CIF TALKS_CULTURE (RE)START_ Imaginar é Preciso

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É TEMPO DE RECOMEÇAR IT’S TIME FOR NEW BEGINNINGS

CIF TALKS CULTURE (RE)START IMAGINAR É PRECISO

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24 FESTIVAL

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TALKS 01

Artes e cultura para aprender e educar Participantes: Com mediação de Maíra da Rosa e participação de Claudio dos Anjos, Mônica Hoff e Tião Rocha. Fechamento poético por Itamar Vieira Junior.

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Reset no Mundo: cultura, democracia e bem-estar Participantes: Mediação de Liliane Rebelo, participação de Danilo Miranda, Ingrid Soares, Richard Watts, e Preto Zezé. Fechamento poético por Dani Nega.

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Novas narrativas, vozes diversas Participantes: Mediação de Barbara Iara Hugo Cabral Carneiro, participação de Natalia Mallo, Luh Maza, Leonardo Castilho. Intervenção poética de Sidney Santiago e o elenco do espetáculo “HELP”.

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Insights de futuro: o mundo projetado pela ciência e pelas artes Participantes: Mediação de Stela Barbieri, participação de Duilia de Mello, Roberto Zular, e Luiz Alberto Oliveira. Fechamento poético de Natalia Barros e Daniel Scandurra.

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Restauração do Planeta: O que temos a ver com isso? Participantes: Mediação de Paulina Chamorro, e participação de Ailton Krenak, Vanessa Gabriel-Robinson,e Vitor Leal Pinheiro. Fechamento poético de Brisa Flow.

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Reimaginar a Cultura - futuros possíveis e como construí-los Participantes: Mediação de Marta Porto, participação de Evandro Fióti, Silvio Meira, e Batman Zavareze. Fechamento poético de Batman Zavareze.

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CRÉDITOS 01

Cultura Inglesa Festival Direção geral: Liliane Rebelo - Gerente de Cultura e Sociedade Cultura Inglesa Curadoria e coordenação de parcerias: Liliane Rebelo e Natalia Mallo Coordenação de programação e comunicação: Natalia Mallo Coordenação de comunicação: Natalia Mallo e Thalita Crompton EQUIPE CULTURA INGLESA CEO: Marcos Noll Barboza Cultural: Anamaria Boschi, Cristiano Lima, Gabriela Presti, Péricles Silveira, Rita Calabresi, Vanessa Barbosa Marketing: Flavia Zulzke, Helena Savioli, Marcel Ursini, Mel Morales, Rodrigo Pizzotti Tecnologia: Bruno Degani, Gabriel Villarroel, Renato Diniz Coordenação de projetos: Selma Honda

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SESC

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do conselho regional: Abram Szajman Diretor do departamento regional: Danilo Santos de Miranda SUPERINTENDENTES Técnico social: Joel Naimayer Padula Comunicação social: Ivan Giannini Administração: Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria técnica e de planejamento: Sérgio José Battistelli GERENTES Assessoria de relações internacionais: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves Gerência de ação cultural: Rosana Paulo da Cunha Centro de pesquisa e formação: Andréa de Araujo Nogueira Sesc digital: Fernando Tuacek Equipe Sesc: Bárbara Hugo e Maíra Caroline Martins (mediadoras), Heloisa Pisani, Mauricio Trindade da Silva, Rosana Catelli, Rafael Peixoto, Mariana Fernandes e Danilo Cymrot.

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CIF Talks Realização em parceria com SESC SP Curadoria CIF Talks: Marta Porto

04 Revista CIF Talks Cobertura CIF Talks: Alana Della Nina e Lívia Scatela Coordenação Editorial: Natalia Mallo Gestão de conteúdo: Gabriela Presti Design gráfico: Bia Lombardi | marcaVIVAdesign

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24 FESTIVAL

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SUMÁRIO PARTE 1 - INSTITUCIONAL Brechas de diálogo: respiros ara um novo recomeço Cultura como conexão Imaginar é preciso

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PARTE 2 - CIF TALKS

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Artes e cultura para aprender e educar Reset no mundo: Cultura, democracia e bem-estar Novas narrativas, vozes diversas Insights de futuro: Projetos de mundo pelas ciências e pelas artes Restauração do planeta: O que temos a ver com isso? Reimaginar a cultura: Futuros possíveis e como construí-los

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PARTE 3 - EXPERIMENTOS POÉTICOS Intervenções artísticas MANIFESTO por Batman Zavarez Believe - Vídeo de encerramento

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PARTE 1

BRECHAS DE DIÁLOGO:

respiros para um novo recomeço Liliane Rebelo Gerente de Cultura e Sociedade Cultura Inglesa O Brasil vive o pior colapso sanitário de sua história com retrocessos em todas as dimensões, um abismo ainda maior para a já desastrosa desigualdade social que assola o país. Carentes de um espaço de debate e de políticas públicas eficientes que nos leve à construção de novos ideais e ações coletivas, vivemos em ruínas sobrevivendo de ações emergenciais, muitas delas promovidas pelo terceiro setor e por instituições privadas. Como instituição, reconhecemos nosso papel estrutural de contribuir e estimular o debate público, pautando e respondendo às urgências e demandas da sociedade hoje, construindo diálogos e colaborações para a restauração dos nossos ideais de futuro. Foi com essa intenção compartilhada por e com muitos pensadores, acadêmicos, ativistas, artistas, jornalistas e parceiros que a Cultura Inglesa, em parceria com SESC-SP através do Centro de Pesquisa e Formação, promoveu no âmbito da 24ª edição do Cultura Inglesa Festival uma série de talks, conversas que possam jogar luz na contemporaneidade, através de reflexões e ideias para um “recomeço”, ainda que bem distante, incerto ou mesmo desconhecido. Com curadoria de Marta Porto e através do seu olhar apurado, investigativo e de caráter cívico no campo da cultura, plantou-se uma semente de esperança em um terreno fértil de relações e experiências múltiplas que buscam a produção de conhecimento e a troca de saberes, tão fundamentais na construção de um futuro que desejamos mais sustentável e justo. 10


Antes de pincelar os diversos temas abraçados por esta primeira edição do projeto CIF Talks- Culture (Re)start, sugiro uma pausa para um respiro profundo. Esta série de textos com a cobertura na íntegra das seis mesas, somados às obras artísticas produzidas em resposta aos debates, nos levam a refletir sobre o contexto político, econômico e social em que navega a Cultura hoje. Mas sobretudo nos equipa com ferramentas e lentes para olharmos cada questão a partir de um novo prisma. Um olhar angular que abre uma fresta mínima e imprescindível de esperança e poesia, alimentando nossa imaginação e ativando potências para agirmos em prol de um novo curso para o mundo. Uma janela para a troca de informação, reflexão e produção de conhecimento como forma de sobrevivência em nível coletivo e individual. O resultado dessa pulsão de conhecimento e criação artística é um material precioso que acabou por resgatar as nossas perspectivas de futuro e nos conectar a elas através do despertar da consciência para melhores escolhas. Qual modo de vida queremos seguir nesse mundo pós pandêmico? O que ainda pode se regenerar no mundo em que vivemos, após tantas catástrofes de ordem climática, sanitária e política? Como reagir a uma situação de descrença que paralisa a nossa ação e nos injeta medo? Como a ciência e as artes podem contribuir para um planeta mais habitável e sustentável? Como abrir espaço para a polifonia das vozes e unir-nos à luta diária em busca pela construção de um mundo mais igualitário? Temos muitas perguntas, poucas respostas, mas uma consciência enorme do dever de restaurar e reimaginar o futuro com maior senso de responsabilidade individual e coletiva. Como instituições operantes nas áreas educacional e cultural temos um compromisso com a sociedade e suas necessidades, incluindo a promoção de espaços como este, que oxigenam nossas inquietações e fortalecem a articulação com diversos núcleos de convivência e comunidades. Façamos bom uso deste espaço e mantenhamos vivo o diálogo! 11


Danilo Santos de Miranda

_diretor Regional do Sesc São Paulo

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CULTURA COMO CONEXÃO Em 2020, o mundo foi surpreendido pela pandemia da Covid-19, o que levou, dentre inúmeras consequências, à paralisação de parte substancial das ações culturais nos mais diversos âmbitos. O panorama para 2021, não obstante as vacinas já disponíveis, parece caminhar na mesma direção. Neste momento, diversos pesquisadores indicam que o retorno a uma circunstância mais propícia à diminuição do distanciamento social deverá ocorrer a partir de 2022, ao menos em países como o Brasil. Assim, a realidade que nos atravessa coloca múltiplas questões para o campo da cultura em geral, assim como para suas diversas instituições e profissionais em particular, considerando que a razão da ação cultural está ligada à experiência do encontro – encontros entre pessoas, e dessas com a criação artística –, mediada pelas variadas linguagens artístico-culturais. Dentre as estratégias mobilizadas para equacionar tal situação, a realização e difusão de ações em ambiente virtual têm sido preponderante. Dessa forma, os trabalhadores da cultura exercitam sua resistência, produzindo e lutando para sobreviver a esse período – conforme mostra a pesquisa “Percepção dos impactos da Covid-19 nos setores cultural e criativo do Brasil”. Para além da constatação da hegemonia do universo digital, não há soluções prontas para as complexas questões que agora se colocam. O trabalho de criação sempre considerou o risco um ingrediente essencial para a inovação e a criatividade. E agora, face a um cenário que aumenta brutalmente as incertezas, outros aspectos revelam sua crescente relevância: de um lado, a solidariedade e a convergência de esforços dos agentes implicados; de outro, o planejamento e a gestão, tendo como finalidade a valorização da dignidade e diversidade dos seres humanos, motivos para os quais deveria se direcionar a produção cultural. Trata-se de advogar em defesa de um campo cujos desdobramentos positivos são evidentes. Por meio da cultura, formam-se espíritos críticos, capazes de compreender melhor a realidade e expandir perspectivas de 13


futuro; ademais, trabalho e renda são gerados a partir desse setor de modo destacado, assim como se visibilizam narrativas centradas no respeito ao diverso e nos valores democráticos. Principalmente, é preciso reafirmar o valor da cultura como direito de todos, sem o qual os demais direitos ficam comprometidos. Além de todos esses elementos, as expressões culturais têm, em grande medida, vocação agregadora, colocando pessoas em conexão. A crise sanitária, ao impor o distanciamento como condição para a manutenção da vida, exacerba a falta que fazem os contatos próximos, outrora triviais – e exige respostas inventivas de todos. É assim que artistas e produtores culturais têm agido, investindo na criatividade formal e temática presente em ações realizadas de maneira remota. Para o Sesc, a pandemia reforça o comprometimento social mantido há 75 anos e que, nas últimas décadas, tem tido a marca da educação permanente. É segundo o viés educativo que suas ações em áreas tão variadas – da atividade físico-esportiva ao turismo, das artes à saúde e alimentação, da sustentabilidade à acessibilidade – estão sendo incrementadas e adaptadas, no sentido do enfrentamento responsável dos desafios que o cenário atual apresenta. Nesta perspectiva, o Sesc, em parceria com a Cultura Inglesa, realizou as CIF Talks, mesas de reflexão e debate que aproximaram artistas nacionais e internacionais – que ofereceu análises coerentes com o atual momento histórico, em encontros sob a curadoria de Marta Porto –, e o espetáculo “Help”, dirigido por Sidney Santiago Kuanza. Para além destas realizações, a parceria institucional com o 24º Cultura Inglesa Festival reflete a dedicação de ambas as instituições em promover ações gratuitas e acessíveis e, sobretudo, a troca de experiências, propondo novos sentidos para a ideia de conexão. Este momento, pleno de interrogações acerca do futuro, demanda um tipo de ação cultural que se envolva assertivamente com os dilemas exacerbados pela crise pandêmica. Para tanto, a alteridade funciona como disposição fundamental, sem a qual se esgarça o tecido que dá coesão à sociedade. O âmbito da cultura pode ser protagonista em tais dinâmicas, reforçando sua capacidade de sublinhar aquilo que, em todos nós, define o que é especificamente humano. 14


CIF TALKS CULTURE (RE)START IMAGINAR É PRECISO “A maior ameaça a liberdade é a ausência de críticas”.

Wole Soyinka, Prêmio Nobel de Literatura

Marta Porto

_curadora CifTalks 15


O que sobra de imaginação após a catástrofe? Como mobilizar cabeças e afetos para, a partir das artes, da cultura e da ciência, alimentar nosso espírito com ideias, poemas e cantos que nos transportam para outras construções do mundo? O nosso conhecimento é construído apenas por necessidades e urgências ou essencialmente por curiosidade e imaginação? Parece correto afirmar que as disciplinas de conhecimento como as reunidas nas ciências, nas artes, na espiritualidade e fé, e mesmo nas formas de organizarmos nossa vida em regimes políticos e instituições representativas, são uma resposta ao poder imaginativo que homens e mulheres mantêm ao longo da história da humanidade. E, se é a imaginação que traz tração para as nossas vidas, ela está intrinsecamente ligada às crenças que determinam as escolhas que fazemos, em cada tempo e lugar, sobre o que deve ou não ser valorizado. E valor é uma atribuição carregada de sentidos que responde à dinâmicas culturais, a crenças e motivações sociais que diferem de sociedade à sociedade. Em um mundo que virou do avesso desde o atentado das Torres Gêmeas, 16


em setembro de 2001, e que assiste as crenças de liberdade e igualdade serem substituídas por visões quase tribais do mundo, ao mesmo tempo que lutas históricas se reorganizam para ampliar seu espaço de representatividade e para reivindicar respeito aos direitos humanos, cabe a pergunta: como a cultura, e em especial as políticas que as definem, está preparada para enfrentar os dilemas desta segunda década do século 21 e caminhar ao lado dos jovens que lideram mudanças? Oferecer à sociedade respostas à altura dos desafios colocados parece ser o principal desafio das instituições, espaços, programas e gestores culturais, mas eles estão se preparando para isso? Se é cedo para dar respostas, é tarde para não nos arriscarmos a dá-las. Essas são questões que estão sobre a mesa há um bom tempo e que em meio a uma pandemia que vitimou milhões de pessoas ao redor do planeta, não têm mais tempo para aguardar ‘o momento certo’ para estarem na ordem do dia. A urgência se fez presente. Formas clássicas de fruição artística desaparecem de um dia para outro, a ideia de público e audiência se vê fragilizada ante a noção de ter relevância e estar à serviço da comunidade ou pelo luto cívico que estamos eticamente implicados em promover. Milhões de crianças e jovens estão fora das escolas aumentando a desigualdade educacional, a evasão e a perda de aprendizagem. O impacto é brutal para países em desenvolvimento como o Brasil. É sobre essas urgências que as instituições culturais precisam decidir se vão agir e cooperar de forma objetiva, em especial as que têm mais estrutura e recursos. Quando em janeiro de 2021, recebi o convite da Cultura Inglesa para organizar a curadoria desses talks, o Brasil registrava 200 mil mortes por covid-19. Em poucos meses, enquanto escrevo esse texto de fechamento, já contamos com mais de 400 mil mortos, o aumento da fome e da miséria, e crianças e jovens ainda sem um plano concreto de retomada dos seus estudos. Tudo isso em um ambiente de inércia e dar de ombros do governo federal, e de muitos cidadãos, que parecem não entender a gravidade do momento que vivemos. Não encontro palavras para descrever a dor e o desalento que essa condição de abandono me provoca e que insiste em martelar na minha alma: afinal que cultura é essa que promove e sustenta esse tipo de destruição? 17


Nos dias que promovemos os encontros programados para os debates do festival 24 CIF Culture (Re)Start, muitos pontos de luz ajudaram a afastar essa sombra que insiste em pairar sobre o Brasil. De vários cantos do país, vieram vozes de lucidez, esperança e amor. Chegaram propostas, ideias, reflexões, amor à terra e a nossa gente, que contribuíram para tecer caminhos em meio a escuridão. A escolha de tratar cada encontro também como ato artístico e não só de reflexão crítica, hoje me parece ter sido um dos grandes acertos dessa programação. A resistência cultural não se abriga apenas no pensamento convencional, mas essencialmente no ato de criação, na ação poética. É como içar o mastro e deixar as velas ao vento navegando no fluxo do sopro que chega. Esse sopro - a poesia, o canto, a literatura,as artes visuais - são o principal manifesto de que as ideias sobrevivem à catástrofe. Talvez seja essa a imagem que fica desses dias de festival: há um sopro que resiste ao tempo e suas contingências, nossa tarefa é mantê-lo vivo, lúcido e atuante. O caminho do 24CIF Talks foi o de celebrar a pluralidade de visões sobre o nosso país, e as múltiplas formas que as artes e a cultura usam para promover seus insights, visões de mundo e ideias em um tempo de angústia e luto. E com isso, promover o sentido maior da vida: não deixar morrer a sensibilidade, a emoção, a poesia como gatilhos de um país que precisa urgentemente se reencontrar para vencer a brutalidade e o abandono.

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PARTE 2 CIF TALKS

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Maíra da Rosa Filha de Oxum, graduada em Letras e mestranda em Educação pela PUC-SP. É vocalista do grupo Samba de Dandara e integrou o naipe de cantoras do bloco afro Ilú Obá De Min. Fez parte dos projetos Tambores em Mim e do Samba Negras em Marcha. É educadora de Artes Visuais e Tecnologias no Sesc SP, onde ministra e faz a curadoria de propostas artístico/educativas em Artes Visuais e Tecnologias digitais e analógicas.

Cláudio dos Anjos, Presidente da Fundação Iochpe, onde implementa estratégias para ampliar a atuação dos programas Formare e Arte na Escola, iniciativas de forte impacto no campo sócio-educacional. Mônica Hoff Artista, curadora e pesquisadora. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina e Mestre em História, Teoria e Crítica de Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenou o Programa Educativo da Bienal do Mercosul, atuando também como curadora adjunta na nona edição do evento. Desde 2019, é docente do PERMEA - Máster en Mediación a través del Arte, em Valência. Tião Rocha Antropólogo, educador popular e folclorista. É idealizador e Diretor-Presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento e do Banco de Êxitos S/A – Solidariedade e Autonomia, ambos em Belo Horizonte/MG. 24

PARTICIPANTES

MEDIAÇÃO

ARTES E CULTURA PARA APRENDER E EDUCAR


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O que sobra de imaginação após a catástrofe? Como mobilizar cabeças A imaginação é um valor para educar e aprender? É possível acelerar, a partir das artes, da literatura e da educação visual a alteridade, essa qualidade humana traduzida pela frase testamento de Amós Oz como, “a capacidade de se abrir o terceiro olho em nossa testa”? Qual a contribuição das instituições culturais na inovação das formas de aprender e ensinar? A primeira mesa do CIF Talks contou com a presença de Mônica Hoff, Claudio Anjos e Tião Rocha, com mediação de Maíra de Rosa. Os convidados conversaram sobre os possíveis caminhos para a educação, a arte como exercício de imaginação e ferramenta prática e a necessidade urgente de apurar o olhar para a alteridade. 26


A imaginação é um valor para educar e aprender? É possível acelerar, a partir das artes, da literatura e da educação visual a alteridade, essa qualidade humana traduzida pela frase-testamento de Amós Oz como “a capacidade de se abrir o terceiro olho em nossa testa”? Qual é a contribuição das instituições culturais na inovação das formas de aprender e ensinar? Foi com esses questionamentos que a educadora e artista Maíra da Rosa deu início à primeira mesa do CIF TALKS CULTURE (RE)START: Artes e cultura para aprender e educar, que foi ao ar no dia 22 de março e reuniu outros nomes destacados dos campos da arte e da educação: a artista e pesquisadora Mônica Hoff, o presidente da Fundação Iochpe Claudio Anjos e o antropólogo e educador popular Tião Rocha. Maíra, que mediou a conversa, convocou os três à reflexão e à troca, a partir de questões contemporâneas agudas. “Pensemos na alteridade, na relação entre o eu e um outro, a capacidade de abrir um terceiro olho na nossa testa. E pensemos na imaginação, terra fértil onde se planta, se rega e se colhe. Mas se planta o quê? Se rega com o quê? Que fruto que vai dar?”, ela provocou. “Sem a alteridade, a imaginação é um ciclo fechado em si. Seria possível ver com olhos que não se tem? Imaginar sem imagens? Que imaginários são possíveis de brotar de mentes colonizadas?” Citando a filósofa Sueli Carneiro, a artista ainda questionou: “Qual alteridade é possível em contrapartida às nossas subjetividades fragmentadas, construídas na encruzilhada de uma herança cultural esfacelada pela violência colonial?” Com esse pensamento, Maíra descreveu o conceito de Sankofa (de sanko = voltar, fa = buscar), um provérbio tradicional da língua acã, da África Ocidental, que pode ser traduzido por: não é tabu voltar atrás e buscar o que foi esquecido. “Como um símbolo adinkra, o Sankofa pode ser representado por um pássaro que voa para frente com a cabeça voltada para trás e carrega no seu bico um ovo, o futuro. O presente é o desdobramento de um passado, a percepção de que existe um contexto histórico que precisa ser considerado para avançar, com um ovo no bico, esse fruto, essa esperança para o futuro.” 27


ARTE PARA APRENDER E DESAPRENDER No primeiro momento, os convidados discutiram sobre a contribuição da arte para a educação. Para Mônica Hoff, é preciso rever alguns conceitos – e desconstruí-los. “Durante muito tempo defendi que a arte é uma ferramenta fundamental de aprendizagem. Hoje acho que ela é mais do que isso: é também uma ferramenta de desaprendizagem”, disse a artista e pesquisadora. “Temos que desaprender um bocado de coisas que estão postas, que foram impostas. E a arte é um campo, uma ferramenta, um lugar no qual, a partir de sua potência imaginativa e política, podemos fazer isso.” Mônica enumerou, a partir de sua experiência com projetos de arte e educação, alguns pontos que considera fundamentais: o primeiro é a imaginação como potente forma de conhecimento. No entanto, a artista acredita que nossa imaginação ainda está muito conectada à ideia de avanço, de progresso, devastadora. Maíra de Rosa corrobora a fala de Mônica, principalmente da perspectiva das minorias sociais, de pessoas negras e populações periféricas. “A tal da inovação, o avanço que se espera, ainda vem muito desse lugar colonial, não é o criativo, mas o criativo domesticado, a serviço desse projeto e não da sua própria potência.” O segundo ponto que Mônica levantou foi a importância de entender a educação como um processo sistêmico e de co-responsabilidade política. “Um processo para além da escola e da universidade, que nos constitui como sociedade e como humanidade nas nossas relações. Cada ato, cada decisão constitui isso que a gente chama de educação.” Claudio Anjos, que falou logo após Mônica, trouxe um dado preocupante: de acordo com o MEC, hoje as escolas públicas brasileiras contam com 570 mil professores responsáveis pelo ensino de arte; porém, desse número, somente 5% têm formação em arte. “E esses 5% têm obrigação de dar 28


conta de um referencial curricular que perpassa quatro linguagens: dança, teatro, artes visuais e música. Isso já nos mostra um quadro bastante estarrecedor dessa relação entre arte, educação e sociedade”, comentou. Para o educador, esse é um problema de base com reflexos a longo prazo, já que o campo da arte guarda a perspectiva de formação de um sujeito, de criação e desenvolvimento de cidadania, pensamento crítico e potencial criativo. “Que tipos de valor e de perspectiva temos a dar a esses jovens que passam 12 anos na escola com obrigatoriamente 1 hora por semana de aula de arte? A arte é fundamental para esse reconhecimento do potencial cidadão e transformador da subjetividade do ser humano, do pleno desenvolvimento das suas capacidades e do seu potencial como um ser que respeita a alteridade.” Claudio defende que é por meio da educação que escolhemos a sociedade na qual a gente quer viver. E, por meio da arte, que tipo de desconstrução, ou que novas alternativas a gente pode trazer no meio do caminho. “Se a diversidade é o propulsor da inovação, o foco tem que ser na arte e na cultura.” Muito conectado às falas dos colegas, Tião Rocha contou que rompeu as amarras com a academia para exercer uma educação mais livre. “Quando estou falando de educação, não estou falando só de escola. A escola é um meio, a serviço de um fim. A educação é muito superior a isso. E pode 29


acontecer inclusive sem escola. Aprendi que dá pra fazer educação em qualquer lugar, até sob um pé de manga. Precisamos é de bons educadores, e também podemos formá-los em qualquer lugar.” O antropólogo compartilhou sua jornada com os companheiros de mesa: “Há 40 anos, tive um clarão, o que os americanos chamam de insight. Cheguei na universidade onde lecionava e disse: chega, a partir de hoje não quero mais ser professor, quero ser educador. Professor é aquele que ensina, educador é aquele que aprende. E acho que a universidade poderia fazer a mesma coisa. Estamos aqui fechados entre quatro paredes e o único assunto que escuto aqui é ‘eu te citos, tu me citas’.” Tião, então, ao se dar conta que a universidade não queria educadores, mas professores, foi embora. Apaixonado por Guimarães Rosa, descobriu num texto do escritor que existia uma “capital da literatura”: Curvelo, no interior de Minas Gerais. E foi morar lá. “Mas, em vez de encontrar personagens de Guimarães, o que eu mais via lá era criança. Meninos demais, escola de menos. E os que iam para a escola, saíam antes. Aquilo começou a me angustiar. 30


E foi assim que começou a minha história como aprendiz”, contou ele sobre a origem do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD). Para Tião, o processo educativo não tem que ser hierarquizado, tem que ser uma troca. E o que estamos vivendo hoje é justamente a tentativa de uma imposição de um modelo único baseado na visão de mundo de uma pessoa. “Essa relação será mais efetiva se o eu e o outro somos percebidos como pessoas diferentes numa relação de iguais. Quando essa relação é desigual há colonização, dominação e imposição.”

UM (TERCEIRO) OLHAR PARA A ALTERIDADE Para a chamada de Maíra sobre a alteridade, convocando Amós Oz e sua famosa frase: “boa literatura é a capacidade de fazer se abrir um terceiro olho na nossa testa”, podemos expandir esse conceito para além da literatura: para a arte em todo o seu alcance. Aqui, Mônica, mais uma vez, aterrou o conceito na vida comum, tirando-o de uma possível interpretação utópica. “A gente deve encarar a alteridade como realidade e não como outra coisa que precisamos fazer além. Mas como a realidade das diferenças, das especificidades, dos diálogos possíveis, das lutas, dos opostos e dos não-opostos”, ela defendeu. “Talvez simplesmente respeitar que essas diferentes realidades estão aí e que a gente pode aprender com elas, mais do que ensinar.” Para Claudio, a referência ao terceiro olho de Oz suscita outro desdobramento: como entender, por meio do outro, um olhar que nos falta, de algo que não percebemos por não trazermos na nossa complexidade, nos nossos referenciais? Como abarcar outras caminhadas, outras realidades? 31


Com um extenso trabalho em escolas, Claudio acredita que parte do problema mora na base. “Por que não investimos na formação de professores de arte? Por que não temos espaços de reflexão dentro das escolas para esses professores? Por que não trazemos esse referencial cultural e artístico brasileiro para dentro das escolas? Insistimos em trabalhar com o do homem branco europeu – Monet, Degas, Renoir, Rembrandt –, que são importantíssimos, claro, mas não deveriam ser necessariamente nosso referencial cultural do Brasil. Muitas escolas não exploram nem sequer a riqueza artística de suas próprias regiões”. Quando ignoramos a diversidade, estamos reprimindo potências que estão em outras camadas sociais e econômicas. Ignoramos que a alteridade é fundamental para, como disse Claudio, formar seres humanos mais livres no seu pensar. “Precisamos imaginar a questão da diversidade, da imaginação, da alteridade como grandes valores culturais, sociais e econômicos.” Para Maíra, o pensamento colonizado vem justamente dessa alteridade utópica. “A subalternização é fruto de uma alteridade como idealização. O negro violento e assustador, o indígena selvagem. Nunca foi sobre a realidade. Nunca se imaginou o outro subalternizado a partir da realidade, mas de uma idealização muito violenta.” A educadora acredita que a ausência da arte na formação de profissionais de outras áreas, como médicos e advogados, por exemplo, também contribui para essa desumanização. “A arte é esse lugar de humanização, de troca, de desenvolvimento da alteridade e da imaginação.” Já Tião comparou a lógica do terceiro olho de Amós à terceira margem do rio de Guimarães, que fala desse lugar metafísico, fora do alcance dos olhos, já que o rio só tem duas margens. “Nós temos que buscar essa terceira margem. Eu acho que ela está dentro de nós, e a encontramos quando estabelecemos essas questões.” Ele contou que, certo dia, mostrou uma prensa de fazer queijo numa roda de meninos e um deles, de 12 anos, disse a ele: “Tião, eu sei fazer isso”. Tião perguntou: “Como você sabe?”. O menino respondeu: “porque eu sei 32


fazer caminhãozinho de madeira e quem aprendeu a fazer caminhãozinho de madeira faz qualquer coisa de madeira. É só colar, pregar e juntar.” “Esse menino me ensinou que nós, educadores, não somos criadores de produtos, somos educadores de formas”, disse Tião. “De quantas formas eu posso: usar um pedaço de madeira, tirar um menino do analfabetismo, tirar um jovem da linha de risco? Depende do tamanho da minha ousadia nessa busca, mas preciso buscar caminhos diferentes e inovadores.”

PRESENTE DO FUTURO “Santo Agostinho dizia que só existe um tempo: o presente”, trouxe Tião. “Tem gente que vive no presente do passado, que vive da memória e se distancia da realidade. Mas o presente do presente é uma fase de risco quando se é jovem. A juventude precisa viver no presente do futuro.” 33


Para o antropólogo, vai contra a natureza do jovem olhar só para o aqui-e-agora. O jovem precisa ir para frente. Quando a juventude entra no processo de olhar só para o hoje, para o próprio umbigo, entra num processo de definhamento, de perda de sentido, de esvaziamento, gerando essa falta de perspectiva da imaginação – de sonhar, de ousar, de inventar o futuro. “Precisamos empurrar esses jovens para frente. Não sei como vai ser isso, não fizemos ainda. Mas vamos fazer juntos. E, para isso, teremos que ir buscar lá atrás, aprender lá no passado, beber daquela fonte”, disse Tião, resgatando o Sankofa. “O tempo é uma árvore: a raiz é o passado, o tronco é o presente e a copa é o futuro. E não é possível que uma árvore sobreviva com cada uma de suas partes num lugar diferente. A gente precisa do tempo inteiro”, definiu Maíra. Para ela, a juventude negra e periférica emerge potente a partir desse lugar de olhar para trás. “Eu me potencializo quando olho de onde venho e para onde quero ir. E não como potência de um mercado, mas minha, da minha comunidade, do meu ubuntu.” 34


Ainda dentro dos questionamentos sobre futuro, Mônica também chamou a atenção para o que chamou de lógica de poder dentro do campo da pedagogia. “A ideia de pedagogia é muito relacionada à educação, mas a pedagogia na verdade são todos os modos de fazer, de construir e de partilhar que estão no mundo. A transformação tem a ver com lutar contra esse tipo de pedagogia do poder”, comentou. Nesse sentido, a ideia de avanço que temos atualmente na sociedade está ligada a essas relações de poder, a um projeto moderno que valoriza os grandes feitos, as conquistas, que, invariavelmente, trazem também a exploração, o avanço sobre o outro – algo, como ela pontuou, que foi sempre muito devastador na nossa experiência histórica. “As noções de avanços de conquista, dentro de uma estrutura capitalista, são parte desse projeto moderno, que foi, em grande medida, construído a partir de uma contradição, um discurso utópico de avanço.” Para Mônica, esse pássaro que voa para o passado e olha para o futuro representa a necessidade de repensar a utopia desde sua origem etimológica: a topia, que é justamente o fazer cotidiano, e todas as vidas que participam desses atos diários. “Temos que pensar numa política de cuidado, atenção, escuta. Não a política das grandes conquistas para a humanidade, mas as pequenas conquistas do dia a dia, que podem sustentar uma transformação do que chamamos de humanidade.” Claudio contribuiu para a discussão com uma reflexão sobre a ancestralidade: de onde viemos, para onde vamos e quem queremos ser como seres humanos nessa jornada de transformação que chamamos de vida. “Li uma frase da Lélia Gonzalez que diz que nossos passos vêm de longe. O nosso processo para chegar onde estamos, não só nas lutas sociais, mas na educação e na arte, tem a ver com todos os que já cruzaram e já navegaram esse rio. O processo de educação e da arte dependem basicamente da nossa ancestralidade, de tudo o que já construímos até agora e na definição de um futuro que esperamos que seja melhor.” 35


“O que confirma a potência da arte é o medo que se tem dela” _Mônica Hoff

“Dentro do universo escolar, a arte tem a função de desenvolver dimensões que são importantes, como o pensamento crítico, a alteridade, a criatividade, a inovação. Precisamos valorizar esse espaço, precisamos formar esses professores, que são veículos para um despertar da consciência e da potencialidade dentro desses jovens” _Cláudio dos Anjos

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“A gente tem que ter a coragem de aprender com a cultura brasileira.” _Tião Rocha

“Se, por um lado, a arte está na mira ‘das armas dos armados’, por outro, está nos salvando” _Maíra da Rosa

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PARTICIPANTES

Liliane Rebelo, gerente de Cultura e Sociedade da Cultura Inglesa. É formada em Jornalismo com especialização em Marketing pela Chartered Institute of Marketing (Reino Unido) e pós-graduação em Gestão de Projetos Culturais no Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação na USP. Tem 15 anos de experiência em projetos de artes, cultura, educação e transformação social com trajetória profissional em organizações como British Council, Festivals Edinburgh e Creative Scotland.

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MEDIAÇÃO

RESET NO MUNDO: CULTURA, DEMOCRACIA E BEM-ESTAR

Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo. Especialista em ação cultural, é formado em Filosofia e em Ciências Sociais, tendo realizado estudos complementares na Pontifícia Universidade Católica e na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e no Management Development Institute, em Lausanne, na Suíça. Foi Presidente do Comitê Diretor do Fórum Cultural Mundial, em 2004, e Presidente do Comissariado Brasileiro do Ano da França no Brasil, em 2009. Atua como Conselheiro em diversas entidades brasileiras, com destaque para o Museu Paulista, Bienal de São Paulo, Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, Museu de Arte de São Paulo – MASP, Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM-SP e Conselho Todos pela Educação. Internacionalmente, integra os conselhos da Art for the World, na Suíça, e da International Society for Performing Arts – ISPA, nos EUA. Foi vice-presidente do ICSW – Conselho Internacional de Bem-Estar Social, de 2008 a 2010.


Richard Watts, CEO da PEOPLE MAKE IT WORK, uma organização do Reino Unido que ajuda instituições e líderes culturais a se desenvolverem e a criarem mudanças. Richard também foi Diretor Executivo do Culture Reset, uma iniciativa financiada pela Fundação Callouste Gulbenkian em 2020, com a proposta de (re)criar o futuro para as artes e cultura.

CULTURE RESET

Preto Zezé, Presidente da CUFA (Central Única das Favelas) e representante da CUFA Global, com sede nas Nações Unidas. Produtor artístico e musical, lançou sete discos de Hip-Hop e idealizou o Programa Se Liga, na TV Verdes Mares. Como produtor cultural, realiza diversas ações e projetos culturais que constroem uma agenda positiva nas favelas. É autor do livro Selva de Pedra: A Fortaleza Noiada, onde aborda a dependência química e seus danos sociais.

Nascido em plena pandemia no Reino Unido, o Culture Reset teve como missão oferecer uma resposta urgente ao desamparo que a classe artística, principalmente dentro das minorias sociais, estavam vivendo na região por causa da falta de trabalho. “Montamos uma equipe, a Fundação Gulbenkian nos doou 100 mil libras, e criamos esse programa rapidamente, logo apó o início do lockdown, em março de 2020. Empregamos um grupo de artistas representativos e trabalhadores culturais para realizar o programa – pessoas com deficiência da classe trabalhadora, pessoas negras e de outras raças, pessoas gays, trans etc.”, conta Richard Watts, um dos idealizadores do Culture Reset. “Eram as pessoas que estavam faltando nas lideranças do setor cultural, e não podemos pensar em um reset sem elas. Não podemos criar um trabalho em nossos teatros e galerias que seja relevante para todo mundo a menos que todo mundo esteja fazendo esse trabalho.” O Culture Reset, que aconteceu entre julho e setembro de 2020 e reuniu uma programação virtual de workshops, vídeos, podcast, entre outros trabalhos de 200 produtores de todo o Reino Unido. “Esse modelo foi projetado para que possa ser reproduzido em outros lugares, países”, comenta Richard. Todas as produções do programa podem ser vistas aqui: culturereset.org 39


Vivendo tempos ásperos, onde as transformações de significados são imensas e novas vozes e desequilíbrios de toda a ordem exigem mudanças, as organizações culturais precisam se reinventar. Após um 2020 pandêmico, onde as portas desse mundo literalmente fecharam, é momento de se perguntar: qual a relevância da cultura para um reset das questões que movem o mundo? Como as instituições culturais e todo o ecossistema das artes e da cultura está se movendo para essas mudanças? A segunda mesa dos CIF Talks reuniu Danilo Miranda, Ingrid Soares, Preto Zezé e Richard Watts, que, sob mediação de Liliane Rebelo, compartilharam suas experiências e visões e, juntos, refletiram sobre o papel da cultura na reconstrução muito necessária do nosso mundo. 40


Vivendo tempos ásperos, onde as transformações de significados são imensas e novas vozes e desequilíbrios de toda a ordem exigem mudanças, as organizações culturais precisam se reinventar. Após um 2020 pandêmico, em que as portas deste mundo literalmente se fecharam, é momento de se perguntar: qual a relevância da cultura para um reset das questões que movem o mundo? Como as instituições culturais e todo o ecossistema das artes e da cultura estão se movendo para essas mudanças? Esses questionamentos deram a largada da mesa Reset no Mundo: cultura, democracia e bem-estar, o segundo encontro promovido pelo CIF TALKS CULTURE (RE)START, no dia 23 de março. Mediada por Liliane Rebelo, gerente de Cultura e Sociedade da Cultura Inglesa, a mesa contou com Danilo Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo, Ingrid Soares, Secretária Adjunta da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Preto Zezé, Presidente da CUFA – Central Única das Favelas, e Richard Watts, Fundador e Diretor do people make it work, no Reino Unido. No entanto, é importante destacar que tais perguntas, feitas por Liliane no início do debate, não buscavam necessariamente respostas, mas reflexões e ideias dessas pessoas que vivem, em seu fazer diário, a experiência da intersecção entre cultura e sociedade. Danilo começou a conversa falando sobre os longos tentáculos da pandemia, que, cujo caráter abrangente e transversal atingiu a todos nós de diferentes formas, mas sempre de maneira profunda e intensa. “Quando comecei a analisar esse tema, levei em conta dois aspectos: primeiro o do tremor profundo alcançado por esse tsunami psicológico que afetou toda a humanidade e a nós, no Brasil, em particular. Esse abalo nos provocou e exigiu de nós, pessoalmente e institucionalmente, respostas, busca de saídas para este momento que atravessamos ainda hoje”, ele disse em sua fala de abertura. “O segundo ponto é a reinvenção, o retorno, a possibilidade de continuar subsistindo apesar de tudo. Então, quando a gente pensa no reset, no meu entendimento estamos falando de começar de novo.” Danilo discorre que, à luz dos delicados acontecimentos atuais, esse recomeço terá que ser feito de forma muito cuidadosa. Com isso, ele também atentou para o fato de que a necessária reinvenção significa buscar cami41


nhos novos e não atualizar os antigos. “E caminhos novos pressupõem repertório, conhecimento, informação. Em todos os aspectos, temos uma perspectiva de realmente aprofundar a realidade e, para isso, temos que usar metodologias e informações adequadas, portanto, precisaremos da contribuição da cultura, da ciência e de outras áreas do conhecimento para podermos começar de novo.” Por outro lado, o diretor do Sesc acredita que como, um ano mais tarde, estamos vivendo um cenário repetido, e ainda mais grave, essa reinvenção vai poder se valer dos aprendizados que tivemos desde o início da pandemia. “Sei que no mundo existem algumas situações parecidas, mas no Brasil acrescentamos algumas questões gravíssimas, como o descuido e o negacionismo de autoridades. Então estamos novamente fechando o país, voltamos ao início da pandemia. No entanto, podemos olhar para o que já fizemos no decorrer desse processo, nos aprimorar, nos desenvolver mais, com a ajuda da tecnologia, e incluir nessa discussão temas fundamentais, como o combate à desigualdade.” Nesse sentido, Danilo falou sobre a responsabilidade da sociedade em garantir o bem-estar básico de todas as pessoas, usando o próprio Sesc como exemplo, que, segundo ele, tem como importante missão levar bem-estar para os seus muitos e diversos públicos. “Uma instituição como a nossa, que lida com uma realidade bastante profunda, foi muito afetada. Nossas atividades têm a ver com cultura, com o envolvimento de gente, com aglomeração. Nós ficamos muito abalados, pois temos uma dificuldade maior ainda para poder exercer essa missão, que acaba se dando de maneira parcial, limitada, que não contempla o nosso objetivo principal que é ocasionar um programa de bem-estar”, ele disse. “E o que é bem-estar? É a satisfação efetiva com a vida, a própria e a das pessoas à sua volta, a da sociedade na qual você está inserido, cumprindo uma missão humanizadora, que significa ir além da simples satisfação das necessidades básicas, que são indispensáveis, mas o bem-estar efetivo exige mais do que isso. É a satisfação do conhecimento, a valorização do espírito, do conhecimento, da cultura, do simbólico, do imaginário, daquilo que a 42


imaginação humana é capaz de criar e desenvolver.” Danilo contou que, apesar de a tecnologia ser uma excelente aliada, não é suficiente, tem limitações profundas se considerarmos seu alcance. “Neste momento temos refletido bastante sobre o nosso papel e participamos de debates e discussões como esta para poder de alguma forma ajudar a pensar mais, refletir mais, ver a experiência de outros, ver como o mundo está se movendo, e por outro lado combatendo todos aqueles que impedem a solução das questões, seja de caráter sanitário, seja social.” O Diretor do Sesc São Paulo finalizou sua fala trazendo uma reflexão essencial: é preciso pensar que esse novo futuro não será igual à vida anterior, mas que deve ser construído de uma maneira nova, em que o combate às desigualdades tem que estar presente de uma maneira muito sólida. “A solidariedade se tornou não apenas o imperativo natural daqueles que têm uma visão humanitária, mas também o daqueles que desejam sobreviver. Não haverá sobrevivência para a humanidade sem solidariedade.”

A CULTURA COMO PORTAL PARA O FUTURO Ingrid Soares, que falou logo depois de Danilo, trouxe sua experiência como coordenadora do Centro Cultural da Juventude durante a pande43


mia, em 2020. “É muito importante a gente resgatar que, durante a pandemia, a cultura de forma geral foi colocada em xeque”, disse. “Dentro da continha de políticas públicas, a prioridade era a saúde, claro, mas a gente ainda tinha dinheiro para fazer as atividades culturais. E as falas que mais me chocaram foram as de pessoas mais próximas a mim, à minha realidade, venho da periferia. Elas concordavam que a cultura não era essencial.” Ingrid relatou que o papel do setor foi além da discussão da importância do trabalho artístico naquele momento: os coletivos culturais foram um dos primeiros a distribuir cestas básicas na periferia. “Isso foi muito importante, porque era não só o trabalho artístico, mas o entendimento de bem-estar da população. Naquele momento, bem-estar era direito à comida, que é um direito básico humano. A cultura nunca se retirou desse campo de batalha”, explicou ela, referindo-se ao Cidade Solidária, projeto da Prefeitura de São Paulo em parceria com a Secretaria Municipal de Cultura. E, ainda, no que se refere à cultura, a Secretaria promoveu uma série de lives de reflexões artísticas – outro importante campo de aprendizado. “A gente fez o maior número de contratações artísticas da história da Secretaria Municipal de Cultura em 2020. Os cachês foram equiparados ao auxílio emergencial para que a gente pudesse contratar em grandes quantidades. E, junto com essa ação, veio a Lei Aldir Blanc, de auxílio emergencial ao setor”, Ingrid contou. “Mas começamos a nos questionar sobre o acesso que a classe artística tem às ferramentas [virtuais] e pensar as desigualdades sociais dentro dessa classe. Então acho que a grande provocação da pandemia para a cultura foi a de que ela não está desligada dos outros eixos econômicos, da sociedade. Acho que a gente precisa trabalhar isso internamente também.” Fazendo coro à fala da Ingrid, Danilo contou sobre o Mesa Brasil, um programa nacional criado pelo Sesc em 2003 e que teve papel fundamental no combate à fome que assola o país desde o início da pandemia – só em 2021, o Mesa Brasil arrecadou 400 mil quilos de alimentos. Dentro do eixo da cultura, a instituição promoveu uma série de lives para levar informação e entretenimento às pessoas isoladas em suas casas e, ao mesmo tempo, oferecer uma oportunidade aos artistas. “Outra questão 44


fundamental para este momento é pensar sobre o isolamento para quem precisa ir buscar seu pão de cada dia. Essa é uma função gravíssima para a qual a sociedade tem que dar respostas, o estado tem que dar respostas de uma maneira organizada, séria, inteligente, pensada, discutida democraticamente com todos. A economia é importante, mas não vai haver economia se não houver a sobrevivência das pessoas. Estamos vivendo esses falsos dilemas, pandemia de um lado, economia de outro”, disse Danilo. “Então acho que a cultura tem um papel muito importante neste momento, de combater esse negacionismo, manifestação especialmente de autoridades que decidem praticamente sobre nossas vidas. Isso pede uma mudança cultural, uma transformação que vai alterar o pensamento das pessoas.” Para Preto Zezé, vivemos tempos que nos demandam sobriedade para que a gente possa, em meio ao caos, fazer as reflexões necessárias. “É um tempo de muito tumulto, de violência política, de aprofundamento da desigualdade, de desorientação de referenciais civilizatórios. A violência passa a ser um discurso, o ódio uma plataforma política e essa guerra sem fim de releitura histórica, de negacionismo”, ele disse. “Esse caos também é psíquico, afeta nossa saúde mental. Por isso é importante estarmos sóbrios, para termos acesso às reflexões, construirmos pontes de consensos necessários e nos mantermos menos adoecidos.” 45


Preto acredita que o debate é importante, mas é fundamental que ele abarque outras percepções e vivências durante a pandemia. “Como é que a gente entende a percepção de uma pessoa que diz: ‘Estou morrendo de medo desse vírus, estou tentando manter os cuidados, mas se a fome apertar, vou para a rua.’ Para mim, a Covid-19 é só mais uma das formas que a gente tem de passar dificuldade ou morrer numa favela. Então essa naturalização da tragédia, da desigualdade é o que está sequestrando nossa subjetividade. Nós temos aí um terço de milhão de pessoas mortas e o bonde segue. Pessoas fazendo festas, negacionismo das autoridades. Não há perspectiva.” Nesse contexto, o líder da CUFA resgata o papel da cultura e a da arte como forma de oxigenar novas ideias e, como ele disse, “segurar a onda da falta de perspectiva.” A partir disso, ele questiona: como é que a cultura se refaz? Como ela se move? “Acho que a internet mostrou um caminho importante para isso. Acho que todo mundo vai ter que se repensar. No caso da CUFA, a gente teve que fazer o que as empresas chamam de reprodução da matriz produtiva. As primeiras cestas básicas que montamos foram dos lanches e almoços que a gente não poderia mais dar, 46


porque tivemos que fechar a instituição. Em seguida, distribuímos cestas nas favelas ao redor dos nossos escritórios, em todo o Brasil, que viraram centro de armazenamento e de distribuição de tudo que vocês imaginarem: do gás ao chip, da comida ao material de higiene e limpeza.” Preto contou que, nesse trabalho, a CUFA articulou mais de cinco mil favelas e mobilizou uma campanha de recursos em torno de 180 milhões de reais. “Foi importante entender como esse processo produtivo se move, não só acumulando capital, mas compartilhando riqueza que há tempos no Brasil está concentrada nas mãos de poucos. Nossa luta agora tem sido construir uma agenda pública em torno da saúde, que é a vacina urgente, principalmente para as pessoas que estão no front dessa guerra, da alimentação, pois a fome voltou em índices nunca vistos, e da economia, que é a transferência de renda para esse público.” Richard Watts entrou na conversa citando as quatro emergências elencadas pelo presidente dos Estados Unidos Joe Biden: a pandemia de Covid-19, a crise econômica relacionada a ela, a desigualdade em todas as suas esferas, sobretudo no que diz respeito à raça, e a crise climática. “Acredito que a cultura forma nossa humanidade, nossos valores, nossa identidade. A cultura cria um sentido no mundo. Diante de tantas emergências, a cultura é essencial na nossa era, e é crucial que seja feita por todos, justamente por causa dos seus efeitos nas nossas sociedades”, comentou Richard, destacando que, sendo um homem gay e casado, só pode viver essa realidade no Reino Unido por causa das histórias que estão sendo contadas no nosso tempo. “Os escritores, atores, artistas que formaram as visões na nossa sociedade levaram as mudanças para o nosso ambiente. Meu marido é um homem negro que cresceu no Caribe, onde metade da nossa família vive. As histórias deles não são contadas com tanta frequência, vergonha ainda é uma experiência constante para as pessoas gays nessa comunidade”, ele compartilhou, relembrando sem admiração como, durante o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos durante a década de 1960, muitos líderes de empresas mantiveram seus braços cruzados. Para Richard, os líderes que se destacaram, então, foram os que questionaram tudo que estavam fazendo e exploraram suas próprias identidades. “Como líder, minha crença de como devo me comportar nesses tempos é formada pela visão das quatro emergências de 47


Biden e pela definição da Nina Simons ano passado da reação à morte de George Floyd: uma revolta nas ruas da América. Acho que uma revolta é uma perspectiva muito útil; faz eu me perguntar: qual é meu papel como líder cultural em uma era de revolta?”

MUNDO NOVO PARA QUEM? Liliane trouxe a perspectiva do fracasso ao combate da desigualdade social no Brasil, que escancara a falta de políticas públicas efetivas, e o consistente ataque à cultura, como se ela não fosse algo essencial para a sociedade. “Como construir esse processo de resgate dos nossos ideais democráticos pensando em um novo modelo de agenda pública que enxergue o entorno, as necessidades locais e pautem a cultura no centro desse eixo?”, ela questionou. Ingrid acredita que essa nova abordagem da cultura também deve ser geográfica, de forma a incluir aqueles que sempre foram excluídos. “Neste ano, a gente emplacou um núcleo voltado para as estruturas periféricas. E, dentro desse núcleo, estamos justamente discutindo uma São Paulo que precisa ser vista de maneira regionalizada, a política pública de cultura não pode estar concentrada no centro. E isso vai ser urgente nesse novo mundo, que a gente pense cada centímetro desse território.” Para ela, um forte sintoma dessa desigualdade é a sala de aula. “A gente sabe que teve criança que foi alfabetizada pelas vídeo aulas, mas na periferia as crianças ficaram sem aula por um ano e estão entrando no segundo ano ainda sem acesso à escola. Que impacto geracional isso vai ter?”, ela questionou. “Fins do mundo acontecem todos os dias no Brasil há 500 anos. A gente precisa entender que não existe uma globalização. A cultura tem que pensar o quanto ela se coloca como setor neste momento de grande ataque do governo federal às políticas públicas culturais. E tam48


bém pensar no acesso de todos, porque não dá pra internalizar a cultura dentro de casa e transformar tudo em live, enquanto tanta gente fica de fora. O reset não pode ser dado enquanto todo mundo não estiver na mesma página. Então não é um reset só que temos que dar, são vários.” Preto Zezé contou que, sob a perspectiva da periferia, a exclusão foi total. “Quando as pessoas começaram com o ‘fique em casa’, grande parte de quem tinha trabalho não podia ficar em casa porque se a favela para, o Brasil para. Estou falando do cara que troca a maca, que transporta o doente com Covid-19, e está ali corpo a corpo todo o tempo com o risco, o rapaz do posto de gasolina, a menina do supermercado, pessoas que nem sequer tiveram direito de ficar em casa porque tinham que sobreviver e manter o país andando. Foram e são sacrificadas até hoje no front que chamam serviços essenciais.” Ele chamou a atenção justamente para o paradoxo de que as pessoas encarregadas dos serviços essenciais não são tratadas como tais – não têm proteção adequada do estado, não possuem recursos suficientes para sanar os riscos sanitários e não são público prioritário na fila da vacinação. “Elas são essenciais para servir, seguindo a boa tradição de um país de origem escravocrata como é o Brasil. As pessoas na base estão arrastando essa tragédia nas costas.” 49


De uma realidade muito distante, porém não menos complexa, Richard compartilhou suas vivências na cena cultural no Reino Unido, que, segundo ele, foi ditada e contada historicamente por homens brancos colonizadores. E numa região que, hoje, vive na sombra do Brexit, conceitos como diversidade e igualdade podem soar bastante desafiadores. “Então as grandes questões agora são: qual é o futuro que vamos criar? Como ele aparenta ser? O que queremos dizer com a ‘nossa humanidade em comum’? Como devemos abordar a desigualdade? Como é estar vivo, ser jovem, estar em desvantagem, ser excluído, ignorado, privilegiado?”, ele questionou. “Essas questões são perfeitas para as artes. Para o teatro, pintores, escritores. São perfeitas porque esses artistas nos ajudam a enxergar o futuro e a criá-lo. E foi por isso que neste ano trabalhamos para criar o programa Culture Reset. 50


NOVOS CAMINHOS, NOVAS HISTÓRIAS No momento final da roda, Liliane convidou os participantes a um último exercício de imaginação: “Nessa reconstrução gradual dos direitos culturais, como fazer para que haja um projeto permanente de resgate dos valores essenciais à democracia e como garantir que essa agenda não seja efêmera?” Preto Zezé foi incisivo: “Como é que a gente volta ao normal? Penso que a gente não vai voltar mais. Não quero voltar também. Para aquela situação de desigualdade, naturalização do caos. Quero que, a partir de agora, a gente produza um novo olhar sobre nós, sobre a realidade que nos cerca e o tipo de sociedade que a gente quer.” Para o líder da CUFA, é muito importante insistir nesse debate central e convocar a todos, sempre buscando o pensamento democrático, as pessoas que respeitam regras institucionais, que não negam a ciência, e, principalmente, uma plataforma voltada para o enfrentamento da desigualdade. “Acho que isso, sim, é caminhar para a construção de uma perspectiva brasileira. Temos perspectivas e influências internacionais, mas precisamos nos debruçar numa saída brasileira para nossa crise e, inclusive, apresentá-la ao mundo.” Danilo concordou com Preto – também acredita que retornar àquele passado não interessa a ninguém. “Um passado de desigualdade, de desrespeito, desvalorização do ser humano. Sabemos que a construção desse futuro é complexa, exige uma ação muito efetiva de todos aqueles que têm algum tipo de responsabilidade, que lideram projetos culturais mais abrangentes, que atingem outras instituições e têm, portanto, o desdobramento natural do convencimento.” Para Preto, a saída está em agregar e engajar as pessoas: “O Brasil é um país ‘xingacionista’, reclamão, mas é muito útil em se envolver nas coisas. 51


Só que a cultura de engajamento é muito deturpada. A máquina pública não tem responsabilidade, não chega para a pessoa mais pobre como um direito, mas como um favor. Geralmente a ação chega aparelhada ou tutelada por algum parlamentar, e aí vira política.” Segundo Preto, este é um segundo ponto bastante problemático no nosso país: a política como atividade somente de políticos, e a construção de uma relação baseada em interesses individuais ou de grandes grupos econômicos. “Aí o pessoal fala que corrupção é furar fila de supermercado, roubar vaga de carro, uma corrupção que não interfere em nada na grande estrutura de apropriação que grupos econômicos e corporativos fazem sobre a máquina do estado.” Outra questão problemática que ele abordou no debate é o fato de o Brasil ter se tornado um país eleitoral: não olhamos projetos, mas candidatos. “As pessoas estão preocupadas com quem vai ser o próximo presidente, não com o projeto de sociedade, qual é a plataforma emergencial para resposta à maioria da população que está sem emprego, sem dinheiro, sem vacina. E agora com a fome batendo à porta”, questionou. “Quando sentamos com o governador do Ceará, as pessoas reclamam que a gente senta com o PT, mas quando sento com o Dória, o pessoal da esquerda diz que não é para a gente sentar com o PSDB. O incômodo dos grupos não deveria ser se sentei com partido x ou y. É um problema de percepção, e a gente reproduz isso na medida que acredita que devo sentar com x ou y devido às minhas conveniências de identificação ideológica. Quando é para ser o contrário. Esses aí estão eleitos para gerir a receita pública para o interesse da sociedade e não o inverso. Eles estão lá para nos servir.” Na visão de Preto, precisamos revisar – e reformar – esses pontos todos para refazer a relação entre sociedade e estado, proteger a agenda para as políticas públicas dos interesses de grupos corporativos, políticos e econômicos, e nos organizar como uma sociedade descolada do interesse eleitoral e político. Liliane aproveitou a conversa com Preto para perguntar a ele sobre sua entrevista para o Roda Viva, em que o líder da CUFA fala sobre uma necessidade de tradução, uma tecla SAP entre o favelês e a língua do homem 52


branco do asfalto. “Como promover esses diálogos territoriais para que a favela passe a ser percebida como um espaço de referências, de produção de conhecimento, de leituras de mundo?”, ela questionou. Preto falou, então, sobre o que ele chamou de uma carência afetiva do Brasil – uma necessidade de entregar na mão dos outros seu destino, uma cultura de tutela paternalista, e também resultado de uma cultura servil, que, na política, se torna essa busca por um herói, um “político de emergência”. “O Brasil tem 521 anos, 388 deles foram de escravidão, então a mentalidade escravocrata das corporações, dos grupos de elite, dos gestores públicos, e a mentalidade do povo como servil comprometem o desenvolvimento de um projeto nacional, à medida que a comunicação que se passa sempre é desse povo com carente, coitado, que não lutou e cuja salvação está na mão do outro. Aí o político batiza a escola com o nome do tio, o hospital com o nome da mãe, ou seja, é uma apropriação da estrutura pública.” Preto fala também sobre a desqualificação constante do serviço público – como o próprio SUS (Sistema Único de Saúde), que agiu em frente fundamental durante a pandemia e que cujo serviço é reconhecido em todo o mundo – e o distanciamento do problema da corrupção. “Não falo da corrupção como discurso moral, mas como algo que compromete o enfrentamento da desigualdade brasileira. Quando você resume a 53


corrupção a furar fila de mercado, vulgariza o conceito e não consegue entender que o cara lá na ponta não tem hospital, nem saneamento, nem escola por causa da corrupção. Precisamos elevar isso ao nível de um debate sério. O cidadão também tem controle sobre o estado, que tem a transparência, ingerência sobre a política pública, sobre os recursos públicos”, explicou. “Esse discurso é sequestrado rapidamente, aí vira o discurso fácil de que precisa aparecer um xerife, algum herói que vai botar moral em tudo. Negros, mulheres, jovens são discursos emocionantes nas bocas dos políticos, mas o pobre não está na planilha de orçamento como desenvolvimento, somente custo. O pobre trabalha, produz a riqueza deste país, não recebe o retorno em política pública e quando é para ser lembrado é como gasto. Como você vai cobrar o engajamento das pessoas se elas não veem o sentido?” Para Ingrid, se a gente quiser que esse reset aconteça ainda em 2021, são três caminhos muito claros: renda mínima, vacina e impeachment. “Precisamos construir uma agenda de engajamento com a juventude. Com a maior faixa da nossa pirâmide etária. Muitos jovens votaram no Bolsonaro, numa agenda conservadora que vai contra sua própria vida. Acho que não existe uma imaginação de futuro que não envolva essa juventude”, ela disse. “Precisamos também focar na aproximação dos professores e 54


dos agentes de saúde. Pensar numa agenda que inclua pessoas que participam efetivamente da sociedade, que entendem mais as questões que estão sendo colocadas, tentar trazer para as gerações que estão atrás de nós esperança e direção. Tentar trazer a verdade.” Ingrid defendeu que esses primeiros passos práticos são fundamentais para pavimentar o caminho para o futuro que queremos. Para ela, temos desafios pontuais que pedem respostas imediatas. “Os problemas estruturais são grandes e a pandemia escancarou isso. Todo mundo já sabia quais eram. A luta não está começando agora, somos um contínuo dessa revolução, meus ancestrais já fizeram muito por nós. Sou muito grata a quem lutou antes de mim para que eu pudesse estar aqui conversando com vocês; e exijo de mim mesma essa responsabilidade com as gerações mais novas”, argumentou, ressaltando o ponto do Preto Zezé de que as políticas públicas não pertencem a partidos e não devem ser definidas como tais. “Ela deve conter todos os olhares, todas as ações, desde que respeitem a vida de todos.” No que se refere ao papel da cultura em intercâmbio com outros setores, Ingrid buscou o conceito da economia criativa como meio de vida essencial para muita gente, principalmente para as periferias. “A gente precisa ser muito sério quando falamos de economia criativa e quando incluímos a cultura dentro disso. Acho que está caindo a ficha para o nosso setor que as políticas públicas culturais vão sofrer muitas modificações nesse novo mercado. Talvez os principais responsáveis por financiar a cultura venham da iniciativa privada, aí os casos como os da CUFA são essenciais para a cultura periférica”, disse Ingrid, dando como exemplo hoje iniciativas como o Proac, que, apesar de ser um programa público, está pouco acessível para a periferia. “Existe ainda um atraso de informação, de compreensão das empresas de que é necessário investir recursos nessas pautas identitárias, das quais elas se apropriam muitas vezes, mas não a fazem girar. Quem normalmente é difusora dessas pautas são os espaços públicos, comprometidos com a agenda pública. A gente precisa trocar essa ideia para conscientizar. Nessa nova era, a gente precisa equilibrar essa disputa dentro da cultura e ter um pacto de acesso de todas as pessoas aos bens culturais para que elas possam fazer as escolhas delas de olhos abertos, porque hoje existe uma grande cortina de fumaça na qual 55


ninguém consegue se localizar.” Richard, que se define como um ativista organizacional, não vê essa mudança sendo feita para os grupos minoritários artísticos, mas por eles. “Penso que a tarefa de criar esse futuro na nossa cultura está com nossos artistas, escritores, dramaturgos, pintores”, disse ele. E quanto mais diversa for essa cultura, melhor. “Na minha cidade natal, mais de 300 idiomas são falados, e essa é uma parte muito positiva do nosso histórico cultural, mas nem todos esses idiomas são celebrados, publicados, traduzidos.” Para Richard, mais do que nunca, as musas – privilégio de poucos artistas e intelectuais – devem dar lugar à criatividade do dia a dia, a uma democracia cultural, a uma sociedade empoderada e super alimentada pela cultura, em vez de uma cultura que pertence à elite. “No Reino Unido, nossa expectativa é que a forma como definimos e pensamos arte e cultura seja transformada. No passado, tínhamos a cultura num pedestal, muito longe do resto da humanidade, com muita frequência uma cultura branca, celebrando um passado colonial, sexista, racista. Precisamos desafiar nossas histórias controversas, principalmente no Reino Unido, que as mostram como algum tipo de influência positiva mundial, quando, de muitas formas, exportamos a Revolução Industrial, a ideia do racismo. Essas estátuas que celebramos são como heróis que nos abominam”, elencou. “Vejo o futuro como uma cultura feita por todos e pertencente a todos, que possamos parar de falar delas como cânones, objetos louvados e reconheçamos que ela acontece nos nossos lares, na criação do jovem, das comunidades, na história, nas tradições, nos objetos que fazemos, na forma como vivemos.”

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“A cultura é o elo. Ela traz o repertório, o horizonte, a esperança. Agora o setor precisa descobrir quais são as pautas. Qual mundo a gente quer resetar?”

_Ingrid Soares

“A cultura é que dá significado à vida, às nossas ações. Através do simbólico e do imaginário, nos oferece meios para entender a realidade, o que somos, o que fazemos, e entender o nosso entorno.”

_Danilo Santos de Miranda “A luta não começou agora no Brasil, mas há muitos séculos. E por vezes nos sentimos muito cansados e exaustos em meio a esse caos psíquico, a essa afronta, a essas armas, a essa guerra cultural que nos atinge e nos aflige todos os dias, mas nunca como cultura desistimos, e não vai ser hoje que vamos desistir” _Liliane Rebelo 58


“Para a CUFA, manter essa conduta, e uma reputação e credibilidade que traga de volta a confiança das pessoas na política, na organização, no resultado prático da vida coletiva e comunitária, é um desafio muito grande, nós temos apanhado muito, mas ficado satisfeitos e nos sentindo bastante recompensados pelas pessoas se sentirem protagonistas de suas próprias histórias, e não coadjuvantes do seu destino.”

“Criar o futuro é uma tarefa de todos, e nosso trabalho é equalizar a oportunidade de criar esse futuro, imaginar, pintar esse quadro, elencar pessoas nas nossas histórias, enxergar o mundo através dos olhos de outras pessoas e do lugar de outras pessoas”

_Richard Watts

_Preto Zezé

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PARTICIPANTES

Bárbara Iara Hugo Cabral Carneiro, travesti preta, coleciona arquiteturas de corpos desobedecidos e visualidades em metamorfose. Mestranda em Educação na PUC-SP, é graduada em Educação Artística pela UnB e atualmente integra o Núcleo de Artes Visuais do Sesc Pompeia.

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MEDIAÇÃO

NOVAS NARRATIVAS, VOZES DIVERSAS

Natalia Mallo, Multi-artista, curadora e consultora de programação e políticas culturais. Tem 20 anos de experiência em projetos nas áreas de música, artes cênicas e práticas interdisciplinares. É consultora de programação e comunicação para instituições da cultura e do terceiro setor. Trabalha junto a organizações internacionais desenvolvendo projetos de cooperação criando pontes entre arte e sociedade. Dirige o Risco Festival e lidera a organização internacional Outburst Americas dedicada à arte queer. Atualmente é coordenadora de programação e co-curadora do Cultura Inglesa Festival. Luh Maza, Roteirista de séries para a Globoplay/GNT e Netflix, foi indicada ao Prêmio ABRA de Roteirista do Ano. Atualmente compõe a equipe de desenvolvimento de uma nova série de ficção para a Netflix. Recebeu o troféu de bronze de roteiro no festival El Ojo de Iberoamerica na Argentina e o prêmio Inclusive and


Creative Awards Campaign dos Estados Unidos pelo curta Trinta e Cinco. Foi finalista do Prêmio Jabuti de Literatura e participou da antologia Dramaturgia Negra (Funarte). Leonardo Castilho, Educador, performer, artista, produtor e poeta. Trabalha no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) onde educa pessoas surdas (e ouvintes) sobre a arte moderna e as obras do acervo. É membro do grupo Corpo Sinalizante, que organiza o Slam do Corpo.

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As políticas culturais da segunda década do século 21 devem estar imbuídas do dever de promover a alteridade, as pontes para o diálogo e os trânsitos entre as diversas diferenças que convivem em um mundo cada vez mais intolerante e polarizado. Novas vozes se somam a vozes ancestrais, a anseios de representativ dade e fuga de estereótipos e clichês que limitam a jornada humana e a compreensão do outro. Como devem ser moldadas essas políticas? Quais os insumos, sons, provocações, fluxos e contrafluxos que as políticas culturais vão beber para se manter relevantes? Em sua terceira mesa, o CIF Talks reuniu Luh Mazza, Natalia Mallo e Leonardo Castilho. Com mediação de Bárbara Iara Hugo Cabral Carneiro, a discussão iluminou questões importantes sobre a importância de a cultura incluir cada vez mais vozes e corpos em todas as suas frentes. 62


Provocações feitas pela educadora artística Bárbara Iara Hugo Cabral com inspiração na ementa do encontro, marcaram o início da mesa Novas narrativas, vozes diversas, terceiro evento do CIF TALKS CULTURE (RE)START, que foi ao ar no dia 24 de março. Bárbara conduziu a conversa entre a roteirista e dramaturga Luh Maza, a artista e curadora Natalia Mallo e o artista e educador Leonardo Castilho. Luh Mazza abriu o papo trazendo um ponto fundamental para a discussão: essas novas vozes não são necessariamente novas; elas sempre estiveram por aí, falando. “O que é novo é a escuta de boa parte da sociedade para o que essas vozes têm a dizer, sobre elas mesmas e sobre o mundo a partir do ponto de vista delas”, disse. “Pessoas trans, negras, mulheres, PCDs, toda a sigla LGBTQIA+, ciganes, positives, todas as pessoas que foram sistematicamente marginalizadas, empurradas para a margem da sociedade, de onde suas falas não eram audíveis para a maioria das pessoas.” A roteirista falou sobre os processos de reparação histórica necessários a essas vozes e a importância das mesmas serem convidadas para o centro da discussão – mais do que contar as narrativas do agora, suas vozes carregam uma ancestralidade que também deve ser ouvida. “Posso ser uma artista relativamente jovem, uma voz nova, mas da minha boca sai a minha voz e as vozes ancestrais de quem veio antes de mim e que me atravessam: das mulheres pretas, das travestis. Vozes que, através do meu trabalho, do que escrevo e do que falo, podem se comunicar com a sociedade.” Para Luh, um entendimento holístico da necessidade da inclusão passa pela compreensão e pela valorização da potência da diversidade humana. “Qualquer sistema, seja numa empresa, seja criativo, seja numa mesa de bar, se torna infinitamente mais rico com a inclusão da diversidade, de pessoas de diferentes vivências, pontos de vista, problemáticas e soluções.” Porém, mesmo com os avanços que já tivemos, sobretudo dentro da cultura, ela acredita que ainda caminhamos a passos muito lentos. Luh deu um exemplo que vemos com frequência: no papel todo mundo entende o valor da diversidade, o mercado e o capitalismo também incor63


poraram esse valor, mas, muitas vezes, existe uma enorme dificuldade de colocá-lo em prática para além da sistematização, da capitalização desses temas. Ou seja, há um interesse em promover essa inclusão, mas ninguém sabe como fazer. Por outro lado, com vozes que falam cada vez mais – e cada vez mais alto –, o espaço da escuta também vai se ampliando. “Há muito a ser dito e, de fato, uma urgência na fala. Acredito que por isso hoje as pessoas têm tanto interesse nas discussões feministas, trans, pretas”, disse Luh, que destacou que essas discussões precisam continuar sendo levadas para o campo artístico e cultural, para que transformações efetivas em toda a sociedade comecem a acontecer. “Espero que através da nossa presença, do nosso trabalho e da nossa diversidade representada, a longo prazo, a gente consiga naturalizar os nossos corpos, as nossas vozes, as nossas histórias e sabedorias, divergentes dos padrões que se estabeleceram historicamente.” A roteirista acredita que no futuro será possível, por meio da fala e da criação, construir uma sociedade mais acolhedora e convidativa para que outros grupos minorizados tenham acesso a esse espaço – para além de falar sobre si, mas sobre o mundo a partir do seu ponto de vista único. “O padrão do mundo não é masculino, nem branco e nem hetero-cis-normativo. Esses são padrões da hegemonia que dominou a história do mundo. E que a gente consiga com que essas identidades também se adjetivem, assim como nos adjetivam. Para que possamos entender que, na nossa diversidade, não existe padrão e que, nela, a gente pode encontrar uma forma de naturalizar as nossas presenças e de alcançar um equilíbrio social e econômico para os nossos recortes sociais, por meio da arte e da cultura.” Leonardo Castilho entrou na discussão trazendo uma valiosa metáfora para a questão da visualidade intrínseca na língua de sinais: um solo fértil pronto para germinar suas sementes. “Mas essa semente é tampada, oprimida. Toda vez que ela tenta brotar, é continuamente arrancada”, ele disse. “Olhando para a história dos surdos e da comunidade surda, quantas negativas recebemos ao longo de tantos anos? Hoje a tecnologia nos 64


traz uma boa perspectiva: traz a visibilidade da comunidade surda. Esse apagamento que ocorreu durante tanto tempo agora não acontece mais.” Leo também falou da voz ancestral, do reconhecimento de que, se hoje as pessoas surdas ocupam esse lugar, se a comunidade está empoderada, é preciso lembrar e agradecer àqueles que vieram antes. “Como pessoa surda, fico sempre pensando num surdo que viveu em outros tempos. Será que ele teria as mesmas oportunidades que eu tenho? Será que as dificuldades que ele enfrentou foram as mesmas? Não, ele teve uma vida mais difícil, muitas barreiras a enfrentar, a voz do surdo era vista de forma diferente. Então é importante trazer esse resgate para que possamos continuar lutando para aqueles que vão vir depois da gente.” Para Leo, o corpo é ferramenta fundamental no processo de encontrar a voz e a identidade, refletindo a importância de expressões artísticas, como a poesia, para essa constituição. “Temos que ter a coragem de mostrarmos quem somos por meio do nosso corpo e encontrar nossa identidade através dessas memórias que foram apagadas.” Natalia Mallo, que é co-curadora do Cultura Inglesa Festival, falou sobre a responsabilidade da curadoria para dar voz a essas novas narrativas. “Muitas dessas narrativas, que podem ser vistas como novas, foram silen65


ciadas historicamente, inclusive por processos de colonização dos povos originários. Então gosto muito de trazer a questão a partir da curadoria, de alguém que ocupa um espaço de tomada de decisão, de criar um recorte da produção artística, de um pensamento, e oferecê-lo ao público”, disse a curadora.

AS MARGENS QUE NÃO NOS DEFINEM Em sintonia com a fala de Luh Mazza, Natalia discorreu sobre essa visão de novas narrativas não como novas vozes, mas como novas histórias. 66


As muitas histórias que podem ser contadas dentro de cada um desses recortes. “Não é a presença única, a história única, é uma questão de proporcionalidade. Não é só inclusão, um termo aliás muito desgastado e discutido justamente por causa do desequilíbrio de poder implicado nele.” E o que é a história única? São as histórias de opressão e sofrimento que, às vezes, viram um estigma. “Determinado evento convida pessoas trans para falar, por exemplo, as agruras da vivência trans. Claro, cada um deve falar o que quiser e o que achar relevante. Existe um lugar da arte que faz denúncia de situações sociais opressoras. Mas qual é o papel de uma pessoa que está na curadoria de uma programação? Fomentar e financiar histórias e narrativas novas no sentido de deslocamento, narrativas de potência, de prazer, de prosperidade. Esse deslocamento é muito importante porque também promove uma mudança cultural, de percepção, da naturalização de corpos que a Luh falou”, opinou Natalia. Para a curadora, é esse deslocamento que vai fomentar uma mudança cultural, são essas novas narrativas que ela enxerga a partir desse lugar de responsabilidade e de quem decide quais vozes serão amplificadas e financiadas. “Quem sabe, no futuro, quando uma pessoa vir uma travesti na rua, aquela presença não vai causar tanto desconforto? Não vai causar essa reação desmedida e a instabilidade emocional, que são justamente o que geram casos horríveis de violência transfóbica, como vemos muito no Brasil?” Natalia explicou que o Festival, em sua 24º edição, busca justamente imaginar esse futuro, em todas as áreas e linguagens. Por isso a programação contemplou artistas que estão repensando suas práticas, suas linguagens, se arriscando, criando imaginários diferentes para o que virá. “E evitamos as caixinhas. O CIF não tem uma seção LGBTQI+, PCD, trans. Ele é inteiramente ocupado por essas pessoas, a gente não está apontando pra isso. Embora o programa aborde discussões específicas sobre esses recortes, como a representatividade de pessoas com deficiência nos processos criativos, ele tenta olhar para a equidade, para a proporcionalidade e para as vozes e imagens que podemos oferecer para o mundo. De um lugar 67


que vai do mais lúdico ao mais complexo e sofisticado”, disse a curadora. “É muito satisfatório estar nesta mesa com a Bárbara, por exemplo. Duas negras travestis ocupando o mesmo espaço é algo muito poderoso e muito raro, geralmente somos figuras únicas. Dentro de um evento, muitas vezes se elege um representante dessas ditas minorias como se essa única pessoa pudesse dar conta da diversidade que existe internamente em cada um desses recortes sociais que as pessoas carregam”, comentou Luh. “É muito importante entender que a representatividade – ou seja, estarmos presentes em todos os lugares e estamos falando, criando, produzindo – é fundamental, mas não podemos estar sozinhas.” Para Luh, a representatividade só é real e concreta quando coletiva. E, quando saímos da experiência única, que muitas vezes é construída a partir de discursos equivocados, como o da meritocracia, passamos a entender o processo de inclusão ativa dos grupos minorizados, as particularidades que possuem, os diferentes níveis de aprendizado por meio da acessibilidade. “Para que seja possível uma forma equânime de trazer todas essas pessoas para a ágora, e todas elas carregando suas comunidades. Seja na representação, seja nessa irmandade, nesse reconhecimento de pares nesses espaços de convivência, discussão, reflexão, transformação social que a arte e a cultura proporcionam.” Para quem assiste de fora, talvez abrir mais espaço para que outras histórias possam ser contadas pareça um movimento ousado se considerarmos que boa parte da sociedade ainda se mantém presa aos padrões. Mas, nas opiniões das vozes que compuseram essa terceira mesa, a inclusão mais aprofundada, que abarca os muitos universos dentro dos recortes sociais, é o que vai possibilitar a naturalização da diversidade e de empoderar e emancipar essas vozes de criadores e artistas para que desenvolvam suas pesquisas e suas obras sobre qualquer tema dentro de qualquer gênero. “Precisamos pensar a não manutenção da história única, como se as pessoas tivessem que contar a mesma narrativa, que é a esperada: histórias de sofrimento, tragédia e superação”, argumentou Luh. “Ainda estamos num estágio em que a travesti fala das pessoas trans, as pessoas pretas da pretitude, PCDs falam de suas respectivas deficiências e não temos ainda 68


a naturalização desses corpos falando sobre qualquer coisa. O principal é entender como podemos fomentar essa acessibilidade para quem deseja estar nesses espaços.” Para Luh e para Natalia, essa construção deve envolver a pressão por políticas públicas, ações afirmativas como as cotas e outras políticas das ditas inclusões. Luh reforça que essa cobrança tem que ser feita inclusive em esferas menores, das nossas vivências pessoais, para além da cobrança institucional. “Nós também temos que contribuir para a construção desses acessos nos nossos trabalhos e na vida pessoal, ela é que reflete nas nossas escolhas artísticas, curatoriais. Se temos uma vida isolada, que não dialoga com essas diversidades, nossa tentativa de reproduzir isso numa curadoria ou numa programação não vai ter sucesso. É preciso que isso aconteça de dentro para fora.” Leo também chamou a atenção para os muitos recortes que a comunidade surda guarda, inclusive nos campos das artes e da cultura. Somos milhões de surdos no Brasil, também temos essa variedade e essa diferença na surdez. E essa interseccionalidade deve ser olhada”, ele disse. “Se formos pensar, por exemplo, numa mulher negra e surda: quantas questões, quantas camadas estão intrínsecas nisso? Temos uma maioria 69


de população negra no Brasil. Mas e quanto a mulheres negras surdas que estão criando poeticamente no Brasil? A gente precisa dessas referências.” Leo falou mais uma vez sobre a poesia como estratégia para desdobrar essas camadas e diferenças, trazendo como referência a artista Roberta Estrela D’Alva. “Ela fala muito sobre a voz de levante, é uma das precursoras do slam no Brasil. O slam é uma espaço em que há essa diversidade étnico-racial, das feministas, dos indígenas, dos negros. Esse é um espaço de encontro onde nossa voz pode ecoar para outros lugares”, ele explicou.

ESCUTA ATIVA Leo abordou também a importância de trazer o novo, o inédito, propostas que quebram os padrões. “Quando a gente pensa sobre ambientes da sociedade, as pessoas estão sempre falando as mesmas coisas, repetindo os mesmos discursos. No teatro, estão 70


sempre colocando o intérprete ali no cantinho, de uma forma que não comunica conosco. Somos vozes diversas e precisamos ter essa escuta. Precisamos refletir sobre quem fala: quem é essa pessoa, de que lugar ela fala, qual é a perspectiva dela? Precisamos ter essa flexibilidade para conhecer a diversidade que existe dentro da surdez.” Outro ponto relevante da conversa foi a discussão sobre o intercâmbio entre as ditas minorias sociais e as pessoas brancas, heteronormativas e ouvintes como processo fundamental nesse desejo da naturalização da diversidade. “A junção da comunidade surda com os ouvintes também traz diversos aprendizados. Essa união, o respeito mútuo é importantíssimo”, comentou Leo, que defendeu a ideia de que uma construção coletiva pressupõe a presença coletiva desde a concepção de uma obra. “Em muitos projetos, a acessibilidade é pensada depois que o projeto já saiu do papel. Não é uma construção feita de forma integrada, coletiva, mas que produz momentos compartimentalizados que não dão conta. Eles bebem da nossa cultura, pegam o que os interessa e produzem algo que tenta nos representar, mas não conversa com a gente, com a nossa realidade.” Natalia enxerga a acessibilidade como uma questão central que deve ser entendida num sentido amplo. “Criando espetáculos, percebo a dificuldade e o estigma que existem sobre a própria acessibilidade. Eu percebo resistência de artistas que acham que os recursos de acessibilidade estão impactando negativamente o que eles esperam como resultado estético da obra, palestrantes que acham que se auto descrever é estranho e absurdo e prefeririam não fazer isso”, ela explicou. “Acessibilidade tem a ver também com criar ferramentas de aproximação, de mediação, uma linguagem simplificada. Se estivéssemos aqui presencialmente, as pessoas conseguiriam chegar? Elas têm dinheiro para o ônibus? Elas se sentem confortáveis naquele bairro, seguras, bem tratadas naquele espaço?” Natalia argumentou que a acessibilidade precisa ser pensada em muitos níveis: econômico, físico, atitudinal, comunicacional etc. E que artistas, curadores e promotores de eventos deveriam focar a acessibilidade como um recurso a ser desenvolvido ou criado do ponto zero de qualquer obra ou planejamento de evento, levando em conta suas singularidades. “Nun71


ca pode ser sobre a gente sem a gente. Não vou criar um projeto sobre pessoas trans no qual as pessoas trans não estejam num lugar de decisão artística, de protagonismo, e assim por diante.” Ela também faz esse questionamento como curadora a partir de lugares de privilégio: como artista cisgênera branca, que já tem um espaço naturalmente dado a pessoas que se enquadram nesses padrões. “O que vou criar, proporcionar e de que estruturas tenho que abrir mão? Isso também é um aprendizado – a redistribuição de riquezas, microfones, cachês, espaços, palcos. Como a gente usa isso também para uma autocrítica e como a gente constrói a equidade a partir da nossa subjetividade, da nossa micropolítica e daquele pedacinho que a gente tem de poder?” Bárbara pontuou as falas, trazendo a questão da distância física e os espaços virtuais e imaginários que criamos na tentativa de nos aproximar desses objetivos. “Tenho pensado muito sobre a convivência e o quanto a gente se afasta disso neste momento de pandemia. Talvez a convivência seja a criação daquele espaço acolhedor que a Luh Mazza trouxe. É possível um futuro melhor sem convivência?”, ela questionou. Para Luh, esses espaços de fala são possíveis de várias formas, porém só podem existir quando as pessoas também têm seu espaço de escuta ativamente construído. “É muito importante que essa escuta não seja só de absorção de um conhecimento, de referência, mas de reflexão, como estou agindo na minha vida, nos meus trabalhos. Minha equipe de trabalho contempla a diversidade? Eu tenho mais de uma amiga travesti? Eu trago pra minha mesa de café da manhã pessoas pretas? Eu me relaciono com pessoas positivas? São várias questões para a gente entender de fato essa naturalização dos corpos e essa relação equânime e humana entre as pessoas.” Bárbara aproveitou a fala da companheira de mesa para jogar uma nova luz no debate: a possibilidade de conversas como estas serem acessíveis ao branco, aocisgênero, ao hétero. “Pensando que a acessibilidade nunca é para a diversidade chamada minoria, ela é também para que as maiorias possam nos acolher. Tanto Amanda quanto Vanessa [as intérpretes de li72


bras] especificamente aqui fazem isso de maneira muito bem elaborada, que é tornar a voz do Leo audível para as pessoas que escutam, é também uma relação de acessibilidade na troca, na vivência de quem ouve e de quem fala.” Luh acrescentou: “Precisamos ser acessíveis também aos homens, às pessoas brancas, aos cisgêneros porque de fato são essas pessoas que precisam ser transformadas, não são nossos pares que precisam nos escutar, nos entender e se rever. Então é importante pensar também a acessibilidade para elas, que as nossas falam consigam chegar nelas, que nossos termos não as afastem, que nossos discursos não as violentam e as façam refletir”, ela disse. “E esse é um esforço contínuo e um trabalho de paciência e diálogo com o outro porque somos historicamente violentadas. Mas, sem isso, a gente não vai conseguir transformar nada, porque se só a gente se transforma, só a gente se entende, nada é feito. Estamos aqui comungando para que espaço – físico ou virtual – seja para todes.” 73


“A gente precisa de uma nova escuta, e de uma nova escuta global.”

_Bárbara Iara Hugo Cabral Carneiro

“Espero que o futuro seja tão diverso que esse termo, diversidade, não seja mais usado. Entenderemos que a diversidade está posta, é desejada, é imprescindível. E que as nossas vozes são cada vez mais amplificadas.”

_Luh Mazza

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“A gente está sonhando, imaginando o futuro, e quando a gente imagina, consegue começar a construí-lo. A arte imagina e exibe esse futuro possível, inclusive num lugar simbólico, de diferentes maneiras, com diferentes linguagens, falando a partir de diferentes corpos e sobre diferentes assuntos.”

“Gostaria que vocês, ouvintes, também olhassem um pouco para essa perspectiva das pessoas surdas. Usamos nossa voz como um lugar de empoderamento, de mostrar quem somos através do nosso corpo, da nossa visualidade, no teatro, na poesia. A voz do surdo também é expressa nesses espaços.”

_Natalia Mallo

_Leonardo Castilho

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PARTICIPANTES

Stela Barbieri, Artista plástica e consultora nas áreas de educação e artes. Foi conselheira da Fundação Calouste Gulbenkian, curadora educacional da Bienal de Artes de São Paulo e diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake.

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MEDIAÇÃO

INSIGHTS DE FUTURO: PROJETOS DE MUNDO PELA CIÊNCIA E PELAS ARTES

Duilia de Mello, um dos nomes mais conhecidos da ciência brasileira no exterior. Graduada em Astronomia pela UFRJ), Mestre pelo Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) e doutora pela USP. Atualmente é professora de Física e Astronomia na Universidade Católica de Washington. Roberto Zular, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Juntamente com Álvaro Faleiros e Viviana Bosi organizou o livro Sereia de Papel – visões de Ana Cristina Cesar. Organizou também o livro Criação em Processo – ensaios de crítica genética (Iluminuras). Desde 1993, dedica-se aos escritos de Paul Valéry e sua recepção entre os poetas brasileiros, o que o levou ao estudo da poesia moderna e contemporânea, especialmente quanto às relações entre corpo, linguagem, historicidade, ritmo e voz.


Luiz Alberto Oliveira, físico e Doutor em cosmologia pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCTI), foi pesquisador do Instituto de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (ICRA-BR) da mesma instituição, onde também atuou como professor de história e filosofia da ciência e curador do Museu do Amanhã. É professor, palestrante e consultor de diversas instituições.

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Os artistas e cientistas projetam o mundo muitas vezes a partir de inspirações abstratas e de insights e intuições. Num tempo de profundas mudanças, o que podemos aprender com eles? Foi partindo desse questionamento que a artista plástica e educadora Stela Barbieri, mediadora da mesa Insights de futuro: projetos de mundo pela ciência e pelas artes, conduziu uma conversa sobre temas-chave do nosso presente, sob as óticas da cultura e da ciência. O debate, que foi ao ar no dia 25 de março, aconteceu durante o evento CIF TALKS CULTURE (RE)START e contou com as presenças de Duília de Mello, professora de Física e Astronomia e vice-reitora na Universidade Católica de Washington, Luiz Alberto Oliveira, físico e curador do Museu do Amanhã, e Roberto Zular, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. [conheça melhor os convidados no boxe da pág. xx]. 78


Stela introduziu a conversa contando que seu ateliê, o Bináh, que fica em São Paulo, recebe muitos grupos, escolas, artistas, escritores e ilustradores o ano todo. Ela diz que são as perguntas feitas pelas crianças que se destacam do conjunto geral, pois “elas estão muito interessadas no que acontece no mundo, e querem investigar, a partir de suas indagações, como o mundo acontece”. As perguntas vão desde por que o céu é infinito e azul, ou como uma árvore cabe dentro de uma semente e se o sol e o mar são vivos. “Eu acredito que, para a gente transformar o mundo, transformar a nossa realidade, que anda bastante desafiadora, talvez a gente tenha que fazer outras perguntas, nos indagarmos de outras maneiras. Penso que há um problema na educação, que tem pouca escuta para as perguntas das crianças, e os professores, muitas vezes, se fazem poucas indagações. Na verdade eles reeditam perguntas já existentes e olham para a educação como solucionadora de problemas e não como geradora de problemas que se encontram com os problemas do mundo”, reflete a educadora, que avança o raciocínio afirmando que o coronavírus além de furar a nossa normalidade nos fez pensar de outras maneiras os problemas do planeta. Não seria este o momento apropriado de fazermos novas indagações, portanto? A educadora trouxe para a discussão ideias do filósofo italiano da natureza Emanuele Coccia, que relaciona a nossa existência à dos outros seres vivos. “Ele fala que ter nascido significa que nós somos um pedaço deste mundo, mas um pedaço do qual tivemos que mudar a forma.” Coccia, ainda citado por Stela, diz que somos um punhado de átomos e corpos que já estavam todos aqui neste mundo e aos quais nós quisemos e pudemos impor uma nova direção, um novo destino. “Tudo isso nos faz pensar que estamos em conjunção o tempo todo, nessa asfixia planetária que estamos passando com esse vírus”, disse ela. “Todos esses acontecimentos do mundo nos fazem criar narrativas”, refletiu e continuou: neste momento de crise de saúde, política, econômica, social que estamos vivendo, que mitos estamos criando agora, com o que a gente está furando a normalidade e como estamos nos questionando para dar um outro curso para o mundo? 79


UM NOVO CURSO PARA O PLANETA A conversa foi marcada pelas indagações existenciais que o momento da pandemia está impondo para a sociedade. Luiz Alberto Oliveira entrou na conversa dizendo que a ciência é uma forma do espírito humano dialogar com fenômenos do mundo e que, graças a esse conhecimento, podemos “conversar” com os vírus, com planetas distantes, vulcões e etc. “Nesse sentido, a ciência é parecida com a arte: nos faz mergulhar no desconhecido e tornar o desconhecido um interlocutor, alguém ou algo que conversa conosco.” Ele faz uma comparação interessante, ao refletir que a ciência permite que a gente se reforme constantemente e que com a arte o processo é muito parecido, pois é uma forma de o espírito mergulhar nos acontecimentos, no vazio, no desconhecido e extrair novas formas. Ainda versando sobre ciência, o cientista explicou que essa área do conhecimento é composta de formas relacionais, enquanto as formas que a arte explora são expressivas: como determinada coisa coloca nosso espírito em movimento e o reformula? Como o encontro com uma música, uma pintura, nos afeta enquanto indivíduos? Para ele, nós estamos vivendo um momento em que a existência humana juntamente com um agente biofísico, o vírus, estancou o funcionamento da máquina-mundo. “A civilização humana foi detida em poucas semanas. Um surto virou uma epidemia que virou uma pandemia, e em menos de três meses 3 bilhões de pessoas estavam isoladas. Nunca se passou algo parecido com isso, na escala que estamos vivendo. Podemos dizer que estamos vivenciando uma nova etapa, de um novo tempo, de uma nova época – a época que os estudiosos chamam de antropoceno, ou seja, a época em que nós, humanos, nos reconhecemos como a força de transformação de alcance planetário.” Ou seja, nossas ações podem afetar as 80


mais diferentes áreas do mundo como um todo. No passado não era assim, já que nossas ações eram mais limitadas, afirmou Luiz. “Hoje não, estamos vivenciando um impacto [dos humanos] em escala planetária. Toda a humanidade está sendo afetada por esse agente biofísico.” Estamos vivendo o prelúdio desse novo tempo, em que vai ser fundamental para todos nós nos darmos conta do alcance da nossa presença. “Hoje, ser humano implica em um grau de transformação do nosso ambiente, do contexto em que estamos, que necessariamente irá se rebater sobre nós mesmos”. A natureza não é algo que simplesmente nos envolve, é algo que se rebate sobre nós de tal maneira que nossas ações voltam sobre nós mesmos. Luiz conclui seu raciocínio dizendo que este momento é um novo estágio da civilização, e nós precisamos da ciência, da arte, da filosofia e da cultura, sobretudo, para podermos navegar nesses tempos de transformação intensa. Antes de passar a palavra para Duília de Mello, Stela refletiu que esse momento que vivemos exige de nós a relação com outros vetores. “Os problemas não vêm empacotados em áreas de conhecimento e, sim, entrelaçados”, disse ela, que seguiu ponderando sobre a importância da interligação dessas áreas para que haja a conscientização de que precisamos uns dos outros. 81


Duília deu início às suas reflexões considerando que 2020, para ela, “evaporou, e a gente não o viveu, mas, ao mesmo tempo, nunca vivemos tão intensamente um ano como o passado”. Nunca se pensou em cantar, celebrar, tocar um instrumento em frente ao computador, mas há muito tempo se faz ciência desse modo. Por isso, o cientista teve menos dificuldade de se adaptar ao seu trabalho, disse a astrônoma. A gente teve que se adaptar à falta de calor humano e diversos problemas estão vindo na esteira, como o deterioramento da saúde mental e o enfraquecimento de muitas relações. “Tenho certa curiosidade em saber o que a História vai revelar deste período que estamos vivendo.” A professora dividiu com os demais participantes uma interessante história astronômica. No início da pandemia, contou, os astrônomos achavam que uma estrela explodiria na constelação de Orion. Ela ficou torcendo para que isso acontecesse, pois além de o mundo testemunhar um evento astronômico grandioso, que formaria um corpo celeste iluminado do tamanho da lua no céu, Duília tinha esperança que tal acontecimento desencadeasse uma mudança nas pessoas e, até, unisse os povos. Para ela, a explosão da estrela abriria espaço para as discussões profundas sobre 82


a química das estrelas e como seus compostos, como carbono, oxigênio, hidrogênio, estão presentes em todos nós, humanos. Ela contou que refletiu muito sobre esse fenômeno não concretizado durante a pandemia: “Por que não usamos este momento para nos unir em vez de desunir?”, questionou ela, que disse também pensar sobre o que está acontecendo agora em Marte, que recebeu o jipe Perseverança, da Nasa, em busca de indícios de vida passada no planeta vizinho. “Essa deveria ser uma nova oportunidade de nos unirmos e falarmos de nossa própria existência.” Para a astrônoma, encontrar vida em outro planeta seria revolucionário e mudaria nossa realidade para sempre. “Acho que nunca se falou tanto em ciência quanto agora e é a ciência que vai nos salvar.” Já está nos salvando, aliás: Duília citou o exemplo dos Estados Unidos, país onde vive, que está vacinando em massa e rapidamente. “Vejo esse momento de transição, em que a gente está indo para o Iluminismo, em que estamos saindo daquele momento da crise e começando a renascer e a trazer a boa-nova mais uma vez”, disse a professora, fazendo uma previsão: “A ciência vai nos salvar novamente quando a gente tiver que resolver o maior problema que a humanidade vai encontrar nas próximas décadas: o aquecimento global”. Stela disse que é uma felicidade saber que os participantes têm uma visão otimista do presente e do futuro, pois está, pessoalmente, achando este momento que estamos vivendo muito complicado. Ressalta que as consequências sociais e políticas no Brasil são muito preocupantes. “Esse olhar conectivo de vocês me dá uma força, uma carga de vitalidade e talvez isso fure a nossa normalidade.” Para a mediadora, essa conversa “galáctica” faz pensar que somos um pequeno planeta neste cosmos tão amplo, um planeta que tem vida no meio da imensidão. E que nós precisamos nos unir: considerando a ciência, as artes, os conhecimentos ancestrais. “Precisamos uns dos outros para fazer o planeta acontecer, confrontar o que é limitador para nós, confrontar aquilo que não permite que a vida se manifeste em sua singularidade.” 83


Para isso, ponderou, temos que pensar globalmente: os problemas que vivemos no Brasil não são só nossos, são problemas planetários, e “talvez a gente precise se juntar com outros povos, outras profissões, ouvirmos os mais velhos e as crianças”. “O vírus não nos uniu, mas ele nos juntou, e nos mostrou que estamos todos suscetíveis, não importa se estamos em um país rico ou pobre, se moramos na periferia ou no centro”, apontou Stela. Analisando as ponderações da mediadora, Luiz disse que “todas as nossas ações de produção de conhecimento, de ação técnica, de inovação têm dimensão política, na medida em que política é da ordem do coletivo do humano” e que, por isso, “a produção de cultura ganha uma dimensão política fundamental na medida que ela permite que nós vislumbremos as pontes que vão permitir que conectemos o passado de onde viemos para o futuro para onde vamos. A construção dessas pontes é nossa tarefa comum enquanto pessoas, enquanto cidadãos, brasileiros ou não. Esse entendimento que o legado dos nossos ancestrais precisa ser transmitido para as gerações que vêm aí e que isso é absolutamente essencial na nossa própria humanidade. E esse entendimento não ocorre só na cidade, no bairro, na região ou estado – ele tem essa dimensão planetária, porque nenhum domínio do planeta não está sendo, direta ou indiretamente, afetado pelo conjunto das nossas ações.” O curador finalizou sua reflexão afirmando que hoje temos a noção que o “progresso” a todo custo é muito agressivo para o meio ambiente e para nós também, e que é necessária uma outra visão “de não mais expandir no espaço, mas no perdurar no tempo”. Já dispomos dos meios para fazer isso, o que falta é decisão política. Duília completou o raciocínio dizendo que essas consequências das ações que tomamos enquanto sociedade são determinantes para o nosso futuro. “O futuro da humanidade depende de ações em escala planetária”, afirma. Para ela, precisamos de soluções que tenham grande impacto no planeta e que sejam duradouras, de modo a transformar o planeta em um local sustentável, habitável e melhor. 84


Stela contribuiu dizendo que embora muitas vezes a gente se junta com pessoas da mesma profissão, do mesmo lugar, para agir e reagir; talvez o melhor caminho seja optar pela heterogeneidade, de forma a nos unirmos aos não iguais para trabalharmos juntos as possibilidades de existência no planeta.

RELAÇÕES ARTÍSTICAS Stela chamou para a conversa o professor de Literatura Roberto Zular, que seguiu refletindo sobre as perspectivas de futuro. “Talvez a coisa mais importante que a gente tenha para fazer é produzir mundos, é perceber que o mundo não está dado e que nossa ação neste mundo é decisiva para o mundo que nós vamos ter.” Para o pensador, a gente vive um dos momentos mais dramáticos da relação entre a ciência e as outras práticas, que constituem a nossa relação com a vida, com o mundo, com a natureza e o universo. “O mais importante é a gente criar conexões, e onde a gente mais tem falhado é nisso: 85


é cada um fechado na sua bolha, na sua esfera, na sua área de conhecimento, seja ela artística, médica, científica. A gente tem criado poucas conexões”. Essa conectividade seria fundamental neste momento de pandemia, segundo ele. “A dissonância entre a nossa experiência sensível e aquilo que estamos vivendo é problemática.” Zular contou que foi no século 19 que a noção de vírus se notabilizou, principalmente com a noção de célula. Ele explicou que havia uma certa dificuldade na aceitação dessas pequenas partículas e que isso se reflete ainda hoje, afinal, vivemos um momento em que a eficácia das vacinas é colocada em xeque por grupos negacionistas. Mas como a arte responde à complexa relação com a natureza, com esses seres invisíveis e com os muitos modos de ver a natureza? Paul Valéry, autor francês que há décadas é objeto de estudo de Zular, tinha interesse em entender como fica o lugar da poesia diante dos mitos que nos antecederam e como podemos responder às demandas do mundo contemporâneo. O professor citou o escritor: “a poética da ciência é muito potente como transformação e compreensão do mundo material e sensível”; e ela se co86


loca do lado oposto daquilo que estamos vivendo no Brasil, de dúvidas e questionamentos sobre o real. Zular explicou que a arte para Valéry consistia na poética da materialidade com uma poética da significação, no limiar entre as coisas e as ideias, entre o mundo e a linguagem. É a partir daí que ele passa a pensar em outros modos de existência da arte. “Para produzir mundos a gente tem de ser capaz de sair do nosso mundinho e compor outros mundos”, disse. Hoje, a ciência precisa dialogar com o mito e, a partir daí, reconstruir e compor esses mundos, relacionar esses diferentes protocolos de verdade, entender os modos pelos quais a gente habita essa relação com a natureza e com o universo. Se a gente for pensar na arte, ela seria aquilo que mais próximo nós temos do mito, tão importante para os povos antigos, no mundo ociental. É na arte que encontramos alguma ressonância desse mundo mítico e no estabelecimento de novas ligações com a natureza. Os participantes concluem suas reflexões sobre o futuro com o seguinte pensamento: aceitar a heterogeneidade do mundo e tentar reconstruí-lo através dos diferentes pontos de vista é a saída para um melhor entendimento e um planeta onde reinem relações mais humanas. 87


“Penso que há um problema na educação, que tem pouca escuta para as perguntas das crianças e os professores, muitas vezes, se fazem poucas indagações. Na verdade eles reeditam perguntas já existentes e olham para a educação como solucionadora de problemas e não como geradora de problemas que se encontram com os problemas do mundo.”

_Stella Barbieri

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“Eu acho que nunca se falou tanto em ciência quanto agora e é a ciência que vai nos salvar.”

_Duília de Mello


“O mais importante é a gente criar conexões, e onde a gente mais tem falhado é nisso: é cada um fechado na sua bolha, na sua esfera, na sua área de conhecimento, seja ela artística, médica, científica. A gente tem criado poucas conexões.”

_Roberto Zular

“A produção de cultura ganha uma dimensão política fundamental na medida que ela permite que nós vislumbremos as pontes que vão permitir que nós conectemos o passado de onde nós viemos para o futuro para onde nós vamos. A construção dessas pontes é nossa tarefa comum enquanto pessoas, enquanto cidadãos, brasileiros ou não.”

_Luiz Alberto Oliveira

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PARTICIPANTES

Paulina Chamorro, jornalista especializada em temas socioambientais, foi responsável pela criação de estratégias de comunicação ambiental por mais de dez anos no Grupo Estado, recebendo duas vezes o Prêmio Socioambiental Chico Mendes, como melhor programa de rádio. Em 2016 recebeu a Medalha João Pedro Cardoso, condecoração do Governo do Estado de São Paulo, a única distinção ambiental do país. Apresenta o podcast Vozes do Planeta, é colaboradora da NatGEO e co-fundadora da Liga das Mulheres pelos Oceanos.

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MEDIAÇÃO

RESTAURAÇÃO DO PLANETA: O QUE TEMOS A VER COM ISSO?

Ailton Krenak, ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas, organizou a Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia. É comendador da Ordem de Mérito Cultural da Presidência da República e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. É autor do já clássico “Ideias para adiar o fim do mundo”. Vanessa Gabriel-Robinson, jornalista e gestora de políticas públicas de cultura e meios digitais radicada no Reino Unido. Trabalhou no Navegar Amazônia no Amapá e em outros projetos itinerantes na Amazônia. Foi gestora de projetos no British Council e gerente de inovação na Queen Mary University. Atualmente, é gerente do Digital Talent Programme, da Prefeitura de Londres, que cria oportunidades no setor de tecnologia para jovens, mulheres, negros e imigrantes. É uma das fundadoras da Escola Livre da Amazônia (ELA).


Vitor Leal Pinheiro, graduado em comunicação social pela Universidade de São Paulo e pós-graduado em Ciência Política pela FESP-SP e em Gestão de Sustentabilidade pela FGV/SP. Trabalhou por dez anos como redator e planejador e, desde 2012, dedica-se exclusivamente ao terceiro setor e causas socioambientais, coordenando campanhas da Oxfam, no Greenpeace e, atualmente, no escritório do PNUMA do Brasil. Atuou nas pautas de energias renováveis, mobilidade urbana e hoje coordena a campanha Mares Limpos de combate ao lixo no mar.

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O relógio do fim do mundo se aproxima das 12h. Mudanças climáticas, aquecimento global, consumo e lixo em excesso. Junto com esse quadro de desastre ambiental, a diversidade natural e cultural do planeta está sob ameaça também, formas inteiras de vida e de cultura. Quando olhamos esse estado crítico é preciso lembrar que há uma cultura que sustenta as crenças que nos conduzem para o desastre. E que um dos papéis mais importantes da cultura é inspirar e comunicar imagens diversas para sonhar e agir no mundo. A cultura pode ser um quarto pilar do desenvolvimento sustentável? O que está na agenda das políticas culturais sobre esse tema? 92


Mudanças climáticas, aquecimento global, consumo e lixo em excesso. Junto desse quadro de desastre ambiental, a diversidade natural e cultural do planeta está sob ameaça também, com formas inteiras de vida e de cultura em perigo de desaparecimento. A que horas a badalada final para o fim do mundo irá ressoar? Quando olhamos o mundo nesse estado crítico é preciso lembrar que há uma cultura que sustenta as crenças que nos conduzem para o desastre. E que um dos papéis mais importantes da cultura é inspirar e comunicar imagens diversas para sonhar e agir no mundo. A partir dessas indagações que a jornalista especializada em temas socioambientais Paulina Chamorro, mediadora da mesa Restauração do Planeta: o que temos a ver com isso, conduziu uma conversa sobre temas importantes para o nosso presente e que têm impacto direto em nosso futuro. O debate foi ao ar no dia 26 de março durante o CIF TALKS CULTURE (RE)START e contou com as participações do ativista Ailton Krenak, da jornalista Vanessa Gabriel-Robinson e do gestor do terceiro setor Vitor Leal Pinheiro.

PROCESSO DE RESGATE De início, Paulina chamou Ailton Krenak à conversa e perguntou: suas últimas reflexões têm passado pela desconexão com o planeta e a sociedade de consumo. Uma coisa decorre da outra, as duas coisas são separadas ou tudo faz parte da mesma coisa? “É tudo junto, um produz e retroalimenta o outro. Nada acontece separado na atmosfera do planeta Terra. Há muito tempo fomos alertados que uma pedrinha jogada no oceano causa reação em todo o sistema. Só que nós achávamos que isso era só uma metáfora, que habitava o plano da filosofia, mas há materialidade, está relacionado com o nosso consumo de energia dentro do planeta.” Com esse pensamento, o autor e ativista explicou que nós estamos consumindo energia de forma desordenada, causando grande desequilíbrio. 93


Paulina interviu refletindo que a ideia da vida, de que ela está presente em tudo, é uma tese muito bonita sobre a qual o escritor fala e descreve em sua obra A Vida Não é Útil (2020). A mediadora questionou, então: neste momento de pandemia, com medos e limitações, o que deveríamos aprender urgentemente? “Nós pensamos que somos capazes, individualmente, de aprender novas coisas que poderão nos ajudar a viver neste mundo com essa complexidade toda. Essa ideia é um pouco ingênua”, respondeu Ailton. “Essa ideia individual do consumo é um desastre porque individualmente a gente não consegue fazer a mudança em hábitos: hábitos são coletivos. O consumo de água não é uma coisa que uma pessoa muda, precisa de uma educação ampla, coletiva. Precisamos de processos inteligentes de informar, orientar, educar as pessoas não individualmente, mas como coletivo.” Segundo Ailton, não adianta apenas ser a pessoa mais correta do ponto de vista ambiental, isso é apenas um elogio ao ego. Para ele, esse comportamento não altera de verdade nosso modo de consumir o mundo, e a ideia de sustentabilidade só funciona se pensada coletivamente. Em cima dessa fala, Paulina perguntou: ainda dá tempo de salvar o planeta? O que podemos fazer para nos levarmos a um processo de reconexão com o mundo? “O caminho exige primeiro uma conexão entre pessoas, temos de desenvolver afetos entre nós. Precisamos constituir comunidades e para isso temos de superar muitos de nossos preconceitos, muitas das nossas práticas terroristas de vida. Tem que acontecer uma transformação com o humano para que ele possa recuperar uma memória de comunidade, pois, do contrário, não tem como desenvolver afeto com o planeta”, respondeu Ailton. Ele ressaltou que fala de comunidade no sentido de afeto, distante da noção econômica e sociológica. “Nós temos que nos afetar por toda a constelação de seres que fazem parte de nosso planeta.” Para ele, se chegarmos nesse ponto, conseguiremos viver a experiência que os pajés e xamãs chamam de “suspender o céu”, apoiada na ciência, na experiência humana, no saber. “A ciência tem sido muito aviltada, as pessoas querem negar que estamos vivendo uma mudança climática radical. Não tem ne94


gociação, com a mudança climática ou a gente muda de direção ou morre”, concluiu.

NATUREZA HUMANA Vitor Leal Pinheiro e Vanessa Gabriel-Robinson se juntaram a Paulina, que disse que a restauração do planeta passa também pelo ser humano. “Vivemos num planeta com uma complexidade de vida fabulosa, com um processo confortável de vida que a gente teve até agora, se a gente olhar para toda a história do planeta. Mas a Terra está doente por ações de uma das espécies que aqui habitam, que é a nossa. A gente recebeu um freio de arrumação para o planeta, a Covid-19: essa pandemia que o mundo vive é mais um dos alertas desse organismo vivo para dar um toque para a ilusão de grandeza que a humanidade tem”, considerou a mediadora. Ela seguiu o raciocínio afirmando que consumimos demais, retiramos florestas, poluímos com plásticos os oceanos. E refletiu: temos que fazer as pazes com a natureza e não há outro caminho para isso senão repensar as 95


relações de consumo, assumir as nossas responsabilidades, nos enxergarmos como uma espécie que contribui para essa teia da vida, e não como uma espécie que só demanda ou, pior, que só deixa problemas. A gente tem tempo? Como a gente se conecta, mesmo estando em um ambiente urbano, com os povos da floresta? Como disse Paulina, tudo está conectado, e é cada vez mais urgente falar sobre isso. Ela, então, chamou Vanessa para a conversa e perguntou: como dar voz às pessoas e como você enxerga a regeneração do planeta passando pelas relações humanas? “Acredito muito que a cultura pode criar e sustentar relações”, afirma Vanessa. “Agora a gente tem a oportunidade de reimaginar os processos que estávamos fazendo até então. Acredito que a gente tem que ir um pouco mais fundo e pensar que tipo de narrativa cultural a gente está criando.” Para ela, ainda existe na sociedade uma visão de certa forma elitista sobre que tipo de cultura deve ou merece ser mais divulgada, estudada ou patrocinada, e há que se furar essa bolha para criar novas pontes e narrativas. “Uma cultura inclusiva dá a oportunidade de as pessoas reconhecerem a sua diversidade e de essas pessoas terem voz. Enquanto o setor cultural seguir dominado por homens brancos, héteros, do eixo Rio-São Paulo, as vozes diversas vão continuar sendo um discurso de sustentabilidade e apenas um discurso. E acho que a gente precisa sair da lógica do discurso e ir para a lógica do fazer, mudar os processos, ouvir, por exemplo, o que os amazônidas estão produzindo com nosso próprio conhecimento”, refletiu. As desigualdades na Amazônia são complexas, disse a jornalista, porque temos uma política local complicada e um contexto nacional que pouquíssimas vezes ouviu as vozes da região; além disso, internacionalmente ainda há uma visão muito estereotipada da região. A narrativa local tem de ser ouvida e não ficar refém do colonialismo e nem de curto prazo. “É preciso dar tempo para que a complexidade local seja discutida com mais profundidade.” Segundo Vanessa, esse é um projeto de longo prazo e quem chega com um discurso de sustentabilidade, sejam empresas ou ativistas, têm que escutar os locais. 96


A mediadora pediu a palavra e fez uma reflexão sobre o respeito a esses espaços e sobre como o discurso de paz com a natureza e sua regeneração vem já em forma de alerta. “A poluição plástica é consequência de uma sociedade de consumo que chegou em um limite absurdo”, afirmou. Em seguida, chamou Vitor, que se ocupa da poluição nos mares. O especialista começou sua exposição falando do programa da ONU para o qual trabalha. “O PNUMA é uma organização baseada em ciência. Estuda o meio ambiente para entender como estamos lidando e quais os impactos e o estado do meio ambiente no mundo todo a cada momento.” Segundo ele, a ideia do órgão é produzir conhecimento avançado para desenvolver uma agenda ambiental mundial. Vitor falou também da chamada Década de Restauração, contando que na Assembleia-Geral da ONU de 2019 se percebeu que os 17 ODSs (sigla para Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que consistem em objetivos ambiciosos e interconectados que abordam os principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil e no mundo) não podem ser aplicados se a gente não começar a restaurar os ecossistemas. “A velocidade com que a gente cria problemas é imensa. Os nossos últimos 200 anos foram mais intensos, mas a poluição plástica, por exemplo, tem só 50 anos. Na verdade, foi de 20 anos para cá que começou a ficar terrível. A nossa capacidade de produzir explodiu, e olha essa questão da 97


narrativa: o plástico é incrível e é descartável; só que ele não é, ele é para sempre, porque ele leva 400 anos para degradar”, relata. “Como a gente construiu narrativas que dizem que a gente deve continuar a explorar indefinidamente o planeta? Não tem mais espaço, a gente está no cheque especial do planeta faz tempo. A ideia de criar uma Década de Restauração é olhar para isso, é uma forma de alinhar esforços.” Segundo Vitor, é fundamental refletir sobre como que a gente, numa ação conjunta e colaborativa, caminha juntos nessa direção. “A ideia é que até 2030 a gente tenha criado mecanismos e iniciativas para proteger os ecossistemas que estão intactos e começar a reparar aqueles que foram degradados”, contou ele. “A gente precisa fazer isso já. Viramos as costas para a natureza como se não fizéssemos parte dela.”

UMA NECESSIDADE BÁSICA Paulina levou a conversa, então, para outro aspecto, levantando questões alimentares. Ela falou da relação do açaí e da tapioca com a cultura amazônica e questionou o “sucesso” que esses alimentos fazem fora das comunidades do Norte do Brasil. Vanessa, que é amapaense radicada em 98


Londres, contou que, quando era criança, o açaí era item básico na alimentação de sua família e que, hoje, por causa da produção exacerbada com objetivos de exportação, as comunidades encontram dificuldades de adquirir o produto localmente por um preço justo. “A gente não consegue compreender ainda como essa forma de consumir, de ser hype, está criando um grande processo de desigualdade nessas comunidades produtoras. O açaí, como o cupuaçu e a tapioca, não é só um alimento, eles fazem parte do conhecimento cultural dessas comunidades.” Para ela, é importante criar outras relações culturais, incentivos e patrocínios, que ajudem as comunidades a não depender mais de abrir mão daquilo que elas produzem para sobreviver. A mediadora conduziu o fim da conversa chamando novamente Vitor para refletir sobre restauração e questionou: como envolver as pessoas nesse chamado e nas questões do oceano, componentes tão importantes que vão diretamente na direção do consumo, que passam pelo coletivo, mas também pelo comprometimento individual? Para Vitor, há uma urgência em reconhecer o valor da floresta em pé, dos recursos naturais, da água para que essa conscientização venha de forma mais orgânica. “A Terra é um organismo conectado e tudo começa pela gente. Temos começar sendo o exemplo do que queremos para o mundo.” 99


“A ciência tem sido muito aviltada, as pessoas querem negar que estamos vivendo uma mudança climática radical. Não tem negociação, com a mudança climática ou a gente muda de direção ou morre.”

_Ailton Krenak

“A Terra está doente por ações de uma das espécies que aqui habitam, que é a nossa. A gente recebeu um freio de arrumação para o planeta, a Covid-19: essa pandemia que o mundo vive é mais um dos alertas desse organismo vivo para dar um toque para a ilusão de grandeza que a humanidade tem.”

_Paulina Chamorro

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“Uma cultura inclusiva dá a oportunidade de as pessoas reconhecerem a sua diversidade e de essas pessoas terem voz. Enquanto o setor cultural seguir dominado por homens brancos, héteros, do eixo RioSão Paulo, as vozes diversas vão continuar sendo um discurso de sustentabilidade e apenas um discurso.”

“A gente virou as costas para a natureza como se não fizéssemos parte dela.”

_Vitor Leal Pinheiro

_Vanessa Gabriel Robinson

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PARTICIPANTES

Marta Porto, crítica da cultura, jornalista e escritora. Tem participado das principais arenas internacionais de debates sobre artes, cultura e políticas culturais nos últimos 25 anos. Vem liderando ou colaborando com programas das Nações Unidas, de governos e fundações sociais em projetos de democracia cultural, comunicação cívica e engajamento social. É autora de mais de 40 artigos publicados em revistas e coletâneas de vários países, e autora dos livros: Imaginação, Reinventando a cultura (Pólen Editora, 2019), Comunicação no centro da mudança (Approach, 2017), Nós do Morro, 20 anos (XBrasil, 2008) e Olhares femininos, mulheres brasileiras (Ed.Senac Rio, 2006), dentre outros.

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MEDIAÇÃO

REIMAGINAR A CULTURA: FUTUROS POSSÍVEIS E COMO CONSTRUÍ-LOS

Evandro Fióti, cantor, compositor, produtor audiovisual e empresário, lidera o Laboratório Fantasma, hub de entretenimento que inclui gravadora, editora, produtora de eventos e marca de streetwear. Desde 2009, a empresa trabalha com o propósito de transformar a realidade do mercado da música e da moda, colocando a cultura das ruas no protagonismo e preenchendo a lacuna existente de negócios que valorizem a estética e cultura negra e periférica. Vanessa Gabriel-Robinson, Sílvio Meira Cientista, professor e empreendedor brasileiro com atuação na área de engenharia de software e inovação. Atualmente é professor associado da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV e professor emérito do Centro de Informática da UFPE. Atualmente é cientista-chefe da TDS. company, professor extraordinário da CESAR.school e presidente do conselho do Porto Digital.


Batman Zavareze, designer, fotógrafo, diretor, produtor e cinegrafista, é curador do Multiplicidade, festival que funciona como plataforma cultural contemporânea regular, com foco na formação de público e fomento à produção de conteúdo multilinguagem digital.

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O que sobra da imaginação após a catástrofe? Como podemos repensar a relação entre criação artística, arte, cultura e a sociedade? É possível imaginarmos um parlamento de ideias que funcione como bússola filosófica para novas fronteiras para as artes, a cultura e nossas comunidades? As ideias que definem nosso mundo hoje ainda resistem às evidências e às necessidades de mudança? Como podemos viver em paz e com menos conflitos violentos? Muros e fronteiras são necessários? Há outras formas de nos organizarmos coletivamente? 104


Esses questionamentos permearam a conversa conduzida pela crítica da cultura, jornalista e escritora Marta Porto com Evandro Fióti, cantor, compositor, produtor audiovisual e empresário, Silvio Meira, cientista, professor e empreendedor brasileiro, e Batman Zavarese, designer, fotógrafo, diretor, produtor e cinegrafista. O papo aconteceu durante a sexta mesa do CIF TALKS CULTURE (RE)START, evento ao vivo, transmitido no dia 27 de março, e que teve como tema Reimaginar a Cultura: futuros possíveis e como construí-los. Em sua introdução, Marta disse que o Brasil vive uma espécie de zona de guerra por causa do caos instaurado pós-pandemia. “É preciso escavar os escombros, descobrir caminhos, inspirações e o que as pessoas estão fazendo para resistir a este momento – resistir no sentido de criar, inventar, propor, integrar, dialogar e conectar com experiências práticas, que hoje acontecem em comunidades, nas escolas, no meio empresarial e na área de artes e ciências”, refletiu. “É o momento de encontrar frestas de luz para que a gente possa entender este país e o mundo, que está passando por um processo de aceleração muito grande – aceleração essa que, talvez, o Brasil não esteja acompanhando.” Segundo ela, estamos isolados no processo de aceleração global, e esse processo se dá na economia, nas áreas tecnológicas e na compreensão de que modelo econômico e político a humanidade precisa para viver de uma maneira mais pacífica, justa, menos desigual e menos concentradora. Ao pensar no Brasil, provocou os convidados: como chegamos a este ponto, em que se naturaliza as milhares de mortes pela pandemia, a brutalidade? Que escolhas fizemos que nos trouxeram até aqui e como e quando iremos sair dessa realidade caótica que se instaurou?

BLOCO TESTEMUNHAL Marta chamou Silvio Meira ao papo, e o intelectual deu início à sua fala contando que começou a programar computadores em 1973. Segundo ele, embora mais de 4 bilhões de pessoas estejam hoje conectadas via 105


redes sociais em todo o mundo, o Brasil não criou um plano de massa efetivo para incluir digitalmente a população. Por causa desse não planejamento, a educação durante a pandemia está pagando o pato, com milhões de jovens sem acesso ou com acesso precário às aulas a distância. “Primeiro, conectar um país do tamanho do Brasil é uma problemática de décadas e nós não fizemos isso nos primeiros 25 anos da internet. Segundo, você preparar as pessoas para serem atores de primeira grandeza no novo ambiente econômico habilitado pelo digital, no qual uma parte significativa da economia passa a ser digital first, quando a gente está vendo uma dispersão global das agências. Se eu souber falar inglês com uma fluência mínima e programar computadores, o meu mercado de trabalho é o mundo”, disse. “Não construímos essa crise agora, ela vem sendo construída há muito tempo. A gente tem um problema estrutural no Brasil de educação para cidadania no sentido amplo. Não estamos falando só de cidadãos que podem fazer escolhas políticas de primeira qualidade, mas, mais de uma vez, em debates sobre cidadania e educação, eu tenho arguido por uma posição que o primeiro papel da educação é criar competências e habilidades para o mercado. O substrato disso é a gente ter condições de entender, política e, socialmente, o que está acontecendo nos mercados e na sociedade ao nosso redor.” Silvio fez uma interessante comparação do momento da Covid-19 com uma catástrofe de outra ordem: “Ser atingido por um vírus na escala global que fomos é diferente de ser atingido por um meteoro na loteria cósmica. Ser atingido por meteoro faz parte de processos que nós não podemos controlar. Ser atingido por um vírus faz parte de incompetência, de desentendimento, do fato de a gente não ter criado nos últimos 200 ou 500 anos uma rede verdadeiramente global de nações que se entendem, competem e colaboram umas com as outras”, explicou. Para ele, o coronavírus mostrou que enquanto a gente não for capaz de criar sistemas verdadeiramente globais, o futuro do planeta seguirá sendo uma incógnita. Marta chamou a atenção para os muitos pensadores que, como Silvio, pedem soluções e iniciativas de caráter mais global e que o cerne disso está na ideia de cooperação, mas organizações internacionais criadas no pós-guerra não foram capazes de criar esse ambiente. 106


Evandro Fióti tomou a palavra e disse estar exausto de não enxergar um fim para este momento que vivemos e que não vê a solidariedade presente na fala dos demais participantes nem no dia a dia das pessoas nem institucionalmente. “Pego um gancho na fala do Silvio para falar do meu papel nesta mesa. Desde antes de saírmos da África, o povo que sempre teve esse espaço sufocante, tendo sempre que lutar para viver, foram as populações negras e indígenas. E mais uma vez estamos tendo a possibilidade de ver como esses modelos de sociedade pautados pelo capitalismo produzem o distanciamento de nossa própria humanidade e que isso nunca foi o centro das civilizações africanas e indígenas”, afirmou, contudente. “Acho que se a gente quer encontrar de fato uma alternativa para continuar sobrevivendo no planeta Terra, como disse o Silvio, não tem como a gente radicalmente interromper esses processos que foram acabando com toda e qualquer possibilidade de civilidade, de respeito ao ser humano, de respeito ao indivíduo e a todos os seres que habitam o planeta Terra. Esse é o momento de a gente radicalizar as políticas públicas, radicalizar o afeto, de radicalizar e descentralizar riquezas urgentemente.” A sociedade civil se movimentou para aprender algo e mudar com a pandemia, mas o campo político, não, de acordo com a percepção de Fióti. As pessoas negras e mais vulneráveis seguem morrendo, e isso não está 107


ligado à pandemia. “O Brasil escolheu a pobreza, a fome, o massacre individual e coletivo, sabendo que as populações que mais sofreriam com isso seriam as mais marginalizadas.” Para ele, quando votou para presidente, o Brasil escolheu viver “com a política de morte, que atinge mais as pessoas negras e mais vulneráveis”. Fióti falou também sobre seu trabalho no Lab Fantasma e sobre como a equipe fez da empresa um negócio inclusivo, e reafirmou a importância de ser idealista e se unir a outros idealistas para fazer frente à desigualdade – há urgência em salvar vidas e em transformar a sociedade, e por meio do ambiente de negócios eles tentam fazer isso. O empresário citou o geógrafo Milton Santos, que afirmava que a globalização era uma nova forma de colonização, agora com as multinacionais podendo adentrar territórios, impor seu jeito de pensar e gerar riqueza explorando outros povos, além de dominar a cultura local. Fióti acredita que a cultura vai possibilitar que o ser humano reflita sobre o caminho que a gente deve seguir, mas ponderou: é importante que espaços institucionais e políticas públicas se comprometam a seguir o mesmo pensamento. E isso passa pela conservação do meio ambiente e preservação da biodiversidade. “O tempo da natureza não é o tempo do homem”, 108


refletiu, ao dizer que talvez a gente não tenha tempo de consertar aquilo que está gravemente prejudicado. Marta aproveitou o gancho para falar sobre o amanhã, dizendo que o lugar da ancestralidade é muito importante para a gente pensar o futuro. Segundo ela, olhamos muito pouco para aquilo que já temos. “Não existe a ideia de cooperação se não existe a abertura para um campo sensível que é o afeto.” O Lab Fantasma, disse, deu contribuições inestimáveis para o Brasil, e o documentário AmarElo, produzido por Fióti, que é irmão do rapper Emicida, um exemplo de resistência afetiva. Pensando em escolhas, Marta compartilhou que “em uma mesa que estamos falando em repensar o futuro, temos que refletir sobre o que nos trouxe a este presente.” O artista Batman Zavarese agradeceu a mediadora, que, em contatos anteriores, o “ajudou muito a escutar o que não está claro”. “Como uma pessoa do campo visual, majoritariamente, o que eu tenho entendido nesta pandemia é que para ver melhor a gente vai ter que escutar, vivenciar uma nova experiência de escuta, dentro de todos os campos. A gente está vivendo este embate do bem e do mal, da utopia e da distopia, direita e esquerda, e acredito que o que vai vencer é a gente ampliar nossa escuta para chegarmos a futuros maiores e melhores.” Marta destacou uma frase do artista, que propôs que os convidados e espectadores pensassem em “como a arte pode ajudar a encontrar novas saídas.” “A gente fala muito de criatividade no Brasil, mas não consegue olhar para isso. O Brasil é um país de ‘gambiarras’ e que não consegue encontrar nisso uma potência econômica nem de cooperação.” E, então, ela perguntou: é possível reencantar este país, nas linhas de força que temos?

EDUCAÇÃO PRIMEIRO “Há uma instituição e um conjunto de organizações na sociedade que é responsável pela programação da sociedade: a escola”, disse Silvio. Con109


cordando com Marta, ele afirmou que um grande problema no Brasil é que, embora o povo seja muito criativo, não consegue transformar isso em economia. É o mesmo que pensar em diversidade: por que não conseguimos usá-la em nosso favor? Ele mesmo respondeu: “Porque não investimos em ciência e em tecnologia. A gente tem uma tendência, também, de olhar para a gambiarra e dizer ‘já está bom isso aqui’”, e analisa: “Uma coisa fundamental que a gente precisa entender no Brasil: seas desigualdades educacionais e de conhecimento forem mantidas, não temos futuro.” Segundo ele, o Brasil precisa de mais economia, não só de criatividade, e de mais tecnologia, não só gambiarra. “Isso é cultura”, concluiu. Fióti comentou que a gente sempre foi ensinado a pensar educação do ponto de vista colonizador. “O processo de aprendizado é sempre uma troca. Falta em entendimento do processo educacional no país sob essa ótica, que valoriza o que o europeu ensinou, mas deixa de lado a nossa ancestralidade.”

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“É preciso escavar os escombros, descobrir caminhos, inspirações e o que as pessoas estão fazendo para resistir a este momento – resistir no sentido de criar, inventar, propor, integrar, dialogar e conectar com experiências práticas, que hoje acontecem em comunidades, nas escolas, no meio empresarial e na área de artes e ciências.”

“Não construímos essa crise agora, ela vem sendo construída há muito tempo. A gente tem um problema estrutural no Brasil de educação para cidadania no sentido amplo. Não estamos falando só de cidadãos que podem fazer escolhas políticas de primeira qualidade, mas, mais de uma vez, em debates sobre cidadania e educação.”

_Marta Porto

_Silvio Meira


“O Brasil escolheu a pobreza, a fome, o massacre individual e coletivo, sabendo que as populações que mais sofreriam com isso seriam as mais marginalizadas.”

_Evandro Fióti

“A gente está vivendo este embate do bem e do mal, da utopia e da distopia, direita e esquerda, e acredito que o que vai vencer é a gente ampliar nossa escuta para chegarmos a futuros maiores e melhores.”

_Batman Zavarese

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PARTE 3

EXPERIMENTOS POÉTICOS

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ITAMAR VIEIRA JUNIOR Leitura de trechos de “Torto Arado”

Escritor baiano formado em Geografia e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Vencedor do prêmio Jabuti de literatura com Torto Arado (2020).

Fechamento da conversa: Artes e Cultura para aprender e educar 118


DANI NEGA

Leitura sampleada de trechos de ‘Nada digo de ti, que em ti não veja’ de Eliana Alves Cruz. Dani Nega é atriz, MC, compositora e ativista do movimento negro e LGBTQI+. Atua junto a importantes grupos de teatro como “O Crespos”, “Coletivo Negro” e “Núcleo Bartolomeu de Depoimentos”. Participa em batalhas de Slam como poeta e MC e em 2020 lançou seu primeiro EP solo, “Como Noiz Quiser”.

Fechamento da conversa: Reset no mundo | Cultura, democracia e bem-estar 119


SIDNEY SANTIAGO E ELENCO DO ESPETÁCULO “HELP” Intervenção poética.

Sidney é um ator e sociólogo premiado, de grande destaque na cena de São Paulo. Pesquisa a memória negra nas artes do palco, e faz parte do Fórum da Performance Negra. Protagonizou a série Carandiru e atuou na minissérie Queridos Amigos da rede Globo.

Fechamento da conversa: Novas narrativas, vozes diversas 120


NATALIA BARROS E DANIEL SCANDURRA Homenagem a Augusto de Campos.

Natalia Barros é uma das criadoras do grupo teatral XPTO, cantora, poeta e diretora. Idealizadora do projeto LANDSCAPES - improvisos de música e poesia, com o músico Benjamim Taubkin. Tem dois livros de poesia publicados, sendo o mais recente “NUVENS ORNAMENTAIS” (2016).

Fechamento da conversa: Insights de futuro: Projetos de mundo pela ciência e artes 121


BRISA FLOW

Performance poética musical Brisa Flow é descendente do povo Mapuche. É cantora, arte-educadora, compositora, MC, poeta e performer. Atua como ativista pelo direito de demarcação de terras indígenas. Um dos principais expoentes do futurismo indígena no Brasil, mistura influências latina com rap, eletrônico e neo/soul.

Fechamento da conversa: Restauração do planeta | O que temos a ver com isso? 122


MANIFESTO por BATMAN ZAVAREZE 123


BATMAN ZAVAREZE

Intervenção poética/audiovisual Designer, fotógrafo, diretor, produtor e cinegrafista, é curador do Multiplicidade, festival que funciona como plataforma cultural contemporânea regular, com foco na formação de público e fomento à produção de conteúdo multilinguagem digital.

Fechamento do evento: Reimaginar a cultura | Futuros possíveis e como construí-los 124


BELIEVE: VÍDEO DE ENCERRAMENTO Este vídeo é um panorama de momentos, imagens, falas, inspirações, encontros e trocas que atravessaram o festival lançando um “até breve” e torcendo pelos encontros que virão. Um presente de agradecimento para você que nos acompanhou e para tantos artistas, criadores, pensadores, técnicos e profissionais que fizeram esta edição histórica acontecer.

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Realização:

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Parceria Institucional:

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