Do Paraíso ao Inferno das substâncias psicoativas - Roberto DeLucia

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DO PARAÍSO ao INFERNO das SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS Dependência de Drogas

Roberto DeLucia (Org.)

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DADOS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇAO (CIP) DeLucia, Roberto D366 Do Paraíso ao Inferno das Substâncias Psicoativas: Dependência de”Drogas”/ Roberto DeLucia (organizador): Cleopatra da Silva Planeta; Walkyria Sigler (coautoras); Fabio C. Cruz; Marcelo T. (coautores). - Clube de Autores: São Paulo, 2016. – 1v: il. Índice 1.

Dependência 2. Substâncias Psicoativas 3. Psicofarmacologia 4. Drogas 5. Abuso

I DeLucia, Roberto. II Titulo _____________________________________________________________

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Ao Leitor Historicamente, uso, abuso e dependência de substâncias psicoativas ou “drogas” podem ser vistos como dicotomia “paraíso e inferno”, ou seja, para o bem e para o mal dos usuários. Como também pela operacionalidade didática pode facilitar o entendimento do complexo problema da dependência na esfera da Saúde Pública que pode ser dimensionado entre as cinco notícias mais publicadas na mídia internacional. Neste contexto, organizamos a segunda edição ilustrada do livro (e-book) “Do Paraíso ao Inferno das Substâncias Psicoativas” em moderno design com temas científicos atualizados e as repercussões culturais e artísticas. A saber, capítulo 1 (Panorama da Dependência), inicialmente, aborda os conceitos de uso, abuso e dependência com enfoque epidemiológico, histórico, diagnóstico e neuroimagem. É dado destaque aos fatores de vulnerabilidade ao uso de substância psicoativa, enfatizando o papel do estresse e as estratégias de prevenção e tratamento da dependência. O segundo capítulo (Como entender a Dependência) aborda os avanços conseguidos na compreensão do ciclo da dependência em modelos animais e humanos. Teorias e Perspectivas. Nos capítulos especiais de 3 a 10 são comentados o potencial de abuso e dependência das drogas, visando a prevenção e o tratamento. No apêndice é apresentada breve revista dos esteroides anabólicos.

Em resumo, a presente obra procurar levar aos Leitores em geral, uma reflexão crítica sobre a dependência de “drogas”

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ROBERTO DELUCIA Professor Doutor do Departamento de Farmacologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Organizador de Edição _ MARCELO T. MARIN Professor Doutor da do Departamento de Princípios Ativos e Naturais e Toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêutica da UNESP- Campus Araraquara. Coautoria científica FABIO C. CRUZ Mestre e Doutor em Ciências Fisiológicas pelo convênio UFSCar/UNESP. Pesquisador do National Institute on Drug Abuse NIDA/NIH, Baltimore, MD. Pesquisador da FAPESP na Universidade de São Paulo, IFSC. Coautoria científica WALKYRIA SIGLER Mestre e Doutora em Farmacologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Professora Doutora da Disciplina de Farmacologia da UNIFAMU. Coautoria consultiva CLEOPATRA S. PLANETA Professora Titular do Departamento de Princípios Ativos e Naturais e Toxicologia da Faculdade de Ciências Farmacêutica da UNESP- Campus Araraquara. Coautoria científica

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Sumário

Capítulo I Panorama da Dependência........................................................................ 7 CapítuloII Como Entender a Dependência................................................................39 Capítulo III Cocaína, Anfetamina e Cafeína .............................................................51 Capítulo IV Opioides....................................................................................................61 Capítulo V Etanol e Bebidas Alcoólicas .....................................................................73 Capítulo VI Ansiolíticos, Hipnóticos e Sedativos........................................................85 Capítulo VII Inalantes...................................................................................................95 Capítulo VIII Tabagismo ...........................................................................................102 Capítulo IX Canabinoides...........................................................................................110 Capítulo X Alucinógenos.............................................................................................119 Apêndice Esteroides Anabólicos Androgênicos........................................................137

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Agradecimentos Especiais Os Autores agradecem ao elevado espírito de colaboração de Colegas & Amigos e também pela inclusão de textos de alto conteúdo científico e parte de capítulos pertencentes ao “livro Farmacologia Integrada”. INÊS A. BUSCARIOLO (Professora Doutora do Departamento de Estomatologia FOUSP, Capítulo I); MARCIA GALLACCI (Professora Adjunta, Departamento de Farmacologia, IBUNESP, Capítulo, X); MARIA CHRISTINA W. AVELLAR (Professora Adjunta, Departamento de Farmacologia, UNIFESP, Apêndice) MARIA TERESA A. SILVA (Professora Titular do Departamento de Psicologia Experimental IPUSP, Capítulo II, III). De modo especial, agradecemos a ajuda financeira das instituições, FAPESP, CNPq, CAPES e FINEP para o desenvolvimento de nosso trabalho de pesquisa e o apoio das Universidades USP e UNESP. Gostaríamos, no ensejo, de registrar o empenho e o entusiasmo do pessoal das Bibliotecas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e Conjunto das Químicas, FCFUSP e IQ. Autores

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Capítulo I PANORAMA DA DEPENDÊNCIA

O uso de substâncias psicoativas é um hábito secular que existe desde as Eras primordiais da humanidade. Embora seja comum a procura de substâncias psicotrópicas consideradas desejáveis em diversas sociedades para o uso recreativo ou ritual com a finalidade de prazer, satisfação, diminuição da ansiedade, sentimento de liberdade e religiosidade.

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Em contraposição, o uso abusivo e a dependência de substâncias psicoativas são considerados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sérios problemas mundiais, tanto na esfera da saúde pública como no nível socioeconômico. Como a fronteira entre o uso recreativo e abusivo não é nítida, cabe fazer uma diferenciação entre essas categorias. Em 1969, OMS definiu o abuso de como sendo um constante ou esporádico uso excessivo de um fármaco ou substância psicoativa, sem qualquer orientação médica ou finalidade terapêutica. Modernamente, a ideia de abuso fica mais clara e mais vantajosa quando inserida no contexto social.

Segundo a Associação Psiquiátrica Americana (1994), entre os problemas decorrentes direta ou indiretamente do uso prejudicial dessas substâncias incluem-se os danos mentais, doenças infecciosas, acidentes de trânsito, violência e criminalidade. Ademais, o uso disfuncional pode acarretar prejuízos para funcionamento psicológico ou social, como perda do emprego, falta à escola ou problemas conjugais. Vale acrescentar que o uso perigoso destas substâncias, corresponde à ideia de comportamento de risco. Essas noções de dano e risco devem ser entendidas nas suas relatividades quando analisadas e não de forma categórica.

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CICLO DA DEPENDÊNCIA A dependência (addiction, em inglês) é um fenômeno biopsicossocial caracterizado por um conjunto de sintomas indicativos de que o indivíduo perdeu o controle de uso da substância e o mantêm a despeito das suas consequências emocionais adversas (p.ex., disforia, ansiedade, irritabilidade).

A síndrome da dependência não é absoluta e sua intensidade pode ser medida pelos os comportamentos relacionados ao uso da substância psicoativa. Na sua forma extrema, a dependência caracteriza-se pelo uso compulsivo da substância, ou seja, o desejo de procura e manutenção de uso. Na figura abaixo, representação simbólica tradicional de desejo. Em síntese, o uso abusivo difere da dependência, pelas ausências de padrão de uso compulsivo, tolerância e síndrome abstinência. Entretanto, no recente DMS-V, a dicotomia entre os diagnósticos de abuso e dependência deixou de existir (ver adiante Diagnóstico).

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Epidemiologia. Estudos epidemiológicos mostram que muitos indivíduos experimentam vários tipos de substâncias de abuso por períodos variáveis de tempo, mas somente alguns desenvolvem a dependência. No mundo, 0,6% da população entre 15 e 64 anos de idade (27 milhões de indivíduos) são considerados dependentes, sendo que cerca de 5,0% (246 milhões) já fizeram uso destas substâncias consideradas ilícitas, segundo a UNODC (2013-2015). No Brasil, estimativas realizadas pelo CEBRID (2005) através de levantamento domiciliar mostraram que o uso de substâncias lícitas como álcool e o tabaco foram consumidos por respectivamente, 68,7% e 41,1% da população (entre 12 e 65 anos). Estudo anterior mostrou que 11,2% da população tornaram-se dependentes de álcool e 9% de tabaco (5). Entre as substâncias qualificadas como ilícitas mais consumidas a ordem foi a seguinte: canabinoides (6,9%), solventes (5,8%), cocaína (2,3%), crack (0,4%) e heroína (0,1%) (CEBRID 2007). Segundo a UNODC (2013) a prevalência de cocaína foi de 1,75% da população entre 16 a 64 anos.

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Outro estudo mostra a distribuição do uso de crack, óxi e merla no Brasil , sendo maior no nordeste e sudeste (foto acima). Os custos sociais do uso de substâncias de abuso e a dependência são altos em termos de custos diretos e indiretos associados com serviços especializados, problemas sociais e perda da produtividade. Nos EUA estimou-se que o custo total foi de $ 161 bilhões de dólares e na França na ordem de $ 41 bilhões. Dados mais recentes mostram que os custos tiveram aumentos significativos nos EUA ( Quadro abaixo).

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CICLO DA DEPENDÊNCIA Nos primeiros estudos sistemáticos com o objetivo de entender o ciclo da dependência de substâncias psicoativas predominaram as investigações das consequências aversivas decorrentes da interrupção do uso das substâncias. Isso se deve ao fato de que os primeiros estudos foram realizados com opioides e etanol, os quais produzem tolerância e síndrome de abstinência marcante. CONSUMO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA

SENSIBILIZAÇÂO

DEPENDÊNCIA RECAÍDA SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA

TOLERÂNCIA

Tolerância. A tolerância é de grande interesse porque representa uma das principais alterações que acompanham a administração repetida de fármacos. Portanto, a tolerância é um estado de responsividade diminuída ao efeito de um fármaco e pode ser dividida em duas categorias: inata ou adquirida. A tolerância inata refere-se a fatores genéticos que determinam o grau de sensibilidade às substâncias psicoativas quando observadas na primeira administração. Tolerância inata ao etanol parece ser um fator importante no desenvolvimento de dependência a essa substância.

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Schuckit e Smith (1996) demonstraram que filhos de pais alcoolistas, que tinham pouca sensibilidade ao etanol, ao serem avaliados aos 22 anos de idade, apresentavam também, maiores probabilidades de serem diagnosticados como alcoolistas, quando avaliados 10 anos depois do primeiro teste. Ademais, foi observada ainda correlação entre o grau de tolerância inata e a probabilidade do indivíduo dependente de etanol. A tolerância adquirida resulta de alterações do organismo decorrentes do uso repetido das substâncias de uso ou abuso. Nesse caso, é necessária administração de doses crescentes para que o efeito produzido pela substância seja de igual em intensidade ao produzido por doses anteriores. Quando o organismo exposto a um fármaco A desenvolve tolerância também ao fármaco B, pode dizer que existe tolerância cruzada entre os fármacos A e B. A tolerância adquirida pode ser farmacocinética e/ou farmacodinâmica. A tolerância farmacocinética (também chamada de disposicional) decorre de modificações nos processos farmacocinéticos, como por exemplo, indução enzimática, de tal forma que concentrações menores do fármaco atingirão o seu sítio de ação. A tolerância farmacodinâmica refere-se às adaptações nos locais onde os fármacos atuam e de tal forma que os efeitos diminuem na presença de uma dose fixa da substância psicoativa no decorrer da administração prolongada, ou ainda, pela necessidade de aumentar-se a dose para obtenção dos efeitos iniciais. Quanto ao mecanismo, a tolerância farmacodinâmica pode resultar da alteração do equilíbrio ou homeostase de circuitos neurais, de tal forma que esses atingem novos pontos de equilíbrio na presença de inibição ou estimulação por uma determinada substância. Síndrome de abstinência. A síndrome de abstinência é um conjunto de sinais e sintomas, característicos para cada classe de agente psicoativo, que geralmente são opostos aos efeitos agudos dos agentes psicoativos observados antes da plasticidade neural. Como por exemplo: sudorese, náusea, cãibras, convulsões e taquicardia observadas após a interrupção do uso de opioides ou etanol, são evidentes e podem ser mensurados objetivamente. Assim, a dependência a essas substâncias foi denominada dependência física. A dependência física é um estado que resulta da plasticidade neural de diferentes circuitos neurais afetados pelas substâncias psicoativas. Essas plasticidades neurais manifestamse como tolerância no decorrer do uso da substância e como síndrome de abstinência quando ocorre a interrupção da sua utilização.

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A síndrome de abstinência representa um componente de reforço negativo no desenvolvimento da dependência, uma vez que indivíduos dependentes fisicamente manterão o uso da substância de abuso para evitar o desconforto da retirada. Em síntese, tolerância, dependência física e síndrome de abstinência são fenômenos biológicos que ocorrem também com o uso terapêutico de fármacos. Por exemplo, pacientes utilizando morfina para a supressão da dor apresentarão tolerância e dependência física após o uso prolongado; entretanto, isso não significa que o paciente está fazendo uso abusivo do fármaco ou que ele a utilize compulsivamente. Sensibilização. A sensibilização ou também denominada tolerância reversa, caracterizase pelo aumento da reposta à substância de abuso após a administração repetida em dose constante. Experimentalmente, a sensibilização da atividade motora foi descrita para cocaína; anfetamina; morfina; etanol e ∆9tetraidrocanabinol. Em humanos, o desenvolvimento de sintomas compulsivos (“fissura”) e psicóticos por usuários crônicos de psicoestimulantes em altas doses, parece ser decorrente da sensibilização comportamental. Cabe destacar que o fenômeno da sensibilização tem sido apontado como o mecanismo neural responsável pela gênese da dependência (ver adiante teorias da Dependência). Recaída. Outro aspecto do ciclo da dependência que tem recebido especial atenção nos últimos anos é o fenômeno da recaída. A recaída é frequentemente desencadeada por uma única exposição à substância ou a estímulos ambientais e objetos a ela associados. Outro fator importante que pode precipitar a recaída é a exposição a situações aversivas ou estresse. A “fissura”, e consequente recaída, é um dos aspectos que mais dificultam o tratamento da dependência à cocaína e de outras substâncias psicoativas. A “fissura” pode ser duradoura e dessa forma a recaída ao uso da substância pode ocorrer após vários anos de abstinência.

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HISTÓRICO “O escravo tem nas mãos os meios de cancelar seu cativeiro” (Shakespeare, W, 15641616; Júlio César, ato I-cena III, apud Faraco, S). Para o melhor entendimento dos conceitos atuais de abuso e dependência normatizados universalmente pela OMS é importante uma breve visão histórica de usos de algumas substâncias psicoativas. Os usos de substâncias psicoativas tiveram suas origens na noite dos tempos quando homem, já em sociedade e lançava mão de recursos naturais para se adaptar as vicissitudes do meio em que vivia. Do ponto de vista histórico, estes usos fazem parte do que se convencionou chamar de período milenar de coleta e catalogação de substâncias psicoativas. Muito antes da Era cristã, o ópio era utilizado na Grécia e na Ásia. Homero, no seu poema Ilíada, narra que Helena, cuja beleza tanto se decantou ao longo dos séculos, oferecia aos amigos, nas horas de lazer, estranhas poções produtoras de encantadores sonhos. Na China, crianças eram embaladas pelas mães, sob abundante fumaça de ópio a fim de que parassem de chorar. No segundo século a.C., Nicandro, sacerdote de Apolo em Claros na Jonia foi o pioneiro em descrever os efeitos tóxicos agudos do ópio: “Aquele que ingere uma bebida contendo suco da papoula cai desde logo em sono profundo, os membros se esfriam, os olhos se tornam fixos e todo o corpo fica coberto de suor abundante”.

Na Tailândia, fronteira sudeste da Birmânia e noroeste do Laos, povos nativos da região cultivam até hoje a papoula para seu próprio consumo.

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O primeiro relato de embriaguez alcoólica foi descrito na Bíblia. “Quando Noé deixou a Arca, plantou uma vinha. E tendo bebido o vinho embriagouse” (Gênesis 9, 20-21). Obviamente, o uso de bebidas alcoólicas faz parte essencial da cultura ocidental, onde o vinho ocupa lugar de destaque nas boas mesas e até mesmo na eucaristia cristã. Contudo, a embriaguez passou ser considerada como “perda de controle de beber ou da vontade” somente a partir do século XIX. É tradição nos países andinos, desde a civilização inca, mascar folhas de Coca pelos índios nas suas escaladas andinas, costume que perdura até nossos dias. O efeito estimulante da cocaína na saliva deglutida, perda da sensação de fome, determinada pela anestesia da mucosa gástrica, já tinham chamado a atenção daqueles indígenas. Com a vinda dos colonizadores, o hábito de mascar folhas de coca passou ter valor de troca no trabalho escravo imposto aos nativos.

Segundo rituais religiosos, a coca foi criada pelo deus Inti Inti que instruiu a mãe lua, Mama Quilla, a plantar coca nos vales

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úmidos e ordenou que apenas os descendentes dos deuses, os Incas para eles lidassem com as demandas terrenas.

Os astecas usavam o peylot nas suas festas religiosas, Patecal, deus da cura e fertilidade descobriu o cacto (foto a esquerda). A mescalina é extraída desse cacto é o alcaloide de reconhecido interesse pelos seus efeitos alucinógenos. O uso do tabaco surgiu aproximadamente no ano 1000 a.C., nas sociedades indígenas da América Central em rituais mágico-religioso (Foto abaixo). A partir do século XVI, o seu uso disseminou-se pela Europa, apesar das proibições de uso. Jean Nicot, diplomata francês vindo de Portugal, foi o responsável pela utilização até para curar as enxaquecas de Catarina de Médici, rainha da França..

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Vale mencionar aqui a coincidência do uso de bebidas estimulantes em várias partes do mundo, contendo substâncias xânticas: o café na Arábia e na Abissínia, o chá na Índia e na China, as semente da Cola na África, o guaraná no Amazonas e o mate no Paraguai (Fotos acima). Essas bebidas contêm cafeína que estimula o SNC, melhora o trabalho muscular e retarda a sensação de fadiga. As bebidas a base de cafeína e as alcoólicas são mercadorias de grande valor mercantil na sociedade contemporânea. Neste contexto, a cafeína é a substância psicoativa mais consumida no mundo atual e o consumo de bebidas alcoólicas é hiperestimulado pelas campanhas publicitárias na mídia.

Os efeitos de substâncias psicoativas de ação complexa no SNC, em particular sobre as faculdades ditas superiores da mente do intelecto, capazes provocar alterações na percepção, julgamento e da conduta são conhecidos desde tempos imemoriais e foram exploradas pelos curandeiros, mágicos e até feiticeiros com as velhas poções para o sono e sonho, para o êxtase e os filtros para o amor, esquecimento e a morte!

Giambattista Della Porta, autor de “Magia naturalis” (1558), revelou, por exemplo, que o célebre unguento de bruxas, que exalta as faculdades mentais, erauma composição de acônito (Aconitum napellus) e atropina (Atropa belladona).

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Em Londres, Thomas De Quincey observou a influência do ópio sobre o mecanismo da produção de sonho rico em fantasia. O trabalho pioneiro “Das confissões de um comedor de ópio” foi publicado, em 1821, repercutindo na produção literária de escritores e poetas como Poe, Musset, Baudelaire e Rimbaud.

Por exemplo, os efeitos psicoativos do haxixe e ópio foram descritos por Charles Baudelaire como Paraísos Artificiais, (Foto a direita).

Analisando globalmente o período milenar, pode se notar que o uso de substâncias psicoativas era visto como uma prática vantajosa em muitos aspectos pelas sociedades e condenável em outros. Assim, o notável progresso nas preparações medicamentosas ocorreu com Galeno (135-201) que descreveu muitos medicamentos e fórmulas, cujos métodos de preparação originaram a Farmácia Galênica. Ademais, Avicenas (970-1037) que estudou Botânica na Bacitriana, onde muitas plantas medicinais tornaram-se conhecidas e no seu Canon de Medicina existe grande repositório farmacêutico. O isolamento dos princípios ativos responsáveis pela maioria dos efeitos de plantas foi inaugurado por Sertürner, em 1817, com a morfina e fez com que a Farmacologia como ciência desse um grande passo. O preparo de novas bases vegetais prosseguiu como isolamento da nicotina em 1828, em 1860 a cafeína, em 1865 a cocaína, em 1888 a mescalina. Assim, no alvorecer do século XIX, Claude Bernard (1813-1878) utilizou de métodos fisiológicos experimentais para elucidar as ações da atropina, do álcool e do curare entre outras substâncias.

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Cabe mencionar neste período, ausência de terminologia caracterizando o uso abusivo e nem para a dependência de substâncias psicoativas. No século XVI, surgem os primeiros vocabulários em alguns relatos do uso de ópio no oriente. Mais tarde, em pleno século XVIII, muitos autores passaram a considerar o uso de álcool e outras substâncias psicoativas como “uma perda do controle voluntário do habito” que culminaram com a concepção de vício ou uso compulsivo no século XIX. A concepção de vício (deficiência, em latim) é notável no século XIX. O hábito da embriaguez passa ser visto como “transtorno mental” por Kerr (1804) e o alcoolismo foi denominado de “dipsomania” por von Bruhl-Cramer (1819). Ademais, o potencial de dependência da morfina foi previamente evidenciado por Galeno e, depois por Levinstein (1878) em sua publicação “O desejo mórbido pela morfina”. Kerr (1844) atribuía ao “vício” conotação moralista de depravação ou falta de caráter dos usuários, considerando uma “doença mental” comparada à epilepsia ou a insanidade. E m 1845, Jean Jacques Moreau (de Tours) publicou estudo pioneiro dos efeitos do haxixe sobre o comportamento e psiquismo humano. O livro “Du hashish et de l´alienation mentale” é considerado um marco da observação psicofarmacológica e psiquiátrica. Em contrapartida foi organizado o Clube dês Hachischines em Paris frequentado pelos intelectuais e artistas (fotos laterais).

O termo “toxicomania” foi cunhado primeiramente por Régis em 1885 para refletir as tendências impulsivas no ato de usar substâncias psicoativas. Mais tarde, toxicomania foi incorporada à psicanálise por discípulos de Freud.

Todos esses estudos acompanharam a reforma sanitária e social processada ao longo do século XIX pela ação intervencionista de Estado na busca da erradicação de doenças contagiosas (Disease Act, Inglaterra, 1889) e evitando a degeneração hereditária, onde se incluíam “viciados”, bêbados e loucos.

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Acreditava-se que a colera estaria relacionada a ingestão de alcool e água fria, cabendo à Sociedade de Temperança a divulgação ao público. O modelo organicista que predominou durante o século XIX para explicar o uso compulsivo de substâncias psicoativas passou ser consensual no século XX. A primeira refutação da teoria organicista ocorreu em 1919, Collis propôs o conceito de “doença da vontade”, usando o termo em inglês “addiction” (de origem latina), que designava “escravização dos cidadãos livres como forma de pagamento de suas dívidas na Roma Antiga”. Embora, não houvesse dicotomia entre mente e corpo surgiu explicações de “dependência física e psíquica”, que são criticadas pelo reducionismo e às vezes usadas pela operacionalidade didática. Mais recentemente, a dependência de substâncias psicoativas passou ser vista como uma síndrome comportamental, onde o indivíduo perde o controle de uso da substância (ver adiante Diagnóstico). Medicamentos sintéticos. O desenvolvimento de medicamentos sintéticos pelos laboratórios modernos farmacêuticos começou nos fins do século XIX e nos primeiros anos do século XX, onde a lista de medicamentos era extensa para não dizer espetacular! Paralelamente, o interesse pelas substâncias psicoativas tomou grande impulso com a descoberta da dietilamida do ácido lisérgico (LSD) em 1938, por Hoffman na Roche-Suíça. A onda crescente na Europa e nas Américas do emprego da LSD e alucinógenos correlatos inaugurou a Era psicodélica, terminologia que significava “expansão da mente” em todas áreas de atividades culturais (Foto a direita). Na década de 60, nos Estados Unidos, Timothy Leary, afirmava que o uso dessas substâncias alucinógenas conduzia a liberação da personalidade e mostrava a potencialidade da mente humana. Assim, influenciando colegas e jovens seguidores, funda a chamada “International Federation for Internal Freedom” (I.F.I.F.), lutando para liberdade espiritual e pelo uso livre da LSD. Após a organização de viagens psicodélicas por Leary e adeptos ocorreu sua demissão da Universidade de Harvard, deixando inconclusos seus trabalhos. No domínio do humor e do comportamento, a clorpromazina inaugura a serie dos chamados “neurolépticos” e antipsicóticos em 1953 e no final da década de 1950, os benzodiazepínicos ansiolíticos e hipnóticos e os antidepressivos tricíclicos (imipramina). Todas essas substâncias psicoativas são estudadas em Psicofarmacologia, especialidade noviça, mas com raízes nos tempos que o temperamento era considerado resultante da mistura (ou crase) de quatro humores do corpo humano, o sangue, a bílis, a pituíta e a atrabilis. Controle de Uso. No início do século XX, o consumo de álcool e tabaco e de outras substâncias psicoativas qualificadas como legais e

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ilegais passaram ser alvos de legislações e de controle de uso definido em tratados internacionais e de medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito. A mentalidade proibicionista da época gerou a Lei Seca de 1920 a 1933 nos Estados Unidos em relação ao álcool, que resultou em comercialização ilícita e violência, uma verdadeira “guerra às drogas” dos dias atuais!

Em contrapartida, Freud foi pioneiro no estudo do papel das substâncias psicoativas na produção do prazer e alivio da dor relacionadas a economia do libido. Em sua publicação “O mal estar na civilização” escreveu: “O serviço prestado pelos veículos intoxicantes nas lutas pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado, como um benefício quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido”. Não há dúvidas, que a busca do prazer através de substâncias psicoativas foi de grande importância econômica, social e cultural no século XX e continua sendo no século XXI.

Portanto, novas estratégias políticas de prevenção e tratamento devem ser aplicadas pontualmente, sem moralismo e baseadas nas necessidades de cada sociedade e visando enfrentar os desafios do incremento e alastramento de substâncias psicoativas de alto potencial de dependência no mundo atual. Maiores informações sobre o histórico, consultar o site do NEIP (http://www.neip.info/). DIAGNÓSTICO Do ponto vista de diagnóstico, a OMS (1994) define a síndrome de dependência como um conjunto de fenômenos cognitivos, comportamentais e fisiológicos, na qual a substância ou classe de substâncias são usadas a despeito de consequências emocionais adversas. O diagnóstico da dependência obedece a critérios estabelecidos pelos sistemas diagnósticos: ansiolíticos e hipnóticos e os antidepressivos DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição) da Associação Psiquiátrica Americana, (2013) e CID-10 (Classificação Internacional de Doenças, 10a edição) e (Classificação de transtornos mentais e de comportamento) da Organização Mundial de Saúde, (1992), estão sumarizados no quadro I.1 (ver adiante).

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Quadro 1.1 DMS-V Padrão mal adaptativo de uso de substância psicoativa, levando para prejuízo significante clinicamente, pela presença de menos dois ou três critérios nos últimos 12 meses. 1.

CID-10 Três ou mais critérios experimentados ou exibidos durante o período de ano.

Tolerância

1. Tolerância

2. Síndrome de Abstinência

2. Síndrome de Abstinência

3. Uso frequente de quantidades maiores ou por períodos mais prolongados do que o pretendido

3. Dificuldades no controle de uso da substância em termos de início, termino ou níveis de uso

4. Desejo persistente ou esforços mal-sucedidos para controlar o uso 5. Muito tempo é consumido em conseguir, usar ou recuperar-se do uso

4. Progressivo abandono de alternativo prazer ou interesse em favor do uso da substância ou muito tempo é despendido em atividades para obter, usar ou recuperar dos efeitos da substância

6. Forte desejo ( “fissura”) 7. Abandono ou redução de atividades sociais, ocupacionais ou familiares devido ao uso 8. Uso mantido apesar do reconhecimento de problemas físicos ou psicológicos persistentes ou recorrentes, causados ou agravados pelo uso 9) Uso em situações de risco

5. Uso contínuo da substância apesar de clara evidência de consequências prejudiciais físicas ou psicológicas 6. Um forte desejo ou sensação de compulsão para o uso da substância

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O sistema diagnóstico DSM-V é uma classificação estatística para dimensionar eventuais problemas nosográficos e, é usado para fins quantitativos de categorização. Nas últimas décadas, ocorreu no DSM-IV e V, transferência numérica dos critérios de tolerância e síndrome de abstinência para outros critérios relacionados ao uso compulsivo. O número de critérios encontrados nos indivíduos dependentes varia com a gravidade da dependência e o estágio do processo e a substância psicoativa usada. Assim, a dependência pode ser diagnosticada de grau leve pela presença 2 ou 3 critérios, moderada, 4 ou 5 critérios e grave de mais de 6 critérios nos últimos 12 meses. NEUROIMAGEM Os grandes e recentes avanços na tecnologia e metodologia vêm sendo conquistados com o uso das técnicas de neuroimagem que tem possibilitado obter imagens da estrutura cerebral e de funções correspondentes aos processos mentais. Em particular, os avanços nas imagens anatômicas e funcionais têm contribuído para o entendimento da fisiopatologia do abuso e dependência de substâncias psicoativas. De fato, a investigação da ocupação de tecidos-alvo por substâncias psicoativas no homem só foi possível após o advento das técnicas de radiotraçadores de PET (positron emission tomography; tomografia por emissão de pósitrons) e SPECT (single photon emission computerized tomography; tomografia computadorizada por emissão de fóton único) e a ressonância magnética nuclear que envolve três métodos: MRI (magnetic resonance imaging; ressonânciamagnética de imagem); fMRI (functional MRI; ressonância magnética funcional) e MRS (magnetic resonance spectroscopy; espectroscopia por ressonância. Por exemplo, imagens de SPECT evidenciam múltiplas áreas de hipofluxo sanguíneo cerebral em dependentes de cocaína após três semanas de abstinência.

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VULNERABILIDADE A DEPENDÊNCIA E FATORES MODIFICADORES Considerando-se as teorias que serão descritas adiante, poderíamos supor que a mera exposição à substância psicoativa seria o fator de risco crítico para o desenvolvimento da dependência. Entretanto, estudos epidemiológicos mostram que muitos indivíduos experimentam vários tipos de substâncias psicoativas por períodos variáveis de tempo, mas somente alguns desenvolvem a farmacodependência. Isso indica que fatores adicionais àqueles relacionados à interação entre a substância psicoativa e o organismo influenciam a progressão para o uso compulsivo. Muitas variáveis interagem para influenciar a probabilidade de que qualquer pessoa inicie o uso abusivo de substâncias psicoativas ou se torne dependente. Essas variáveis podem ser agrupadas em três categorias: a) substância psicoativa; b) indivíduo; c) ambiente. Substância Psicoativa Ambiente

Abuso e Dependência

Fatores (estresse)

Indivíduo

Ontogênese

Fig. I.1 - Fatores que influem o desenvolvimento da dependência. SUBSTÂNCIA PSICOATIVA. Em relação às substâncias podemos citar a disponibilidade, o custo e a via de administração como fatores importantes que podem influenciar o desenvolvimento da dependência.

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Neste sentido, quanto mais rápido o início do efeito, maior a probabilidade de associação entre a sensação de bem-estar e o comportamento de uso. Por exemplo, a cocaína é utilizada por via oral, nasal, pulmonar e intravenosa. Após a inalação de cocaína na forma de base livre (crack) observam-se concentrações plasmáticas semelhantes às fornecidas pela injeção intravenosa. O efeito é muito rápido e intenso. Dessa forma, os indivíduos que experimentam cocaína por via pulmonar por meio de inalação (crack) ou intravenosa têm maior probabilidade de se tornarem dependentes da substância. A inalação é também preferida pelos usuários de maconha e nicotina. Mais recentemente, a inalação tem sido utilizada também pelos dependentes de heroína para evitar a exposição a seringas contaminadas. Contudo, por convenção essas substâncias não são consideradas como inalantes (ver Capítulo VII). INDIVÍDUO. Com relação aos indivíduos, a variação interindividual nos efeitos das substâncias psicoativas é um fato bastante comum. Diferenças genéticas nas enzimas relacionadas aos processos de biotransformação e na resposta dos receptores às substâncias psicoativas podem contribuir para os diferentes graus de euforia e reforço positivo obtido por indivíduos diferentes utilizando a mesma substância psicoativa. Alguns autores atribuem ao fator genético de 40 a 60 % da vulnerabilidade à dependência (Foto a direita). Ontogênese. Outro fator importante é a fase da vida. O uso de substâncias psicoativas inicia-se frequentemente na adolescência. A adolescência é o período de transição gradual entre a infância e a maturidade. A puberdade é uma das várias alterações ontogênicas que ocorre na adolescência e é caracterizada pelas mudanças fisiológicas e neuroendócrinas que marcam a maturação sexual. Não há delimitação exata do período da adolescência em humanos, uma vez que nenhum evento marcante sinaliza seu início ou final. Além disso, a duração da adolescência pode ser influenciada por fatores sociocultural, econômico e nutricional, entre outros. O período

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entre 12 e 18 anos de idade é o mais comumente citado na literatura como adolescência em humanos. Adolescentes de várias espécies exibem comportamentos típicos desse período que incluem o aumento da interação social com seus pares, busca de novidades e sensações e o comportamento de risco. Estes comportamentos podem representar adaptações ontogênicas que possibilitam a aquisição das habilidades necessárias para atingir a independência da idade adulta. Entretanto, o comportamento de risco traz também alguns aspectos negativos, entre esses podemos citar o alto risco de gravidez não desejada, infecções por HIV e a experimentação de substâncias psicoativas. Levantamento realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas revela que 22,6% dos estudantes de Ensino Fundamental e Médio das capitais brasileiras já haviam experimentado algum tipo de substância psicotrópica, excluindo-se álcool e tabaco. O uso na vida de cocaína e crack atingiram 2,7 % entre esses estudantes. Vale ressaltar ainda que dos 22,6% que utilizaram essas substâncias, 65% encontram-se na faixa etária entre 10-18 anos. O temperamento e as características de personalidade foram identificados como fatores de vulnerabilidade ao abuso de substâncias psicoativas. A presença de distúrbios psiquiátricos como, a depressão, os transtornos de ansiedade e o obsessivo compulsivo, são frequentemente presentes em dependentes. A busca das substâncias de abuso nesses casos pode ter como objetivo o alívio da sensação de mal-estar. Contudo, o alívio dos sintomas é temporário e o uso repetido das substâncias também pode induzir o aparecimento de sintomas psiquiátricos. Ritmos circadianos. Os ritmos circadianos (do latim circa = cerca de, dies = dia) constituem uma característica de quase todos os organismos vivos. O ciclo da dependência tem sido relacionado à desorganização dos ritmos circadianos em animais e humanos. Geralmente, os dependentes têm interrupções no ciclo sono e vigília, nos hábitos alimentares, como também, em ritmos

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anormais da temperatura corpórea, pressão arterial e nos níveis hormonais. Essas interrupções nos ritmos circadianos são problemáticas e podem levar ao aumento da vulnerabilidade à dependência. AMBIENTE. Por fim, fatores ambientais e sociais têm um papel muito importante no abuso das substâncias e desenvolvimento da dependência às mesmas. Para alguns indivíduos, jovens principalmente, o uso de substâncias psicoativas pode significar uma forma de protesto contra a autoridade ou pode estar relacionado à ausência de outras fontes de obtenção de prazer. Estresse. Nos últimos anos, o estresse tem sido destacado como um fator importante na iniciação e manutenção do uso da substância psicoativa, assim como na recaída à sua utilização. Vários estudos clínicos demonstram que indivíduos dependentes relatam frequentemente a exposição a estímulos aversivos e estados negativos de humor como justificativa para o início, manutenção e recaída ao uso das substâncias psicoativas. A exposição ao estresse ou simplesmente a apresentação de imagens relacionadas a situações de estresse aumentam significativamente o desejo por cocaína e dessa forma o estresse poderia ser um fator desencadeador da recaída (ver, Capítulo II). ESTRATEGIAS DE PREVENÇÃO E TRATAMENTO Abordagens multidisciplinares. Atualmente, a dependência de substância psicoativa é vista como um fenômeno biopsicossocial, que inclui diversos aspectos econômicos, políticos e sociais ao lado dos sanitários que são discutidos nos meios científicos e na comunidade em geral, gerando mais polêmicas do que consensos em relação à prevenção e ao tratamento. Na tentativa de caracterizar a dependência, é muito importante a integração das abordagens neurobiológica, psiquiátrica e psicossocial. Nesta direção, a abordagem

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neurobiológica pode modificar profundamente a relação sociedade-indivíduo dependente e, consequentemente as estratégias de prevenção e tratamento. Como já foi comentada anteriormente, a análise dos fatores neurobiológicos relacionados à vulnerabilidade ao abuso e a dependência de substâncias psicoativas não pode ser restrita apenas às condições imediatas que cercam o indivíduo. Por exemplo, o fato de que a exposição ao estresse produz alterações duradouras no SNC e consequente modificação da resposta às substâncias psicoativas no decorrer da vida, é de extrema relevância para que medidas educativas de prevenção e tratamento possam ser iniciadas em fases mais precoces da vida dos indivíduos. Segundo, a Associação Psiquiátrica Americana (1994), a dependência se caracteriza pela transição da impulsividade para a compulsão. Assim, as alterações do controle de impulso se caracterizam por aumento da sensação de tensão ou estimulação antes de praticar o ato impulsivo (prazer, gratificação ou diminuição do tempo de praticar o ato). Em contraste, os transtornos compulsivos são caracterizados por ansiedade e estresse antes de praticar o comportamento repetitivo compulsivo. O modelo psiquiátrico tradicional preconiza o uso medicamentoso para aliviar a sintomatologia da dependência. A integração da abordagem psicodinâmica com a neurobiológica apresenta muitas evidências, principalmente no papel crítico dos sistemas desregulados de recompensa central e estresse. Khantzian e colaboradores (1985, 1997) admitiram que os indivíduos com predisposição ao uso de substâncias psicoativas podem ser tornar dependentes, devidos as suas dificuldades desenvolvimentistas, distúrbios emocionais, fatores estruturais (ego) e distúrbios do senso e do self. Vale lembrar que a abordagem psicodinâmica atual difere de uma literatura psicanalítica clássica que enfatiza os aspectos prazerosos e regressivos no uso de substâncias psicoativas. A abordagem psicodinâmica apresenta dois elementos críticos (disfunções emocionais e de autocuidados) como também dois elementos acessórios (disfunções de autoestima e de relações) que estão envolvidos na hipótese da automedicação proposta por Khantzian, na qual os indivíduos usam uma substância psicoativa específica para interagir com os estados afetivos dolorosos e transtornos psiquiátricos. Na prática clínica, Khantzian observou que os dependentes de heroína, desde muito cedo a utilizam no alívio de transtorno de ansiedade violenta e de sentimentos de raiva. Neste sentido, outros sofrimentos como de anedonia, anergia ou falta de sentimentos poderão ser aliviados através dos efeitos de psicoestimulantes. O elemento comum desta teoria é que cada classe de

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substância psicoativa pode servir de antídoto de estados disfóricos e age como substitutivo de um defeito na estrutura psicológica de tais indivíduos. No contexto psicossocial, a falta de autorregulação tem sido apontada como a origem dos comportamentos da dependência. Os elementos de autorregulação podem estar envolvidos em diferentes estágios da dependência de substâncias psicoativas, como também em outros comportamentos considerados compulsivos tais como jogar compulsivamente ou comer excessivamente (binge). Todas estas abordagens mostram que a caracterização do fenômeno da dependência continua sendo ainda um grande desafio atual. Segundo a nosografia psiquiátrica, a farmacodependência pode ser categorizada como uma entidade nosológica (transtorno mental), mais precisamente crônica, enquanto que na prática clínica pode ser vista como uma conduta toxicomaníaca, sem o status nosológico de “doença”. Dessa forma, recomenda-se que a dependência pode ser encarada como apenas “conduta”, onde a aceitação por parte do terapeuta do saber e valores do indivíduo no uso de substância psicoativa é fundamental na adesão (concordância) ao tratamento. Em síntese, a gênese da dependência é tridimensional, envolve a substância psicoativa com suas propriedades farmacológicas específicas, o indivíduo, personalidade e atitudes e o contexto social, onde ocorre a interação indivíduo-substância psicoativa. TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA As diversas abordagens são responsáveis pelas opções de tratamento para os dependentes de substâncias psicoativas. Os modelos terapêuticos de atendimento dos dependentes podem envolver didaticamente três etapas: 1) Desintoxicação e manutenção da síndrome de abstinência; 2) Farmacoterapia 3) Psicoterapia e outras terapias Esses modelos serão discutidos em maiores detalhes nos capítulos específicos dos grupos de substâncias psicoativas.

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Desintoxicação. O tratamento clínico da síndrome de abstinência tem como finalidade diminuir o desconforto sintomático da retirada da substância (depressão, ansiedade, “fissura”) e evitar danos à saúde do dependente. Nessa etapa, muitas vezes pode requer intervenção farmacológica, preferencialmente de medicação desprovida de potencial de dependência. A conduta é específica para cada substância e padrão de consumo da mesma, exigindo cuidados especiais com as substâncias que desenvolvem tolerância. O apoio psicoterápico é importante no início da desintoxicação que requer a duração de pelo menos uma semana para efetivação do tratamento. Farmacoterapia. A farmacoterapia envolve vários de tipos de tratamento medicamentoso da abstinência/dependência como da substituição, onde a metadona é a substância prototípica no tratamento da dependência de opioides com eficácia de 45 a 55% dos casos para interromper o uso da substância. Contudo, há queixas por parte dos usuários de efeitos indesejáveis da metadona em relação a substância original (heroína) e de ameaças de corte do suprimento da substância de substituição em situações de recaída ou suspeita de tráfico. Outros exemplos é o uso de emplastro ou goma de mascar de nicotina no tratamento do tabagismo. Vale mencionar, estudo preliminar de uso de cânabis em substituição ao crack com bons resultados, contudo não aceito amplamente por se tratar de substância qualificada como ilícita. A segunda modalidade é a bloqueadora, que é utilizada para a diminuição do desejo (“anticraving”) pela substância de abuso. Como exemplos, a bupripiona que é usada para redução da compulsão pelo cigarro (tabagismo) e a naltrexona que bloqueia efeitos da heroína e algumas propriedades reforçadoras do álcool. Na modalidade aversiva é usado o dissulfiram no tratamento do alcoolismo. Experimentalmente, a modalidade imunoterápica está

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envolvida na produção de anticorpos monoclonais e vacinas para o uso abusivo de estimulantes e nicotina. Deve-se ressaltar que é questionável o tratamento centralizado apenas no alívio de sinais e sintomas da síndrome de abstinência, devido a presença de comorbidades de transtornos psiquiátricos (ansiedade, depressão, mania) que estão frequentemente associados à dependência, exigindo atenção especial durante o tratamento. Nos EUA, a prevalência mensal de comorbidades associadas ao alcoolismo foi estimada em 28% para os transtornos do humor, 23% para os transtornos da ansiedade e 39% para os distúrbios de personalidade. Psicoterapia. A psicoterapia envolve vários tipos modalidades que serão situadas como opções à prevenção e tratamento. Assim, a psicoterapia individual é empregada na abordagem psicológica de casos mais complexos ou situações de inadequação de trabalho de grupo. A formação psicodinâmica profissional é requerida para eventual reestruturação da personalidade do usuário. A psicoterapia de grupo oferece a oportunidade da discussão de aspectos da dependência entre o terapeuta e o grupo. Assim, o dependente pode aprender novas maneiras de lidar com sua dependência e de compartilhar nos contatos interpessoais as mesmas, angústias, frustrações e expectativas. A psicoterapia familiar está indicada em situação de conflito, devido ao uso de substância psicoativa por um de seus membros, possibilitando a melhoria da comunicação nas relações interpessoais familiares. A abordagem familiar é fundamental durante o tratamento do dependente, quando o funcionamento familiar está subjacente à dependência. Nesta situação, a família pode ser vista como recurso de cura, onde a abordagem procura estabelecer a necessidade de apoio dos familiares tanto ao dependente e como ao modelo terapêutico programado. Entre outras modalidades de terapia, destaca-se a comportamental, que considera o uso de substância psicoativa como comportamento aprendido. O indivíduo pode extinguir esse comportamento se mudar seu comportamento frente aos episódios de compulsão (fissura) e recaída. Além disso, é importante evitar outros usuários e locais de uso e estabelecer alternativas

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de prazer. Na terapia cognitiva, o objetivo principal é a correção de pensamentos automáticos do indivíduo. Estas terapias mostram boa eficácia em alguns tipos de dependentes, mas corre o risco de insucesso se a abordagem não visar o indivíduo em sua totalidade. A terapia ocupacional é recurso terapêutico complementar que possibilita o desenvolvimento da comunicação não verbal (4). Os grupos de autoajuda (Alcoólicos Anônimos, Narcóticos Anônimos, dentre outros) são constituídos de indivíduos que discutem os problemas da dependência e supostamente os tenham superado, visando a ressocialização dos dependentes. PREVENÇÃO DA DEPENDÊNCIA O incremento da violência relacionado ao tráfico de substâncias psicoativas qualificadas de ilícitas e ao uso abusivo tornou-se a tônica de intervenções repressivas e de controle no âmbito internacional (ver, site NEIP). A partir do Congresso de Xangai, em 1909 e de outras convenções multilaterais realizadas ao longo das décadas foram elaboradas restrições ao consumo e produção de substâncias psicoativas como a cocaína, heroína e morfina. Estas medidas foram regulamentadas na Convenção Única da ONU em 1961 sobre Psicotrópicos em 1961. No Brasil, a legislação sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e ao uso de substâncias de abuso (entorpecentes) foi incluída no rigor da Lei no. 6368/1976. Em 1981, o controle de substância de abuso e psicotrópicos por ações nacionais e internacionais foram definidos na Resolução de 36/168 da Assembleia Geral das Nações Unidas, intitulada “Estratégia Internacional do Controle do Abuso de Drogas”. Esse tipo de vertente foi declarado pelo governo de Richard Nixon em 1972, com a denominação de “Guerra às drogas” que se caracterizou por adotar posturas repressivas,

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alarmantes e populistas, visando ao consumo zero de substâncias psicoativas. Essas posturas tornaram-se conhecidas em campanhas educativas como “Diga não às drogas”. O modelo de banimento adotado de substâncias psicoativas ilícitas pelo governo dos EUA mostrou-se uma estratégia de política externa, pois identifica os países produtores e consumidores dessas substâncias e as rotas de tráfico, dentre os quais o Brasil. Entretanto, intervenções repressivas e de controle não promoveram a erradicação do consumo de substâncias psicoativas qualificadas de ilícitas ao longo das décadas. Pelo contrário, foi instaurado um mercado negro que gerou cerca de US$322 bilhões com a venda de substâncias psicoativas ilícitas, segundo a UNODC. Ademais, produziu a violência trazida pelo tráfico e os prejuízos à saúde dos usuários pelas substâncias adulteradas. Em contraposição, a política proibicionista, emerge desde meados dos anos 1980, uma postura reformista conhecida como “reparação de danos”, visando reduzir os prejuízos de ordem biológica, econômica e social, decorrentes do uso e abuso de substâncias psicoativas. A reparação de danos objetiva a não erradicação definitiva do consumo de substâncias psicoativas e prioriza a saúde do usuário. As políticas de reparação de danos foram motivadas pelo incremento de casos de AIDS e de hepatites virais entre os usuários de substâncias injetáveis. Nesta direção, um programa de trocas de seringas e agulhas para diminuir os riscos de contaminação pelo vírus HIV foi instituído, em 1984, para os usuários de heroína na cidade holandesa de Roterdã. Além disso, o programa foi ampliado com serviços de determinação de pureza da substância adquirida pelos usuários e de prescrição de metadona em substituição a heroína. Programas similares aos da Holanda foram desenvolvidos em outros países da Europa e Oceania e até mesmo no Brasil, quando em 1990, a Prefeitura da cidade de Santos programou sob muita resistência política, projeto de trocas de seringas e agulhas.

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Outros projetos desenvolvidos no Rio de Janeiro e Salvador e a realização em São Paulo, “9th International Conference on the Reduction of Drug Related Harm”, no ano 1999, ampliou a participação do Brasil no cenário internacional da redução de danos. Neste sentido, os adeptos das políticas de reparação de danos preconizam maior atenção às estratégias já empregadas pelos usuários e tentam minimizar os efeitos indesejáveis do uso de substâncias psicoativas e ao mesmo tempo procuram mobilizar as redes de sociabilidade existentes em vários países para o álcool e tabaco. Em resumo, as duas vertentes sobre o controle de uso das substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas não estão bem estabelecidas no Brasil. Por exemplo, em relação ao tabagismo obteve se bons resultados relacionados a diminuição de fumantes no país. Quanto as substâncias de abuso ilícitas, a cocaína e especialmente o crack os resultados são insatisfatórios em face ao aumento de usuários e ampla disseminação da substância face o Brasil ser país de passagem na rota do tráfico. Níveis de prevenção. A prevenção ao uso indevido de substâncias psicoativas ocorre em três níveis, sendo considerados fatores determinantes a comunidade alvo e as características das intervenções. A prevenção primária tem como objetivo a diminuição do uso esporádico de substâncias psicoativas e de evitar novos casos de uso (OMS, 1992). Dentre os tipos de intervenção usada, a divulgação da informação, geral e isenta sobre as substâncias psicoativas é mais eficaz do modelo alarmista e terrorista que foi muito utilizado em nosso meio. Na prevenção secundária, a identificação dos fatores de risco é muito importante para sensibilizar os indivíduos que fazem uso ocasional de substância psicoativa na eventual mudança de comportamento, através novas escolhas, evitando assim, a ocorrência de complicações decorrentes do uso da substância.

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As ações preventivas terciárias procuram estabelecer estratégias mais efetivas na comunidade em geral, visando à reintegração social e melhoria da qualidade de vida dos usuários na família e trabalho (OMS, 1992). Nessas ações preventivas são incluídas muitas vezes intervenções terapêuticas relacionadas ao abuso de substância psicoativa como complicações clínicas emergenciais (superdosagens) e casos de infecções virais (AIDS e hepatite) e intervenções psicoterápicas básicas (combate ao estigma, baixa autoestima e medo). As estratégias de prevenção de uso indevido de substâncias psicoativas são complementadas através de outras medidas como, informação à comunidade, aumento do preço das substâncias consideradas lícitas, como álcool e tabaco, redução da propaganda comercial, repressão ao tráfico, restrição à venda, aumento de impostos sobre as substâncias lícitas e promoção com esses impostos de tratamentos para a comunidade.

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Capítulo II COMO ENTENDER A DEPENDÊNCIA A dependência de substâncias psicoativas é um fenômeno biopsicossocial que pode ser enfocado sob uma perspectiva da análise comportamental, avaliando-se o potencial de abuso e dependência pelos seus efeitos comportamentais e, indiretamente, pela sua ação no sistema nervoso central (SNC). Os determinantes sociais, culturais, de personalidade e familiares da dependência de substâncias psicoativas, embora sejam extremamente importantes, já foram discutidos em parte no capítulo anterior. Sistemas de recompensa e de aversão. Os recentes progressos sobre o entendimento dos mecanismos de dependência são resultantes de estudos em modelos experimentais de dependência de substâncias psicoativas específicas tais como, álcool, morfina e cocaína. As substâncias psicoativas atuam em sistemas neurais que evoluíram a serviço de funções biológicas primárias. Estes sistemas são os substratos neurais dos comportamentos de aproximação e evitação a um determinado objetivo e são denominados, respectivamente, de sistemas de recompensa e de aversão. Recompensas naturais, como a comida e a água, os estímulos dolorosos e, secundariamente, as substâncias psicoativas, ativam tais substratos. Estes construtos ou objetos psicológicos de modelos estão operacionalmente relacionados ao reforço positivo e negativo ou motivação.

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CÓRTEX PRÉ-FRONTAL

HIPOCAMPO

AMIGDALA

GLU

NÚCLEO ACÚMBENS

ATV

GABA OPIOIDE

Fig.-II.1 - Representação esquemática do sistema de recompensa mesocorticolímbico, projeções dopaminérgicas (DA), glutaminérgicas (GLU), GABAérgicas (GABA) e opioidérgicas. De acordo com os princípios de reforço, uma substância mantém a autoadministração pelas suas consequências positivas (efeitos de natureza prazerosa), bem como para aliviar as consequências negativas decorrentes de sua ausência no organismo, sintomas de retirada.

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Existem, entretanto, evidências mostram que as substâncias de abuso iniciam a autoadministração pelas suas propriedades reforçadoras positivas, as quais serão mencionadas mais adiante. O constructo da motivação apresenta varias definições, segundo as abordagens comportamentais. Do ponto de vista neurocomportamental, a motivação é o ponto de ajuste do processo neural que elicia ações em relação a uma específica classe de objetos ambientais. A efetividade das substâncias psicoativas de eliciar comportamentos de procura, ou mesmo em manter respostas que as produzam depende, em parte, da ativação de sistemas de recompensa no SNC. As evidências experimentais apontam que o sistema dopaminérgico mesolímbico está envolvido nos mecanismos de recompensa. Este sistema tem seus corpos celulares na área tegmental ventral e seus axônios ao longo do feixe prosencefálico medial, com projeções até o núcleo acumbente e áreas límbicas e corticais, particularmente o córtex pré-frontal (Fig. II.1), Outra estrutura extremamente importante, que participa nos mecanismos de recompensa, é o hipotálamo lateral, que será discutido adiante. Há também no SNC diferentes sistemas aversivos, que são os substratos comportamento de evitação a um determinado alvo, dos quais faz parte, por exemplo, a substância cinzenta periaquedutal, a qual está envolvida na mediação da dor e da dependência física da morfina e heroína. Em síntese, os estudos de efeitos comportamentais de substâncias psicoativas têm muito bem contribuídos para o desenvolvimento de agentes psicoativos com baixo potencial de dependência, de melhores estratégias no tratamento de dependentes e para a compreensão dos fenômenos biológicos envolvidos no uso abusivo de substâncias psicoativas.

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MODELOS EXPERIMENTAIS O estudo dos sistemas de recompensa em animais é realizado através do condicionamento clássico ou operante, manipulando-se os estímulos apresentados e avaliando-se os parâmetros comportamentais resultantes. Estes procedimentos permitem abordagem neuroanatômica e neurofarmacológica das vias de recompensa e, por decorrência, dos mecanismos de dependência de substâncias psicoativas. Por exemplo, nos esquemas de autoadministração intravenosa (i.v.) de substâncias psicoativas com alto potencial de abuso em humanos, o animal emite uma resposta operante, geralmente pressionar a barra numa caixa de condicionamento operante, a qual produz a liberação contingente de uma injeção de substância através de um cateter cronicamente implantado i.v. (Fig. II.2). O modelo de autoadministração intravenosa de substância psicoativa é considerado preditivo de abuso potencial.

Modelo de autoadministração

i

Intravenosa

Equipamento de

catét ererr

progam ação progrprogramação barraa aa

Fig. II.2.-Representação esquemática do modelo de autoadministração intravenosa.

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Uma poderosa recompensa e forte evidência experimental dos sistemas de recompensa é a estimulação cerebral direta em determinadas áreas, definida operacionalmente como reforço cerebral, a qual pode ser alterada pela administração de substâncias psicoativas, bem como por processos relacionados à ingestão de alimentos. Curiosamente, ratos e macacos Rhesus, tendo opção de escolha entre duas barras que liberam reforços diferentes, preferem a da estimu1ação elétrica do feixe prosencefálico medial e não aquela que libera a comida indispensável à sua sobrevivência. Esse caráter compulsivo poderia em parte, explicar a participação de sistemas de recompensa no consumo de substâncias de abuso. Com relação aos sistemas aversivos, responsáveis, em parte, pela dependência física, as diferentes classes de substância de abuso aparentam ter mecanismos independentes entre si, que foram elucidados, por exemplo, para os opioides. Os estudos dos efeitos comportamentais de substâncias psicoativas muito têm contribuído para o desenvolvimento de agentes psicoativos com baixo potencial de dependência, de melhores estratégias no tratamento de dependentes e para a compreensão dos fenômenos biológicos e comportamentais. Os modelos experimentais ou animais mais promissores nesta área de pesquisa são aqueles que avaliam o efeito recompensador ou aversivo da substância na ausência da mesma. Com isso se exclui possíveis efeitos motores ou inespecíficos da substância psicoativa que mascaram o desempenho do animal. Nestas manipulações, se incluem os modelos de escolha, as preferências e aversões condicionadas e o modelo da lei da igualação.

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Um exemplo de modelo escolha é a preferência condicionada por lugar que consiste de um treino de condicionamento, no qual estímulos sensoriais distintos e inicialmente neutros (dois ou três lugares diferentes, (Fig. II. 3). Os aninais são pareados alternadamente com estímulos incondicionados, administração de substância (US-1) ou de veículo (US-2), adquirem características desses estímulos incondicionados e transformam-se em estímulos condicionados (CS-l e CS-2) ao eliciarem respostas similares àquelas produzidas pelos estímulos incondicionados (US-l e US-2). O valor de US-l em relação a US-2 é avaliado numa situação de teste na ausência da substância.

Fig. 1 - Caixa de PCL AVS projetos ®

Fig. 2 – Caixa PCL AVS projetos® Fig. II.3- Caixa de preferência condicionado por lugar (PCLAVS projetos  ).

TEORIAS DA DEPENDÊNCIA O processo de alteração da homeostase decorre do fenômeno denominado genericamente plasticidade neural. Os mecanismos da neuroplasticidade estão relacionados à capacidade das substâncias de induzir alterações na liberação de neurotransmissores, na densidade de receptores ou nos processos de acoplamento e transdução das vias neurais afetadas pelas mesmas.

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Com o desenvolvimento da tolerância o organismo requer a administração continuada da substância psicoativa para manter as suas funções. Quando ocorre suspensão abrupta do uso da substância psicoativa, expressa seu estado de desequilíbrio dando origem à síndrome de abstinência. Com base nessas observações foi proposto que indivíduos dependentes fisicamente manteriam o uso da substância psicoativa para evitar o desconforto da retirada, dando origem assim à teoria do reforço negativo. Teoria do reforço negativo. A observação de que algumas substâncias psicoativas que produzem dependência, como a cocaína e a anfetamina, não apresentavam a síndrome de abstinência clássica gerou as primeiras tentativas de modificação da teoria do reforço negativo. Assim, em 1965 foi introduzido o termo dependência psíquica que seria extensivo a todas as classes de substâncias psicoativas, inclusive àquelas que não apresentavam a síndrome de abstinência clássica. Entretanto, mesmo com a demonstração de que todas as substâncias psicoativas apresentam síndrome de abstinência e, portanto, induz dependência física, a teoria do reforço negativo apresenta várias limitações para explicar a farmacodependência. Por exemplo, o tratamento da síndrome de abstinência é pouco eficaz para tratar a dependência. Teoria do reforço positivo. Assim, Wise e Bozarth (1987) propuseram que todas as substâncias psicoativas que induzem dependência têm em comum a propriedade de causar efeitos euforizantes ou prazerosos e, dessa forma, atuariam como reforçadores positivos. A teoria do reforço positivo propõe que a autoadministração da substância psicoativa é mantida por causa do estado que ela produz e não porque ela alivia um estado de desconforto. O efeito reforçador positivo das substâncias psicoativas tem sido amplamente demonstrado em modelos experimentais baseados nos princípios do condicionamento clássico (preferência condicionada por lugar) ou operante (autoadministração.. Neste sentido, foi demonstrado que nicotina, cocaína, anfetamina, fencanfamina, Δ-9-THC, opioides e etanol induzem preferência condicionada por lugar e autoadminstração. Apesar das substâncias psicoativas possam produzir estados afetivos de prazeres extremamente intensos é difícil que essa propriedade isoladamente seja suficiente para explicar a dependência. Além disso, as consequências emocionais negativas do uso continuado dessas substâncias frequentemente se sobrepõem ao prazer obtido com as mesmas.

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Sensibilização comportamental A fim de preencher a lacuna deixada pela teoria do reforço positivo, Robinson e Berridge (1993) propuseram que o uso compulsivo das substâncias psicoativas resultaria de Uso Experimental/reforço positivo processos neuroplasticidade causados pelo uso repetido (“Gostar”) das mesmas. É amplamente conhecido o fato de que os efeitos das substâncias psicoativas se modificam no ↓ decorrer do uso prolongado. Essas alterações Uso Compulsivo/sensibilização expressam-se como tolerância ou sensibilização (“Querer”) comportamental. De acordo com Robinson e Berridge (1993; 2001) além de mediar a sensação subjetiva de prazer, a DEPENDÊNCIA dopamina regularia também o impulso motivacional e a Tolerância ← Abstinência atenção a estímulos relevantes, incluindo os estímulos reforçadores. O impulso motivacional pode ser descrito em termos de “querer” enquanto a avaliação “gostar”, Recaida . assim, parece que o “gostar” pode ser dissociado do “querer” e que a dopamina pode influenciar esses parâmetros de formas diferentes (Fig II.4, acima). . Segundo Robinson e Berridge (1993; 2001), as substâncias psicoativas produziriam sensibilização do sistema dopaminérgico e isto tornaria os estímulos (uso da substância psicoativa e comportamentos relacionados) altamente relevantes, atrativos e desejados. Assim, com o uso repetido, a substância psicoativa e os estímulos associados tornam-se progressivamente mais atrativos e capazes de controlar o comportamento. Com o uso prolongado, o “querer” evolui para o desejo obsessivo (“fissura”) que se manifesta pelo comportamento de compulsão pela substância.

Outras teorias. Cabe assinalar o modelo alostático proposto por Koob e colaboradores, onde a alteração do ponto de ajuste (set point) de funcionamento dos sistemas motivacionais estaria associada à transição do uso controlado da substância de abuso para dependência .. Todas essas teorias isoladamente não são capazes de explicar a etiologia da dependência. Considerando a complexidade do fenômeno da dependência, mais de cem teorias etiológicas diferentes foram agrupadas em cinco categorias por West (2001). Mais recentemente, Wise e Koob (2014) abordaram o desenvolvimento e manutenção da dependência de substâncias psicoativas, segundo as teorias de reforço positivo e negativo.

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PERSPECTIVAS EM MODELOS ANIMAIS E HUMANOS As substâncias psicoativas de abuso compartilham de propriedades comuns, classicamente observadas em modelos animais e humanos. Entretanto, diferentes vertentes ressaltam que em humanos muitos fatores adicionais, além do reforço positivo, são relevantes no desenvolvimento de farmacodependência. Por exemplo, sugere-se que o ambiente, as atitudes, as atribuições, as expectativas, o estado emocional e outros eventos relacionados à vida são determinantes do uso das substâncias psicoativas. Ao contrário, do que se poderia supor a avaliação experimental do potencial não exclui ou invalida a abordagem social e psicológica da dependência. Assim, foram propostos modelos para explicar o desenvolvimento da dependência em humanos que considera todos os fatores citados acima como variáveis modulatórias que atuam modificando a eficácia reforçadora da substância psicoativa. A relevância dos processos de condicionamento na farmacodependência tem despertado interesse no desenvolvimento de modelos que possam ser adotados em seres humanos. Assim, modelos análogos à preferência condicionada de lugar vêm sendo desenvolvidos em laboratório para avaliar o condicionamento por substâncias psicoativas em humanos. Nestas pesquisas, os voluntários são expostos aos pareamentos de um estímulo neutro com a administração da substância em estudo. A ideia é observar a aquisição de respostas condicionadas sob condições controladas e a maneira pela qual se expressam. Em geral, estes modelos postulam que os eventos associados à administração ou ao efeito de uma substância tornam-se estímulos condicionados (EC) que eliciam uma resposta condicionada (RC) relacionada ao comportamento de uso da substância. Todos estes modelos

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concordam em que as respostas condicionadas podem prover parte da motivação para a autoadministração da substância. Por exemplo, situações ambientais onde os indivíduos utilizam a substância psicoativa ou instrumentos usados na autoadministração podem atuar como sinais da injeção da substância e de seus efeitos subsequentes, eliciando o comportamento de busca do agente. Este fato é útil para a explicação do grande número de recidivas após períodos de tratamento ou de abstinência espontânea. De acordo com os modelos de condicionamento, o encontro com sinais ambientais do uso de substância elicia o comportamento de busca ou sinais e sintomas da síndrome de abstinência. Como a maioria dos programas de tratamento não se preocupa em reduzir a resposta aos estímulos relacionados ao uso da substância psicoativa, inclusive removendo o paciente do contato com a maioria dos eventos associados a esta situação, respostas condicionadas podem ser eliciadas ao final do tratamento quando o dependente volta a ter contato com as condições nas quais adquiriu a dependência. Assim, o ambiente natural do indivíduo pode constituir situação de risco para a reincidência. Entretanto, métodos de tratamento vêm sendo desenvolvidos levando em conta a importância do condicionamento na dependência, incluindo procedimentos de extinção da resposta condicionada. Estes procedimentos são realizados em condições controladas, nas quais vários estímulos associados ao uso da substância são apresentados ao paciente, até a extinção da resposta condicionada. Contudo, nem sempre a situação laboratorial será transposta à vida cotidiana do paciente. Esta abordagem ressalta a vantagem do tratamento ambulatorial dos pacientes, permitindo a este o confronto com o estímulo sob qual o uso da substância psicoativa ocorreu, o que facilita a extinção do comportamento.

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Em síntese, essa discussão evidencia os avanços conseguidos na compreensão do fenômeno da dependência, baseados na abordagem comportamental, que prioriza o potencial reforçador das substâncias psicoativas e os processos de condicionamentos no desenvolvimento da dependência. A partir da demonstração destes fatos em modelos animais, é possível a generalização para os seres humanos, o que amplia as possibilidades de programas de prevenção e tratamento.

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Capítulo III COCAÍNA, ANFETAMINA E CAFEÍNA

As tentativas de melhorar determinadas atividades humanas, através do aumento da performance, criaram e mantêm um grande mercado para as substâncias estimulantes, sendo a cafeína a substância psicoativa mais consumida no mundo atual. Por outro lado, cocaína e anfetamina são mais vistas pelo potencial de abuso e dependência. Histórico do Uso, Abuso e Dependência. Desde a Antiguidade os povos fizeram uso de plantas contendo princípios ativos, com possibilidade de modificar o estado de humor das pessoas. A princípio, a cafeína do café (Coffea arabica) e do chá (Thea sinensis) provocou os mesmos clamores de indignação social que a nicotina do fumo recebeu, quando foi introduzida como prática social no século XVI . Até fins do século XIX, a cafeína era o único psicoestimulante suave disponível em muitas bebidas populares (café, chá, guaraná). Na ocasião, que foram introduzidos os preparados à base de coca e cocaína nos Estados Unidos da América do Norte (EUA) e na Europa.

A cocaína é um princípio ativo da coca (Erythroxylon coca) que tem sido usada ao longo da história como estimulante e formulada em tônicos e preparações antifadiga e de manutenção do desempenho

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O xarope a base de coca-cola, contendo extratos de folha de coca (cocaína) e de noz de cola africana (cafeína) foi formulado inicialmente pelo farmacêutico e médico John Pemberton em 1886. Em 1903, a formulação de cocaína como ingrediente de refrigerante do tipo coca (Coca-Cola) foi proibida por lei nos EUA. Cabe lembrar que, o breve entusiasmo de Freud (1884) pelo uso da cocaína no tratamento de transtornos psiquiátricos, que se modificou devido ao insucesso terapêutico pelo aparecimento de surtos psicóticos durante o tratamento. No século passado, a forma de base livre da cocaína (crack) foi desenvolvida e passou ser popular pelo uso recreativo. Em meados da década de 80, onde surgiram as primeiras preocupações com respeito à dependência da cocaína, que levaram à imposição de severas restrições ao seu uso. No Brasil e outros países, a fencanfamina, foi comercializada como energizante (Reactivan®) de venda livre e usada como substitutivo da cocaína em proporção epidêmica, ocasionado a sua retirada do mercado farmacêutico. É preocupante o uso abusivo atual de cocaína e derivados (crack, óxi e merla) em nosso meio. As propriedades psicoestimulantes da anfetamina foram descritas no início do século XX por Gordon Alles, que pesquisava um substituto mais potente para o descongestionante, efedrina. Só na década de 30 é que as anfetaminas, potentes estimulantes sintéticos, foram introduzidas no arsenal terapêutico. As substâncias constituem um grupo de fármacos que produzem elevação do estado de ânimo, aumento da atividade motora, diminuição da fadiga, redução do apetite, além de abolir o sono. Durante a II Guerra Mundial, as anfetaminas foram usadas por pilotos e demais combatentes como fármacos que eliminavam a sonolência e a fadiga; junto com outras substâncias estimulantes (cânfora e pentilenotetrazol), que foram utilizadas no tratamento das depressões, sem grandes resultados, uma vez que os seus efeitos eram inconsistentes e acompanhados de irritabilidade, inquietação e grande tendência à dependência. A anfetamina e seus derivados produzem euforia e apresentam potencial de abuso e dependência. No fim da segunda Guerra Mundial e meados dos anos 50 (19451955), ocorreu uma verdadeira epidemia de uso da metanfetamina (Perventin) no Japão, sendo estimado o abuso em mais de 500.000 usuários da substância. Nos anos 80, a produção do cristal de metanfetamina, cujo isômero D é conhecido nos EUA como ice, devido à semelhança ao cristal de gelo tornou-se popular pelo fato da substância ser fumada.

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No ano de 2002, foi estimado uso de metanfetamina em 12 milhões de indivíduos nos EUA. A prevalência é elevada na Inglaterra, onde o uso de anfetamina é de 12% comparado à média de 6% entre população adulta de países europeus COCAÍNA Alcaloide obtido das folhas da coca (Erythroxilon coca) encontrada na Bolívia, Peru e Equador. O sal cloridrato de cocaína é um pó cristalino, branco, de sabor amargo, que pode ser utilizado pelas vias via nasal, oral, subcutânea e intravenosa.

Erythroxylum coca

Fig, III.1 Folhas e flores da coca (Erythroxylum coca) e a fórmula estrutural da cocaína. A cocaína na forma de base livre é denominada (crack) devido ao som de estourar durante o processo de cristalização. Nas ruas, o crack é comercializado ilicitamente a custo relativamente baixo em condições de refino grosseiro (basuco) ou misturado a cânabis (pitilho ou píti), o que constitui fator de ampla disseminação da substância. Atualmente, consumo de crack se alastra em proporção epidêmica nas classes, C, D e E da população brasileira.

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA A cocaína tem alto potencial de abuso e a sua dependência é muito bem documentada. Segundo, relatório mundial de substância de abuso apresentado em 2006 pelo Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime (UNODC) estima-se que 13,4 milhões de indivíduos (0,3% da população mundial entre 15 e 64 anos) fizeram uso de cocaína no ano pesquisado. No Brasil, 2,3% da população já fizeram uso na vida de cloridrato de cocaína e 0,4% já fizeram uso de “crack”. A prevalência de uso das substâncias é significativa, segundo UNODC (2013-2015). O consumo de cocaína tem sofrido concorrência de outras substâncias de abuso sintéticas como ecstasy em alguns países. Entretanto, esse fato não foi ainda observado no Brasil. Os diversos padrões de uso e de vias de administrações da cocaína produzem euforia, aumento da resistência à fadiga, sensação de bem-estar, anorexia, formigamento da pele, aumento da atividade mental, sentimento de superioridade e estimulação da libido. Doses elevadas podem desencadear distúrbios digestórios, isquemia com irritação da mucosa nasal que pode acarretar a perfuração do septo nasal, alteração da percepção do tempo e do espaço, comportamento estereotipado, ilusões cinestésicas, alucinações visuais, táteis e auditivas, comportamento agressivo e atos antissociais, crises convulsivas e depressão. Outros riscos da utilização de cocaína são: arritmias cardíacas, isquemia do miocárdio, miocardite e vasoconstrição cerebral. O uso prolongado de cocaína resulta em diminuição da libido e transtornos mentais como ansiedade, depressão e psicose. Embora alguns desses transtornos possam estar presentes (comorbidades) antes do uso de cocaína, muitos deles se desenvolvem no decorrer do uso da substância. A sensibilização comportamental resulta do uso intermitente de cocaína e pode ser evidenciada pela ocorrência de hiperatividade comportamental. Ao contrário, a tolerância parece ocorrer para o efeito euforizante; assim, usuários de cocaína frequentemente relatam que é necessário o aumento da dose ao longo do tempo para manter a intensidade do efeito euforizante. A sensibilização aos efeitos psicoestimulantes da cocaína parece ser responsável

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pelo desenvolvimento de sintomas paranoides quando administrada cronicamente. Por isso, os usuários de crack são chamados de “noias”, manifestando ideias persecutórias em relação aos policiais em serviço ou pelo roubo de suas “pedras” por alguém. Esses pensamentos estão geralmente associados a violência e conflitos sociais. Síndrome de Abstinência. A interrupção abrupta do uso de cocaína geralmente causa sintomas de abstinência, tais como disforia, depressão, fadiga, sonolência, bradicardia e desejo intenso pela cocaína (“fissura”). No caso de usuários de crack a “fissura” quase sempre se confunde ao mesmo tempo com a euforia. A duração da síndrome de abstinência é de 1 a 10 semanas. Em pacientes ambulatoriais de uso compulsivo foram identificadas várias fases com variação na duração e intensidade de sintomas. A primeira fase (ruptura) com duração de 4 a 6 ou mais dias caracteriza-se por intensa disforia e completa anedonia; a intermediária com duração de 1 a 10 semanas predominando diminuição de energia, disforia, falta de motivação e aumento do desejo pela cocaína e por último a fase de extinção, onde desejo pela substância pode continuar por meses ou anos após a remissão de outros sintomas da abstinência. Tratamento. A síndrome de abstinência da cocaína é geralmente suave, sendo assim a desintoxicação não é problemática. O maior cuidado reside em auxiliar o usuário no controle da compulsão à cocaína. Isso pode ser feito de modo semelhante aos programas de reabilitação dos Alcoólicos Anônimos ou através de terapia comportamental de reforço, onde os testes de ausência de cocaína na urina dos usuários indicam significante progresso no tratamento. Além disso, a medicação com antidepressivos é indicada para os sintomas depressivos e risco de suicídio. Cabe assinalar a ineficácia dos tratamentos oferecidos pelos serviços públicos de saúde aos usuários de crack em nosso meio. A utilização de agonistas e antagonistas dopaminérgicos ou serotoninérgicos para o tratamento da dependência à cocaína estão em fase de investigação, mas não tem ainda apresentado bons resultados. Ensaios clínicos com agentes glutamatérgicos, como o modafinil, têm sido eficazes no prolongamento da abstinência à cocaína.

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Os agentes GABAérgicos (baclofen, topiramato, tiagabina, e vigabatrina) e dissulfiram melhoram clinicamente os sintomas dos usuários, mas necessitam ser confirmados em população mais ampla de indivíduos. Fármacos que inibem os transportadores de cocaína e vacina para produção de anticorpos contra cocaína são promissores, porém estão em fase de teste. ANFETAMINA A anfetamina é uma amina simpatomimética de ação indireta, encontrada sob três formas: dextrógira (dexanfetamina), levógira (levanfetamina) e racêmica (dl-anfetamina) (Fig.III.2).

Fíg. III.2- Fórmula estrutural da anfetamina. Possui ação central e periférica α e β-adrenérgica. A ação periférica é mais notada para levanfetamina e dl-anfetamina e fraca para a dexanfetamina. Quanto à ação central, ocorre uma situação Os anfetamínicos usados abusivamente são: anfetamina e seus derivados (dextroanfetamina, metanfetamina, metilfenidato, fenmetrazina e dietilpropiona). Esses compostos promovem efeitos subjetivos similares aos da cocaína.

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A metanfetamina (cristal, ice) a mais potente, é de mais fácil aquisição no mercado ilícito e, por essa razão, a mais usada por via intravenosa ou inalatória (Fotos a direita).

Recentemente, foi observado aumento significativo no consumo de metilfenidato em suas formulações farmacêuticas (Foto a esquerda), devido à exacerbação de casos diagnosticados como síndrome da hiperatividade e pelo uso abusivo em usuários que desejam melhorar o desempenho em atividades profissionais ou festas (raves).

Os anorexígenos anfetamínicos (dietilpropiona e femproporex), prescritos na redução do peso corpóreo, sendo usados abusivamente, com a denominação de “rebites”. Os motoristas usam os rebites para permanecer em vigília durante longas viagens noturnas. Quando cessa o efeito estimulante da substância podem ocorrer graves acidentes nas estradas devido ao cansaço e sono dos motoristas. A prevalência anual de uso no mundo de anfetamínicos atingiu 0,5 % da população (25 milhões de pessoas) no período compreendido entre 2004 a 2005. No Brasil, o uso na vida dessas substâncias atinge 1,5% da população (CEBRID, 2008), sendo o terceiro país no consumo mundial de anfetamínicos (UNODC, 2008).

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA Agudamente, os anfetamínicos produzem euforia, sensação de bem-estar, aumento da capacidade física e mental, causando sensação de autoconfiança e poder em tudo que se fala e faz. Agitação, insônia, anorexia, aumento das atividades sexuais e sensações de formigamento no baixo ventre semelhantes ao orgasmo também são relatados após a administração. Ademais, há também relatos de prolongamento do orgasmo. Tolerância. A tolerância instala-se lenta e progressivamente. As doses elevam-se, de acordo com o tempo de uso, de 50 para até 400 mg/dia, via intravenosa. A anorexia aumenta a produção de corpos cetônicos, induzindo acentuado teor ácido na urina e aumentando a excreção dos anfetamínicos, o que em parte explica a tolerância. Sensibilização. Com o uso prolongado, a sensibilização pode ser responsável pela instalação da dependência como também da psicose anfetamínica. Ela se caracteriza por ideias vivas de perseguição, alucinações visuais, auditivas e táteis, comportamento compulsivo, midríase, hipertensão arterial e delírios semelhantes à quizofrenia paranoica. O tratamento é feito após diagnóstico diferencial com a esquizofrenia e pela utilização de antipsicótico tradicional como haloperidol. Síndrome de Abstinência. Os sinais e sintomas da abstinência pela interrupção abrupta incluem: letargia, depressão, insônia, inquietação e fome exagerada. É comum o dependente reinstalar o uso dos anfetamínicos a fim de obter novamente os efeitos iniciais desejáveis ou então recorrer aos opioides e sedativos para amenizar a abstinência anfetamínica. Tratamento. O tratamento da abstinência dos anfetamínicos não é intensivo. Inicialmente, podem-se suspender totalmente os anfetamínicos e, no período de desintoxicação, administram-se ansiolíticos ou sedativos, diminuindo assim estados de ansiedade.Nos casos de depressão intensa, utilizam-se antidepressivos tricíclicos em doses controladas e gradualmente menores. Paralelamente, trata-se da hipertensão arterial, corrige-se o equilíbrio hidroeletrolítico, mantêm-se dietas hipercalóricas e hiperproteícas e desenvolve-se a psicoterapia. A semelhança

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da dependência à cocaína, tudo indica que a dependência anfetamínica persiste, mesmo após o desaparecimento de sinais e sintomas da abstinência, uma vez que a recaída ao uso abusivo é frequente. CAFEÍNA A cafeína existe em estado natural numa série de plantas que dão origem ao café, chá, cacau, mate, cola e guaraná. O café é a semente derivada da Coffea arabica ou cafete que se cultiva em alguns países produtores da América (Brasil, Colômbia), Arábia e Indonésia (foto abaixo). O chá é derivado da Camellia (Thea sinensis), que se cultiva na China, Japão, Ceilão e na Argentina. O cacau é a semente descascada e fermentada da Theobroma cacao, que se cultiva na América Central e no Brasil. O mate originado do Ilex paraguayensis é cultivado nas zonas centrais da América do Sul. A coca é a semente descascada da Cola nitida que cresce na África tropical. O guaraná é uma pasta preparada com as sementes de Paullinia cupana, que se cultiva na Venezuela e no Brasil (Foto a direita).

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A cafeína é a principal metilxantina, sendo amplamente consumida pela população como um constituinte regular da dieta estando presente em mais de 60 espécies de plantas do mundo. Além disso, a cafeína também é amplamente utilizada em alguns medicamentos em associação com analgésicos e anti-inflamatórios. O suplemento de cafeína para atletas varia entre 210-420mg. Devido a esta diversidade de produtos que contém cafeína, ela é, seguramente, a substância psicoativa mais popular no mundo. Dados da “Food and Agriculture Organization of the United Nations” (FAO) estimam que o consumo de cafeína na Brasil esteja em torno de 40 mg/pessoa/dia. POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA É admitido o rápido desenvolvimento de tolerância à cafeína manifestada pela ausência de efeitos da excitação no indivíduo que ingere café habitualmente. Em razão disso, ocorre um aumento da ingestão de café durante as atividades diurnas e noturnas, sendo que pode ocasionar efeitos adversos como hipersecreção gástrica e suas consequências sobre a úlcera gástrica e duodenal e inquietude, insônia, tremores e raramente delírios. Cabe lembrar que houve apelo para o consumo exagerado de café e cafenismo ao longo da história, desde os famosos Cafés de Paris frequentados pelos intelectuais como Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre até a disseminação atual desses estabelecimentos em diversos países do mundo. Enquanto que a fraca síndrome de abstinência representada principalmente por sonolência transitória, cefaleia, ansiedade e

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fadiga são manifestadas pela retirada brusca do composto, como observado por mudanças de hábito nos fins de semana, quando o café é pouco consumido. Apesar da síndrome de abstinência, poucos usuários de cafeína perdem o controle de ingestão ou tem dificuldades em reduzir ou parar o uso de cafeína quando desejada. Razão disso, a cafeína não é listada na categoria de estimulantes que desenvolvem dependência, segundo (DSM-IV e V). Embora existam controvérsias quanto ao potencial de dependência da cafeína existem evidências de que a sua utilização pode aumentar o uso de outras substâncias de abuso. Por exemplo, foi demonstrada correlação positiva entre a utilização de cafeína, tabaco e álcool. O uso de cafeína parece influenciar também o padrão de consumo de cocaína e anfetamina, podendo aumentar a vulnerabilidade ao abuso destes psicoestimulantes. Toxicidade. Associação do tipo ingestão exagerada de café, chá, cola e ocorrência de câncer no colon, bexiga, reto, além de hipertensão, cirrose hepática e distúrbios gastrintestinais são relatados. A intoxicação fatal é rara no homem, sendo a dosagem letal de cafeína é de cerca de 5 a 10 g em adultos. O tratamento da intoxicação oral por dosagem excessiva deve ser iniciado com lavagem gástrica e a excitação controlada com barbitúricos de ação curta.

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Capítulo IV

OPIOIDES Os compostos opioides são em grande parte de origem natural, como os alcaloides do ópio e os peptídeos opioides (encefalina, β-endorfina, dinorfina e orfanina). Por outro lado, na procura de análogos da morfina com menor incidência de efeitos adversos e com baixo potencial de dependência, foram obtidas numerosas substâncias opioides por síntese (meperidina, metadona, nalorfina, pentazocina e propoxifeno) ou semissíntese (diacetilmorfina ou “heroína”, buprenorfina, etorfina). Vale lembrar que esta procura por análogos da morfina não se revestiu sempre de sucessos, é o caso da heroína com alto potencial de dependência. Desde a proibição do uso de ópio em 1914, a heroína permanece como maior problema nos EUA, estimando em cerca de 200.000 dependentes (UNODC, 2003). Mais recentemente, ocorreu uma verdadeira epidemia nos EUA com o uso abusivo de oxicodona para fins recreativos e como também, constatou-se uso excessivo do fármaco na medicação analgésica.

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l, o uso abusivo de heroína é relativamente baixo, menor que 0,05%, quando comparado à prevalência mundial de 0,5% (UND, 2007). HISTÓRICO DE USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA Desde as mais antigas civilizações se conhecem os efeitos psicoativos dos alcaloides do ópio. Os sumerianos, antigo povo da Babilônia, utilizavam o suco da papoula (Papaver sonniferum) para eliminar a dor e induzir ao sono. O termo ópio de origem grega significa suco, sendo muito difundido entre os gregos, os quais ofereciam a papoula a vários deuses mitológicos romanos, como Morpheu (deus do sonho, foto abaixo) e Hypnos (deus do sono, foto laterais).

Os árabes introduziram o ópio no Oriente através do comércio. Avicenas (970-1037), médico árabe, empregou o ópio no tratamento das disenterias. Na Europa, o ópio era consumido na forma de bebida (caldo de laudano), não constituindo abuso maior que a ingestão de bebidas alcoólicas. Paracelso (1490-1540) foi o introdutor da tintura de ópio na terapêutica, uso consagrado depois por Sydenham no tratamento de disenteria epidêmica em 1669-1672. O uso do ópio espalhou-se para a Índia e chegou até a China, onde sua utilização em larga escala constituiu uma verdadeira epidemia. O comércio de ópio na China era realizado principalmente pelos ingleses através da Companhia de Navegação Índias Orientais que comprava o chá dos chineses para exportar para Europa. Para

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evitar o abuso do ópio, o Imperador chinês proibiu a importação e o comércio deste, gerando um conflito de interesse econômico entre ingleses e chineses que foi denominado de “Guerra do Ópio” (1839-1842). As vitórias dos britânicos culminaram com a abertura de portos para comércio britânico e a concessão de Hong Kong para os britânicos e por último, ocasionou o aparecimento de milhares de chineses dependentes de ópio devido à legalização da importação de ópio para China. Em 1906, o Imperador proibiu definitivamente o comércio e o cultivo da papoula. A imigração de trabalhadores chineses para os EUA contribuiu para uso excessivo de ópio que resultou em medidas proibicionistas (Harrison Act, 1914) que ficou mais conhecida com Lei Seca. O potencial de o ópio desenvolver dependência já era reconhecido pelos médicos gregos. No século XVIII, o hábito de fumar o ópio tornou-se popular no Oriente. Foi no início do século XIX, com o isolamento da morfina do ópio pelo farmacêutico Sertüener (1806), que começou o isolamento de outros alcaloides do ópio como a codeína, por Robiquet, em 1832, e a papaverina por Merck em 1848. A heroína foi introduzida no mercado farmacêutico como antitussígeno pela Bayer em 1898. Somente em 1925 foi proposta uma estrutura química da morfina, por Gulland e Robinson. O aparecimento de casos graves de dependência deu-se com a descoberta da seringa e da agulha hipodérmica, que possibilitou a administração dos opiáceos por via parenteral. Durante a 2ª Guerra Mundial estimulou-se a procura de analgésicos sintéticos que não provocassem dependência, uma vez que a obtenção de opiáceos através do cultivo da papoula na Ásia Menor foi prejudicada em grande parte pelo conflito mundial. A meperidina foi sintetizada por Eiseb e Schaumann, em 1939, e a metadona foi sintetizada por químicos alemães e introduzida na terapêutica no fim da 2ª Guerra Mundial. A partir da década de 70, os peptídeos opioides endógenos (encefalinas) foram identificados por Hughes (1975). Além disso, foi postulada a existência de múltiplas classes de receptores opioides, subsequentemente clonados em três grupos principais, μ, κ e δ, que possibilitaram o desenvolvimento de novos compostos opioide.

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O alto potencial de abuso e dependência de opioides é bem documentado. Segundo, o relatório mundial de substância de abuso apresentado em 2006 pelo Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crime (UNODC) cerca de 16 milhões de pessoas no mundo (0,4% da população mundial entre 15 e 64 anos) usou abusivamente os opioides. Mais da metade da população que abusa de opioides vivem a Ásia, principal local de cultivo da papoula. No Brasil, o uso não médico de opioides pode ser considerado como relativamente não frequente. O uso durante a vida de xaropes contendo codeína foi relatado por 2,0% dos que foram entrevistados, o uso de opioides por 1,4% e heroína por 0,4% (CEBRID, 2007). Na terapêutica, os opioides são utilizados primariamente para o alívio sintomático da dor. Além do efeito analgésico, os opioides produzem sensação de bem-estar e euforia, o que pode gerar o uso abusivo dos opioides com a finalidade de se obter alterações do estado do humor. Nessas situações médicas ou abusivas, predominam falsas concepções populares de que o uso de opioide acarreta intratável compulsão e “dependência física”. Entretanto, vários trabalhos sobre os padrões de uso opíoides estabeleceram ampla variedade de usuários de opioides que se caracterizam gradativamente de serem não problemáticos até aos abusivos. Assim, três amplos grupos foram constituídos como usuários: controlados, abusivos e dependentes. Os usuários controlados são geralmente reconhecidos pelo uso ocasional e frequentemente não apresentam um padrão de dependência de uso opioide. Em contrapartida, os usuários abusivos e dependentes são categorizados pelos critérios de diagnóstico de dependência, segundo (DSM-V, 2013). Os usuários de opioide controlados diferenciam-se dos de uso compulsivo por algumas características como, uso da substância em quantidade ou período que na interferem com as atividades ocupacionais e sociais, padrões estáveis de uso controlado que pode durar até 15 anos e maior cuidado no modo usar a substância (ex.: recusar a injeção de opioides). Quanto aos relatos de prevalência de uso controlado e o compulsivo são dispares,

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entretanto pode haver uma aproximação numérica entre os grupos. Do ponto vista da história natural, a dependência de opioides é um transtorno significativamente estável todo o tempo. Enquanto o ciclo repetido de recaída e reinstalação de uso ocorre, esses padrões se estendem por longo período. Estudos longitudinais mostram que a heroína é uma condição de longa data para alguns usuários. No acompanhamento (follow-up) de usuários ao longo das décadas foram registrados que as causas mais comuns de morte ocorreram por overdose, doenças hepáticas, câncer e doenças cardiovasculares. Nas entrevistas de usuários com teste positivo para heroína relataram problemas de saúde mental e envolvimento no sistema de justiça criminal, enquanto que os abstinentes delongam duração e foram associados a uma menor incidência desses problemas. Intoxicação. A heroína é considerada o opioide mais utilizado com a finalidade de abuso, provavelmente por sua disponibilidade no mercado ilícito. Além disso, a heroína é considerada a mais euforizante de todos os opioides, embora não haja provas contundentes. No mercado ilícito, a heroína é “batizada” frequentemente com outras substâncias, como lactose, bicarbonato de sódio, quinino ou manitol. Os teores de heroína no pó da mistura têm variado ao longo do tempo; inicialmente, era de 4% em média e mais recentemente, de 45 a 75% e chegando até 90%. A heroína é aproximadamente duas vezes mais potente que a morfina quanto aos efeitos analgésicos, mas é discutível se produz mais euforia (rush) durante 10 s, que é frequentemente verbalizada em termos sexuais. Após a administração de heroína, há um estado de satisfação (high) de todos os impulsos e desejos durante várias horas sob os efeitos da substância, “tem-se a impressão de que nada mais precisa ser efeito, porque tudo está feito como devia ser”, descreve o dependente. Além disso, a injeção intravenosa de um opioide produz calor e rubor na pele, aprofundamento da voz e sensações no baixo ventre semelhante ao orgasmo sexual. A intensidade dos efeitos desejados pelo dependente varia de acordo com o opioide, a via de administração, a dose, a sensibilidade e predisposição individual.

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De modo geral, a euforia produzida pela heroína dura de 45 segundos até alguns minutos e há depois um período de sedação e tranquilidade que pode durar em torno de uma hora, onde ocorre a saída da realidade, variando de uma sonolência para virtual inconsciência. A duração total dos efeitos da heroína é de 3 a 5 horas, dependendo da dose. Há relatos que após 8 horas da injeção de heroína ou tragada, os usuários não experimenta mais nenhum dos estados acima descritos, contudo não experimenta a abstinência. Os usuários injetam duas a quatro doses de heroína por dia. A heroína pode diminuir a reatividade a estímulos físicos e psíquicos como medo, tensão e ansiedade; permanece uma apatia, letargia e desinteresse ao meio ambiente, aos hábitos pessoais, à profissão e à sociedade, podendo ocorrer, ainda, diminuição do impulso sexual. Recentemente, um novo derivado sintético de opioide, desomorfina (“krokodil”) foi desenvolvido como substitutivo barato da heroína na Rússia. A substância é associada a codeína e outros ingredientes impuros como soda caustica e gasolina. A injeção do produto tem provocado graves dermatoses nos usuários. A aquisição da dependência aos opioides é sentida já a partir das primeiras doses e manifesta-se pelo desejo de repetir a administração a fim de sentir euforia, o que difere dos outros grupos de substâncias de abuso, onde a dependência se instala lentamente. Nos EUA, o número de dependentes de heroína é estimado entre 800 mil a 1 milhão. O consumo de heroína no Brasil é baixo, embora não existam dados precisos. Entretanto, as apreensões de heroína estão aumentando nos últimos anos. Tolerância. O uso continuado de opioides produz rápida tolerância, principalmente aos efeitos euforizantes. A tolerância instala-se mais lentamente para a miose, constipação intestinal, analgesia, sedação e emese. A dose letal da morfina por via parenteral é da ordem 30 mg para indivíduos não tolerantes. Há dependentes, no entanto, que tomam por via intravenosa 2g ou mais por dia, evidenciando alto grau de tolerância. A tolerância aos opioides se desenvolve numa proporção que é dependente da dose da substância, dos padrões de uso e contexto de uso. Por exemplo, o uso intermitente de dose terapêutica pode resultar num efeito analgésico por período mais duradouro. A tolerância cruzada é comum entre os opioides, ou seja, o dependente tolerante a um opioide o será a qualquer outro, principalmente quando estes atuam no mesmo subtipo de receptor opioide.

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Em modelos animais, a tolerância desenvolve rapidamente para muitos efeitos dos opioides. A administração de morfina durante 20 dias em camundongos produz desvio a direita da curva dose-resposta para efeito analgésico, contudo, não foi observado tolerância para o efeito estimulante motor. O desenvolvimento de tolerância foi também observado para os efeitos discriminatórios e reforçadores de opioides avaliados no modelo da preferência condicionada por lugar. A tolerância aos opioides é de dois tipos: farmacocinética (alterações na produção de metabólitos, expressão de enzimas metabolizadoras, e função de transporte) e farmacodinâmica (tipo de receptor, localização e funcionalidade e alterações nas vias de sinalização). Cabe assinalar que o condicionamento Pavloviano e a aprendizagem em geral, podem contribuir para o desenvolvimento de tolerância condicionada aos opioides. Essa situação específica de tolerância desenvolve quando pistas ambientais tais como visão da seringa, cheiro das preparações ou em condições consistentemente pareadas com injeções de opioide. Em humanos, pacientes ou dependentes que receberem opioides em diferentes contextos, até mesmo por uma diferente via de administração, podem apresentar risco de superdosagem (overdose), devido à ausência de efeitos compensatórios condicionados. Síndrome de Abstinência. Os opioides, principalmente heroína e morfina, são usados pelos dependentes a fim de evitarem a síndrome de abstinência e obterem uma sensação de “alívio” ou bem-estar. Os sinais e sintomas são variáveis de acordo com a intensidade da dependência física bem como com o tipo e a dose da substância usada. Os opioides como morfina e heroína causam sintomas de curta duração, porém bem mais graves; outros como metadona e petidina causam sintomas mais brandos com duração prolongada. Os sinais de abstinência em sequência de aparecimento podem ser agrupados em 4

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estágios: 1) Bocejos, rinorreia, sudorese e lacrimejamento aparecem entre 8 e 14 horas após a última dose de heroína e morfina, respectivamente; 2) Aumentam de intensidade após 12-16 horas, ocorrendo midríase, sensações de calafrio, pele fria e pelos arrepiados (pele de peru depenado), tremores e anorexia; 3) Após 18-24 horas para heroína e 24-36 para morfina, aumentam a ansiedade e a inquietação, insônia, aparecem contração muscular, cãibra, hipo e hipertermia, taquipneia, hipertensão, pulso acelerado, insônia e náusea; 4) Aumenta intensidade acima após 24-36 horas para heroína e 36-48 horas para morfina, ocorrendo cólica intestinal, diarreia, desidratação, desequilíbrio hidroeletrolítico, perda de peso corpóreo, orgasmo espontâneo, eosinopenia e fraqueza. Se não houver colapso cardíaco e consequente morte, a duração da síndrome é de aproximadamente dez dias. Em qualquer estágio da síndrome de abstinência, a administração do opioide, em dose adequada, faz com que os sintomas desapareçam completamente, restabelecendo um estado de normalidade aparente. O desejo pela substância de abuso (“fissura”), entretanto, permanece mesmo após a remissão da síndrome de abstinência e, é responsável pelo alto índice de recaídas ao uso dos opioides. Os opioides são frequentemente combinados com outras substâncias. A combinação de heroína e cocaína (speedball) é a mais comum, pelo aumento da euforia. Além disso, a cocaína reduz os sintomas de abstinência dos opioides e, por sua vez, a heroína reduz a irritabilidade dos usuários crônicos de cocaína. A taxa de mortalidade de usuários de heroína é elevada e na maioria das vezes, a morte advém de crimes para sustentar a dependência. Os usuários de opioides apresentam os seguintes sinais clínicos de intoxicação: letargia, sonolência, rosto pálido, miose (pupila em cabeça de alfinete), feridas e cicatrizes nos braços e pernas pelo uso frequente de seringa hipodérmica, narinas secas ou feridas, quando opioides são inalados (pó de ópio e congêneres), diminuição da percepção da dor (queimaduras de cigarro entre os dedos). Outras complicações são advindas da administração intravenosa, como a depressão respiratória, constipação intestinal, abscessos locais, oclusão de veias, tromboflebite, tuberculose, endocardite, micoses profundas e infecções virais, como a hepatite e a síndrome da

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imunodeficiência adquirida (AIDS). Casos raros como botulismo e antraz foram observados no uso de heroína “batizada” com substâncias contaminadas. Tratamento. Os sinais e sintomas da abstinência podem ser tratados por diferentes abordagens. Na primeira, reduz-se a dose do opioide preferido do paciente, substituindo-o pela metadona. É a abordagem mais aceita, pois, além de substituir qualquer opioide, a metadona evita os sintomas graves da síndrome de abstinência. As doses de substituição variam de acordo com o grau de dependência física e o estado clínico do paciente. Determinada a dose ótima de metadona, ou seja, a que mantém um nível de estabilização física e psíquica, sua redução paulatina também é indicada. Não há dúvidas de que, na vigência do tratamento, se consegue diminuir os sintomas, bem como recuperar aos níveis normais o estado físico e mental. Metadona. A metadona, em vários países, passou a ser distribuída gratuitamente aos dependentes de heroína em ambulatórios oficiais. Sendo a metadona administrada por via oral e gratuita, objetivou-se dessa forma a eliminação da procura ilegal muitas vezes associada a alguma atividade criminosa, bem como promover o afastamento da seringa hipodérmica. A meia-vida biológica da metadona é de 72 horas, e seu tempo de ação é maior em relação aos outros opioides, o que permite menor frequência de doses (1-2 doses por dia) bem como produção mais lenta de tolerância.. A reintegração social do paciente mantém-se, se bem que, em muitos casos, não se consegue a retirada total da metadona. Buprenorfina. A buprenorfina é um derivado semissintético da tebaína. Seus efeitos são mais potentes que os da morfina de 25 a 50 vezes. A buprenorfina, agonista parcial de receptores opioides μ produz analgesia e outros efeitos centrais qualitativamente semelhantes àqueles da morfina. O fármaco é bem absorvido por todas as vias e liga-se altamente a proteínas (96%). Após

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administração intramuscular, o pico de concentração sanguínea é atingido dentro 1 a 2 horas e sua meia-vida é de 3 horas (8). Dependendo da dose, a buprenorfina o alívio da pode precipitar a síndrome de abstinência de opioides μ, como a morfina. O seu uso descontínuo pode desenvolver uma síndrome de abstinência menos grave que aquela da morfina, que persiste cerca de 1 a 2 semanas. O seu principal uso terapêutico é como analgésico e foi aprovada provisoriamente no tratamento da dependência à heroína. Clonidina. A segunda abordagem de desintoxicação envolve o uso de clonidina, um agonista α2-adrenérgico que diminui a neurotransmissão adrenérgica no locus coeruleus. Muitos sintomas autonômicos da síndrome de abstinência, tais como náusea, vômito, sudorese, taquicardia e hipertensão, são aliviados. Entretanto, a clonidina não alivia dores generalizadas e o desejo intenso (fissura) pelo fármaco, que são características da síndrome de abstinência e permanecem por longos períodos. A hipotensão causada pela clonidina limita seu uso clínico. Antagonistas opioides. A terceira opção é o tratamento com antagonistas opioides. A naltrexona é um antagonista de receptor opioide μ, que bloqueia os efeitos da heroína e de outros agonistas opioides μ. Entretanto, a naltrexona não alivia os sintomas de abstinência prolongada e também não reduz a compulsão pelos opioides. Por essas razões, a naltrexona deve ser utilizada após a desintoxicação em pacientes com elevada motivação para ficarem livres dos opioides. Uma indicação de tratamento seria para os profissionais da saúde com problemas de dependência, que têm acesso frequente com opioides. Uma formulação de liberação lenta de naltrexona que fornece 30 dias da medicação encontra-se em fase de investigação clínica. Recaída. Observa-se um grande número de recaídas ao uso de opioides quando o dependente retorna ao seu ambiente social, após a remissão dos sinais e sintomas da abstinência. A dependência é um distúrbio crônico que requer longo tratamento. Existem sinais e sintomas (abstinência prolongada) que podem persistir por anos após a interrupção do uso do opioide, como por exemplo, desejo intenso pelo agente psicoativo (“fissura”), ansiedade e insônia, que podem levar o paciente à recaída. Dessa forma, o tratamento que produz melhores

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resultados é a estabilização com metadona. TOXICIDADE AGUDA A intoxicação aguda por opioides pode ocorrer em casos de superdosagem clínica, acidental ou proposital entre os dependentes. O indivíduo que ingere dose excessiva de opioides apresenta um estado de torpor inicialmente, podendo evoluir para coma profundo, quando não é capaz de ser despertado. A frequência respiratória é reduzida, e na medida em que as trocas respiratórias tornam-se mais precárias, pode ocorrer queda progressiva da pressão arterial. As pupilas se apresentam em forma de cabeça de alfinete e, em caso de choque podem se tornar dilatadas. A pele apresenta-se fria e úmida e ocorre queda da temperatura corpórea. Em casos de intoxicação letal, a insuficiência respiratória é a causa mortis, podendo ocorrer outras complicações que levam à morte, tais como pneumonia ou choque. O diagnóstico da intoxicação aguda por opioides é sugerido pela tríade de sinais, coma, pupilas punctiformes e depressão respiratória. O achado de picadas de agulhas é sugestivo de dependência por opioides e reforça o diagnóstico de intoxicação aguda acidental ou proposital entre os dependentes. A análise da urina e do conteúdo gástrico pode auxiliar o diagnóstico em casos de intoxicações mistas por outros fármacos, como álcool, barbitúricos e benzodiazepínicos. Superdosagens acidentais advindas de amostras de heroína mais concentradas ou misturadas com fentanil em laboratórios clandestinos podem ocasionar morte por depressão respiratória ou edema pulmonar agudo. Tratamento. Vários recursos são utilizados no tratamento da intoxicação aguda por opioides. Inicialmente procura-se restabelecer as condições de ventilação dos pacientes. A naloxona é o fármaco de escolha para reversão da depressão respiratória. Os outros antagonistas opioides como a nalorfina e o levalorfan devem ser utilizados com cuidado, uma vez que são capazes de deprimir a respiração pelas suas ações agonistas. Outro aspecto que merece ser levado em conta é a duração da ação dos antagonistas opioides, que é, em geral, inferior a de muitos opioides. Na intoxicação aguda por

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superdosagem de metadona, o efeito depressor persiste por 24 a 72 horas e a retirada do antagonista opioide pode resultar em nova entrada em coma. Os antagonistas opioides podem precipitar síndrome de abstinência em indivíduos dependentes. Nesses casos, o uso desses fármacos no tratamento da intoxicação aguda em dependentes deve ser realizado com máximo cuidado. Na intoxicação aguda por via oral, pode ser utilizada como recursos auxiliares a lavagem gástrica e a precipitação dos alcaloides opiáceos, pela ação do carvão ativado ou oxidação por solução diluída de permanganato.

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Capítulo V

ETANOL E BEBIDAS ALCOÓLICAS O uso de bebidas alcoólicas pelo homem se perde no tempo. A disponibilidade do álcool sempre foi muito grande, na medida em que, sendo o produto da fermentação de açúcares, pode ser facilmente obtido em qualquer região. Este fato é provavelmente parte da explicação da difusão praticamente universal das bebidas alcoólicas. Embora, o alcoolismo e o uso abusivo do álcool sejam graves problemas de saúde pública em vários países como o Brasil, os impactos econômico, médico e social, ainda não foram devidamente apreciados (WHO, 2007). Assim, nos EUA, a perda econômica é da ordem de 180 bilhões de dólares anuais. Nos EUA, estima-se que 5 a 10% dos homens e 3 a 5% das mulheres tenham determinado grau de dependência ao etanol. Em nosso meio, estima-se que 12,3% da população ativa consumem bebidas alcoólicas em quantidades abusivas (CEBRID, 2008). O seu uso indevido está associado a acidentes de trabalho e de trânsito, como também constitui a principal causa de internação hospitalar nos tratamentos de dependência. Congêneres. Além do álcool, as bebidas alcoólicas contêm uma variedade de outras substâncias, entre as quais ácidos, cetonas, fenois, aldeídos, ésteres e outros alcoóis, como o isoamílico, metílico e propílico (Quadro V.1). Outras substâncias, como vitaminas e sais minerais, também podem estar presentes. Algumas dessas substâncias derivam do material inicial do qual a bebida alcoólica se originou, enquanto que outras são produzidas durante o processo de fermentação e podem ser reduzidas por purificação. O processo de envelhecimento das bebidas também facilita o aparecimento dos congêneres, nome pelo qual são conhecidas as substâncias presentes nas bebidas alcoólicas que não o etanol. A presença de congêneres varia com o tipo de bebida. Por exemplo, é estimado que a vodca contenha 33 mg/L de congêneres, enquanto que, no uísque, este número se eleva para 500-2.600 mg/L. Os congêneres contribuem para o gosto, o cheiro e a cor das bebidas. É importante ressaltar que nos destilados predomina a presença de congêneres sem valor nutricional.

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Na cachaça foi relatada a presença de n-propanol, nbutanol, 2-butanol, 2-metilbutanol, isobutanol e álcool isoamílico. A legislação brasileira permite a presença máxima de congêneres de 650 mg/100 mL de álcool na cachaça. A importância do ponto de vista clínico a presença de congêneres tem sido muito discutida e pesquisada na literatura. Em experimentação animal, foi demonstrado que os efeitos agudos induzidos por cachaças são maiores do que o predizível apenas pelo conteúdo de etanol.

Quadro. V.1. Estruturas químicas de alcoóis presentes em bebidas alcoólicas:

3HC-CH2-OH Etanol, Álcool etílico 3HC-OH Metanol 3HC-CH2-CH2-OH Propanolol 3HC-CH2-CH2-CH2-OH Butanol

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HISTÓRICO DO USO, ABUSO E O ALCOOLISMO Até o desenvolvimento da técnica da destilação, as bebidas alcoólicas consumidas eram a cerveja e o vinho, que contêm cerca de 4 a 12% de álcool, respectivamente. O processo de destilação foi desenvolvido pelos árabes em 800 a.D. com nome de (al-kukul) e veio a permitir a produção de bebidas alcoólicas mais concentradas uísque [água da vida], gim, rum, vodca, conhaque, cachaça etc., variando o conteúdo de etanol entre 40-50%. Além disso, o álcool passou a ser comercializado como ingrediente de elixires e tônicos. A partir do início do século XVIII, que as bebidas destiladas passaram a ser a bebida mais consumida por diferentes tipos de sociedade. Esse fato determinou restrições no consumo de álcool no sentido de controlar ou prevenir o uso abusivo, embora ele seja aceito socialmente na maioria dos países. Nos Estados Unidos (EUA), a proibição da venda de bebidas alcoólicas conhecida como Lei Seca, ocorreu no período de 1919 a 1933.

Uma proporção ampla de indivíduos, 88% da população nos EUA (NIAAA, 1999) e 69% no Brasil (CEBRID, 2007), usaram bebidas alcoólicas pelo menos uma vez durante suas vidas. O uso abusivo e o alcoolismo estão associados a diversas condições médicas. A OMS admitiu o alcoolismo como problema médico em 1951, e na década de 60 foi reconhecido como transtorno mental pela Associação Psiquiátrica Americana. No mundo atual, o álcool e a cafeína são as substâncias psicoativas lícitas mais consumidas na grande maioria dos países.

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O etanol é citado no livro do Gênesis, na Bíblia, como um líquido extraído do suco da uva fermentado. Egípcios, gregos e romanos, já abusavam do álcool tanto quanto o homem contemporâneo. O etanol está disponível em várias bebidas e é de fácil acesso a todos, em quantidades ilimitadas. O alcoolismo é um quadro complexo, sendo que é difícil definir critérios que distingam o chamado “beber social” da condição patológica (uso compulsivo). Os limites poderiam ser colocados apenas na frequência e na quantidade de álcool ingerido. Entretanto, no conceito atual de dependência (DMS-V), além do fato de se ingerir bebidas alcoólicas frequentemente e em grandes quantidades, o que demarca o limite entre o bebedor social e o dependente é a perda do controle sobre o ato de beber. Isto é, quando se bebe, costuma-se levar em conta se a ingestão de álcool naquele momento é adequada; se não vai interferir com alguma atividade profissional ou social. Já para o dependente, esta opção, esta capacidade de decisão, fica perdida. “Ele vai beber”, independentemente das eventuais implicações para si e para os outros. Outro aspecto importante do alcoolismo é caracterização de estágios evolutivos em inicial, intermediário, tardio e terminal e suas repercussões nas atividades sociais e ocupacionais dos indivíduos. Com relação à saúde ocupacional, os estudos têm sido centralizados nas doenças causadas pelo etanol e seus efeitos sobre o trabalho, os efeitos do trabalho sobre o consumo de álcool e as interações entre o etanol e os compostos presentes no ambiente de trabalho. Ao longo da história, os padrões de uso de álcool têm variado entre os membros de diversas culturas. Mais recentemente, a OMS (2000) tem avaliado o consumo total de álcool per capita (vinho, cerveja e destilados) em diversos países, organizando uma escala (ranking), onde a França ocupa a primeira posição com

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cerca de 12,0 L per capita e em último a Índia com apenas 1,0 L. O Brasil ocupa uma posição intermediária entre os países com 5,0 L per capita. Tolerância. O álcool etílico induz duas formas principais de tolerância: farmacocinética e farmacodinâmica. A tolerância farmacocinética, também denominada de disposiconal, está relacionada à hipertrofia do retículo endoplasmático liso hepático, com consequente aumento da atividade microssômica, ou seja, seu uso crônico produz indução enzimática (P4502E1) e, portanto, aumento da velocidade de biotransformação do próprio álcool (30-40 mg/dL/h) e de outros fármacos, quando comparada ao indivíduo não tolerante (15-20 mg/dL/h). A tolerância farmacodinâmica ou funcional requer alta alcoolemia (300 a 400 mg/dL) para produzir intoxicação e pode ser dividida em aguda, crônica e comportamental. Em modelos humanos, o incremento da tolerância aguda é considerado linear com o tempo e avaliado pela medida de prejuízo observado para uma dada concentração durante a porção ascendente da curva de alcoolemia do que para mesma dada concentração na porção descendente da curva. Inicialmente, a instalação da tolerância é rápida, onde se permite avaliar a sensação de intoxicação no ramo ascendente da curva alcoolemia, mas não durante o ramo descendente. Em modelos animais foi observada tolerância aguda à incoordenação motora produzida pelo etanol, envolvendo receptores NMDA de modo similar à tolerância funcional crônica. Em humanos, a tolerância funcional crônica reflete o incremento do consumo de álcool para produzir a intoxicação. Os consumidores crônicos de álcool são menos sensíveis que os abstinentes em testes de coordenação motora. A tolerância funcional crônica está relacionada às plasticidades nas vias GABAérgicas, glutamatérgicas e serotoninérgicas no SNC. Evidências experimentais demonstram que a potencialização do influxo de cloreto [Cl –] induzido pelo etanol é significativamente reduzida após a exposição crônica a essa substância psicoativa. Existem evidências também de que a exposição crônica ao etanol aumenta o número de sítios de ligação para o glutamato nos receptores NMDA. A tolerância comportamental é um tipo de tolerância aprendida, que se refere a redução nos efeitos de etanol, devido a mecanismos compensatórios aprendidos. Um exemplo é o aprendizado de andar em linha reta apesar do prejuízo produzido pela intoxicação alcoólica. Um caso especial de tolerância comportamental é a tolerância condicionada, onde animais ou humanos podem aprender tanto os condicionamentos Pavloviano ou operante que se

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contrapõem aos efeitos do álcool. Em relação a outras substâncias psicoativas, existe também a chamada tolerância cruzada entre o etanol e os fármacos depressores do SNC. Isso significa que um indivíduo tolerante ao etanol pode apresentar uma diminuição da resposta a esses fármacos. Parece ser aceito, entre os anestesistas, que o paciente tolerante ao etanol requer doses maiores de anestésicos gerais. Entretanto, isso só ocorre quando o paciente está sóbrio (abstinente), pois na presença de álcool o efeito final é exatamente oposto, havendo risco de toxicidade letal. Síndrome de abstinência. Os sinais e sintomas da síndrome de abstinência do etanol aparecem algumas horas após a última dose e têm duração de aproximadamente 72 horas. Náusea, sudorese, cólica intestinal, fraqueza, tremor, hiperreflexia, distorção da percepção (alucinações transitórias), hipertensão, distúrbios do sono, ansiedade são os sinais e sintomas iniciais. Após 12 a 48 horas, podem ocorrer crises convulsivas. A remissão ocorre espontaneamente em 5 a 7 dias. A severidade da síndrome de abstinência depende da quantidade ingerida por dia e do tempo de exposição ao etanol. O desejo intenso pelo etanol é outra característica da síndrome de abstinência. Muitos alcoolistas necessitam ingerir uma dose de etanol pela manhã ou mesmo a noite para restaurar a concentração sanguínea do etanol, que diminuiu durante a noite, e assim evitar o desconforto da abstinência. Delirium tremens. Pode ocorrer ainda a síndrome do delirium tremens; essa situação é mais frequente quando o dependente apresenta outros problemas como, p. ex., alterações eletrolíticas, desnutrição ou infecções. A síndrome do delirium tremens se caracteriza por agitação severa, confusão mental, alucinações visuais, febre, sudorese generalizada, naúsea, diarreia, midríase. A ocorrência é de 5% em alcoolistas e o tratamento é realizado com benzodiazepínicos (diazepam) por via oral. Cabe assinalar que o delirium tremens é uma urgência médica e a internação se faz necessária em todos os casos, pois o risco de morte é de 5 a 15 % para os pacientes não tratados. Transtornos mentais semelhantes podem ocorrer na alucinose alcoólica.

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Tratamento (desintoxicação). O tratamento do alcoolismo crônico difere do empregado na dependência a hipnóticos barbitúricos, embora ambas as substâncias causem efeitos depressores centrais semelhantes. Em razão da impossibilidade de se diagnosticar a intensidade da dependência física alcoólica, utilizam-se, em todos os casos, fármacos de substituição que apresentam tolerância e dependência cruzada com o álcool etílico. A terapêutica consiste na retirada do álcool e substituição por doses ajustadas e controladas de benzodiazepínicos de meia-vida curta, como oxazepam, para evitar o delirium tremens. O álcool, quando usado crônica e abusivamente, causa deficiência hidroeletrolítica, hipovitaminose e estados de desnutrição, daí a necessidade de se complementar o tratamento com dietas ricas em glicídios e proteínas, vitaminas de complexo B, vitamina C e reidratação associadas às correções eletrolíticas. Dissulfiram. O dissulfiram (dissulfeto de tetra-etil-tiuram) foi a primeira intervenção farmacológica aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration) introduzida na prática clínica por Hald e Jacobson, em 1948, é uma substância que interfere com a biotransformação do etanol. A sequência metabólica normal do etanol é a sua conversão hepática em aldeído acético, passando a acetato por ação da enzima aldeído desidrogenase. O dissulfiram inibe essa enzima, o que acarreta grande aumento nos níveis de aldeído acético no organismo. As reações que ocorrem quando o etanol é ingerido na presença de dissulfiram têm sido classicamente atribuídas à elevada concentração de aldeído acético; consistem de rubor facial intenso, palpitações, queda da pressão arterial, aumento da frequência cardíaca, tonturas e vômitos. A intensidade da reação vai depender, além da sensibilidade individual, das doses de dissulfiram e de etanol ingeridas. O pressuposto subjacente ao uso do dissulfiram é o de que o dependente, sabendo que ao ingerir bebidas alcoólicas apresentará uma reação extremamente desagradável, irá abster-se das mesmas. O desejo de parar de beber é considerado essencial para o sucesso da terapia, sendo o fármaco um fator que apenas facilitaria a manutenção da abstinência. Segundo alguns autores, o fármaco atuaria por diminuir as dificuldades envolvidas no processo de decisões frequentes (beber ou não beber) durante o dia, fazendo com que a decisão se reduzisse a tomar ou não dissulfiram, com a consequente impossibilidade de beber durante o

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resto do dia. É importante ressaltar que, embora a maior parte dos autores considere o dissulfiram como fármaco seguro na ausência do etanol, outros sugerem que ele não seja tão inócuo, por acarretar alterações bioquímicas, como, por exemplo, a inibição da dopamina beta-hidroxilase. Desde a sua introdução no tratamento do alcoolismo, os autores preconizam que o uso do dissulfiram seja acompanhado necessariamente das explicações que permitam ao dependente pleno conhecimento das reações adversas que decorrem de sua associação com o etanol, o que implica, evidentemente, no conhecimento de que está tomando o fármaco. Considerando-se os riscos potenciais da reação etanol-dissulfiram, os autores têm sido cada vez mais enfáticos quanto à necessidade de se esclarecerem os dependentes sobre as reações a que se expõem na vigência do uso desse medicamento. Recomenda-se, que os pacientes não apenas não ingiram bebidas alcoólicas, mas também tomem precauções em relação a outras fontes insuspeitas de álcool, como xaropes ou preparações culinárias (molhos ou doces contendo álcool). O dissulfiram é contraindicado para casos de cirrose hepática, para pacientes com história de convulsões associadas à síndrome de abstinência e em casos de epilepsia. Antagonistas de receptor opioide μ. A naltrexona é antagonista seletivo de receptores opioides μ, utilizada como coadjuvante das intervenções psicossociais no tratamento ambulatorial do alcoolismo. Estudos clínicos mostram que a naltrexona é capaz de reduzir algumas das propriedades reforçadoras do álcool, diminuindo o desejo pelo fármaco (fissura). A naltrexona funciona melhor quando é associada à terapia comportamental cognitiva. O efeito adverso mais comum da naltrexona é náusea. A hepatotoxicidade é observada em doses elevadas de naltrexona (acima de 300 mg/dia), sendo a monitorização mensal dos valores da bilirrubina total e frações das transaminases séricas indicada nos três primeiros meses, e depois a cada três meses de tratamento. O fármaco é contraindicado em pacientes com hepatopatias. O nalmefeno é outro antagonista de receptores opioides μ que pode ser usado no tratamento auxiliar do alcoolismo.

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Acamprosato. O acamprosato (acetil-homotaurinato de cálcio) tem sido prescrito em alguns países para a síndrome de dependência de álcool. O fármaco é considerado um coagonista parcial dos receptores glutamatérgicos NMDA, assim ele pode inibir a atividade excitatória glutamatérgica especialmente quando há hiperatividade destes receptores. Em estudo clínico duplo-cego, o acamprosato diminiu a frequência de beber e reduziu a recaída em alcoolistas abstinentes. O acamprosato possui boa absorção oral; porém, esta é prejudicada com a ingestão concomitante de alimentos. O fármaco é eliminado totalmente pelo rim sem metabolização. Em geral, esse fármaco é bem tolerado, mas podem aparecer sintomas como cefaleias, dor abdominais, náuseas, vômitos ou sintomas dermatológicos (prurido, rash maculo-papular e reações bolhosas). A monitorização dos níveis de cálcio sérico é recomendada em casos de intoxicação por esse fármaco. Outros fármacos. O ondansetron é um antagonista de receptor 5-HT3 está sendo recomendado para casos de dependência precoce ao álcool, principalmente em pacientes com significativa história familiar. O topiramato é um antagonista do receptor glutamatérgico AMPA que parece atuar reduzindo o reforço positivo relacionado ao consumo de etanol. Estudos clínicos com o baclofen, agonista do receptor GABAB, demonstraram redução da fissura ao etanol e melhoras nas taxas de abstinência. Intoxicação aguda O álcool pode ser tóxico agudamente ou quando são ingeridas doses altas (overdose). A intoxicação aguda se caracteriza por vários sinais, como excitação, loquacidade, comportamento “inadequado”, perturbações da fala (pastosa), amnésia posterior (blackouts), incordenação de movimentos, e, em casos mais graves, por anestesia e coma. Existe uma correlação entre as concentrações plasmáticas de etanol e os efeitos clínicos observados (Quadro V.2). Contudo, esses efeitos podem ser bem diferentes em indivíduos com igual alcoolemia.

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A concentração de etanol pode ser obtida diretamente pela determinação no sangue ou, mais frequentemente, pode ser estimada pela concentração no ar expirado (equivale a 0,05 % da presente no sangue), técnica utilizada nos bafômetros. No Brasil, dirigir com alcoolemia superior a 0,2 g/L constitui infração pelo Código Brasileiro de Trânsito (Lei nº 11.705, 2008). Quadro V.2 Correlação entre os níveis de alcoolemia e os efeitos observados Alcoolemia Efeitos clínicos (mg//100ml

0,05-0,10

Confusão mental Incoordenação motora Distúrbios de fala

0,20-0,30

Respostas a estimulação diminuídas Sono Estupor Incoordenação motora acentuada

Maior do que 0,40

Anestesia Coma Depressão de reflexos Paralisia respiratória

Há relatos recentes de casos de intoxicação alcoólica aguda devido a ingestão excessiva de bebidas alcoólicas em festas universitárias ou raves.

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Tratamento. O tratamento da intoxicação alcoólica aguda é baseado em medidas emergenciais a serem tomadas sobre a gravidade da depressão do SNC e respiratória. Os pacientes comatosos com evidente depressão respiratória devem ser intubados e mantidos em ventilação assistida. A remoção de etanol do organismo é feita com lavagem gástrica, evitandose aspiração pulmonar do fluxo de retorno. A hemodiálise é usada para remover o álcool do sangue em casos graves. Como os casos de intoxicação aguda nem sempre envolvem coma, outros cuidados podem ser observados em relação à metabolização do etanol. No homem, como já foi visto anteriormente, a taxa de metabolismo do etanol é constante e linear, diminuindo a alcoolemia em cerca de 100 mg/kg de peso por hora. O declínio linear do nível de álcool se deve aparentemente ao suprimento limitado de NAD+, que deve ser regenerado pelo sistema citocromo mitocôndrico no fígado. Esta regeneração de NAD+ parece ser o fator limitante na velocidade da degradação do etanol. Portanto, se substratos que estimulam a oxidação de NADH para NAD + (p. ex., frutose) estiverem presentes, a taxa de metabolismo do etanol poderia, teoricamente, ser acelerada. Várias substâncias foram testadas com a finalidade de acelerar o processo de metabolização do álcool no sentido de facilitar a recuperação do quadro de intoxicação alcoólica. Entre elas, estão tiroxina, triiodotironina, adrenalina, cortisona, insulina, glicose e outros açúcares. Entretanto, os resultados mostraram que esses agentes não são capazes de aumentar a velocidade de oxidação do álcool. A única exceção parece ser a frutose. No entanto, o seu efeito é de pequena monta para uma ação terapêutica efetiva. Na intoxicação alcoólica aguda, era rotina no Brasil a administração intravenosa de glicose hipertônica, baseada na possibilidade de o paciente vir a apresentar o descrito quadro de hipoglicemia alcoólica. No entanto, a literatura a respeito da interação entre o etanol e o metabolismo de carboidratos e é ainda inconclusiva. Uma possível explicação da hipoglicemia induzida pelo álcool se baseia no efeito dessa substância inibir a neoglicogênese hepática, através do aumento da razão NADH/NAD que ocorre como consequência da oxidação do etanol. Estudo pioneiro realizado no nosso meio mostrou que, a maioria, dos alcoolizados que

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procuram o Pronto-Socorro apresentam glicemia dentro dos limites da normalidade. Uma das possibilidades para a explicação desse dado é que os pacientes não estivessem em jejum prolongado, e, portanto, a inibição da neoglicogênese não seria relevante na manutenção dos níveis glicêmicos normais, uma vez que a neoglicogênese só passa a ser um processo importante na ausência de carboidratos e quando os níveis de glicogênio se encontram depletados. Outra hipótese, baseada nos dados de Jones et al. (1971), é que nesses pacientes estivesse ocorrendo neoglicogênese renal, induzida pelo etanol, compensando a inibição da formação de glicose ao nível hepático. Esses autores sugerem que certas disfunções do metabolismo hepático, como a causada pelo álcool, possa ser corrigida pelo metabolismo renal. A produção de glicose pelo rim já foi demonstrada. Em conclusão, o embasamento teórico que justificaria a administração rotineira de glicose na intoxicação alcoólica é questionável, dada a multiplicidade de fatores envolvidos. Efeitos tóxicos crônicos Síndrome Fetal. A pergunta sobre se o álcool ingerido durante a gravidez é prejudicial para o feto é muito antiga. Em 1973, foi descrito em filhos de mães alcoolistas um quadro que foi denominado pelos autores de “Fetal Alcohol Syndrome” (Síndrome Fetal pelo Álcool). Esse quadro caracteriza-se por uma tríade: (a) deficiências no crescimento pré e pós-natal (baixo peso e estatura); (b) anormalidades crânios-faciais (entre as quais, diminuição do perímetro cefálico, pequena fissura palpebral, lábio superior fino) e (c) retardo mental. Nestes últimos anos este problema tem merecido a atenção de inúmeros pesquisadores, sendo avaliado que cerca de 5% dos filhos de mães caracteristicamente dependentes apresentam a síndrome na sua totalidade, enquanto que cerca de 30% apresentam apenas parte da síndrome. Doenças associadas. Há associação entre uso prolongado e excessivo de bebidas alcoólicas e disfunções em vários níveis: cardiovasculares (arritmias); gastrintestinal (gastrite, pancreatite, hepatite, cirrose, diarreia crônica), hematológicas (anemias), neurológicas e/ou psiquiátricas (neuropatia periférica, síndrome de Wernicke, síndrome de Korsakov, alucinose alcoólica e demência alcoólica).

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Capítulo VI ANSIOLÍTICOS, HIPNÓTICOS E SEDATIVOS

Os primeiros benzodiazepínicos (BZDs) foram sintetizados em meados da década de 1950. Após exaustivas avaliações clínicas, o primeiro BZD, clordiazepóxido, é lançado no mercado em 1960, causando um grande impacto no tratamento dos distúrbios da ansiedade. Era o inicio do que foi chamado na naquela década de “revolução dos benzodiazepínicos”. Dessa forma, em pouco tempo os BZDs tornaram-se os medicamentos mais populares e prescritos para o tratamento de transtornos de ansiedade em todo mundo. Após 50 anos do lança mento do clordiazepóxido, o uso corrente de BZDs ansiolíticos e hipnóticos continua instigar controvérsia, em particular, o potencial de abuso e dependência. HISTÓRICO DEPENDÊNCIA

DO

USO,

ABUSO

E

Durante séculos procuraram-se meios para aliviar a dor, o sofrimento e naturalmente também a ansiedade, visando devolver o sono tranquilizador aos incapazes de dormir. Até o século XIX, os medicamentos disponíveis eram limitados, destacando-se substâncias opiáceas (caldo de láudano) e os preparados de álcool etílico, os quais foram utilizados pelas civilizações europeias e orientais. O avanço da tecnologia químico-farmacêutica, a partir da segunda metade do século XIX, possibilitou o desenvolvimento de fármacos hipnóticos e sedativos tais como os sais de brometo, o paraldeído e o hidrato de cloral, os quais se

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mostraram relativamente ineficazes clinicamente. Mais tarde, foram substituídos pelos derivados do ácido barbitúrico, como o barbital em 1903 e fenobarbital (Veronal®) em 1912, que apresentam grandes vantagens de uso sobre os hipnóticos-sedativos anteriores. Na década de 30, já havia relatos de que os barbitúricos causavam dependência e, mais tarde por seus efeitos letais estarem próximos dos efeitos terapêuticos, esses fármacos tornaram-se o meio de escolha para se cometer suicídio nos EUA e outros países. Estes fatos intensificaram a procura de novos agentes mais seguros e menos sedativos..

Os ansiolíticos pré-BZDs mais seletivos surgiram no fim da década de 40 com a mefenesina, a qual, por sua curta ação e seu potente efeito miorrelaxante, limitava seu uso terapêutico. Seu derivado, o meprobamato, foi introduzido na terapêutica em 1956, mas, não apresentava grandes vantagens para substituir os barbitúricos. O lançamento do clordiazepóxido em 1960 e sua boa aceitação entre os clínicos e pacientes, possibilitaram aos BZDs a substituição dos barbitúricos com grandes vantagens pela segurança e eficácia terapêutica. Nas três décadas seguintes, os BZDs representaram o ponto de viragem no tratamento seletivo da ansiedade e insônia, que impulsionou muitas empresas farmacêuticas a desenvolver grande quantidade de compostos derivados da estrutura química 1,4benzodiazepina. Atualmente, existem representantes desta classe de composto disponíveis no mercado em mundo todo (Quadro VI.1). No Brasil, o diazepam foi formulado em mais de 20 especialidades farmacêuticas (ex.; Valium®), sendo prescritos os produtos mais caros. Apesar da conhecida eficácia ansiolítica e hipnótica dos BZDs, o incremento de consumo tem levado ao uso indevido ou abusivo. De fato, os BZDs passaram ser usados em excesso quase sempre em indivíduos com histórico de uso abusivo de outras substâncias como os opioides. Ademais, o flunitrazepam, BZD hipnótico, passou ser contrabandeado nos EUA para facilitar o denonimado date rape (“encontro com estrupo”). Essa tentativa de ataque sexual é conhecida popularmente como “Boa noite Cinderela”, onde são também usados outros tipos BZDs e substâncias de abuso (álcool, cocaína, cânabis etc). O potencial de dependência dos BZDs começou ser evidenciado com o primeiro relato sobre sintomas de abstinência quando retirada abrupta de BZD em pacientes que usavam doses altas de clordiazepóxido. Cabe lembrar que o alvo da propaganda discriminatória era as mulheres como dona de casa em trabalho rotineiro e desinteressante. Em meados da década de 1970, os relatos de casos de dependência passaram ser mais frequentes na literatura médica. Esses

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relatos influenciaram muito os padrões de prescrição de BZD nos países britânicos. Em meados da década de 1980, foram impostas restrições, sob forma de uma “lista limitada”de BZDs disponíveis por intermédio do Serviço Nacional de Saúde. Ações similares foram adotadas por outros países, nos EUA, no Estado de Nova York, as prescrições de ansiolíticos sofreram uma queda de 44% em 1988. No Brasil, foi avaliado o impacto da legislação mais restritiva (Portarias 27 e 28, Ministério da Saúde) na venda de medicação psicotrópica, em particular os ansiolíticos e antidistônicos sofreram uma redução de venda.

A dimensão do consumo de BZDs foi verificada em estudos internacionais de prevalência, mostrando que uma entre dez pessoas usava regularmente esses medicamentos. No Brasil, a prevalência de BZDs na cidade de São Paulo foi estimada em 10,2% no ano de 1989. Quadro -VI.1. Principais BZDs empregados como ansiolíticos e hipnóticos Nomenclatura Vias de Meia(Doses) (mg)* administração vida (t½, h) Clordiazepóxido Oral, IV 6-14 75 Diazepam Oral, IV 30-56 5-10 Retal Estazolam Oral 10-24 1-2 Flurazepam Oral 50-74 15-30 Lorazepam Oral, IM, IV 11-19 2-4 Oxazepam Oral 6-10 15-30 Quazepam Oral 39 7,5-15 Temazepam Oral 5-11 7,5-30 Triazolam Oral 1-3 0,125-0,25 Mais recentemente, estimativas realizadas pelo CEBRID, através de levantamento domiciliar, mostraram que o uso na vida de ansiolíticos foi de 3,3% da população brasileira (entre 12 e 65 anos). Contudo, o mais importante desses resultados é a observação de mudanças do padrão de prescrição no uso crônico de BZDs ao longo dos últimos anos.

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Curiosamente, o clonazepam (Rivotril®) de indicação antiepiléptica passou ser o ansiolítico mais consumido no Brasil. Neste contexto, o potencial de desenvolvimento de dependência é relevante do ponto vista clínico e social. POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O abuso e a dependência de BZDs em doses terapêuticas são bem documentados em numerosos estudos. Os primeiros estudos clínicos evidenciaram o desenvolvimento da dependência de BZDs associada à síndrome de abstinência em doses terapêuticas . Em razão dos BZDs serem mais eficazes e seguros que barbitúricos e de outros sedativos, relutou-se em aceitar o potencial de abuso e dependência desses medicamentos. No início da década de 1980, essa visão foi se modificando pela observação da síndrome de abstinência em usuários crônicos de BZDs. No mundo atual, muitos indivíduos usam abusivamente os BZDs para lidar com situações estressantes em atividades cotidianas, na tentativa de solucionar problemas individuais e sociais (perda de emprego) ou então, para obter sensações prazerosas (euforia). Neste contexto, é muito importante a avaliação dos riscos de uso abusivo dos BZDs, tais como o uso concomitante de álcool e de outras substâncias de abuso (p.ex.: cocaína, heroína), condição psiquiátrica (ansiedade grave) que requer uso prolongado de BZDs e o uso de BZD com meia-vida curta em altas doses. Os pacientes com histórico de alcoolismo ou de outras substâncias de abuso têm o risco aumentado para o abuso de BZDs. Nesse sentido, o diazepam e o alprazolam são usados abusivamente com a finalidade de intensificar os efeitos euforizantes de opioides ou para diminuir a agitação e a irritabilidade causadas pelo uso continuado de cocaína. Os BZDs também reduzem a ansiedade produzida na síndrome de abstinência de opioides. Em contraposição, poucos usuários crônicos que recebem BZDs para suas indicações médicas abusam dessa medicação quando comparados àqueles em estado ansioso ou com insônia, indicando a importância da personalidade do paciente quanto ao uso da medicação. Além disso, as propriedades reforçadoras relacionadas à autoadministração de BZDs são discretas quando comparadas a outras substâncias de abuso. Nas doses terapêuticas usuais por períodos não superiores a quatro semanas, o risco da dependência é reduzido. Outro aspecto importante é o diagnóstico da dependência de BZDs, segundo os critérios de DSM-IV ou V (ver Capítulo 1). Nesta direção, alguns trabalhos mostram que os critérios

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comportamentais (3 a 7) para o diagnóstico de dependência de BZDs são raramente preenchidos. Outros critérios de diagnóstico relacionados à dependência física como a presença de tolerância e da síndrome de abstinência serão comentados adiante. Tolerância. Em alguns pacientes que aumentam suas doses de BZDs, a tolerância se desenvolve para os efeitos sedativos. Entretanto, muitos pacientes relatam que se beneficiam do efeito ansiolítico, mesmo quando ocorre tolerância aos efeitos sedativos. O grau de tolerância que se desenvolve aos efeitos ansiolíticos de BZDs ainda é um assunto controverso. A tolerância não se desenvolve para todos os efeitos do BZDs. As doses agudas que provocam efeitos cognitivos permanecem inalteradas em usuários crônicos. O uso diário de BZDs induz desenvolvimento de tolerância mais rapidamente que o uso intermitente. Síndrome de abstinência, Os sintomas de abstinência de BZDs foram observados em vários estudos de descontinuação de uso da medicação, contudo, não foram determinadas claramente a frequência e a gravidade da abstinência. Ademais, estudos mais bem controlados sobre descontinuação de uso de BZDs mostram sintomas de abstinência relevantes clinicamente. Os sintomas mais frequentemente relacionados à suspensão de BZDs podem ser agrupados em: a) autonômicos (taquicardia, sudorese); b) espasmos musculares; c) distúrbios do sono (insônia); d) parestesias e hipersensibilidade ao som e luz; e) ansiedade e agitação; f) convulsões; e g) sintomas psicóticos (delírio). Os sintomas de abstinência de BZDs são de difícil avaliação pelo clínico e pelo paciente, uma vez que esses sintomas podem ser confundidos com os observados no próprio estado ansioso. Nesses casos, critérios clínicos podem auxiliar o diagnóstico diferencial de abstinência de BZDs com o reaparecimento da ansiedade, como também a sequência temporal dos sintomas de abstinência. Ademais, os antagonistas de receptores de BZD (flumazenil), são potencialmente úteis como instrumento diagnóstico de dependência física a BZDs, pois precipitam síndrome de abstinência em animais e humanos. Tratamento. A retirada lenta e gradual dos BZDs, que são prescritos para tratamento prolongado, se processa ao longo de meses com a redução das doses. Os sintomas de abstinência, nesses casos, geralmente são brandos. O flumazenil e a melatonina estão em fase experimental de uso na abstinência.

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Em casos de desintoxicação dos BZDs, o retorno da ansiedade ou insônia pode ser controlado com medicamentos não-BZDs, como a buspirona, carbamazepina e antidepressivos. Os BZDs de meia-vida longa são recomendados durante a desintoxicação. As intervenções psicoterápicas como a terapia cognitivo-comportamental são recomendadas. Os casos que exigem cuidados especiais durante a desintoxicação são aqueles em que os BZDs foram usados abusivamente com álcool, opioides e cocaína. Toxicidade Em geral, o grau da toxicidade aguda é relativamente baixo quando os BZDs são administrados isoladamente. Os casos graves de depressão do SNC causados por superdosagem são revertidos com administração intravenosa de flumazenil, antagonista de receptor de BZDs. Casos de intoxicação fatais foram registrados em doses superiores a 700 mg para o clordiazepóxido e o diazepam, embora há relatos de usuários tolerantes que usam abusivamente cerca de 1000 mg/dia de BZDs. Em combinação com outras substâncias psicoativas, como álcool e barbitúricos, tornam-se perigosos. Os efeitos teratogênicos desses compostos são contraditórios. Contudo, esses fármacos atravessam a barreira placentária e podem deprimir funções do SNC em neonatos e recémnascidos prematuros, nos quais os sistemas de biotransformação e de excreção de fármacos. Recaída ao uso de benzodiazepínicos A recaída desenvolve mais tarde com progressivo aparecimento de sintomas prétratamento durante a descontinuação de tratamento com BZDs. O perfil do usuário dependente é diversas tentativas mal-sucedidas de suspensão dos BZDs e muitas vezes com problemas sociais e transtornos de personalidade associados. No processo de descontinuação, podem ocorrer o efeito rebote e a síndrome de abstinência. Os sintomas rebote consistem no reaparecimento precoce e transitório da ansiedade, insônia e ataques de pânico pré-existentes ao tratamento, porém com maior intensidade. Na prática, é frequentemente difícil isolar a recaída do efeito rebote, pois ela ocorre seguida de efeito de rebote. Cabe assinalar que o efeito rebote não é característica específica da dependência de BZDs, podendo ocorrer em esquema posológico de dose única.

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SEDATIVOS-BARBITÚRICOS No século passado, o uso dos barbitúricos como hipnótico sedativo foi muito popular durante muitas décadas, entretanto, com exceção de algumas indicações terapêuticas especializadas, tem sido substituídos ao longo do tempo por medicamentos mais efetivos e seguros como os benzodiazepínicos (ver Histórico). O atual uso clínico de barbitúricos exige cuidados em relação ao potencial de abuso e dependência (similar ao etanol) e os riscos de interações medicamentosas indesejáveis com outros fármacos como os analgésicos. Ademais, é polêmico o uso de barbitúricos com outras substâncias como opioides e relaxantes musculares na eutanásia ou suicídio assistido. Há relatos dessa prática em países como Holanda e Suíça. Quadro VI-2. Classificação e propriedades de barbitúricos Nome genérico Vias de MeiaUsos clínicos administração vida (h) Ação prolongada Butabarbital Oral 35-50 Hipnótico Fenobarbital Oral, IM 80-120 Antiepiléptico

Doses (mg) (adulto)

50-100 15-40

Mefobarbital Ação intermediária Pentobarbital

Oral

10-70

Antiepiléptico

30-100

Oral, IM, IV, retal

15-50

Hipnótico

100

Secobarbital

Oral, IM, IV, retal

15-40

Hipnótico

100

IV, retal

8-10

Anestésico geral

Ação ultracurta Tiopental

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA Os relatos mais recentes sobre a prevalência do uso abusivo ou não médico de barbitúricos são raros. No Brasil, levantamento revela que 1,1% dos estudantes de ensino fundamental e médio do sul do país usaram barbitúricos em suas vidas. O declínio de uso de barbitúricos como hipnótico sedativo observado nas últimas décadas causou queda significativa na prevalência de abuso e dependência no tratamento da insônia. Evidentemente, o desenvolvimento da dependência de barbitúricos está relacionado com vários fatores predisponentes; um deles é o uso prolongado dos barbitúricos com finalidades terapêuticas no combate a insônia. As doses podem tornar-se progressivamente maiores à noite, em virtude de insônia, e pela manhã, com intuito de sedação. Amobarbital, pentobarbital e secobarbital todos com efeitos de curta duração, são hipnóticos mais usados abusivamente que os de ação prolongada, como fenobarbital, pois alegam os dependentes que a intensidade e duração dos efeitos euforizantes são mais sentidos. Neste sentido, o uso como antiepiléptico apresentou baixo risco de dependência. Os padrões de uso abusivo de barbitúricos variam de inebriação durantes alguns dias, até o uso compulsivo, diário e prolongado em altas doses. Há relatos de uso associado de barbitúricos com substância de abuso como anfetamina para obtenção de maior alteração de humor que qualquer substância isolada. Tolerância. A administração repetida e prolongada de barbitúricos de ação curta desenvolve tanto a tolerância farmacocinética como a farmacodinâmica em animais e humanos. A tolerância farmacocinética ou disposicional de barbitúricos está relacionada à indução de enzimas do sistema P450 como CYP3A4

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que provoca aumento da velocidade de sua própria biotransformação. Os animais que desenvolvem tolerância apresentam diminuição significativa do efeito sedativo e ataxia quando comparados aos não tolerantes. Parece que nenhuma tolerância se desenvolve aos efeitos letais e depressores respiratórios de barbitúricos. Em humanos, administração repetida de barbitúricos desenvolve tolerância a alguns efeitos sobre o sono. Com a retirada do fármaco, instala-se a síndrome de abstinência. Nesta situação, os parâmetros que haviam diminuído pela administração de barbitúricos podem sofrer um aumento reativo (efeito rebote). Às vezes, pode ocorrer aumento reativo, mesmo não havendo retirada dos barbitúricos, fato esse que contribui para a pouca eficácia dessas substâncias como hipnóticos. Síndrome de Abstinência. A síndrome de abstinência de barbitúricos de ação curta evidencia-se em torno de 12 a 16 horas após a última administração e caracteriza-se por fraqueza, tremor, inquietação, ansiedade e insônia. Após vinte e quatro horas, podem ocorrer náuseas, vômito, cólica abdominal, hipotensão ortostática e reflexos palpebrais. Os sintomas geralmente atingem o pico máximo durante o segundo e terceiro dias de abstinência quando pode ocorrer ataque convulsivo do tipo epiléptico. No caso de barbitúrico de ação prolongada, os sintomas da abstinência iniciam no segundo ou terceiro dias e atingem o pico máximo lentamente. As convulsões podem não ocorrer ou ocorrer tardiamente até no sétimo dia. As crises convulsivas apresentam melhora após o terceiro dia, porém a metade dos pacientes pode evoluir para estado confusional caracterizado por alucinações visuais geralmente de natureza persecutória e completado por desorientação espacial que cessa em torno do oitavo dia. Durante o quadro confusional pode ocorrer entre o quarto e sétimo dia agitação e hipertemia que leva ao colapso cardiovascular e morte (ver Tratamento). A síndrome de abstinência pode ocorrer em recém-nascidos, cujas mães usavam abusivamente barbitúricos ou como medicação antiepiléptica. Há relatos de abstinência aos barbitúricos quando associados a analgésicos. Tratamento. A desintoxicação é realizada cautelosa e lentamente, com constante observação clínica. Inicia-se a substituição com pentobarbital em doses crescentes até se atingir um nível de estabilização do paciente no qual este apresenta apenas pequenos tremores, irritabilidade e insônia. Mantém-se a dose por algum tempo, desenvolve-se paralelamente a psicoterapia e tenta-se diminuir, gradativamente, a dose, sempre com o paciente sob rígido

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controle. Havendo início ou intensificação dos sintomas da privação, como insônia, tremores, fraqueza, inquietação e hipotensão ortostática, suspendem-se a redução do pentobarbital e, se necessário, aumentam-se suas doses; posteriormente tenta-se nova redução. O tratamento dos sintomas graves da síndrome de abstinência aos sedativos, barbitúricos ou não, principalmente de estados delirantes, é uma constante preocupação, pois nessa situação, não há uma terapêutica eficaz. Intoxicação O maior risco em desencadear sintomas tóxicos graves é a ingestão acidental de superdoses ou intencional em tentativas de suicídio e em dependentes por ação cumulativa, uma vez que os limites da dose tóxica não sofrem grandes alterações no organismo dependente em relação ao normal. Há pequena margem entre o limite superior da tolerância e o da intoxicação aguda. Os sinais e sintomas da intoxicação devida ao uso abusivo e contínuo lembram aqueles da intoxicação alcoólica, ou seja, estado de embriaguez ou torpor generalizado onde o raciocínio, a acuidade mental, a memória, o estado de alerta, a emoção, a fala e a compreensão estão comprometidos. O alívio de tensão e as sensações eufóricas causam acessos de riso e choro sem nenhuma razão aparente; irritabilidade; ideias paranoica e suicida são constantes. A distorção da percepção do tempo induz o dependente a ingerir doses excessivas em curtos intervalos de tempo, o que representa risco de vida. A morte resulta da intensa depressão respiratória. Em casos de intoxicação aguda grave, o sistema cardiovascular exige atenção especial devido a hipotensão acentuada ou choque e a desidratação intensa dos pacientes. O tratamento da intoxicação barbitúrica é baseado em medidas gerais de suporte. A avaliação da profundidade do coma e da ventilação adequada são os cuidados iniciais. A lavagem gástrica ou êmese podem ser adotadas, tomando as precauções para evitar aspiração do conteúdo gástrico. A manutenção constante das vias áreas e prevenção de infecções (pneumonia). A diurese forçada e alcalinização da urina aceleram a eliminação de alguns barbitúricos de ação prolongada, porém deve ser avaliado o risco-benefício clínico. Em casos de insuficiência renal deve ser instituída a hemodiálise.

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Capítulo VII

INALANTES Os inalantes são substâncias voláteis à temperatura ambiente e gases, que provocam abruptas alterações no estado mental quando inaladas. Usualmente, os vapores das substâncias são absorvidos por via pulmonar quando administrados por meio de inalação (sniffing). Em razão disso, o termo “inalante”, refere-se à via de administração dessas substâncias. Cabe acrescentar que os vapores de solventes são inspirados pela boca ou nariz de materiais (algodão) embebidos com a substância (huffing) ou quando colocados em saco plástico (bagging). Atualmente, estima-se que haja mais de 1000 produtos domiciliares e industriais comercializados, contendo substâncias voláteis sujeitas ao abuso. Nessa categoria estão incluídos diferentes produtos (adesivos, aerossóis, agentes de limpeza, solventes, gasolina e combustíveis engarrafados, dentre outros), contendo diversas substâncias químicas, como exemplo, anestésicos inalatórios, nitritos e solventes orgânicos (substâncias líquidas à temperatura ambiente com certo grau volatilidade). Por convenção, não se incluem nessa categoria, substâncias de abuso como crack (cocaína) ou nicotina (tabaco) que podem ser inaladas, entretanto, devem ser aquecidas ou queimadas durante o processo. Os produtos de abuso mais comumente utilizados e as principais substâncias químicas

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estão listados no Quadro VII.1. No contexto científico, ainda não há consenso sobre as subclassificações dos inalantes de abuso, baseadas na estrutura química, propriedades farmacológicas e modo ou intenção de uso do produto. Em discussão, concluiu-se que a classificação de inalantes por forma ou tipos de produtos não é vantajosa para propósitos científicos, melhor seria uma subclassificação de inalante baseada na combinação de similaridades químicas e farmacológicas e compartilhada com padrões de abuso. HISTÓRICO DO USO E ABUSO DOS INALANTES Desde épocas muito antigas, chineses, egípcios e gregos já usavam a inalação de substâncias voláteis com intuito de experimentar seus efeitos psicoativos em rituais místicos e religiosos. Paralelamente, o registro mais antigo de uso de anestésicos está gravando em uma tábua de argila da Babilônia (2250 a.C.). O óxido nitroso, popularmente conhecido como gás hilariante foi descoberto por Priestley em 1876 e somente em 1895, Davy o inalou e recomendou o seu uso para anestesia geral em cirurgia. Outras substâncias voláteis foram introduzidas como o éter etílico em 1846 por Morton e o clorofórmio por Liebig em 1831. Mais recentemente, o anestésico cloreto de etila, foi utilizado na fabricação do lança-perfume, como componente volátil. No Brasil, o uso abusivo de lança-perfume nos festejos de Carnaval levou a proibição da sua fabricação. Entretanto, além do contrabando de lança-perfume, há um produto caseiro clandestino denominado “cheirinho da loló ou cheirinho”, contendo uma mistura de dois ou mais componentes (éter etílico, etanol e clorofórmio).

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Após a síntese da nitroglicerina em 1846, o médico inglês T.L. Brunton administrou o nitrito de amilo por inalação para o alívio da crise anginosa em 1857. Depois de mais 100 anos, Moncada e colaboradores (1988) estabeleceram o papel do óxido nítrico (NO) na vasodilatação induzida pelos nitritos. O abuso dos nitritos começou na década de 1960 quando ampolas de nitrito de amilo eram abertas com estouro (poppers) e usadas para fins recreativos e aumento de desempenho sexual em homossexuais masculinos. O excesso de disponibilidade de nitrito de amilo no mercado foi restringido nos EUA em 1968 e, gerando um mercado clandestino. Para evitar processo de criminalização por comércio ilegal, outros produtos alternativos de nitrito de butila foram desenvolvidos por pequenas companhias e vendidos legalmente em sex shops como incenso líquido ou aromas (Aroma of Men, Rush, Clímax). A partir da década de 1940, o desenvolvimento industrial e a consequente fabricação em escala de produtos contendo substâncias voláteis possibilitou aos indivíduos entrar em contato com solventes e outras substâncias em diversos modos: no domicílio, nos seus trabalhos ou pela inalação intencional para obtenção de efeitos euforizantes (high). A exposição crônica em baixas concentrações de inalantes no meio ocupacional representa risco à saúde do trabalhador, devido à abrangência dos processos industriais. Entre as ocupações vulneráveis incluem pintores, comestologistas, anestesiologistas e petrolistas. Cabe ressaltar que durante os episódios de abuso as concentrações de solventes são muito superiores as concentrações durante a exposição ocupacional que variam entre 50 a >1000 ppm, dependendo da substância. Para o tolueno um dos solventes mais comumente abusado, estima-se as concentrações entre 5000 a 15000 ppm, que envolvem 15 a 20 inalações em curto intervalo de tempo (10-15 min).

Os inalantes são abusados por grande número de indivíduos em diversos países do mundo (NIDA, 2005). Por exemplo, nos EUA 23 milhões de indivíduos acima de 12 anos relataram o uso na vida de inalantes (SAMHSA, 2003). O abuso de inalantes é um problema que afeta todos os segmentos populacionais. Contudo, a população de crianças e adolescentes em baixa situação socioeconômica é uma das mais acometidas pelo abuso dos inalantes em países como o Brasil. No Brasil, estimativas realizadas pelo CEBRID através levantamento domiciliar mostrou que os solventes foram consumidos por 5,8% da população (entre 12 a 65 anos). Esse estudo mostrou também que os inalantes se classificam em 4º lugar dentre as substâncias mais usadas pela população, sobrepujados pelo álcool, tabaco e cânabis (maconha). Em relação à população estudantil de 1º e 2º graus, os inalantes ocupam o 3º lugar das substâncias mais consumidas, precedidas pelo álcool e tabaco (CEBRID, 2004).

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Quadro VII-1. Produtos de abuso e seus componentes voláteis Categorias Substâncias químicas mais comuns ( exemplos) Adesivos (colas e Acetona, acetato de etila, benzina, cimento de hexano, ciclohexano, cloreto de metila, borracha) glicol, metiletilacetona (MEK), nafta, tolueno, 1,1,1-tricloroetano, tricloroetileno, xilenos Aerossóis Butano, éter dimetílico, fluorocarbonos, (desodorantes, halons 11,12,22, hidrocarbonos, odorizante de isobutano, propano, tolueno, nitritos ambiente, gás de buzina, spray fixador de cabelos, spray para pintura) Agentes de limpeza (desengraxantes, produtos de limpeza a seco, removedores para mancha)

Diclorometano, tolueno, tetracloroetileno, tricloroetano, tricloroetileno

Solventes (extintores de incêndio, gases combustíveis de isqueiro, líquido corretivo, removedores de esmaltes de unha, removedores para

Acetato de amila, acetato de etila, acetona, alcoóis (metanol, etanol), diclorometano, bromoclorodifluormetano, butano, isopropano, propano, tolueno, tricloroetano, tricloroetileno

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tintas, tíner) Gasolina e combustíveis engarrafados

Hidrocarbonetos alifáticos e aromáticos, benzeno, butano, etanol, freon, metanol, propano, tolueno

Dentre os produtos mais abusados estão colas, tíner, esmalte e benzina (CEBRID, 2003). De fato, a escolha recaiu para os produtos que são de baixo custo, fácil aquisição e legal. Em razão disso, esses produtos podem contribuir na ampla difusão de abuso dos inalantes em geral e dos solventes em particular. Na população estudantil universitária, o uso de inalante precede as tradicionais substâncias de abuso (cânabis, tabaco, cocaína etc). POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O interesse pelo estudo do potencial de abuso e dependência de inalantes vem aumentando a partir da última década, pois surgiram muitos problemas de saúde pública, principalmente relacionados ao uso abusivo pela população mais jovem e aos trabalhadores expostos aos solventes nas indústrias. Nos EUA, os padrões de uso de inalantes e as correlações progressivas com o abuso e dependência entre adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos mostram que o uso de inalantes é o padrão mais comum e apenas um subgrupo de adolescentes (0,5%) encontra-se nos critérios de abuso e dependência do DSM-IV ou V. Esses padrões de uso e abuso diferem discretamente na população adulta. A progressão para o uso abusivo e dependência desde primeiro uso, múltiplo uso de inalantes e semanalmente foram observadas nos adolescentes. Ademais, é importante ressaltar a presença de transtornos coexistindo com abuso e dependência de outras substâncias de abuso e ações antissociais praticadas pelos adolescentes. Desta forma, as comorbidades como a depressão entre pacientes adolescentes com critérios de DSM-IV ou V de abuso e dependência merecem cuidado especial no início de tratamento.

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Tolerância. O estudo de efeitos da administração repetida de inalantes é muito importante para caracterização da dependência física. Contudo, a demonstração de desenvolvimento de tolerância aos efeitos dos inalantes tem sido muito difícil em modelos animais e humanos. Em humanos, o uso crônico de inalantes em altas doses durante 1 a 2 meses pode instalar a tolerância. Situação similar, ocorre para tolerância aos efeitos “ansiolíticos” e cognitivos causados por solventes como tolueno e 1,1,1-tricloroetano. Síndrome de abstinência. Alguns estudos em modelo animal descrevem a síndrome de abstinência de inalantes. O aparecimento de convulsões devido à manipulação foi caracterizada após a retirada de período continuo de 4 dias de inalação de tolueno e 1,1,1-tricloroetano. Em humanos, a síndrome de abstinência de inalantes é moderada e caracteriza-se por irritabilidade, “fissura”, tremores, náuseas, distúrbios do sono e respiração acelerada. Não há relatos de síndrome de abstinência ao óxido nitroso. Tratamento. A literatura é restrita para o tratamento da dependência de inalantes. Há relatos recentes de tratamento de casos de abstinência de inalantes com baclofen e lamogtrina. Medidas de suporte geral são adotadas para intoxicação aguda e crônica (ver adiante). Intoxicação aguda e crônica A intoxicação aguda de solventes voláteis é similar ao etanol em doses baixas, e manifesta-se através de euforia inicial (ver Capítulo V). Essa primeira fase excitatória é a mais procurada pelos usuários para obtenção de sensações de bem-estar (high) de instalação rápida e duração em geral de 15 a 45 minutos. Há relatos de alterações da percepção, estados hilariantes, onipotência e exaltação. Ademais, sintomas desagradáveis podem ocorrer como vertigens, tontura, náusea, vômito, espirro, tosse e fotofobia. A ocorrência de alucinação visual é comum e, poder ser considerada como sintoma diferencial entre a intoxicação alcoólica aguda e a causada por inalação de solventes. Na fase de depressão do SNC pode ocorrer confusão, desorientação, obnubilação, perda do autocontrole, letargia, cefaleia, turvação da visão, diplopia, ataxia, fala pastosa e nistagmo. O aprofundamento da depressão pode acarretar inconsciência, convulsões, paranoia e

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comportamento bizarro. O maior perigo do abuso de solventes voláteis é a instalação de intoxicações graves, como depressão respiratória com eventual parada respiratória, arritmias cardíacas e hipotensão arterial, que podem acarretar morte súbita (sudden sniffing death). A morte pode estar também associada à anóxia durante a inalação de solventes voláteis de um saco plástico (bagging) ou asfixia pela oclusão das vias respiratórias. Outras complicações clínicas incluem insuficiência renal e hepática, distúrbios gastrintestinais e reações alérgicas. A maioria dos sinais e sintomas da intoxicação aguda é transitória e abolida com medidas de suporte geral. Na intoxicação crônica de solventes voláteis podem ocorrer déficits cognitivos, menor destreza manual, cansaço, cefaleia, ataxia, fraqueza muscular, paralisia e perda sensibilidade dos membros inferiores. Os efeitos tóxicos a longo prazo de tolueno pode resultar em lesões do SNC que se manifestam em distúrbios emocional e de pensamentos, tremores e ataxia. A passagem de solventes voláteis através da barreira placentária pode afetar o desenvolvimento fetal. O uso abusivo de solventes durante a gravidez pode aumentar o risco de aborto e causar síndrome fetal similar a alcoólica (ver, Capítulo V). O óxido nitroso é usado abusivamente algumas vezes por médicos e dentistas. Agudamente, causa euforia, analgesia e perda da consciência. Cabe assinalar a depressão medular como efeito adverso de real importância, principalmente para os integrantes de uma equipe cirúrgica que, rotineiramente, aplica inalação de concentrações subclínicas do óxido nitroso em ambiente desprovido de sistemas de eliminação para o exterior. Aliás, este aspecto da eliminação dos agentes inalatórios deve merecer atenção constante, pois a poluição do ambiente cirúrgico é perfeitamente evitável. A administração prolongada de óxido nitroso pode resultar em sinais de deficiência de vitamina B12 (anemia e neuropatia periférica). A administração aguda de nitritos orgânicos causa cefaleia, tonturas e franqueza associada com a hipotensão postural que pode ocasionalmente resultar em perda de consciência. Alem desses efeitos adversos podem ocorrer efeitos tóxicos mutagênico, teratogênico e carcinogênico causados pela produção de nitrosaminas na biotransformação de nitritos. O uso de nitritos pode estar associado ao risco de doenças infecciosas (AIDS e hepatite) em práticas sexuais, sem a devida proteção. Ademais, o efeito imunossupressor de nitritos pode promove o desenvolvimento de sarcoma de Kaposi.

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Capítulo VIII

TABAGISMO O tabaco é as folhas secas da planta cultivada (Nicotiana tabacum) da família da Solanaceae, nativa da America do Norte. A espécie primitiva da América do Sul, não era muito agradável de fumar, logo foi substituída pela Nicotiana tabacum, de aroma delicado, que chegou inclusive ao Brasil, provavelmente pela migração de tribos tupis-guaranis.

Nicotiana tabacum

Fig.VIII.1- Folhas e flores da planta (Nicotiana tabacum). A nicotina foi o primeiro alcaloide líquido e hidrossolúvel extraído do tabaco e praticamente não têm interesse terapêutico por ser altamente tóxico, porém é de importância em estudo laboratorial como estimulante específico dos receptores nicotínicos. Na fumaça do cigarro são encontradas mais de 4000 substâncias químicas, muito das quais podem contribuir potencialmente para o desenvolvimento da dependência ao tabaco. O estudo da nicotina como a principal substância responsável pelo tabagismo reveste-se de especial interesse, em vista de encontrar-se na fumaça de preparações de tabaco, como cigarro, charuto e cachimbo, utilizados por extensa faixa da população mundial com riscos consideráveis para a saúde sendo, portanto de interesse médico social.

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HISTÓRICO DO USO, ABUSO E DEPENDÊNCIA A origem do uso medicinal e religioso do tabaco nas sociedades indígenas da América Central é de aproximadamente 8000 anos. No México, os nativos usavam o tabaco para o alívio da dor causada pelo frio e contra resfriados e tosses. Muitos historiadores atribuem a viagem de Colombo e seus tripulantes ao Novo Mundo, a possibilidade da primeira vez aos colonizadores europeus a observação de índios fumando rolos feitos de folhas.

A planta (Nicotiana tabacum) era denominada caoba e, tabaco era o nome do canudo empregado para aspirar a fumaça das folhas picadas. Os índios costumavam mascar o tabaco e não raro o aspiravam sob forma de pó. Esses hábitos foram adquiridos pelos colonizadores e progressivamente introduzidos no Velho Mundo, apesar de tentativas de proibição do uso. A planta do tabaco foi denominada nicotiana em homenagem a Jean Nicot de Villemain, diplomata francês em Portugal, que remeteu à Europa as sementes e a planta, acreditando que a erva usada pelos índios fosse dotada de propriedades curativas. Em 1561, foi introduzido na corte francesa no alívio da enxaqueca da rainha Catherine de

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Medicis com a denominação de “pó americano” (poudre américaine). A rainha desenvolveu gosto entusiástico por ele, tornando popular dentro e fora da corte. Nos EUA, a existência da planta foi descoberta por exploradores ingleses na Florida em 1565 e mais tarde foi criado o primeiro polo colonial de exportação na Virginia em 1612. A planta proliferou em outros países tais como, Índia, Portugal, Japão e Turquia. Atualmente, a planta do tabaco é cultivada em cerca de 120 países no mundo. O Brasil é o maior exportador mundial de tabaco e o segundo produtor com 500 mil toneladas (Instituto Nacional do Câncer, 2007) O tabaco foi comercializado sob forma de fumo para cachimbo, rapé, tabaco para mascar e charuto até o século XIX, quando se iniciou sua manufatura sob a forma de cigarro na Espanha ( foto abaixo).

Em 1856, foi construída uma fábrica para produção em massa na Inglaterra e, a primeira maquina de fazer cigarro foi introduzida em 1880 nos EUA. O uso de cigarro espalhou-se de forma epidêmica por todo o mundo a partir de meados do século XX, devido às facilidades de produção, transporte e distribuição e ajudado pelo desenvolvimento de técnicas avançadas de

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publicidade e marketing.

A partir da década de 1960, surgiram os primeiros relatos médicos sobre o uso de cigarro e o adoecimento do fumante e, posteriormente ao do não fumante (Instituto Nacional do Câncer, 2005). O tabagismo é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a principal causa de morte evitável em todo o mundo. A OMS estima que um terço da população mundial adulta, isto é, um bilhão e trezentos milhões de pessoas sejam fumantes. O Brasil possui cerca de 30 milhões de fumantes, a maioria dos fumantes tem entre 20 e 49 anos de idade, sendo aproximadamente 11 milhões de mulheres e 16 milhões de homens (Instituto Nacional do Câncer, 2003). Embora, o uso predominante ocorre entre os homens, a prevalência tem aumentado consideravelmente entre as mulheres nos últimos anos. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (2005), duzentos mil brasileiros morrem a cada ano como decorrência de doenças relacionadas ao tabagismo. Em todo o mundo, esse número chega a 5 milhões. O tabaco tem relação causal bem estabelecida com várias doenças. Vinte e cinco por cento das mortes causadas por doença coronariana, 85% daquelas causadas por doença pulmonar obstrutiva crônica e 30% dos óbitos decorrentes de todos os tipos de câncer estão associados ao seu consumo. É fato que 90% da ocorrência de câncer de pulmão têm no tabagismo seu agente causal (Instituto Nacional de Câncer, 2001). O risco de mortalidade é proporcional ao número de cigarros consumidos diariamente. O risco de mortalidade está vinculado também à idade em que se começa a fumar e ao modo de fumar e de tragar. Apesar desses dados preocupantes, observa-se queda significativa na prevalência de fumantes ao longo dos últimos 20 anos. Mais recentemente, os riscos dos fumantes passivos estão sendo levados em conta em vários países do mundo. Em nosso meio, foi promulgada a lei (13.541) que adota medidas eficazes de proteção contra a exposição à fumaça em locais fechados.

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POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O abuso de substâncias psicoativas entre humanos geralmente tem início na adolescência, um período da ontogenia em que os indivíduos exibem características comportamentais idades-específicas, como comportamento de risco e busca por novidades, que pode predispor ao início do uso de substâncias psicoativas (ver, Capítulo I). O início do ato de fumar de tabaco é típico da adolescência e com elevada probabilidade de continuar na fase adulta dos fumantes. Neste sentido, o uso de cigarros por indivíduos jovens poderia estar relacionado à facilidade de consumo posterior de outras substâncias de abuso, o denominado modelo da “porta de entrada”. Os fundamentos e questionamentos da teoria da “porta de entrada” foram discutidos por Malbergier e Oliveira (2005). A severidade da dependência de tabaco é evidenciada por estimativas que revelam que, nos EUA, 80% dos fumantes regulares manifestam o desejo de parar de fumar, desses apenas 35% tentam de fato e menos de 5% são bem sucedidos e abandonam o tabaco sem ajuda especializada. Outra observação relevante é o fato de que enquanto existem muitos usuários ocasionais de álcool e cocaína, isso é pouco observado entre os usuários de tabaco que, de modo geral, desenvolvem dependência. Outro aspecto importante é a caracterização das várias trajetórias do uso de cigarros durante a vida social e ocupacional dos indivíduos. Devido facilidade de obtenção de tabaco, a maioria de adolescentes tem riscos de saúde associado com o ato de fumar. Uma vez estabelecido o padrão de fumante regular é rápida a trajetória para se tornar dependente, permanecendo ao longo da vida do fumante regular por 20 anos em média. Com relação à saúde ocupacional, os estudos têm sido centralizados nas doenças causadas pelo tabaco e seus efeitos sobre o trabalho, os efeitos do trabalho sobre o consumo de tabaco (cigarros/dia) e suas interações com bebidas alcoólicas e os compostos presentes no ambiente de trabalho. Tolerância. Os fumantes confirmam que a exposição inicial ao tabaco pode produzir mal-estar, náusea, vômito, cefaleia e disforia.

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A tolerância se desenvolve rapidamente para esses efeitos aversivos iniciais e facilita o desenvolvimento do padrão de uso compulsivo. Existem evidências de que os efeitos subjetivos da nicotina também desenvolvem tolerância. Os estudos farmacológicos clássicos utilizando a nicotina mostram que ocorrem tanto tolerância metabólica como farmacodinâmica. Síndrome de abstinência. A síndrome de abstinência devida à cessação ou redução do uso de tabaco apresenta variações interindividuais quanto à duração e à intensidade dos sinais e sintomas. Os sinais e sintomas somáticos e motivacionais da síndrome incluem: desejo de fumar, irritabilidade, impaciência, ansiedade, frustação, disforia, dificuldade de concentração, cefaleia, sonolência, aumento do apetite, acarretando ganho de peso, distúrbios gastrintestinais e bradicardia. O desejo de fumar e outros sintomas descritos acima começam 6-12 horas após o último cigarro, e atingem um pico entre 1 a 3 dias e, retornado ao normal dentro de 7 – 30 dias, após a cessação de fumar. Entretanto, pode ser evocado por estímulos específicos ambientais que foram previamente associados ao modo de fumar, como, p. ex., após as refeições ou ingestão de café ou bebidas alcoólicas. Os sintomas da retirada de nicotina (síndrome abstinência protraída) incluem um continuo desejo intenso (fissura) que pode durar mais de 6 meses. Nesta direção, sugere-se que os componentes afetivos da retirada de nicotina desempenham um papel importante na manutenção da dependência de tabaco. Apesar de muitos fumantes serem inicialmente bem sucedidos nas tentativas de não fumar, as taxas de recaídas ao longo prazo são altas e apenas 10-20% dos fumantes permanecem abstinentes após um ano.

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Tratamento. No tratamento farmacológico do tabagismo é preconizada atualmente, a terapia de reposição de nicotina, bupropiona, nortriptilina, rimonabant e vareniclina. Os sinais e sintomas da síndrome de abstinência do tabaco podem ser aliviados pela administração de nicotina contida em goma de mascar ou fita adesiva. Entretanto, a nicotina liberada nessas preparações não produz picos de nicotina no organismo como aqueles produzidos pelo ato de fumar cigarros, assim elas não reproduzem todas as sensações subjetivas da nicotina. Mesmo assim, o alívio da síndrome de abstinência proporcionado pela goma de mascar e pelos adesivos contribui para a redução gradativa do número de cigarros fumados diariamente. A bupropiona é uma aminocetona que inibe a recaptação de noradrenalina e de dopamina nas sinapses, atuando como antidepressivo atípico. Não se sabe ao certo o mecanismo pelo qual a bupropiona age na dependência de nicotina; pode ser que ela atue pela redução do transporte neuronal de dopamina e noradrenalina ou mesmo pelo antagonismo a receptores nicotínicos, pela redução da compulsão pelo uso de cigarros; embora relevante, o tratamento da comorbidade depressiva não explica todo o seu efeito. O fármaco é contraindicado em pacientes com antecedentes de epilepsia não controlada, traumatismo crânio-encefálico, anorexia e bulimia e não deve ser usado concomitantemente a inibidores da monoaminoxidase (IMAO). Seus efeitos adversos mais frequentes são náuseas, cefaleia e insônia. A nortriptilina é antidepressivo tricíclico que pode ser vantajoso como tratamento alternativo do tabagismo, pois tem menor efeito anticolinérgico se comparada a outros tricíclicos, e menor risco de provocar convulsões, além de ter custo menor que a bupropiona. Há poucos estudos sobre os efeitos adversos da nortriptlina no tratamento da dependência de nicotina, sendo assim, deve ser considerada como fármaco de segunda-escolha.

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O rimonabant, antagonista do receptor canabinoide CB1 foi avaliado em vários ensaios clínicos. O fármaco parece ser eficaz no tratamento da cessação de fumar, embora sua eficácia não exceda a terapia de reposição de nicotina e seu uso pode ser limitado por efeitos adversos emocionais (náusea, ansiedade e depressão). Recentemente, o rimonabant foi retirado do mercado farmacêutico no Brasil. A vareniclina é um agonista parcial do receptor nicotínico 42 que estimula a liberação de dopamina e simultaneamente bloqueia os receptores nicotínicos. Estudos clínicos de fase II e III mostram que a vareniclina produziu promissores resultados, sugerindo que o novo agente poder ser um importante avanço no tratamento da dependência de nicotina. Contudo, recentes observações de surtos depressivos em fumantes fizeram com que a ANVISA restringisse o uso da varenicli na.

Cabe assinalar que a avaliação criteriosa de comorbidades psiquiátricas, como por exemplo, a depressão, para efetividade do tratamento adotado. Ademais, intervenções não farmacológicas complementam os tratamentos. Intoxicação aguda É considerada tóxica para o homem em dose acima do limite fatal de 60 mg, segundo Sollman (1926) e (Benowitz, 1998). A intoxicação pode decorrer da ingestão acidental do alcaloide pela ingestão de inseticidas sprays ou em crianças por ingestão de produtos contendo nicotina, porém não é observada mesmo nos fumantes mais inveterados. O quadro de intoxicação consta de náuseas, vômitos, confusão mental, salivação abundante, elevação do pulso e da pressão arterial que caem a seguir, respiração irregular, coma e morte por parada respiratória. O tratamento pode ser feito pela indução do vômito com ipeca ou lavagem gástrica. Assistência respiratória e tratamento do choque podem ser necessários

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Capítulo IX

CANABINOIDES A cânabis é a designação comum às plantas do gênero Cannabis, da família das canabiáceas, mais conhecida popularmente como cânhamo ou maconha que crescem em zonas temperadas e tropicais do mundo. O cânhamo é provavelmente originado da Ásia Central na fronteira entre China e Mongólia. Terminologia. A etimologia de cannabis pode ser derivada do grego-romano (kannabis) ou do sânscrito (cana) e bis pode referir ao termo aromático em línguas antigas, daí a associação de “cana perfumada”. A mistura de folhas e inflorescências secas da planta (Cannabis sativa) é denominada marijuana, palavra derivada do espanhol (Mariguana, ilha da Bahamas ou dos nomes Maria e Juana). O termo haxixe pode ter sido derivado do árabe (hashish) com significado de substância que torna os indivíduos normais em assassinos ou alusão a Hasan ibn-Sabah (1050-1124), dissidente islâmico, marcado por assassinatos secretos de líderes religiosos cristãos e islâmicos no período das Cruzadas. Cabe assinalar que o significado de violência dessa terminologia é controverso ao efeito sedativo da cânabis. A palavra sinsemilla do espanhol (sem semente) é uma preparação originada de inflorescências de apenas plantas femininas. No Brasil, a maconha chegou junto com os escravos africanos, que a denominavam de makaña quando usada para fins euforizantes, sendo também conhecida como diamba, fumode-angola e liamba.

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Vale acrescentar que o cultivo artificial da dessas plantas cânabis (C. sativa e indica) a partir da década de 90, proporcionou a existência de uma infinidade de variedades e de um grande número de hibridos.

Cannabis sativa, Cannabis indica e Cannabis sp.

Brotos e florescências da Cannabis fêmea.

Fig. IX.1 - Taxonomia das espécies de planta do gênero Cannabis. Composição química. A planta (Cannabis sativa) tem numerosos princípios ativos, sendo o total de aproximadamente 500 constituintes isolados. A cânabis possue 66 tipos de canabinoides. O ∆9-THC, (-) ∆9-6a, 10a transtetraidrocanabinol ou simplesmente THC é o mais potente da cânabis e responsável pelo seu principal efeito psicoativo. O termo canabinoides, refere-se ao ∆9-THC e fitocanabinoides (ex.: canabinol, canabidiol e canabicromeno) que foram detectados em preparações de cânabis confiscadas. Os principais produtos obtidos da cânabis, que contêm ∆9-THC são haxixe (2 a 3,5%), cânabis líquida (11 a 21%), sinsemilla (3,5 a 4,5 %) e skunk (supermaconha, 10 a 15%). Recentemente, foi observado variações nos teores de ∆ 9-THC em diferentes preparações de cânabis.

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Haxixe Maconha (Brasil) Marijuana (EUA)

Bhang Hash oil

Fig. IX.2 - Principais produtos obtidos da cânabis em diversos países do mundo.

Outros tipos de canabinoides são os produzidos endogeneamente (endocanabinoides) e os sintetizados em laboratórios (canabinoides sintéticos, tais com designações de venda como Spice, K2 e Herbal incenso), amplamente disponíveis na internet, apesar do aumento de restrições legais aos efeitos adversos e tóxicos.

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HISTÓRICO DO USO E ABUSO DE CANABINOIDES O uso da cânabis foi onipresente na China, Índia e Oriente Médio por muitos séculos. A cânabis era conhecida na China há mais de 4 mil anos antes de Cristo, quando as fibras eram usadas para fabricação de cordas e vestuário. Evidências arqueológicas apontam que o uso da cânabis parece remontar ao período neolítico. Ademais, existem referências históricas de que o imperador Shen Nung catalogou a cânabis como erva medicinal em 2838 a.C. para o tratamento de diversas condições patológicas (foto a direita). Mais tarde, em pleno século II, há relato de um médico chinês, Hua Tuo, que utilizava uma preparação oral de cânabis combinada com vinho para anestesiar os pacientes em cirurgias abdominais (foto a esquerda). Na Índia, a cânabis foi usada como parte de rituais religiosos, prática que persiste até os dias de hoje. Desde o século X, o mundo árabe passou usar o haxixe, a resina extraída desta planta, enquanto que no Ocidente somente no século XVII foram relatadas as primeiras explorações de uso médico da cânabis pelo médico inglês O´Schaughnessy em 1839. A partir daí, o uso da cânabis se difundiu por toda Europa com outras finalidades, abrangendo o uso do cânhamo para fins industriais e comerciais a partir de grandes plantações localizadas principalmente na Rússia, no Canadá e nos EUA. A busca por experiências psicotogênicas por artistas e intelectuais de Paris no Club dês Hachichins na metade do século XIX (NEIP, 2009).

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O emprego mais frequente das propriedades psicoativas da cânabis por parte das populações ocidentais, no século XIX, repercutiu em várias administrações governamentais que passaram tomar posição sobre o uso e comercio de preparações da planta, optando pela constituição de comissões de especialistas para investigar o seu impacto sobre a saúde dos indivíduos e da sociedade. Entre esses estudos oficiais, destaca-se o Indian Hemp Drugs Commission, empreendido pelo governo britânico na Índia, cujo relatório final foi apresentado em 1894. Em pleno século XX, comissão nomeada pelo prefeito nova-iorquino La Guardia que, em 1944, publicou seu relatório “O Problema da Marihuana na Cidade de Nova York”. Nas décadas de 1960 e 1970, o aumento do uso recreativo da cânabis na América do Norte e na Europa, associado aos movimentos de contracultura, provocou a criação de várias comissões oficiais em vários países do mundo, incluindo a da Grã Bretanha, a da Organização Nacional de Saúde (1971), a do Canadá (Le Dain, Bertrand e outros, 1972) e a dos Estados Unidos (National Commission, 1972) (consultar, NEIP, 2009). O declínio dos estudos científicos coincidiu com a diminuição do uso da cânabis que deixou ser uma novidade para juventude na década de 1980. Contudo, na última década de 1990, o avanço no conhecimento dos receptores de canabinoides no SNC e da descoberta de um ligante endógeno, denominado anandamida foi decisivo para retomada de interesse no estudo da cânabis. A OMS atualizou seus pareceres sobre assunto com a publicação de relatório final em 1997. Porém, a polêmica de omissões de estudos encomendados oficialmente, ensejou a publicação de novo relatório mais atualizado em 1999. Cabe acrescentar que a publicação do relatório (Cannabis Policy, 2011) reacendeu o debate sobre a pró-legalização do uso no Brasil e, em outros países da Europa e nos EUA e as iniciativas da redução da violência causada pelo tráfico e dos danos à saúde. Nesta direção, é a recente iniciativa de controle estatal do uso de maconha pelo governo do Uruguai.

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Em síntese, essa série histórica de estudos avaliou a cânabis como substância relativamente “segura” em seu uso recreativo e o risco de problema de saúde pública, comparando a de outras substâncias qualificadas como ilícitas.

A cânabis é substância de abuso mais comumente usada em vários países, segundo a UNODC (2008). Estima-se, que cerca de 162 milhões de pessoas usaram maconha no mundo em 2004. No Brasil, estimativa realizada pelo CEBRID através de levantamento domiciliar mostrou que o uso durante a vida de canabinoides foi 6,9% da população (entre 12 e 65 anos) O uso disseminado da maconha entre estudantes de 1º e 2º graus do ensino fundamental cresceu ao longo da última década. Essa tendência de aumento da prevalência do uso de cânabis está ocorrendo em vários países do mundo nos últimos anos. POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA A cânabis é a substância psicoativa qualificada como ilícita por apresentar elementos comuns às outras substâncias de abuso. Em razão disso, justifica o aumento de pesquisas em relação à síndrome da dependência e ao sistema canabinoide nas últimas décadas. Apesar do incremento dos estudos em relação ao abuso e a dependência, ainda não são bem conhecidos os efeitos psicoativos da cânabis responsáveis pelo desenvolvimento da síndrome de dependência. Por outro lado, há ainda uma controvérsia a respeito da existência de uma síndrome de dependência da cânabis, o que provoca grande polêmica na população, principalmente entre os usuários da substância. As evidências de uma síndrome de dependência de cânabis estão baseadas em estudos com os critérios DMS-IV e V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Ademais, os indivíduos diagnosticados como dependentes de cânabis manifestam desejo persistente para controlar o uso e redução de atividades devido ao uso (critérios 3 e 5, DMS-IV) e uso compulsivo e continuo apesar dos problemas físicos e psicológicos (critérios 6 e 7, DMSIV). A presença de tolerância e abstinência e propensão à recaída são critérios importantes para confirmar o diagnóstico. Cabe assinalar que a dependência de cânabis não desenvolve em todo usuário. Ademais, fatores de risco devem ser levados em consideração como o uso na adolescência, personalidade, ambiente familiar, renda baixa e uso prévio de outras substâncias de abuso.

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Em síntese, o debate é ainda extenso sobre a existência dependência de cânabis, apesar de acumular muitas evidências da mesma. De qualquer forma, é fundamental estabelecer estratégias de prevenção para população de risco e tratamento de dependentes.

Tolerância. O desenvolvimento de tolerância ocorre rapidamente para muitos efeitos da cânabis, tanto em animais como no homem. Em usuários expostos a altas doses e com padrão de uso frequente e prolongado, é comum o desenvolvimento de tolerância. A tolerância é atribuída principalmente ao tipo farmacodinâmico devido a processo de neuroplasticidade. Contudo, o metabolismo pode influenciar o desenvolvimento de tolerância da cânabis. Vários estudos mostram que a cânabis é utilizada em diferentes padrões, podendo desenvolver tolerância para os efeitos como, aumento da frequência cardíaca, subjetivos (high), pressão intraocular, sedativo e alterações autonômicas e do sono. Síndrome de Abstinência. Em humanos, a síndrome de abstinência da cânabis é descrita em vários estudos. Apesar da aceitação em grande parcela dos profissionais de saúde, a síndrome de abstinência da cânabis é questionável como critério único para o diagnóstico da dependência, segundo Associação Psiquiátrica Americana (2000). Os relatos da síndrome de abstinência de cânabis apresentam variações, segundo os padrões de uso e o perfil dos usuários. Os sintomas de abstinência mais comumente relatados incluem: diminuição do apetite, irritabilidade, ansiedade, nervosismo, agressão, agitação branda, insônia e sono difícil. Os sintomas acima descritos ocorrem em parcela substancial de usuários crônicos com altas doses. Os sintomas menos relatados incluem: humor deprimido, náuseas, dor de estômago, arrepio e sudorese.

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O início da síndrome ocorre entre 1 e 3 dias, após o último ato de fumar. O pico dos efeitos da abstinência é atingido entre 2 e 6 dias e muitos sintomas manifestam tardiamente entre 4 e 14 dias. A presença de efeitos residuais ou mesmo de uma síndrome de abstinência protraída são controversas. Contudo, déficits cognitivos e distúrbios do sono persistem por um período prolongado após a retirada da cânabis. Estudos pré-clínicos em roedores relatam sinais somáticos de abstinência, incluindo, sacudida como cão molhado, ptose, piloereção, ataxia e tremores de patas dianteiras. Após o pré-tratamento com 9-THC (5mg//ip/2x/dia, durante 5 dias), o antagonista de receptor CB1(SR1416A) precipita a síndrome de abstinência em camundongos. A precipitação espontânea da síndrome de abstinência não é observada com 9-THC, entretanto, pode ocorrer com o derivado canabinoide WIN 55, 212-2. Tratamento. Nos últimos anos, o incremento da prevalência de dependência de cânabis entre adolescentes e adultos em vários países do mundo tem aumentado a demanda para o tratamento de problemas relacionados ao uso abusivo da substância. Em razão disso, é importante discutir as limitações do conhecimento atual e os avanços da pesquisa e da intervenção clínica no tratamento da dependência de cânabis. Os sinais e sintomas da abstinência de cânabis são relativamente leves na maioria dos usuários, sendo assim, confiados quase que exclusivamente as terapias comportamentais. Neste contexto, destacam-se algumas modalidades como a terapia comportamental cognitiva, terapia de aumento motivacional e os grupos de suporte social que têm propiciado redução do uso de cânabis. A terapia substituiva com canabinoides na forma de spray bucal (canabidiol + THC, Sativex ® ) está em estudo clínico. Há pouca evidência científica ainda sobre o tratamento farmacológico para a síndrome de dependência de cânabis, devido à escassez de estudos clínicos de avaliação de novos medicamentos. O tratamento medicamentoso para usuários de cânabis continua focalizado principalmente na busca por comorbidades psiquiátricas associadas ao uso desta substância, como por exemplo, depressão, ansiedade, transtorno de déficit de atenção e esquizofrenia ou nos estados de intoxicação aguda por cânabis. Nos casos de depressão que se manifesta em usuários com padrão de uso intenso, é indicada a administração de um fármaco antidepressivo. Em estudo clínico similar, pacientes

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que receberam ansiolíticos (buspirona) tiveram redução do uso de cânabis. Intoxicação por cânabis As sensações euforizantes produzidas pela administração aguda da cânabis estão associadas com a intoxicação em muitos usuários. Por outro lado, indivíduos ingênuos ou com a presença de comorbidades podem experienciar ansiedade e reações de pânico e, mais raramente disforia, reações psicóticas com ideias paranoicas e despersonalização. Neste contexto, a intoxicação aguda de cânabis pode precipitar episódios psicóticos transitórios em alguns indivíduos que incluem decepção, perda de associações e marcante ilusão. Embora controverso, há evidências de que a cânabis pode precipitar a reinstalação da esquizofrenia ou mesmo como agente casual, sendo a vulnerabilidade maior durante a adolescência e entre usuários crônicos de doses altas. O uso diário ou crônico de cânabis pode acarretar prejuízos crônicos no desempenho social e ocupacional dos usuários, incluindo a ineficácia na escola, trabalho, esportes e nos cuidados pessoais com a saúde. Neste contexto, parece que os comportamentos mais vinculados são a falta de motivação, direção, ambição e até mesmo a inabilidade de manter uma conversação coerente. Um grupo de efeitos mais controversos atribuídos à cânabis é a síndrome amotivacional. Essa síndrome inclui apatia, inabilidade para solucionar novos problemas, sendo frequentemente utilizada para explicar o baixo rendimento escolar de adolescentes e a deterioração de personalidade. A síndrome amotivacional ocorre com maior frequência em usuários compulsivos de doses altas e a remissão instala com a cessação do uso. A interação de efeitos farmacológicos da cânabis com fatores psicológicos e sociais associados à adolescência pode estar relacionada à síndrome amotivacional. Os efeitos adversos fisiológicos da cânabis podem ocorrer em vários sistemas orgânicos. No trato respiratório existem relatos em usuários abusivos de tosse, dispneia, congestão nasal e bronquite. Entre os efeitos cardiovasculares do 9-THC incluem o aumento da frequência cardíaca, discreto aumento da pressão arterial e hipotensão postural. Os efeitos cardiovasculares da cânabis não estão associados com hospitalização a doenças cardiovasculares ou mortalidade. Entretanto, os fumantes de cânabis com doenças cardiovasculares podem apresentar sérios riscos de saúde. Recentes observações mostram que fumantes estão dando maior preferência a cânabis que ao tabaco.

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Capítulo X

ALUCINÓGENOS Desde as mais remotas sociedades humanas até os dias de hoje, um grande número de plantas contendo princípios ativos com efeitos psicotrópicos foram descobertas e usadas para finalidades mágicas, médicas e religiosas. Aproximadamente 100 plantas alucinógenas foram catalogadas, sendo maioria encontrada no hemisfério Ocidental. As plantas alucinógenas compreendem fungos e angiospermas. Os numerosos princípios ativos encontrados nessas plantas foram isolados, sintetizados e selecionados os congêneres da fenetilamina (estrutura similar as catecolaminas) e indolaminas (estrutura similar a serotonina) com propriedades alucinógenas em humanos.

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As propriedades dos alucinógenos mais representativos estão sumarizadas no Quadro X.1.

Agentes

Quadro10.1 Propriedades de alucinógenos mais representativos Estrutura Fontes Dose típica/via Efeitos química de (h) administração Ergolina

Esporão de centeio

100 g, oral

6-12 h

Feniletilamina

Peyote cacto L. Williamsii

200-500 mg, oral

10-12 h

3,4metilenodio ximetanfeta mina (MDMA) Harmina

Feniletilamina

Sintético

80-150 mg, oral

4-6 h

-carbolinas

Banisteriopsis caapi

30 mg, oral (200 ml chá)

4-8 h

Dimetrilltri ptamina (DMT) Psilocibina

Triptaminas

Psycotria viridis

25 mg (200ml de chá)

4 -8 h

Triptaminas

Cogumelos Psilocybe

4- 6 mg, oral

4-6 h

Dietilamina do ácido lisérgico (LSD) Mescalina

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HISTÓRICO DO USO E ABUSO DE ALUCINÓGENOS As pesquisas etnológicas revelam que tanto o conhecimento como o uso de alucinógenos de origem vegetal por povos nativos são tão antigo quanto à espécie humana. Os alucinógenos vegetais fazem parte não só da cultura desses povos, mas também desempenham o papel de aumentar as relações sociais do homem em seu meio, sendo capazes de introduzir uma qualidade mística, permitindo-lhe participar da luta entre o bem e o mal e identificar-se com deuses e demônios, existentes dentro de si e da sua sociedade. Neste contexto, há esforços para desenvolver designações mais adequadas que reflitam, entre outros, o caráter sagrado que estas substâncias costumam ter para os grupos que as utilizam e também a sensação de comunhão com o divino ou com o cosmos que costuma ser relatada como um de seus efeitos. A designação “plantas de poder” procura refletir estas dimensões. Ademais, o termo enteógeno foi proposto por Hofmann e Ruck (1978), que significa “deus dentro de si” (Consultar,o site do NEIP). O uso de plantas alucinógenas proporciona sensações de prazer, êxtase e poder. Além disso, induz estímulos visionários e auditivos, habilitando-o a diagnosticar, tratar e curar doenças, a livrar-se da dor, afastar ou eliminar seus inimigos e a adivinhação. Por sua importância e significado, o uso de preparados dessas plantas é resguardado para ocasiões especiais. Um indivíduo é escolhido para exercer as funções de xamã ou pajé passa antes por um período de aprendizagem, sob orientação de chefes espirituais e curandeiros mais antigos, no qual lhe é permitido participar de cerimônias, rituais místicos e entrar em contato gradativo com o alucinógeno. O estágio termina quando sua experiência demonstrar segurança e consciência sobre os efeitos psicotomiméticos. Portanto, a finalidade precípua consiste em dominar e autocontrolar os estados visionários induzidos a fim de que sejam utilizados para fins religiosos e culturais específicos e não permitir ser por eles dominado.

Em resumo, para os nativos, os psicotomiméticos de origem vegetal, ao invés de significarem uma decadência individual ou social, ao contrário, representam um fator de coesão e fortalecimento social, religioso e político. O interesse pelas substâncias psicoativas tomou grande impulso com o estudo de alucinógenos vegetais como o peyote, os cogumelos sagrados mexicanos, o vinho de jurema e o ololiuqui. O peyote (mescalina) era usado em rituais religiosos pelos índios da América Central cerca de 2000 anos antes da vinda dos colonizadores europeus que denominaram de “obra satânica” e condenaram por acreditar que evocava espíritos malignos.

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Nos cogumelos sagrados mexicanos usados em fins rituais foram isoladas as triptaminas: psilocibina (4-fosforiloxi-N,Ndimetiltriptamina) e a psilocina. A N,N-dimetiltripamina (DMT) é um alcaloide encontrado em muitas plantas como, por exemplo, a Mimosa hostilis (jurema, do Tupi –yu´rema) que tem sido utilizada no nordeste brasileiro por tribos em cerimônias(foto acima). A raiz e a casca da jurema sagrada eram usadas na forma de beberagem conhecida como vinho de Jurema (ayuca) com propriedades alucinógenas. O ololiuqui, Turbina corymbosa e a Ipomea violacea (morning glory) foram utilizadas pelos astecas em rituais mágico-religiosos e de cura. O efeito psicomimético do oliunqui é devido à erginina e isoergina semelhantes a LSD, presentes na bebida preparada com as sementes dessas plantas.

De fato, a perspectiva histórica na Era Moderna dos alucinógenos está inextricavelmente ligada à Farmacologia em outros episódios como nas intoxicações por cogumelos (micetismo), na qual a Amanita muscaria é a fonte de muscarina e outras substâncias alucinógenas derivadas do isoxazol (muscimol, ácido ibotênico). A ingestão dos alcaloides do ergot foi atribuída à indução de estado religioso nos Mistérios Gregos de Eleutra. Na Idade Média, o celebre unguento das bruxas continha acônito e beladona (hiosciamina). Na Europa, os casos letais de ergotismo, conhecidos

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popularmente como “Fogo de Santo Antônio” eram causados pela ingestão acidental de centeio contaminado com o fungo (Claviceps purpurea). Em 1845, Jean Jacques Moreau (de Tours) escreve o primeiro texto sobre “alucinógenos” (haxixe) (ver Capítulo I). Mais tarde, Cooke (1860) iniciou a diferenciação de opioides de outras substâncias consideradas “irmãs do sono”, isto é, alucinógenos. Esse trabalho foi completado pela publicação da primeira classificação de plantas alucinógenas por DeVeze (1907) e refinado por Louis Lewin em 1924, que enfatizou os efeitos e o abuso potencial dessas plantas. A descoberta dos efeitos psicodélicos da LSD25, em 1943, criou uma nova onda mundial de importância e interesse no assunto. Em 1960, o fato de que os alucinógenos produziam psicotomimetia despertou novamente o interesse de artistas, escritores e cientistas em todo o mundo. No campo da Psiquiatria, o intuito era de estudar o comportamento e os transtornos mentais através dos estados psicóticos experimentais induzidos por essas substâncias psicoativas (psicose modelo) e procedimentos terapêuticos (terapia psicodélica ou psicolítica), cujos resultados ainda permanecem inconclusos. Nos meados dos anos 90, voltaram a ser populares em danceterias ou festas (raves), onde a MDMA (ecstasy) e outras substâncias de abuso passaram ser chamadas “club drugs” ou “rave drugs”.

Estudos epidemiológicos estimaram que 7,6% da população acima de 12 anos nos EUA usaram alucinógenos durante algum tempo de suas vidas. Em 1993, foi observado aumento do uso de alucinógenos durante a vida de 8,7%, sendo que as substâncias mais consumidas foram a LSD com 5,5% e a mescalina 3%. Mais recentemente, em 2004, cerca de 10 milhões de pessoas usaram MDMA (ecstasy) no mundo.

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No Brasil, estimativas realizadas pelo CEBRID em 2001, através de levantamento domiciliar em 107 cidades do uso de substâncias qualificadas como ilícitas, constatou o uso de alucinógenos de 0,6% durante a vida. Apesar da baixa incidência, os alucinógenos merecem a atenção devido às suas características de uso em eventos culturais e sociais. LSD25 DIETILAMIDA DO ÁCIDO LISÉRGICO Dentre os inúmeros princípios ativos, obtidos de fontes vegetais ou por síntese química, a LSD25 (dietilamida do ácido lisérgico) é o mais potente e, por essa razão, considerado protótipo da classe das ergolinas. A LSD foi sintetizada em 1938 e seus efeitos psicoativos foram descobertos em 1943. O número 25 pode representar a data de sua descoberta: 2 de maio, porém existe outras interpretações numéricas. POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA O uso de LSD e alucinógenos correlatos disseminou a partir do fim da década de 1960, inaugurando a era psicodélica com suas repercussões em movimentos artísticos, políticos e sociais. Nos EUA, a LSD passa ser considerada como substância ilícita, sendo incluída na mesma categoria da heroína por volta de 1970. Apesar da relativa facilidade de fabricação e disponibilidade, a incidência de uso da LSD declinou entre os jovens adultos na década de 1980 e estabilizou nas décadas seguintes, com exceção do MDMA. A retomada atual ao uso da LSD como club drug é o alvo de estudos sobre o perfil de usuário de múltiplas substâncias de abuso como ecstasy, ácido gama hidroxibutirato (GHB), cetamina, fenciclidina, cocaína e metanfetamina. A LSD, bem como outras substâncias alucinógenas, parecem não preencher os critérios de diagnóstico da dependência, segundo DSM-IV ou V. O padrão de uso abusivo não é contínuo nem compulsivo, embora haja risco de reações psicóticas e distúrbios psicológicos. Tolerância. A LSD exibe tolerância bem documentada em animais e humanos. Em humanos, normalmente uso esporádico de LSD não desenvolve tolerância, sendo necessários 4

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a 7 dias de administração de administração diária. Há relatos de tolerância cruzada entre a LSD, psilocibina, e mescalina, mas não a anfetamina e cânabis em humanos. Síndrome de abstinência. Não há relatos de que a retirada abrupta da LSD causa síndrome de abstinência. Contudo, as recorrências dos efeitos da LSD sem a sua administração oral são denominadas de flashbacks, consideradas como distúrbio de percepção persistente, segundo DMS-IV. Esse genuíno fenômeno persiste às vezes meses ou anos após o uso de LSD com substancial morbidade e ocorre em aproximadamente 15% dos usuários. Os flashbacks parecem ser precipitados pelo uso de álcool, cânabis e outros tipos de alucinógenos. Tratamento. A intoxicação por LSD não apresenta esquema especial de tratamento. Nos casos de reações psicóticas prolongadas e crises bipolares (maníaco depressivas) que surgem com doses tóxicas agudas ou mesmo na sua ausência (retorno dos efeitos, talvez de origem psicológica, para quem tem experiência com a LSD em reuniões), administram-se eutímicos (carbonato de lítio) para normalizar o humor e diminuir os distúrbios afetivos. Recorre-se ao uso oral de diazepam (20 mg) com intuito de amenizar os sintomas tóxicos que podem advir, cognominados de “viagens desagradáveis”(bad trips) e temidos pelos usuários. Os antipsicóticos tradicionais podem ser dispensados, pois intensificam os sintomas. Nessas situações, a conversa de apoio (talking down) aos usuários é uma alternativa de primeira escolha. FENETILAMINAS Nessa categoria compreendem vários compostos que podem alterar o humor e produzir ou não alucinações. Dentre os alucinógenos incluem: a mescalina, MDMA, 2,5 dimetóxi-4-

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bromo-anfetamina (DOB), 2,5 dimetóxi-4-metilanfetamina (DOM e STP). Os compostos anfetamínicos com anel substituído constituem um amplo grupo de substâncias sintetizadas e qualificadas como substâncias ilícitas que foram incluídas na relação do Convênio Internacional sobre Psicotrópicos desde 1997 e a maioria delas na lista de 1998. Mescalina A mescalina (3,4,5- trimetoxifenetilamina) é prototipo das fenetilaminas que tem sido utilizada em estudos de estrutura-atividade. A mescalina é o primeiro de 30 alcaloides isolado do peyote e responsável pelos seus efeitos alucinógenos em rituais religiosos. O cacto Lophophora williamssi é encontrado no México central até o sudeste dos EUA e também em outros cactos como Echinopsis pachanoi (San Pedro) usado no Peru e Equador. Atualmente, existem grupos religiosos nos EUA e Canadá que usam o peyote em suas cerimônias. A preparação do cacto consiste em cortar a parte superior da planta, as cabeças (botões) que podem ser ingeridas, cru, seco ou em infusão. A dosagem de mescalina, em humanos, é de 200 a 500 mg , sendo equivalente aproximadamente 8 a 20 botões de peyote. Os efeitos da mescalina são semelhantes aos produzidos pela LSD, porém são menos potentes. Os efeitos comportamentais incluem sonolência, ansiedade, euforia, alteração da percepção do tempo, alucinações visuais consistindo de movimentos de desenho geométrico colorido e brilhante, alucinações auditivas e despersonalização. A mescalina produz efeitos autonômicos como taquicardia, midríase, transpiração, náuseas e vômitos. As reações psicóticas são menos comuns que a LSD. A mescalina desenvolve tolerância para alguns efeitos. Há relatos tolerância cruzada entre a mescalina e a LSD, mas não a cânabis. Uma das preocupações atuais são complicações decorrentes do uso legal ou ilícito de peyote em grupos nativos nos EUA.

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MDMA (Ecstasy) A MDMA (3,4-metilendioximetananfetamina, ecstasy ou êxtase) foi sintetizada e patenteada, em 1912, pela empresa farmacêutica Merck (Alemanha), sob o nome de “metilsafrilamina”. O lançamento da MDMA no mercado farmacêutico como anorexígeno tem sido contestado através da análise da documentação sobre a intenção de uso do fabricante. Após longo período e estudos pré-clínicos a MDMA foi desclassificada pelos efeitos comportamentais e toxicológicos em 1969. Contudo, na década de 70, a MDMA foi usada sob nome de “ADAM” por terapeutas sexuais no ajuste de casais e no tratamento das depressões nos EUA. A partir dos anos 80, a MDMA deixa a clínica e ganha às ruas. Inicialmente, foi usada experimentalmente por estudantes e depois atinge a sua popularidade em associação com o nascimento da música “acid house” em locais turísticos de Ibiza, Espanha em 1986. A partir de Ibiza, onde era conhecida como “XTC island”, o uso de ecstasy se difundiu por toda Europa e no mundo. Na Inglaterra, entra em cena como “rave drug”e continua muita ativa nos dias de hoje. O ecstasy é comercializado quase que exclusivamente na forma de comprimidos (raramente cápsulas) que frequentemente contem símbolos (logotipos) e são coloridos. O conteúdo de MDMA nos comprimidos varia entre 50 a 150 mg. Entretanto, o problema da pureza predominou na década passada quando muitos comprimidos eram impuros. Alem disso, ocorrem fraudes na comercialização ilícita dos comprimidos, onde há presença de substâncias adulterantes como 3,4 metilenodioxianfetamina (MDA), parametoxianfetamina (PMA) e DOB. Em nosso meio, a MDMA já foi misturada com cafeína, cocaína e heroína, sendo conhecida com “ecstasy turbinado”. Segundo a UNODC (2007), estima-se que 0,2 % da população mundial com idade entre 15 a 64 anos fizeram uso de MDMA. As maiores taxas da prevalência anual de uso de ecstasy são encontradas na Europa Central e Ocidentais (0,9 %) e nos EUA (0,8%) em 2007. As estimativas da tendência do uso de MDMA apontam incremento para os próximos anos nos EUA. No Brasil, há pouca informação epidemiológica sobre o uso de MDMA, entretanto, é de

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conhecimento o aumento de apreensões no tráfico nos últimos anos. TOXICIDADE AGUDA Os efeitos adversos agudos imediatos da MDMA oscilam de sintomas menores até ao risco de morte. Os efeitos adversos relatados pelos usuários incluem náusea, vômito, contrações da mandíbula (trisma), bruxismo, hipertensão, cefaleia, ataxia, tensão muscular e dificuldades visuais. Outros sintomas fisiológicos decorrentes da ingestão de MDMA foram observados como coagulopatia, trombocitopenia, acidose, hipoglicemia, edema, congestão pulmonar e hepatite. Os efeitos psicológicos adversos após sua ingestão de MDMA incluem sintomas depressivos, irritabilidade, ataques de pânico, alucinações visuais e paranoia. Os efeitos agudos graves incluem psicoses, arritmias e colapso cardíaco, hiperreflexia, rabdomiólise, insuficiência renal aguda, edema cerebral, síndrome serotoninérgica e morte. As intoxicações letais de MDMA permanecem raras quando se leva em consideração o consumo em larga escala da substância e se compara a outras substâncias de abuso. Contudo, quando as complicações ocorrem, elas podem representar ameaça a vida dos usuários e tornam-se mais problemática para o tratamento emergencial em casos de múltiplo uso de substância de abuso. A hipertermia fulminante é uma reação adversa grave na intoxicação de MDMA quando atinge temperatura superior a 42oC, que usualmente dissemina em coagulação intravascular, insuficiência renal aguda e falência múltipla de órgãos. Tratamento. A intoxicação aguda provocada pela MDMA exige tratamento emergencial e medidas de suporte. Os antagonistas de receptor  1 são indicados para o tratamento de taquicardia e hipertensão secundária. Para a hipertermia é indicado o resfriamento corpóreo com gelo, uso do dantroleno, seguido de sedação com benzodiazepínicos e respiração assistida. Contudo, para os usuários de MDMA com hipertermia grave, é fundamental o controle da temperatura, com dantroleno e reposição de líquidos. A hidratação e a reposição de eletrólitos

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devem ser realizadas com cautela em pacientes com suspeita de hiponatremia e intoxicação hídrica. Em caso de hiponatremia que apresentam temperatura corpórea normal ou baixa, normalmente é suficiente a restrição a líquidos para o tratamento. A síndrome serotoninérgica associada ao uso do MDMA é tratada com bloqueadores neuromusculares e de ventilação pulmonar, nos casos em que há rigidez muscular induzida pela liberação excessiva de serotonina no SNC. A hemodiálise pode ser usada em casos de falência múltipla de órgãos e coagulação intravascular disseminada. POTENCIAL DE ABUSO E DEPENDÊNCIA A MDMA apresenta risco de abuso superior aos usuários de LSD. De fato, a comodidade de uso oral em discreta forma de apresentação (comprimido de tamanho reduzido) acaba facilitando a sua difusão entre os usuários como também o uso clandestino e o tráfico. O alto potencial de abuso da MDMA está bem documentado. A MDMA tem padrões de usos incomuns às outras substâncias de abuso. No uso recreacional, o padrão mais frequente é um espaçamento de duas a três semanas entre as doses de MDMA. Uma possível explicação para esse padrão é que os efeitos adversos (“ressaca”) intensificam se a MDMA é usada mais frequentemente em altas doses. De fato, nos anos 80, a maioria dos relatos de uso recreativo de MDMA foi de duas vezes no mês ou no máximo dez experiências durante a vida. A partir da década de 90, o uso de MDMA como party drug passou ser mais frequente e, há casos de uso diário por um tempo prolongado, de doses elevadas, que poderiam produzir certo grau de dependência. Contudo, é amplamente discutível o desenvolvimento de dependência de MDMA, porque ainda não há relatos consistentes de compulsão (craving) e síndrome de abstinência. Do ponto de vista de critérios diagnósticos, segundo DSM-IV, o uso de MDMA preenche alguns critérios como indução de tolerância, uso em doses maiores do que o planejado e os distúrbios psicológicos causados pelo uso

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abusivo da substância. Tolerância. A exposição repetida a MDMA desenvolve tolerância em modelos animais e humanos. Em humanos, o uso recreacional de MDMA desenvolve tolerância associada a elevada proporção de problemas psicológicos. Há relatos experimentais de tolerância cruzada entre a MDMA, metanfetamina e álcool. Síndrome de abstinência. É consenso, não haver uma clássica síndrome de abstinência a MDMA em animais e humanos. Entretanto, há algumas evidências de sintomas de abstinência de MDMA em humanos. Há relato de flashbacks aos efeitos da MDMA após a sua retirada. Recaída. A falta de reconhecimento de que o uso de MDMA não produz uma clássica síndrome de abstinência e a consequente recaída, inibiram o desenvolvimento de pesquisas préclinica ou clínica sobre o tema. Dessa forma, ainda são poucos os relatos de reinstalação ao uso de MDMA em modelos animais. O uso recreativo de MDMA é frequentemente associado a outras substâncias de abuso (club ou rave drug). DOB (2,5 dimetóxi-4-bromoanfetamina) A DOB (2,5 dimetóxi-4-bromoanfetamina) é uma fenetilamina, sintetizada a partir da substância precursora 2,5 DBA (2,5 dimetoxianfetamina) em 1967. As relações de estrutura e atividade da DOB mostram que o aumento de tamanho do grupo sobre a 4-posição do átomo de oxigênio é responsável pela sua alta potência. Usualmente é comercializada em formas de cápsulas, comprimidos e raramente em papel impregnado como a LSD nas dosagens de 0,75 a 2 mg. No Brasil, a DOB é conhecida popularmente como “cápsula de vento” devido à ínfima quantidade de pó de cor branca, sendo identificada quimicamente pela primeira vez em 2005. Os efeitos comportamentais estão relacionados às doses utilizadas em modelos animais e humanos. A administração oral de DOB em doses usuais de 0,75 a 2mg produz euforia, aumento da vigília, da atividade auditiva e visual. Com o incremento da dose (2,8 mg) ocorrem alucinações e dores musculares (câimbras).

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Os casos de superdosagem (overdose) em doses 3,5 mg ou mais podem acarretar reações violentas, comportamento irracional e déficit de memória. A duração dos efeitos da DOB é 8 a 24 horas, sendo dependente das doses usadas e das características dos usuários. A intoxicação aguda de DOB caracteriza-se por sintomas de agitação, tremores, convulsões, espasmos, vômito, diarréia e alucinações visuais. DOM (2,5-dimetóxi-4-anfetamina) A DOM (2,5-dimetóxi-4-anfetamina, STP) foi sintetizada por Shulgin em 1963 (26). A sigla STP (Specially Treated, Petroleum) foi baseada na marca de aditivo de óleo para motor e, posteriormente designada no movimento hippie de Serenidade, Tranquilidade e Paz. A comercialização na forma de comprimidos com dosagem de 20 mg (mais tarde 10 mg) começou em São Francisco nos EUA em 1968. Usualmente, a DOM é usada por via oral em dose superior a 3mg pode causar alterações senso-perceptivas, alucinações visuais, visão borrada, distorção de forma, aumento de contrastes e perda da noção do tempo ou passagem lenta do tempo. Os efeitos fisiológicos mais comuns são midríase, aumento da pressão sistólica, taquicardia, náuseas e vômitos. A duração dos efeitos de DOM é 14 a 24 horas com maior intensidade entre 3 a 4 horas após a ingestão. A intoxicação de DOM muito pouco conhecida. Há relatos de ocorrência de bad trip com reações de medo e pânico. TRIPTAMINAS A estrutura química básica de todos alucinógenos triptamínicos é derivada do triptofano da dieta que é aminoácido essencial em alguns animais. A descarboxilação no carbono  converter triptofano em triptamina. A biossíntese de várias triptaminas endógenas procede através de modificações diferenciais na estrutura do triptofano. Por exemplo, a biossíntese da serotonina (5-HT), inicia-se pela hidroxilação do triptofano na posição-5 sob ação da triptofano hidroxilase dando origem ao L-5-triptofano que por sua vez é descarboxilado no carbono  sob ação da L-5-triptofano descarboxilase. A melatonina (5-metoxi-N-acetil-triptamina) é principal

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indolamina da glândula pineal é sintetizada a partir da 5-HT, numa sequência que envolve N-acetilação e O-metilação. Todas as triptaminas naturais ou sintéticas são congêneres da 5-HT e podem ser incluídas no grupo das N- e O-alquilaminas indólicas. A psilocina sofre desfosforilação dando origem a psilocibina, metabólito ativo de ocorrência natural em cogumelos alucinógenos. A DMT é conhecida a milhares de anos pela ocorrência em plantas como Psycotria viridys que tem sido usada associada a Banisteriopsis caapi (Ayahuasca, Yajé, Oasca) na forma de chá em cerimônias religiosas de povos indígenas da Amazônia e dos Andes e influenciando grupos religiosos de Santo Daime.

O chá de Ayahuasca possui alcaloides -carbolinas, harmina; harmalina e tetra-hidroharmalina provenientes da B. caapi que devido à ação inibidora da MAO protegem a DMT de eliminação pré-sistêmica hepática e intestinal. Os efeitos comportamentais da DMT são instalados rapidamente e permanece por cerca de uma hora, incluindo euforia, alteração da percepção do tempo, ansiedade, alucinações visuais consistindo de cores brilhantes, tremor e perda da coordenação motora e sono. Os efeitos fisiológicos mais comuns são náusea, hipertensão e midriase. As propriedades reforçadoras de alucinógenos da classe das triptaminas têm sido diferenciadas como substâncias de abuso em humanos, porém falha em modelos animais de autoadministração. Em síntese, a revisão de estudos prévios sobre os efeitos reforçadores desses

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alucinógenos podem melhorar a nossa compreensão de como eles realmente podem ser. OUTROS ALUCINÓGENOS Um grande elenco de outras substâncias alucinógenas é comumente excluído da classificação tradicional como os anestésicos dissociativos (fenciclidina, cetamina), o ácido gama hidroxibutírico (GHB), os anticolinérgicos (ciclopentolato, triexafenidila), plantas alucinógenas, derivados sintéticos e os envenenamentos causados por metais pesados, glicosídeos cardiotônicos e metanol. Fenciclidina. A fenciclidina (PCP) e a cetamina são anestésicos derivados da arilcicloexilamina, cuja principal característica é produzir sono superficial que contrasta com analgesia intensa, propiciando um quadro definido como anestesia dissociativa. As substâncias são usadas abusivamente como “club ou rave drugs”. O uso anestésico da PCP foi introduzido nos anos de 1950 e abandonado devido a alta incidência de delírios com alucinações no pós-operatório. O uso restrito à veterinária ocorreu a partir de 1960. No mercado ilícito, a fenciclidina é conhecida também como PCP ou pó de anjo na forma de comprimido ou cápsula e os novos derivados da PCP, 3-me-O-PCP e 4-me-O-PCP. Em voluntários, sob condições controladas, administração de pequena dose 50 g/kg de PCP produz retirada emocional, pensamento concreto e respostas bizarras em teste projetivo. Postura catatônica é também produzida e parece como à esquizofrenia. O uso abusivo de PCP em doses maiores produz perda de coordenação motora, fala arrastada, ansiedade, alucinações auditivas e imagens distorcidas e comportamento hostil. Os efeitos anestésicos aumentam com dose; coma ou estupor podem ocorrer com rigidez muscular, hipertermia, rabdomiolise e rigidez muscular. Em casos de intoxicação pode progressivamente ocorrer comportamento agressivo, com hipertensão e não reação pupilar. Tratamento. O tratamento em casos de superdosagem dosagem (overdose) é por medidas de suporte e acidificação da urina sem comprovação de efetividade. Reações psicóticas ou de agitação podem ser tratadas com diazepam. O comportamento psicótico prolongado pode ser tratado como haloperidol, evitando-se o uso de antipsicóticos com ação anticolinérgica como a clorpromazina.

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Os padrões de abuso da PCP é o uso intermitente em humanos. Não há relatos de tolerância e síndrome abstinência, embora seja evidente o uso compulsivo. Cetamina. A cetamina é um anestésico usado em medicina humana e veterinária. O uso abusivo é semelhante àqueles da fenciclida, sendo conhecida em festas (club drug) como “K”, Kate e Special K e do novo análogo, metoxetamina. Nas doses de 2,0 a 4,0 mg/kg de peso administradas por via intravenosa, a cetamina provoca perda da consciência, em poucos segundos. Os olhos permanecem abertos e refletem um quadro paradoxal de sono que, embora superficial, é acompanhado de intensa analgesia, a qual é consequência da ação da cetamina nas células da 5ª camada do corno posterior da medula, tronco cerebral e sistema tálamo-cortical. A ação hipnótica e analgésica é acompanhada por fenômenos psicodislépticos, caracterizados por pesadelos com visões coloridas, distorção dos objetos e ruídos, o que é extremamente desagradável e muito bem referido pelo adulto. Se administrada repetidamente, em ocasiões diversas, a cetamina pode ser responsável pela mudança comportamental do indivíduo, com alteração de sua personalidade. Em doses altas, podem ocorrer experiências psicóticas que incluem distorção do corpo, perda de noção de tempo e saída do próprio corpo. O padrão de abuso de cetamina é de usuários que usa múltiplas substâncias de abuso. Há relatos de significante tolerância a cetamina sem proeminentes sintomas de abstinência. A OMS recomenda cautela no uso de cetamina, devido a vulnerabilidade de abuso da substância (WHO, 2006). Ácido gama hidroxibutírico (GHB). O GHB foi usado como anestésico, porém é também conhecido como “club ou rave drug”na designação de “líquido X”ou “ecstasy líquido”. No mercado ilícito, é comercializado na forma líquida, inodora e sabor discretamente salgado e frequentemente consumido com bebidas alcoólicas. Em subdose anestésica provoca de euforia, sensação de bem estar e alerta que pode se confundida àqueles da MDMA. Em altas doses, GHB causa depressão profunda do SNC que incluem ataxia, delírio, distúrbios visuais, vertigens, depressão respiratória e inconsciência. O abuso de GHB é um problema de saúde atual devido à dificuldade de diagnóstico em casos de intoxicação. Recentemente, a OMS recomendou novas análises sobre a vulnerabilidade de abuso de GHB (WHO, 2006).

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Anticolinérgicos. O uso de beladona (Atropa belladona) figurou no histórico de plantas alucinógenas na Idade Média como ingrediente de unguento de bruxas. Os principais alcaloides a hiosciamina e a escopolamina são encontrados também em outra planta Hioscyamus níger que usada foi usada na preparação de bebidas mágicas. O abuso de anticolinérgicos sintéticos em nosso meio é representado pelo ciclopentolato usado na preparação de colírios e o triexafenidila, fármaco utilizado no tratamento sintomático da doença de Parkinson. O levantamento domiciliar sobre o uso de substâncias psicotrópicas estima o consumo de anticolinérgicos de 1,1% durante a vida. Em razão disso, os dois anticolinérgicos sintéticos passaram a integrar a lista de substâncias controladas (ANVISA, Ministério da Saúde). Ibogaína. A ibogaína é um alcaloide indólico derivado da Tabermanthe iboga, planta (raíz) usada em rituais religiosos de iniciação (sacramento) por nativos da região oeste da Africa Central. Nos EUA e Europa grupos de autoajuda à dependentes atribuem a ibogaína uma prolongada abstinência de substâncias de abuso, especialmente psicoestimulantes e opioides. Observações empíricas atestam dimuição de síntomas da síndrome de abstinência e diminuição do desejo (anticraving) de opoides após administração de dose única de ibogaína. Esses efeitos podem ser atribuídos ao metabólito ativo, noribogaína. Há relatos de efeitos adversos cardíacos e precipitação de sintomas de mania que exigem orientação clínica para eventual uso de ibogaína pelos pacientes. Salvorina A. A salvorina A é um ligante de receptor opioide ĸ encontrado na planta Salvia divinorum que foi usada por índios Mazatec em rituais religiosos. Mais recentemente, tornou-se popular pelo uso recreativo de adolescentes e jovens adultos na busca de efeitos prazerosos (high). Acredita-se no baixo potencial de dependência e toxicidade da substância. Contudo, há relatos recentes de precipitação de

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sintomas psiquiátricos e alterações cognitivas que recomendam cautela no uso da salvorina A. Kratom. O kratom (Mitragyna speciosa) é uma planta originária da Tailandia e Sudeste da Asia que as folhas produzem complexos efeitos estimulante e analgésico (opioide). A mitraginina e 7-hidroximitraginina são os princípios ativos notáveis entre os constituintes farmacológicos da planta. Dentre os usos tradicionais destacam-se o combate a fadiga e a manipulação da dor, tosse, diarreia e abstinência de opioides. Recentemente, o kratom tornou-se disponível na Europa e nos EUA por meio da internet e lojas de fumantes. Há relatos de aumento da autoadministração de kratom no alívio da dor e de sintomas da abstinência de opioides. Entretanto, há necessidade de pesquiasa sobre os usos terapêuticos e do potencial de abuso. Derivados sintéticos alucinógenos. Sabe se de novos derivados sintéticos da cocaína, morfina e canabinoides que são desenvolvidos com potencial terapêutico ou de abuso. Entre os novos alucinógenos sintéticos destacam-se 25C-NBO Me, potente agonista parcial de receptor 5-HT2A com diversas designações de venda (Boom, Pandora ou N-bomba) e os derivados da PCP e cetamina.

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APÊNDICE ESTEROIDES ANABÓLICOS ANDROGÊNICOS. Os esteróides anabólicos androgênicos (EAA) são andrógenossintéticos com atividade anabólica semelhante à testosterona. A testoterona é o andrógeno natural com maior potencia biológica A testerona é o andrógeno natural com maior potência biológica, (exceto a diidrotestoterona (DHT) que é 2,5 vezes mais ativa) no homem. Diante disso, muitos análogos sintéticos e EEA foram estudados quanto à sua utilidade terapêutica, por apresentarem maior potência biológica ou metabolização mais lenta que a testosterona quando usados por via parenteral ou oral. Histórico uso e abuso. A importância dos andrógenos sobre as funções do trato reprodutor masculino é conhecida desde a remota Antiguidade .

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Inúmeras foram as dificuldades para isolar o hormônio testicular e as primeiras experiências com êxito foram realizadas em 1931, por Butenandt, que conseguiu isolar 25 mg de androsterona (metabólito da testosterona) a partir de 15.000 litros de urina. A testosterona foi isolada e identificada e sintetizada em 1935. Durante a segunda Guerra Mundial os EAA foram usados por soldados alemães como objetivo não médico de aumentar a agressividade. Na década de 50 do século passado os EAA passaram ser utilizado abusivamente por atletas para melhora da performance. A partir daí ocorreu aumento marcante do abuso de EAA por atletas em competições e no ano 1968, os EAA foram incluídos na lista de substâncias consideradas doping pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Nos anos 80, depois da Olimpíada de Moscou, os EAA passaram a serem consideradas substâncias proibidas pelo COI.

Nos dias atuais, a prática do fisiculturismo e o culto exagerado ao corpo contribuem para explosão do consumo dos EAA conhecidos vulgarmente por “bombas” pelos frequentadores de academias. Vários estudos populacionais sugerem que milhões de garotos e homens, primariamente em países ocidentais, tem usado abusivamente os EAA para melhorar a performance atlética ou aparência pessoal. O uso de EAA entre garotas e mulheres é menos comum. Os EAA causam dependência em uma minoria substancial de usuários. Apesar de dados epidemiológicos brasileiros serem escassos, mesmo assim, o abuso e a dependência de EAA podem ser dimensionados como um problema de saúde pública nos próximos anos.

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Efeitos adversos. Uma série de efeitos adversos é relatada durante terapia androgênica. Os mais importantes incluem icterícia, efeitos feminizantes no homem, policitemia, apnéia noturna, maturação óssea excessiva, retenção hidrossalina, apnéia noturna, hiperlipidemia, acne excessiva, impotência e azoospermia, hiperplasia e/ou hipertrofia prostáticas e efeitos virilizantes indesejáveis em mulheres, como acne, hirsutismo, irregularidades menstruais, engrossamento da voz, calvície, aumento de clitóris e aumento da massa osteomuscular. O uso prolongado de altas doses dos andrógenos orais alquilados na posição 17 tem sido associado ao desenvolvimento de quadros de hepatotoxicidade, icterícia colestática e neoplasias hepáticas, incluindo carcinoma hepatocelular. A testosterona pura parece não induzir esses efeitos. Contraindicações. As contraindicações formais ao uso de análogos da testosterona são o câncer da próstata e da mama no homem. Em mulheres há em geral contraindicação aos andrógenos, exceto quando o carcinoma mamário ocorre. Outras contraindicações ao uso de andrógenos são pacientes com descompensação hepática, renal ou cardíaca. POTENCIAL DE ABUSO E DEPEDÊNCIA Vale salientar que os efeitos dos EAA na força e massa muscular de levantadores de peso amadores são ínfimos quando comparados com os obtidos em homens em programa de treinamento intenso. Contudo, ganhos significantes na massa e na força muscular concomitante com a perda de gordura corpórea podem ser obtidos se esses esteróides forem administrados a atletas (ex. levantadores de peso) que já atingiram a estabilização de tamanho e da força muscular. Ganhos ainda maiores podem ocorrer com programas mais intensos de treinamento e com o uso de doses altas de EAA. Alguns usuários chegam a utilizar abusivamente de produtos veterinários à base de esteróides, sobre os quais não se tem nenhuma ideia sobre os riscos do uso em humanos. Nesse contexto, a insatisfação com a imagem corpórea em homens, especialmente jovens, contrasta com o que se sabe das mulheres na direção do ganho de peso. No tocante ao padrão de uso abusivo, os EAA são administrados durante 4 a 12 semanas

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por via oral ou parenteral. Os esquemas posológicos utilizados são de doses de 10 a 100 vezes maiores que as doses comumente empregadas nas terapias androgênicas, observando-se períodos intermitentes de retirada da substância de um mês a um ano. Geralmente, os EAA são associados com outros hormônios (diidroepiandrosterona, eritropoietina, hormônio de crescimento humano, insulina, tiroxina e triiodotironina) ou diuréticos e de outras substâncias, visando reduzir reações adversas ou potencializar os efeitos anabolizantes. Cabe registrar produtos dietéticos suplementares que incluem em sua formulação substâncias esteroidais e a cafeína superior ao limite de 50 mg. Na internet existem muitos sites onde os usuários são informados sobre o uso e venda dos EAA, situação similar pode ocorrer em algumas academias. Com relação aos principais efeitos decorrentes do uso abusivo de EAA, tem-se: tremores, acne severa, retenção de líquidos, dores nas juntas, aumento da pressão sanguínea, baixo HDL, icterícia e tumores hepáticos. Além desses riscos, há aqueles que se injetam e ainda compartilham seringas, com risco de contaminação com doenças contagiosas como a sindrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e hepatite. No homem, há diminuição do tamanho testicular e da contagem de espermatozóides, assim como impotência, infertilidade, calvície, desenvolvimento de mamas, dificuldade ou dor para urinar e aumento no tamanho da próstata. Para a mulher, crescimento de pelos faciais, alterações ou ausências de ciclo menstrual, aumento do clitóris, voz grossa, diminuição dos seios. No adolescente há maturação esquelética prematura, puberdade acelerada, levando a um crescimento raquítico. Na vigência do uso são descritos quadros psiquiátricos: psicoses ou sintomas psicóticos, mania ou hipomania, ansiedade e/ ou pânico. Os pacientes podem também apresentar aumento da agressividade, com episódios de raiva incontroláveis, ilusões, entre outras manifestações. Na retirada da substância podem ocorrer quadros depressivos. Há relatos de avaliação do potencial de dependência dos EAA, segundo critérios do DMSIV ou V. A insatisfação de imagem corpórea, como o transtorno dismórfico corpóreo (usualmente em homens) é um fator de predisposição dos usuários à dependência. Ademais, muitas

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evidências em modelos animais e humanos mostram que os EAA podem causar uma síndrome de dependência distinta, frequentemente associada com efeitos adversos psiquiátricos e médicos. Assim, cerca de 30% de usuários parece desenvolver dependência, caracterizada pelo uso crônico da substância, apesar dos prejuízos sobre o funcionamento fisiológico, psicossocial e ocupacional. Esta dependência compartilha muitas características com a dependência clássica de substância de abuso. Há relatos do uso associado de EAA com álcool, cocaína, heroína e anfetamina. A síndrome de abstinência é bem documentada em animais ou humanos. Os EAA apresentam efeitos reforçadores fracos comparados a cafeína, benzodiazepínicos e inalantes. Em modelos animais, os EAA produzem autoadministração, atingindo até mesmo o efeito letal (binje) e induzem a preferência condicionada por lugar e sensibilização cruzada com a cocaína. Quanto a elucidação dos mecanismos adjacentes ao desenvolvimento da dependência de EAA envolve mecanismo opiodérgico. Enquanto que a síndrome de abstinência de EAA é mediada através de sistemas neuroendócrino e da neurotransmissão opiodérgica. Em resumo, estudos futuros são necessários para caracterizar a dependência de EAAA mais claramente, identificar os fatores para esta síndrome e desenvolver estratégias padronizadas de prevenção e tratamento.

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