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SEGUNDO SEMESTRE
2014 ISSN 1984-056X
PANORAMA DAS ARTES CÊNICAS TAMbéM NESTA EDIçãO
O IMPACTO DOS FESTIVAIS DE MÚSICA NAS ÚLTIMAS DéCADAS 11 OLHARES SObRE A ObRA DE FRANZ KAFKA 90 ANOS DEPOIS DA SUA MORTE
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
08
10
44
DIFUSãO CULTURAL
ARTES CÊNICAS
múSICA
08 As ações desenvolvidas pelo programa Arte
10 Artigo de Sidnei Cruz, criador do projeto
44 Violonista Daniel Wolff, coordenador do
Sesc no ano de 2014 contribuíram para a
Palco Giratório, aborda as especificidades da
formação de cidadãos mais conscientes
função de curador
Festival de Violão da UFRGS e professor do V Festival Internacional Sesc de Música, faz uma síntese do impacto dos festivais ao
18 A jornalista Michele Rolim, em Por uma cena mais híbrida, traça um panorama da produção teatral no Rio Grande do Sul 22 O teatro de rua no Brasil e as tendências apresentadas nos festivais internacionais é o tema do artigo de Alexandre Vargas
longo dos tempos, em uma mistura de arte, criatividade e educação 48 A trajetória do trompista esloveno Andrej Zust, da Orquestra Filarmônica de Berlim, que estará no V Festival Internacional Sesc de Música, em Pelotas, em janeiro de 2015
32 Caderno de Teatro: a dramaturgia da recepção do Grupo XIX de Teatro (SP), a partir dos relatos da atriz Janaina Leite e do diretor Luiz Fernando Marques
DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Luiz Carlos Bohn
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
Jane Schöninger
Coordenadora de Cultura
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. General Zeca Neto, 1085 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403
Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de maio, 1871 55 3352.6225 3352.2154 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
49
54
60
CINEmA
ARTES VISUAIS
LITERATURA
49 No artigo Cinema com cara de televisão,
54 Exposição Só lâminas, com pinturas,
60 Para celebrar os 90 anos da morte de Franz
a cineasta e professora Flávia Seligman
vídeo e escultura sonora do inquieto
Kafka, 11 escritores retratam aspectos de
analisa o padrão estético das comédias de
e transformador Nuno Ramos, um
uma obra que continua viva e cada dia mais
costumes produzidas pela Globo Filmes e seu
dos mais produtivos artistas plásticos
atual, com organização de Luciano Bedin
mérito em reaproximar o público e o cinema
contemporâneos do Brasil, circulará
nacional; porém, questiona se não é o
pelo Rio Grande do Sul a partir do
momento de pensar em uma cinematografia
segundo semestre de 2015, pelo Sesc
69 Leitura
brasileira mais diversificada, para além da 57 Os vencedores e destaques do
formação de plateia
XI Concurso Sesc de Fotografias, com o tema Futebol além do campo
BALCÕES SESC/SENAC
NúCLEO DE ATENDImENTO
Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de moura Jardim, 1250 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das missões R. marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 3º andar 55 3423.5403 Santiago R. Pinheiro machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
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Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento
Vitor mesquita
Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte
Clarissa Eidelwein (mTb nº 8.396) Edição e Reportagem
Greice Zenker
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.500 exemplares
CAPA
Foto de André Feltes do espetáculo Miragem, da Cia. Rústica (RS)
segundo seMesTRe
2014
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CuLTuRA E BEm-ESTAR Levar atividades culturais para as grandes cidades e para os cantos mais longínquos do Rio Grande do Sul faz parte das ações sistemáticas desenvolvidas pelo Sistema Fecomércio-RS/Sesc. Por meio do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte, buscamos proporcionar às comunidades momentos de bem-estar e propiciar a criação de uma rede de encontros entre as pessoas. Não é por acaso que, somente em 2014, as ações do Arte Sesc somaram mais de 1,9 mil atrações, que percorreram mais de 150 municípios. Esses dados nos orgulham e estimulam a seguir trabalhando diariamente na promoção das mais variadas manifestações culturais. Através da descentralização da cultura e da formação de plateias, cumprimos com o nosso objetivo de ampliar as atividades do Sistema Fecomércio-RS/Sesc, demonstrando sua relevância social e a diferença que a instituição faz na vida das pessoas. Nas próximas páginas, será possível conferir reportagens, entrevistas e artigos sobre teatro, música, cinema, artes visuais e literatura. No campo das artes cênicas, Sidnei Cruz assina artigo sobre as funções da curadoria, enquanto Michele Rolim e Alexandre Vargas traçam um panorama das produções de teatro de sala e de rua no Rio Grande do Sul e no Brasil. Já na música, Daniel Wolff analisa o impacto dos festivais de música ao longo do tempo; e conheceremos o trabalho do trompista Andrej Zust, da Orquestra Filarmônica de Berlim e que estará no Festival Internacional Sesc de Música. Entre outros temas, apresentamos ainda nesta edição os vencedores do XI Concurso Sesc de Fotografias e um ensaio sobre os 90 anos da morte de Franz Kafka. Boa leitura!
LUIZ CARLOS BOhN
LUIZ TADEU PIVA
PRESIDENTE DO SISTEMA FECOMéRCIO-RS/SESC/SENAC
DIRETOR REGIONAL SESC/RS
segundo seMesTRe
2014
Espetáculo Marcha para Zenturo, do Grupo XIX de Teatro (SP) Foto: Divulgação Grupo XIX de Teatro
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DIFUSÃO CULTURAL
segundo seMesTRe
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mAIS ARTE, mAIS CIDADANIA O PROGRAmA ARTE SESC – CuLTuRA POR TODA PARTE, PRESENTE Em TODO O RIO GRANDE DO SuL, PROmOVE A fORmAÇÃO DE PESSOAS mAIS CONSCIENTES PARA AS ARTES E mOVImENTA A CADEIA CuLTuRAL, CRIANDO OPORTuNIDADES PARA ARTISTAS E PRODuTORES Orientadas pela diversidade, pela descentraliza-
O Circuito Palco Giratório oferece um pa-
ção e pela abrangência, as atividades realizadas
norama da produção nacional com apresenta-
em 2014 consolidam cada vez mais o Sesc/RS
ções em diversas cidades do interior. Entre os
como um dos principais promotores de cultura
grupos que circularam estão Cia. Solas de Vento
do Estado. As ações contemplaram as diversas
(SP), Grupo Anônimo de Teatro (RJ), Coletivo Ar-
manifestações artísticas – artes cênicas, música,
tístico As Travestidas (CE), Núcleo do Dirceu (PI),
cinema, artes visuais e literatura – e endossa-
Cia. Dançurbana (mS), Grupo Vilavox (BA), além
ram a preocupação da entidade com o caráter
da Cia. Gente Falante (RS) com o espetáculo
educativo que contribui para o desenvolvimento
Louça Cinderella. O 9º Festival Palco Girató-
dos cidadãos.
rio Sesc contou com os espetáculos integran-
Uma das ações culturais mais importantes
tes do circuito nacional do projeto, espetáculos
do Estado, o projeto Rio Grande no Palco facilita
convidados, grupos locais e regionais. O evento,
o acesso a produções teatrais diversificadas e de
um dos principais do calendário cultural de Porto
qualidade. Com uma programação consistente e
Alegre, aproximou o meio artístico, promoveu ex-
sistemática de teatro adulto, infantil, teatro de
periências e ofertou à comunidade uma variada
bonecos, teatro de objetos, teatro de rua, circo e
programação que contemplou a diversidade de
dança, valoriza as produções com referencial no
estilos, propostas e manifestações. O foco dessa
meio cultural, promovendo a troca de experiên-
edição foi a apresentação de repertórios de gru-
cias entre os grupos e o público. Destacaram-se,
pos como: Grupo xIx de Teatro (SP), Cia. Luna
em 2014, a circulação dos espetáculos Eu estive
Lunera (mG), Cia. Rústica (RS), entre outros.
fESTIVAL
PALCO GIRATóRIO
SESC 60 ESPETáCuLOS 51 GRuPOS 99 SESSõES
aqui (Porto Alegre Cia. de Dança), Hoje sou hum, amanha sou outro, Casa das especiarias (Terpsi Cia. de Dança), Também queria te dizer – cartas
masculinas (com Emílo Orciollo), Tóin - dança para bebês (Cia. muovere), Incidente em Antares (Grupo Cerco), Natalício Cavalo (Cia. Rústica), entre outros. Destinado aos estudantes das redes públicas de ensino, o projeto Teatro a Mil levou uma programação de teatro infantil a diversas cidades, fortalecendo a ação de formação de plateia com o público escolar.
942 SESSõES DE TEATRO 102 ESPETáCuLOS TEATRAIS 93 GRuPOS DE TEATRO 47 CIRCuITOS DE TEATRO
DIFUSÃO CULTURAL
segundo seMesTRe
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Na área de artes visuais, destacaram-se as exposições itinerantes
O projeto Cine Sesc privilegia a formação de público e
Carlos Vergara viajante – Experiências de São miguel das missões;
o desenvolvimento artístico cultural, com exibição de fil-
Um homem a caminho, de Iberê Camargo; A medida do gesto – um
mes, realização de mostras, debates e oficinas de cinema
panorama do acervo mACRS (museu de Arte Contemporânea do
e vídeo. Além das produções brasileiras, intensificou-se a
Rio Grande do SuI), todas acompanhadas de projeto pedagógico,
disponibilização de sessões com filmes estrangeiros, em
além de Instruthuras – Exposição Fotográfica de Bebeto Alves.
especial por meio de mostras como A América por John Ford e Encontro com o Cinema Alemão, uma parceria com
49 exposições de artes visuais
85 períodos de exposições em 26 cidades
Bebeto Alves, Cidadão Quem, Rosa Tattoada, Loma e Grupo Chão de Areia, Luiz marenco, João de Almeida Neto, Cesar Oliveira e Rogério melo, Grupo mas Bah, além da cantora francesa maissiat (parceria com Aliança Francesa).
Românticos anônimos e Como arrasar um coração. No
2ª temporada e Filé de borboleta e outros causos, parceria
Sesc e nos teatros de instituições parceiras, em forma-
sentaram pelo Sesc Música em 2014, destacam-se
os filmes medianeras, O sétimo selo, Pina, Esses amores,
cidades do todo o Estado dos filmes Borghetti na estrada –
fundida pelos quatro cantos do Estado nos palcos do
abertos à comunidade. Entre os nomes que se apre-
produções não veiculadas na grande mídia, destacaram-se
Cinema de Rua, foram realizadas sessões em praças de
A pluralidade musical brasileira foi interpretada e di-
to de circuitos, apresentações únicas ou em eventos
o Goethe-Institut. No Cine Sesc em Salas, que prioriza
503
com o projeto Curtas Gaúchos da RBS TV, entre outros.
sessões de cinema em 68 cidades O Sesc/RS desenvolveu diversas ações literá-
188 sessões de música 76 espetáculos musicais 70 artistas/grupos
rias de estímulo à leitura, como hora do conto, sarau poético, roda de leitura, recreio cultural, oficinas literárias, encontro com escritores. As
189
oFICInaS do PRojeTo SeSC MaIS LeITuRa
atividades permitem o acesso a uma diversidade de gêneros literários e esta descoberta do prazer pela leitura é promovida pela mediação realizada nas bibliotecas.
Outros projetos que divulgam a música brasileira são o Concerto Banco Sesc de Partituras, que estimula a formação de grupos de câmara, e o Sonora Brasil – Formação de ouvintes musicais, com programações identificadas com o desenvolvimento histórico da música no país e que teve como tema
Tambores e batuques em 2014. O IV Festival Internacional Sesc de Música solidificou o evento realiza-
45
feiras de livros
1.135
horas de IV festival Internacional Sesc de música contação de histórias 57 profissionais ministrando oficinas 300 alunos de toda a América Latina 44 espetáculos em 13 dias
do em Pelotas como um dos maiores festivais de música de concerto e instrumental da América Latina.
ARTES CÊNICAS
segundo seMesTRe
2014
POR SIDNEI CRUZ
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DRAMATURGO, DIRETOR TEATRAL E GESTOR CULTURAL. CRIOU E COORDENOU O PROJETO PALCO GIRATóRIO – REDE SESC DE INTERCâMBIO E DIFUSãO DAS ARTES CêNICAS (DE 1998 A 2007) E PUBLICOU O LIVRO PALCO GIRATóRIO, UMA DIFUSãO CALEIDOSCóPICA DAS ARTES CêNICAS (DANTES, 2010). ATUALMENTE é GERENTE DE CULTURA DA ESCOLA SESC DE ENSINO MéDIO.
Gestão cultural, programação cultural e curadoria são funções similares, porém distintas
SOBRE A CuRADORIA: PISTAS E PEDáGIOS
Espetáculo Till (2010) Foto: Claudio Etges
PODEmOS SEmPRE fAZER AS COISAS DE OuTRO mODO. Howard S. Becker
Neste artigo, estamos ocupados com o mapea-
do devemos, necessariamente, ter em conta que
e diversidade faz a interligação entre as fases, elos
mento de indícios para a abordagem de questões
pessoas dos mais variados tipos e interesses es-
ou estágios que compõem um sistema próprio de
relativas à proliferação de ofícios nos mundos
tão fazendo coisas, prestando atenção umas às
produção e difusão. Sistema esse que, de acordo
da cultura e da arte. A tentativa de delimitação
outras, trocando, combatendo, conspirando, con-
com Teixeira Coelho (1999), pode ser resumido, em
de funções e responsabilidades no âmbito das
fundindo, produzindo desordens no mundo do
termos gerais, a quatro fases (produção, distribui-
“profissões” não visa separar territórios ou erguer
trabalho, em constante cooperação na busca de
ção, troca e uso). Cabe ressaltar o que diz howard
fronteiras definitivas e visíveis entre elas. O ar-
novas respostas para novas situações. Vale lem-
S. Becker, sobre uma dessas fases:
tista, o crítico e o curador exercem, cada qual no
brar que, sobretudo, vamos operar com a ideia de
seu quadrado, o seu próprio ofício, distintamente
que não existe – para nossa análise aberta – ne-
(...) os mundos da arte plenamente
um do outro.
nhuma linha visível ou invisível que possa separar
desenvolvidos criam sistemas de dis-
Não estamos de modo algum defendendo a
esse conjunto cooperativado e colocá-lo em uni-
tribuição que integram os artistas na
ideia de qualquer especialização. Pelo contrário,
dades fechadas, compartimentalizadas ou numa
economia da sua sociedade. (...) E esses
tudo indica que no mundo contemporâneo hou-
geração perpétua de conflitos irreconciliáveis.
sistemas de distribuição, tal como outras
ve uma acelerada disfunção da especialização
Então, nossa pista parece apontar para o caminho
actividades de cooperação inerentes a
enquanto norma. é interessante o que o crítico
que vai dar numa certa “sociologia das profissões
um mundo da arte, podem ser contro-
Felipe Scovino diz: “Aqui é tudo muito precário, o
aplicada aos domínios das artes” e da cultura,
lados pelos próprios artistas. Mas, geral-
curador é crítico, e escreve no jornal, na revista e
ressaltando, no entanto, que a estrada é longa e
mente, quem deles se ocupa são inter-
no catálogo; e ao mesmo tempo ele é pesquisador
que vamos ficar por aqui, na encruzilhada. Como
mediários especializados que, por vezes,
e professor. Atua em diferentes funções; há uma
pensa Becker (2010, p. 79): “Falar da organização
obedecem a interesses diferentes dos in-
promiscuidade” (REZENDE, 2013, p. 17). O que in-
de um mundo da arte (da sua divisão interna em
teresses dos artistas de quem divulgam
tencionamos é contribuir para a problematização
diversos tipos de públicos, de produtores, e dos
as obras” (BECKER, 2010, p. 99-100).
e superação do clima de vale-tudo ou de falta de
indivíduos que constituem o pessoal de apoio) é
critérios na vasta militância “profissional” (e, tam-
outra maneira de falar da distribuição dos saberes
bém, amadora) nos mundos da cultura e da arte.
e do seu papel na acção coletiva”.
Sabemos que, para fazer o sistema cultural funcionar, conforme aponta Antonio Albino Ru-
A ideia de “mundo” é uma abordagem “que
O mundo cultural possui uma dimensão so-
bim (2008), torna-se necessária a ação conjunta
abre múltiplas possibilidades, descobertas no
cial que interage com os mais diferentes lugares
de uma infinidade de profissionais especializa-
curso de uma imersão na vida social” (BECKER,
da sociabilidade atual, seu desenvolvimento se dá
dos – descentralizados, porém articulados por
2010, p. 312). Considerando a metáfora de mun-
por meio de uma cadeia produtiva cuja dinâmica
diversas redes enviesadas de colaboração, com-
ARTES CÊNICAS
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Demonstração de O patrão cordial no assentamento Carlos Lamarca, no município de Sarapuí, no interior de São Paulo Foto: Sérgio de Carvalho
postas por criadores, preservadores, transmissores e organizadores.
O fato é que o senso comum conservador
fissional que atua na área da gestão cultural “(...)
– principalmente aquele que predomina entre
deverá estabelecer uma relação entre as questões
Para o tema em questão interessa falar sobre
os poderes que organizam o mundo do trabalho
artísticas e culturais associadas aos conhecimen-
os organizadores da cultura. Dentre eles, desta-
e as demandas do mercado – procura aglutinar
tos sociológicos, antropológicos e políticos, bem
cam-se os profissionais que podem ser agrupados
e exigir em torno de um mesmo profissional (o
como aos conhecimentos técnicos da comunica-
em dois setores estratégicos. Aqueles que atuam
técnico especializado em cultura) funções dia-
ção, economia, administração e direito, aplicados à
na esfera executiva criando leis e diretrizes, tanto
metralmente opostas. é recomendável conside-
esfera cultural” (CUNhA, 2007, p. 125).
no poder público (secretários e ministros) quanto
rar que ser um profissional generalista não é a
Em relação ao programador cultural, o dife-
nas empresas privadas (diretores, gerentes e asses-
mesma coisa que ser um profissional com mul-
rencial na atuação desse profissional está no fato
sores), e aqueles que atuam na esfera da práxis,
tiplicidade de recursos e habilidades. E o pro-
de que ele age na escala territorial local, articulan-
no âmbito da sociedade civil (produtores, progra-
fissional melhor qualificado é aquele que possui
do pontos de contato direto com a comunidade e
madores, gestores e curadores). Os organizadores
uma diversidade de saberes com uma intensida-
com seu cotidiano, descobrindo e mapeando os
pesquisam, formulam, planejam, selecionam e or-
de acima da média, ou seja, com mais conheci-
problemas e desejos da comunidade, suas carac-
ganizam a cultura e suas políticas em vários níveis.
mento do que simplesmente informação.
terísticas e seus conflitos, estabelecendo linhas de
São esses organizadores que agem cotidianamente
A capacidade de mobilidade social que o pro-
nas cidades, formando uma constelação de prati-
fissional da cultura possui de migrar de um para
cantes culturais (CERTEAU, 1994) integrados, inde-
vários setores do mundo cultural, de acordo com
Tal imersão na cotidianidade suscita uma
pendentes ou outsiders do sistema cultural.
as demandas do ambiente no qual ele atua, não
indagação padrão que ressoa na cabeça do pro-
integração com a vida cotidiana dos cidadãos que habitam e formam o bairro ou a cidade.
A diversidade e as tênues fronteiras entre
garante a obtenção de resultados eficazes. Geral-
gramador cultural como uma martelada do tipo
os campos de atuação e as especificidades téc-
mente, caímos na tentação de confundir três fun-
“em nome de quê é possível programar?” Esta é a
nicas de cada um dos membros dessas tribos
ções similares, porém, distintas: gestão cultural,
questão colocada pelo pesquisador, crítico e gestor
de praticantes culturais geram muita confusão
programação cultural e curadoria.
cultural português, António Pinto Ribeiro:
operacional. A confusão se deve, principalmen-
O gestor cultural é o profissional que articula
te, ao fato de alguns acharem que o profissional
e compatibiliza instrumentos gerenciais, recursos
Para tentar responder a esta questão,
da cultura é – senso comum – um generalista,
técnicos especializados, programas, ações, proje-
talvez seja oportuno referir dois pre-
um cara que é bem informado sobre todas as
tos e atividades, com vistas a alcançar uma eficá-
ceitos que qualquer programador deve
esferas da cultura e da arte, ou seja, sabe um
cia nas relações entre instituições, investimentos,
considerar. O primeiro tem a forma de
pouco sobre muita coisa.
eventos e consumidores de bens culturais. O pro-
pergunta: O que sabes que os outros não
ARTES CÊNICAS
segundo seMesTRe
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sabem, que legitima escolheres e decidi-
pessoas, espaços, equipamentos e outros diversi-
res? A resposta pessoal a esta questão é
ficados recursos que consolidam a ação cultural.
crucial porque nela está contida a legiti-
A ação local é a mediação entre o possível e o
midade e a responsabilidade de qualquer
impossível no mundo, no jogo de considerações e
programação. (...) Uma programação im-
situações a partir das demandas dos indivíduos e
plica sempre uma escolha. E uma esco-
dos grupos no cotidiano da cidade. Quando nos re-
lha determinada, de entre as variedades
ferimos à ação local, ao específico do lugar-cidade,
possíveis de escolha, significa que uma
é bom atentarmos para o que diz Sloterdijk (2000,
programação é muito mais do que a
p. 48), ou seja, cuidar para não tomar o público
soma de um conjunto de actividades.
como rebanho:
Essa escolha implica uma certa ordena-
A ação cultural deve ser fruto de um laborioso processo de mesclagem entre reflexão e intuição Para Luis Melo (2010) Luis Antonio-Gabriela (2012) Insone (2013) Faladores (2012) Fotos: Claudio Etges
ção do mundo a partir da ideia de uma
Desde O político, e desde A república,
comunidade de afectos, de eleições ide-
correm pelo mundo discursos que falam
ológicas, de visões desse mesmo mundo.
da comunidade humana como um par-
Nela está sempre presente a consciência
que zoológico que é ao mesmo tempo
de que não só incluo como excluo e, ao
um parque temático; a partir de então, a
excluir, não posso esperar que a progra-
manutenção de seres humanos em par-
mação seja do agrado geral, seja unifor-
ques ou cidades surge como uma tarefa
me (RIBEIRO, 2000, p. 53-54).
zoopolítica. O que pode parecer um pensamento sobre a política é, na verdade,
é na esfera local que o programador cultu-
uma reflexão basilar sobre regras para
ral interagirá e realizará mediações que envolvem
a administração de parques humanos.
ARTES CÊNICAS
segundo seMesTRe
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13
(...) homens são seres que cuidam de si
cidade real, mas à cidade como ideia”. Escapar
seus equipamentos ativos e inativos. Pois, como
mesmos, que guardam a si mesmos, que
dos discursos que produzem modelos de cida-
pontua Canclini (2000, p. 99):
– onde quer que vivam – geram a seu
des, decifrando “sistemas materiais de represen-
redor um ambiente de parque.
tação”, percebendo a interseção entre a cidade
São escassos os estudos empíricos na
escrita e a cidade vivida, entre o imaginário e
América Latina destinados a conhecer
Daí a importância da escuta e do olhar do
o real. Portanto, não existe cidade perfeita, a
como os artistas procuram seus recepto-
agente provocador para a ação local, sentidos
cidade real está em permanente construção e
res e clientes, como operam os interme-
indispensáveis para a elaboração de um dese-
demolição, decadência e renovação.
diários e como respondem os públicos.
nho de programação possível. A inquietação se
Toda cidade é composta por várias comuni-
Também porque os discursos com que
faz sempre a partir da indagação sobre o que
dades, onde vínculos são negociados em escalas
uns e outros julgam as transformações
fazer no lugar-cidade. Beatriz Sarlo (2014, p.5)
variadas. As comunidades demarcam as flutuações
da modernidade nem sempre coincidem
sugere pistas sobre como olhar e sentir a cidade
e os fluxos da cidade, criando um teatro de ações,
com as adaptações ou resistências per-
contemporânea, ela a percebe como um calei-
fundando e articulando jogos de espaços, mobi-
ceptíveis em suas práticas.
doscópio de estranhamentos, como um corpo
lidades sociais, inventariando aquilo que Michel
grávido de crise econômica, repleta de situações
de Certeau chama de “lugares praticados”. Uma
Os intermediários são os mediadores sociais
invisíveis para uns e materialmente bizarras
prática feita não só de memória e narração, mas
que fazem interagir as diferentes formas de ma-
para outros, tomada por lutas de contrastes.
também de delimitação de fronteiras e de inter-
nifestações culturais da sua cidade, manipulando
“A cidade não oferece a todos a mesma coisa,
locuções. Uma prática que se apropria do espaço
todo um arsenal de comunicação direta e indireta.
mas a todos oferece alguma coisa”. Beatriz Sarlo
e “introduz uma contradição dinâmica entre cada
Eles são os pontos de conexão entre os diferen-
adverte – na pista de Borges – para a atenção
delimitação e sua mobilidade” (CERTEAU, 1994, p.
tes públicos e as diferentes experiências culturais
que devemos ter com “as ficções que podem ser
209-17). A programação dialoga com a cidade –
potencialmente espalhadas por todos os cantos da
lidas como ‘teorias da cidade’, não referentes à
ela própria é a medição por excelência – e com os
cidade mapeando necessidades e desejos, prepa-
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rando o terreno para os encontros, questionando,
deria existir um número infinito de pú-
estimulando os sentidos do público.
blicos dentro da totalidade social. (...)
A ação cultural (no caso, o nosso foco está
é algo que se cria a si mesmo e se orga-
centrado nas artes cênicas) deve ser fruto de um
niza a si mesmo; se autogera e se auto-
laborioso processo de mesclagem entre reflexão
gestiona, e por isso radica o seu poder,
e intuição. Um plano de programação deve ser
assim como sua elusiva estranheza.[1]
substancialmente um “laboratório experimental”, comportando tanto a realização e a verificação
A programação cultural é um conjunto de
de novas concepções, métodos, técnicas e tecno-
projetos e atividades organizados por um período
logias de planejamento, administração e execução
longo. O programador cultural trabalha necessa-
de projetos quanto a proposição de atividades
riamente com projetos regulares, de formação e
especiais e inéditas. Entretanto, em hipótese algu-
expansão do gosto médio e de alcance mais amplo
ma descuidando da manutenção e sistematização
das plateias. Seu foco é a educação dos sentidos, o
daquelas atividades e projetos que comprovada-
desenvolvimento de hábitos culturais, a ampliação
mente são eficazes quanto aos seus objetivos, rea-
da sensibilidade dos públicos por meio de exercí-
lizações e resultados alcançados. A ciência e a arte
cios de fruição e acesso à diversidade cultural.
de programar dependem do exercício sistemático
No espaço do artigo nos limitaremos a anali-
deste equilíbrio entre a regularização e a inovação.
sar comparativamente as funções do curador e do
Pois, experimentar é avançar sobre o que já foi
programador cultural, percebendo as semelhanças
conquistado, empurrando para o novo, tendo sem-
e diferenças dos dois ofícios. Evidentemente que
pre como suporte o que foi feito anteriormente.
muitas características, atitudes e habilidades são
Elaborar um plano de programação de atividades
comuns aos dois profissionais e, no mundo das
cênicas é dispor as ideias de tal maneira que elas
ações coletivas, elas podem ser intercambiadas.
sejam transformadas em instrumentos eficazes,
Mas curadoria não é a mesma coisa que programa-
capazes de mapear um itinerário, no sentido de
ção cultural. Certamente que as questões de méto-
atingir o objetivo principal: o público.
do acerca da curadoria são infinitas e subjetivas e,
O público só aflui aos espaços culturais
em sua maioria, importantes e válidas no amplo e
quando há uma oferta de atividades. Mas para
complexo quadro da vida cultural contemporânea.
programar é necessário saber que público é esse.
Mas o que é mesmo um curador? O que é mesmo
é comum se deixar levar pelas suas aparências
que ele faz? Curador cuida de quê? Leonzini (2010,
camaleônicas. Os vários significados de público
p.10) diz que o que os curadores mais fazem:
se misturam e escapam pelo corpo escorregadio
A arte da curadoria cria um recorte na programação para possibilitar uma percepção laboratorial, de tentativas e erros, tanto para o público inquieto quanto para os artistas inventores radicais Adeus à carne (2012) Foto: Claudio Etges
da sociedade civil, sempre em movimento. Pode
é olhar a arte e pensar sobre a sua re-
se referir a uma população organizada, um bair-
lação com o mundo. Um curador tenta
ro, uma comunidade de afinidades e, regra geral,
identificar as vertentes e comporta-
é associado a uma ideia de multidão ou de massa
mentos do presente para enriquecer a
sem rosto ou individualidade. Se falamos de um
compreensão da experiência estética.
público quando nos referimos aos destinatários de
Ele agrupa a informação e cria cone-
uma programação, devemos tomar o cuidado de
xões. Um curador tenta passar ao pú-
não reduzi-lo a uma circunstância de consumo. é
blico o sentimento de descoberta pro-
melhor evitar a zona de conforto e considerar o
vocado pelo encontro face a face com
que sugere Warner (2008, p. 15):
uma obra de arte.
Um público é algo tanto nocional como
há, também, certa insistência em ver seme-
empírico. Também é parcial, já que po-
lhanças de funções em profissionais distintos ajus-
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1 Tradução minha.
tando, no mesmo suporte conceitual, as figuras
criar oportunidades para o surgimento de pro-
de trocas, de influências entre artistas e público.
do crítico e a do curador. é o que mostra Rezende
duções e percepções do futuro.
Estamos diante de uma atitude agenciadora de
(2013, p. 9/10):
A curadoria, quando vista como um modo
possibilidades para o desenvolvimento cultural lo-
particular de agir na sociedade por meio de uma
cal. Neste sentido, podemos dizer que o curador é
Ainda é bastante perceptível como os
ação cultural que pensa a arte como contraponto
um criador. Criador de valores culturais, os quais,
mecanismos de profissionalização no
aos padrões dominantes, imagina um cenário, um
por sua vez, colaboram para a formação de um
Brasil permitem uma frequente e fre-
recorte eventual, construindo uma delimitação
importante tipo de capital, o capital social. Dentre
quentemente afortunada “promiscui-
no tempo e no espaço, para possibilitar leituras
os organizadores, o curador é um tipo específico
dade’ entre o papel de crítico, curador,
possíveis das obras agrupadas num determinado
de profissional que se destaca por sua capacidade
professor, artista, ou seja, diferente e
local (parede, teto, chão, ponte, viaduto, estação
de aliar responsabilidade social e imprevisibilidade
simultâneas articulações de pontas do
do metrô, galeria, teatro, cinema, edifício, ele-
imaginativa. “Discutir o ofício do curador implica-
circuito, rara em outros contextos.
vador, banheiro público, praça, rua, cidade, ter-
ria pensar a sua função social e também o papel
ritório) ou conjunto de lugares e equipamentos
que exerce no campo da educação não formal”
Talvez, pelo fato de que ambos sejam egres-
obedecendo às leis do tempo (duração, período,
(ALVES, 2010, p. 50).
sos do que Rezende (2013, p. 8) chama de “campo
estação, época), promovendo um tipo de media-
A curadoria é um dos principais elos das
da teoria após as inúmeras proclamações do fim
ção diferente com a sociedade. Pois “a principal
conexões contemporâneas entre cultura e ci-
da história, do fim da história da arte e outras pa-
missão do curador, a meu ver”, diz Cintrião (2010,
dade. A atividade curatorial transforma-se em
rusias crítico-conceituais”. O trabalho do curador
p. 41), “é criar métodos e formas de apresentar
ação cultural quando mescla imaginação, ação
é o mesmo do crítico? Vejamos: grosso modo, um
um determinado grupo de obras (ou objetos,
e reflexão. Vira uma ação poderosa que “pene-
curador cuida, conserva e distribui, de maneira
documentos etc.), de maneira a facilitar a com-
tra no tempo presente e viabiliza aquilo que sua
oposta ao crítico que examina, separa e seleciona.
preensão do espectador, buscando acessar todo e
imaginação pré-sentiu, pré-dispôs – ligando-se,
Um curador pensa relações e conexões, o crítico
qualquer tipo de público”.
assim, ao processo cultural concreto” (COELhO,
pensa em rupturas e autonomias. O curador orga-
O curador é aquele que, numa espécie de mo-
2008, p. 93). De modo geral, o curador que faz
niza oportunidades e espaço para as coletividades,
to-contínuo, redefine o seu ofício a cada projeto
a diferença no circuito no qual está inserido é
o crítico legitima modelos e individualidades.
que desenvolve, levando em consideração circuns-
aquele que desvela, revela, descobre uma obra
Uma definição operacional para o concei-
tâncias e arranjos sociais, pois sua maior qualidade
ou artista, um grupo ou movimento. Retira a sua
to de curadoria é a de que ela é uma técnica, um
é a de ser um articulador e construtor de sentido.
descoberta do suposto limbo ou obscuridade, da
pensamento e uma visão das obras em relações de
“Seu ofício de revelar camadas de significação das
margem ou periferia, fazendo-o migrar para a
influências e sentidos organizadas no tempo e no
obras em sua relação com outras obras e contextos
centralidade de outros olhares.
espaço. Uma vertente do trabalho da ação cura-
particulares permanece, a meu ver, instrumento de
torial é basicamente estruturada a partir da apro-
conhecimento” (FERREIRA, 2010, p. 148).
Embora a nomenclatura seja moderna, o ofício do curador é antigo; podemos tomar como
ximação de trabalhos, semelhantes ou diferentes,
O curador é um pensador. Um pensador da
marco importante o século 16, quando surgiram
dispostos lado a lado: “(...) em nosso campo de vi-
práxis, um arranjador de obras em perspectiva utó-
os gabinetes de curiosidades, “pequenas salas-
são, ou mesmo na memória, eles se comunicam e
pica, seja alinhavando narrativas ou estruturando
-enciclopédias onde eram expostos objetos de
se contaminam, não apenas um doando sentido ao
temáticas. A curadoria é um processo de seleção e
toda espécie, como animais empalhados ou vivos,
outro, mas permitindo o surgimento de sentidos
agrupamento de obras artísticas com a finalidade
conchas, moedas, louças, esculturas, enfim, produ-
pela aproximação deles” (ALVES, 2010, p. 55).
de provocar os sentidos, de mostrar tendências,
tos da natureza e do homem, muito difundidos na
Mas a arte da curadoria também investe na
novos ângulos ou diferentes visões de mundo. As
Europa, a partir de 1550” (CINTRãO, 2010, p. 16).
contramão do gosto hegemônico ou homogê-
obras são capturadas nos mais distantes espaços
No século 16, os acervos eram agrupados por toda
neo das plateias. Cria um recorte na programa-
e realidades e reinseridas num novo circuito de
a parede, do alto do teto ao rés do chão da sala,
ção para possibilitar uma percepção laboratorial,
atividades, acontecimentos e vivências sob a for-
catalogadas, reunidas por afinidades, tipos, gêne-
de tentativas e erros, tanto para o público in-
ma de mostras, festivais, residências, encontros ou
ros e arranjos que obedeciam ao gosto – às vezes,
quieto quanto para os artistas inventores radi-
feiras, regidas pelo eixo curatorial com o objetivo
excêntrico – do colecionador, que usava critérios
cais. Neste sentido, as escolhas do curador são
de manter ou modificar seus significados de ori-
pessoais para explicar cada item exposto aos vi-
pelo dissenso, pela margem, na perspectiva de
gem. Esta operação da imaginação cria ambientes
sitantes, “fazendo, na época, o papel que vários
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profissionais exercem até hoje de pesquisador e
Bizantinos e naïfs na plateia estão sen-
A alienação do espectador em favor do
curador a educador (CINTRãO, 2010, p. 20)”.
tados um ao lado do outro, entretanto
objeto contemplado (o que resulta da
Para o curador, sua ética é criar oportuni-
oferecem o exemplo mais flagrante
sua própria atividade inconsciente) se
dades para a nova geração de artistas. O novo, o
de duas qualidades opostas de aten-
expressa assim: quanto mais ele con-
desconhecido, o futuro. Pois sua matéria-prima é a
ção teatral. O espectador naïf adere de
templa, menos vive; quanto mais aceita
reinvenção das relações entre arte e vida. Ela pro-
corpo e alma à trama do espetáculo;
reconhecer-se nas imagens dominantes
põe novos intercâmbios entre o público e a obra,
sua adesão é acrítica. Foi ao teatro para
da necessidade, menos compreende sua
entre o artista e a sociedade. Deseja instigar novos
deixar-se envolver por uma “história”.
própria existência e seu próprio desejo.
modelos de estímulos sensoriais, desenvolvendo os
Transferiu-se para o palco assim que o
Em relação ao homem que age, a exte-
sentidos dos espectadores, ampliando os campos
pano se levantou: é um ator visual. Ago-
rioridade do espetáculo aparece no fato
de recepção.
ra está concentrado na fala dos atores-
de seus próprios gestos já não serem
A curadoria é arte de oferecer diversidade em
-personagens e até imita o movimento
seus, mas de outro que os representa
oposição às padronizações midiáticas. Porém, nes-
dos seus lábios, repetindo interiormente
por ele. é por isso que o espectador não
te terreno, como em qualquer área da humanida-
cada palavra que é pronunciada. Depois,
se sente em casa em lugar algum, pois o
de, não há unanimidade, sempre existiu e existirão
vai até fazer algumas críticas: mas to-
espetáculo está em toda parte (DEBORD,
programadores de arte e diversão que pensam e
das elas dependerão da possibilidade de
1997, p. 24).
pensarão o contrário. Um exemplo antigo que in-
participação que o espetáculo lhe pro-
fluencia até hoje os poderes constituídos é o de
piciou. é o espectador autêntico: uma
Rancière nos convida a pensar em contra-
Juvenal, no império romano, ao criar a fórmula
espécie cada vez mais rara. (...) Ao lado
ponto a Guy Débord, no espectador que ao mes-
“Pão e Circo”:
do naïf, aprecia o espetáculo o espec-
mo tempo “ganha distância” (Brecht) e, também,
tador bizantino. O acontecimento dra-
“perde toda a distância” (Artaud). Para ele, “todo
Quanto às influências bestializadoras,
mático chega até ele filtrado através de
espectador é já actor da sua história; todo o actor,
os romanos já tinham instalado a mais
seus diafragmas culturais. Entrega-se ao
todo o indivíduo de acção, é já espectador da mes-
bem-sucedida rede de meios de comuni-
enredo com cautela. Sua atenção críti-
ma história” (RANCIÈRE, 2010, p. 28).
cação de massa do mundo antigo, com
ca despe o personagem de seu disfarce
Qual é de fato, a essência do espetáculo se-
seus anfiteatros, seu açulamento de ani-
e põe a nu o ator que assumiu a alma
gundo Guy Debord? é a exterioridade. O espetá-
mais, seus combates de gladiadores até
do personagem. Com a mesma frieza,
culo é o reino da visão e a visão é a exterioridade,
a morte e seus espetáculos de execuções
o olho bizantino examina o cenário, as
ou seja, é a privação da posse de si. A condenação
(SLOTERDIJK, 2000, p. 18).
roupas, o jogo de luzes; enquanto isso,
humana do espectador pode resumir-se numa fór-
o ouvido distingue as músicas da cena.
mula breve: “Quanto mais contempla, menos é.”
O curador é aquele que se coloca no lugar
(...) A avaliação que resulta disso diz res-
E aqui, mais uma vez, voltamos ao paradoxo do
do espectador naïf, deixando-se levar pela trama,
peito à direção, estabelece comparações
espectador. Para Rancière (2010, p. 8-9):
aderindo à participação subjetiva que a experiência
com o texto, ratifica o nível dramatúr-
cênica lhe propõe; depois, procura equilibrar sua
gico do roteiro inédito. Dificilmente este
(...) não há teatro sem espectadores. (...)
análise fruidora, considerando aspectos da expe-
espectador concede-se algum momento
Ora, dizem os acusadores, ser espec-
riência apresentada e o potencial inacabado – os
de relaxamento: ele não é uma pessoa
tador é um mal; por duas razões. Em
elementos que foram abafados – que toda obra
que “se entrega” (as exigências do gos-
primeiro lugar, olhar é o contrário de
apresenta no percurso do seu projeto ético-es-
to erigem-se assim em normas de “bom
conhecer. O espectador permanece face
tético. Ele tenta escapar das armadilhas do gosto
gosto”) (FERSEN, 1987, p. 9-15).
a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou a
pessoal ou do bom gosto legitimado pelos especialistas ou “entendidos”, no sentido que Alessandro
O que a curadoria pratica em última aná-
realidade que essa aparência encobre.
Fersen denomina como a atitude do espectador bi-
lise é a arte do espectador. Não o espectador
Em segundo lugar, o olhar é o contrário
zantino, aquele que acredita que o único critério de
envolvido por uma relação ótica passiva, aliena-
de agir. O espectador fica imóvel, pas-
valor é a consideração estética instrumentalizada
do pela sociedade do espetáculo. Cabe lembrar,
sivo. Ser espectador é estar separado
por um saber a priori.
aqui, Guy Debord:
ao mesmo tempo da capacidade de co-
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nhecer e do poder de agir. é preciso um
O curador precisa exercer o papel de um espectador que se entrega à trama do espetáculo e não fica brigando com ele a partir de ideias pré-concebidas
teatro sem espectadores, no qual quem assiste aprenda, em vez de ser seduzido por imagens, no qual quem assiste se torne participante activo, em vez de ser
Para Luis Melo (2010)
um voyeur passivo. Estamos diante de vários problemas e nenhuma solução. A curadoria é um laboratório para o exercício de jogos entre emissores e receptores. Isto, é claro, exige outro modo de pensar as coisas da cultura e das suas políticas. O laboratório do curador é a rua. O curador flana pela cidade, pratica a arte da derivação, observa o que está a sua volta, identifica, seleciona, mistura, relaciona, agrupa, separa, recorta, cria conexões, desconecta, tenta reproduzir e oferecer ao outro o fascínio de uma descoberta, o êxtase de uma experiência vivida enquanto espectador. Um espectador, como exemplifica o pesquisador teatral italiano Alessandro Fersen, mais naïf do que bizantino. Embora este autor apresente o espectador naïf como aquele que se deixa levar pela
Foto: Claudio Etges
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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cialmente é a sua posição de espectador que não
FERREIRA, Glória. Escolhas e experiências. In: RAMOS, Dias Alexandre (org). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre / RS: Zouk, 2010.
tem uma recusa a priori e, sim, uma generosidade
FERSEN, Alessandro. O Teatro, em Suma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.
ao observar e de se deixar afetar. De modo algum,
LEONZINI, Nessia. Apresentação in “Uma breve História da Curadoria”, de Hans Ulrich Obrist. São Paulo: BEI Comunicação, 2010, p.10.
proposta do espetáculo, o que nos interessa espe-
porém, podemos tomá-lo como aquele espectador passivo de que fala Guy Debord. O curador precisa exercer o papel de um
OBRIST, Hans Ulrich. Uma breve história da curadoria. São Paulo: BEI Comunicação, 2010.
espectador que se entrega à trama do espetácu-
RAMOS, Alexandre Dias (org). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre/RS: Zouk, 2010.
lo e não fica brigando com ele a partir de ideias
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa, Portugal: Orfeu Negro, 2010.
pré-concebidas. Ele não toma a si mesmo como
REZENDE, Renato; BUENO, Guilherme. Conversas com curadores e críticos de arte. Rio de Janeiro; Editora Circuito, Lamparina, 2013.
única referência, imagina-se no lugar de outros espectadores, na pluralidade de olhares, de pontos de vistas, de receptores diversos. Baseando-se numa metodologia de tentativas e erros, a ação curatorial contém uma porção grande de subjetividade. Antes de tudo, o curador deve gostar de instigar o cidadão a sentir o prazer de interagir com a manifestação artística. Tanto quanto gostar de arte, o curador precisa amar divulgar o prazer que o desenvolvimento da apreciação artística provoca na vida.
RIBEIRO, António Pinto. Ser Feliz é imoral? Ensaios sobre cultura, cidades e distribuição. Lisboa/Portugal: Edições Cotovia, 2000. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Formação em Organização da Cultura no Brasil. In: Revista Observatório Itaú Cultural. OIC-nº6, São Paulo: Itaú Cultural, jul./set. 2008. SARLO, Beatriz. A Cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. SEN, Amartya & KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento do muno globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2000. WARNER, Michael. Públicos y contrapúblicos. Barcelona, Espanha: Museu d’Arte Contemporani de Barcelona, 2008.
ARTES CÊNICAS
segundo seMesTRe
2014
POR MIChELE ROLIM
18
JORNALISTA E MESTRANDA EM ARTES CêNICAS PELO PROGRAMA DE PóS-GRADUAçãO EM ARTES CêNICAS (PPGAC) DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS). é REPóRTER DOS CADERNOS DE CULTURA DO JORNAL DO COMéRCIO (DE PORTO ALEGRE, RS), RESPONSÁVEL PELA ÁREA DE ARTES CêNICAS.
POR umA CENA mAIS híBRIDA
por conta de suas dimensões e por seu alto custo se torna inviável aos grupos locais. Também houve um acréscimo de editais e premiações para o teatro, como o edital de Montagem e encenação de um texto teatral voltado a novos diretores porto-alegrenses ou o Prêmio Ivo Bender de dramaturgia, ambos uma parceria da Prefeitura com o Instituto Goethe. é claro que tudo isso, de alguma forma, completou-se ao refletir na cena. Começou a acontecer uma aposta em textos inéditos e no uso de novas tecnologias, principalmente no que diz respeito aos entrecruzamentos entre o teatro e a performance.[2] Um dos principais marcos dessa hibridização de linguagens no Rio Grande do Sul foi a estreia do espetáculo Teresa e o aquário (2008), da Cia. Espaço em Branco, com direção de João de Ricardo. A companhia seguiu apresentando espetáculos
O teatro produzido no Rio Grande do Sul, em
Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do
que flertam com a performance como Anatomia
especial em Porto Alegre, segue pulsante, apre-
Sul (PPGAC), com turmas de mestrado, implemen-
da boneca (2010) e a mais nova montagem Pola-
sentando uma pluralidade de grupos, de técnicas
tadas desde 2007, e a possibilidade de abrir em
róides made in dança (2013). Também teve Lapso,
e de estéticas, apesar de enfrentar constantes di-
breve o doutorado.
que fez parte do projeto Sincronário – o dia fora do
ficuldades que vão desde a falta de espaços até
Em termos de espaço, pouca coisa mudou. Os
tempo (2013), que contou com ações dos integran-
verbas insuficientes – isso, somado à luta perma-
grupos ainda disputam três teatros criados na dé-
tes da Vai! Cia. de Teatro e de artistas convidados.
nente de realizar um teatro fora do eixo domi-
cada de 1970 e administrados pela Prefeitura (Tea-
Durante 13 horas foram realizadas 13 performan-
nante Rio-São Paulo.
tro Renascença, Teatro de Câmara Túlio Piva e Sala
ces dentro de um apartamento, tendo o tempo
Nos últimos 10 anos, algumas coisas se mo-
Álvaro Moreyra), e as duas salas da Casa de Cultura
como temática central – e tudo podia ser visto ao
dificaram no cenário teatral da Capital[1]. Novos
Mario Quintana, do governo do Estado, criadas na
vivo pela internet. A Tribo de Atuadores ói Nóis
grupos, companhias e coletivos surgiram, e com
década de 1980 (Sala Carlos Carvalho e Teatro Bru-
Aqui Traveiz também se ateve à performance com
eles outros olhares. Nesse mesmo período, dois
no Kiefer). O que podemos ressaltar em termos de
Onde? Ação nº 2 (2011), que buscou reflexões sobre
novos festivais foram criados em Porto Alegre,
novidades neste sentido é o projeto de residência
o passado ainda palpitante e as feridas que perma-
ambos de caráter formativo, e trouxeram à cidade
artística da Usina do Gasômetro, chamado Usina
neceram abertas pela ditadura militar. Outro grupo
grupos importantes nacionais e internacionais. São
das Artes, que se transformou em lei. Apesar de
que vem propondo ações nesse sentido é o Teatro
eles: o Palco Giratório e o Festival de Teatro de Rua
sucateado, o espaço abriga diferentes grupos, for-
Sarcáustico com os espetáculos BE_once (2009),
de Porto Alegre. Além da consolidação do Festival
necendo espaço e uma ajuda de manutenção.
Porto – a cidade como palco de uma antidiáspora
Porto Alegre Em Cena.
é importante, também, lembrar que surgiu
(2012) e Passaporte para o exílio (2013).
O conhecimento acadêmico se ampliou na
mais um teatro de grande porte na Capital, o Te-
Recentemente, foi possível acompanhar um
área, houve a abertura do curso de Artes Cênicas
atro do Bourbon Country, dentro do shopping de
espetáculo que chamou muita atenção do públi-
da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e a
mesmo nome. Porém, este espaço acaba servindo
co e da crítica especializada: Miragem. Em 2013,
criação do Programa de Pós-Graduação em Artes
mais para receber espetáculos de fora do Estado,
a peça recebeu o Prêmio especial do júri do Tro-
ARTES CÊNICAS
segundo seMesTRe
2014
1 A matéria Três companhias de teatro comemoram 10 anos e falam dos desafios da cena gaúcha publicada no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, em 16/06/2014, realizada pelo repórter Fábio Prikladnicki, serviu de fonte para este artigo. 2 Lembrando que não há uma definição rígida do que é performance em arte, já que se trata de um termo muito abrangente e multidisciplinar, que não se permite classificar. 3 Texto lido na entrega do Troféu Açorianos.
féu Açorianos, por trazer “de forma significativa propostas inovadoras e criativas quanto à forma da encenação (...) alguns dos modos operatórios presentes na montagem deste espetáculo compõem um diversificado e original momento para as poéticas de criação em Artes Cênicas”[3]. Marina Mendo, que assina a concepção dessa montagem, também levou para casa, em 2014, o troféu Destaque do Prêmio Braskem, do Festival Porto Alegre em Cena, por sua proposta de entrecruzamento de linguagens. Eis como esse espetáculo propôs o entrecruzamento de linguagens.
mIRAGEm: um EXERCíCIO SOBRE A PERfORmANCE E A mEmóRIA O espetáculo Miragem tem assinatura da Cia. Rústica de Teatro – que atua há 10 anos na cidade de Porto Alegre, sob direção de Patrícia Fagundes. A montagem marca a estreia do projeto Movimentos Rústicos, em que membros da companhia desenvolvem projetos pessoais. O espetáculo se destaca pela ousadia destes profissionais e seu impacto positivo sobre a produção teatral na Capital. Miragem é realizado pelos dois performers Marina Mendo (que assina a direção geral do espetáculo) e Marcelo Mertins. A direção de cena é de Lisandro Bellotto, da Cia. Espaço em Branco (Bellotto é um dos performers de Teresa e o aquário), e a coreografia de Eva Schul. O espetáculo começa com Marina interagindo com os espectadores na antessala do local onde é apresentado. A atriz pergunta ao público, através de um espelho: “Qual é o seu maior medo?”. A partir disso, o roteiro traz histórias e situações fragmentadas que se desdobram em diversas possibilidades. Ao sair da sala, o espectador não sabe
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Espetáculo Miragem, da Cia. Rústica, recebeu o Prêmio Brasken do Porto Alegre em Cena por sua proposta de entrecruzamento de linguagens: teatro e performance Foto: André Feltes
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dizer sobre o que se trata o espetáculo, pois não
data. Ao final são apresentados, através de um
Esses elementos fictícios e não fictícios ser-
há em evidência um fio condutor. Tem-se, aqui,
vídeo, os personagens reais, relatando por meio
vem de material para a realização de dois víde-
uma das caraterísticas de uma montagem que
de fotos a sua versão da história. Outro registro
os que estão em cena. Em ambos, não se trata
pretende flertar com a performance: “o per-
de memória parte de um pedaço de lona, pre-
apenas de vídeos: são registros de performances
former não pretende comunicar um conteúdo
sente durante toda a encenação no cenário do
que foram feitas pelos atores durante o proces-
determinado ao espectador, mas, acima de
espetáculo, que pertenceu a Sebastian Bonaldo,
so de criação do espetáculo e agora são utiliza-
tudo, promove uma experiência através da qual
dono do antigo Spacial Circo Show (atual Pla-
das na montagem.
conteúdos serão elaborados”[4], explica a atriz,
neta Circo). O circo não tem condições finan-
Durante o espetáculo é projetado um vídeo
performer e professora da Escola de Comunica-
ceiras e tudo é feito de forma precária sob o
no qual Marina, usando o vestido que perten-
ção da Universidade Federal do Rio de Janeiro
risco iminente de acidentes, atmosfera também
ceu a sua avó e que serve de figurino, perambu-
(UFRJ), Eleonora Fabião.
presente na montagem. Essas memórias, ao se-
la pelo centro da capital gaúcha para comprar
Essas narrações são contadas a partir de
rem contadas pelos atores, são ressignificadas,
uma coroa e, na sequência, retorna à Casa de
registros de memórias de histórias reais dos
ou seja, elas não são apenas transpostas para o
Cultura Mario Quintana. Já no outro vídeo, os
atores e de outras pessoas, propondo um jogo
palco, mas passam por um processo de trans-
performers se permitem irem mais longe: Mari-
com os espectadores, o que é bastante frequen-
criação e, por isso, se permitem trair. Confor-
na e Marcelo ficam vestidos de noivos dentro de
te nas encenações contemporâneas: deixar ne-
me afirma a artista e pesquisadora Beth Lopes,
um globo da morte (aqueles que antigamente se
bulosa a linha tênue a qual separa elementos
“lembrar não significa fidelidade aos fatos como
podia ver com mais frequência dentro do circo),
ficcionais de não ficcionais.
eles realmente aconteceram. Lembrar está liga-
enquanto as motos fazem seu número em alta
do ao imaginar, ampliar, omitir” .
velocidade. Ato de risco, talvez, uma metáfora
As memórias contadas no palco são acio-
[5]
nadas a partir de objetos reais que estão pre-
Da forma como essa narrativa é constru-
à vida a dois, e uma referência ao que a família
sentes na encenação, como a de um vestido
ída, fica evidente o entrecruzamento entre o
de circo Bonaldo diariamente enfrenta nas apre-
azul (utilizado pela performer Marina). A roupa
teatro e a performance: “São elementos mar-
sentações do picadeiro: o risco iminente.
pertenceu a sua avó, que a vestia quando foi
cadamente performativos (...) a criação de uma
Esse tipo de performance que inclui o risco
nomeada no baile como rainha do clube de fu-
cena híbrida onde elementos fictícios e não-
também ocorre em outros momentos durante
tebol Atlético Veranense em 1951, em um con-
-fictícios são justapostos e um curto-circuito
a encenação, como quando um dos performers
curso realizado pela Pepsi Cola. Foi nessa festa
representacional é ativado”[6], de acordo com
liga a furadeira e a aproxima do próprio corpo,
que ela encontrou o seu companheiro de longa
Eleonora Fabião.
ou quando o outro performer enfia a cabeça
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4 FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporâneo. In: Sala Preta – Revista da Pós-Graduação em Artes Cênicas ECA-USP, p. 243, 2009. 5 LOPES. Beth. A performance da memória. São Paulo. Revista Sala Preta numero 9, p. 137, 2009. 6 FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporâneo. In: Sala Preta – Revista da Pós-Graduação em Artes Cênicas ECA-USP, p. 242, 2009. 7 FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporâneo. In: Sala Preta – Revista da Pós-Graduação em Artes Cênicas ECA-USP, p. 241, 2009. 8 SCHECHNER, Richard. O que é performance? O Percevejo, Rio de Janeiro, ano 11, n. 12, p. 28, 2003. 9 FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporâneo. In: Sala Preta – Revista da Pós-Graduação em Artes Cênicas ECA-USP, p. 241, 2009.
dentro de um aquário. Assim, durante a ence-
vezes distintas, outras vezes sobrepostas, entre
nação há uma investigação sobre possiblidades
elas está a vida diária.
e limites do corpo, prática recorrente entre os
é possível pensar, então, que, neste tipo de
performers. Pode-se dizer que existe a constru-
encenação, o ator é simultaneamente autor. Pois
ção de uma dramaturgia do corpo, que também
ele também é responsável pela construção da
pode ser visualizada quando, em uma cena, os
cena. Ou seja, não há mais uma hierarquização
dois atores dançam nus. “Tratam-se de experi-
dos elementos em cena, e os performers são tão
ências que possibilitam um confronto cru com
importantes quanto os figurinos, por exemplo.
a fisicalidade, com a metafisicalidade; confronto
Como justifica Eleonora Fabião, “o ator não é
este que, penso, tonifica o atuante para além de
exclusivamente intérprete, mas coautor do es-
gêneros ou técnicas específicas” , afirma Fabião
petáculo, assim como o diretor, o cenógrafo, o
sobre a dramaturgia do corpo.
iluminador, o a figurinista e todos os demais
[7]
Ainda há outras possibilidades performa-
membros da equipe que, geralmente coordena-
tivas exploradas na encenação. Ao som da mú-
dos por um diretor, colaboram para a criação da
sica Quando eu chego, de Raimundo Soldado,
dramaturgia do espetáculo”[9].
Miragem é um desvio na estética que os olhos estão acostumados a buscar em uma encenação Fotos: André Feltes
eles fazem ações cotidianas, como fazer a bar-
Também merece destaque o entrecruza-
ba, se pentear, passar creme no corpo, fazendo
mento de outros elementos na montagem, as-
referência a uma ideia defendida por Richard
sim como não se sabe quando começa e termina
Schechner, um dos pesquisadores e professores
o trabalho do performer, não se sabe o que é
Por fim, Miragem, como o próprio nome diz, é
do departamento de Performance Studies, da
luz e o que é cenário. Pode-se pensar que, neste
um desvio. Desvio da cena tradicional. Desvio
New York University. Para ele, as pessoas têm vi-
espetáculo, há um design visual, pois envolve as
na estética que os olhos estão acostumados a
vido no século 21 através da performance: “Um
interferências sobre fotografias de Rochele Zan-
buscar em uma encenação. E, principalmente,
performer do dia a dia, num ritual, num jogo ou
davalli, os desenhos sobre retroprojetor de Cris
desvio nas poéticas produzidas por grupos e
nas artes performáticas propriamente ditas, faz/
Bastos e Daniel Eizerik; além, é claro, da cria-
companhias do Estado. Que possam surgir mais
mostra algo – performa uma ação.” . O pesqui-
ção de luz de Bathista Freire e da cenografia de
trabalhos os quais estabeleçam e estimulem as
sador aponta oito tipos de performances que
Rodrigo Shalako. Mais uma vez, é possível ver
relações com o universo da performance.
ocorrem em oito tipos de situações, algumas
uma não hierarquização dos elementos na cena.
[8]
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POR ALEXANDRE VARGAS
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DIRETOR DE TEATRO, DIRETOR ARTíSTICO, COORDENADOR-GERAL DO FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE RUA DE PORTO ALEGRE E FUNDADOR DO CPTA – CENTRO DE PESQUISA TEATRAL DO ATOR.
A RENOVAÇÃO, O RISCO E O COmPROmISSO DO TEATRO DE RuA BRASILEIRO O teatro de rua não é filantropia, tampouco é algo
mobilidade, circulação e, consequentemente, sus-
na performance nos espaços coletivos, os espec-
que pode ser feito para possibilitar às pessoas que
tentabilidade.
tadores podem ser colocados em lugares com-
não têm condições de ir ao teatro de ver teatro.
O aumento das manifestações cênicas de rua
Esse pensamento, além de ser uma simplificação,
no mundo, de certa forma, tem a ver com um res-
é uma utilização politicamente perigosa do teatro.
gate do que o teatro já foi um dia. Quem conhece
Os fazedores de teatro sabem que os pri-
pletamente diferentes, não apenas como simples observadores, mas como participantes da ação.
O teatro ressignifica o espaço público desde
a história do teatro e das artes cênicas sabe o po-
meiros “palcos” para as práticas representa-
tempos imemoriais da humanidade. A estrutura
der de ressonância que esse formato de espetáculo
cionais foram os espaços públicos, abertos ou
urbana das cidades oferece possibilidades artís-
teve ao longo dos tempos.
fechados. Em tese, e por tratar-se de um fenô-
ticas infinitas e, ao contrário do que se pensa, o
A rua não é sinônimo de perigo. Na rua, você
meno social, seres humanos têm necessidade
teatro de rua pode demandar mais dinheiro do
pode ter acesso a determinadas experiências que
de ”ser outro”, de imitar alguém, de promover
que o de sala.
não tem dentro de um espaço fechado. No tea-
trocas quanto aos papéis sociais que são obri-
Estar na rua pode ser uma opção artística,
tro de sala, normalmente o espectador se propõe
gados a viver. Antes de terem sido instituídos
política, social e estética, mas também pode ser
como um observador protegido, sentado na sua
espaços consagrados para esse fim, sem pedir
uma estratégia de sobrevivência. O espetáculo de
poltrona, numa plateia escura, quase como se
licença a ninguém e sem ter uma Lei do Artis-
rua possui uma vida útil maior do que os de sala;
não estivesse naquele espaço. No teatro de rua,
ta de Rua, gente movida por objetivos diversos,
logo, significa repertório, mercado de trabalho,
na manifestação de rua, na intervenção urbana,
mas tendo em comum motivações para trocas
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Os franceses da companhia Générik Vapeur apresentaram o espetáculo Bivouac, no Festival Internacional de Teatro de Rua de Porto Alegre, edição 2014
Foto: Fernando Pires
de experiências significativas, vem redefinindo
Podemos pensar que atualmente o ator de
atro de rua ainda convencional e grupos de ar-
os indistintos lugares públicos como espaços de
rua, o performer, também é um dispositivo, um
tistas que estão desenvolvendo outros tipos de
convivências relacionais.
viabilizador de experiências no qual o “outro” é
trabalho e manifestam essa percepção de que a
O teatro de rua, as intervenções urbanas,
parte essencial. é interessante observar que o
rua é um lugar específico. é um espaço imprevi-
as performances de rua são possibilidades de
processo de transformação da sociabilidade tem
sível, onde as dinâmicas relacionais são, muitas
instaurar uma experiência que pode ser trans-
provocado uma mudança na intencionalidade
vezes, incontroláveis.
formadora para o espectador. Portanto, temos
artística e estética que constitui diversas mani-
As manifestações cênicas de rua no contex-
aqui um posicionamento artístico e uma ques-
festações cênicas de rua no mundo. Isso implica
to do cenário do teatro brasileiro de hoje são uma
tão política que é importante e definidora para
na mudança de concepção de teatro de grupo. As
revelação e uma confirmação. Revelação de uma
compreender o gênero, pois esse espectador
pessoas estão se vinculando também a trabalhos
pluralidade de obras que redefinem o espaço ao ar
pode deixar de ser um observador, pode deixar
associativos, não oprimidas por um “diretor de
livre por meio das artes de performance, ou seja, o
de ser um contemplador, pode deixar de ser
consciências”, mas com a percepção de vínculos
teatro, a dança e seus novos formatos. E a confir-
alguém que olha para o ator como um ícone,
diferenciados, suscetíveis a intercâmbios e a es-
mação da riqueza e da legitimidade de inúmeros
como um ídolo. O espectador contemporâneo se
tados moventes.
grupos de teatro de rua que fizeram história no
confronta com um dispositivo do qual tem que se apropriar e, eventualmente, desafiar.
No Brasil, estamos em um momento no qual vemos, ao mesmo tempo, uma ideia de te-
país influenciados pela commedia dell’arte, com seus arquétipos populares universais.
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Os festivais internacionais têm sido uma
século passado. Roger Bernat cria uma cumplici-
ferramenta maravilhosa para o conhecimento e
dade com os espectadores, pois coloca o cidadão,
a divulgação de tendências cênicas mais arrisca-
outra vez, no eixo do discurso da sua importância
das a cada momento. E isso tem objetivos: que os
como protagonista, sendo tão fundamental quan-
profissionais do lugar onde acontecem os eventos
to o próprio artista.
possam conhecer e descobrir outros olhares sobre
Na intervenção urbana Padox dans la cité,
o fato teatral e também o de ajudar a consolidar
a companhia francesa houdart-heuclin cria um
públicos que estejam atualizados com o que acon-
personagem – o Padox é um ser que abandona
tece no universo cênico.
o palco e foge para as ruas, onde passa a atuar
A importância da presença dos grupos inter-
sob a luz do sol – que percorre as ruas, chamando
nacionais de rua no estado do Rio Grande do Sul
as pessoas para uma maneira diferente de olhar
reside no desejo de que a produção local de mani-
a cidade, contrariando a manutenção de um pen-
festações cênicas de rua transcenda as fronteiras.
samento único e demonstrando as várias formas
Que essa dialética tão interessante possa mostrar
possíveis de pensar e reinventar o cotidiano.
as criações que determinam a identidade do nosso
O grupo francês Générik Vapeur, uma das
entorno para contrastá-las com aquelas que vêm
principais companhias de teatro de rua do mundo,
de qualquer parte do mundo. Disso resulta a inten-
em abril de 2014, ocupou as ruas da cidade de Porto
cionalidade, ou as linhas de compromisso e reno-
Alegre com o seu Bivouac, arrebatando os habitan-
vação, de uma característica de interculturalidade
tes que, tomados de susto, emoção, perplexidade,
que, alheia a qualquer tentação de exotismo, possa
acompanharam aqueles surpreendentes homens
se transformar em uma atitude na qual um festival
azuis que subitamente apareceram nas ruas com
possa ser um verdadeiro artífice de intercâmbio e
uma versão moderna de uma horda primitiva que
integração.
controla o espaço urbano e vira a cidade de cabeça para baixo. O Générik Vapeur promove a mistura
A SOCIEDADE é O EPICENTRO
de gêneros: teatro, dança, música, vídeo, imagem e
No panorama da cena internacional, por duas
uso de maquinaria pesada no conceito de “tráfico
vezes presente no Festival de Teatro de Rua de
de atores e máquinas”.
Porto Alegre, o diretor e pesquisador teatral espanhol Roger Bernat criou um sistema de trabalho em que a apresentação dispensa a presença do ator como ponto principal do espetáculo e deixa o público como único participante. Em Domínio Público, uma grande performance, um conjunto de espectadores recebe orientações por fones de ouvido e realiza movimentações de diversas naturezas, a partir de certas perguntas e proposições de ações em conjunto. O resultado é surpreendente. A criação de hipóteses formulada por quem apenas assiste à movimentação dramática é da mesma monta. Já em A Sagração da Primavera, uma encenação ao ar livre sobre a coreografia de Pina Bausch com música de Igor Stravinsky, os espectadores se tornam protagonistas do espetáculo que é um jogo e uma dança de um dos balés mais importantes do
A Sagração da Primavera Foto: Marcio Camboa
Domínio público
Foto: Marcio Camboa
Padox dans la cité Foto: Marcio Camboa
Bivouac
Foto: Fernando Pires
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A CENA BRASILEIRA DE RUA DESLOCA O FOCO
lo, propõe uma conversa privada em meio ao caos
A última edição do Festival Internacional de Tea-
estivessem em uma bolha transparente que ameni-
tro de Rua de Porto Alegre recebeu 300 inscrições
za os sons da cidade, mas não impede a percepção
de 21 estados brasileiros e de 11 países. Os esta-
de suas imagens. O silêncio se instaura para formar
dos que mais produzem teatro de rua no Brasil,
uma “bolha urbana”. Trabalhando as ações cênicas
tendo como base as inscrições do festival, são
com intervenção, performance e teatro de rua.
respectivamente: São Paulo, Rio Grande do Sul e
O Performa aposta no infantilismo e suas manifes-
Minas Gerais.
tações e propõe que as três ações, desenvolvidas
urbano. Uma conversa a dois, como se as pessoas
A intervenção Haikai – somente as nuvens
em três turnos do mesmo dia, revelem ao mesmo
nadam no fundo do rio, do Coletivo Pulso, de Belo
tempo autonomia e uma profunda inter-relação,
horizonte/MG, transpõe um poema do escritor ja-
utilizando dinâmicas que visam à criação de um
ponês Bashô para o ar livre e gera suspensão no
espaço de reflexão e de experiência sensível, de
espectador. A plasticidade dos movimentos flui
pesquisa de linguagem e de ampliação perceptiva.
com o desenho cenográfico do calçadão. Lençóis
A tônica sociopolítica norteia alguns coleti-
brancos pendurados em varais dão suporte para
vos da cena paulistana, e um dos casos mais bem-
projeções manipuladas pelos atores, bailarinos,
-sucedidos é o da Companhia Brava, que narra
performers. Flores, folhas e água esparramam deli-
os efeitos colaterais do desenvolvimento para o
cadezas, acariciando o agito da urbe e criando ima-
trabalhador comum no espetáculo Este lado para
gens corporais poéticas urgentes no imaginário do
cima: isto não é um espetáculo. Existe o domínio
espectador flutuante ou que adere à apresentação.
do teatro de rua com o uso de novas proposições
Também de Minas Gerais, o grupo Teatro Pú-
performativas e uma dramaturgia elaborada que
blico, a partir da realização do projeto Residência
fisga o espectador pela sua criatividade.
Teatral no Bairro Lagoinha, desenvolveu uma in-
Focado nas metrópoles e suas contradições,
tervenção cênica na qual um grupo de mascarados
o Tablado de Arruar traz em sua proposta cênica
visita um bairro da cidade, povoando o cotidiano
Helena pede perdão e é esbofeteada a sobreposição
dos moradores com imagens saudosistas do pas-
de linguagens: uma televisão instalada na rua per-
sado. O público é convidado a fazer um passeio pelo próprio bairro, acompanhado de mascarados que realizam ações cotidianas e estabelecem relações com os moradores e transeuntes. No sentido mais tradicional, mas nem tanto, o Grupo Andante, de Minas Gerais, visita com apuro o clássico A história de Édipo. Encenado na chegada da noite, num lugar como o Brique da Redenção, o espetáculo confere um tom crepuscular ao mito grego e concerne a precipitação da tragédia. Podemos especular que a forte produção do teatro de rua mineiro está associada ao Grupo Galpão, tanto pelos seus seguidores como pelos seus opositores, mas não podemos descartar o impacto do Festival Internacional de Palco e Rua de Belo horizonte (FIT-Bh) na produção local. Cry baby cry – um tríptico cênico, do Núcleo de Pesquisa e Criação Cênica Performa de São Pau-
Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio Foto: Fernando Pires
Este lado para cima Foto: Fabio hirat
Cry baby cry – um tríptico cênico Foto: Marcio Camboa
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mite ao espectador um recorte de telenovela para
realizar esse trabalho, o grupo saiu da caixa preta
duração de três dias que explora a expectativa e a
o espetáculo, ao mesmo tempo em que a cena
do teatro atraído pelo barulho e pela fumaça da
espera de um líder anônimo para, ao redor deste
ocorre ao vivo na rua, estabelecendo uma relação
cidade, com suas possibilidades, pluralidades de
aguardo, organizar toda a recepção. A obra exige
imediata com o público. O sarcasmo e a paródia
lugares, de pessoas e de regras em um cotidiano
do espectador um alto nível de abstração. Além de
marcam o tom das personagens, inspiradas em fil-
cada vez mais virtual. A ideia é interagir com as
criar uma situação de espera na rua por três dias
mes hollywoodianos e em telenovelas brasileiras.
ruas, espalhar cenicamente o seu manifesto, sur-
consecutivos, o Erro instiga o espectador sobre a
preender o público e entregar gentilezas para des-
ideia de um ser idealizado e questiona o latente
conhecidos íntimos.
desejo humano de encontrar o herói, o salvador, o
De Brasília, a Andaime Cia. de Teatro, em Serpentes que fumam, tendo como base o Manifesto Futurista, movimento que busca deslocar o foco do
Já de Goiânia, o Grupo Teatro que Roda in-
político, o artista sindicalista que é subsecretário
objeto cênico para a ação, baliza os moldes de sua
vade as cidades, propondo uma ruptura lúdica do
de cultura da província, a pessoa para qual se pos-
interpretação, dramaturgia e encenação e ancora
cotidiano, oferecendo ao cidadão uma possibilida-
sa dar total poder de decisão da vida.
seu trabalho no conceito do Teatro Sintético e no
de de jogo, um momento de quebra da linearidade
Originalmente de Juazeiro do Norte, no Ceará,
Teatro Pós-dramático. O grupo realiza pequenas
do dia a dia. O espetáculo Das saborosas aventuras
a Cia. Carroça de Mamulengos há 39 anos mistura
ações em locais públicos. Real e fictício. Não há
de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro
técnicas circenses e bonecos de mamulengo com
personagens, há pessoas. é um coletivo de ações,
Sancho Pança busca dar novo significado ao espa-
música nos seus espetáculos. é literalmente uma
intervenções, performances que são realizadas em
ço urbano lançando mão de instalações, prédios e
família, na qual o ofício foi passado dos pais para
ruas, praças, shopping centers (no banheiro, em
monumentos, para dialogar de forma direta com
os filhos. Os espetáculos da companhia sintetizam
escada rolante, na fila do cinema), cartórios, ôni-
os transeuntes. Na encenação, um executivo can-
uma linguagem lapidada por anos de estrada,
bus, metrôs, piscinas, marquises e paredes. Para
sado de sua rotina resolve mergulhar num mundo
apresentando em ruas e praças. Já a nova geração
imaginário em busca de aventuras e emoções e
pode ser simbolizada pelo Grupo Garajal, de Mara-
passa a acreditar ser Dom Quixote. Descendo de
canaú do Ceará, formada por atores entre 19 e 24
um prédio, numa corda, gritando por sua amada
anos, com o exitoso espetáculo de rua O encon-
Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança
Dulcineia e se desfazendo de seu figurino de gra-
tro de Shakespeare com a cultura popular: Romeu
vata, incorpora o cavaleiro andante. Sua primeira
e Julieta. Teatro de rua, boneco, máscara e circo,
Foto: Marcio Camboa
tarefa é encontrar o seu fiel escudeiro, Sancho
sobretudo na figura do palhaço, são as principais
Enfim um líder
Pança, missão que acaba nas mãos de um cata-
referências dos atores.
Foto: Marcio Camboa
O encontro de Shakespeare com a cultura popular – Romeu e Julieta Foto: Marcio Camboa
Performance Organismo vivo Foto: Fernando Gomes
Porto – a cidade como palco de uma antidiáspora Foto: Rodrigo Gorski
dor de papel de rua. O espetáculo é uma das mais
De Sergipe, com 38 anos de trajetória, o Imbu-
bem-sucedidas experiências no Brasil em mesclar
aça reúne textos adaptados da literatura de cordel,
novas proposições cênicas para o espaço urbano
alinhavados pela música e pela dança folclórica.
de representação e o desenvolvimento efetivo de
A importância do grupo para o desenvolvimento
uma dramaturgia potente.
das artes cênicas da região é imensa: a existência
O grupo Erro, de Florianópolis, com a sua in-
dos estudos de artes cênicas nas universidades da
tervenção Enfim um líder, um acontecimento com
região deve ser creditada ao grupo que, através da
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cultura popularesca e da forma tradicional e in-
dos do corpo em arte e humanismo, a partir da
dança, teatro, comida, a partir da temática da ci-
gênua do teatro de rua, enfatizou sobremaneira o
realidade física e da atmosfera de cada porção da
dade como lugar de experiência sensível e rede
trabalho do ator e teve a capacidade de criar pon-
cidade, contando apenas com a disponibilidade
de relações.
tes entre criadores de outros estados do Brasil e a
do seu corpo, tecidos brancos e plástico transpa-
O Teatro Sarcáustico expõe, na orla do Guaíba,
cidade de Aracaju.
rente, cria breves cenas de movimento gerando
a debandada e o abandono dos artistas e das obras
pequenos poemas entre corpo, espaço e tempo
de arte do Rio Grande do Sul em sua performance
A FISIONOMIA DA CENA DE RUA DO RIO GRANDE DO SUL
presente da cidade. O espectador pode ser surpre-
Porto – a cidade como palco de uma antidiáspora.
endido ao ver a bailarina dançar e se relacionar
A bailarina Carla Vendramin e o bailarino Lu-
Rosyane Trotta, diretora, autora, ensaísta, pesqui-
com uma árvore de uma avenida movimentada,
ciano Tavares, com a performance Organismo vivo,
sadora e professora discípula dileta do crítico Yan
ou em ver a bailarina criando movimentos em
na Esquina Democrática, um dos espaços arteriais
Michalski, considera que o teatro de rua produ-
uma mureta de cemitério. é algo tão estranho,
de Porto Alegre, com os corpos seminus cobertos
zido no Rio Grande do Sul na atualidade é mais
que o olhar não desgruda da ação, justamente
por argila, sobre uma espécie de tatame e rolando
denso, mais forte, mais vigoroso, mais definido e
por não reconhecê-la.
também para o chão. Cabeças raspadas, gênero
mais consciente do que era produzido nos anos
A Cia. Rústica, com o seu Desvio em trânsito,
cambiante conforme o ângulo em que são vistos,
de 1990. O jornalista, crítico e pesquisador do
plasma no cotidiano ações, instaurando dúvidas,
troncos e membros ora contraídos, ora distendidos,
teatro brasileiro Kil Abreu, que analisou a fisio-
risos e espantos. As ações performativas se inte-
em movimentos lentos com sinais de dança butô.
nomia da cena de rua em Porto Alegre e o im-
gram na pulsação do movimento urbano, como
A posição fetal surge recorrente, como que sensibili-
pacto dessa produção contemporânea no Brasil,
corpos estranhos, como desvios que podem gerar
zando a fragilidade de ser e estar no mundo. O som
constata que é visível um teatro de rua em plena
transformações de percepção. Os atores se des-
das batidas do coração de Carla Vendramin é ampli-
transformação e evolução no Estado.
locam pelo território determinado desenvolvendo
ficado durante toda a performance, digladiando-se
No campo das performances e intervenções
ações simultâneas. Estão sempre em trânsito, evi-
com a sonoridade urbana do centro da capital.
urbanas, vários núcleos locais mostram trabalhos
tando determinar um espaço e uma relação fixa
O Coletivo Transpiro de Porto Alegre, com
consistentes. Ouvidoria é uma performance de-
de ator-espectador. A dinâmica de movimento
direção de Mirah Laline, surgiu concomitan-
senvolvida pela atriz Luciana Paz em colaboração
segue o ritmo da cidade: velocidade e pausa. Já
te às manifestações de junho de 2013 no Brasil,
com o diretor e professor Matteo Bonfitto, em
na intervenção urbana Cidade proibida, a com-
nas quais muitos dos seus integrantes participa-
que são criadas situações para a escuta do outro,
panhia propõe a invenção de microterritórios de
ram em ocupações criativas de espaços urbanos,
das quais emergem questões relevantes para ela-
convívio em lugares que, à noite, passam a ser
tornando-se referência na cidade. A performance
boração de ações potentes para escutar o cidadão
de ninguém, subvertendo a lógica do medo e do
Transpiro! é apresentada por um grupo de ativistas
comum nas ruas, nos presídios, nos hospitais e
isolamento que atravessa a paisagem urbana. Em
culturais de diferentes formações e experiências.
em lugares diversos da cidade.
uma composição afetiva com a cidade, sugere o
São pensadores, produtores culturais, atores, per-
Em mais de 34 anos de atividade, entre o
resgate poético-social desses espaços através de
formers, técnicos, professores, diretores de teatro
Brasil e a Europa, a bailarina Daggi Dornelles, em
ações artísticas: um encontro cênico ao redor de
e pesquisadores artísticos. Espaços no entorno do
seu trabalho performático Flores urbanas – estu-
uma longa plataforma, incluindo música, circo,
Mercado Público são invadidos por um conjunto
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28
de “personas híbridas” que realizam ataques em
miniaturização, circo e teatro de rua. A sonoplastia
lhos mais promissores e de impacto para a pro-
ações de terrorismo poético, “artivismo” urbano e
é criada com a participação do público e formam-
dução de rua no país. Com uma visão alegórica e
subversão cultural. Desse modo, as personagens
-se pequenas rodas, contam-se histórias peque-
barroca da vida, por meio de uma estética “Glaube-
se configuram em um caminho afetivo em defesa
ninas e logo a andança segue, a sanfona canta e
riana”, a encenação possui uma abordagem épica
de uma cidade para pessoas, cuja sensibilização
outros contos surgem saídos de bolsos e bonecos
das aspirações de liberdade e justiça do povo brasi-
acontece por meio de uma colorida, barulhenta e
minúsculos em apresentações individuais.
leiro com base na paixão e morte do revolucionário
O Teatro Geográfico, em sua performance
Carlos Marighella. Já na performance Onde? Ação
A bailarina e coreógrafa Thais Petzhold criou
Geocoreografia: cidade não vista, descobriu que
nº 2, o grupo provoca, de forma poética, reflexões
uma obra delicada com a performance Flor, rea-
as escadarias são espaços de visibilidade privile-
sobre o recente passado brasileiro e as feridas que
lizada em tempo expandido, com música instru-
giada pela sua estrutura arquitetônica e muitas
ainda sangram pela ditadura militar. Essa ação
mental de Celau Moreyra, de extrema qualidade,
vezes esquecidas pela comunidade. Ao invadir
performática sobre o paradeiro das vítimas desa-
apresentada em locais urbanos com fluxo de pe-
esse espaço e torná-lo visivelmente produtivo,
parecidas durante o regime traz à tona um espaço
destres. Os artistas realizam trabalhos cênicos na
o olhar do artista e do espectador é direciona-
de memória na arquitetura sentimental da cidade
rua ou em locais públicos, defendendo que a arte
do para a possibilidade do fazer artístico dentro
que é compartilhada com o outro. Mesmo que o
deve estar inserida no cotidiano das cidades.
divertida guerrilha poética.
do seu cotidiano, aproximando a arte, a região
espectador não queira, ele passa a perceber que a
Manchas Urbanas, da Eduardo Severino Cia.
e a comunidade, ampliando o que pode ser “es-
cidade não se define apenas por ruas, prédios, car-
de Dança, é dança contemporânea nas ruas que
paço cênico”, dando outro significado ao palco.
ros e muros, mas também por memória.
pesquisa e reflete sobre as consequências da ação
é importante observar que, no discurso da com-
O Grupo de Teatro De Pernas Pro Ar, com
do homem na natureza. A proposta interfere no
panhia, a ressignificação não é necessariamente
25 anos de existência, é um dos grupos mais
ir e vir cotidiano dos transeuntes, na paisagem
o espaço público, mas a utilização da rua como
significativos de teatro do Rio Grande do Sul.
urbana e na arquitetura da cidade, fazendo com
possibilidade de redefinir também o palco.
A constituição dessa afirmação é calcada não
que as pessoas reflitam acerca de sua responsa-
A Tribo de Atuadores ói Nóis Aqui Traveiz,
só pela trajetória consolidada e o tipo de con-
bilidade em todo o processo, bem como na busca
com uma história sólida em Porto Alegre, é refe-
figuração grupal, mas também pela elaboração
de soluções para a questão ambiental.
rência para muitos grupos de teatro no Brasil. Em
do espetáculo Automákina universo deslizante,
A palhaça e bonequeira Genifer Gerhardt, no
34 anos de criação, instiga o público com o seu
que representa um marco no teatro de rua bra-
seu espetáculo Brasil pequeno itinerante, reúne
trabalho, utilizando as vertentes do teatro de rua,
sileiro. Automákina é o exemplo do processo de
histórias recolhidas durante andanças pelo país.
o teatro de vivência e o trabalho artístico peda-
transformação do teatro de rua e de como esse
Em uma estética intimista, delicada e artesanal,
gógico, desenvolvido com a comunidade local. No
processo provoca um impacto estético na consti-
com bonecos articulados em miniatura, a ence-
espetáculo O amargo santo da purificação, o grupo
tuição de outros grupos. A qualidade do resultado
nação promove o diálogo entre teatro de bonecos,
se renova esteticamente e cria um dos seus traba-
do espetáculo decorre da construção do próprio
ARTES CÊNICAS
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grupo, da construção de si, da revolução da famí-
teatro de repertório, sendo o grupo gaúcho que
lia Wieser, autora e provedora da obra.
mais circula no cenário nacional.
O Povo da Rua – teatrodegrupo originou-se dos movimentos sociais, apresentando interven-
Automákina possui elementos específicos da
O grupo Mototóti, com o seu espetáculo
ções em espaços públicos e de rua. é um grupo que
cena e do jogo cênico com as peculiaridades de um
O vendedor de palavras, conseguiu reconhecimen-
tem merecido destaque nos últimos anos, devido a
evento ao vivo no qual há interação com o públi-
to da crítica que destaca a obra como rigorosa e
sua capacidade de gestar novos trabalhos e de se
co. O espetáculo se constitui de um rico arsenal
sutil. Com domínio de uma técnica e uma precisão
reformular no processo.
de saberes e contextos. Tais especificidades são
absoluta, elaborou um espetáculo em partituras.
O Grupo Mosaico Cultural é um coletivo de
construídas desde a concepção da obra e seguem
A sofisticação estética e dramática está presente
artistas plásticos, cenógrafos, atores, bonequeiros
se desenvolvendo ao longo de sua elaboração e
como uma cartografia da linguagem clássica de
e músicos. O Grupo Pindaibanos nasceu como aca-
execução. Uma pluralidade de signos, sentimentos,
rua e o que potencializa as criações do grupo é o
dêmicos da graduação em Teatro pela Universida-
ideias, temas, que torna a apreciação estética uma
engajamento afetivo dos autores-atores expressos
de Federal do Rio Grande do Sul. O Bloco da Laje
experiência dinâmica e diferente em relação aos
na história que dá nome ao grupo.
é um bloco teatralizado que considera como fun-
outros procedimentos do teatro de rua no Brasil.
De Caxias do Sul, o Grupo Ueba Produtos No-
damento a antropofagia para constituir a sua cria-
Outro aspecto é o uso das tecnologias que amplifi-
táveis esbanja empreendedorismo e inventividade
tividade em detrimento ao luxo. O Teatro de Caixa
cam as ferramentas estéticas do De Pernas Pro Ar.
e, com uma atuação bastante representativa na
do Rudinei Morales utiliza o teatro de rua como
As interfaces entre cena e tecnologias são profun-
sua região, tornou-se referência teatral na cidade.
meio de popularizar os seus projetos de teatro de
damente instigantes para o público, mobilizando
Atualmente, ocupa o Moinho da Cascata, prédio
animação, teatro de objetos e teatro de figuras.
um olhar para um jogo entre o artista e os equi-
centenário da serra gaúcha.
O Grupo Manjericão, do ativista Márcio Silveira, in-
pamentos, entre presença física e virtual/maqui-
A Cambada de Teatro Em Ação Direta Levanta
naria, entre interações e sonoridades. Portanto, o
Favela, um dos grupos de residentes da Usina do
público é provocado por diversas inovações, o que
Gasômetro em Porto Alegre, que se autodenomina
gera uma nova definição para o tipo de espetáculo
anarquista, imprime em seu trabalho uma força
apresentado pelo grupo.
política e assumidamente panfletária, em uma co-
A Oigalê Cooperativa de Artistas Teatrais, em
notação absolutamente positiva e necessária, se-
15 anos de trabalho específico para o teatro de rua,
gundo o professor Alexandre Mate, da Universida-
desenvolve uma dramaturgia própria, resgatando
de Estadual Paulistana Júlio de Mesquita (Unesp).
a cultura gaúcha através da música, das vestimen-
O grupo TIA (Teatro, Ideia e Ação), da cidade
tas e das pesquisas realizadas pelos pampas. Com
de Canoas, tem como proposta um teatro experi-
um excelente domínio do jogo cênico com a pla-
mental, de intervenção social, onde se pode pes-
teia, alcançou a maturidade para usufruir de um
quisar e descobrir formas desse fazer teatral.
veste no teatro de máscara. As recentes experiên-
Onde? Ação nº 2
Foto: Fernando Pires
Geocoreografia Cidade não vista Foto: Fernando Pires
Automákina universo deslizante
Foto: Flávia Correia
Olhar do outro
Foto: Marcio Camboa
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1 www.ftrpa.com.br
cias do Olhar do Outro de Pelotas, coordenado pela
culturais de casta privilegiada, pois necessita de
atriz e diretora Alexandra Dias, e de Evelise Mendes
um investimento muito maior. Para isso, o inves-
em A inauguração. O Teatro Vagamundo de Santa
tidor, público ou privado, terá que reconhecer que
Maria, a Cia. Stravaganza, a Usina do Trabalho do
não basta agregar valor apenas à “marca”, mas,
Ator, o Grupo Trilho de Teatro, entre outros.
sim, agregar valor à “sociedade”.
é impossível enumerar todos que estão en-
é perceptível que ainda existe uma visão
volvidos com as manifestações cênicas de rua.
oficial preconceituosa incapaz de fazer conexões
No entanto, merece destaque a ressalva crítica
entre a ênfase dada às manifestações cênicas de
de que existem muitas produções cênicas de rua
rua e uma deliberada intenção de estimular a
ou para espaços não convencionais, que a própria
relação do cidadão com a cidade, uma vez que,
cena elaborada pelos grupos de teatro desau-
quando o indivíduo assiste a um espetáculo de
toriza o seu discurso artístico, enfraquecendo a
rua, ele está também usufruindo de um espaço
proposta e potencializando a retórica. Nesse caso,
público de convívio urbano. Logo, a presença des-
o autoengano permeia essas opções, trazendo
sas manifestações nas ruas, nos bairros, nas pra-
consequências na química de se iludir. Fato que
ças e nos parques é uma estratégia para o cres-
traz implicações éticas na vida pública e na vida
cimento e regeneração de riquezas das cidades,
privada desses coletivos.
pois as insere no contexto de “Cidade Mundo” ao redefinir o espaço de sociabilidade no urbano.
NãO EXISTE A MENOR DúVIDA:
Espaços públicos deteriorados são luga-
AS RUAS REDEFINEM O PODER!
res de solidão, conflito e criminalidade. Espaços
Como diretor artístico, curador e coordenador-
públicos cuidados são de interação, amizade e
-geral do Festival Internacional de Teatro de Rua
desfrute, fundamentos de uma democracia cida-
de Porto Alegre , observo a importância de reco-
dã. é evidente que existe conexão entre o espaço
nhecer e de valorizar os artistas que desenvolvem
público e a democracia. E o espaço público e os
as manifestações cênicas nas ruas como parceiros
regimes totalitários. O espaço público tornou-se
fundamentais na formação cultural das nossas
uma agenda prioritária para as cidades em anos
futuras gerações. As ações desses artistas, muitas
recentes, devido à disseminação de políticas para
vezes desenvolvidas em lugares difíceis, do ponto
o “enobrecimento urbano”, que atrela medidas
de vista da sociabilidade, promovem aproximações,
higienistas à valorização imobiliária.
[1]
As cidades precisam se humanizar e a transformação desses territórios pode acontecer a partir de políticas culturais Haikai – somente as nuvens nadam no fundo do rio Foto: Fernando Pires
construções de vínculos e sentidos de pertenci-
é impossível considerar as ruas, as praças e os
mento entre público e manifestações culturais.
parques apenas como um lugar de apresentações,
Trata-se de um engajamento criativo, lúdico e ima-
ou de passagem, mas sim como espaços forma-
ginário, no qual as emoções constroem conexões
tivos e afetivos. A partir do momento em que o
entre a vida e a realidade fictícia.
espectador sai de casa para ir às ruas, há uma pre-
Desde a primeira edição, em 2009, o festi-
paração interna e externa para viver o evento cul-
val tem levado para diferentes espaços da Ca-
tural. Esta aprendizagem se aprofunda e se define
pital companhias de teatro de rua de destaque
no momento de apreciação da obra, de uma fala,
no Brasil e no mundo, ajudando a consolidar, no
de uma demonstração, então o público absorve
calendário cultural da cidade, uma programação
os conteúdos, os temas, as histórias e as estéticas
exclusiva de um gênero cênico em ampla expan-
apresentadas por esses artistas, assim como toma
são no país.
consciência de sua percepção e seu afeto.
O teatro de rua não conta com bilheteria,
é uma obviedade que, para sair dos espaços
portanto essa característica democratizante, pú-
fechados e se exercitar no espaço público, é pre-
blica e itinerante está demandando mais atenção
ciso desenvolver políticas para as artes públicas.
do poder público, das empresas e das instituições
Pensar em políticas de ocupação dos espaços pú-
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blicos, de abertura e limpeza das praças, ver gente
potencializando a diferença como valor humano,
ca de uma diversidade que pode ter a debilidade
nas ruas, é uma forma de afirmar as identidades
na livre construção do discurso poético, para que
de um limite ou a força e a dignidade de quem
urbanas, bem como os poderes locais e as for-
possamos usufruir dessa construção coletiva, que
se reconhece em minoria, mas é, acima de tudo,
ças comunitárias. Pensar políticas para as artes
é a vida em sociedade.
um modo particular de mover-se no panorama
públicas significa pensar o mundo de uma outra
é importante reconhecer que o processo que
do teatro que se realiza no país. O teatro de rua
maneira. As cidades precisam se humanizar e a
surge da relação e das idiossincrasias dos artistas
cria uma distância sem separar-se por completo
transformação desses territórios pode acontecer
com a cidade mantém a reflexão crítica, o olhar
para evidenciar suas diferenças. Essas diferenças
a partir de políticas culturais. é nesse contexto
atento e a percepção aguçada sobre a cidade
se tornam fecundas quando convertidas em in-
que, ao repensar esse procedimento, estaremos
como princípio, interlocução e fim.
quietações.
reconstruindo o imaginário das cidades e admitindo um outro valor para as nossas vidas.
O festival, com as suas ações, orgânicas e
A forma do teatro de rua, sua maneira de
complementares, vem fomentando a constru-
organizar-se, sua maneira de entrar em contato
O Brasil é um país de extensão continental,
ção de novas relações de trabalho e produção,
com os espectadores e com a realidade social
com 200 milhões de habitantes e que possui ape-
o desenvolvimento de novas técnicas, a criação
circundante, em muitos casos não se adapta aos
nas, pasmem, 4% dos municípios com salas de
de novas poéticas e também a formação de no-
modelos teatrais vigentes. Em geral, esse teatro
teatro. Na cidade de Porto Alegre, dos 81 bair-
vos públicos, pois estabelece outros vínculos
deriva de necessidades pessoais e do grau de dis-
ros oficiais, apenas 12 têm salas de espetáculo,
com a população.
tância dos valores e práticas reconhecidas e con-
o que representa 14% dos bairros. No entanto,
O crescimento das cidades e a difícil arte das
solidadas. Muitas vezes, a consistência do teatro
as salas pertencentes ao Município e ao Estado
relações entre os homens e os grupos sociais não
de rua reside no grupo vulnerável de pessoas que
estão apenas em 3 bairros, o que significa 3,7%
são suficientes para adjetivar a dimensão do de-
o compõe. E muitas vezes esse teatro desaparece
dos bairros. A Capital conta com mais de 600 pra-
safio que temos como sociedade. Nos reunimos
com essas pessoas, mas ele se move baseando-se
ças, 8 grandes parques e estamos entre as cida-
em cidades para sobreviver e, nela, buscamos fe-
em desenhos independentes.
des com a maior área verde do mundo. O espaço
licidade e prazer, nossos impulsos vitais. Então, é
Os esforços curatoriais do Festival Interna-
geográfico ocupado pelo festival contempla as 17
importante não desaperceber que quem constrói
cional de Teatro de Rua de Porto Alegre, através
regiões da cidade e chega em mais de 30 bairros,
o espaço urbano é o conjunto de seus cidadãos.
de uma clareza conceitual e de uma estreita li-
periféricos e centrais. Estima-se que o público do
Se uma política pública pretendesse demo-
gação com a comunidade, detêm-se na possi-
festival seja em torno de 120 a 150 mil pessoas. A
cratizar o acesso ao teatro, às artes, o teatro de
bilidade de construção de novas subjetivações.
projeção de número de pessoas que diretamente
rua necessitaria ser olhado com mais cuidado.
Novos desejos ativam a imaginação cultural da
trabalha no festival é de 410 pessoas e 1.230 in-
Tanto o estado do Rio Grande do Sul como o
população e a instiga a perceber e formular, ou
diretamente. A produção do teatro de rua no Rio
município de Porto Alegre não possuem políticas
reformular, seus direitos com horizontes poéti-
Grande do Sul cresce 20% a cada ano e, hoje, um
para as artes públicas, ou seja, os governos são
cos mais amplos. O que pode gerar uma reflexão
maior número de grupos cênicos do Estado está
primitivos neste aspecto.
sobre a cidade e sobre a condição de cidadão
circulando nos maiores festivais do Brasil. Neste
A história do teatro de rua no Brasil ainda
contexto, pode-se afirmar que existe uma modi-
é subterrânea, muitas vezes, sem nome e sem
A curadoria é o fruto de uma determinação,
ficação efetiva da geografia do teatro em Porto
fama. Em muitos casos, é um terreno escuro e
política, artística e filosófica. Portanto, a progra-
Alegre que aponta para o enraizamento do teatro
turbulento de onde surgem e desaparecem va-
mação do festival repensa as relações por meio
na cidade e para a cidade.
lores imprevisíveis e experiências imprevistas. No
do exercício estético dos artistas participantes
nesse território.
A realização do festival vem alterando a re-
entanto, é aqui que o teatro está se renovando e
entre a população, seja pelos conteúdos e for-
lação entre o teatro e a cidade nos últimos anos.
transcendendo. Trata-se de uma transcendência
mas abordados nas obras, seja pelas relações
Múltiplas e vigorosas propostas de intervenções
concreta que consiste na superação dos limites
estéticas estabelecidas no trabalho dos grupos
no espaço público podem ser observadas nos
que tradicionalmente distinguem o que é teatro
teatrais, seja na interlocução com outros agen-
vários âmbitos de atuação dos artistas que inte-
do que não é, entre a prática artística e a inter-
tes da sociedade.
graram a programação ao longo das seis edições.
venção política ou social.
Nesse fenômeno, o caráter transgressor da arte
Quase toda órbita do teatro de rua é margi-
é encarado como meio e como fim, para reavi-
nal em relação aos centros em que pulsa a vida e
var a convivência com o espaço público comum,
o teatro (a cultura). O teatro de rua leva a mar-
O ponto crucial é que não se trata apenas de proporcionar entretenimento, o desafio é ampliar o pensamento.
SEGUNDO SEMESTRE
CADERNO DE TEATRO
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POR CLARISSA EIDELWEIN JORNALISTA
GRuPO XIX DE TEATRO Fotos: Adalberto Lima, Regina Acutu, Alex Ribeiro e divulgação Grupo XIX de Teatro
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
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#13 o Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório em Porto alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa arte Sesc – Cultura por toda parte. nas próximas páginas, a transcrição da fala da atriz janaina Leite descreve o percurso do Grupo XIX de Teatro e detalhes do processo de produção dos espetáculos do repertório. já a do diretor Luiz Fernando Marques analisa o que ele chama de dramaturgia da recepção. o coletivo realizou residência artística com os espetáculos Hygiene,
Marcha para Zenturo (com grupo espanca! de Belo Horizonte) e o mais recente nada
aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo no 9º Festival Palco Giratório de Porto alegre, em maio de 2014.
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
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O SILÊNCIO E TAmBém O GRITO Estamos a caminho, mas não caminhando, estamos a bordo de um veículo sobre o qual nos movemos sem parar, como uma grande jangada, ou como essas cidades orbitais que dizem que haverá no futuro. Já nada se move a passo de homem. Por acaso alguém de nós ainda caminha lentamente? Mas a vertigem da velocidade não está fora, nós já a assimilamos à mente que não para de emitir imagens, como se também ela fizesse zapping; e talvez a aceleração tenha chegado ao coração, que já pulsa em ritmo de urgência para que tudo se passe rápido e não permaneça. Este destino comum é a grande oportunidade, mas quem se atreve a saltar fora? Tampouco sabemos mais rezar, porque perdemos o silêncio e também o grito. Trecho de A Resistência, de Ernesto Sabato
O EmBRIÃO
foi apaixonando todo mundo. Continuamos desenvolvendo ainda no contexto da escola, como um projeto extracurricular que ensaiávamos aos
Hysteria, o primeiro espetáculo do grupo, ainda em formação, se passa num hospício feminino Fotos: Adalberto Lima
Os primeiros movimentos para a criação do que
finais de semana, e aí foi surgindo a vontade de
viria a ser o Grupo XIX de Teatro tiveram início em
que aquilo virasse mesmo um espetáculo.
2000. Uma das disciplinas do curso de artes cêni-
Começamos a ter pequenas aberturas, até
cas da USP aceitava alunos que não eram da gra-
que fomos para o Festival de Teatro de Curitiba,
duação como ouvintes, como participantes para
na mostra paralela – o Fringe. Fomos com a cara e
pequenos processos colaborativos. Cursavam a
a coragem, e o espetáculo foi incrivelmente bem-
disciplina diretores, atores, e nós estávamos ali,
-recebido, assistido por pessoas importantes que
meio de curiosos. éramos alunos da escola técni-
deram um bom espaço na mídia. A peça foi esco-
ca, que era EAD, num processo de pesquisa.
lhida entre as cinco melhores da mostra paralela,
Neste contexto de processo colaborativo,
o que deu um boom para o trabalho. Era tudo
que o Teatro da Vertigem já desenvolvia na épo-
muito experimental e ainda era não éramos um
ca, criamos este embrião do que foi virar Hys-
grupo, mas, sim, um coletivo em torno daquele
teria pouco tempo depois. Já tínhamos parte do
trabalho. Começamos a ter uma vida.
processo da pesquisa que depois foi consolidar o
Hysteria é uma história muito especial, com
grupo, como a interatividade, o espaço não con-
muito tempo em cartaz e que continuamos apre-
vencional, a criação colaborativa, que até hoje
sentando até hoje – mantemos todos trabalhos
prezamos muito. Ali, foi o detonador de toda esta
do grupo em repertório. Viajamos vários países
história. Neste ambiente da escola, da forma-
com o espetáculo, que abriu portas para o gru-
ção, todo mundo com uns 19-20 anos, Hysteria
po. Com a oportunidade rara de ficar um ano em
foi uma experiência muito bem-sucedida que
cartaz, de terça a domingo, dentro do projeto
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de formação de público da Secretaria de Cultura
-se a partir de exemplos de grupos que já exis-
inteiramente lá residência em relação àquela ar-
da Prefeitura de São Paulo, um projeto muito rico
tiam, como Teatro de Vertigem, Companhia do
quitetura, em relação aos moradores, é tudo muito
como nunca houve, porque atingia milhares de
Latão, Mamulengo da Folia, que eram referências
integrado àquela paisagem, que é bem particular.
jovens da rede pública. Foram muitas apresenta-
pra todos nós. Era uma efervescência mesmo e,
E continuamos com este projeto.
ções, sempre seguidas de debate com o público, e
na primeira edição, fomos contemplados na con-
começamos a nos entender como um coletivo em
dição de grupo jovem em um projeto que já tinha
formação. Decidimos que não era só uma peça e
força. Não era só a criação do espetáculo que
O COLETIVO
que queríamos seguir como um grupo com a nossa
propúnhamos, mas essa intervenção na cidade, já
O grupo começou comigo, Juliana Sanches, Sara
pesquisa. Então, bolamos o projeto para criação do
que foi o primeiro projeto que desenvolvemos na
Antunes, Gisele Lilás, Raissa Gregori e o Luiz Fer-
espetáculo Hygiene, o primeiro já com este caráter
Vila Maria Zélia, que é a vila operária (a primeira
nando Marques, o Lubi, que é diretor. De lá para
de grupo, via Lei de Fomento ao Teatro da Cidade
de São Paulo, construída entre 1911 e 1917) que
cá, saíram três pessoas (Sara, Gisele e Raissa), e
de São Paulo.
estamos ocupando há 10 anos.
entraram os meninos (Paulo Celestino, Renato Bo-
Trata-se de um projeto grande de ocupação
lelli, Rodolfo Amorim e Ronaldo Serruya). O projeto
A OCuPAÇÃO DA VILA mARIA ZéLIA
que se desdobra, além dos espetáculos, para mui-
Hysteria só tinha mulheres e o diretor. Depois da
tas outras atividades de formação e difusão. Outros
entrada dos meninos, continuamos com a mesma
grupos trabalham com residências, em tempora-
formação. Então é um grupo bem sólido, que con-
Nesta nova fase na vida do grupo, já com o nome
das, oficinas de diversos formatos que ministramos
segue, dentro das agruras de fazer teatro no Brasil,
de Grupo XIX de Teatro, conseguimos um apoio de
lá, nossas próprias pesquisas e criações em tempo-
ter uma trajetória bastante estável, sempre via es-
uma lei municipal muito importante dentro deste
radas. A vila acabou sendo um lugar muito impor-
tes editais públicos que garantem a manutenção
contexto de efervescência do teatro de grupo, do
tante para estabelecer esta base, e multiplicou, sem
do grupo, das criações, mas também de todo este
Arte Contra a Barbárie, muitos grupos formando-
dúvida, o potencial do trabalho do grupo. Criamos
trabalho que mantemos na Maria Zélia.
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
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é muito importante batalhar bastante pela
Por último, criamos Nada aconteceu, tudo
Simultaneamente ao outro projeto que es-
manutenção destas leis. O Paulo Celestino faz
acontece, tudo está acontecendo, que foi um
távamos desenvolvendo, fizemos Estrada do Sul.
parte da Cooperativa Paulista de Teatro, que é um
novo passo, uma virada. Tínhamos meio que
Um projeto mais curto, porque era uma parceria
órgão que vem trabalhando muito para aumentar
encerrado a pesquisa dos temas históricos, am-
com o diretor italiano Pietro Floridia, da Com-
e manter estes editais, que fazem com que o tea-
bientados lá pelo século 19: primeiro, o tema da
pagnia del Teatro Dell’Argine, que conhecemos
tro do estado de São Paulo tenha esta força, esta
mulher; depois, o da moradia; por último, o do
quando estivemos lá com Hygiene. Livremente
pluralidade.
amor. Marcha para Zenturo foi um espetáculo de
inspirado no conto de Julio Cortázar, Estrada do
transição que veio da necessidade de trabalhar
Sul é um trabalho de intervenção que envolve
com outro grupo.
a comunidade. Ele passou um mês aqui, abrimos
A base colaborativa, processos longos que trabalham com a entrada do público na dramaturgia, com participação ativa, os espaços não
Nada aconteceu foi uma espécie de reinau-
este espetáculo para os atores do grupo e tam-
convencionais, outras formas de organizar o pú-
guração na trajetória do grupo, no qual explo-
bém para outros atores que haviam participado
blico no espaço, acontece em Hygiene, em Hys-
ramos outras linguagens, como o vídeo, e uma
de nossas oficinas, já havia uma afinidade. São
teria, e em Arrufos, que é o terceiro espetáculo.
dramaturgia de base forte, como é Vestido de
23 atores. Foi uma experiência mais fulminante,
Marcha para Zenturo, o quarto, é um pouco di-
noiva, de Nelson Rodrigues, que serviu de base
rápida, bem diferente dos projetos que estamos
verso, porque fizemos uma parceria com o grupo
para a pesquisa. Foi um processo bem novo, pela
acostumados.
Espanca!, de Belo horizonte, e é a primeira vez
aproximação com o dramaturgo, por Alexandre
Estreamos estes dois trabalhos entre 2013
que temos o texto assinado por um dramaturgo
Dal Farra ter assinando a dramaturgia final, por
e 2014, e agora estamos iniciando um processo
de fora. Até então assinávamos coletivamente
não ser um tema histórico, e por um ator ter diri-
novo, que é uma pesquisa em cima do Teorema,
todos os trabalhos e, neste, a Grace Passô vai
gido junto pela primeira vez. Eu dirigi com o Lubi,
do Pasolini, não do filme, mas do livro, da obra
assinar a dramaturgia, embora também tenha
numa mudada inédita nas funções. Foi um pro-
literária que estamos começando a trabalhar no-
nascido coletivamente. Foi também o primeiro
jeto bem interessante, bem novo e que deu uma
vamente com o dramaturgo Alexandre Dal Farra.
espetáculo de palco italiano.
recolocada no projeto macro do grupo.
A previsão é estrear até o final de 2015.
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
37
Hygiene
Foto: Regina Acatu
Arrufos
Foto: Adalberto Lima
Marcha para Zenturo
Foto: Divulgação Grupo XIX de Teatro
Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo Foto: Adalberto Lima
OS NúCLEOS DE PESquISA E SEuS DESDOBRAmENTOS
contemplados com o edital de primeiras obras. São
balho paralelo que o grupo acaba dando suporte
jovens que estão conseguindo criar um pequeno
para eu poder desenvolver, mesmo sendo uma
coletivo, um trabalho que vai ter uma vida para
pesquisa autoral, que não depende do grupo.
além do que desenvolvemos ali na vila. Um desdo-
hoje, os pilares do grupo são criação de reper-
Em 2014, não estávamos em criação porque apre-
bramento. Acaba sendo um espaço onde os artistas
tório (continuamos com todas as peças) e este dos
sentávamos os espetáculos que estrearam no ano
se descobrem, descobrem parceiros. Resultados que
núcleos de pesquisa, de formação, de residência.
passado. Temos, entretanto, este trabalho dos
vão ficar em cartaz, vão circular. é um espaço muito
núcleos, projetos que desenvolvemos há sete ou
legal do grupo que chamamos de Armazém 19. Um
oito anos, espécie de oficinas de longa duração,
local no qual muitas coisas podem acontecer com
mas que não chamamos de oficinas justamente
formatos diversos, mesmo outras linguagens como
pra negar um certo caráter pedagógico. São mais
vídeo, dança e outras coisas.
OS PROCESSOS COLABORATIVOS DE PRODuÇÃO
núcleos de trabalho que nós, como artistas, temos
Somos um grupo de pesquisa, cada inte-
uma liberdade total para desenvolver pesquisas
grante com uma proposta bem diferente. Cada
HySTERIA
próprias e convidar estudantes jovens pra desen-
um orienta como bem quer suas pesquisas que
Espetáculo que criamos partindo basicamente de
volver conosco.
podem ir para uma dramaturgia ou podem des-
um material de arquivo, os documentos das mu-
Entre 60 e 100 pessoas por ano participam dos
cambar para o vídeo ou para vários lugares.
lheres diagnosticadas como histéricas no fim do
núcleos que têm um espetáculo como resultado fi-
é um lugar bem aberto que temos para arejar,
século 19. Tínhamos desde boletins de ocorrên-
nal. Três deles estão em cartaz na Vila Maria Zélia:
para arejar nossa maneira de criar e depois se en-
cia, fichas médicas, cartas, poemas publicados em
América vizinha, coordenado pela Juliana Sanchez;
contrar renovados. E depois vai se desdobrando
jornais feministas da época. Então partimos desta
Memórias de cabeceira, por Rodolfo Amorim; e Foi
para a pesquisa particular de cada um. Eu estou
fase e também de cenas que criávamos e fomos
um carnaval que passou: cenas para ver com más-
pesquisando documentário cênico e estreei re-
tecendo estes argumentos, sem nenhuma drama-
caras, do Ronaldo Serruya. Estes acabaram de ser
centemente Conversas com meu pai. é um tra-
turgia prévia.
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
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Hysteria
Foto: Adalberto Lima
Arrufos
Cinco mulheres em um hospício feminino. Sabíamos que as mulheres do público iriam apare-
gienização com muita força e vai alterando este modo de vida.
Foto: Adalberto Lima
cer em cena conosco. Os homens permaneceriam
O espetáculo foi criado num momento em
Hygiene
isolados do lado de fora. Então fomos desenvol-
que também havia uma higienização muito grande
vendo a dinâmica, dando vida às personagens. Sa-
aqui, em São Paulo, com este movimento de ocu-
bíamos desde o princípio que não seria num palco
pação dos prédios abandonados, todo este proces-
italiano, não teria luz artificial, era um espetáculo
so de violência, de repressão a estas ocupações. Foi
para ser apresentado de dia com luz solar, plateia
um processo muito ligado a este movimento. Nós
numa relação bem próxima de muita intimidade,
promovemos na Vila Maria Zélia um fórum de dis-
quase sem artifícios de teatralidade que afastasse
cussão sobre cidade, urbanidade, modos de ocupar
o público. O papel do homem, de voyeur, de juiz,
de forma estética, de forma social e política os es-
era importantíssimo. Ele fica ali na plateia se per-
paços. Foi um momento em que o grupo estava
guntando qual é o papel dele, que não está em
muito engajado nesta luta. E foi um projeto muito
cena com as mulheres. Isto dá um outro ponto de
vertical da criação, muito intenso para os atores,
vista pra fruição do espetáculo.
com uma fonte documental, uma fonte histórica
Foto: Regina Acatu
Marcha para Zenturo
Foto: Divulgação Grupo XIX de Teatro
A dramaturgia foi assinada por todas as atri-
enorme. Tínhamos muito material e poderiam ter
zes que estavam no começo, hoje nem todas estão.
saído oito peças dali. Abrimos demais e depois ti-
Da peça original, estamos eu e a Juliana Sanchez,
vemos que afunilar, porque teríamos um espetá-
mas a integrante que está há menos tempo está há
culo de 12 horas. Mais de 30 personagens foram
sete anos. é uma peça que encenamos há quase 14
reduzidos para cerca de 10.
anos, que fazemos muito. O Hysteria lançou muito
Com dramaturgia colaborativa, cada um
as bases criativas que depois o grupo foi aprofun-
desenvolveu uns três ou quatro personagens e
dar: a interatividade, a pesquisa histórica, o espaço
também este jogo mais lúdico de passar de um
não convencional, elementos que radicalizamos no
personagem para o outro. A experiência de fazer
espetáculo seguinte.
na rua é uma experiência nova para muitos de
HyGIENE Já com atores homens e inteiramente criado na vila operária, é uma espécie de cortejo itinerante com a participação do público. Esse cortejo vai se transformando, ora é uma procissão, ora um casamento, ora um cortejo fúnebre, ora um cordão carnavalesco. O público vai participando desta trajetória pelas calçadas da Vila Maria Zélia até entrar no espaço fechado onde é a ambiência de um cortiço. A peça trata da destruição de um cortiço carioca, que tem a ver com esta discussão proposta, que é o processo de higienização do fim do século 19, a transformação desse ambiente de uma vida mais pública para essa vida mais higienizada, das casas, das famílias uninucleares. A peça discute este momento em que existia esta vida pública muito mais misturada, tem os personagens que são os imigrantes, os operários, as lavadeiras, as prostitutas convivendo neste espaço. Vem a hi-
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
39
nós. Nós dizemos que não é um espetáculo de
que conseguimos fazer por tanto tempo sem nos
ção. Infelizmente, acabamos fazendo bem menos
rua, mas um espetáculo feito na rua, já que ele é
cansarmos do trabalho.
do que gostaríamos – o espetáculo é muito bo-
feito especificamente para esta relação com uma
Temos que chegar com antecedência, ensaiar.
nito e as pessoas pedem muito pra voltarmos –,
arquitetura específica. Não é em qualquer praça
Tem esta questão logística. Temos que conversar.
porque a estrutura da arquibancada pesa uma
que chegamos e fazemos a peça. é preciso real-
Às vezes, entramos na casa dos moradores, utili-
tonelada, tem a luz, tem que ser montada cada
mente encontrar uma trajetória, um percurso, co-
zamos a sacada da casa de alguém, então tem que
vez, por isso é bem difícil de viajar.
meçamos em frente a uma igreja, no casamento
pedir pra entrar na casa da pessoa. Tem realmente
de uma noiva doente, saímos em procissão com o
um processo anterior a cada espetáculo.
é uma experiência bem diferente. Queríamos
público, passando por outras fachadas até chegar neste lugar abandonado.
mARCHA PRA ZENTURO
ARRUFOS
trabalhar com outro coletivo, o grupo Espanca!,
Tem toda uma ambientação para tentar che-
Arrufos, que é um espetáculo sobre o amor, já é
que, como falávamos, é um grupo primo, e ví-
gar um pouco a esta textura. Tentamos encontrar
bem mais protegido. é uma pesquisa histórica sobre
nhamos desenvolvendo uma troca há um tem-
um lugar que carregue uma história que empreste
o amor nos séculos 18, 19 e 20. O cenário é uma ar-
po, encontrando-nos em festivais, fazendo pe-
para a dramaturgia do espetáculo alguma caracte-
quibancada, disposta num quadrado, formando um
quenos processos juntos, até que tivemos ideia
rística. Por exemplo, em Porto Alegre, fizemos no
quarto, e a peça é toda concentrada no meio des-
de aprofundar e realmente criar um espetáculo.
Vila Flores, que é um lugar que tem a sua história
te quadrado e nas arquibancadas que funcionam
Encontramo-nos e o futuro apareceu como um
também, que tá impregnado, é uma arquitetura
como instalação. A plateia senta em duplas, casais.
tema pra discussão. Estávamos lendo o livro A Re-
que em si já propaga um monte de característi-
E cada um tem uma dose de envolvimento pessoal
sistência, de Ernesto Sabato, no qual tinha uma
cas para o trabalho. As pessoas que são daí, que
e até mesmo a iluminação é feita pelo público, que
espécie de carta para a humanidade, que foi o
conhecem alguma coisa dessa história, podem se
vai acendendo e apagando os abajures pra nós.
ponto de partida, criamos alguns procedimentos,
relacionar com esta dramaturgia que vai corren-
é muito interativa, tem uma relação muito
brincadeiras de tentar projetar o futuro sem ser
do em paralelo. Ficou muito bonito aí. Estamos
íntima com a plateia. E a dramaturgia também
por esta via meio futurista, Blade Runner. Que-
sempre nos surpreendendo com espaços incríveis,
foi desenvolvida pelos atores, criando cada passo,
ríamos criar outro tipo de futuro. E, brincando,
então é uma peça que tem toda uma outra cara e
cada texto, cada cena, cada música, em um pro-
encontramos num procedimento cênico a nossa
um público diferente também. Acho que é por isso
cesso bem longo de um ano e três meses de cria-
chave de futuro, através do delay.
Espetáculo Cortiços, inspirado na obra de Aluísio de Azevedo, traz para o teatro os Sistemas Corporais, técnica utilizada na dança Foto: Gustavo Jacome Foto: Rodrigo Zeferino Foto: Tiago Lima Foto: Gustavo Jacome
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
40
Este espetáculo que esteve em Porto Alegre, no
partir da saída de um personagem do palco e sua
Festival Palco Giratório, tem uma brincadeira básica
ida para plateia. Nessa queda da estrutura, damos
NADA ACONTECEU, TUDO ACONTECE, TUDO ESTÁ ACONTECENDO
que é como se cada pessoa ouvisse alguma coisa
uma virada na peça, os personagens, pela primeira
Quando o grupo estava numa fase de esgota-
e vai responder sempre com um delay. Como se os
vez, conseguem falar ao mesmo tempo, conse-
mento de pesquisa histórica. Depois de Hygiene
personagens nunca tivessem totalmente presentes,
guem conversar. Também não conseguimos fazer
tínhamos decidido não nos debruçarmos mais
eles nunca estão ao mesmo tempo conversando so-
tanto quanto gostaríamos, porque são grupos de
em nenhum tema histórico, por certo temor de
bre a mesma coisa, é como se já tivesse passado o
estados diferentes. Existe toda uma logística para
estagnar algumas pesquisas de linguagem, em
assunto sempre e é preciso correr atrás. Então co-
o encontro, para tornar possível.
que há uma regra, um grupo que pesquisa isto
meçamos a jogar, a brincar na sala de ensaios e fo-
Mas também é um espetáculo que vai mu-
ou aquilo, mesmo a questão do espaço, tinha que
mos encontrando todo o mecanismo dos diálogos.
dando, tem sempre um novo acontecimento,
ver com um projeto orgânico. Então, nesta peça,
é uma peça de dramaturgia bastante rebuscada,
Copa do Mundo, eleições. é uma peça bem políti-
queríamos partir de uma base fabular clara, então
complicada para tecer esses diálogos que vão crian-
ca. São jovens, amigos que se encontram depois
partimos de Vestido de noiva, uma história com
do ecos e mal ditos, porque você pergunta uma coi-
de 10 anos sem se ver, estão numa festa de fim de
personagens, com uma estrutura dramática.
sa e daqui três falas o outro vai responder. E como
ano, e ao mesmo tempo está acontecendo uma
Nesta época, também estávamos lendo
tem outras antes, aquilo vai criando um outro diálo-
manifestação do lado de fora, ninguém consegue
Freud, O estranho familiar, que também é um
go sobreposto, então a peça vai criando camadas e
chegar, e eles ficam lucubrando sobre o que é, o
elemento importante para a criação do espetá-
camadas. hoje, é comum nos papos de Facebook ou
que estão pedindo. E a manifestação vai tomando
culo. E do encontro destes materiais surgiu a pes-
Whatsapp, em que você pergunta e a resposta vem
dimensão que morre gente e eles olhando pela
quisa, o processo colaborativo também, fizemos
depois, com outras conversas no meio, fica aquele
janela do apartamento, especulando do que se
workshops criando inúmeros pontos de contato.
papo de maluco. Isso nem estava tão forte. Muito da
trata e tem a relação entre eles, o reencontro.
é um trabalho muito autoral em relação a esta
graça da peça, do humor, vinha daí.
é uma manifestação que se chama Marcha para
base da obra de Nelson Rodrigues. é uma inspi-
é uma peça pra palco italiano, ainda que essa
Zenturo. O que é zenturo? é uma marcha por al-
ração, não é uma montagem do Vestido de noiva.
questão do palco italiano tenha significado na peça
guma coisa, para algum lugar, e a peça vai ten-
E aí a vila foi de novo ficando forte. Não era
porque há situações em que discutimos o próprio
tando desvendar o que é este zenturo, que vai ga-
uma premissa nossa de que a vila, como arquitetu-
teatro como a arte do presente, como a principal
nhando eco com as coisas que vão acontecendo
ra, fosse um ponto central, mas com esta festa de
metáfora. Estamos falando de pessoas que não
a cada momento. é uma obra muito interessante
casamento, que é o centro, a vila foi virando este
conseguem estar no presente, viver o presente, e
cada vez que fazemos, por que este zenturo vai se
lugar, as ruas da vila. Um carro de verdade é um
tem um momento em que acontece uma ruptura a
transformando em outras coisas.
importante elemento cênico, tínhamos essa von-
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
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Estrada do Sul
Foto: Grupo XIX de Teatro
Estrada do Sul
Foto: Grupo XIX de Teatro
Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo Foto: Adalberto Lima
ESTRADA DO SUL Este é um trabalho um pouco mais paralelo, porque nasce de uma parceria com Pietro Floridio, inclusive parte de uma provocação dele. Ele quetade de chocar o ficcional, da fábula, com esse real,
E há uma referência indireta àquele corpo
ria trabalhar o conto do Julio Cortázar, mas im-
da rua dentro da Maria Zélia. De personagens, que
estranho familiar, que não identificamos, mas ao
primimos características muito nossas: ocupação
ficam neste limite entre a realidade e a ficção que
mesmo tempo é uma instituição que não fecha
do espaço, dramaturgia colaborativa e interação
acaba sendo um tema do trabalho. Tanto o surto
completamente, meio que não sabemos o que
com o público. é um trabalho de intervenção
da Alaíde como este ponto de contato entre a re-
está nos tocando, incomodando. Queríamos tra-
pública muito plástico, uma espécie de engarra-
alidade e a ficção, que já está colocado na obra do
balhar com isso. Eu acho que os três primeiros
famento que fizemos com 20 carros de verdade.
Nelson. Nós só potencializamos.
espetáculos do grupo trabalhavam dentro de uma
A peça acontece nos carros. São 23 atores, cada
Eu estava muito apaixonada pela pesquisa
comunicação muito direta, os temas eram muito
um em um carro, com três ou quatros pessoas da
e foi a primeira vez que sentimos a necessidade
claros, a defesa era muito clara, a porta de en-
plateia, numa interpretação quase cinematográ-
de alguém do grupo dos atores assumir a dire-
trada do público tinha muita objetividade. Neste
fica, muito perto, muito íntima. Então ora você
ção com o Lubi. E foi uma coisa que ele acolheu
nem nós tínhamos total clareza sobre o que a
assiste à cena feita por este ator dentro do carro,
muito bem, é um diretor muito generoso, muito
peça falava, tocava algumas sensações de mun-
ora tem as cenas coletivas, troca de carro, tem
sem vaidade de querer monopolizar. Sempre foi
do, então não defendíamos uma espécie de tema,
uma série de dinâmicas e um aspecto bem radical
colaborativo e mais ainda neste caso. Dividimos
uma posição. Foi muito importante para o grupo.
de intervenção.
a direção, e foi naturalmente, nem era um desejo
O estranho familiar era uma síntese destas
Acho que é uma dramaturgia até um pouco
sensações que tentamos visitar, sem ser um es-
suscetível, porque é um processo de apenas um
Foi um espetáculo todo recriado, toda uma
petáculo de bandeira, de defender alguma coisa
mês, muito corrido para trabalhar com material
livre apropriação dessa atmosfera vertiginosa que
mais clara. Conseguimos abrir este meio de cam-
de tantos atores. Conseguiríamos aprofundar
o Nelson propõe. Fomos colocando nosso depoi-
po e deixá-lo aberto. Tanto que nossa pesquisa
melhor, ficou um pouco didático demais, dis-
mento, nossa visão. Foi uma criação muito livre,
atual, em cima do Teorema do Pasolini, também
cursivo demais, tinha que ser mais enigmático.
muito importante pro grupo se jogar numa outra
tem a ver com ter aberto esta possibilidade de
é característica do grupo, após a estreia do es-
textura estética, uma outra estrutura de lingua-
trabalhar obras mais estranhas, talvez mais in-
petáculo, continuar mexendo na dramaturgia
gem. Realmente foi um passo importante, de
digestas ou estes conteúdos que não se dão tão
durante bastante tempo. O trabalho fica sempre
reinvenção, de um despudor, de uma vontade de
claramente. São obras que pedem um exercício
vivo na relação com o público. E neste não tive-
trafegar ao que tínhamos erigido, fazer o que es-
de decifração por parte do público, já que não há
mos esta oportunidade pela estrutura que exige.
távamos a fim, de se jogar em experiências novas.
uma identificação direta. Foi realmente um ca-
Foi uma experiência bem interessante na vida do
Nelson sempre é um desafio. Não se acovardar
minho que se abriu e que deixamos aberto para
grupo e esperamos conseguir fazer de novo.
diante de uma obra tão canonizada.
continuar investigando.
meu e nem continua sendo.
CADERNO DEMÚSICA TEATRO
SEGUNDO segundo seMesTRe SEMESTRE
2014
POR LUIZ FERNANDO MARQUES
42
DIRETOR DO GRUPO XIX DE TEATRO
SOBRE A DRAmATuRGIA DA RECEPÇÃO E O LuGAR DO ESPECTADOR
Marcha para Zenturo
Foto: Divulgação Grupo XIX de Teatro
A expressão dramaturgia da recepção é algo
No começo, chamávamos isso de interativi-
que fomos elaborando aos poucos. Desde a
dade e depois caminhamos para dramaturgia da
primeira peça, Hysteria, nós já nos deparamos
recepção, ao perceber que não tinha só a ver com
com o desafio da interatividade, que nasceu
o momento em que a plateia falava ou que a gen-
não com o desejo de discutir a interatividade
te abordava e ela respondia. Tinha a ver com toda a
no teatro, mas do de colocar aquelas persona-
situação da plateia. Todo este momento desde a sua
gens do século passado para conversar com as
chegada. Passamos a usar isso nas peças e pensar
dos dias de hoje.
qual era o caminho da plateia. A que ela estava sendo
Naquela época, a interatividade no teatro
convidada, onde ela estava, qual era o jogo proposto.
estava pautada em duas linhas. Uma de uma cer-
Tem uma brincadeira que usamos muito no XIX, que
ta sátira – eu domino a linguagem e você não,
é quase estabelecer uma situação muito real, muito
logo você aqui em cima é um pouco risível, – en-
crível, mas ao mesmo tempo é um jogo, é teatro.
tão levavam as pessoas da plateia para o palco, o
No caso de Hysteria, estamos num hospício, é
que remonta a ideia do palhaço. Também estava
século 19 e a brincadeira é um pouco essa. Todo
um pouco na moda na época a ideia de uma in-
mundo vai entrando neste jogo. A sofisticação desta
teratividade ligada à democracia, de consultar a
dramaturgia está no fato de ela ser muito subjetiva,
plateia, que decidia para que lado ia a peça.
um pouco construída por cada um ou até por aquilo
Fomos percebendo que nosso interesse era
que aquele conjunto de pessoas que está assistindo
em uma interatividade que desse conta de um
representa. Percebemos que, de cidade para cidade,
acontecimento. Que a plateia estivesse ali para
de lugar para lugar, de apresentação para apresen-
viver alguma coisa e, ao viver isso, pudesse in-
tação, a peça se transforma pelo conjunto de da-
fluenciar ou contaminar a peça naquele dia. Isso
dos culturais daquele grupo de pessoas, o que vem
nos levou a pensar num conceito que usamos
nos chamando muita atenção, principalmente por
até hoje que eu chamo de dramaturgia aera-
termos a oportunidade de fazer as peças há tantos
da (inspirado no chocolate Suflair®), que é uma
anos, Hysteria há quase 14, Hygiene há 10.
dramaturgia que seja rígida, mas que tenha ar
Hysteria é um hospício; Hygiene fala de como
dentro. Que permita a entrada da plateia para
as pessoas usavam a rua, o espaço público no final
constituir a dramaturgia daquele dia.
do século 19; em Arrufos é como se chamássemos
CADERNO DE TEATRO
segundo seMesTRe
2014
43
o público para o acolhimento dos quartos das pessoas. Fazemos esta inversão. Do mais extremo do urbano para o íntimo da alcova. No Nada aconteceu, a ideia da festa de casamento, uma festa que vai alucinando. Isso nos levou a sair do espaço convencional e também modifica, tem a própria dramaturgia que este espaço conta, um hospício, um cortiço, um hospital, uma igreja, o que faz com que já esta recepção seja diferenciada. Eu não estou num teatro ali sentado no escuro. Eu já de cara estou contando a história e, em todas as peças, aos poucos a plateia percebe que ela faz parte totalmente do espetáculo, tem uma hora que esta ficha cai para todo mundo. “Então somos nós que estamos construindo isso daqui.” Deixando de lado esta imagem um pouco mais passiva habitual que “eu estou protegido ali no escuro, assistindo a alguma coisa ali na minha frente”.
a dramaturgia da recepção vai acontecendo desde
ramos aconteça. Esse acontecimento acaba sendo
Tanto dentro do XIX como fora dele, em exer-
a chegada e fomos percebendo ao repetir a peça.
uma coisa única naquele dia e faz daquele um dia
cícios ou experimentos, radicalizamos isso mais
Quando escolhemos fazer Hysteria dentro de uma
especial. Existe uma tendência em quem nos assiste
fortemente, por exemplo, trabalhando para uma só
casa histórica, em um primeiro momento, era essa
que é de falar assim: “nossa, no dia que eu vi...”,
pessoa ou trabalhando a ideia de filtros, o que gos-
a melhor moldura para a peça. Na verdade, desde
como se só naquele dia tivesse acontecido aquilo.
tamos muito. Quase como se déssemos um filtro
a hora que a pessoa chegava lá já era um acon-
Mas todo dia acontece alguma coisa.
para a pessoa assistir a partir de um determinado
tecimento pra ela, porque ela não foi num teatro,
Essa situação tem uma coisa que me é cara no
ponto de vista. No Hysteria tem isso. Ao separar ho-
porque ela foi num lugar abandonado ou, como
teatro, que é a questão do encontro, da presença.
mens e mulheres, você acaba dando um filtro que
em Porto Alegre, no Vila Flores, era um lugar que
Acho que isto vem muito de uma angústia de que
é um ponto de partida, que é a questão do gênero.
a plateia só passava por fora e de repente estava
somos de uma geração em que o cinema e a TV
Por que estamos separando homens e mulheres?
vendo por dentro... e começa a pensar, o que acon-
já estão estabelecidos de uma maneira muito ab-
Isto é quase um pergunta primeira que fica pairan-
teceu aqui? Com tudo isto, eu já vou construindo
soluta. Diferente de uma geração anterior que foi
do no ar. Por que eu estou deste lado e não do ou-
um estado.
entendendo o cinema e o teatro. Então, acho que
tro? O que significa este lado só de mulheres ou só
só faz sentido pra nós fazermos teatro se for para
de homens? Então sempre tentamos ir provocando
Em BUSCA DO ERRO
dilatar e colocar em destaque aquilo que é essen-
o espectador para que ele vá se posicionando du-
Brinca muito com isso no Nada aconteceu, no qual
cial ao teatro. Para mim, uma das coisas tem a ver
rante o espetáculo. Vai desde uma questão física, de
até quem te recebe, uma espécie de bilheteira, vai
como isso. As dramaturgias de hoje são o revolu-
você ter que mudar de ângulo para poder assistir,
entrando na peça e de repente não se sabe mais
cionário do teatro. Tudo é muito virtual e, mesmo
até uma questão de ponto de vista mesmo. Eu me
quem é quem. Este limite do dentro-fora fica mui-
que presentificado, costuma ser cada vez mais in-
coloco em tal lugar para poder assistir.
to fino, o que nos agrada muito, enquanto o teatro
dividualizado: os meus apartamentos, as minhas
Já na chegada, ou eu separo as pessoas como
costuma buscar o oposto. A caixa fechada vazia,
cabines, a minha mesa...
no Nada aconteceu, com a distribuição dos convi-
sem nenhuma interferência, situação que falo que
Então, propor uma atividade que é completa-
dados nas mesas da festa de casamento ou banco
vem da química: em condições normais de tem-
mente coletiva, que tem 70 pessoas ao redor, para
o fotógrafo e vou provocando como se fosse uma
peratura e pressão, tudo perfeito para que aquela
mim, já é algo que não pode ser descartado nos
conversa qualquer e já é um assunto que de certa
vida aconteça. No nosso caso – os atores não gos-
dias de hoje. E se colocarmos uma lente de aumen-
forma alimenta o que vamos assistir. Do nada, falo
tam muito que eu fale isso –, é quase como se bus-
to sobre isso e fazer com que também faça parte da
sobre o mal-assombrado, do vulto, que são coisas
cássemos o erro. Como se tivéssemos aberto para
construção deste espetáculo?
que vão aparecer mais pra frente da peça. Então,
que algo nos atravessasse, aquilo que não espe-
MÚSICA
segundo seMesTRe
2014
POR DANIEL WOLFF
44
MúSICO. PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE MúSICA E DO PROGRAMA DE PóS-GRADUAçãO EM MúSICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS). MESTRE E DOUTOR EM MúSICA PELA MANhATTAN SChOOL OF MUSIC (NOVA YORK). PóS-DOUTORADO COMO PROFESSOR VISITANTE DA UNIVERSITäT DER KüNSTE (BERLIM). www.danielwolff.com
fESTIVAIS DE múSICA: umA mISTuRA DE ARTE, CRIATIVIDADE E EDuCAÇÃO
ceses em maio de 1968, da Primavera de Praga no
versas canções protestavam contra as injustiças
mesmo ano, do movimento hippie com seu flower
sociais e a repressão. Torcidas ferrenhas organi-
power em oposição à Guerra do Vietnã. Não é de
zavam-se em torno das músicas concorrentes,
surpreender que essa efervescência transpareces-
como no caso de A banda (Chico Buarque) e
se nos festivais musicais da época.
Disparada (de Geraldo Vandré), finalistas do Fes-
é o caso do Festival de Monterey (Monte-
tival de Música Popular Brasileira da TV Record,
rey International Pop Music Festival), no estado
em 1966. Como disse o jornalista Zuza homem
Os festivais de música, normalmente, gozam de
norte-americano da Califórnia, em 1967, no qual
de Mello: “Nos 10 dias que antecederam a final
considerável popularidade. São eventos de suma
Jimmy hendrix incendiou sua guitarra em pleno
[do festival da TV Record] o Brasil parecia viver
importância para os músicos, oferecendo-lhes
palco. Dois anos mais tarde, em outro evento
uma Copa do Mundo e, após a declaração de um
mercado de trabalho e a possibilidade de inter-
histórico, o Festival de Woodstock (Woodstock
empate entre ambas, o país se deu conta da gran-
câmbio com outros profissionais da área. São
Music & Art Fair), cujo lema era “três dias de paz
deza de sua música popular.”
também uma importante vitrine, servindo mui-
e música”, hendrix novamente extrapolou: em
Outro momento marcante da tensão que
tas vezes de plataforma de lançamento para a
pleno período da Guerra do Vietnã, imitou com
reinava na época foi o discurso irado de Caeta-
carreira artística. Para o público, representam a
sua guitarra o som de bombas jogadas por aviões,
no Veloso, enquanto a plateia vaiava É proibido,
oportunidade de assistir a uma gama variada de
intercalado com trechos do hino nacional dos Es-
proibir, defendida por Caetano e pelos Mutantes,
espetáculos em uma só ocasião.
tados Unidos, The Star-Spangled Banner.
sob arremessos de ovos, tomates e pedaços de
há vários tipos de festival de música. Alguns
O Brasil vivia, neste momento, um triste
madeira, na final paulista do III FIC (1968). Outra
consistem somente de apresentações musicais,
capítulo da sua história: os chamados “anos de
vaia histórica foi para Beto Bom de Bola, de Sérgio
seja no formato de mostra ou de concurso. Outros
chumbo”, com o regime militar, a censura e a per-
Ricardo, que, sob o calor do momento, quebrou
incluem também cursos, oficinas e outras ativida-
seguição política. Fui justamente neste período de
seu violão e o jogou em direção à plateia, antes
des pedagógicas. Normalmente, são organizados
ditadura que ocorreu o que ficou posteriormente
de abandonar o palco, durante o III Festival de
em torno de um tema, que pode ser um gênero
conhecido como a Era dos Festivais da música
Música Popular Brasileira (1967).
(como música folclórica), um local geográfico
popular brasileira (1965-72), que incluiu os cé-
Foram anos em que todos estavam com os
(como o Festival de Música Porto Alegre, promovi-
lebres festivais da TV Excelsior, da TV Record e os
nervos à flor da pele. E a ditadura militar não
do pela Secretaria Municipal de Cultura), um ins-
Festivais Internacionais da Canção (FIC). Nestes
ignorava o que estava ocorrendo. Disse Walter
trumento (como Festival de Violão da UFRGS) ou
eventos, projetaram-se nacionalmente artistas
Clark, ex-diretor da Globo, que recebeu uma or-
um período (música barroca, por exemplo).
como Elis Regina, Edu Lobo, Chico Buarque, Nara
dem do gabinete do general Sizeno Sarmento,
Apesar de existirem há muito tempo, foi na
Leão, Jair Rodrigues, Caetano Veloso, Milton Nas-
comandante do I Exército, proibindo a vitória de
segunda metade do século 20 que os festivais de
cimento e Gilberto Gil, entre muitos outros. Esta-
Para não dizer que não falei de flores, de Geraldo
música atingiram proporções de massa. A década
va ali o suprassumo da música popular brasileira,
Vandré, em razão de sua letra considerada sub-
de 1960 foi um momento de grande efervescên-
reunido em torno de uma mesma causa.
versiva (segundo Clark, esta informação não foi
cia política e cultural. Foi o período da contracul-
O engajamento político, tanto dos artistas
repassada ao júri). Popularmente conhecida como
tura britânica, dos protestos dos estudantes fran-
quanto do público, era notório. As letras de di-
Caminhando, a canção acabou ficando com o se-
MÚSICA
segundo seMesTRe
2014
45
Os festivais são uma importante vitrine, representam possibilidade de intercâmbio e, para o público, oportunidade de assistir a uma gama variada de espetáculos em uma só ocasião Foto: Arquivo pessoal Foto: Arquivo pessoal Foto: Marielen Baldissera
gundo lugar no III FIC (1968), resultando em ou-
tradicionalistas como a Califórnia da Canção Na-
tra histórica vaia, desta vez para Sabiá, de Chico
tiva (Uruguaiana) e o Musicanto Sul-Americano
Buarque e Tom Jobim, que ficou com a primeira
de Nativismo (Santa Rosa) buscam valorizar, entre
colocação. Na ocasião, Vandré disse a célebre fra-
outros, a produção do movimento nativista, que
se: “A vida não se resume em festivais.”
resgata as raízes folclóricas gaúchas. No âmbito da
Parece que o futuro deu razão à declaração
música erudita, o Encompor (Encontro de Compo-
de Vandré: nos festivais ocorridos a partir da se-
sitores Latino-Americanos), com sete edições rea-
gunda metade da década de 1970, viu-se uma
lizadas entre 1988 e 2001, colocou a obra de com-
disputa bem menos ferrenha, ao menos fora dos
positores contemporâneos gaúchos lado a lado
palcos. Vaias homéricas e discussões acaloradas
com a música do resto do continente. Tivemos até
entre torcidas tinham ficado para trás. Já as le-
um “Woodstock gaúcho”, como ficou conhecido o
tras das canções tinham cada vez menos cunho
Cio da Terra, festival que, em sua única edição (Ca-
político, o que é natural com o declínio da ditadu-
xias do Sul, 1982), congregou grandes nomes da
ra, que afrouxava aos poucos suas rédeas. Como
música popular gaúcha, como Nei Lisboa, Bebeto
exemplo, vejam-se os ganhadores dos festivais
Alves, Saracura, Giba-Giba e Nelson Coelho de Cas-
MPB Shell, promovidos pela Rede Globo no início
tro, e artistas de outras partes do Brasil, como Ge-
da década de 1980. Belas canções como Agonia,
raldo Azevedo, Sivuca, Jorge Mautner e Ednardo.
de Mongol, e Purpurina, do gaúcho Jerônimo
há outros festivais que têm menor ape-
Jardim, privilegiavam temas mais sentimentais.
lo popular, mas que apostam mais em aspectos
O mesmo pode-se dizer de Escrito nas estrelas
educacionais e sociais. Muitos destes têm deno-
(Arnaldo Black e Carlos Rennó), vencedora do
minações diversas, como mostra, simpósio, semi-
Festival dos Festivais, em 1985.
nário ou encontro (como é o caso do já citado En-
Nas últimas duas décadas do milênio, o foco
compor). Na prática, contudo, não diferem tanto
da mídia passa a recair sobre festivais como o
de outros eventos categorizados como festivais.
Rock in Rio, que consistem de shows de artistas
Podemos citar, no Rio Grande do Sul, o Seminário
consagrados, tanto do Brasil como do exterior.
de Jovens Instrumentistas da Fundarte (Monte-
Mostras competitivas de músicos em início de
negro), o Festival de Internacional de Inverno da
carreira, nos moldes dos festivais da década de
UFSM (realizado até hoje no Vale Vêneto) e os Se-
1960, continuam existindo, é claro, mas nem de
minários Internacionais de Violão de Porto Alegre
longe com o mesmo apelo ante o público. Pelo
(promovidos pelo Liceu Musical Palestrina entre
menos em nível nacional.
1969 e 1988).
Os gaúchos, contudo, não medem esforços
O Festival de Violão da UFRGS, projeto que
em promover eventos nos quais seus talentos
criei e coordeno desde 2004, entra nesta mesma
possam despontar. No Rio Grande do Sul, festivais
categoria. Consolidado como um dos maiores
MÚSICA
segundo seMesTRe
2014
46
eventos violonísticos da América Latina, em suas sete edições contou com participantes de diversas regiões do Brasil, Uruguai, Argentina, Colômbia, Chile, México, Alemanha e Costa Rica. Além de recitais e concertos dos professores como solistas da Orquestra de Câmara da Ulbra e da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, o evento oferece palestras, oficinas, masterclasses, mesas-redondas e comunicações de pesquisa. é nesta empreitada que aplico a experiência que adquiri nos diversos festivais em que me apresentei e lecionei: França,
PORTO ALEGRE é NOVAmENTE REfERÊNCIA NO ENSINO DO VIOLÃO Foto: Maciel Goelzer
O Festival de Violão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), projeto que desenvolvo no Programa de Extensão do Departamento de Música da universidade, começou com um porte razoavelmente modesto, se comparado com a abrangência alcançada em suas edições mais recentes. A primeira edição ocorreu entre 26 e 28 de outubro de 2004, nas dependências
Alemanha, Itália, Noruega, Estados Unidos, México,
do Instituto de Artes. Teve o subtítulo de “Música
Uruguai e Argentina, além, é claro, de vários even-
Gaúcha para Violão”, pois todos os compositores
tos por este Brasil afora.
interpretados eram do Rio Grande do Sul e todos
Em 2015, terei a oportunidade de participar
os músicos participantes residiam no Estado.
do V Festival Internacional Sesc de Música, em Pe-
Eu já tivera alguma experiência na organi-
lotas. Será um evento de grande porte, reunindo
zação de eventos: fora membro da comissão co-
professores de 12 países, com atividades artísticas,
ordenadora de várias atividades de extensão na
pedagógicas e sociais. Além de representar uma
universidade e tinha também participado, como
ótima oportunidade para fazer música e trocar
músico convidado, de festivais fora de Porto
informações com colegas e alunos, este evento re-
Alegre. Mas esta seria minha primeira experiên-
aviva em minha memória a participação que tive
cia como coordenador-geral de um festival.
em outro projeto do Sesc: o Sonora Brasil. Foi uma
Participaram, além de mim, os professores
turnê ocorrida entre maio e agosto de 2009, com
Flávia Domingues Alves e Fernando Mattos (meus
concertos em 80 cidades de 20 estados do Brasil,
colegas na UFRGS), Ricardo Mitidieri (atualmente
além da gravação de um CD e de um DVD. Uma das
professor do Instituto Federal do Rio Grande do
experiências mais marcantes da minha vida!
Sul) e, da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL),
Felizmente, muitos dos festivais aqui mencio-
os professores James Correa e Thiago Colombo de
nados ocorrem até hoje. São fruto do empenho in-
Freitas (ambos professores substitutos da UFRGS
condicional de um seleto grupo de empreendedo-
na época), Rogério Constante (então doutorando
res, que não medem esforços para levar ao público
na UFRGS) e Márcio de Souza. Também participa-
eventos musicais de alta qualidade. Isto não seria
ram os violonistas convidados Paulo Inda e Edu-
possível sem o apoio de pessoas, empresas, insti-
ardo Casteñara, além de alunos de graduação e
tuições de ensino e órgãos governamentais que,
mestrado da UFRGS. As atividades consistiram de
com ou sem o apoio de leis de incentivo à cultura,
recitais, oficinas e palestras.
financiam a realização destes importantes eventos.
Apesar de ter sido uma experiência muito
Esperemos que o futuro nos reserve ainda muitos
positiva, cinco anos se passaram antes da se-
festivais, para que possamos celebrar juntos esta
gunda edição do festival. Neste interstício, estive
que – permita-me o leitor puxar um pouco a brasa
ocupado com uma série de projetos paralelos,
para a minha sardinha – é a mais bela das artes:
além de residir em Berlim, entre 2007 e 2008. Em
a música.
2009, comigo já de retorno a Porto Alegre, deu-se
Concordo com Geraldo Vandré: a vida não se resume em festivais. Mas, sem eles, a vida seria bem mais monótona...
a ocasião propícia para retomar o festival. Apro-
MÚSICA
segundo seMesTRe
2014
47
veitando que, no mês de novembro, em uma só
de grandes nomes do violão brasileiro, como
Sinfônica de Porto Alegre, tendo como solista o
semana, minha classe de mestrandos faria quatro
Guinga e Fábio Zanon, e do premiado violonista
célebre violonista Turíbio Santos. Outros grandes
recitais, o professor Mário Ulloa, da Universidade
chileno José Antonio Escobar, participaram do
nomes brasileiros que participaram do festival fo-
Federal da Bahia (UFBA), iria ministrar master-
evento os professores Gilson Antunes (UFPB),
ram Marco Pereira, João Pedro Borges e Egberto
classes de violão na UFRGS e eu, Thiago Colombo
Eduardo Meirinhos (UFG), Fernando Araújo
Gismonti. Do exterior, contamos com a presen-
e Paulo Inda faríamos a estreia mundial do Con-
(UFMG), Márcio de Souza e Thiago Colombo
ça do alemão Daniel Göritz (professor da Escola
certo Tríplice de Fernando Mattos (junto com a
(UFPEL), bem como os professores de violão da
Superior de Música de Berlim) e dos premiados
Orquestra de Câmara da Ulbra regida por Tiago
UFRGS. Acudiram alunos de diversas partes do
violonistas Francisco Gil (México) e Eduardo Cas-
Flores), agrupei todas estas atividades para com-
Brasil, Argentina e Colômbia. Minha batalha de
tañera (Argentina). A prata da casa esteve nova-
por o II Festival de Violão da UFRGS.
tantos anos pela promoção do Festival de Violão
mente bem representada pelos docentes do setor
da UFRGS estava finalmente dando resultado: o
de violão da UFRGS.
Dois anos mais tarde, em novembro de 2011, teríamos a terceira edição do festival,
evento ganhava visibilidade continente afora.
Com um histórico deste porte, o Festival de
dedicada à professora Flávia Domingues Alves.
Entusiasmado com os resultados obtidos,
Violão da UFRGS consolidou-se como um dos
O evento adquiria porte internacional, com a
inscrevi o evento no prêmio Ibermúsicas de
maiores eventos violonísticos da América Latina.
participação dos professores Carlos Santi e Luis
apoio a festivais. O programa Ibermúsicas con-
Fabio Zanon, professor da Royal Academy of Mu-
Soria, da Universidad de la Rioja, Argentina,
siste de um fundo de fomento à cultura gerido
sic (Londres), habituado a participar de festivais
trazidos com apoio da Discoteca Pública Natho
por vários países ibero-americanos. Para minha
na Europa, na Ásia e nos Estados Unidos, declarou
henn (por intermédio do seu diretor, o músico
felicidade, o Festival de Violão da UFRGS foi o
publicamente sua impressão sobre o festival da
Pedrinho Figueiredo) e do Programa de Pós-
único evento brasileiro contemplado com o prê-
UFRGS: “é dos melhores festivais que conheço!”
-Graduação em Música da UFRGS. Aumentavam
mio. Isto permitiu que a quinta edição do fes-
Como resultado, a visibilidade da música
também as atividades pedagógicas: além dos
tival, realizada em junho de 2013, tivesse um
gaúcha e, em especial, do ensino do violão na
recitais, o evento contou com palestras, master-
escopo ainda maior.
UFRGS tem merecido cada vez mais atenção,
Foram sete dias de concertos, palestras, ofi-
atraindo alunos de diversas regiões do Brasil e
No afã de ampliar o escopo do festival, ten-
cinas, masterclasses, comunicações de pesquisa
do exterior para os cursos de graduação e pós-
tei de diversas maneiras obter financiamento para
e mesas-redondas. Participam artistas do Brasil
-graduação da universidade. Porto Alegre volta
expandir o evento. Quem veio ao meu auxílio foi a
(Yamandú Costa e Paulo Martelli), Uruguai (Edu-
a ser um centro de excelência do violão – posi-
professora Sandra de Deus, pró-reitora de Exten-
ardo Fernandez, Mauro Marasco, Daniel Morga-
ção que ocupara na década de 1970, em virtude
são da UFRGS. Entusiasmada com o projeto, ela
de), Argentina (Juan Falú, Carlos Groisman, Edu-
dos Seminários Internacionais de Violão promo-
me colocou em contato com o Departamento de
ardo Castañera), Chile (Luis Orlandini) e Costa
vidos pelo extinto Liceu Musical Palestrina.
Difusão Cultural da universidade que, desde então,
Rica (Mario Ulloa), além dos docentes do setor
Isto não é mérito exclusivamente meu.
passou a gerir o festival em parceria com o Progra-
de violão da UFRGS. Vieram alunos de várias
O alto nível do nosso festival é fruto do esforço
ma de Extensão do Departamento de Música.
partes do Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia.
de vários professores e técnicos administrativos
Isto permitiu uma considerável expansão já
Durante o festival, foram lançados os discos que
da UFRGS, dos nossos alunos (alguns dos quais
na quarta edição do festival, realizada em junho
gravei pela série Música em Performance, do
participam como bolsistas) e de parceiros que,
de 2012. Foram quatro dias de concertos, mas-
Programa de Pós-Graduação em Música.
como nós, amam o violão. Espero poder conti-
classes e comunicações de pesquisa.
terclasses, oficinas, palestras e mesas redondas,
O VI Festival de Violão da UFRGS, realizado
nuar, por muitos anos, a oferecer este presente à
com alguns dos maiores expoentes do violão do
em setembro de 2014, inseriu-se nas comemo-
comunidade de Porto Alegre e aos que nos visi-
Brasil e do exterior, abrangendo profissionais
rações dos 80 anos da universidade. Tivemos,
tam de outros pagos.
atuantes em seis estados da federação. Além
pela primeira vez, a participação da Orquestra
MÚSICA
segundo seMesTRe
2014
48
tor da escola, que era também o maestro da orquestra de sopros de Logatec, sua cidade natal, a optar pelo instrumento. “Estavam precisando de trompista na orquestra e o diretor falou que eu poderia trocar caso não gostasse. Tenho que dizer que não me arrependo nem um pouco de ter permanecido com a trompa.” Zust começou os estudos com Janez Polance e depois ingressou na Academia de Música Bostjan Lipovsek em Ljubljana, Eslovênia, período que obteve incentivo artístico de renomados músicos como hermann Baumann, Froydis Ree Wekre, Viktor Malisch e Radovan Vlatkovic. Ainda como estudante, recebeu vários prêmios, entre eles o Povolletto, na Itália, em 2001. Com 20 anos, já era considerado o principal trompista da Orquestra Filarmônica Eslovena em Ljubljana. Também era
DE BERLIm PARA PELOTAS O TROmPISTA ANDREj ZuST ESTARá NO 5º fESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE múSICA
membro da Orquestra Jovem Gustav Mahler, com a qual excursionou pelo Brasil em 2007, tocando em São Paulo e Rio de Janeiro, e da Orquestra do Festival de Música do Pacífico. O primeiro contato com a Filarmônica de Berlim ocorreu em 2009, ao ser aprovado em uma audição para a Karajan Academy, vinculada à orquestra alemã. Depois de dois anos na orquestra acadêmica, também tocando música de câmara e fazendo treinamento para audição, Zust teve a oportunidade de ingressar na Filarmônica e não desperdiçou. “é o trabalho dos sonhos e às vezes eu nem acredito que faço parte desta orquestra”, revela.
Além da orquestra, o músico esloveno se dedica à música de câmara Foto: Divulgação Andrej Zust
Tradicional por ter entre seus professores expo-
No Brasil, o trompista está na expectativa
entes mundiais da música instrumental e de con-
de trabalhar com músicos de formações musi-
certo todos os anos, o Festival Internacional Sesc
cais e nacionalidades diferentes, e principalmente
de Música trará em sua 5ª edição, de 18 a 30 de
tocar música de câmara com os colegas e jovens
janeiro, em Pelotas/RS, o músico esloveno Andrej
estudantes. “Festivais como este do Sesc ofere-
Zust, integrante do naipe de trompas da Orques-
cem todo o tipo de oportunidades para os alunos,
tra Filarmônica de Berlim, uma das mais concei-
desde tocar com professores, ter aulas individuais,
tuadas da Europa. O trompista, que também de-
tocar em orquestra e poder fazer treinamento para
senvolve uma intensa programação de música de
audições”, avalia o músico. Sobre os músicos bra-
câmara, será um dos 40 professores do festival,
sileiros, diz que conhece alguns, entre eles, o violi-
oriundos de 12 países.
nista Luiz Filipe Coelho, seu colega na Filarmônica
Com 30 anos, Zust tem uma carreira preco-
de Berlim, e que todos são de altíssimo nível, assim
ce. A trompa não era sua primeira opção, e sim o
como a Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp),
piano, a exemplo da irmã; entretanto, como não
que ouviu durante uma turnê europeia.
havia lugar na classe, foi convencido pelo dire-
MÚSICA CINEmA
SEGUNDO segundo seMesTRe SEMESTRE
2014
POR FLÁVIA SELIGMAN
49
CINEASTA E PROFESSORA DA UNISINOS E DA ESPM – SUL
CINEmA COm CARA DE TELEVISÃO O cinema contemporâneo brasileiro, especialmente aquele produzido a partir dos anos 1990, mostrou-se de caráter híbrido e diversificado. Por conta de uma série de fatores, sociais, políticos, culturais e tecnológicos, o produto audiovisual nacional, hoje, tem características inéditas dentro da história da produção nacional (a saber, uma faixa de pelo menos cinco filmes por ano com mais de 2 milhões de espectadores e uma mobilidade transmidiática por conta do avanço tecnológico e da própria expansão da comunicação) e uma intimidade com o público de classe média só vista em alguns ciclos de comédias populares nos anos de 1950 e 1970. As relações entre o cinema brasileiro e o público nem sempre foram cordiais e, durante
Nos anos 1940 e 1950, as vedetes do teatro
toda sua história, poucos foram os momentos
rebolado encantavam o público da chanchada
de estreitamento.
com números musicais em trajes provocantes.
São três os momentos importantes e, não
Um humor ingênuo e simplório misturava nar-
por acaso, todos eles ligados a uma matriz
rativas lineares e previsíveis com marchinhas de
narrativa bastante presente na cultura popu-
carnaval conhecidas e aprovadas pelo público.
lar brasileira: a comédia de costumes. Primeiro
Na década de 1960, o Brasil fez o que o res-
na chanchada dos anos 1940 e 1950, seguido
to do mundo já fazia: adequou-se ao mercado de
pela pornochanchada dos anos 1960 e 1970, e
consumo, explorando a nova vertente do erotis-
atualmente nas comédias da Globo Filmes, re-
mo e da sensualidade. A pornochanchada ocupou
tomando elementos conhecidos que sempre
uma fresta, produzindo filmes tão “pornográficos“
funcionaram bem, como a paródia, a sátira de
quanto a grande massa espectadora desejava ver
costumes do cotidiano e o erotismo, que sempre
e tão “inócuos” quanto a censura militar prezava.
esteve sempre presente, guardando as diferenças de cada época.
A comédia de costumes contemporânea reavivou o erotismo cômico, dando uma rou-
Cidade de Deus
Foto: Divulgação Globo Filmes
CINEMA
segundo seMesTRe
2014
50
pagem técnica bem mais apurada e agregando
fixou como o parâmetro de boa televisão no país
uma vez que fazia do espectador um cliente fiel,
elementos da televisão (atores, diretores, ele-
e no mundo.
que baseava sua vida “fora da televisão” nos horá-
mentos narrativos) para conquistar o público.
Por padrão de qualidade, entende-se, aqui,
rios ditados por ela, como, por exemplo, compro-
Novamente, são comédias leves, de caráter po-
uma imagem trabalhada com afinco, fotografi-
missos fixados para depois do Jornal Nacional ou
pular massivo, porém, agora, tecnicamente bem
camente cada vez melhor, temas que se ocupas-
da novela das oito (hoje, às nove), os dois progra-
trabalhadas, visto que o espectador atual tem
sem de assuntos permitidos pela época (dramas,
mas de maior audiência da Globo por anos.
como base um padrão de qualidade bastante
épicos, adaptações de clássicos da literatura e do
Depois do Governo Collor, com o advento da
alto, como é o da televisão.
teatro e a comédia de costumes, sempre presente),
Retomada, a Rede Globo, que nunca havia aposta-
Responsáveis por boas bilheterias como Se
um cuidado permanente com a censura, evitando,
do na área cinematográfica, não perdeu a chance
eu fosse você 2 (Daniel Filho, 2009, 6 milhões de
principalmente durante os anos 1970, a referên-
de participar, criando em 1997 a Globo Filmes e
espectadores), De pernas pro ar (Roberto Santuc-
cia política e as questões sexuais (dado este que,
expandindo do maior polo produtor de conteúdo
ci, 2010, 3 milhões de espectadores), Cilada.com
na época atual, aparece com frequência, visto a
de ficção do país para fronteiras além da trans-
[1]
(José Alvarenga Jr, 2,9 milhões de espectadores),
transformação do mercado); enfim, aquilo que se
missão televisiva, principalmente contando com o
estas comédias padronizam uma matriz que leva
pode chamar de uma estética bem formada, sem
próprio produto televisivo em algum momento do
em conta 50 anos de boa televisão. Mais do que
grandes arroubos, mas também sem descuidos que
processo, modificando a configuração do espaço
isto, são elementos audiovisuais absolutamente
pudessem melindrar o gosto do público.
audiovisual nacional.
conhecidos e aceitos pelo público heterogêneo,
O termo Padrão Globo foi taxado pela im-
Até 2012, a Globo Filmes participou de
tratados e retratados pela teledramaturgia com
prensa, mas a empresa utilizou-se dele para con-
mais de 100 títulos e, fazendo um balanço de
um determinado padrão de qualidade.
figurar um estilo audiovisual que marcou o país e
mais de uma década de produção, constata-
A definição deste padrão tem seu início na
o mundo, elevando-se entre os principais em qua-
se que ela está envolvida na maior parte dos
concepção de um perfil de qualidade técnico/es-
lidade de produção e exportando, principalmente
filmes que alcançaram mais de um milhão de
tético definido pela TV Globo ainda na década de
novelas, para todos os continentes.
espectadores. Um dos motes da empresa é di-
1970 e segue nos anos seguintes se adaptando às
Este padrão conferiu à empresa uma marca
versificar a produção e trabalhar com temas,
novas tecnologias e à nova concepção de mercado.
de qualidade e também uma política de centraliza-
produtoras e diretores diferentes, mas anali-
Durante sua consolidação como maior gru-
ção da produção que preservava o perfil adotado
sando o catálogo de títulos e, principalmente,
po produtor audiovisual do Brasil, entre os anos
pela casa e impunha o mesmo as suas afiliadas.
o perfil dos filmes, nota-se um alinhamento
de 1970 e 1980, a Rede Globo criou um padrão
O fato de apostar numa grade unificada e perma-
baseado no padrão de qualidade televisivo, em
de qualidade técnico-estético e narrativo que se
nente também se mostrou uma opção inteligente,
termos estéticos e temáticos.
CINEMA
segundo seMesTRe
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51
1 Site Ancine /OCA – Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual: http://oca.ancine.gov.br/filmes_bilheterias. htm. Acessado em 03/12/2014. 2 Acesso em 04/12/2014.
Não é qualquer filme que leva o selo Glo-
de temas mais complexos e para o uso de uma
Padilha, 2010), que atingiu a maior bilheteria
bo Filmes e todo filme que leva a marca tem de
linguagem mais chula, como, por exemplo, nos
brasileira de toda a história, com 12 milhões de
passar por uma criteriosa avaliação, para que se
filmes E aí... comeu?, Cilada.com e De pernas pro
espectadores. Fora estes grandes títulos, a Globo
tenha certeza que não fugirá das bases diretivas
ar. Estes filmes basicamente giram em torno
aposta mesmo nas comédias.
dos produtos da empresa.
de relacionamentos ou problemas em relacio-
Mas o que é esta marca senão um padrão
namentos e abusam de cenas sensuais, usando
de produção televisivo? Não que todos os filmes
bordões e identificando o espectador com as-
da empresa tenham que estabelecer um con-
pectos da cultura urbana contemporânea.
fALTA DE DIVERSIDADE E O "GOSTO POPuLAR"
ceito de produção igual, mas a maioria deles,
Quando a Globo entrou no mercado cine-
e principalmente as comédias, segue, sim, um
matográfico, levou com ela o know how de pro-
O interesse, aqui, é analisar o padrão estético
padrão estabelecido pela televisão e jogam para
dução audiovisual já apreciado por todo o país,
dos filmes lançados pela Globo Filmes, uma vez
outra janela de exibição (no caso, o cinema) a
mas também uma marca que procura não en-
que são majoritários com a produção televisiva.
mesma televisão que oferecem ao país.
ganar o consumidor: atrás do selo Globo Filmes
Uma teledramaturgia que passa para o cinema
A televisão brasileira, com sua descen-
está um produto audiovisual conhecido, com
quase que no mesmo formato.
dência do rádio, trouxe também os programas
uma série de significações já decodificadas pelo
O site da Globo Filmes atualizado[2] aponta
de humor, com tipos característicos do imagi-
espectador, como o que é pobre, o que é rico,
sete lançamentos; destes, quatro são comédias,
nário popular brasileiro, bordões que até hoje
o que é bonito, o que é feio etc. Signos estes
dois são cinebiografias (a religiosa Irmã Dulce
dão certo, sendo repetidos incansavelmente e,
estabelecidos através de um design de televisão
e o cantor Tim Maia) e o sétimo é um drama
dentro do possível, o humor do baixo corporal.
padrão, solidificado em todos estes anos.
sobre o romance entre dois internos de uma clí-
A chanchada e a pornochanchada fizeram uso
O time dos lançamentos da Globo Fil-
desta marca com bastante êxito dentro das suas
mes inclui sempre uma ou mais comédias por
possibilidades.
ano e estas são a base das grandes bilheterias.
A comédia da Globo Filmes abusa do hu-
Os dramas sociais, principalmente envolvendo o
mor do baixo corporal numa forma de ultrapas-
combate à violência no país também chamam
sar limites que a própria televisão impõe com
muito público, como Cidade de Deus (Fernando
sua grade de horários. Isto vale não só para as
Meirelles, 2002) com 3,5 milhões de espectado-
imagens, que foram o ponto máximo das por-
res e Carandiru (hector Babenco, 2003), com 4,
nochanchadas, mas também para abordagem
5 milhões e o fenômeno Tropa de Elite 2 (José
As comédias da Globo Filmes abusam do humor do baixo corporal e de uma linguagem mais chula numa forma de ultrapassar limites que a televisão impõe com sua grade de horários Fotos: Divulgação Globo Filmes
CINEMA
segundo seMesTRe
2014
52
3 BOURDIEU, Pierre. A distinção: a crítica social do julgamento. Porto Alegre: Ed. Zouk, 2011.
nica psiquiátrica. Todos com elenco conhecido
plar, foi formado através de vários mecanismos
o que impulsionou o mercado consumidor in-
da emissora. Este panorama demonstra um cha-
que não o da oferta diversificada. Ao público
clusive de bens culturais. Este consumo, asso-
mado “gosto popular” pela comédia, recorrente
brasileiro de classe média baixa e classe baixa era
ciado com um novo momento para o cinema
como já foi apontado na história do cinema bra-
ofertado um único produto via televisão sem op-
brasileiro de vínculo com o mercado, ou seja, um
sileiro, conforme mostram as bilheterias.
ções para um julgamento crítico. Por outro lado,
momento de investir em filmes que pudessem
O sociólogo Pierre Bourdieu, em sua obra A
o ensino público, ofertado aos filhos das classes
ter uma boa aceitação do mercado consumidor
distinção (2011) , aponta a definição de um gos-
populares, entrou em declínio a partir dos anos da
vai desenhar um novo perfil de público para o
to artístico como consequência direta da oferta
ditadura, oferecendo cada vez menos e mantendo
cinema nacional.
da escolaridade e do perfil familiar de cada alu-
também cada vez menos crianças na escola.
[3]
A classe média em ascensão começa a
no. Se o entorno e as relações da criança e do
Ainda conforme Bourdieu, existe uma rela-
consumir também os filmes nas salas de exi-
jovem oferecem apenas um estilo de produto
ção estreita entre o capital cultural herdado da
bição e sai à procura de um modelo conhecido
cultural, ele não conseguirá aprimorar seu gosto
família e o capital escolar. O autor fala de sua
e identificado, com o qual conviveu a vida in-
por obras distintas e formará um “gosto” restrito
pesquisa sobre as classes sociais francesas nos
teira. é interessante notar, no atual quadro da
àquilo que lhe foi ofertado.
anos de 1970, mas é possível aplicar o comentá-
exibição cinematográfica nacional, a preferên-
No caso da televisão aberta brasileira, que du-
rio para a formação do capital cultural da classe
cia quando do filme estrangeiro, pela cópia du-
rante muito tempo reinou absolutamente dentro
média brasileira na mesma época. Ou seja, quan-
blada, resquício de uma má formação escolar,
dos lares da classe média por questões econômi-
do os dois lados do sistema falham em oferecer
que não permite à grande parte da população
cas, entre outras, o perfil do produto audiovisual
um leque amplo de opções, o universo cultural
ler com rapidez e, assim, acompanhar a tra-
oferecido era um só. A formação de um público
da criança em formação limita-se àquilo que vê
dução em subtítulos e também a convivência
para o audiovisual brasileiro foi basicamente feita
em casa sem contrapor com o que vê na escola.
com a produção dublada na televisão. Voltando
pela televisão e, entre as emissoras nacionais, pre-
No caso do produto audiovisual, estas
aos filmes campeões de bilheteria produzidos,
ponderantemente pela Rede Globo, que criou um
crianças e suas famílias vão reconhecer como
coproduzidos ou mesmo apenas distribuídos
estilo, impôs um padrão e cativou o público.
exemplar brasileiro aquilo que a televisão ofe-
pela Globo Filmes, pode-se encontrar um pa-
O cinema, por sua vez, era caro e não tinha
receu e unicamente isto, uma vez que, durante
drão tecnoestético televisivo que passou na-
a mesma qualidade técnica que a televisão nem
mais de duas décadas, o cinema e o “grande pú-
turalmente para o cinema. Este padrão inclui
o mesmo carisma.
blico” no Brasil não tiveram muito contato.
temática, narrativa, casting, fotografia, direção
O gosto dito popular, então, no sentido de
Nos anos 2000, o país assistiu uma ascen-
de arte, enfim, proporcionando um objeto de
preferência, de vontade de possuir ou contem-
são da classe média, com um aumento de renda,
contemplação e fruição (o filme) parecido com
CINEMA
segundo seMesTRe
2014
53
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUGUSTO, Sergio. A folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. VIANNA, Antonio Moniz. Um filme por dia: crítica de choque (1946-73). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
o objeto/produto audiovisual com o qual o es-
Neste ponto, os filmes com o selo Globo Fil-
ria do país e temas de consenso ou de apreço de
pectador já está acostumado. Neste universo,
mes, se por um lado não trazem grandes inovações
uma grande comunidade, como é o caso dos filmes
a comédia de costumes está na frente e, aos
em termos de linguagem ou de estética, são os
espíritas, que têm um público forte e cativo.
olhos dos próprios executivos da empresa, é o
grandes responsáveis pela aproximação de um pú-
Trata-se da construção de uma cinematogra-
carro-chefe.
blico que não estava acostumado com a convivên-
fia que viveu seus primeiros 100 anos em ciclos,
cia com o cinema fora da televisão e as exibições
ora existia, ora inexistia, ora era tão hermética que
fORmAÇÃO DE umA BASE CuLTuRAL
nas salas. A formação de um público que inexistia
existia apenas para determinadas camadas da po-
– durante as últimas décadas do século passado,
pulação, mas, mais do que construir uma cinema-
o número de salas de exibição no país só caía, até
tografia, a missão do audiovisual brasileiro neste
O que se torna necessário neste momento é apro-
que os grandes complexos começaram a se instalar
momento é construir um público.
veitar-se da boa aceitação da comédia para for-
nos centros comerciais – é benéfica para todos os
mar um público que possa vir a gostar de outros
gêneros e estilos de uma cinematografia.
filmes também. Uma boa cinematografia é feita
Tecer considerações finais sobre esta história
de bons filmes e este espaço tem de ser aberto
é difícil, porque se trata de uma relação que está se
com a construção de uma relação filme/especta-
iniciando: público/filmes brasileiros. Num primeiro
dor. Dar ao público aquilo que ele já conhece tal-
momento, o chamariz eram os atores da televisão
vez seja o primeiro passo para este caminho, mas
em novas tramas, mais abertas do que as novelas
é apenas o início, sozinho não serve para formar
e com a possibilidade de outros desenvolvimentos.
uma base cultural.
Num segundo momento, e já com a referência de
Nos dias de hoje, faz-se necessário pensar
alguns bons filmes do início da década, novos te-
no cinema e na televisão em conjunto, atuando
mas apontando para “de os mesmos produtores
lado a lado por conta de profissionais que transi-
de...”, uma referência positiva.
tam entre os dois meios, das produções de filmes
Títulos de grande impacto também chama-
por empresas ligadas à televisão e pela exibição
ram e chamam a atenção do público, como os fil-
dos mesmos tanto em salas como em canais
mes Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, abordando a
abertos e pagos. A este processo, se alia a questão
questão da violência urbana tão cara para todas
da necessidade de ocupação de um mercado cada
as classes sociais. Assim como estes, histórias de
vez mais amplo e segmentado.
cantores de sucesso, nomes importantes da histó-
É necessário, neste momento, aproveitar-se da boa aceitação da comédia para formar um público que possa vir a gostar de outros filmes também
Fotos: Divulgação Globo Filmes
ARTES VISUAIS
segundo seMesTRe
2014
POR CLARISSA EIDELWEIN
54
JORNALISTA
O INquIETO E TRANSfORmADOR NuNO RAmOS
EM QUE CONSISTE A EXPOSIçãO Só LâMINAS, EM CIRCULAçãO PELO SESC? Esta exposição, que já circula há algum tempo por outros estados do Brasil, tem pinturas produzidas a partir de um poema do João Cabral de Melo Neto, tem uma escultura sonora com o meu texto Carolina e um filme. é uma homenagem a trabalhos de outros artistas brasileiros que tem esta diversidade toda que eu uso. Então, tentamos ser fiel a
a eXPoSIção Só LâMInaS,
Um dos mais produtivos artistas plásticos do
isto. Não é uma coisa só, pegar um único
CoM PInTuRaS, TeXTo e Vídeo,
cenário nacional, Nuno Ramos também é com-
gênero. Tem pintura, tem texto, tem vídeo.
positor, cineasta e escritor. Realizou diversas
E tem, também, a ação pedagógica que de-
exposições coletivas e individuais, com desta-
senvolvemos com a Stela Barbieri, de São
SuL, naS CIdadeS de Lajeado
que para as individuais Solidão, palavra (2011);
Paulo, que foi coordenadora durante muitos
e SanTa MaRIa, a PaRTIR do
O globo da morte de tudo (2012, em parceria
anos do projeto educativo da Bienal. Ela que
com Eduardo Climachauska) e recentemente, na
fez todo o material educativo que vai junto
Fundação Iberê Camargo, Ensaio sobre a dádiva
com a exposição. Eu apoiei. Obra dela.
CIRCuLaRá PeLo RIo GRande do
SeGundo SeMeSTRe de 2015
(2014). Nuno Ramos participou de diversas bienais, entre elas a Bienal de Veneza de 1995, onde
O QUE DIFERENCIA UMA EXPOSIçãO CONCEBIDA
representou o Brasil, e, em 2007, recebeu o prê-
PARA CIRCULAR POR LUGARES DIVERSOS DE
mio Grand Award Barnett Newmann Foundation
UMA FEITA PARA UMA GALERIA ESPECíFICA?
pelo conjunto de sua obra.
Por ser uma exposição feita para viajar, a
O Departamento Nacional do Sesc está pro-
escala não é grande, as coisas têm de ser
movendo a circulação da sua exposição Só lâmi-
duráveis, fáceis de mudar, isto escapa um
nas, composta por 11 pinturas inspiradas na obra
pouco as minhas montagens mais normais,
de João Cabral de Melo Neto Uma faca só lâmina,
em que a matéria é usada de modo muito
pela escultura sonora Carolina, um diálogo escri-
literal. Sólidos. Nestes casos, não são coi-
to pelo próprio artista e interpretado pelos atores
sas que podem ser colocadas no caminhão,
Marat Decartes e Camilo Gero que retrata as várias
embaladas, montadas e desmontadas. Ima-
vozes presentes nas grandes cidades, e pelo filme
gina que a exposição que circula pelo Sesc
Luz Negra, em que Nuno Ramos faz uma homena-
já deve ter ido para mais de 30 lugares. Eu
gem ao cantor e compositor Nélson Cavaquinho.
nunca imaginei que uma exposição minha
ARTES VISUAIS
segundo seMesTRe
2014
55
Filme Luz Negra é uma homenagem a Nélson Cavaquinho
Fotos: Catálogo da exposição
iria a tantas cidades, fico muito emocionado,
ideal, mas são obras, ninguém está falan-
O FATO DE FAZER UMA EXPOSIçãO COM ESTE
estar indo, por exemplo, para Porto Seguro,
do numa reprodução, porque obra é obra,
CONCEITO DE FORMAçãO DE PúBLICO E NãO
Juazeiro, Acre, Amazônia. Já fui para lugares
você sente uma coisa, é diferente, você vê
PARA CONSUMIDORES DE ARTE INTERFERE
que nunca havia exposto e achei muito legal
uma coisa ao vivo, não uma réplica ou uma
NA LINGUAGEM NO SENTIDO DE TER UMA
de o Sesc fazer isso. Não são fotos, são obras
antologia, que é muito típico hoje em dia,
COMPREENSãO MAIS UNIVERSAL?
mesmo. Então acho isso bem interessante.
em cima de um assunto, faz uma confusão.
Nunca pensaria nisto. Não sei o que é mais
é uma antologia feita para viajar, daí esta
é um artista que está lá, depois de mim
acessível, eu não acredito nisso, eu sei o que
diversidade de linguagens, mas, ao mesmo
virão outros e isso é muito interessante,
eu acho que é melhor e o que pode estar
tempo, para caber neste formato que vai
muito respeitoso com o público, que tem
errado também. Eu sei o que é mais forte
viajar, vai ser montado muitas vezes, não dá
a oportunidade de ver um número razoá-
como obra e eu sempre vou dar o melhor
pra complicar demais. Não vai ter ninguém
vel de obras do mesmo artista, para pensar
que eu puder, sem prever acessibilidade.
da minha equipe pra montar.
do ponto de vista daquele artista. há uma
Eu acho que arte é um lugar onde este con-
inclusão mesmo, e o que interessa não é só
ceito não funciona. Coisas aparentemente
NO QUE SE REFERE À FORMAçãO DE PúBLICO,
incluir, é incluir por cima, não incluir por
inacessíveis... Isso é o público que tem que
QUAL A IMPORTâNCIA DA ARTE COMO
baixo, então isso eu acho que é legal. é você
ver. E como arte não tem a ver com escolari-
PROMOTOR DE CIDADANIA E INCLUSãO SOCIAL?
poder trazer a pessoa a partir de um parâ-
dade, uma pessoa menos escolarizada pode
Acho decisivo e, especialmente, com todas
metro digno e não a partir de um arremedo.
perfeitamente ter um acesso muito forte,
as restrições de escala, eu me sentiria muito
E eu tenho a impressão de que, neste sen-
muito mais digno, muito mais interessante
honrado de ir para cada uma destas cidades
tido, oferecer uma exposição razoavelmente
a uma obra de arte do que alguém que te-
e fazer uma obra específica, claro, se tivesse
significativa de um artista, ainda que dentro
nha uma escolaridade maior e que pode ter
condições. Mas acho muito legal, apesar das
de limites óbvios que são inevitáveis, é mui-
um acesso mais careta, mais história da arte,
restrições de espaço, às vezes não é o local
to bacana por parte do Sesc.
mais cada coisa no seu lugar.
ARTES VISUAIS
segundo seMesTRe
2014
56
O que houve para mim é que, em geral, o
semos que levar uma exposição do Matisse pro
trabalho que faço tem uma montagem mais
sertão de não sei onde, não é o texto da parede,
pesada devido à escala e aos materiais que
não é o filme sobre, é pegar a obra e botar ali.
eu uso. Neste caso, tive que fazer obras mais
Nesse sentido, voltando a esta exposição, den-
leves, mais seguras, mais embaláveis, não tão
tro dos limites práticos que ela tem, tenta fazer
grandes. Pensei muito nisto. Mas, dentro des-
isso, tenta colocar o público diante de uma coi-
te parâmetro, tentei fazer a coisa mais inten-
sa que sou eu, que são as minhas obras.
sa que eu pude. COMO AVALIAS A ATUAçãO DE INSTITUIçõES NESTA ÁREA DE DIFUSãO DAS ARTES VISUAIS? O mais importante é tornar o acesso do público às obras ambicioso, operar dentro do melhor do artista sempre. Puxar o cara para fazer o que ele tiver de mais intenso, o melhor trabalho que ele tiver na cabeça naquele momento, no qual ele acredite muito. Uma vez que seja feito de modo refletor, que as obras sejam expostas de modo forte, de um modo legal, que essa exposição não seja muito diminuída em função do lugar, aí está tudo bem, não precisa muito mais que isso. Nunca devemos pensar numa coisa muito pedagógica, muito didática, muito genérica, muito panorâmica. Essas coisas me parecem enfraquecer muito a presença da obra, que é aquilo que eu acredito. Não é o artista, não é público, é a obra. Não é o panorama, não é o conceito, não é o todo. Não é a ideia daquela exposição. óbvio que a obra pode ser uma ideia, mas uma ideia maluca, que mobilize o público. Então, uma vez que se respeite este terceiro termo, acho que está tudo certo. Eu não tenho dúvida nenhuma de que, se me convidassem para expor, sei lá, na Conchinchina, eu iria pensar na melhor coisa que eu pudesse praquele lugar. No sentido de uma coisa que eu acreditasse muito, não muito diferente do que eu faria aqui ou fora do Brasil. A obra casa num lugar meio louco lá com o público. Esta coisa de aumentar o público é muito legal desde que seja feita sob a regência da obra de arte, não do conceito da boa educação, sem tratar o público como criança, tem que botar o cara diante da obra, isso que importa. Se tivés-
As obras de Nuno Ramos tiveram inspiração em poema de João Cabral de Melo Neto Fotos: Guarim de Lorena
ARTES VISUAIS
SEGUNDO segundo SEMESTRE seMesTRe
2014
57
GALERIA XI CONCuRSO SESC DE fOTOGRAfIAS
Deus é Brasileiro 1º lugar categoria comerciário Cesar Roos (Cachoeira do Sul/RS)
ARTES VISUAIS
segundo seMesTRe
2014
58
fuTEBOL ALém DO CAmPO
Onde dorme a coruja, Alexandro Albornoz
Minha religião, Gabriel Uchida
Cavaleiros, Gustavo Granata
Super triste, Leonardo Carvalho
Paixão nacional, Luiz Gustavo de Souza
Romance, Ricardo Duarte
Paixão e devoção, Welerson Geraldo Athaydes Fernandes
Beira-mar, Alexandre Gondim
60 polegadas, Alexsandro Alves
Pés no chão, Alisson Gontijo
Dois contra a luz, Alexandre Ferreira dos Santos
ARTES VISUAIS
segundo seMesTRe
2014
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O XI Concurso Sesc de Fotografias, com o tema Futebol além do campo, reuniu comerciários e usuários da instituição de diversos estados brasileiros. Confira os vencedores e destaques desta edição do concurso que tiveram seus trabalhos avaliados pela comissão julgadora composta pelo fotógrafo Gilberto Perin, pelo diretor da Aliança Francesa de Porto Alegre, Patrice Pauc, e pelo gerente de Cultura do Sesc/RS, Silvio Bento.
Sentidos para uma total percepção, 1º lugar categoria usuário | Diogo Telles (São Paulo/SP)
União, Renato de Souza Resquícios, 2º lugar categoria comerciário | Lia Terezinha Hack (Montenegro/RS)
Fim de jogo, André Soares
Torcida Jovem, 2º lugar categoria usuário | Edmar Melo (Recife/PE)
literatura
segundo seMesTRe
2014
POR LUCIANO BEDIN DA COSTA
60
PROFESSOR DE PSICOLOGIA DA EDUCAçãO/UFRGS E AUTOR DE ESTRATéGIAS BIOGRÁFICAS: BIOGRAFEMA COM BARThES, DELEUZE, NIETZSChE E hENRY MILLER
ONZE OLhARES PARA fRANZ KAfKA PARA CELEBRAR OS 90 ANOS DE SuA mORTE, 11 ESCRITORES RETRATAm ASPECTOS DE umA OBRA quE CONTINuA VIVA E CADA DIA mAIS ATuAL KAfKA SOmOS NóS
cartola e capote pretos, gola branca e impecável, sobrancelhas arqueadas, nariz delicado e proeminente, olhar profundo (com uma ponta de tristeza),
FACEBOOK LITERÁRIO
lábios finos insinuando um leve sorriso.
Assim como em nossa vida cotidiana, a história da literatura é povoada por rostos e imagens. Se al-
Um KAFKA Em NóS
guns de nossos amados escritores fizessem parte
Em 3 de junho de 1924, um mês antes de comple-
de uma rede social, teríamos uma configuração
tar 41 anos, Franz Kafka nos deixa. Vitimado por
bastante interessante. Dostoievski, por exemplo,
uma tuberculose crônica, e sucumbido por outras
com aquela barba enorme e cara de poucos ami-
tantas dores existenciais de seu tempo, o escritor
gos, posando para a fotografia com um olhar in-
tcheco despede-se dessa vida oferecendo-nos um
trospecto. Clarice Lispector se mostraria em tons
incrível legado de textos, imprescindíveis a quem
sépia, com penteado elegante e uma classe de co-
deseja se aventurar pelos labirintos da alma e
locar inveja a muita nova celebridade que aparece
existência humanas. Filho de uma família judaica
por aí. E Mario Quintana? Este provavelmente pos-
de classe média, viveu sob o rumor e o posterior
taria sua foto com aquele olhar infantil, apesar dos
assombro de um antissemitismo que acabou por
anos e efeitos do tempo na pele, das manchas que
culminar no nazismo, seguramente uma das maio-
insinuam pequenas e escuras constelações em sua
res desgraças que nossa humanidade já conheceu.
testa. Talvez aparecesse com um cigarro entre os
Em 1933, nove anos após sua morte, hitler assume
dedos, fazendo um tipo rebelde ou algo do gênero.
o poder ordenando que, dentre a “lista de obras
Exemplos teríamos aos montes. Dentre esses perfis
perniciosas”, os livros de Kafka fossem queimados
certamente estaria Franz Kafka, todo elegante, de
em público.
literatura
segundo seMesTRe
2014
61
1 Professor de Psicologia da Educação/UFRGS e autor de Estratégias Biográficas: biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche e Henry Miller.
Ainda que tenha dedicado boa parte do tempo ao seu grande amor chamado escrita, publicou muito pouco em vida. A grande maioria de seus escritos foi publicada postumamente por intermédio de Max Brod, que, à revelia do próprio escritor, tratou de tornar pública a obra do amigo. Por julgar insipientes, e pela extrema autocrítica que o acompanhou durante toda a vida, Kafka havia ordenado ao amigo que queimasse quase todos os seus manuscritos, o que felizmente não ocorreu. O certo é que hoje temos uma vasta obra, com-
inimagináveis, de como nossos fantasmas familia-
los bosques e das errâncias solitárias pelas ruas
posta por romances, contos, novelas, cartas, ano-
res, decisivos que são, podem se tornar verdadeiros
cinzentas de Praga. Tornou-se um vegetariano
tações, aforismos e fragmentos esparsos, muitos
obstáculos para que possamos exercer nossos so-
convicto, alimentando-se de maneira seletiva e
destes ainda não traduzidos para o português, o
nhos e conduzir nossas vidas de uma maneira rela-
extremamente restrita – três refeições por dia,
que nos faz pensar que temos ainda bons encon-
tivamente autônoma. Kafka se refere ao pai como
intercaladas a porções de nozes, castanhas, figos,
tros literários por aí.
um gigante intransponível, uma escultura apolínea
tâmaras, bananas, peras e laranjas. Mas, com o
de bronze e extremamente cruel. E, ao descrevê-
tempo, seus temores internos acabaram se tor-
ECOS DO HOmEm COmUm
-lo, acaba por se identificar com aquilo que supos-
nando igualmente físicos, fazendo da sua vida
Biograficamente falando, Kafka levou uma vida
tamente não tem: passa a ser o avesso da força,
um verdadeiro galope em direção à morte. Sua
comum. Não há nenhum grande acontecimento
aquele a quem falta coragem, iniciativa e ousadia.
saúde declinou e seus escritos tornaram-se cada
ou feito que tenha marcado sua passagem pela
No decorrer da leitura destas cartas, somos joga-
vez mais densos e áridos. Nos dias em que não
Terra ou mesmo entre os seus companheiros.
dos a uma experiência de transbordamento, como
estava doente, escrevia e lia por 12 ou 15 horas
Nada de extraordinário àquele que dedicou boa
se a experiência individual de Kafka fosse, de certo
ininterruptas, atravessando a noite como se ela
parte da sua vida ao ato de escrever, uma soli-
modo, uma experiência humana em geral, passível
simplesmente não existisse. Escrevia também car-
dão compartilhada com a escrita e uma dúzia de
de ser atualizada em cada leitor e a cada nova lei-
tas a amigos e amantes, constituindo uma corres-
amigos e amores que o acompanharam de perto.
tura. Em outras palavras, reencontramos ecos de
pondência tão forte quanto sua literatura.
No entanto, do comum Kafka fez sua matéria de
nós mesmos naquelas cartas de Kafka, como se
Em Cartas a Milena, coletânea de cartas
escrita. Como poucos, conseguiu extrair o insólito
fossem escritas para que acessássemos aquilo que
trocadas com Milena Jensenská, percebemos as
daquilo que se passa na vida de qualquer um, o
deixamos para trás ou escondemos embaixo dos
peripécias e contradições amorosas de um Kafka
absurdo que é existir diante de um cotidiano que
tapetes de nossa história pessoal.
ousado e ao mesmo tempo inseguro. Escreve com-
nos engole a cada dia que se passa, que exige de
pulsivamente tentando convencê-la acerca de seu
nós um protagonismo e, ao mesmo tempo, um
TEmORES, CARTAS E AmORES
amor e de que é o homem certo. No entanto, assim
apagamento completo. Kafka testemunhou a ir-
Desde a tenra infância, o franzino e inseguro filho
que é correspondido, torna a escrever ainda mais
rupção de um capitalismo, que, nos dias de hoje,
de hermann Kafka tivera de conviver com um mal
freneticamente, convencendo-a da escolha supos-
materializou-se através do seguinte mantra: “é
que iria acompanhá-lo até seus últimos dias. Pelo
tamente equivocada. Em termos gerais, diríamos
preciso ser alguém, mas um alguém igual a todo
assombro de fantasmas interiores, somado aos
que seu temperamento oscilava entre o apaixona-
mundo”. Neste sentido, Kafka foi um digno ho-
terrores de uma Europa sempre convulsiva, pas-
do platônico e o fóbico histérico, características até
mem do Tempo (com o t maiúsculo), um escritor
sou boa parte da vida enfermiço ou imaginando-
hoje presentes na forma como o masculino lida e
de seu tempo, de nosso tempo e, provavelmente,
-se enquanto tal. De modo a lidar com sua per-
se relaciona com as mulheres.
dos tempos que se seguirão.
manente hipocondria, teve de inventar um modo
Da sua infância e, em especial, da relação
quase espartano de vida. Para surpresa de alguns
estabelecida com seu pai, surgiram notas que até
(que o imaginam apenas como o estranho e in-
mANTER A CABEçA LEVANTADA PARA NãO SE AFOGAR
hoje nos causam comoção. Em Carta ao pai, temos
defeso eremita), praticou uma série de atividades
Formado em Direito, Kafka passou boa parte de
um testemunho de como as relações com nossas
esportivas: natação, canoagem, equitação, esqui,
sua vida trabalhando para uma companhia de
figuras de paternidade podem assumir proporções
tênis, ciclismo, além das longas caminhadas pe-
seguros, um trabalho moroso e entediante que
literatura
segundo seMesTRe
2014
62
Cenas do filme O processo, de Orson Welles (1962)
acabou por marcar sua literatura. Para ele, tra-
existencialismo, o Teatro do Absurdo e outras
balhar naquele espaço era uma desgraça. Seis
manifestações menores.
O certo é que Kafka não escreve para todo mundo. Sua literatura não é salvacionista, entu-
horas por dia trancafiado em um escritório
Vez ou outra o escritor reaparece em nos-
siasta e tampouco negativista. é para cada um
em meio a documentos e burocracias de toda
so cenário cultural contemporâneo com alguma
que sua literatura se dirige, pois a experiência de
ordem. O jeito era mesmo, segundo o escritor,
releitura ou adaptação de seus escritos. Diante
abalo é sempre única, singular. Enquanto houver
“manter a cabeça suficiente alta para não se
disso, resta-nos então a pergunta: o que faz com
um leitor sensível nesse mundo, haverá um Kafka
afogar”. Mas, ao mesmo tempo, o trabalho re-
que Kafka seja ainda atual? Talvez não consiga-
possível à espreita.
presentava uma liberdade, uma possibilidade
mos responder com uma certeza absoluta, até
de viver com seus próprios meios (ainda que
porque é próprio de sua literatura a emergência
90 ANOS SEm O ESCRITOR
parcos) e com certa independência diante dos
de um certo vacilo. é como se nossos pés estives-
hoje, passados 90 anos de sua morte, o mundo
seus pais. Como se pode perceber, assim como
sem sempre a caminhar sobre um plano incerto,
certamente não é mais o mesmo. Mudanças incrí-
no amor, o trabalho também representava uma
potencialmente titubeante, escorregadio. Mesmo
veis ocorreram somente na primeira década deste
contradição. Do moinho existencial gerado
em seus escritos aparentemente mais simples,
novo século. No entanto, Kafka – aquele que não
pelas burocracias e idiossincrasias do Estado,
somos devolvidos a essas experiências fronteiri-
presenciou os horrores da Segunda Guerra, que
e pela consequente figura alienada do traba-
ças de abalo. Em A metamorfose, seguramente
não passou pela experiência binária da Guerra
lhador, páginas e mais páginas foram escritas
sua novela mais conhecida, temos acesso a um
Fria, que não assistiu ao império do capitalismo
sob sua pena, escritos que hoje se tornaram
mundo cindido entre a familiaridade da cena – o
e sua transmutação neoliberal, que não assistiu à
fundamentais na forma como percebemos a
cotidiano de uma vida comum – e o absurdo da
queda das torres gêmeas, que não navegou pela
justiça e o cotidiano sem façanha que envolve
existência – viver sob a crosta de um animal nau-
internet, que nunca pesquisou no google, que
o trabalho assalariado.
seante sendo, ao mesmo tempo, aquele que se é.
não portou smartphones e iphones – torna-se
Existem autores que nos insuflam, que nos
cada dia mais atual. Talvez sua atualidade resida
INFLUÊNCIAS KAFKIANAS
fazem estufar o peito e sentir o mundo a partir
no fato de ser incapturável. Em vez de respostas,
Além de nossas pequenas vidas individuais,
do que há de mais musculoso e colossal. Ou-
sua leitura nos oferece enigmas. Em um mundo
Kafka inspirou boa parte do pensamento do
tros, como no caso de Kafka, operam um sen-
repleto de air bags existenciais, de pílulas para
século 20. Temos aí uma inesgotável gama de
tido contrário. Eles nos aumentam justamente
o amor e a felicidade, de receitas publicitárias e
escritores e pensadores que tiveram influên-
porque nos oferecem um mundo sem seguran-
editoriais para o sucesso, é mesmo um alívio ler
cia de sua obra: García Márquez, Borges, Cor-
ça, fazendo-nos entrar em contato com a fra-
Kafka. Um alívio nos vermos novamente sem sa-
tázar, Deleuze, Blanchot, dentre outros. Kafka
queza e a contradição que nos habitam. Com
ída, encurralados ao sabor de nossos próprios la-
extrapolou o mundo das letras e da filosofia,
eles, suspeitamos que viver possa ser mesmo
birintos e minotauros. Um alívio saber que somos
servindo também de inspiração ao cinema, ao
um caso de fragilidade. é pelo irrestrito direito
também responsáveis pela vida que, a todo custo
teatro, às artes plásticas e à dança. O surre-
à fragilidade que Kafka se torna cada vez mais
e dias, teimamos em ainda suportar.
alismo bebeu de sua literatura, assim como o
necessário e contemporâneo.
literatura
segundo seMesTRe
2014
63
2 Psicólogo, professor e autor dos livros O Bem pela raiz e Lúcia se fecha, publicados pela Editora Ibis Libris. 3 Professora de educação infantil do município de São Francisco de Paula/RS e mestre em Educação pela UFRGS. 4 Narrativas do espólio: (1914-1924) Companhia das Letras, 2002.
e escuridão silente – é a armadilha. Comungando algo além, algo a escorrer pelo invisível que nos
KAfKA E A INfÂNCIA Larisa da Veiga Vieira Bandeira[3]
espreita na concretude das cenas. Ele, que insiste em se entregar e arruína o passeio jocoso ao circo.
Sobre a infância e Kafka, podem dar a notícia
Como os cabelos que crescem, perdemos a forma
aqui, quatro fragmentos extraídos das Narra-
ao virar palha, jaula, gole d’água. Não há próprio
tivas do espólio[4]. Antes de lançar-se aos tais
despertar, talvez certo delírio de fraqueza nos pe-
com a sofreguidão própria e desmensurada dos
netre, um gosto de nada sobre a língua... o gosto
que buscam as respostas exatas, indica-se aqui
de gente que não estamos acostumados. Novelos
um caminho que, mesmo que inicialmente pare-
de informação, a precisão das negociatas, o teatro
ça um tanto difícil e vacilante, trata-se do único
curto na calçada e nossos olhos pregados no de-
caminho possível no qual deve ser empreendido
saparecimento.
todo o esforço ante a magnitude desse trabalho.
Artista de espetáculo caduco. De destreza não
Extrair tais fragmentos implica também numa
se fazem valores, se faz ficção pulsante talvez, não
espécie de furto feito com as mãos pequenas e
valores. Pálpebras que piscam de tédio frente a só
trêmulas que se aproximam das guloseimas mais
mais um homem que quer algo com veemência,
sofisticadas e mais caras do balcão principal da
AO TOCAR Um artista da Fome, DE Franz KaFKa
enquanto a pelagem lustrosa do bicho encarcerado
confeitaria. Cabe aqui também inserir pequenos
faz a saliva grossa brotar em satisfação. Quem ainda
trechos que foram extraídos do livro e dar a eles a
Saciedade? A aproximação do corpo do jejuador
quer saber de um homem que se mantém vivo em
conveniência de uma desculpa esfarrapada, mas
parece inusitada. Esse que se senta e parece mais
penúria? O que sustentaria a atenção em decrepitu-
necessária para justificar as pequenas travessu-
se deleitar do que fenecer deprivação. Energia ape-
des tão humanas? Pouco, quase nada mesmo.
ras feitas por meninos que andam com os joelhos
fOmE Gabriel Alvarenga[2]
sar. Saltos damos entre sua magreza em costelas expostas e as ruas gordas que o rodeiam, e, incólu-
A quem não o sente, não é possível fazê-lo compreender.
rasgados das calças novinhas em folha. O resultado imediato disso pode ser uma
mes, ficamos próximo demais. Costurando o que se
Satisfações fazem público, e saber de alguém
grande confusão, dessas que são causadas por
passa pelos cantos do mundo e junto a esse que se
que deliberadamente se torna a própria sanha de
crianças ainda mal seguras das pernas na ten-
nega para permanecer tateando zonas antes dor-
viver é, no mínimo, desinteressante. Não preciso de
tativa de seus primeiros passos em jardins bem
mentes. Não se trata de recusa, e sim um convite
fome, tenho meus sapatos apertados o bastante
cuidados, onde as flores são perfiladas por cores
à transformação.
para me lembrar que também sou gente, daí ver
e tamanhos e contra as quais, invariavelmente, os
Propósitos muitos, mas fracos como a pele
os bizarros me afrouxa o cinto pelo menos um
infantes dirigem os primeiros e trôpegos passos.
tenaz desse humano. Na companhia do relógio,
instante – diríamos austeros frente à decadência.
O exercício de extração e apresentação de tais
que frente à avidez do jejum se desfaz, ele perma-
Mas ele dura, algo ainda se insatisfaz no jogo do
fragmentos corre também o risco de parecer com
nece. O mundo derrete dentro dele, estremecemos
contato, e acaba adocicando demais nos lábios dos
as brigas desencadeadas nas varandas das casas
junto a ele. Da fascinação receosa das crianças aos
consumidores.
pelas crianças que observam as crianças da vizi-
rostos de sorriso amarelo das belas moças que o
nhança, às quais é permitido o acesso e o direito
erguem ao final dos 40 dias sem alimento, pro-
– porque não pude encontrar comida
de brigar nas praças, livres da tutela dos adultos.
vamos esse incômodo. A dúvida nos mantém em
que me agradasse.
Enquanto, na praça, os golpes são certeiros e o
sua companhia. Ilusão. Fácil. A ótima companhia
choro engolido junto com o sangue dos lábios,
de mutação. Algo impele e, mesmo indócil, perdura
Porque parar agora? Pouca paciência. Cruel.
nas brigas de varanda, os golpes são menos inci-
plácido. A carne treme, os passos se fazem audí-
Uma respiração, ritmos impostos. Precisamos
sivos e os choros, mais escandalosos. Essas brigas
veis, as pessoas se empurram desajeitadas pelo
aplacar o coração para sobreviver nos segundos
de infância e os sustos que causam certamente
curto caminho coletivo, as feras rugem e, mesmo
áridos. Mas ainda assim algo que desfaz, que refaz
continuam agindo entre os adultos, não se per-
sentindo tudo como uma mandíbula deslocada,
em outra pele nova. Desaparecer por vontade nos
dem, e seu efeito, ao menos acresce, com certeza,
algo fino persiste. Uma fome profunda e oca.
racha. Com ele desaparecemos um pouco, destro-
alguma coisa mais. Por certo, extrair tais frag-
çados nessa vida faminta. Ávidos enfim.
mentos não é tarefa que deva ser empreendida
Estar perto de tudo – rodando entre os transeuntes, entrando em diversos corredores, clarões
com leviandade. Pois, a qualquer momento, in-
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64
cidentes minúsculos tornar-se-ão significativos e
são enérgica e inapagável das primeiras vezes.
poderão desviar a atenção dos que a empreendem.
De acordo com o segundo, aquilo que aterro-
Tais incidentes, pequenas ninharias, imperceptí-
riza as crianças é “também sua diversão, pois elas
veis para os leitores em geral, em nada afetam o
querem sem parar ficar assustadas [...] para depois
resultado final, mas, para o leitor em particular,
saírem correndo desesperadas”. Esse querer sem
assemelham-se a um desvio do pião disputado em
parar o que as atemoriza persiste entre os adultos,
pleno giro pelas crianças e que termina arrebatado
que, mesmo sabendo o que os esperam, costumam
por um adulto alheio à brincadeira.
amedrontar-se de novo, sem cessar, com as mes-
Tais giros foram necessários para o trajeto do
mas coisas.
LufTmENSCh, um DESENhO
pião se cumprir, agora cumpre dar notícias sobre
Segundo o terceiro, ainda sobre as coisas que
a infância e Kafka. Então, sem mais delongas, se-
causam medo, para as crianças é ridículo o modo
guem os fragmentos, propriamente ditos e citados
como os adultos lidam com isso, como quem
Kafka escreveu um desenho do homem-aéreo:
nas Narrativas do espólio.
Manoel Ricardo de Lima [5]
aguarda uma decisão, que pode ser uma recusa ou
“um cidadão da terra, livre e seguro” e “um livre
Segundo o primeiro fragmento, as “excitações
um aceite postado em uma escada da qual pre-
e seguro cidadão do céu”. Alguém sem ocupação
inexplicáveis e felizes, como certamente os viven-
ferem descer alguns degraus, “para não ser vistos
definida e completamente desligado do proces-
cia qualquer um quando é criança [...]” quando
nessa pausa decisiva, apenas espionando curiosos,
so material de produção. Um que esvoaça so-
“tudo me era aprazível, tudo tinha relação comi-
de tempos em tempos”.
bre qualquer contexto social: “Se deseja descer
go, acreditava que em torno de mim aconteciam
Segundo o quarto fragmento, em “relação ao
à terra, é sufocado pela corrente celeste presa
grandes coisas [...] em suma, fantasias de criança,
pequeno, levam tudo a mal, mas no fim também
ao seu pescoço, como uma coleira; se deseja
que evaporam com os anos, mas na ocasião eram
perdoam-lhe tudo”, então pouco importa esclare-
elevar-se ao céu, é sufocado pela corrente ter-
muito fortes” e cujo apelo é muito poderoso, aca-
cer tudo com precisão exagerada, melhor conser-
rena.” Tanto um artista do trapézio quanto um
bam por tornar os acontecimentos extraordinários
var a natureza infantil, onde as coisas todas têm a
artista da fome, tanto um que se arrasta quanto
e parecem dar razão às expectativas selvagens na
proporção necessária e necessitam de infatigável
um que constrói labirintos dentro do chão: eis o
infância. As fantasias de criança fazem com que
decifração.
circo, quando o palhaço veste fraque. No circo,
frequentemente os fatos as atinjam com a impres-
diz Walter Benjamin, o homem é um convidado do reino dos animais. Kafka escreveu também Os marionetes negros de fios invisíveis. Uma série de pequenos desenhos que perseguem Josefina, Gregor, Joseph K. e, entre tantos outros, Odradek, com seu “aspecto assumido pelas coisas em estado de esquecimento”. Todos estão esgotados, mas precisam começar a se mover. Nada tem lugar fixo, todo desenho é apenas um decalque. Tudo oscila entre subir, descer, levantar, cair, desaparecer ou permanecer vivo para sempre entre um vizinho ou um inimigo. Por isso, talvez, Walter Benjamin tenha dito que ninguém seguiu tão rigorosamente o preceito de não construir imagens. Tanto é que Kafka anota numa carta a Milena: “Meu corpo tem medo e, mais do que esperar o teste verdadeiramente redentor do mundo, ele prefere subir lentamente a parede.”
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5 Poeta, professor no PPGMS e na Escola de Letras, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia aérea, As mãos e Jogo de varetas. 6 Advogada e filósofa, publicou o livro Espasmos do absoluto: a liberdade em Hegel e seus desafios. 7 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 250 (passagem riscada no texto original/oficial). 8 Referência ao livro intitulado “O processo”, o qual compõe a vasta obra do autor. 9 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 128. 10 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 18. 11 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 245/246. 12 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 228. 13 KAFKA, Franz. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005, p. 225.
D© EXISTINDO COm KAfKA: NOTAS SOBRE A POSSíVEL RELAÇÃO DO AuTOR COm O DIREITO
A obra kafkiana simplesmente é. Inicia-se
algo repugnante: “a única coisa que posso fazer
com um susto e depois vai se tornando peculiar-
agora é conservar até o fim um discernimento
mente entediante, de modo que não há alívio e,
tranquilo.”[13]
se o há, padece de completude e durabilidade. As
O autor d’O processo nos mostra que quem
surpresas kafkianas são sempre seguidas de esmo-
entra pela porta da justiça nunca verá a sua face,
recimentos instantâneos, os quais, somados, quase
pois que esta se submeteu apenas a si mesma, de-
O instante do despertar é também o
alcançam a desistência. O impulso inicial simples-
cidiu acontecer num lugar abandonado, sem a ne-
instante mais arriscado do dia; uma vez
mente amorna-se com o passar do tempo, como
cessária desistência. Excelentíssimo Senhor Doutor
superado, sem que a pessoa tenha sido
os sonhos dos jovens que adentram cheios de es-
Juiz de todas as sortes, faz a parte suja e me deixa
deslocada do seu lugar para algum ou-
perança pelos portões requintados das faculdades
todo o resto...
tro, ela pode então passar tranquila o
de Direito: “quando ele, jovem, queria aproveitar as
dia inteiro.[7]
noites curtas –, era justo agora que tinha de come-
Luiza Andriolo da Rocha
[6]
çar a redigir essa petição”.[9] A obra de Kafka não só contém uma pita-
Assim, desistir é fazer como o fez Josef K.,
da de realidade, mas carrega consigo toneladas
protagonista e espécie de anti-herói de O proces-
insuportáveis de uma vida sem justiça, a exem-
so, no momento de sua detenção, quando um dos
plo do início d’O processo , situação em que
referidos guardas o concede que faça um telefone-
dois guardas invadem o quarto da personagem
ma que teoricamente oportunizaria alguma espé-
[8]
principal detendo-a sem qualquer acusação
cie de defesa n’O processo. é dizer, “Não, não quero
expressa.
mais”, e depois dirigir-se à janela.[10]
Franz Kafka formou-se em Direito, tendo também trabalhado como funcionário público
Desistir é não recuar, assim como K. compreendeu que,
em uma companhia de seguros em Praga, na qual exercia funções relacionadas à estatística,
Se recuasse, como talvez os fatos exi-
advocacia e elaboração de documentos técnicos.
gissem, havia o perigo de possivelmen-
No decorrer de seus livros, Kafka nos dá
te nunca mais ir em frente [...] ele não
pistas sobre sua relação com o Direito e com
lutava por outra coisa que não a sua
a própria justiça, pois há um entrelaçamento
honra; [...] era inequivocamente apenas
entre a biografia do autor e sua obra, que em
esperança.[11]
muitos pontos se confundem. Um encontro que a realidade traça consigo mesma, no momento em que consegue ser “presa em flagrante”.
Ao final das últimas páginas kafkianas talvez se deva dizer “obrigada, Kafka, pela desistên-
A opressão cômica que reduz o sujeito a
cia!” Só assim será possível o reconhecimento dos
uma banalidade indigna na obra de Kafka conse-
verdadeiros cães que somos. Kafka é o mestre da
gue ser transmitida a um modo suficientemente
profecia que é óbvia, porém imperceptível.
desesperador, a ponto de causar sentimento que
Kafka conheceu sua própria lei: “A lógica é,
transpassa a angústia e o horror, e que consegue
na verdade, inabalável, mas ela não resiste a uma
alcançar as mais profundas raízes do despertar.
pessoa que quer viver.”[12] K. percebeu ser o medo
A vida não deve tornar-se um processo, precisa ser extraordinária. K. sempre soube de sua culpa.
REFERÊNCIAS BIBLOIGRÁFICAS KAFKA, Franz. Carta ao pai. Porto Alegre, L&PM, 2012. _____. O processo. São Paulo, Companhia das Letras, 2005. _____. Um artista da fome seguido de Na colônia penal & outras histórias. Porto Alegre, L&PM, 2009.
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O CASO K Polyana Olini[14] Silas Borges Monteiro[15]
ções revelam-se segredos, diz o Narrador: “pois
uma das composições que levam The wall ao seu
em geral o processo não é secreto somente em
clímax: The trial.
relação ao público, mas também em relação
Diferente de K., Pink é um "little shit”, acu-
ao acusado.” Derrida dirá que exerce “o segre-
sado pela tremenda pena de “showing feelings
do contra as testemunhas fracas, as testemu-
of an almost human nature”. De fato, mostrar-se
nhas particulares, mesmo se elas são multidão,
humano chega às margens do crime. Mostrar-se
porque elas são multidão (2007, p. 56)." Assim,
já é crime suficiente: "the way you made them
enviava mensagens criptografadas em meio às
suffer, your exquisite wife and mother, fills me
suas conferências e em notas de canto de suas
with the urge to defecate!” Os sentimentos pró-
correspondências. Mas deixava códigos, cifras,
prios do humano soltam os intestinos de alguns.
traços. O Narrador não usa a mesma estraté-
A sentença do pequeno, agora PinK.: que seus
gia com K. Sua sentença é sua ignorância, algo
medos sejam expostos para além do muro. Que
próximo do que Sócrates diria, do alto de suas
seus medos virem calúnia!
sandálias rotas. A doçura da tradução inglesa de Mike
THE END
TELLING TALES
Mitchell carrega de desespero a narração: “So-
Esta expressão foi destruída por hollywood. Pois
Iniciamos com a óbvia atenção a uma das mais
meone must have been telling tales about Josef
Kafka, nos rascunhos de 1914-1915, a escolheu
conhecidas frases de O processo, justamente a
K.” Sempre contam contos sobre os outros. Con-
para contar que, diferente do que Albert Camus
assustadora primeira frase: “alguém certamente
tos que criam processos. Contos de segredos.
(1989, p. 23) dirá mais tarde, “julgar se a vida
havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi
Contos aprisionantes.
vale ou não vale a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia”. De algum
detido sem ter feito mal algum”. Não há mistério na história. Nada será revelado. O Narrador
THE TRIAL
modo, K. achava que valia, ao menos a ponto de
apresenta a mais desesperadora sentença: “sem
Um dia K. encontra o seu mundo invadido por
não dar cabo dela; entregou-a aos dois senhores.
ter feito mal algum”. Não há suspeita, ambigui-
uma cadeia de mensagens destoantes e per-
dade, sombras: o absoluto esclarecimento de
versas. é por isso que o universo de O processo
que não há “mal algum”. O leitor, esclarecido,
retrata de maneira absurda a forma de funcio-
ilustrado, sabe, por seu narrador, que não pesa
namento da estrutura burocrática. Chamado a
sobre K. ter feito algum mal.
defender-se perante a lei, o problema de K. não
Claro que isso é hiperbólico. Algum mal K.
é mais de expressão e de comunicação, mas
deve ter feito. Talvez não algo que o levasse ao
de simples e necessária compreensão. Quando
júri, mas a sentença plena de “ter feito algum
emitidas, estas mensagens não só colocam
mal” é um exagero. Kafka parece prever o pe-
em cheque o código transmissível, decifrável
sadelo de quando as pessoas são transformadas
e iterável ao qual ele está acostumado, mas,
em estatísticas e quando cada um de seus mo-
subvertendo a sua validade, elas apontam para
vimentos é compilado como dados. E, se para o
um código mais complexo do qual ele é com-
autor, o problema não está na própria máquina
pletamente alheio. é por meio da autoridade
burocrática, K. cometeu algum mal.
desse código que será atribuída às mensagens
O tio de K. diz: “até agora você foi nosso
uma significação, um julgamento. Neste ponto,
orgulho, não pode se tornar nossa desonra”.
os termos do código operatório são arbitrários,
Calúnia é uma afirmação falsa — parece ser o
mas a decisão final será unívoca e inequívoca.
caso aqui —, desonrada — aqui, descabido. A
O julgamento, do processo sem precedência, não
afirmação caluniosa, se comprovada, o deson-
será resultado de análise cuidadosa, mas depen-
raria. Mas, afinal, o que fez de desonrado? Isso
derá do capricho do juiz.
já não interessa. Que seja mentira, lorota ou
Amamos Pink Floyd como amamos a vida.
invenção: há um acusado, e isto basta. Acusa-
Não houve forma de não ocorrer à memória
Como um cão, diz K., ele morre. A vergonha sobrevive, diz o Narrador. E, finalmente, K. nos envergonhou.
REFERÊNCIAS BIBLOIGRÁFICAS CAMUS, Albert. O mito de sísifo. (Trad. Mauro Gama). Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. DERRIDA, Jaques. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. (Trad. Ana Valéria Lessa e Simone Perelson). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. KAFKA, Franz. O processo. (Trad. Modesto Carone). São Paulo: Companhia das Letras. 1997. KAFKA, Franz. The trial. (Trad. Mike Mitchell). New York: Oxford Print Press, 2009.
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14 Doutoranda em educação na UFRGS. 15 Doutor em educação pela USP, professor do departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da UFMT e autor do livro Quando a pedagogia forma professores: uma investigação otobiográfica. 16 Poeta, professora da Escola de Letras da UNIRIO. Publicou, entre outros, Nuno Ramos e Arquivo debilitado – o gesto de Evandro Affonso Ferreira. 17 Professor de filosofia, músico da banda de rock‘n’roll porto-alegrense Estive Raivoso e mestrando em aprendizagem e educação em saúde na UFRGS.
Em SuA CAmA Júlia Studart
[16]
O quarto de Vincent em Arles. Numa carta ao seu
as corpus? Não, não parece ser o caso. Não estamos
irmão, Theo, ele diz que o quadro é “para sugerir o
apartados de nada que não queiramos estar longe
repouso ou o sono.” E que “a presença do quadro
ou que não permitamos que não cheguem até nós.
1.
deve acalmar a cabeça, ou melhor, a imaginação”. é
Josefina não é nenhum escape, nenhuma mi-
Em 1929, Georges Bataille anota em seu Dicio-
dessa mesma época o sacrifício: Van Gogh corta a
rada por alguns segundos para um oásis no meio
nário crítico que “podemos definir a obsessão da
orelha direita e a envia como oferenda a um prostí-
do deserto. Nada disso! Ela não pode nos salvar, nós
metamorfose como uma violenta necessidade que
bulo, um presente para uma puta. O que está posto
não queremos ser salvos de nada! Nós sequer sabe-
aliás se confunde com uma das nossas necessida-
nessa tela, talvez a mais conhecida, é um quarto im-
mos o que significa querer. Já Josefina não, ela sabe
des animais”. Algo como andar de quatro, deitar-se
possível, desmedido e, às avessas, uma deformidade.
que quer se tornar sua própria música (ou assobio, que seja). Ela aceita ser consumida nesse projeto
de barriga para baixo, comer como um cão. Diz ele que em cada homem há um animal fechado como
4.
assim como o carvão aceita ser consumido para
se numa prisão, mas há também uma porta. Que
Tudo isso reaparece, de outro modo, em dois pe-
tornar-se, mesmo que por pouco tempo, fogo.
se abrirmos essa porta o animal escapa. E assim, o
quenos aforismos de Kafka: 1) “A desproporção do
Não sabemos o que ela possui de não ordinário
homem cai morto e o animal está livre, sem pre-
mundo parece ser, de modo consolador, apenas uma
e, ainda assim, algo se passa em nós quando nos
ocupação alguma em ser admirado pelo morto. E
questão quantitativa.” e 2) “Não existe nenhum pos-
ligamos a ela. Seja música, barulho, assobio, não im-
confere o traço: “é neste sentido que se olha para
suir, somente um ser, somente um ser exigente até
porta, algo se passa conosco! Josefina e a música
um homem como uma prisão de aparência buro-
o último alento, até a asfixia.” Ou seja, estamos o
são uma só coisa. Assumamos isso daqui em diante.
crática.” Isto é, desde aí estamos diante de Kafka.
tempo inteiro diante de Kafka.
Seu canto é um acorde diminuto, daqueles bem feios, ou o som de uma nota desafinada. Mas
2.
como nos são queridas as dissonâncias e a feiura
Em 1912, Kafka escreveu sua novela mais conhecida,
musical! Pois o que afinal é importante é encontrar
A metamorfose, que foi publicada três anos depois.
nossas Josefinas e não compreendê-las, justificá-las
Na tradução de Modesto Carone, o começo genial
ou representá-las para, assim, receitá-las como re-
e suspenso: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” há um elemento singular nesse primeiro período, a cena que antecipa a metamorfose ou aquilo
PARA OuVIR A múSICA LITERáRIA DE fRANZ KAfKA Renato Levin Borges
[17]
médio da humanidade. Servem-nos como uma roupa feita sob medida. Cada um tem as Josefinas que merece e é capaz de ter. Ela é a frágil ponte que nos leva para um misto de céu e inferno, e por isso nos eleva – mesmo para baixo, é sempre uma elevação o que
que arma toda a sentença do mundo burocrático, “o estado atual de Gregor”: o em sua cama. Essa ante-
Josefina é a única ligação que ainda nos resta com
nos tira do ordinário – e, sendo assim, precisamos
cipação tem a ver com uma ideia de lugar absoluta-
a música. Nós, um povo tão não musical. Não en-
dela. Não é necessidade como se precisa comer
mente seguro que é a cama. E um pouco mais se-
tendemos nada de elevação, mas compreendemos
quando o estômago ordena ou se procura um ba-
vero: a cama com pronome possessivo. O jogo desse
que ainda precisamos da música de Josefina. Como
nheiro em um momento de aperto. A música, ou
começo, radical e político, é que para Kafka não
entendemos? Não sabemos bem ao certo, provavel-
a feiura musical que nela se faz carne, ossos, vai-
interessa apenas a forma, mas sim toda deforma-
mente existiríamos tão bem sem a música – e já não
dade, doçura e amável arrogância é de uma outra
ção, toda deformidade. Ele perverte, com exatidão,
somos demasiadamente não musicais em nossas
ordem de necessidade. Tênue como a distinção
essa quimera na qual todo homem lança o corpo
existências para não saber desde já como é existir
entre existir e viver.
para uma espécie de acolhimento pleno, repouso e
sem a música?
Franz Kafka usa uma linguagem comum e
Perguntamo-nos às escondidas: é realmente
simples (assim como os Ramones no rock’n’roll
um canto que Josefina produz? Não é, sei lá, apenas
e Johnny Cash no country) e parece não haver
assobio? E como ela consegue afetar nossos senti-
nada de extraordinário em sua escrita a não ser
3.
mentos embotados pelo nosso mantra existencial
que algo se passe em nós. Algo que poderíamos
Van Gogh, entre 1888 e 1889, em Arles, primeiro
de “ter que ganhar a vida” – somos juízes extrema-
muito bem continuar a existir sem, mas que nos
na Casa Amarela e depois no manicômio de Saint-
mente rigorosos conosco para não nos conceder-
seria impossível viver sem o canto dessa Josefina.
-Rémy-de-Provence, pintou três vezes o seu quarto:
mos nunca um habeas corpus. Josefina é esse habe-
sono. Como também está em Proust: Marcel, em sua cama, à espera do beijo da mãe.
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18 Doutora em educação (UFRGS) e doutora em sciences de l'education (Université Lumière Lyon 2). 19 Doutora com pós-doutorado em educação. Professora no Centro de Ciências Humanas e Educação e do Programa de PósGraduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul.
Imagem montada a partir da produção das crianças participantes da Oficina K (MATOS, 2014).
umA EXISTÊNCIA DE ESCRITA E DE LEITuRA COm K.
nam o ato de escrever e ler efeitos de sentidos que se produzem na superfície, na instabilidade das políticas de existências, porque: “escreve-se sempre para dar vida, para liberar a vida aí onde
Sônia Regina da Luz Matos[18] Betina Schuler[19]
ela está aprisionada na representação. Para isso é preciso que a linguagem não seja um siste-
1. Uma montagem de leitura de alto risco. Parada
6. Os K-insetos picam. Mas Diante da Lei é pru-
ma homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre
para expressão K. do Kastelo. há uma regularida-
dente não usar substância química.
heterogêneo” (DELEUZE, Conversações). O de-
de na leitura de séries inventivas. Qual é a matéria
sequilíbrio e a heterogeneidade das produções
desta leitura? Ler muitas vezes o mundo dos pa-
7. Quando escrevo faço o K.gato falar. “Que se
das crianças é uma existência de escrita e leitura
ralelos Kafkiano.
passa comigo”?
que dá vida. Diante disto, as experimentações de
2. Procedimento pedagógico: ao modo de um
8. há um procedimento de leitura devoradora de
relatório para uma academia. Por escapes e in-
K.ratos.
escrita e leitura produzidas pelas crianças disparam em nós um tipo de ideia-afecção com K.
venção de saídas. E com os cantos das paredes correndo junto.
9. Na boca de Gregor Samsa não cabe o que se lê, ele tem fome de violino.
3. Tem a leitura que procura as raízes da mandrágora. Que é a leitura que acontece em noite
10. Uma leitura que fica entre os dentes do raste-
de lua cheia. Puxa-se as raízes para fora da terra
lo e busca o fora.
com uma corda presa a um Kão preto. Se uma pessoa fizer esta tarefa de leitura, a raiz grita tão
Esta escrita acontece a partir da investigação,
alto que a mataria.
em ateliers, junto às crianças em processo de alfabetização em uma escola de ensino fun-
4. Sempre se faz uma escrivisão rasteira entre
damental de Porto Alegre. A investigação que
K.ratos e K.gatos. Com bocas grandes, rabos em
acompanha a montagem dos ateliers busca
alerta, virando a direção, cuspindo a moral per-
operar com procedimentos de escritura e leitu-
secutória.
ra a partir de fábulas e novelas do autor Kafka, tais como a Pequena fábula e A metamorfose.
5. O artista da fome lê com saliva na boca e rego-
Com os ateliers abre-se ao sistema de língua
zija todos os K-insetos. Sem sentinelas na porta.
e de regimes de signos heterogêneos, que tor-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DELEUZE, G. Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. KAFKA, Franz. Na colônia penal. Trad. de Modesto Carone. 4º ed. São Paulo: Editora Brasilense, 1993. ______. Diante da Lei. IN: KAFKA, Franz. O abutre e outras histórias. Trad. de Noémia Ramos. Lisboa: Estrofes e Versos, 2009a. ______. A partida. IN: KAFKA, Franz. O abutre e outras histórias. Trad. de Noémia Ramos. Lisboa: Estrofes e Versos, 2009b. ______. A metamorfose. Trad. de Gabriela Fragoso. Lisboa: Editorial Presença, 2009c. ______. A toca. Trad. de Franscisco Agarez. Lisboa: LxXL, 2009d. ______. Um relatório para a Academia. IN: KAFKA, Franz. Essencial. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Clássics Companhia das Letras, 2011a. ______. Um artista da fome. IN: KAFKA, Franz. Essencial. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Clássics Companhia das Letras, 2011b. _____. Pequena Fábula. IN: KAFKA, Franz. Essencial. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Clássics Companhia das Letras, 2011c.
LEITURA
SEGUNDO primeiro SemeSTre SEMESTRE
2014
69
AS NOVAS REGRAS DO JOGO: O SISTEMA DA ARTE NO BRASIL
O SEGUNDO SEXO, VOLUME I
RAGTIME
SéRGIO Y. VAI À AMéRICA
Simone de Beauvoir
E.L.Doctorow
Alexandre Vidal Porto
Maria Amelia Bulhões (org.),
Quetzal
Record
Companhia das Letras
Nei Vargas da Rosa
O livro é escrito em primeira pessoa
“Não toque rápido essa música.
Este é um romance delicado sobre
Zouk
e marca a mudança da mulher
Ragtime não é para ser tocado
temas fortes. O narrador, um
Bettina Rupp, Bruna Fetter e
na história. Serviu de bússola ao
depressa.” Com um ritmo vagaroso
respeitado psiquiatra, trata um
As novas regras do jogo: o sistema
movimento feminista, inaugurando
que contempla cada detalhe cálido
paciente chamado Sérgio Y. apenas
da arte no Brasil, organizado por
o pensamento existencialista
escondido nos presbitérios da época
por um breve período.
Maria Amelia Bulhões, pesquisadora
às mulheres. Dentro do tema, o
(1902), Doctorow vai sutilmente nos
O caso não parece peculiar, é
do Programa de Pós-Graduação em
cinema também vem adicionando
seduzindo. O autor baseou-se na vida
apenas mais um jovem insatisfeito
Artes Visuais da UFRGS, traz textos de
pitadas sobre as manifestações
de Scott Joplin, compositor de ragtime,
com a vida. Poucos anos depois, o
seus orientandos Bruna Fetter, Bettina
femininas: um deles é o filme
ritmo antecessor do jazz de Nova
rapaz é assassinado nos Estados
Rupp e Nei Vargas da Rosa, além da
Violetta (2014), dirigido por
Orleans. Ele descreve o mundo com o
Unidos, e partir daí o médico
introdução da organizadora.
Martin Provost, que vem dando
romantismo que sentimos ao lermos o
descobrirá os segredos de seu
A publicação, com apoio do CNPq, busca
o que falar. O longa é um dos
livro juntos: homens de chapéu-coco,
ex-paciente e as repercussões
alinhavar um panorama sobre o sistema
filmes que fazem parte da “onda
ao longe, eram como “flores negras
drásticas daquelas sessões de
artístico brasileiro, trazendo dados e
homoafetividade”, junto do filme
oscilando ao vento” e suas senhoras
terapia. A transexualidade, a busca
interpretações atuais sobre o campo.
O azul é a cor mais quente (2013).
de chapéu-cetim, admiradas pelos
da felicidade e o arrependimento
O objetivo é colocar em discussões o
Neles, você encontra os temas sobre
operários de ferrovias americanas
são alguns dos temas dessa
conceito de sistema da arte, a partir
sexualidade, lesbianismo e questões
– que, ao anoitecer, reuniam-se nos
narrativa sensível e contida, mas
da análise circunscrita pelo contexto
existenciais. Biográfico, Violetta
botecos para ouvir música. Essa edição,
de efeito poderoso.
histórico dos anos 1960 até a atualidade,
é contado a partir da história da
adquirida em sebo, tem capa dura e
buscando interpretar as relações e
escritora francesa Violetta Leduc,
vivida nas pontas, parece que sabe
transformações dentro do campo e
que conseguiu colocar em prática o
muito bem o que contém: figuras do
das instituições. Nesse contexto, são
clássico livro da filósofa Simone de
início do século 20, como houdini,
analisados o fomento governamental,
Beauvoir. Toda esta intensidade e
Freud e Jung, que peneiram por entre
o papel dos produtores culturais e dos
conflito interior (da escritora) gerou
histórias fictícias repletas de verdade
curadores desta cena atravessada por
a necessidade de se falar sobre
– e trazem saudade de um tempo que
grandes feiras internacionais que ditam
esta “falta”, a partir das tentativas
nem vivemos.
tendências do mercado.
dedicadas ao amor do outro.
LILIAN MAUS
MARIA CARMENCITA JOB
ALEXANDRE ALLES
DANIEL GALERA
ARTISTA E GESTORA CULTURAL
ANALISTA CULTURAL E PESQUISADORA
PIANISTA
ESCRITOR
LILIAN FERRARI JORNALISTA E EDITORA AUDIOVISUAL
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA