da autoridade da rainha
so de expropriação foi semelhante e célere. Entre os
ou depois dele nas terras onde residiam abandona-
meses de Julho e Agosto, deslocou-se a cada um dos
ram os seus conventos, mosteiros, hospícios ou casas
mosteiros um representante do Estado, geralmente
respetivas (A.N/T.T, A.H.M.F, mosteiro de Santa Maria
um juiz de fora e um escrivão, e coadjuvado por um
de Aguiar, nº3, cx.2191).
abade ou algum monge residente procederam ao
De qualquer forma, mesmo os que foram contem-
inventário dos bens de cada casa. É de referir que
plados com o benefício ficaram igualmente reduzi-
só em Santa Maria de Aguiar é que foi o abade a
dos à miséria. A pensão raramente era paga no de-
auxiliar as autoridades liberais.
vido tempo e na quantia estipulada, sendo o valor
Depois de avaliado, o vasto património monástico
tão irrisório que mal dava para os ex-monges sobre-
foi arrendado ou vendido de imediato. No caso de
viverem.
Salzedas, a Cerca foi arrendada a um ex-monge do
É a fase mais radical do constitucionalismo para a
mosteiro, Fr. Pedro de Santa Ana, pela quantia de
integração do aparelho religioso no sistema político.
24.000 réis por ano. Outro ex-monge da mesma co-
Sob o pretexto do envolvimento dos monges na luta
munidade também aparece nos documentos como
antiliberal1, evocando a legitimidade do cristianismo
arrendatário de umas casas e hortas, pelas quais pa-
primitivo (onde não existiam estes corpos) e as «lu-
gava 9.600 réis por ano (A.N/T.T., A.H.M.F. Mosteiro de
zes do século», foram suprimidos, de uma só vez, 356
Santa Maria de Salzedas, cx.2249.).
conventos masculinos e 12 femininos e integrados no
Os edifícios foram colocados à venda. Tarouca
erário público cerca de 15.000 contos de réis (SILVA,
rendeu 72 contos (figura 5) e oitenta mil réis (A.N/T.T.,
1993: 341).
A.H.M.F. Mosteiro de S.João de Tarouca, cx.2255.);
Esta legislação, para além das razões aduzidas,
Salzedas, devido ao fogo que quase o consumiu (SIL-
inseria-se numa estratégia estrutural de mudança.
VA, 2007: 225-229), foi vendido às parcelas; Santa Ma-
ria de Aguiar, como não foi logo vendido (apenas em
entanto, muita informação ardeu juntamente com a
1844), deteriorou-se e desvalorizou-se, arrecadando
documentação destas Casas. Em 1841, os arquivos
o Estado apenas 6 contos e seiscentos mil réis por este
dos cistercienses do Douro, que estavam depositados
imóvel (BORGES, 1997:307).
em Viseu, foram consumidos pelo fogo, dificultando,
Pelos documentos e vestígios que chegaram até nós só se observam efeitos nefastos do decreto de
assim, a reconstituição da história destes mosteiros durienses e da própria ordem de Cister.
28 de Maio para os mosteiros do Douro (cat. 20). No
157
1. Os liberais consideravam que os mosteiros tinham sido convertidos «em assembleias revolucionárias; os púlpitos em tribunais de calúnias facciosas sanguinolentas; e o confessionário em oráculos de fanatismo e de traição» (REBELLO, 1896:51).
019
SÉCULO XIX (1879)
MOSTEIROS DE SÃO JOÃO DE TAROUCA E NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO DE TABOSA
O ROMANTISMO LITERÁRIO E OS MOSTEIROS CISTERCIENSES DO DOURO: UMA VOZ FEMININA ENTRE RUÍNAS. NUNO RESENDE
Faz horror contemplar estes edifícios tão magestosos, tão vastos e tão sólidos assim mutilados, esboroados e destruídos! Maria do Pilar Bandeira M. Osório, 1879
159 A figura de D. Maria do Pilar Bandeira Monteiro
Embora o catálogo da Biblioteca Nacional de Por-
Osório é praticamente desconhecida no panorama
tugal apenas indique um único título assinado por
das letras portuguesas. No entanto o conjunto da sua
D. Maria do Pilar – A secular do Convento de Barrô,
obra identificada concede-lhe algum relevo no con-
editado em 1882 – a sua obra compõe-se de, pelo
texto de produção literária fora dos grandes meios
menos, mais quatro romances publicados: Lágrimas
intelectuais do Portugal de oitocentos.
e Saudades (1872)1, Uma família que viveu no seculo
Nascida em Cárquere (c. Resende), em 1844, filha
passado (1879), A filha do Povo (1892)2 e As duas mu-
do juiz António Bandeira Monteiro Subágua e Vas-
lheres (data de publicação desconhecida)3. Disper-
concelos, fidalgo miguelista, literato, e de D. Joaqui-
sos pelo periodismo da época encontram-se, ainda,
na Emília, ambos de famílias beirãs, a autora cresceu
vários artigos e crónicas que manifestam os principais
e viveu entre Cinfães, de onde provinha a sua ascen-
interesses da escritora: a história, o património, a pai-
dência materna e Britiande (c. Lamego), onde casou
sagem e a natureza na geografia do Douro seten-
(MELO, 1992: 73-74 e PINTO, 1985: 102-103). Conhece-
trional. Em 1872 escreveu para o Novo Almanach de
dora da geografia física e social da região, por via
Lembranças Luso-Brazileiro dois artigos, um intitulado
dos vínculos consanguíneos e afinitivos que a posi-
O crepúsculo da manhã (OSÓRIO, 1872b), e outro
cionavam no centro das relações linhagísticas de um
versando a história do Convento de Santo António
vasto conjunto de casas senhoriais locais, D. Maria do
de Ferreirim (OSÓRIO, 1872a), onde explora a curiosi-
Pilar produziu uma obra considerável dentro do gé-
dade arqueológica sobre as ruínas à sua vista (a au-
nero do romance. Ainda que com certeza destinada
tora estanciava em Britiande, na casa de São Bento).
a um casamento de conveniência e circunscrita aos
Efectivamente embora a sua escrita seja, do ponto
limites domésticos da sua família, D. Maria Pilar trilhou
de vista narrativo, de consistência romântica – quer
um percurso ao seu tempo mais frequentemente des-
nos tópicos, quer na construção psicológica e física
tinado aos homens.
das personagens – a sua busca pela objectividade
descritiva dos edifícios e dos lugares (frequentemen-
Na primeira história que ocupa a primeira parte do
te colhida em fontes históricas) revela a uma sensibi-
romance, a escritora descreve o amor impossível de
lidade naturalista4.
D. Leonor de Menezes e de Francisco Amaral, noviço
Essa característica sobressai no romance Uma fa-
de São João de Tarouca, cuja acção se desenrola
mília que viveu no seculo passado (OSÓRIO, 1879) .
pelos ainda vivos e poderosos edifícios monásticos
Editado no Porto em 1879, narra a vivência de uma
cistercienses a sul do Douro – instituto masculino onde
família nobre de Tarouca, centrando-se na infortu-
acontece o amor entre as referidas personagens e
nada vida amorosa das filhas de Álvaro de Menezes
uma casa feminina, para onde segue a malograda
e de Filipa Osório. A acção desenrola-se a partir da
Leonor, vergada à autoridade paterna.
5
160
vila de Tarouca, mas estende-se ao mosteiro de São
Para além da descrição dos espaços (mosteiro de
João, ao convento de Tabosa e à vila de Linhares
São João, cap. IV; Tabosa, cap. XXII), das práticas
(junto à da serra da Estrela), percorrendo as vicissitu-
nele desenroladas (como os ofícios da Semana San-
des de um conjunto de relações sentimentais, sujeitas
ta na igreja de São João, capítulo V) e dos indivíduos
à luz do direito e da moralidade vigente.
e funções a eles afectos (a cultura dos frades bernar-
F igura 1 | Frontispício da obra Uma familia que viveu no seculo passado, de D. Maria do Pilar (1879). Colecção Nuno Resende
dos, p. 21, a origem nobre dos monges, p. 23, etc.ª) D. Maria do Pilar discorre na descrição histórica e visual do local à data da redacção propondo comparações entre o Passado e um Presente que a autora
bem conheceu. Embora não siga uma linha apolo-
informes, que estão ahi como que para darem tes-
gética da cultura fradesca, D. Maria do Pilar (de que
temunho ás gerações vindouras, de que o anjo da
a autora claramente se demarca ao longo da nar-
destruição passou sobre aquella casa, porque ás vir-
rativa) não deixa de acentuar, em tom melancólico
tudes primitivas succederam ahi os abusos e as ini-
e de queixume, o estado dos edifícios religiosos no
quidades!
rescaldo dos decretos liberais (cat. 18):
profanadas, aonde se divisam alguns farrapos e algu-
religiosas; á voz da autoridade os monges sahiram
mas cabeças, nas quaes havia apenas um circulo de
para a rua, grutescamente vestidos, porque foram in-
cabelo, mas em cujos craneos haveriam talvez bem
timados para trajarem prontamente vestidos secula-
nobres pensamentos (OSÓRIO, 1879: 28).
res e eles não os tinham; embrulharam-se pois como
Oscilando entre a ideia da decadência que na opi-
poderam e vieram vaguear no mundo como uma
nião pública liberal justificara a extinção das ordens e
horda de saltimbancos, cuja pátria é desconhecida.
o esvaziamento das suas casas monásticas, e a glória
O mosteiro foi entregue á acção selvagem, que
e poder das mesmas, a autora disserta sobre a força
n’esses tempos tudo empolgou e destruiu. O que ha-
visual das ruínas como exemplo moral social. Este dis-
via no convento de rico e de bom, e que mãos de
curso sobre o ruínismo é, de resto, compartilhado por
homem podessem mover, foi arrombado, quebrado,
vários autores contemporâneos, entre os quais se des-
arrancado e detsruido. Os moveis, as madeiras, as te-
taca Alexandre Herculano, que encontrou nas ruínas
lhas, o ferro, tudo, tudo! Que cousa feroz é a ignorân-
de becos tortuosos de Lisboa a justificação para a
cia, que cousa medonha é a cubiça!
redacção de O Monasticon publicado em fascículos
Faz horror contemplar estes edifícios tão magestosos, tão vastos e tão sólidos assim mutilados, esboro-
na revista Panorama a partir de 1841 (HERCULANO, 1977).
ados e destruídos! Ah! A mão do homem não é assás
O elogio do monaquismo e da ruína – sendo esta
forte, e o sopro da tempestade assás violento para
arquitectónica ou palimpséstica – é recorrente na
obrarem taes prodígios de devastação; o anathema
obra de Alexandre. Não obstante o seu pensamento
que cahiu sobre a cidade peccadora e a condem-
anticlerical, Herculano deixou-se enlevar pelo signifi-
nou a não lhe ficar pedra sobre pedra, parece que
cado histórico e social do monge e pelos testemunhos
se estendeu a estas casas, cujas iniquidades infiorngi-
da sua presença no território, nomeadamente contra
ram as leis da eterna justiça! (OSÓRIO, 1879: 19).
uma estética do vazio que o liberalismo logrou plan-
No capítulo VIII a autora regressa às ruínas, pergun-
tar na paisagem oitocentista. Dividido entre o sentido
tando: O que foi feito de tantas grandezas e de tan-
de dever no cumprimento do avanço ideológico li-
tas magificencias? E responde:
beral e a incapacidade de obstar à campanha ico-
Umas poucas de ruínas, umas poucas de pedras
Resta também o claustro com as suas sepulturas
Em 1834 esta casa soffreu a sorte das outras casas
noclasta do movimento a que pertencia, Herculano
F igura 2 | Ruínas do mosteiro de S. João de Tarouca: Reprodução de Bilhete postal ilustrado (não datado). Colecção Nuno Resende
161
procurou na história do monaquismo português ele-
através escrita o que mais tarde virá a ser feito pela
mentos para a reabilitação cultural (e até espiritual)
fotografia: a inevitabilidade estética da ruína (figura
do país, numa época que procurava num tempo dis-
2). A questão não era, porém, meramente da ordem
tante o que a contemporaneidade, ainda lembrada
da arquitectura. A ruína ideológica assume frequen-
do Barroco, não podia fixar como modelo.
temente como tópico na escrita da época. Leite de
Esta exaltação da ruína e a busca pela vivificação
162
Vasconcelos chega a desculpar-se:
da mesma é transversal ao pensamento do século
[…] não quero parecer louvaminheiro ou pane-
XIX e constitui um dos tópicos mais expressivos da
gerista dos frades, quero unicamente prestar culto à
obra de D. Maria Pilar. É-lhe próxima, aliás, através
verdade […] se por um lado S. João de Tarouca mui-
das obras monográficas de J. Leite de Vasconcelos
to perdeu com a retirada dos seus religiosos, adquiriu
e do Abade Vasco Moreira (cat. 19) que enfatizam
por outro lado um bem […] assim que as portas do
F igura 3 | Fachada do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa. Foto Pedro Martins © DRCN
mosteiro se cerraram, e para sempre, os mandriões
para onde seguiam mulheres cujo destino estava tra-
que em S. João viviam da sôpa conventual, ou d’ela
çado pela legislação e pelo costume. Ali viviam as
muito se aproveitavam, começaram com a enxada
senhoras Rebellos que a condição de filhas últimas
e com o picaveque, a arrotear as moitas […] (VAS-
de uma casa de Britiande sequestrara do mundo em
CONCELOS, 1933: 434).
Tabosa. E é sobretudo nestes quadros, os da descri-
A sensibilidade de D. Maria do Pilar em relação às
ção da vida social, das práticas e dos estigmas que
solitárias e arruinadas casas monásticas da região de
D. Maria do Pilar acrescenta mais expressividade aos
Lamego (veja-se o convento de Barrô, tratado pela
locais que com rigor descreve. A profissão da angus-
autora em obra de 1882) revela menos a aceitação
tiada noviça Helena em Tabosa (cap. XXIX) ou, já na
pelo modelo de viva eclesiástica (de que as suas per-
segunda parte do romance, a história do enjeitado
sonagens são prisioneiras) e mais o elogio pela força
e pobre Jacinto (afinal filho de um nobre da vila de
imagética dos edifícios, descritos como elementos
Linhares) ou ainda a notável dissertação sobre os
basilares de uma certa paisagem civilizacional e até
malefícios dos morgadios (cap. XXII) constituem va-
moralizadora..
liosos elementos que constituem parte da gramática
Em Tabosa, destino de D. Leonor, a escritora descreve a solidão do lugar em terreno montanhoso e frio […] sitio ermo para que as orações das monjas não fossem perturbadas pelas vozes do mundo (OSÓ-
realista que marcam a literatura portuguesa de final de oitocentos. D. Maria do Pilar Bandeira Monteiro Osório faleceu em Britiande, a 15 de Outubro de 1887.
RIO, 1879: 19), assinalando assim a qualidade do sítio,
1. Não localizámos em qualquer acervo bibliográfico esta obra. Pinho Leal cita-a no oitavo volume do seu Portugal Antigo e Moderno, a propósito de Quarquere (LEAL, 1878: 7) e Joaquim Caetano Pinto resume a sua acção, indicando 1872 como ano da sua publicação (PINTO, 1985: 102-103).Este autor possuía um exemplar que indica no catálogo bibliográfico de Resende nas Letras: Lagrimas e saudades, 166x118 mm e 160 pp., Tipografia do «Jornal do Porto», Rua Ferreira Borges, 31, Porto, 1872 (PINTO, 1985: 35). 2. Foi, segundo Joaquim Caetano PINTO (1985: 103) publicação póstuma a cargo do filho adoptivo de D. Maria do Pilar (Vasco Maria Osório, a quem a autora dedicou o romance Uma família que viveu no seculo passado). Foi editada em Lamego: A Filha do Povo, 195x124 mm e 164 pp., edição póstuma, Minerva da Loja Vermelha, Rua de Almacave 103/105, Lamego, 1892 (PINTO, 1985: 35, 103). 3. Não conhecemos qualquer referência editorial sobre esta obra. 4. A única análise à sua obra é a que faz Joaquim Caetano Pinto. Este, que foi seu biógrafo em Resende nas Letras, assinala que Maria do Pilar floresceu em plena escola romântica e faz lembrar Júlio Dinis pelos seus romances passados na aldeia, descrevendo cenários, costumes, antiguidades e lendas do povo. São dispersivos, entretecidos de várias paixões amorosas, mas a sua prosa, atraente e correcta, tem estilo e carácter. (PINTO, 1985: 102). Nesta publicação o autor transcreve excertos de A filha do povo e Lagrimas e Saudades (apud PINTO, 1985: 169-177). 5. Utilizámos uma edição encadernada em Miscelânea com A Secular do Convento de Barrô, da mesma autora, e Os Frades, de João de Lemos, cujo volume, hoje na nossa propriedade, integrou a biblioteca Pedro A. Ferreira, abade de Miragaia.
163
020
SÉCULO XX
MOSTEIRO DE SÃO JOÃO DE TAROUCA
S. JOÃO DE TAROUCA: AS RUÍNAS DO MOSTEIRO (CLICHÉ E SIMILIGRAVURA DE MARQUES ABREU) MARIA LEONOR BOTELHO
S. João de Tarouca, 1910. Assim se data um curioso
e dos grandes fotógrafos de arte como Carlos Relvas
artigo que o Abade Vasco Moreira assinou na rúbrica
(1838-1894), Emílio Bïel (1838-1915), José Antunes Mar-
«Portugal Pittoresco» da revista Arte: Archivo de Obras
ques Abreu (1879-1958), Domingos Alvão (1872-1946)
de Arte (MOREIRA: 1910, 8). Redigido e assinado no
ou Guilherme Bonfim Barreiros (1894-1973). Entre nós,
ano em que se implantou a República, este texto tão
foi na transição do século XIX para o século XX que se
peculiar apenas conheceu o prelo em Janeiro do ano
sentiram os mais significativos progressos ao nível da
seguinte e recebeu o título de «Ruínas (S. João de Ta-
arte da fotografia que, pela ação da luz, fixa a ima-
rouca)».
gem de pessoas ou cousas sobre placa metallica, pa-
Consagrada nos dias de hoje, a ilustração assume-
pel, vidro (ABREU: 1904, 4). Impera então uma fotogra-
se como uma ferramenta fundamental para o estudo
fia de tendência artística - ela própria uma forma de
e para a divulgação dos objetos artísticos e do patri-
arte -, onde o objeto artístico, ou seja, o monumento
mónio edificado. Nas publicações atentas aos monu-
é tratado com contornos algo subjetivos, ao modo de
mentos (figura 1), identifica-se um momento inicial no
personagem retratada.
qual a ilustração surge sob a forma de gravuras isola-
A revista Arte, publicada entre 1905-1912, veio pre-
das, entre páginas de texto, a que se segue um outro,
encher uma lacuna até então existente no jornalismo
já a partir dos finais dos anos sessenta do século XIX e
portuense (e talvez nacional), sendo considerada dig-
onde se manifesta um novo alento dado pela foto-
na de figurar nas melhores bibliotecas, porque as en-
grafia (ROSAS: 1996, I). Depois, temos a era dos clichés
riquece ([S.a].: 1906). Publicação mensal, a Arte teve
F igura 1 | Mosteiro de São João de Tarouca (2014). Foto Pedro Martins © DRCN
165
166
por fim a promoção, defesa, divulgação e sensibiliza-
através da qual se procura motivar o respeito ou de-
ção para um património arquitetónico específico (o
nunciar o vandalismo (BORGES: 2013, 21). Apesar da
românico) que, com fins pedagógicos (figura 2), é arti-
beleza e da crítica tão favorável que acolheu à épo-
culado com a forte carga fotográfica nelas presentes
ca (BORGES: 2013 e BOTELHO: 2013), a fotografia de
(BORGES: 2013, 20). Foi cada vez maior o papel assu-
Marques Abreu procuraria representar o real, credível,
mido pelos estudos de Património monumental, pre-
do registo, relacionando diretamente as imagens e as
texto para que Marques Abreu iniciasse um percurso
coisas (BORGES: 2013, 22).
de defesa e divulgação do património e que fizesse
Ora, no número da revista Arte que foi publicado
da Arte um palco de experiências e procedimentos
em Janeiro de 1911, ao texto que o Abade Vasco Mo-
que lhe seriam muito úteis posteriormente (BORGES:
reira intitula de «Ruínas (S. João de Tarouca)», associa-
2013, 262), em publicações como a Ilustração Moder-
se um cliché e simili-gravura de Marques de Abreu, o
na (1926-1932).
documentador (BORGES: 2013, 23), intitulada de «S.
Já nesta época identifica-se em Marques de Abreu
João de Tarouca – Ruínas do Mosteiro» (figura 1). Nela,
aquilo a que Pedro Aboim chamou de fotografia «en-
um conjunto de silhares amontoam-se diante das ru-
gagé», empenhada, ou seja, a fotografia documento
ínas daquilo que seria a sala do capítulo e, d’um e
Figura 2 | Ruínas do mosteiro de São João de Tarouca. Sala do Capítulo (cliché de Marques Abreu, 1911)
Figura 3 | Ruínas do mosteiro de São João de Tarouca. Claustro de século XVII (cliché de Marques de Abreu, 1911)
outro lado lado, vêm-se as parêdes meio caídas, co-
entre a nossa realidade e a francesa pós-revolucio-
roádas de ervas e musgo, enquanto que num primeiro
nária. Chateaubriand procurara justificar a importân-
plano, à esquerda, levanta-se melancólica, uma das
cia da arquitetura medieval enquanto sinónimo de
quatro colunas que ladeavam o nóbre claustro (MO-
Catolicismo, numa evidente tentativa de defesa do
REIRA: 1911, 8).
património religioso perante as destruições e vandalis-
Logo de início, é feita uma alusão às espécies que
mos de que foi alvo durante os tempos da Revolução
François-René de Chateaubriand (1768-1848) identifi-
(BOTELHO: 2013, 56). Num outro contexto, e num outro
cou nas ruínas, uma, obra do tempo; e por isso menos
tempo, o Abade Moreira alude à destruição ocorrida
desagradável (…) outra, obra do homem, sempre ra-
aqui em 1908 e cujas solitárias ruínas lembram enterne-
dical e abruta; e por isso, mais melancólica e sombria
cidamente os tempos idos, em que «virtude eroica os
na sua perspetiva (MOREIRA: 1911, 4). É nesta última
ermos abitava» (MOREIRA: 1911, 6 e 9).
categoria que o Abade Moreira enquadra as ruínas
Mais, o Abade Moreira descreve aquilo que terá sido
monásticas de São João de Tarouca: o braço umano
a Sala do Capítulo, com as suas grandes janelas, dos
desfez, em mezes, o que gerações ergueram em se-
seus colunélos, rendilhados, dos seus lindos frisos, bor-
culos (MOREIRA: 1911, 4). Note-se aqui um paralelismo
dados de era, e do espaldar da cadeira do D. Abade, desenhado, na parêde, a tinta vermelha como sangue (MOREIRA: 1911: 6). E continua explicando que ao lado do refeitório era o açougue, com janelas estreitas, voltadas para o rio, de elegante abóbada artesoada, e suspensa em arcos abatidos, apoiados em enormes colunas, cujos capiteis e fustes eram de estilo romanico (MOREIRA: 1911: 6). Apesar do tom do discurso, tão romântico e apologético da ruína, como pedagógico e criador de sensibilidades em prol da salvaguarda de um património perdido, é muito importante este testemunho de quem era (ainda) Abade do Mosteiro de São João de Tarouca, num momento imediatamente anterior à sua destruição. Compreende-se, também, a publicação deste artigo, peculiar, numa revista como a Arte, utilizada por Marques Abreu, seu proprietário e gerente, como plataforma divulgadora, «gratuita», do património medieval português (BORGES: 2013: 262).
Figura 4 | Ruínas do mosteiro de São João de Tarouca, torre sineira de século XVIII (2010). Foto Pedro Martins © DRCN
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021
(1921-23)
MOSTEIRO DE SANTA MARIA DE AROUCA
UM «CONVENTO» DE CELULOIDE – SANTA MARIA DE AROUCA NO FILME MULHERES DA BEIRA DE RINO LUPO
HUGO BARREIRA
Pensar um filme enquanto objeto passível de inte-
esta deve ser encarada como exploratória, necessa-
grar uma mostra diversificada obriga, naturalmente,
riamente parcelar, e propedêutica para um estudo
a um exercício de seleção criterioso da informação
de maior profundidade a realizar futuramente. Assim,
a colocar na sua entrada de catálogo. Esta pode-
focar-nos-emos na presença do mosteiro no filme de
ria seguir uma abordagem mais tradicional, conten-
Rino Lupo, referindo outros aspetos na medida em
do uma sinopse, uma contextualização dos aspetos
que se revelem necessários para a compreensão da-
de produção e receção do filme e as menções de
quela ou que constituam novos dados sobre a obra.
responsabilidade e de interpretações principais. Não
Para o estudo de Mulheres da Beira como fonte,
será, porém, a abordagem seguida neste texto. A
procurámos compreender como foi criado este «con-
decisão de encarar o objeto fílmico de uma perspe-
vento de celuloide», começando por esclarecer que
tiva particular assentou em dois fatores principais: em
é como convento que o edifício aparece designado
primeiro lugar, Mulheres da Beira (1921-1923) foi já ob-
no filme e no conto de Abel Botelho (1854-1917) da
jeto de diversas referências em obras que procuram
qual é adaptado. Assim, é necessário perceber, em
traçar uma panorâmica da cinematografia portu-
primeiro lugar, as referências ao mosteiro feitas pelo
guesa, está presente em bases de dados e, sobre-
escritor para, em seguida, atentarmos na presença
tudo, foi parte integrante do aturado estudo sobre
do mosteiro no filme e, posteriormente, analisar a
o seu realizador, o italiano Rino Lupo (1888-1934), da
mesma.
responsabilidade de Tiago Baptista (BAPTISTA: 2008),
A presença de Arouca na obra de Abel Botelho foi
que, pela sua qualidade e atualidade, serviu de re-
já objeto de um estudo aprofundado por parte de
ferência para a nossa abordagem; por outro lado, o
António Manuel S. P. Silva (SILVA, 1994), no qual são
objeto fílmico deve ser, neste texto, encarado como uma materialização da fortuna crítica de uma arquitetura cisterciense, o Mosteiro de Santa Maria de Arouca, pelo que a presente entrada de catálogo o abordará sobretudo como tal. A partir desta dupla advertência, cabe questionar o papel da cinematografia enquanto fonte para o conhecimento de um objeto artístico, abordagem que exige e tem como ponto de partida uma análise crítica que tenha em consideração e problematize os diversos aspetos em torno da criação do filme. As limitações inerentes à natureza deste estudo condi-
cionaram a profundidade da abordagem, pelo que
Figura 1 | Fotograma da primeira aparição do Mosteiro no filme, visto pelos olhos de Ana. Fonte: LUPO, Rino, Realiz. (1923) – Mulheres da Beira. Edição da Câmara Municipal de Tabuaço (2005). 10’47’’.
169
170
explorados os espaços selecionados pelo escritor, a
O «convento» aparece assim inserido numa curta
maneira como este os descreve, entre a precisão e
descrição que releva os aspetos sofisticados de Arou-
a idealização, e a relação de Abel Botelho com os
ca, quando comparada com a Gondra, de onde
locais que figuram no seu conto Frecha da Mizarela,
Ana, a infeliz protagonista do conto, é natural. Abel
publicado na coletânea Mulheres da Beira, cuja pri-
Botelho não se alonga em descrições do edifício (SIL-
meira edição data de 1898. Tendo por base a primei-
VA, 1994: 149), preferindo perder a mirada do leitor
ra e a segunda edição, de 1917, que à semelhança
nos aspetos naturais das serras circunvizinhas, limitan-
das seguintes, apresenta ligeiras alterações ao conto
do-se a esta menção, importante, todavia, por assi-
datado de Outubro de 1883, bem como o estudo
nalar o modo como este se destacava no panorama
em epígrafe referido, não foi difícil perceber a breve
da vila (cf. BOTELHO, 1917:12).
menção que do mosteiro é feita e que permanece inalterada em todas as versões:
Em Frecha da Mizarela, Abel Botelho narra as desventuras de Ana, que vivia com seu pai numa mise-
A filha aceitou radiante a proposta da nova ocu-
rável casa na aldeia de Gondra. Obrigada por este
pação. Ir ver Arouca e o seu convento! Que ventura!
a vender pão, que iria buscar a Arouca, dá por si a
E depois, aquelas casas caiadas, com caixilhos de vi-
percorrer as serranias rumo à vila, antevisão da tão
draça, e a estrada a macadame, alva como fita de
desejada vida citadina que ambicionava encontrar
nastro, a ziguezaguear, a brilhar…(BOTELHO, 1917:12).
no Porto. Sonhando com um desfecho que a afas-
Figura 2 | “Era dia de festa em Arouca”. Fotograma da sequência, vendo-se a vila engalanada. Fonte: LUPO, Rino, Realiz. (1923) – Mulheres da Beira. Edição da Câmara Municipal de Tabuaço (2005). 17’48’’.
tasse da rudeza do pai e do campo, fica indiferente
compromissos já assumidos e o elevado volume de
aos protestos de amor do pastor André e, em Arou-
trabalho poderão explicar a contratação de um des-
ca, cede aos avanços do Fidalgo da Mó. A «funesta
conhecido, ao qual é entregue a realização de uma
ambição»1 de Ana depressa se revela na sua ver-
adaptação do conto de Abel Botelho, que deveria
dadeira dimensão quando, grávida e abandonada
ser rodada e montada até Outubro do mesmo ano
pelo Fidalgo, se depara com um André furioso ao re-
(cf. BAPTISTA, 2008: 88). Os pormenores do processo
conhecer a sua condição. Os ermos da Freita anun-
e da própria adaptação são apenas razoavelmente
ciam um previsível desfecho, que parece atenuado
conhecidos, mas é possível perceber um pouco do
pelo reencontro com o pastor, já completamente dis-
modus operandi de Lupo através de uma entrevista
posto a perdoar o passado. Incapaz, porém, de lidar
concedida à Cine Revista em Novembro de 19212.
com a sua situação, e contemplando a Frecha da
Nela, o italiano não só refere como o impressionaram
Mizarela, Ana despede-se de André, abandonando-
as paisagens portuguesas, como também deixa en-
se a uma morte que a orografia propiciava.
trever alguns aspetos relacionados com a receção
Demorando-se nas descrições dos aspetos naturais
do conto:
e moldando, através deles, a ação e o seu desenla-
Li avidamente aquele punhado de páginas e, à
ce, Abel Botelho convida a uma adaptação plena
medida que as percorria, comecei, através das suas
de cenas de exteriores, idealmente captadas nos lo-
linhas, a dar largas à minha fantasia, permitindo-me
cais de origem. É, porém, bem mais parco na descri-
enriquecer de detalhes e de pormenores, aqueles
ção de situações, preferindo explorar as patologias
descritivo singelo, de onde não ressaltam nem indi-
de que enfermavam os temperamentos das suas
cações nem factos absolutamente concretizados.
personagens (cf. BAPTISTA, 2008: 89-90), providen-
Procurei seguidamente a região onde a parte culmi-
ciando, deste modo, um menor número de elemen-
nante do drama tinha de desenrolar-se. Levaram-me
tos visuais para uma cinematografia ainda adversa
a Arouca e eu fiquei positivamente deslumbrado.
das subtilezas (cf. BARDÈCHE & BRASILLACH, 1938: p.
Fui às margens do Caima e a minha alma de artista
154), com a natural exceção das experiências van-
enterneceu-se, apaixonou-se, perante tão grandioso
guardistas, e criada em função de um público com
quadro. Sim, aquele deveria ser o scenario [argu-
notória incapacidade para as assimilar. Os interesses
mento] da obra a que ia meter ombros (cf. BAPTISTA,
e preocupações de Abel Botelho, que justificam a
2008: 219).
referência única ao mosteiro, condicionam, deste
As necessárias rodagens de exteriores são, assim,
modo, a adaptação fílmica e explicam as alterações
enfatizadas por Lupo, que retém do conto o triângu-
que esta irá introduzir.
lo geográfico onde a ação decorre (cf. SILVA, 1994:
Em Agosto de 1921, Rino Lupo chega à Invicta Film,
142). Partindo de Gondra («Gandara» no filme), e
apresentando-se como um experiente realizador. Os
passando pela Vala, onde André declara o seu amor,
Figura 3 | Fotograma da mesma sequência mostrando a recriação de uma celebração na igreja do Mosteiro. Fonte: LUPO, Rino, Realiz. (1923) – Mulheres da Beira. Edição da Câmara Municipal de Tabuaço (2005). 21’16’’.
171
172
Ana segue para a vila de Arouca, lugar em que se
confidente de Ana, aparece, à janela desta, trans-
dão os acontecimentos propiciadores do desenlace,
portando uma bilha à cabeça enquanto, num plano
que tem lugar na Freita e na Mizarela. A dicotomia
de fundo, dança um conjunto de jovens, trajando a
cidade-campo, tão ao gosto de Abel Botelho como
rigor, e um lavrador conduz o gado. O mesmo tipo de
da cinematografia da época (cf. BAPTISTA, 2008:
olhar recriador está também presente na represen-
90-91), firma-se na oposição entre os vícios da vila,
tação das mulheres de Arouca, ricamente vestidas e
prefiguração da cidade, e na pureza do campo,
adornadas, nas cenas com o moleiro, e na sequên-
bem como nas duas personagens-tipo que lhe dão
cia da festa, com verdadeiros desfiles de tipos saídos
expressão, respetivamente o fidalgo e o pastor. Entre
de pinturas e peças de teatro de costumes regionais
estas duas realidades passeia-se a ambígua natureza
por entre os quais os bem mais autênticos habitantes
de Ana, uma menina-mulher, «simultaneamente cau-
da vila fazem cândidas e deliciosas aparições.
sa e efeito de toda a acção do filme e do seu desfe-
É percetível um olhar que sintetiza os diversos ele-
cho fatal» (BAPTISTA, 2008: 91), e justamente servida
mentos do conto, e das suas matrizes regionalistas,
na película pelo talento e peculiar beleza de Brunilde
em quadros tipificados, descritivos e visualmente ca-
Júdice (1898-1979).
tivantes, ainda devedores de um tardo-romantismo
Embora o conto seja seguido de perto por Lupo (cf.
que era bem patente na pintura coeva de feição
BAPTISTA, 2008: 91), aspeto que se destaca numa pri-
mais conservadora e que respondia ao gosto gene-
meira análise, é necessário atentar no modo como
ralizado do público. Esta analogia não seria estanha
o «descritivo singelo» foi «enriquecido de detalhes e
a Lupo que, na referida entrevista, confessa:
de pormenores» na tradução para uma linguagem
Se me consente o paradoxo, eu, como meteur-
da imagem como a cinematografia. A paisagem
en-scène, sou um pintor. Deixo accionar, livremente,
que seduzira o escritor abunda nas inúmeras vistas
toda a minha fantasia, vejo os aspectos e os panora-
tomadas na região de Arouca. Em muitas delas, a
mas, fixo-os e idealizo depois o quadro a reproduzir
fotografia demora-se em panorâmicas, de sabor pic-
(BAPTISTA, 2008:219).
torialista, enfatizando os jogos de luz, e, sobretudo,
A divisão da ação em «quadros» de duração va-
torna a paisagem personagem, trabalhando a sua
riável era prática comum na cinematografia muda
relação com as figuras através da manipulação da
e permitia, em Mulheres da Beira, a introdução de
escala. Estes aspetos são notórios na sequência de
diversos momentos humorísticos e anedóticos que
planos que apresentam Ana ou nas vistas tomadas
suavizavam as características agrestes do conto. Um
nas serras onde nos é artificiosamente apresentado
outro tipo de quadros permitia enriquecer visualmen-
André. O pitoresco da natureza cede lugar, em ou-
te a película, apresentando o local da ação, como
tras cenas, ao pitoresco dos costumes regionais. As-
na vista da Frecha da Mizarela, anunciada por um
sim, a Tia Maria, personagem secundária do filme, e
intertítulo, ou o conjunto de vistas do Porto que, atra-
vés das palavras da Tia Maria, povoavam de sonhos
também percetível na escolha dos espaços da vila
o temperamento facilmente impressionável de Ana.
em que a ação decorre, formando e projetando
Nestas vistas, nomeadamente nas do Porto (uma
a ideia de um perímetro reduzido com o mosteiro
panorâmica da cidade tirada a partir da cota alta
como pano de fundo, com destaque para a Praça
de Gaia, onde a câmara não nos permite ver a Pon-
Brandão de Vasconcelos, antiga Praça da Vila, mui-
te Luiz I3, uma vista da Torre dos Clérigos e uma vista
to alterada nos finais do século anterior (CF. ROCHA,
dos navios ancorados no cais) está bem patente o
2011: 236-253), e na qual Ana toma consciência da
sabor documentarista, devedor não só dos intentos
sua simplicidade ao constatar a elegância das mu-
de Rino Lupo e da Invicta, mas também da atividade
lheres da vila), ou a utilização de alguns dos edifí-
em obras de não-ficção do operador Artur Costa de
cios anexos à cerca, como a Hospedaria de Cima
Macedo (1894-1966), que além das colaborações nos
(cf. ROCHA, 2011: 275), onde, com o mosteiro como
primeiros filmes de Leitão de Barros, filmara diversos
pano de fundo, Ana se impressiona com os fidalgos
documentários e atualidades cinematográficas antes
que observa na sua escadaria.
da sua vinda para a Invicta (cf. BAPTISTA, 2008: 96).
O mosteiro toma um claro lugar de destaque nos
É neste tipo de transformações e afastamentos
quadros que formam a sequência anunciada pelo
em relação ao conto, que o mosteiro de Arouca
intertítulo «Era dia de festa em Arouca.», inteiramente
conhece um papel importante no filme. A princípio,
resultante da imaginação de Lupo e da sua equipa.
encontramos a sua referência na fala de Ana que,
Destas imagens, às quais voltaremos, destacam-se
abraçando uma galinha num humorístico quadro,
duas pequenas cenas de interiores do mosteiro: os
expressa a sua felicidade: «- … sabes, irei a Arouca
dois planos do retábulo lateral da igreja, onde se en-
todos os dias..., ha lá um bonito convento… ruas…
contra a urna da Beata Mafalda (antecedidos pelo
casas brancas com janellas… e depois os homens lá
intertítulo «O tumulo da Rainha Santa em ebano e
não tem a cabeça como os d’ aqui… e então os fi-
prata») e dois planos de uma celebração num interior
dalgos?...»
de igreja, notoriamente recriado.
Será também através do olhar de Ana que vemos
Estava assim lançada a tónica das restantes apa-
o mosteiro pela primeira vez. Após a sua chegada
rições do mosteiro e da sua imagem no filme. Como
a Arouca, a jovem depara-se com a imponência
elemento dominante da vila, na frente do qual ti-
da fachada da igreja e de todo o alçado norte do
nham lugar as sociabilidades da população, era não
mosteiro, numa vista tomada de nascente para po-
só o cenário ideal para as peripécias de Ana, como o
ente, com a entrada da igreja em primeiro plano. Ao
encontro com um Fidalgo já decidido a conquistá-la
fundo, embora pouco nítido, é ainda visível o pórtico
e que a seguira desde a entrada para a igreja, mas
do Terreiro, posteriormente suprimido e que foi recen-
também o cenário para os pitorescos quadros de
temente reconstruído. A centralidade do mosteiro é
costumes, integrados na ação, ou a esta acessórios,
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como as danças junto ao cruzeiro, que enriqueciam
Ana lançada a seus pés, em que o expressivo diálogo
o filme e lhe emprestavam o tão desejado caráter
visual permite a economia da fala escrita, contan-
português.
do apenas com um intertítulo: «- … e pequei madre
Por outro lado, e permitindo a introdução de um
Thereza… mas estou arrependida e bem castigada.».
elemento que ecoa e amplifica a significação da
Este permite uma progressiva transição para o desfe-
dicotomia cidade-campo, o mosteiro é ainda o lu-
cho da cena, em que a Madre deixa Ana entregue à
gar onde Ana aprende a ler e a escrever, por ação
sua sorte, na impossibilidade de atender às suas súpli-
da Madre Superiora, que procura igualmente edu-
cas: «- Sim, madre, confio n’ella, mas seja caridosa e
car a jovem na fé, originando momentos cómicos
dê-me asilo no convento… não me deixe morrer, por-
e que procuram traduzir visualmente as debilidades
que morreria uma alma inocente que trago dentro
intelectuais e morais da personagem, analiticamente
de mim!» ; «Tu n’esse estado?... oh!... não! não pódes
descritas por Abel Botelho e transpostas no filme para
ficar aqui. Vae e que deus te acompanhe.».
situações concretas de fácil apreensão. Narradas
O reforço do papel da piedade popular, que en-
por Ana à Tia Maria e compostas por diversos pla-
contramos na inclusão do mosteiro na ação, pode
nos, as cenas são filmadas em interiores de estúdio e
também ser encontrando na visão da figura de ves-
acompanhadas dos intertítulos: «- … depois a supe-
tes brancas que aponta a Ana o seu destino, e que
riora do convento começou a ensinar-me a lêr e a
a bibliografia geralmente associa à Virgem Maria,
escrever!...» ; «- … Ah! como é difficil! parece-me que
prenunciando semelhantes estratégias em Os Lobos
nunca chegarei a aprender!... depois a religião?...»
e Fátima Milagrosa (cf. BAPTISTA, 2008: 100). Embora
; - «… Ó tia maria será verdade o que diz a superiora?
consideremos questionável uma tão estrita associa-
Diz que a verdadeira vida é no ceu, que só lá é que
ção, não podemos deixar de salientar o modo como
Deus nos póde dar a felicidade, e que até é por isso
Lupo, ou a Invicta, se distanciaram, uma vez mais,
que elle morreu por nós todos?».
dos aspetos do conto de Abel Botelho que poderiam
Estas cenas vaticinam igualmente o desfecho, que
ser menos bem recebidos por parte do público trans-
o reencontro com a Madre Superiora, interpretada
formando-os em situações visualmente apelativas e
por Maria Júdice, a mãe de Brunilde, acabará por
facilmente assimiláveis.
precipitar. A demanda de auxílio por parte de Ana
A partir da visualização do filme, na versão que co-
é precedida do intertítulo: «No dia seguinte de ma-
nhecemos (edição de 2005 da Câmara Municipal de
nhã Anninhas ia procurar um refúgio no convento de
Tabuaço, apresentando o filme restaurado em 2002
Arouca.».
pela Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema a
Filmada na mesma sala onde a Madre Superiora
partir de diversas fontes), é assim possível organizar
a havia ensinado a escrever, a cena tem como ele-
em três tipologias as cenas em que figura o mostei-
mento principal um extenso plano aproximado de
ro: as cenas de exterior, rodadas in loco na vila de
Arouca; as cenas de interior, rodadas in loco nos es-
dro que mostra umas pedras mal pintadas, de muito
paços do mosteiro; e as cenas de interior, recriadas
pouco realismo.5
em estúdio. Como já foi referido, o conhecimento da
A recriação dos interiores do mosteiro não prima,
produção de Mulheres da Beira é ainda muito lacu-
na generalidade, pelas suas qualidades visuais, em-
nar, contudo, a análise dos dados existentes permite
bora seja necessário considerar dois espaços diferen-
formular um conjunto de questões sobre as cenas
tes: a igreja e as dependências monásticas. Pouco
elencadas.
depois dos planos do túmulo de Mafalda, surgem
A rodagem do filme, que deveria terminar em Ou-
dois planos de uma celebração religiosa na preten-
tubro de 1921, iniciou-se na viragem para Setembro e
sa igreja do mosteiro. No primeiro vemos a nave da
terá terminado a 10 de Novembro, depois de apro-
igreja e o coro das freiras, separados por uma grade
vado um adiamento para o prazo máximo de 15 de
muito simples. O duplo espaço é consideravelmen-
Novembro, quando a montagem do primeiro posi-
te amplo e nele podemos ver dois vãos de moldura
tivo deveria estar concluída (cf. BAPTISTA, 2008: 95).
simples, ao nível superior da parede lateral, e, ao ní-
A este respeito, atente-se no anúncio que a revista
vel inferior, uma fila de quadros. O ritmo é reforçado
Porto Cinematográfico publicava no duplo número
pela presença de pilastras, sendo visível, na primeira,
referente a Setembro/Outubro de 1921, referindo que
uma pia de água benta. Copiosa quantidade de fiéis
a Invicta tinha terminado havia pouco tempo «A Fre-
ajoelhados baixa a cabeça, persignando-se em se-
cha da Misarella Um conto do livro Mulheres da Beira,
guida, enquanto o sacerdote, sob um pálio, eleva a
de Abel Botelho»4.
custódia, voltado para a câmara, que se localiza no
Sabemos que, ainda em Novembro, Rino Lupo, Ar-
lugar do altar, num ângulo que permite uma melhor
tur Costa de Macedo e Henrique Alegria, diretor artís-
apreensão do espaço. No coro são visíveis as religio-
tico da Invicta, se deslocaram a Lisboa para filmarem
sas que, no plano seguinte, são objeto de destaque.
diversas cenas para Mulheres da Beira, questionan-
A câmara, por detrás das grades, em primeiro plano,
do-se Tiago Baptista se não se trataria do conjunto
mostra-nos as pretensas monjas de Santa Maria de
de cenas de interiores que poderiam ter sido filmados
Arouca, ajoelhadas junto a um muito simples cadeiral
num teatro lisboeta (cf. BAPTISTA, 2008: 95-96). Inde-
tendo na frente a Superiora que delas se distingue
pendentemente do local de filmagem, os cenários
claramente pela expressividade.
mereceram os piores ataques por parte da crítica
Não encontrámos quaisquer dados sobre o espa-
especializada, sendo notória a fraca qualidade de
ço em que estes planos foram rodados, aparentan-
muitos deles:
do tratar-se de um cenário muito mais cuidado que
Esta pelicula tem o defeito da má decoração, que
os restantes. A articulação do espaço da nave e do
em algumas scenas ressalta aos olhos do espectador,
coro, bem como os elementos arquitetónicos e deco-
como seja aquele fundo no interior da casa de Pe-
rativos simplificam a igreja monástica, aliviando-a da
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sumptuosidade e da erudição e resumindo-a através
A cena rodada no interior do mosteiro reduz-se a
de uma imagem facilmente apreensível pelo público.
dois planos do túmulo da Beata Mafalda no interior
A presença da grade, elemento fundamental e que,
da igreja, nos quais o sabor documentarista anuncia-
especialmente no segundo plano, é enfatizada pela
do pelo intertítulo é atenuado pela anedótica pre-
relação com a câmara, evoca a clausura monásti-
sença de uma piedosa Ana. O primeiro é uma pa-
ca e a divisão entre dois universos distintos, que Ana
norâmica que, partindo da jovem, se aproxima do
irá também conhecer. O cuidado com os elementos
retábulo, ao nível do altar, repleto de sacras, e per-
que compõem a elaborada descrição destas cenas
mitindo entrever aquilo que nos parece ser a sombra
é ainda visível nos chamativos hábitos das religiosas,
do operador, possivelmente Artur Costa de Macedo,
embora sem preocupações de rigor com a Ordem
manivelando. O segundo plano é mais afastado, e
de Cister, e na representação da elevação, plena de
nele vemos Ana aproximando-se do túmulo, já visível
pitoresco. Atente-se, todavia, que o contacto que a
na totalidade, embora maculado por uma sombra
equipa tomou com o espaço da igreja do mosteiro
que se projeta sobre o altar. Em ambos os planos é
(o único que, comprovadamente, visitou) poderá ter
possível apreciar a aparatosa ornamentação, com a
informado a construção de um cenário, ou a procura
banqueta, as flores, sacras e reposteiros, bem como
de um local, que, dentro das suas limitações, permi-
uma coluna com um anjo tocheiro, constituindo um
tisse evocar o espaço original.
precioso registo do interior da igreja nos anos 20. As
Em contraste, as cenas em que a Madre Superiora
referidas sombras resultarão, possivelmente, das difí-
ensina Ana são rodadas em cenários muito simples,
ceis condições de captação, fruto da iluminação do
parcamente decorados por apontamentos de ar-
espaço que, pesem embora as suas características,
cos, e mobilados com cadeiras estofadas em couro
seria todavia insuficiente para a sensibilidade das pe-
e uma mesa em primeiro plano, facilmente associá-
lículas coevas, pelo que se terá recorrido a espelhos
veis ao ambiente religioso evocado. Ao fundo, uma
ou outros mecanismos de direcionamento da luz.
pequena imagem de Cristo Crucificado, sobre uma
Os numerosos exteriores, que marcam o filme com
estante, é o único adorno da parede. Este cenário
a sua beleza e frescura, em claro contraste com a
será ainda utilizado para o reencontro de Ana com
produção anterior da Invicta (cf. PINA, 1986: 37), são
a Madre Superiora, numa repetição que poderá ter
igualmente reveladores do processo criativo de Rino
eventuais fins narrativos. Um outro cenário, ou parte
Lupo, muito baseado na liberdade de improvisação
deste, de reduzidas dimensões, é utilizado para os
e no aproveitamento das possibilidades dos locais
ensinamentos religiosos da jovem, limitando-se a um
que ia descobrindo. Segundo A. Videira Santos:
nicho onde se rasga um fruste vão em arco aponta-
Lupo, como já vimos, chegou ao Porto em Agosto
do, junto do qual se encontra uma estante com um
de 1921 e logo nesse mês se deslocou com a equipa
evangeliário.
de filmagem e artistas para a região de Arouca, ten-
do inclusivamente aproveitado os festejos à Senho-
Ana. A análise da sequência permite acompanhar o
ra de Lurdes que se realizaram em Nespereira, entre
processo em detalhe.
aquela localidade e Cinfães, a 28 e 29, para fixar
A «festa» começa com um plano da torre sineira
diversos aspectos da grande procissão e do arraial,
da capela da Misericórdia, onde os sinos tocam a
incluindo nalgumas cenas um elemento do elenco
rebate, numa clara sinestesia tão ao gosto do cine-
feminino [Brunilde Júdice] (BAPTISTA, 2008: 255).6
ma mudo. O plano seguinte mostra-nos o largo do
Precedidas pelo intertítulo «Era dia de festa em
mosteiro, filmado de este para oeste, engalanado e
Arouca» e intercaladas com vistas da vila engala-
animado por uma concorrida romaria. Em seguida,
nada no contexto de uma romaria que não conse-
vemos aproximar-se a procissão, percorrendo uma
guimos, até ao momento, identificar, as imagens da
vereda na direção da câmara, que se situa num pla-
procissão em Nespereira tornam-se assim parte de
no mais elevado, através de uma vista já tomada na
uma festa que, tal como nos é apresentada, resulta
Nespereira. Este plano é intercalado com um outro
inteiramente de uma construção cinematográfica. A
em que Ana, chegando às imediações do mosteiro,
montagem de toda a sequência, que integra ainda
pelo caminho habitual, se aproxima da câmara e
as vistas do túmulo e a celebração no interior da igre-
demonstra o seu entusiasmo por ver a procissão. Num
ja, poderia até procurar representar as célebres fes-
novo plano, Ana aproxima-se do moleiro explicando
tas em honra da Beata Mafalda, realizadas em Maio,
o seu contentamento e afastando-se novamente,
embora as datas tradicionalmente apontadas para
reaparece numa nova vista tomada em Nesperei-
a rodagem contrariem, naturalmente, a possibilidade do seu registo. Estamos assim perante uma hábil aplicação das técnicas que permitem à cinematografia construir uma geografia criativa ou paisagem artificial, tendo por base a manipulação das relações espáciotemporais entre os planos individuais através de uma síntese orientada pela narrativa e assegurada pelo processo de montagem das imagens. Inerente a todo o processo cinematográfico e potenciada, em casos como este, para efeitos narrativos, a geografia criativa permitiu a Lupo colocar em Arouca uma animada e pitoresca romaria que não só contribui para o desenrolar da ação, mas também intensifica o pa-
pel da vila enquanto propiciadora da perdição de Figura 4 | Um outro fotograma, no final da celebração, mostrando a saída do povo. O edifício é, na realidade, a capela da Misericórdia. Fonte: LUPO, Rino, Realiz. (1923) – Mulheres da Beira. Edição da Câmara Municipal de Tabuaço (2005). 21’41’’.
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ra, onde observa a procissão ao longe. É notório o
dos elementos na lateral direita. Seguindo a multidão,
esforço pelo respeito da continuidade, já canónica
Ana entra no templo, sob o olhar atendo do Fidalgo,
na cinematografia de então, na direção de olhares e
captado num outro plano ao qual se segue um novo,
entradas e saídas das personagens, reforçando, des-
em que o vemos assomar-se à entrada da capela.
te modo, a coesão entre planos tão díspares e asse-
Percebemos, através de um intertítulo, que estamos
gurando o logro. No plano seguinte, Ana encontra-se
perante o túmulo da «Rainha Santa», e, através dos
junto à multidão, à direita, observando a procissão
dois planos captados no interior da igreja do mostei-
de perto. No alpendre de um edifício, possivelmente
ro, vemos Ana junto ao túmulo de Mafalda.
localizado em Arouca, os três fidalgos, juntamente
Um novo plano do Fidalgo permite-nos perceber
com cinco mulheres em trajes pretensamente regio-
que este observa Ana, sendo todavia impossível
nais, observam aquilo que depreendemos ser a pro-
perceber onde terá sido tomada a vista, dado não
cissão. A câmara aproxima-se dos fidalgos no plano
conseguirmos reconhecer a estrutura ornamentada,
seguinte e percebemos que a atenção destes recaía
aparentemente pétrea, que lhe serve de cenário. Se-
especialmente sobre uma jovem «bem bonita». Per-
guem-se os dois planos da celebração no interior da
cebemos, através do plano seguinte, novamente
igreja e, por fim, um novo plano do portal da capela
rodado em Nespereira, que se tratava de Ana, que
da Misericórdia, de onde sai Ana juntamente com o
continua a observar a procissão junto da multidão. A
povo, precedendo as cenas da festa no exterior do
atenção da câmara volta-se agora para a riqueza
mosteiro.
da procissão e dos seus andores, através de um pla-
A análise dos diferentes planos que constituem a
no captado sobre uma curva, o que permite impri-
sequência da festa permite-nos perceber também
mir um maior dinamismo a toda a cena. O intercalar
que o «convento» do filme resulta da articulação de
deste plano de sabor documentarista, onde não são
espaços diversificados, pertencentes ao mosteiro ou
visíveis personagens, com o plano dos fidalgos e com
recriados, aos quais a montagem confere um senti-
mais planos de Ana observando a procissão, atua no
do de unidade que ilude as diferentes proveniências
sentido de construir uma unidade de espaço e tem-
espaciais e temporais. A utilização de outras arquite-
po, dentro das possibilidades do trabalho de geogra-
turas locais, como a capela da Misericórdia, confere
fia criativa que temos vindo a analisar.
uma maior verossemelhança a este convento, estra-
No último plano que vemos de Nespereira, Ana
tégia que é também seguida na inserção cinemato-
afasta-se da multidão, sendo então seguida, em novo
gráfica da procissão em Arouca, cuja ausência de
plano rodado em Arouca, por um Fidalgo da Mó já
interiores dificulta a perceção da trapaça. Posto isto,
decidido a conquistá-la. Um outro plano mostra-nos
é ainda necessário atentar nas vicissitudes do proces-
o portal da capela da Misericórdia, onde ainda era
so de montagem de Mulheres da Beira.
visível o gradeamento, identificável pelo desenho
Por razões que não se encontram ainda esclare-
cidas, o processo de edição (tintagem, viragem e
BAPTISTA, 2008: 89). O «Magnífico film português em 6
montagem) terá decorrido em Paris, nos laboratórios
partes», como se anunciava, foi bem recebido pela
da Pathé, em Janeiro de 1922, segundo as atas das
crítica, louvado pelo seu caráter nacionalista, paten-
reuniões do conselho de administração da Invicta
te na forma como eram captadas as belezas naturais
(cf. BAPTISTA, 2008: 96). O procedimento era pou-
do país, constituindo, nas suas interrupções da narra-
co habitual, visto a empresa dispor de laboratórios
tiva, autênticos momentos de contemplação da pai-
próprios, e denotava já um atraso em relação aos
sagem (cf. BAPTISTA, 2008: 96-97). Embora encontre-
compromissos estabelecidos. À montagem estão tra-
mos rasgados elogios às imagens de exteriores, como
dicionalmente associados Georges Pallu (1869-1948),
os «os magníficos aspectos naturais e costumes du-
o realizador contratado pela Invicta, e Mme. Meunier
rienses» (cf. BAPTISTA, 2008: 97), ufanados quiçá mais
(cf. BAPTISTA, 2008:282), embora as dúvidas persistam
pelo objeto do que pela sua representação, e sejam
sobre o envolvimento de Lupo, cujo afastamento de-
referidas as críticas positivas à fotografia de Artur Cos-
rivou, segundo alguns autores, do arrastar da narra-
ta de Macedo (cf. BAPTISTA, 2008: 96-98), as opiniões
tiva em que este incorria(cf. ANDRADE, 2001: 60). As
não foram unânimes, e é notória a crítica que a revis-
inconsistências persistem ainda nos restantes dados
ta Porto Cinematográfico apresenta:
disponíveis sobre o filme mas neles não nos demora-
A técnica fotográfica é, como já disse, muito má,
remos, salientando, porém, a dificuldade que será
altera frequentes vezes a mascara dos interpretes, e
perceber, em sentido estrito, as responsabilidades
não dá realce aos exteriores soberbos que esta fita
de Rino Lupo no produto final, nomeadamente nas
nos apresenta, vistas panorâmicas magníficas, dons
sequências referidas, mais devedoras da montagem,
da natureza que nós possuímos e muitas casas es-
e em todos os desvios presentes na adaptação do
trangeiras invejariam, e que Rino Lupo soube apre-
conto de Abel Botelho. Contribui igualmente para
ciar, fazendo viver no entrecho de Mulheres da Beira,
esta ressalva, o facto de o mais recente restauro
a beleza de algumas das nossas riquezas naturais.7
procurar ser uma versão aproximada da montagem
Já Rino Lupo não poupara elogios ao seu opera-
original, estreada em 1923, e que terá conhecido di-
dor, considerando Artur Costa de Macedo como «in-
versas alterações, tal como é indicado no início da
discutivelmente, o primeiro português que se revela
edição digital em DVD.
cheio de gosto e de predicados técnicos invulgares»
A responsabilidade pelo atraso da estreia, mais de
(cf. BAPTISTA, 2008: 220), salientando igualmente o
um ano após o final da rodagem e quando Rino Lupo
papel do assistente de realização Pedro da Fonseca
se havia já desvinculado da Invicta, é geralmente
«que é um régisseur de qualidades modelares» (BAP-
imputada ao realizador, embora, como defende
TISTA, 2008: 220).
Tiago Baptista, deva ser igualmente considerada a
Como encarar então Mulheres da Beira à luz das
planificação da produção da própria empresa (cf.
questões levantadas pela abordagem que presente-
179
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mente ensaiámos? O seu papel como documento é
mados filmes de não-ficção, pelo que a análise da
inquestionável, constituindo um valioso registo atra-
documentação cinematográfica deve ser particular-
vés da imagem em movimento da região de Arouca
mente cautelosa.
e da Nespereira, o que o torna, segundo nos indicou
É notório que seja precisamente através deste dis-
Nuno Resende, no mais antigo filme conhecido sobre
positivo criativo que Rino Lupo constrói o seu con-
Cinfães. Contudo, a nossa análise demonstrou como
vento de celuloide, num laborioso processo que
o filme, quando encarado como documento, deve
combina vistas de exterior com as raras imagens do
ser abordado de forma crítica, tendo por base uma
interior da igreja e as suas fantasiosas recriações. Tal
contextualização que permita conhecer, tanto quan-
é especialmente visível na forma como, em poucos
to possível, os aspetos de produção. A isto devemos
minutos, a cinematografia se apropria do portal da
juntar todo o processo de seleções que a criação da
capela da Misericórdia e o transforma no portal da
obra cinematográfica acarreta, desde os locais de
igreja do mosteiro, para em seguida nos levar ao seu
tomada de vista, aos enquadramentos, passando
interior verdadeiro e, numa troca de olhares, o recriar
pelos aspetos técnicos do equipamento fotográfico,
em localização desconhecida. O filme não deixa por
entre muitos outros, resultantes de condicionamentos ou da vontade expressa de um ou mais membros da equipa. O mesmo se poderá dizer da montagem, quer do ponto de vista da seleção do material exposto, quer da sua articulação, quer mesmo do nível de intervenção do seu responsável no produto final. Neste sentido, destaca-se o modo como o cinema pode, fácil e eficientemente, contar uma meia verdade ou mentir de forma deliberada. A geografia criativa é assim uma das muitas ferramentas que a cinematografia utiliza para suprir as dificuldades de produção, permitindo-lhe, por exemplo, combinar exteriores captados in loco com interiores de estúdio, ou para criar realidades unicamente possíveis no filme, como a animada festa na Arouca de Mulheres da Beira. Contudo, e por ser inerente ao processo cinematográfico, tendo por base a continuidade, que a linguagem do cinema codificou à medida que se desenvolvia, está igualmente presente nos cha-
Figura 5 | Grade do mosteiro de Arouca. Foto Pedro Martins © DRCN
isso de ser um documento para o estudo do mosteiro
quer como memória de uma instituição. O percetível
e da sua igreja, registando alguns dos seus aspetos
entusiasmo de Lupo pelo documentar, mais ou me-
antes das principais intervenções de que seria objeto
nos efabulado, das terras e costumes onde a ação
ao longo do século XX, com destaque para as obras
decorria, corroborado pelas suas palavras, e a ex-
de restauro a cargo da Direcção-Geral dos Edifícios
periência de Artur Costa de Macedo, resultam num
e Monumentos Nacionais iniciadas em 1936 (cf. RO-
conjunto de planos que, encenando ou registando,
CHA, 2011: 439-450). Assim, num plano voltado para
reinventam a imagem de um mosteiro habitado e o
nascente, e servindo de cenário a Ana, é claramente
colocam como parte integrante da narrativa.
visível o pórtico de acesso ao mosteiro, antes da sua
O mosteiro do filme amplifica o sentido da ação, es-
demolição e posterior reconstrução, sendo também
clarecendo o público para as debilidades do carác-
assinalável o valor como registo das vistas tomadas
ter de Ana e para os seus dilemas e ambiguidades.
no interior da igreja. Do mesmo modo, o filme é igual-
Para tal, presta-se não só como cenário mas também
mente um registo inédito e eloquente da grandiosa
como personagem coletiva, atuando como reposi-
procissão em honra de Nossa Senhora de Lurdes bem
tório e voz da moral. É também o mosteiro que, num
como um comentário às práticas devocionais e re-
derradeiro comentário, por ventura ecoado pela vi-
ligiosas no Portugal dos anos 20. Saliente-se ainda o
são junto à Frecha da Mizarela, conduz a jovem ao
valor da imagem em movimento para uma mais cla-
inevitável desfecho. Por fim, é também junto ao mos-
ra perceção dos espaços e da sua escala, potencia-
teiro, no contexto particular da festa religiosa, que
da pelo cruzamento com outros tipos de documen-
Ana e o Fidalgo se encontram, traçando desde já o
tação.
destino da protagonista. Para este episódio tão intrín-
Por fim, e atentando no papel do mosteiro na
seco à piedade popular, e às manifestações profa-
adaptação a filme do conto de Abel Botelho, per-
nas a ela associadas, catalisadores de sociabilidades
cebemos que o convento de celuloide não seria o
com as quais o público facilmente se identificaria,
do escritor, que apenas o refere, e terá antes resul-
é assim transposta, em pleno colorido, a dicotomia
tado da ação que a presença do mosteiro exerceu
cidade-campo numa eficaz tradução visual dos seus
sobre Rino Lupo e a sua equipa, quer como edifício,
valores decadentistas.
1. U m subtítulo da adaptação fílmica. 2. T ranscrita na íntegra em BAPTISTA, 2008: 219-220. 3. Questionamo-nos se o enquadramento selecionado para esta panorâmica poderá estar relacionado com preocupações de rigor cronológico, referente à cronologia da ação do conto (187…) ou a do filme, indeterminada mas possivelmente anterior, de acordo com a caracterização das personagens e a presença de uma comunidade de religiosas no mosteiro. 4. « PORTO Cinematográfico – Revista Mensal», Ano III, N.º 2/3, 30 de Setembro a 31 de Outubro de 1921. 5. «PORTO Cinematográfico – Revista Mensal», Ano IV, N.º 11, 30 de Junho de 1923. 6. Cf. Nota 20. Não tivemos acesso à obra original, não editada, pelo que recorremos à transcrição feita por Tiago Baptista. 7. «PORTO Cinematográfico – Revista Mensal», Ano IV, N.º 11, 30 de Junho de 1923.
181
022
SÉCULOS XX-XXI
MOSTEIROS DE SÃO JOÃO DE TAROUCA E SANTA MARIA DE SALZEDAS
CLASSIFICAÇÃO DO PATRIMÓNIO IMÓVEL: DO ESTADO NOVO AOS NOSSOS DIAS. DAVID FERREIRA MIGUEL RODRIGUES
A classificação é o reconhecimento por parte do
com as consequentes vendas e destruições de gran-
Estado do valor patrimonial excepcional de um bem,
des edifícios e colecções artísticas, foram o rastilho
que passa a ser formalmente assumido como parte
que motivou a reacção das elites (cat 18 e 19). O mo-
estruturante da identidade nacional. Este reconheci-
delo, com mais ou menos dramatismo, permanece
mento faz recair sobre o bem os mecanismos legais
até aos nossos dias. O património é um antídoto para
de protecção e valorização, uma vez que o seu sig-
a voragem da modernidade. Assim, embora a pre-
nificado e destino interessam à Nação. Este esque-
servação dos monumentos tenha recebido atenção
ma, que hoje nos parece natural, só se consolidou
legislativa desde pelo menos o Renascimento, é en-
em Portugal no início do século XX, depois de muitas
tre o final do século XVIII e meados do XIX, no quadro
hesitações e combates políticos.
do fim dos regimes absolutistas e de uma reinvenção
Na base dos movimentos de salvaguarda patrimo-
das identidades nacionais, que o tema se impõe jun-
nial está o binómio conhecimento | sentimento de
to das elites e que estas exigem uma actuação firme
perda. A valorização do património cultural alimen-
do Estado.
ta-se do conhecimento científico, especialmente do
A lista de monumentos nacionais de 1881 da As-
conhecimento histórico, que permite compreender a
sociação dos Architectos Civis e Archeologos e o
importância do documento | monumento e confere
decreto de 16-06-1910, ilustram bem as tipologias pa-
bases sólidas ao processo de valorização e selecção.
trimoniais na viragem do século. È interessante notar
Por outro lado, o monumento, que é objectivamen-
que não perderam actualidade e fixaram o corpus
te um suporte de memória, procura apaziguar a
fundamental do património português. Mais, o diplo-
angústia da morte e da aniquilação (CHOAY, 2000:
ma de 1910 foi um dos raros momentos de selecção
16). Ora, o sentimento de perca acentuou-se muito
sistematizada do património imóvel. Depois disso
na Época Contemporânea, fruto de revoluções ideológicas, políticas e tecnológicas. A capacidade de transformar o mundo físico numa escala e velocidade inéditas e uma sociedade que elegeu a mudança como um fim em si, tiveram como consequência uma perda de referências que o património tenta colmatar. À fórmula kantiana que define a modernidade (mudança = evolução), opôs-se então a ideia forte da defesa do património: certos objectos devem permanecer. As expropriações dos bens da aristocracia e da Igreja que acompanharam as revoluções liberais,
Figura 1 | Mosteiro de São João de Tarouca Foto Pedro Martins © DRCN
183
classificaram-se algumas séries tipológicas específi-
privados. No distrito de Braga, por exemplo, até 1970
cas – os pelourinhos em 1933, os marcos pombalinos
as classificações centram-se em igrejas, capelas e sí-
do Douro Vinhateiro em 1946, as fortificações do lito-
tios arqueológicos. Apenas em 1940 será classificado
ral norte em 1967 ou a arquitectura portuguesa do
o primeiro imóvel particular: a Honra de Vasconcelos
século XX, a partir de 2004 – mas nunca mais existiu
em Amares. Se excluirmos os 13 pelourinhos classifica-
uma reflexão formalizada e global sobre a classifica-
dos em 1933 verificamos que de 1910 a 1940 apenas
ção.
são classificados 12 imóveis em todo o distrito. A partir
1
184
A selecção de 1910 é eclética e se é verdade
de 1940 serão classificados, em média, 20 imóveis por
que predominam os monumentos de raiz medieval,
década. A primeira igreja barroca a ser classificada
encontram-se igualmente bem representados os
no norte do país foi a matriz de Sambade (Alfândega
monumentos romanos, pré-históricos, manuelinos,
da Fé) em 1935 e só em 1958 é novamente classifica-
renascentistas e mesmo diversos palácios barrocos.
da uma igreja barroca, em São Pedro de Miragaia.
São classificados sobretudo imóveis propriedade do
A actualização é lenta e só com muito atraso são
Estado. Entre 1920 e 1970 as classificações confirmam
seguidas as metodologias propostas internacional-
e completam o quadro definido em 1910, segundo
mente. Aos critérios histórico, arqueológico, artístico
uma lógica de complementaridade em relação à
e arquitectónico, que enquadram as classificações
listagem inicial, com enfoque nas fortificações e edi-
na primeira metade do século, acrescenta-se em
fícios religiosos de origem medieval, conseguindo-se
1949 o valor paisagístico e em 1973 o valor etnográfi-
uma cobertura quase integral destas tipologias.
co (Decreto-lei 2032/49 de 11 de Junho e Decreto-lei
Só muito lentamente se inicia a protecção formal de edifícios barrocos (igrejas e solares) e de imóveis
Gráficos 1a 4 | Evolução da Classificação do Património (século XX).
582/73 de 5 de Novembro). Durante os anos 70 e 80, o número de classifica-
ções aumenta substancialmente e mostra uma evolução conceptual: • Abrange cada vez mais imóveis propriedade de particulares, até então raros. • Classificam-se conjuntos urbanos e ampliam-se
• Avança-se para a classificação da arquitectura modernista, que terá um grande impulso em 2004 com o Projecto de Classificação do Património Arquitectónico Português do Século XX. • Surgem as primeiras classificações de paisagens
as zonas de protecção no interior das cidades,
culturais, através da inclusão na Lista do Patrimó-
tendência que prossegue até aos nossos dias.
nio Mundial da Paisagem Cultural de Sintra em
• Incluem-se as áreas não edificadas dos monu-
1995 e do Alto Douro Vinhateiro em 20012.
mentos (cercas, jardins, parques, caminhos) tra-
A evolução aqui esboçada é de um movimento
duzindo uma visão mais ampla dos objectos e a
de acumulação e expansão patrimonial, que segue
valorização do contexto paisagístico.
em linha com as tendências da doutrina internacio-
• Aumentam as classificações de sítios arqueológi-
nal. Para além de continuar a incidir nas tipologias
cos, que incluem também áreas urbanas e reser-
consagradas em 1881, a expansão assume três for-
vas arqueológicas.
mas básicas: uma expansão territorial, uma especiali-
• As classificações passam a abranger edifícios cada vez mais recentes (barroco, neo-clássico, arquitectura do ferro, arte nova). A partir dos anos 90 estas tendências consolidamse e surgem outras concretizações: • Inicia-se, timidamente, a classificação de arquitectura vernacular e arquitectura industrial.
zação tipológica e uma expansão cronológica. A expansão territorial conhece duas formas. Uma diz respeito à protecção cada vez mais alargada da envolvente dos monumentos, outra diz respeito à protecção de imóveis cada vez maiores. Através
185
186
das zonas de protecção, o Estado reconhece que o
A expansão pela especialização concretiza-se na
contexto físico com que o monumento se relaciona
acumulação de tipologias patrimoniais, motivada
é importante para a sua salvaguarda patrimonial e
pelo avanço de estudos científicos especializados,
assiste-se ao aumento das áreas das zonas especiais
traduzindo um alargamento do conceito de patri-
de protecção, que atingem nalguns casos dimensões
mónio que a classificação vai também reflectir. Já
consideráveis, como em São João de Tarouca, nas
mencionámos os centros urbanos, o património ver-
Ruínas de Tróia ou em Alcobaça. Contudo, o território
nacular, a paisagem cultural, o património industrial e
abrangido pelas zonas de protecção assume apenas
a arquitectura contemporânea. Podemos acrescen-
a forma de enquadramento. Ele não é o objecto nu-
tar o património subaquático e os jardins históricos,
clear, mas uma figura de acompanhamento subordi-
mas a individualização de categorias não cessa de
nada ao monumento principal. A segunda etapa é
aumentar. A lista dos comités científicos do ICOMOS
aquela que nos remete já para um território alargado
é elucidativa. Nela encontramos, para além das tipo-
com valor patrimonial intrínseco. Existem muitas con-
logias já mencionadas, comités para a arquitectura
cretizações, mas as mais significativas dizem respei-
em terra, arte rupestre, madeira, itinerários culturais,
to à patrimonialização de zonas urbanas de génese
fortificações e património militar, património construí-
antiga (os centros históricos) e à paisagem, que vai
do partilhado, pinturas murais, ou vitral. A lista integra
surgir como um conceito totalizante.
ainda as pontes históricas, teatros e anfiteatros anti-
Figura 2 | Claustro do mosteiro de Santa Maria de Salzedas. Foto Pedro Martins © DRCN
gos, caminhos-de-ferro, património monástico, paisa-
ficada. Contudo, a classificação de obras recentes
gens vinícolas…
é também movida pelo desejo de associar o pres-
Finalmente, a expansão cronológica significa a
tígio do reconhecimento jurídico de valor patrimo-
patrimonialização de objectos muito recentes. Nos
nial à obra de autor. Que melhor prémio do que o
últimos anos foram classificados dezenas de edifícios
carimbo de monumento nacional? Acontece que,
dos anos 50 e 60 e o tempo parece encurtar cada
nesta perspectiva, o julgamento da crítica substitui o
vez mais. Em 2013 foi classificada a Igreja de Santa
julgamento da história. O tempo deixou de mediar
Maria (Marco de Canavezes), obra concluída em
a apreciação de valor e foi substituído pelo aplauso
1996, mas o fenómeno adquiriu contornos polémicos
durante a estreia. Colocam-se algumas questões de
com a abertura, em 2005, dos processos de classifi-
fundo: a classificação deve continuar ligada à ideia
cação da Casa da Música e do Estádio Municipal de
de património cultural e este à ideia de monumen-
Braga, então ainda em fase de construção. Revela-
to? A noção de classificação pode ser mais ampla e
se aqui um sentido de urgência que nos parece uma
constituir, simplesmente, um reconhecimento de qua-
reacção contraditória (paradoxal). A sociedade que
lidade? A noção de património cultural imóvel pode
ergueu a mudança como um valor em si, é a mesma
ser «apenas» a de uma obra importante, mesmo sem
que reage ao culto contemporâneo da transforma-
possuir densidade histórica? Não adianta muito pro-
ção através de uma tentativa de preservação ampli-
curar resposta nos critérios legais de classificação.
Figura 3 | Fotografia aérea do lugar do Burgo de Salzedas (2012). Foto Piqueiro
Eles são muito abrangentes, o que não é necessariamente errado. Esta latitude é inerente ao carácter muito subjectivo do conceito valor cultural ou valor patrimonial, perante o qual o legislador preferiu estabelecer um quadro de referência, que é depois interpretado no caso concreto pela administração. A discricionariedade técnica é uma ferramenta preferível quando a valoração depende de conceitos com grande amplitude interpretativa. O que interessa, julgamos, é ter consciência de que estamos à beira de um novo paradigma e que este exige uma reflexão colectiva profunda, que evite a arbitrariedade e a casuística e promova uma base de consenso que preserve a dignidade da classificação. Em São João de Tarouca (figura 1) e em Santa Maria de Salzedas (figura 3) encontramos dois exemplos
187
do movimento de expansão aplicado ao património cisterciense. O decreto n.º 40 684 de 1956 classificou a Igreja de São João de Tarouca, mas um entendimen-
classificação como Monumento Nacional.
to mais amplo e informado do património monástico
• Decreto 31-I/2012 de 31/12/2012: ampliou a área
conduziu um 1978 à publicação do decreto 95/78,
classificada, de modo coincidir com a cerca e
onde se esclarece que: A classificação de monumen-
alterou a designação para Mosteiro de Santa
to nacional atribuída à Igreja de S. João de Tarouca,
188
azulejos do século XVII, e os jardins anexos. • Decreto n.º 67/97 de 31/12/1997: promoveu a re-
Maria de Salzedas.
compreendendo o túmulo do conde de Barcelos e o
• Portaria 291/2014 de 30/04-/2014: fixa a zona es-
quadro S. Pedro, de Grão-Vasco, pelo Decreto 40684,
pecial de protecção, cujo limite máximo dista
de 13 de Julho de 1956, passa a abranger o Conven-
mais de 1km do núcleo monástico edificado.
to de S. João de Tarouca, com todos os elementos
Na base desta expansão está o acumular de co-
que ainda possui. Em 1956 valorizaram-se apenas as
nhecimento científico sobre os coutos monásticos,
peças consideradas notáveis (igreja, túmulo, qua-
que nos permite lançar um olhar mais informado so-
dro), em 1978 toda a realidade física associada ao
bre os monumentos e sobre a relação que estabele-
mosteiro é entendida como relevante. Em 1999 é fi-
cem com o território envolvente. A valorização desta
xada a zona especial de protecção, que abrange
relação histórica e interpretativa é uma consequên-
cerca de 7 km². Observamos o mesmo processo em
cia inevitável, que se vai depois reflectir na classifica-
Salzedas (figura 3):
ção e fixação de zonas especiais de protecção.
• Decreto 95/78 de 12/09/1978: classifica como
Integram o património cultural não só o conjunto
Imóvel de Interesse Público a Igreja de Salzedas,
de bens materiais e imateriais de interesse cultural
incluindo as tábuas quinhentistas, uma imagem
relevante, mas também, quando for caso disso, os
da Virgem, em prata, um contador de sacristia
respectivos contextos que, pelo seu valor de testemu-
semelhante ao do Mosteiro do Bouro, o cadeiral
nho, possuam com aqueles uma relação interpretati-
e todo os elementos de valor artístico ainda exis-
va e informativa (n.º 6 do artigo 2º da Lei 107/2001 de
tentes, a Sala do Capítulo, forrada de azulejos do
08 de Setembro – conceito e âmbito do património
século XVII, a Capela do Desterro, revestida de
cultural).
1. Através do Projecto de Classificação do Património Arquitectónico Português do Século XX, lançado pelo IPPAR durante a presidência do Arquitecto João Belo Rodeia. 2. I nteressa notar que as classificações de paisagem cultural surgem em Portugal sob impulso externo, através da UNESCO.
189
CISTER NO DOURO | 190
o
|
o projecto
191
A maqueta. p
A montagem. p
A exposição. p
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACRÓNIMOS adb – Arquivo Distrital de Braga ADL – Arquivo Diocesano de lamego ARIRSM – Arquivo da Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda BN – Biblioteca Nacional de Portugal MNA – Museu Nacional de Arqueologia SGMF – Secretaria Geral do Ministério das Finanças TT – Arquivos Nacionais da Torre do Tombo
ABREVIATURAS FREQUENTES AA.VV. – Autores Vários Cx. - Caixa Cod. – códice Consult. - Consultado Coord. - Coordenação Cient. - Científica Dir. – Direcção Ed. – Edição Fol. – fólio L.º - Livro(s) Mss./ ms. – Manuscritos/manuscrito Org. – Organizado/organização Publ. – Publicação/publicado Rev. – Revisão S.N. – Sem nome [de editor] S.L. – Sem local [de edição] SS. – Seguintes (páginas)
ABREVIATURAS DOS LIVROS DA BÍBLIA 1Cor 1.ª aos Coríntios (Cartas de São Paulo) 1Cr 1.º das Crónicas (Livros Históricos) 1Jo 1.ª de João (Cartas Católicas) 1Mac 1.º dos Macabeus (Livros Históricos) 1Pe 1.ª de Pedro (Cartas Católicas) 1Rs 1.º dos Reis (Livros Históricos)
1Sm 1.º de Samuel (Livros Históricos) 1Tm 1.ª a Timóteo (Cartas de São Paulo) 1Ts 1.ª aos Tessalonicenses (Cartas de São Paulo) 2Cor 2.ª aos Coríntios (Cartas de São Paulo) 2Cr 2.º das Crónicas (Livros Históricos) 2Jo 2.ª de João (Cartas Católicas) 2Mac 2.º dos Macabeus (Livros Históricos) 2Pe 2.ª de Pedro (Cartas Católicas) 2RS 2.º dos Reis (Livros Históricos) 2Sm 2.º de Samuel (Livros Históricos) 2Tm 2.ª a Timóteo (Cartas de São Paulo) 2Ts 2.ª aos Tessalonicenses (Cartas de São Paulo) 3Jo 3.ª de João (Cartas Católicas) Abd Abdias (Livros Proféticos) Act Actos dos Apóstolos Ag Ageu (Livros Proféticos) Am Amós (Livros Proféticos) Ap Apocalipse Br Baruc (Livros Proféticos) Cl Colossenses (Cartas de São Paulo) Ct Cântico dos Cânticos Dn Daniel (Livros Proféticos) Dt Deuterónimo Ecl Eclesiastes (ou Qohélet) Ef Efésios (Cartas de São Paulo) Esd Esdras (Livros Históricos) Est Ester (Livros Históricos) Ex Êxodo Ez Ezequiel (Livros Proféticos) Fl Filipenses (Cartas de São Paulo) Flm Filémon (Cartas de São Paulo) Gl Gálatas (Cartas de São Paulo) Gn Génesis Hab Habacuc (Livros Proféticos) Heb Hebreus (Cartas de São Paulo) Is Isaías (Livros Proféticos) Jb Job (Livros Sapienciais)
Jd Judas (Cartas Católicas) Jdt Judite (Livros Históricos) Jl Joel (Livros Proféticos) Jn Jonas (Livros Proféticos) Jo João (Evangelhos) Jr Jeremias (Livros Proféticos) Js Josué (Livros Históricos) Jz Juízes (Livros Históricos) Lc Lucas (Evangelhos) Lm Lamentações (Livros Proféticos) Lv Levítico Mc Marcos (Evangelhos) Ml Malaquias (Livros Proféticos) Mq Miqueias (Livros Proféticos) Mt Mateus (Evangelhos) Na Naum (Livros Proféticos) Ne Neemias (Livros Históricos) Nm Números (Pentateuco) Os Oseias (Livros Proféticos) Pr Provérbios Rm Romanos (Cartas de São Paulo) Rt Rute (Livros Históricos) Sb Sabedoria (Livros Sapienciais) Sf Sofonias (Livros Proféticos) Sir Ben Sirá (ou Eclesiástico) Sl Salmos Tb Tobite (Livros Históricos) Tg Tiago (Cartas Católicas) Tt Tito (Cartas de São Paulo) Zc Zacarias (Livros Proféticos)
FONTES MANUSCRITAS ADB ADB ADB ADB ADB ADB ADL ARIRSM ARIRSM BN
BN BN BN MNA SGMF TT TT TT TT TT TT
CI - 186 – Definições que fazem nos Capítulos Gerais (Lº das) 1629 – (1748). CI – 192 - Capítulos Gerais. Doc.s 10 a 23. Século XVII – 1828. CI -191 – Resoluções tidas em Juntas do Capítulo Geral, 1708 – 1759/86. CI -189 – Leis do Capítulo Geral,1778 – (1812). CI -188 – Leis que se fizeram em Capítulos e Juntas Gerais, (1708- 1749). CI - 187 – Leis que se fizeram no Capítulo Geral 1663- (1705). Paroquiais, Paróquia do Bom Jesus de Salzedas. Mss. 21/25. Mss. 22/23. Códices Alcobacenses, Cod. 1254 (mic. 813), Couzas / memoravaens da Fundação deste / Convento de Nossa Senhora da Assunpção / do lugar de Teoboza, de Recole/as da ordem de Nosso Padre S. Bernardo / O segundo que se Fundou neste Reino de Portugal, na hera de 1692 a. Códices Alcobacenses, Cod. 148. Códices Alcobacenses, Cod. 1480, Sobre as contribuições para viagens chamadas viáticos de 14 de Setembro de 1770, fls. 368 – 377. Códices Alcobacenses, Cod. 1482, Regulamento das Pitanças, fls. 138-156. Códice sobre a fundação do Mosteiro de Salzedas. Museu Nacional de Arqueologia [Legado documental de Leite de Vasconcelos]. CJBC/VIS/TAR/ADMIN/012, Proc. 5938, L. 10, Fl. 388; Proc. 5939, L. 10. Mosteiro de Alcobaça, 3.ª Inc., mç. 4, doc. 184, fl. 3. A.H.M.F, Mosteiro de Santa Maria de Aguiar (nº3), cx.2191. A.H.M.F, Mosteiro de Santa Maria de Aguiar (nº3), cx.2191. A.H.M.F. Mosteiro de S.João de Tarouca, cx.2255. Fundo de Mosteiro de São João Baptista de Tarouca, Livro [dos] Graos de Noviciaria. A.H.M.F. Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, cx.2249.
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D’ABBEVILLE, N. S. (1654) - Parte septentrional do Reyno de Portugal. Paris: Ed. Autor. Disponível em: http://purl. pt/786/2/P7.html. SECO, F. S. (1559-1561) - Portugalliae que olim Lusitania, novissima & exactissima descriptio. Roma. Disponível em: http://purl.pt/5901. WIT, F. de (1670?) - Totius Regnorum Hispaniae et Portugalliae. Disponível em: http://www.bibliotecavirtualmadrid.org/ bvmadrid_publicacion/i18n/consulta/registro.cmd?id=964. JAILLOT, A-H. (1711) - Royaume de Portugal. Paris. Disponível em: http://purl.pt/3716 CARPINETTI, J. S. (1769 – 1779) - Mappas das provincias de Portugal novamente abertos, e estampados em Lisboa... Lisboa: Francisco Manoel Pires.
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199
Índice
6 8 12
Prefácio | Luis Sebastian Prefácio | Maria Alegria Marques Introdução | Nuno Resende CATALOGRAFIA
16 22 28 34 40 46 52 56 64 72 80 94 104 112 126 134 140 154 158 164 168 182 190 192
1| Mosteiro de São Pedro das Águias Maria Leonor Botelho 2 | Capitel de Claustro com leões afrontados Lúcia Rosas 3 | A sacralização dos espaços: o anel de oração do mosteiro de São João de Tarouca Ana Sampaio e Castro 4 | A música na Ordem de Cister e os antifonários de Arouca Manuel Pedro Ferreira 5 | O couto de Santa Maria de Salzedas: o marco territorial de Cimbres Ana Sampaio e Castro 6 | As Granjas de Santa Maria de Aguiar: o caso da Foz da Ribeira de Aguiar Luís Corredoura 7 | A Ponte fortificada da Ucanha Ana Sampaio e Castro 8 | O Mosteiro e o Burgo Ana Sampaio e Castro e Nuno Resende 9 | A escultura de Santa Bárbara em Cimbres Nuno Resende 10 | São Sebastião e Santo Antão: duas pinturas revisitadas Ana Cristina Sousa e Nuno Resende 11 | Frei Bernardo de Brito e os escritores dos mosteiros cistercienses do Douro Nuno Resende 12 | O claustro do mosteiro de Nossa Senhora da Assunção de Tabosa: uma arquitectura «senza temopo» Ana Cristina Sousa 13 | Espelhos de modelos: a pintura hagiográfica do coro da igreja de São João de Tarouca Nuno Resende 14 | O coro do Mosteiro de Santa Maria de Arouca: uma leitura iconográfica Ana Cristina Sousa 15 | VASCONCELOS: a história social de um prato Nuno Resende 16 | Uma tigela brasonada de faiança coimbrã Luís Sebastian 17 | Práticas sociais, quotidiano e emolumentos dos monges da Congregação de Alcobaça da Ordem de São Bernardo Salvador Magalhães Mota 18 | O decreto de extinção das ordens religiosas: impacto nos mosteiros cistercienses do Douro Célia Taborda 19 | O Romantismo literário e os mosteiros cistercienses do Douro: uma voz feminina entre ruínas Nuno Resende 20 | S. João de Tarouca: as ruínas do Mosteiro (cliché e similigravura de Marques Abreu) Maria Leonor Botelho 21 | Um «convento» de celulóide - Santa Maria de Arouca no filme Mulheres da Beira de Rino Lupo (1921-23) Hugo Barreira 22 | A classificação do património imóvel: do Estado Novo aos nossos Dias David Ferreira e Miguel Rodrigues Projecto expositivo Fontes e referências bibliográficas