DRUMMOND REMÉDIOS VENENOS O Mundo não tem Remédio
Em comemoração ao Dia D 31.10: Dia de Drummond 2012
ROBERTO DELUCIA Professor e Pesquisador Psicofarmacologia da USP
de
Farmacologia
&
Em colaboração de Arina Sampaio, do curso de Letras, habilitação em Português/Latim da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP
Agradecimentos especiais As Bibliotecárias do Conjunto das Químicas, Instituto de Ciências Biomédicas, Escola Comunicação & Artes e Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP
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APRESENTAÇÃO O mundo da poesia & prosa de Carlos Drummond de Andrade (C.D.A.) é vasto, como já analisado em livros, dissertações e teses, pois ele escreveu sobre todos os assuntos: cinema, literatura, personalidades, futebol, comportamentos, moral, política, vida rural e cidades. Particularmente, durante a atualização da segunda edição do livro Farmacologia Integrada foi introduzido breve comentário de C.D.A. em defesa das bulas dos remédios que havia sido publicado no Jornal do Brasil (1976).
Ao contrário dos medicamentos, que não raro acrescentam outros males aos que carregamos no corpo.
A partir daí, surgiu a ideia de pesquisa de temas recorrentes sobre remédios & venenos na obra de Drummond. Inicialmente, pesquisando e relendo os poemas escritos de C.D.A. em livros, coleções e antologias, foi anotada uma série de fatos relacionados aos remédios & venenos e as pessoas envolvidas. Ademais, foram agregadas as bebidas alcoólicas, o café e as substâncias psicoativas (“drogas”). De fato, ocorreu uma busca frenética por palavras nos 38 mil versos, segundo a matemática de Manuel Granã Etcheverry, poeta argentino e genro de Drummond.
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A respeito das palavras, Drummond magnificamente em “Consideração do Poema”:
exaltou
As palavras não nascem amarradas, elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho, São puras, largas, autênticas, indevassáveis. (...) ...Eis meu canto. Ele é tão baixo que sequer o escuta ouvido rente ao chão. Mas é alto que as pedras o absorvem. Está na mesa aberta em livros, cartas e remédios. (...) (in A Rosa do Povo)
Mais tarde, numa entrevista dada ao O Globo (1982) C.D.A. declarou:
A palavra para mim é tudo, minha ferramenta de trabalho e o produto dessa ferramenta.
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Vale lembrar que C.D.A. era apenas bacharel em Farmácia, não tendo exercido a profissão de farmacêutico após a formatura. Mesmo assim, a pesquisa revelou que os assuntos sobre os remédios e venenos não eram poucos nos poemas escritos ao longo de sua vida. Desta forma, não nos deixa alternativa, a não ser o nosso modesto reconhecimento da importância dos “remédios & venenos”, que se associam as outras brilhantes análises como “céu & inferno” e “encantos & desencantos” da magistral obra literária de Drummond.
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TRAJETÓRIAS Sem se apegar as minúcias cronológicas, pois no primeiro momento, seria mais interessante fazer um breve relato dos estudos de C.D.A. no curso primário (fundamental) e colegial (médio) até a chegada ao ensino superior com o ingresso na Escola Livre de Odontologia e Farmácia em Belo Horizonte.
ruas
Cidade antiga de Itabira, e casa familiar
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Curso primário e colegial. A pacata Itabira - Minas Gerais viu nascer há mais de um século seu ilustre cidadão Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). No ano de 1910, inicia o curso primário no Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito em Belo Horizonte. Na mesma cidade, passa ser estudante interno no Colégio Arnaldo da Congregação do Verbo Divino em 1916. Por motivo de doença, volta a Itabira onde toma aulas particulares com o professor Emílio Magalhães para não perder o ano letivo. Viaja para Nova Friburgo, na condição de estudante interno do Colégio Anchieta da Companhia de Jesus em 1918. Apesar de ser premiado em certame literário, é expulso do Colégio Anchieta de hierarquia militarista em 1919. A indignação do poeta é manifestada em “Adeus ao Colégio”:
Adeus colégio, adeus vida vivida sob inspeção, dois anos jogados fora, ou dentro de um caldeirão. (in Fria Friburgo, Boitempo)
Em 1920 retorna com a família para Belo Horizonte. No ano seguinte, publica seus primeiros trabalhos no Diário de Minas (seção,“Sociais”) e conhece inúmeros jovens intelectuais que são todos frequentadores da Livraria Alves e do Café Estrela. O conto “Joaquim Toledo” de sua autoria é
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premiado com importância de 50 mil-réis no concurso Novela Mineira.
Curso de Farmácia. Apesar das indecisões quanto ao rumo a tomar na vida, C.D.A. ingressa no curso de Farmácia em 1923.
Escola Livre de Odontologia e Farmácia em BH
As apreensões do pai, o fazendeiro Carlos de Paula Andrade, e da sua mãe, D. Julieta Augusta Drummond de Andrade e a pressão dos amigos por estarem já clinicando em Medicina ou Advocacia são indagadas em “A Consciência Suja”:
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(...) Então, sei lá porque, tu serás farmacêutico. E você continua a perder tempo do Bar Ponto à Escola de Farmácia sem estudar. (in Mocidade Solta, Boitempo)
Apesar de todas as hesitações, C.D.A. conclui o curso de Farmácia em 1925. De última hora, torna-se o orador da turma por indisposição de um colega. O poema “Final de História” retrata ironicamente a cerimônia da formatura e ao mesmo tempo, manifesta a falta de vocação ao ofício farmacêutico.
(...) Eu e meus nove colegas mais três coleguinhas, é tudo verdade? Vou manipular as poções que cortam a dor do próximo e salvam brasileiros do canguari e do gálico?
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Ao companheiro Amorim apela: Dou-te plenários poderes: em tuas Farmácias Luz ou Santa Cecília ou Cláudia, faze tudo que eu devia fazer e que não farei por sabida incompetência: purgas, cápsulas, xaropes, linimentos e pomadas, aplica, meu caro, aplica trezentas injeções ... Por último, recomenda ao companheiro: (...) atende, ajuda, consola, sê enfermeiro, sê médico, sê padre na hora trevosa da morte do pobre (a roça exige de ti bem mais que o nosso curso te ensina). Vai Amorim, sê por mim O que jurei e não cumpro Fico apenas na moldura Do quadro de formatura. (in Mocidade Solta, Boitempo)
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Carlos Drummond de Andrade, bacharel em Farmรกcia
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Cabe assinalar que, até meados da década de 20, o curso de Farmácia com a duração de três anos continha as seguintes disciplinas: Área de Ciências Biológicas: Biologia geral e fisiologia, botânica geral e sistemática aplicada à farmácia, microbiologia, zoologia geral e parasitologia. Área de Ciências Físico-Químicas: Física, química geral e mineral, química orgânica e biológica (bioquímica) e química analítica. Área de Ciências Farmacêuticas: Farmacognosia, farmácia química (química farmacêutica), farmácia galênica (farmacotécnica), química toxicológica e bromatológica, higiene e legislação. Todos esses conhecimentos das Ciências Farmacêuticas irão repercutir de diversas maneiras nas trajetórias de C.D.A.. Em entrevista sobre o não exercício da profissão de farmacêutico, C.D.A. alega querer “preservar a saúde dos outros”. Contudo, o poeta jamais se esquece da Farmácia e do ofício farmacêutico que são expressos em alguns poemas.
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A lembrança da farmácia pode ser vista em “ÁguaCor”:
O país da cor líquido e revela-se na anilina dos vasos de farmácia. (...) (in Percepções, Boitempo)
. Frascos coloridos de Farmácia antiga
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A tradicional figura política do coronel é ironizada em “Como um Presente”: (...) Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu. Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados, da monarquia, da escravidão, da tirania familiar és bem frágil e a escola te engole. Faria de ti talvez um farmacêutico ranzinza, um doutor confuso. (...) (in A Rosa do Povo)
Em clima de reportagem, o farmacêutico é lembrado em “A Visita do Rei”:
Majestade, aceite esta garrafa de licor estomacal, do meu fabrico O rei aceita, vai provar (mas em Bruxelas) o presente do farmacêutico Artur Viana (...) (in Mocidade Solta)
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As dificuldades familiares são registradas em “Caso do Vestido”: (...) minha corrente de ouro pagou a conta da farmácia. (...) (in A Rosa do Povo)
No início e até meados do século passado, o estabelecimento de farmácia era ponto de encontro político e social da comunidade. Em “Ode ao Partido Republicano Mineiro” é analisada a situação partidária da época: (...) Pobres filhos de Eva, deserdados do meu peito, os trânsfugas jazem mudos à porta lacrada dos bancos ou no corredor deserto da farmácia da oposição. (...) (in Mocidade Solta)
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Interior da antiga Farmácia Luz Na farmácia, uma discussão animada é contada em “O Original e a Cópia”:
No dia infindável, no centenário banco de farmácia discutem passarinho como fosse polícia municipal. (...) (in Boitempo)
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Mais recentemente, as farmácias são alvos da propaganda imobiliária como é revelado em “Diamundo. 24 H de Informação na Vida do Jornaledor”:
(...) Em volta do edifício num raio de 80 metros você tem O melhor pão de São Paulo Haute coiffure médicos, dentistas, farmácias (...) (in As Impurezas do Branco)
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NOVAS TRAJETÓRIAS Em 1925, Carlos Drummond de Andrade, casa-se com a Dolores Dutra de Morais e volta a morar em Itabira, onde leciona Geografia e Português no Colégio SulAmericano. Após um ano da morte prematura do filho Carlos Flávio, nasce a filha Maria Julieta, que se torna a grande companheira ao longo da vida. Em 1928, muda-se para Belo Horizonte onde trabalha na redação da Revista Educação, Diário de Minas e Minas Gerais. O seu livro de estreia Alguma Poesia (1930) é publicado no selo Edições Pindorama com tiragem de 500 exemplares. Acompanha o amigo de infância Gustavo Capanema quando é interventor em Minas Gerais em 1933. No ano seguinte, muda-se com a esposa e filha para o Rio de Janeiro para trabalhar como chefe de gabinete de Capanema, novo ministro da Educação e Saúde Pública na era Vargas. O livro Rosa do Povo (1945) é publicado pela José Olympío, recebendo muitas críticas favoráveis e reflete um período em que Drummond esteve mais comprometido com questões políticas. Demite-se, da chefia do gabinete de Capanema e a convite de Luís Carlos Prestes torna-se editor da Tribuna Popular. Abandona a edição, por discordar da orientação política imposta ao jornal. Inicia trabalho na Diretoria do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1945, onde se torna funcionário efetivo em 1953.
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Paralelamente à carreira de funcionário público, C.D.A. continua sua notável obra de poeta, escritor, contista, tradutor e jornalista ate sua morte em 1987.
Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro
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REMÉDIOS Para melhor entendimento, reserva-se o termo remédio para todo agente de cura. O medicamento é remédio, mas o banho de sol, as dietas e o clima de montanha são remédios e não medicamentos. Portanto, os remédios e/ou medicamentos são agentes que provocam efeitos benéficos aos seres vivos. Histórico. No papiro de Ebers (1550 a.C.) já se encontra a descrição de como se obtinham os preparados usados na época como remédios. Hipócrates (460-370 a.C.) descreveu as doenças e os medicamentos da época. Seus ensinamentos renasceram mais tarde por intermédio de Galeno (131-201 d.C.). A tradição galênica, com seu elaborado sistema de polifarmácia, preocupou-se com preparação de medicamentos e seus escritos tiveram preponderante influência na medicina europeia até o século XVI. Paracelsus (1493-1541) foi talvez o primeiro a rejeitar a tradição galênica e advogou a experimentação na procura de novos medicamentos. Ainda no século XVI, surge a primeira farmacopeia, repositário de remédios utilizados na época. No século XVII, Sydenham (1624-1689) enfatizou a importância da inspeção clínica e da observação na nosologia da doença. Entretanto o progresso na terapêutica daquela época foi limitado, exceto pela introdução de banhos minerais e do extrato com quinina.
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Até meados do século XIX, assistiu-se a uma evolução lenta na terapêutica. No início do século XIX, a morfina foi obtida do ópio por Sertüener, em 1817, que começou a série de isolamentos de alcaloides como princípios ativos de plantas. Contudo, a arte de curar era até esdrúxula e se limitava, na maioria dos casos, a combater sintomas. Pode-ser afirmar que a moderna Farmacoterapêutica começa com Buchein, Magendie e seu discípulo Claude Bernard (1813-1879) que expôs suas ideias magistrais em “Introdução `a Medicina Experimental”. É no fim do século XIX e início do seculo XX, surgem os primeiros medicamentos sintéticos como aspirina (1900) veronal (1903), os arsenicais (1912) e o gardenal (1914). A primeira edição da Farmacopeia Brasileira foi oficializada em 1926. Na década de 30, já se compreende o alcance das vitaminas, dos hormônios, das sulfas e antibióticos! O interesse pelas substâncias psicoativas surge com os alucinógenos: a LSD25 em 1948, a clorpromazina antipsicótico em 1953, o diazepam ansiolítico em 1958 e a imipramina antidepressivo em 1964. Por último, os fármacos ditos “inteligentes” dos dias atuais, planejados pela biotecnologia molecular. Portanto, C.A.D. foi testemunha privilegiada, deste grande, para não dizer espetacular, descobrimento de novos medicamentos ocorrido no século passado.
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De posse de todo material pesquisado ao longo de mais 50 anos de publicações de Drummond, optou-se em incluir todos os poemas que abordam os assuntos, mesmo aqueles que tocavam de forma tangencial ou figurativa. Os assuntos referentes aos remédios foram organizados segundo classes farmacológicas de modo facilitar a compreensão dos leitores. Aspirina. A popular aspirina (ácido acetilsalicílico) é destaque em “Resíduos” e “A um Hotel em Demolição”, onde o modo de morrer ou a morte são iminentes:
Aspirina (comprimidos)
E minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina. De tudo ficou um pouco. (...) (in A Rosa do Povo)
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O 137 está chamando Depressa que o homem vai morre é aspirina? Padre que ele quer? Não se ele mesmo é padre e esta rezando Por conta dos pecados deste hotel (...) (in A Vida Passada Limpo)
Em situação de estresse, o analgésico (comprimido) é usado no alívio da dor de cabeça, como é visto em “Morte no Avião”:
Declino com tarde, minha cabeça dói, defendo-me a mão estende comprimido: a água afoga a menos que dor, a mosca, o zumbido... (in A Rosa do Povo)
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O antigo reclame de Aspirina ilustra aos usuários outras indicações de caráter emergencial. Antibióticos e Sulfas (Colubiazol). Conhecidos no século passado como balas mágicas pela afinidade específica em bactérias são mencionados em “Palavras: Isso Aquilo”: (...) as endodoenças, os antibióticos (...) colubiazol o gazel (...) (in Lição de Coisas)
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Numa verdadeira torre de Babel do mundo moderno, os antibióticos são encontrados em “A Torre sem Degraus”:
(...) No 170, preparam-se orações de sapienças, tratados internacionais de bulas de antibióticos. (...) (in A Falta que Ama)
Catárticos ou Purgativos. Apesar das indicações terapêuticas restritas, os purgativos sempre foram bastante usados, especialmente na população idosa, devido maior incidência do uso abusivo em casos de dificuldade de defecação. Entre os catárticos osmóticos, o sulfato de magnésio (MgSO4) ou sal amargo (salmaro) era o mais usado, apesar do sabor desagradável que dificulta a tomada principalmente em crianças. “O maior pavor” revela a desagradável experiência de tomar sal amargo, ao mesmo tempo, compara com efeito emético (náusea e vômito) provocado pela a poaia, planta da
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família das rubiáceas, nativa do Brasil de longas raízes grossas e nodulosas, que fornece a emetina (emético).
(...) Maior de todos, salmaro sal catártico. Maior, maior que ele ainda, a poaia (...) (in O Menino e os Grandes, Boitempo) A mesma situação ocorre em “Escaparate”, com o óleo de rícino, catártico do tipo emoliente de sabor desagradável, atualmente em desuso.
Sobre o escaparate o vidro de óleo de rícino a caixinha de cápsulas o copo facetado e a colher inclinada (...) (in Caminhar de Costas, Boitempo)
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Genericamente, o purgativo está presente no poema “Censo Industrial” entre as várias indagações irônicas:
(...) Que fabricas tu? Fabrico purgante (...) (in Vida Paroquial, Boitempo)
A falsa crença de uso de purgativo como solução “milagrosa” a todos os males é contada em “Estória de JoãoJoana”:
(...) Logo receitam de araque meizinha sem variante para qualquer macacoa; Carece tomar purgante João entrou no purgativo (...) (in Versiprosa)
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O antigo reclame abaixo ilustra a comparação da preferência entre a “Limonada purgativa” (citrato de magnésio), mulher de chapéu e guarda chuva e o “Caju purgativo” (sulfato de sódio), moça de sombrinha.
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Outros Reclames. Um fascinante aspecto da publicidade dos remédios de venda livre foi os reclames nos bondes da Light.
Os publicitários que criavam as propagandas anunciadas nos bondes e nas rádios também foram lembrados por Drummond como aparece no poema “Brinde ao Juízo Final”.
Poetas de camiseiros, chegou vossa hora poetas de elixir de inhame e de tonofosfan chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio, poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil (...) (in Sentimento do Mundo)
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Reclames antigos do Elixir de Inhame e Tonofosfan
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Em “Verbo e Verba”, os anúncios de depurativos (remédios que supostamente depuram o organismo de toxinas), tônicos e de outros remédios são considerados importantes recursos financeiros para edição dos jornais diários.
Anúncios do depurativo Salsa, Caroba e Manacá, do Cacturgenol para urinas escuras, e faz intercalar o comunicado do Partido com salutar aviso... de que o Pó Pelotense é o único a evitar assaduras debaixo dos seios. (...) (in Mocidade Solta)
Anúncio antigo de depurativo
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Os remédios usados em emergência nos lares e suas indicações são apresentados em “A Separação das Casas”:
(...) em noite de dor na perna de farmácia fechada com vistas ao milagroso vidrinho de Pronto-Alívio ou em outro qualquer aperto que costuma suceder nos lares mais bem providos. (in Boitempo)
O mote de Bromil (brometos), xarope antitussígeno é também lembrado em “Primeira Eleição”.
(...) Viva o Brasil ...de Hermes na posse. Tosse ? Bromil (in Relações Humanas, Boitempo)
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Diversidades. Nos poemas de C.D.A., a palavra remédio aparece com outras acepções que refletem a vida das pessoas e a sensibilidade do poeta diante dos problemas do mundo. Em “Menino Chorando na Noite” revelam momentos dramáticos da vida de um menino.
Na noite lenta e morna, morta noite, um menino chora O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher. (...) (in Sentimento do Mundo)
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Em “O Preparado”, o poeta comove-se com a morte do menino por falta de remédio (preparado).
(...) Foi o tempo de arder em febre e de o doutor ehe receitar um preparado que não havia. O preparado não havia. (...) (in Notícias da Clã, Boitempo)
Situação similar ocorre em “A Rua em Mim”:
(...) salvai , parente velho, este menino desintegrado. Rua do Matadouro, eu vi que sem remédio. (...) (in Boitempo)
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A fluidez do tempo aflige o poeta em “Desfile”:
O rosto no traveseiro, escuto tempo fluindo no mais completo silêncio. Como remédio entornado em camisa de doente; (...) (in A Rosa do Povo)
A questão existencial de ser ou não ser é revelada em “Idade Madura”:
(...) serei, no circo, o palhaço serei médico, faca de pão, remédio, toalha, serei bonde, barco, loja de calçados, igreja, (...) (in A Rosa do Povo)
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Os horrores da segunda Guerra Mundial são contados em “Visão 1944”:
Meus olhos são pequenos para ver o transporte de caixas de comida, de roupas, de remédios, de bandagens, para um porto da Itália, onde se morre. (...) (in A Rosa do Povo) Em “Mini. Mini”, as angústias no mundo moderno são ironicamente expostas:
(...) Míni míni míni míni tua bomba vira pílula que é muito mais baratinha e dispensa de matar dispensando de nascer (...) ( in Versiprosa)
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Curiosamente, C.D.A. vale-se de efeitos de remédios para caracterizar personagens ou fenômenos naturais. Os diversos efeitos são apresentados em “Desdobramento de Adalgisa”, “O Casamento do Céu e do Inferno” e “Os Bens e o Sangue” e “ Melinis Minutiflora”:
Sou a quádrupla Adalgisa, Sou a múltipla, sou única e analgésica Adalgisa. (...) (in Brejo das Almas)
No azul do céu de metileno a lua irônica diurética é uma gravura de sala de jantar (...) (in Alguma poesia)
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(...) sou agradecido Ao capim-gordura Pois além do mais, na sua brandura ele é diurético, antidisentérico, antidiarreico. (...) (in Boitempo)
(...) Vergonha da família que de nobre se humilha na sua malincônica tristura meio cômica, dulciamara nux-vomica*. (...) (in Claro Enigma) *Nux-vomica, planta que contém a estricnina
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O remédio aparece figurativamente como solução ou tentativa de resolver os problemas pessoais e do mundo em “Governador em Viagem”, “O Viajante Pedestre, “Nova Casa de José”, “A Noite Dissolve os Homens” e “Nossos Tempos”:
(...) Governador vai governado A cavalo, que remédio? (...) (in Discurso de primavera e algumas sombras)
Combinado. Que remédio? O filho de fazendeiro senhor de cinco fazendas lá vai, pé de lama afora. (...) (in Boitempo)
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(...) Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens de desconfiança e solidão - Não há outro remédio, suspira São Pedro. (...) (in Boitempo)
(...) A noite anoiteceu tudo... O mundo não tem remédio... Os suicidas tinham razão. (in Sentimento do Mundo)
(...) Há soluções, há bálsamos Para cada hora e dor. (...) (in A Rosa do Povo)
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Entre muitas personalidades, o médico Noel Nutels é homenageado em “Entre Noel e os Índios”:
(...) aí estavas tu, teu riso companheiro, teus medicamentos, tua branca alegria de viver A vida universal. (...) (in As Impurezas do Branco)
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BEBIDAS ALCOÓLICAS
O uso de bebidas alcoólicas pelo ser humano se perde no tempo. A disponibilidade do álcool sempre foi muito grande, na medida em que, sendo o produto da fermentação de açúcares, pode ser facilmente obtido em qualquer região. Este fato é provavelmente parte da explicação da difusão praticamente universal das bebidas alcoólicas.
Histórico. Até o desenvolvimento da técnica da destilação, as bebidas alcoólicas consumidas eram a cerveja e o vinho, que contêm cerca de 4% a 12% de álcool. O processo de destilação foi desenvolvido pelos árabes em 800 a.D. e veio permitir a produção de bebidas alcoólicas mais concentradas (cachaça, uísque[água da vida], gim, rum, vodca, conhaque etc), variando o conteúdo de etanol entre 40% e 50%. Além disso, o álcool passou a ser comercializado como ingrediente de elixires e tônicos. A partir do início do século XVIII, as bebidas destiladas passaram a ser a bebida mais consumida por diferentes tipos de sociedade. Esse fato determinou restrições ao consumo de álcool, pois gerou a necessidade de controlar ou prevenir o uso abusivo, embora ele seja aceito socialmente.
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Cachaça. No Brasil, as cachaças são conhecidas popularmente por: abrideira, água-que-gato-não-bebe, águaque-passarinho-não-bebe, aguardente, arrebenta-peito, birita, branquinha, caninha, capote-de-pobre, gororoba, pinga, pura, quebra-goela, remédio etc. Ademais, no “Dicionário folclórico da Cachaça” de autoria de Mario Souto Maior com prefácio de C.A.D. são relatados mais 3000 termos populares da cachaça.
Uma destas denominações populares de cachaça aparece em “Na Barra do Cacunda”:
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(...) O trabalho prossegue na tenda do seleiro, nos bilros da rendeira, no tacho da doceira, no descansado cálice de branquinha servido aos eternos fregueses do botequim escuro. (...) (in Boitempo)
Os problemas da fabricação de cachaça e rapadura nas fazendas são comentados em “Fazendeiros de Cana”:
Minha terra tem palmeiras? Não. Minha terra tem engenhocas de rapadura e cachaça e açúcar marrom, tiquinho, para gosto. (...) (in Boitempo)
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Fabricação da cachaça e rapadura A cachaça como todas as bebidas tomadas em doses baixas de álcool tem efeito inicial prazeroso e excitatório, manifesto por aumento da hilaridade, loquacidade, expressões afetivas aumentadas e diminuição da autocrítica. O efeito prazeroso da cachaça é manifestado figurativamente pelo poeta em “Explicação”:
Meu verso é minha consolação Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. (...) (in Alguma Poesia)
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Os prazeres das comidas são acompanhados de cachaça e da cerveja em “A Mesa” e do fumo em “Turcos”:
(...) E quanto ao peru? Farofa, há de ser acompanhada de uma boa cachacinha, não desfazendo em cerveja essa grande camarada. (...) (in Claro Enigma)
A cachaça, geléia, o trescalante fumo de corda: para cada um o seu prazer. (...) (in Boitempo)
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Cerveja. A cerveja é a bebida alcoólica de maior consumo em todo mundo. No Brasil, é conhecida em termos populares: birra, breja, cerva, devassa, loira, geladinha, verão etc. Da mesma maneira que a cachaça, a cerveja está presente nos versos de C.D.A..
O prazer de beber cerveja (Fidalga) é revelado em “Fim da Casa Paterna”
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(...) meu pai, descansando, estende-me o copo quente e divino de uma cerveja Fidalga Bebi, Bebemos. Avante. .
(in Boitempo)
Nos tempos de colégio, o poeta elogia a cerveja fabricada pelo frade em “Discursos”:
(...) É pena: ainda não vi ninguém fazer um discursinho mesmo chocho ao Irmão Falcão, enaltecendo a grata, oportuna cervejinha por ele fabricada (...) (in Boitempo)
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Em “O Colegial e a Cidade” lamenta estar estudando matemática enquanto a cidade está em festa.
(...) Sentir que lá fora estão se divertindo fagueiros, que há risos, beijos e cerveja e não sei mais que delícias e eu aqui me torturando com tábua de logaritmos... (...) (in Boitempo) Em “Novo Homem”, projeta-se um futuro sombrio para a humanidade, apesar do efeito prazeroso de beber a cerveja.
O homem será feito em laboratório. Será tão perfeito Como no antigório. Rira como gente, beberá cerveja deliciadamente. (...) (in Versiprosa)
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A decoração local é importante no consumo de cerveja em “Bar”:
Ciprestes e castanheiras em torno deste bar rústico vão tornando mais ilustre o consumo de cerveja (...) (in Boitempo)
A vida monótona dos juízes de paz é sarcastiscamente revelada em “A Paz entre os Juízes”:
(...) Ou ficam ansiosos, expectantes, de ouvido no chamado para casar com toda a pompa e caixa de cerveja a filha do guarda-mor, a bela Joana. (...) (in Boitempo)
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Vinho. Na cultura ocidental, o vinho ocupa lugar de destaque nas boas mesas e até mesmo na eucaristia cristã. Neste contexto, a boa mesa, o ritual e o gesto são bem caracterizados em “A Mesa” e “O Vinho”:
E daí, não te assustávamos porque, com riso na boca, e a nédia galinha, o vinho português de boa pinta, e mais o que alguém faria de mil coisas naturais e fartamente poria em mil terrinas da China. (...) (in Claro enigma)
(...) O vinho à mesa, liturgia. Respeito silencioso paira sobre a toalha. A garrafa espera o gesto, o saca-rolha espera o gesto que há de ser lento e ritual (...) (in Boitempo)
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A expectativa de encontrar o brinde de vinho do Porto é contada em “História de vinho do Porto”:
O melhor na caixa de vinho não é vinho constelado de medalhas É o brinde oculto, destinado a quem? A mim caixero de armazém de seco e molhados (...) (in Boitempo)
Caixa de vinho do Porto antigo
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As perdas de bens familiares e o destino dos herdeiros por caminhos incertos são contados em “Bens e o Sangue”:
(...) Este será tonto e amará no vinho um novo equilíbrio e passo tíbio sairá na cola de nenhum caminho (...) (in Claro enigma)
Diversidades. Os efeitos prazerosos do conhaque e das bebidas em geral são descritos em “Poema de Sete Faces” e “Acorda, Maria”: (...) Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como diabo (...) (in Alguma Poesia)
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(...) Acorda, Maria é dia de prazer municipal. A bebida esta pedindo pra ser bebida (...) (in As Impurezas do Branco)
Brinde do poeta A inadequação de se viver em mundo calculista, competitivo e partidário faz com que muitas pessoas busquem soluções compensatórias e ilusórias nas bebidas alcoólicas.
Este panorama sombrio é pintado com cores fortes em “Convite Triste” e “Nosso Tempo”:
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(...) Vamos beber uísque, vamos. beber cerveja preta e barata, beber, gritar e morrer, ou, quem sabe? beber, apenas (...) (in Brejo das Almas)
É tempo de cortinas pardas, de céu neutro, política na maça, no santo, no gozo, amor, desamor, cólera branda, gim com água tônica (...) (in A Rosa do Povo)
O trabalho alienado nas repartições públicas é representado em diálogos surrealistas entre as bebidas alcoólicas e um oficial administrativo em “Noite na Repartição”:
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(...) TODOS ÁLCOOIS: - Me prova, me prova! É a festa do rei! É de graça! de graça! Me bebe!, me bebe OFICIAL ADMINISTRATIVO: - Mas eu não sei beber. Nunca aprendi. (...) (in A Rosa do Povo)
As tristes recordações familiares afloram uma vida decadente em “Edifício Esplendor”:
(...) O copo de uísque e o blue destilam ópios de emergência. (...) (in José)
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Os exageros da comunicação são ironizados em “Ao Deus Kom Unikassão”
(...) Se komuniko que amorico que centimultiplico scoth no bico papanco rio rico salpico de prazer meu penico em vosso honor , ó Deus komunikão (...) (in As Impurezas do branco)
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CAFÉ Desde a Antiguidade, os povos fizeram uso de plantas contendo princípios ativos com possibilidade de modificar o humor das pessoas. Dentre eles, destaca-se a cafeína encontrada em bebidas como café, chá e guaraná. Histórico. A princípio, o café, semente derivada da Coffea arabica, contendo a cafeína provocou os clamores de indignação social como a nicotina do tabaco que recebeu, quando foi introduzida como prática social no século XVI. Até fins do século XIX, o café ou nosso “cafezinho” era bebida popular contendo cafeína, que é a substância mais consumida na sociedade contemporânea.
Folhas e frutos do cafeeiro (Coffea arabica)
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O inestimável prazer de beber e fazer o café são exaltados em “Infância e “O Visitante Inábil”:
No meio-dia branco da luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala- e nunca esqueceu Chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom. (...) (in Alguma Poesia)
Café coado na hora, Adoçado a rapadura bem escura, de ser servido na tijela de flores de três cores, flores pegando fogo, de tão quente deve ser o café pra ser café oferecível. (...) (in Boitempo)
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A cobiça dos antepassados pelas riquezas naturais do Sertão do mato-dentro é registrada em “Inscrições Rupestres no Carmo”:
(...) mais se veria em gleba conquistada por meus antepassados cobiçosos de ouro, gado, café, recobre a terra Devolvida a seus donos naturais. (...) (in Boitempo)
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O anúncio de seleção pessoal revela as exigências do mercado de trabalho em “Diamundo: 24 h de Informação na Vida do Jornaledor”:
(...) Moça de boa aparência, 25 anos no máximo Para servir café a executivos. (...) (in As Impurezas do Branco)
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SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS (“Drogas”) Muitos remédios ou medicamentos, bebidas alcoólicas (etanol) e o café (cafeína) podem ser catalogados entre as substâncias psicoativas. Contudo, será dada ênfase às substâncias psicoativas, popularmente conhecidas como “drogas”, que apresentam potencial de abuso e dependência. Dentre elas, destacam-se coca (cocaína), ópio (morfina), tabaco (nicotina), maconha (canabinoides), inalantes (éter) e alucinógenos (ácido lisérgico). Cocaína. A cocaína é alcalóide obtido da folha coca (Erythroxylon coca) encontrada na Bolívia, Peru e Colômbia.
Folhas de coca (Erythroxylon coca) Histórico. É tradição em países andinos, desde a civilização inca, mascar a folha da coca pelos índios nas suas
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escaladas andinas, costume que perdura até nossos dias. A cocaína tem sido usada ao longo da história como estimulante e formulada em tônicos e preparações antifadiga. O xarope a base de coca (cocaína) e cola (cafeína) foi formulado pelo farmacêutico e médico John Pemberton em 1986. Em 1903, a formulação de cocaína como ingrediente de refrigerante do tipo coca (Coca-Cola) foi proibida por lei nos EUA.
Folha, fruto, flores e noz de Cola A partir da década de 80, o uso abusivo de cocaína e o crack e mais recentemente óxi tornaram-se preocupantes para sociedade. Morfina. É alcalóide do ópio obtido da papoula (Papaver somniferum) cultivada principalmente na Ásia.
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Flores da papoula (Papaver somniferum) Histórico. Muito antes da Era Cristã, o ópio era utilizado na Grécia e na Ásia. Os árabes introduziram ópio no Oriente através de seu comercio. O uso de ópio se espalhou pela Índia e chegou à China, gerando conflito de interesse econômico entre britânicos e chineses, denominado de “Guerra do Ópio” (1839-1842). As vitórias dos britânicos ocasionaram o aparecimento de milhares de chineses dependentes de ópio. Em 1906, o Imperador proibiu o comércio e cultivo de papoula na China. A imigração de trabalhadores chineses para os EUA contribui para o uso excessivo de ópio que resultou em proibição por lei em 1914. Os casos graves de dependência surgiram com a descoberta do uso da seringa hipodérmica. Durante a 2ª. Guerra mundial foi estimulada a procura por análogos sintéticos, uma vez que a
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obtenção de opiáceos através do cultivo da papoula na Ásia Menor foi prejudicada em parte pelo conflito. Nos dias atuais, mais de 50% da população que abusa de opioides vivem na Ásia, principal local de cultivo. Nos EUA, a heroína permanece como maior problema, desde a proibição do uso de ópio. No Brasil, o uso abusivo de heroína é relativamente baixo, quando comparado com a prevalência mundial.
Frasco antigo de heroína antes da proibição Figurativamente, os efeitos prazerosos da cocaína e morfina não são suficientes para superar o de uma obra literária em “Fuga”:
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Estou de luto por Anatole France, o de Thais, jóia soberba Não há cocaína, não há morfina igual a essa divina papa-fina. (...) (in Alguma Poesia)
O problema do medo que paralisa homens, cidades e o mundo são enfrentados em “O medo”: (...) Vem, harmonia do medo, vem, ó terror das estradas, susto da noite, receio de águas poluídas. Muletas do homem só. Ajudaí-nos lentos poderes do láudano.* (...) (in A Rosa do Povo) *Laudano, bebida antiga feita de ópio na Europa. O significado do ópio de alienação é empregado zombeteiramente em “Ao Deus Kom Unikassão”:
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(...) Senhor do ópio E do cor-no-copo Senhor! Senhor! (...) (in As Impurezas do Branco)
A polêmica de estratégias de intervenções repressivas e de controle das substâncias psicoativas, consideradas ilícitas em âmbito internacional é ilustrada em “Diamundo: 24 h de Informação na Vida do Jornaledor”: (...) Vedado o cultivo de papoula na Turquia mas Bolívia exporta cada vez mais a coca (...) (in As Impurezas do Branco)
No contexto jurídico e policial, os termos entorpecentes ou narcóticos são empregados para as substâncias psicoativas com potencial de abuso e dependência.
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Em “Mãos Dadas”, “O Museu Vivo” e “Madrigal Lúgubre”, os entorpecentes e narcóticos aparecem com diversos significados na problemática mundial:
(...) não distribuirei entorpecentes ou cartas suicidas (...) (in Sentimento do Mundo)
O museu moderno por excelência viajeiro visita o interior das vísceras conta horror, beleza melodia, paz narcótica, no horror (...) (in As Impurezas do Branco)
(...)
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imensa bercuse sobe dos mares desce dos astros lento acalanto, leves narc贸ticos brotam da sombra, doces unguentos, calmos incensos. (...) (in Sentimento do Mundo)
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Tabaco. O tabaco é originado das folhas secas da planta Nicotiana tabacum da família Solanaceae, nativa da América do Norte que substituiu a espécie primitiva Nicotiana rustica, originária da América do Sul de sabor desagradável de fumar. A nicotina foi primeiro alcaloide líquido extraído do tabaco.
Folhas e flores da Nicotiana tabacum Histórico. O uso de tabaco surgiu aproximadamente no ano 100 a.C nas sociedades indígenas da América em rituais mágico-religiosos. A partir do século XVI, o seu uso disseminou-se pela Europa, apesar das proibições de uso. Jean Nicot, diplomata francês vindo de Portugal, foi o responsável pela utilização até mesmo para curar as enxaquecas de Catarina de Médici, rainha da França. O tabaco foi comercializado sob a forma de fumo para cachimbo, rapé; tabaco para mascar; e o charuto até o século XIX quando se iniciou sua manufatura sob a forma de cigarro na Espanha. Em 1856, foi construída uma fábrica para produção em massa na Inglaterra e a primeira maquina de fazer cigarro foi introduzida em 1880 nos EUA. O uso de
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cigarro, ajudado pelo desenvolvimento de técnicas avançadas de publicidade, espalhou-se de forma epidêmica por todo o mundo a partir de meados do século XX, devido às facilidades de produção, transporte e distribuição. A partir da década de 1960, surgiram os primeiros relatos médicos sobre o uso de cigarro e o adoecimento dos fumante e, posteriormente ao do não fumante. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (2005), duzentos mil brasileiros morrem a cada ano por decorrência de doenças relacionadas ao tabagismo. Em todo o mundo, esse número chega a 5 milhões. O tabaco tem relação causal bem estabelecida com várias doenças.
Depois da cachaça, geleia é a vez do prazer do fumo de corda em “Turcos”:
A cachaça, geleia, o trescalante fumo de corda: para cada um o seu prazer. (...) (in Boitempo)
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O cigarro está no jogo de palavras em “Palavras: Isso Aquilo”: (...) o cigarro, a formicida (...) (in Lição de Coisas)
O desafio do adolescente à proibição paterna e escolar do ato de fumar é contado em “Direito de Fumar”:
O pensamento de cigarro vem, ondulante, frequentar-me, eu que não fumo. Bem que o pai podia consentir: O 74 está crescido, Pode fumar dois Sonia por semana”. Assim, decide a lei, os Grandes permissa, quando o pai autoriza o limite. (...) .
(in Boitempo)
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O charme e o ato de fumar
A luta das mulheres pela conquista do direito de votar gera reação a favor e contra em “Mulher Eleitora”: (...) Mas , o Major Cançado, inconformado Recorre da sentença. Onde já se viu mulher votar? Mulher fumar, Mulher andar sozinha, Mulher agir, pensar por conta própria, são artes do Demônio minha gente ( in Biotempo)
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. Mulher (fumante) e menina (fumante ativa ou passiva ?) em meio da fumaรงa de charuto.
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Maconha. A maconha ou cânabis é a designação comum as plantas do gênero Cannabis da família canabiáceas, provavelmente originárias da Ásia Central na fronteira entre China e Mongólia.
Maconha (Cannabis sativa) Histórico. O uso da maconha foi onipresente na China, índia e Oriente Médio por muitos anos. As fibras da maconha foram usadas para fabricação de cordas e vestuário na China em mais 4000 anos a.C. Há relatos de uso da maconha como erva medicinal catalogado por Imperador Shen Nung em 2839 a.C. Na Índia, a maconha foi usada como parte de rituais religiosos. Desde o século X, o mundo árabe passou usar o haxixe, resina extraída desta planta. No Ocidente, somente no século XVII foram relatadas experiências do uso medicinal da cânabis pelo médico inglês O`Schaughnessy em 1839. Na metade do século XIX, foi realizada busca por experiências
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psicotogênicas por artistas e intelectuais de Paris no Clube dês Hachichins. Nos fins do século XIX e durante o século passado, foi investigado o impacto da maconha sobre saúde dos indivíduos e da sociedade por várias comissões oficiais de especialistas. Em resumo, essa série de estudos avaliou a maconha como substância relativamente segura em seu uso recreacional, comparando a de outras substâncias de abuso qualificadas como ilícitas. Nos dias atuais, o uso descriminalizado ou despenalizado da maconha volta a provocar grande polêmica na população, principalmente nos usuários da substância. A obra musical do compositor é convocada para despertar corações entorpecidos, caracterizado pelo efeito psicoativo da maconha em “Beethoven”:
Do fogo em que te queimaste, uma faísca resta para incendiar corações maconhados, sonolentos servos da alienação e da aparência? (...) ( in As Impurezas do Branco)
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Inalantes (Éter). Os inalantes são várias substâncias voláteis (adesivos, aerossóis, solventes etc) à temperatura ambiente, que provocam abruptas alterações no estado mental quando inaladas.
Histórico. Desde épocas muitas antigas, chinesas, egípcias e gregas já usavam a inalação de substâncias voláteis com intuito de experimentar seus efeitos psicoativos em rituais místicos e religiosos. Paralelamente, o registro mais antigo de uso de anestésicos está gravado em tábua de argila da Babilônia (2250 a.C). Entre os anestésicos gerais, substâncias voláteis foram introduzidas como éter etílico em 1848 por Morton e o clorofórmio por Lieig em 1831, ambos em desuso. Mais recentemente, o anestésico cloreto de etila e o éter foram utilizados na fabricação do lança-perfume. No Brasil, o uso abusivo de lança-perfume nos festejos de Carnaval, conhecido popularmente “porres de lança”, levaram a proibição da fabricação. Atualmente, além do contrabando de lança-perfume, há produto caseiro clandestino denominado “cheirinho da loló ou cheirinho”, contendo uma mistura de dois ou mais componentes (éter etílico, etanol e clorofórmio).
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As lembranças do uso do lança-perfume (Rodo) e os efeitos inebriantes do éter são contados em “Carnaval e Moças” e “Um Homem e seu Carnaval”:
Vejo tudo estou sonhado à mesa do Trianon, junto de Emílio, poeta amigo, e Almeida, sorvendo uma frappée, lenço molhado de Rodo, pasárgada de tímidos. (...) (in Boitempo)
Lança-perfume Rodo
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(...) Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando peixes sulfĂşreos ondas de ĂŠter (...) (in Brejo das Almas)
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Alucinógenos. Os alucinógenos são substâncias psicoativas cuja característica principal é produzir alterações de sensopercepção. Dentre os inúmeros alucinógenos destacam-se o ácido lisérgico e o derivado (LSD25), a mescalina, o MDMA (Ecstasy) e as triptaminas como a psilocina (DMT) e psilocibilina. Histórico. Desde as mais remotas sociedades humanas até os dias de hoje, um grande número de plantas contendo princípios ativos com efeitos psicotrópicos foram descobertas e usadas para finalidades mágicas, médicas e religiosas. Aproximadamente 100 plantas alucinógenas foram catalogadas, sendo maioria encontrada no hemisfério Ocidental. O interesse pelas substâncias psicoativas tomou grande impulso com o estudo de alucinógenos vegetais como o peyote, os cogumelos sagrados mexicanos, o vinho de jurema e o ololiuhqui. O peyote (mescalina) era usado em rituais religiosos pelos índios da América Central cerca de 2000 anos antes da vinda dos colonizadores europeus que denominaram de “obra satânica” e condenaram por acreditar que evocava espíritos malignos.
Mescalina. Peyote
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Nos cogumelos sagrados mexicanos usados em fins rituais foram isoladas as triptaminas: psilocibina (4fosforiloxi-N,N-dimetiltriptamina) e a psilocina.
Cogumelos sagrados mexicanos A N,N-dimetiltripamina (DMT) é um alcaloide encontrado em muitas plantas como, por exemplo, a Mimosa hostilis (jurema, do Tupi –yu´rema) que tem sido utilizada no nordeste brasileiro por tribos em cerimônias. A raiz e a casca da jurema sagrada eram usadas na forma de beberagem conhecida como vinho de Jurema (ayuca) com propriedades alucinógenas.
Jurema (Minosa hostilis)
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O ololiuhqui, Turbina corymbosa e a Ipomea violacea (morning glory) foram utilizadas pelos astecas em rituais mágico-religiosos e de cura. O efeito psicomimético do ololiuhqui é devido à erginina e isoergina semelhantes a LSD, presentes na bebida preparada com as sementes dessas plantas.
Ololiuhqui (Turbina corymbosa) A descoberta dos efeitos psicodélicos da LSD25, em 1943, criou uma nova onda mundial de importância e interesse no assunto. Em 1960, o fato de que os alucinógenos produziam psicotomimetia despertou novamente o interesse de artistas escritores e cientistas em todo o mundo. No campo da Psiquiatria, o intuito era de estudar o comportamento e os transtornos mentais através dos estados psicóticos experimentais induzidos por essas substâncias psicoativas (psicose modelo) e procedimentos terapêuticos (terapia psicodélica ou psicolítica), cujos resultados ainda permanecem inconclusos. Nos meados dos anos 90, voltaram a ser populares em danceterias ou festas (raves), onde a MDMA (ecstasy) e outras substâncias de abuso passaram ser chamadas “club drugs” ou “rave drugs”. É preocupante o consumo atual dos alucinógenos.
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Alucinógenos sintéticos As difíceis escolhas que geram ansiedade e angústia no mundo atual são colocadas ironicamente em “Míni, Míni”:
(...) Entre o ácido lisérgico o óxido de deutério Que quer o meu camarada ? (...) (in Versiprosa)
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VENENOS Em contraposição aos remédios, os venenos são agentes tóxicos, ou seja, substâncias que provocam efeitos nocivos ao organismo. Embora, alguns remédios também podem causar efeitos adversos e tóxicos, conforme a dose administrada. Histórico. Com o desenvolvimento das preparações medicamentosas também os conhecimentos sobre os venenos e os antídotos tomavam incremento. Os antigos conheciam venenos extraídos dos três reinos da natureza (animal, vegetal e mineral). Eles também sabiam dos efeitos irritativos no aparelho geniturinário, supostamente “afrodisíacos”, do pó de cantárida (Cantharis vesicatória, coleópteros triturado); os venenos das áspides, dos sapos e das salamandras não eram desconhecidos e estes animais desempenham mesmo grande papel na superstição popular. Sabiam os antigos que o acônito é um dos venenos mais enérgicos do reino vegetal e chamavam-no por isso “pardialiankes”, que significa mata pantera. O frio, a sensação de peso dos membros inferiores são sintomas particulares do envenenamento pela cicuta, já descritos por Platão quando nos relata a morte de Sócrates. A raiz do heléboro era preconizada no tratamento da locura e utilizada, por gregos e romanos, no combate aos ratos e, pelos bárbaros, no envenenamento de fechas. Várias plantas tóxicas da família das solanáceas, particularmente o estramônio e a beladona, eram conhecidas como mandrágoras. As raízes das mandrágoras lembravam formas humanas.
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Cicuta
Heléboro
Mandrágora
Entre os venenos minerais conheciam os gregos e romanos o arsênico que também usam como remédio. O
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cinabre, a cerusa e a cal viva também eram rotulados entre tóxicos e remédios. Em nossos dias, a exposição de agentes químicos no ambiente que podem produzir efeitos adversos e tóxicos à saúde da população. Neste contexto, despertam grande preocupação os metais pesados como o chumbo, o mercúrio e o cádmio e os metais e os radionuclídeos (226Ra (Rádio), 137 Cs, 144Ce, 239Pu e 90Sr ). Ademais, são também de grande importância os poluentes do ar, os solventes e vapores e os pesticidas (inseticidas [formicida], roedentícidas, fungicidas e herbícidas). Vale lembrar que a obra de C.D.A. tem importante papel na educação ambiental. Do lado de fora do cinema, por falta de dinheiro, os venenos caracterizam figurativamente a situação em “O Lado De Fora”:
(...) Não deu para ver fita da ofídica Theda Bara Que importa a fita? Importante é cicuta deste instante (...) ( in Boitempo)
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A indiferença de viver, o vazio e o tempo fugaz está em “Uma Hora e Mais Outra”:
(...) já não tem revoltas e nem lamentas tampouco procuras solução benigna de cristo ou arsênico (...) (A Rosa do Povo) Outros venenos também aparecem em “Palavras: Isso Aquilo”:
a víbora, o heléboro o mendigo, a mandrágora o cigarro, a formicida (...) (in Lição de Coisas)
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O veneno aparece em diversas situações, onde gestos cotidianos, desencantos e suicídio sofrem da mesma falta de sentido em “Descoberta”, “Signo” e “Morte de Noivo”:
O dente morde a fruta envenenada a fruta morde o dente envenenado o veneno morde a fruta e morde o dente (...) (in Lição das Coisas)
Signo do escorpião (...) com seu veneno e ferrão de tal sorte que, mordido e mordente, na aflição, de nada valeu, confessa, fugires de escorpião. (in Boitempo)
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Carmela a escolhida. E agora o noivo mata-se com insabido veneno, sem palavra. (...) (in Boitempo)
Em tempos difíceis, talvez seja melhor não ver ou ignorar o que está se passando nas praias douradas do Rio de Janeiro, como foi contado em “Inocentes do Leblon”:
Os inocentes do Leblon Não viram o navio entrar Trouxe bailarinas? trouxe emigrantes? trouxe uma grama de rádio? (...) (in Sentimento do Mundo)
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DERRADEIRAS PALAVRAS Após percorrer os infindáveis caminhos dos poemas e da“geografia pessoal” de C.D.A. em busca por palavras, chegase a clara evidência de que os assuntos permanecem em aberto para novos olhares. Já que há uma magnífica produção literária, que não só está expressa em poemas, como também em cartas, contos, crônicas e ensaios. Mais uma vez a gratidão ao poeta pela obra magistral que nos sensibiliza e ilumina a todos. Como não poderia deixar de acontecer, as derradeiras palavras pertencem ao poeta em “Rosa Rosae”:
Rosa todas rimas Rosa e os perfumes Rosa no florindo espelho (...) (in Boitempo)
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BIBLIOGRAFIA A SER CONSULTADA
BOSI, A. Céu e Inferno Ensaios de Crítica Literária e Ideologia. São Paulo: Clube das Letras, 2010. DE ANDRADE, C.D. Reunião: 19 livros de Poesia. 3ª. Edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, 2v. DE ANDRADE, C.D. 100 poemas – Carlos Drummond de Andrade. Seleção e Tradução de Manuel Graña Etcheverry. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. DE ANDRADE, C.D. Nova Reunião: 23 livros de Poesia. Rio de Janeiro: Best Bolso, 2009, 3v. DE FRANCESCHI, A.F. (Ed.) Cadernos de Literatura Brasileira- Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: IMS, n. 27, 2012. DELUCIA, R. Farmacologia Integrada. 4ª. Edição, São Paulo: Clube de Autores, 2011. DELUCIA, R.; SIGLER, V.; PLANETA, C.S. Do Paraíso ao Inferno das Substâncias Psicoativas. São Paulo:Clube de Autores, 2010. SITE SOBRE C.D.A HTTP://www.carlosdrummond.com.br
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Carlos Drummond de Andrade em trĂŞs momentos de vida
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