08
26
10
difusão cultural
artes cênicas
música
08 As ações desenvolvidas pelo programa Arte
10 Circo Social: as ações pedagógicas e de
26 O atual cenário da música de câmara no
Sesc no ano de 2015 contribuíram para a
inclusão com crianças e adolescentes em
formação de cidadãos mais conscientes
comunidades de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, pelos olhares de Dilmar Messias, um
Rio Grande do Sul 34 Entrevista com a percussionista Clarissa
dos fundadores do Circo Teatro Girassol, e de
Severo de Borba, integrante do cenário
Junior Perim, do Circo Crescer e Viver
francês de música contemporânea que estará no 6º Festival Internacional Sesc de Música
14 CADERNO DE TEATRO
A pesquisa do dramaturgo e diretor de teatro
37 Projeto que visa à difusão da música
gaúcho Decio Antunes sobre a ocupação
brasileira, o Sesc Partituras disponibiliza um
de espaços com o que chama de teatro
acervo digitalizado com mais de 2 mil obras
coreográfico e detalhes do processo de
de 222 compositores
produção de oito espetáculos, incluindo Um dia assassinaram minha memória, que
40 5º Festival Brasileiro de Música de Rua
integrou o 10º Festival Palco Giratório Sesc
O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
DIRETORIA
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL
Luiz Carlos Bohn
Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. Marcílio Dias Longaray, 01 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Canoas Av. Guilherme Schell, 5340 51 3456.2013 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur Milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
www.sesc-rs.com.br
coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura
Anderson Mueller Música e Cinema
Jane Schöninger
Artes Cênicas e Artes Visuais
Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403 Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871 55 3352.6225 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
42
50
54
CINEMA
ARTES VISUAIS
literatura
42 A cineasta e professora de cinema
50 3º Rio Pardo em Foto, evento que
54 Mostras literárias em circulação pelos
Flávia Seligman faz uma análise de três
reuniu 40 fotógrafos em sete mostras
municípios do Rio Grande do Sul apresentam
documentários produzidos recentemente no
no Centro Regional de Cultura,
o haikai engajado de Millôr Fernandes e
Rio Grande do Sul: Mamaliga blues, Filme
movimentou a histórica cidade nos
Paulo Leminski
sobre um Bom Fim e Castanha
meses de setembro e outubro, levando os envolvidos a sonhar em atingir
44 Artigo de Marco Aurélio Fialho aborda o fake na produção de Orson Welles, criador do
59 Escritor Cristiano Baldi analisa o herói
as proporções do tradicional
na literatura e no cinema a partir do
festival Paraty em Foco
monomito de Campbell, padrão de narrativa
aclamado Cidadão Kane, que completaria 100
amplamente utilizado como uma espécie de
anos em 2015
fórmula mágica 61 Leitura
BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal Av. General Osório, 1030 51 3682-3041 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de Moura Jardim, 1250 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 3º andar 55 3423.5403 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
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Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem
Greice Zenker
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.500 exemplares
CAPA
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segundo SEMESTRE
2015
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segundo SEMESTRE
2015
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Quase Paisagem – Taim Foto: Cristiano Sant'Anna
Cultura PARA UM MUNDO MELHOR Sedimentar a cultura é, sem dúvida, uma nobre missão. Com o Arte Sesc, o Sistema Fecomércio-RS tem levado a centenas de municípios gaúchos as mais variadas manifestações artísticas. E esta edição da Revista Arte Sesc traz um panorama de tudo o que foi realizado ao longo de 2015 e destaca projetos como o Festival Internacional Sesc de Música. É por meio da música que se sonha, que se pensa num mundo melhor, mais harmônico. O Festival nos orgulha e aponta uma imensa responsabilidade, que é a de novamente tocar o coração das pessoas. Ainda na área musical, artigos sobre o cenário da música de câmara no Rio Grande do Sul e sobre o Banco Sesc de Partituras podem ser conferidos nesta edição. Nas artes cênicas, a publicação apresenta o circo contemporâneo como elo de integração social. Já no Caderno de Teatro, o artigo de Decio Antunes mostra sua pesquisa sobre ocupação de espaços, memória e um trabalho de ocupação com dança e teatro. Literatura, cinema e artes visuais também são pauta da Revista Arte Sesc e das ações que desenvolvemos pelo Estado. Para o Sistema Fecomércio-RS, é um imenso orgulho atuarmos diretamente na descentralização da cultura e na formação de plateias. Afinal, como diria o filósofo Jacob Klatzkin, “uma das principais tarefas da cultura é fazer da necessidade, liberdade”. Que em 2016 consigamos dar continuidade à promoção do bem-estar social dos comerciários e da comunidade em geral, com a intensificação das atividades de cultura, educação, saúde, esporte e lazer. Um ótimo ano a todos e boa leitura!
Luiz Carlos Bohn
Luiz Tadeu Piva
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Diretor Regional Sesc/RS
DIFUSÃO CULTURAL
segundo SEMESTRE
2015
8
cultura: diversidade, descentralização e abrangência o Arte Sesc – Cultura por toda parte promove uma programação sistemática que contempla artes cênicas, música, cinema, literatura e artes visuais em todo o Rio Grande do Sul Ao realizar atividades que o consolidam cada
com o público. O projeto Teatro a Mil, desti-
Em formato de circuito, com apresentações
vez mais como uma das principais instituições
nado a estudantes das redes públicas de ensino
únicas ou eventos abertos à comunidade, o
promotoras de cultura no Estado, o Sesc/RS
fortalece a ação de formação de plateia com
Sesc/RS difundiu a pluralidade da música
contribui para o desenvolvimento de pessoas
uma programação de teatro infantil em diversos
brasileira e também internacional nos palcos
mais conscientes para as artes e movimenta
municípios. Ainda nas artes cênicas, o Circui-
próprios e também de instituições parceiras
toda a cadeia cultural, criando oportunidades
to Palco Giratório leva a diversas cidades do
por todo o Rio Grande do Sul no projeto Sesc
para os artistas e demais envolvidos. No ano de
interior espetáculos que traçam um panorama
Música. Outros projetos já consolidados que
2015, de 1º de janeiro a 30 de novembro, foram
da produção nacional. Os espetáculos que inte-
divulgam a música brasileira são os Concer-
realizados em torno de 2,8 milhões de atendi-
gram o circuito nacional do projeto, produções
tos Banco de Sesc de Partituras, que estimula
mentos nas atividades ligadas às diversas mani-
convidadas, além de grupos locais e regionais,
a formação de grupos de câmara, e o Sonora
festações culturais. Desses atendimentos, quase
fazem um “pouso” no Festival Palco Giratório,
Brasil – formação de ouvintes musicais, que,
200 mil referem-se a atividades formativas, o
que completou 10 anos em maio de 2015.
em 2015, apresentou o tema Violas brasileiras.
que reforça a preocupação da organização com o caráter educativo dos seus programas. Entre as principais ações culturais do Estado, está o projeto Rio Grande no Palco com sua programação consistente e sistemática de teatro adulto, infantil, teatro de rua, teatro de objetos, de bonecos, circo e dança. Ao facilitar o acesso a produções diversificadas, com referencial no meio cultural, a iniciativa promove a troca de experiências entre os grupos e também
ARTES CÊNICAS 592.851 atendimentos em teatro 1.583 espetáculos de teatro 85.061 atendimentos em dança 227 espetáculos de dança
DIFUSÃO CULTURAL
segundo SEMESTRE
2015
9
ATI V IDADES FORMATIVAS
242.268
at e n d i m e nto s
MÚSICA 756.551 atendimentos 1.119 espetáculos A programação do projeto identifica-se como desenvolvimento histórico da música nacional. Realizado em Pelotas no mês de janeiro, o 5º Festival Internacional Sesc de Música, contou com a participação de 300 alunos da América Latina e 40 professores provenientes de 12 países, além do Brasil, consolidando-se como um dos maiores eventos de música instrumental e de concerto da América Latina. Os destaques do programa de artes visuais em 2015 foram as exposições itinerantes Só Lâminas, com obras originais de Nuno Ramos, e
8.250 atendimentos em atividades formativas de cinema 36.616 atendimentos em atividades formativas de música 34.054 atendimentos em atividades formativas de teatro e dança 151.764 atendimentos em atividades formativas de literatura 11.059 atendimentos em atividades formativas de artes plásticas
CINEMA 151.054 atendimentos 1.553 sessões Exibição de filmes em praças e em salas, reali-
para as oficinas do projeto Sesc Mais Leitura,
zação de mostras, debates e oficinas de cinema
voltado a estudantes das redes públicas, e as
e vídeo são as atividades que compõem o Cine
feiras de livros. Outras atividades desenvolvi-
Sesc, projeto que privilegia a formação de pú-
das foram hora do conto, sarau poético, roda de
blico e o desenvolvimento artístico e cultural.
leitura, encontro com escritores, sempre con-
O projeto é destinado ao circuito alternativo de
tribuindo com o acesso a uma diversidade de
exibição, com sessões gratuitas.
gêneros literários. A descoberta do prazer pela leitura, conceito no qual as ações literárias são
O Sesc/RS deu continuidade, em 2015, às diver-
embasadas, é promovida pela mediação realiza-
sas ações de estímulo à leitura, com destaque
da na rede de bibliotecas.
Portinari: trabalho e jogo, formada por reproduções de um dos mais importantes artistas do País. As mostras circularam por diversas cidades acompanhadas de projeto pedagógico.
ARTES VISUAIS 267.823 atendimentos 212 exposições
LITERATURA
424.197 atendimentos 2.060 atividades 554.131 atendimentos nas bibliotecas fixas 176.425 atendimentos nos Bibliosesc 127.584 empréstimos realizados
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2015
POR Dilmar Messias
10
fundador do Circo Teatro Girassol, assumiu como diretor do Theatro São Pedro em janeiro de 2015, quando o Girassol passou a ser administrado por Débora Rodrigues e Tuta Camargo
O papel do circo na inclusão social As experiências do Circo Girassol, de Porto Alegre, e do Circo Crescer e Viver, do Rio de Janeiro, com o Circo Social, que utiliza o ensino das artes circenses como ferramenta pedagógica e elo de integração em comunidades.
CIRCO TEATRO GIRASSOL: UMA EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA E COMUNITÁRIA
Com o aperfeiçoamento da equipe, formamos os primeiros artistas/professores do projeto O Circo é Nosso. De lá para cá, a Escola do Circo e Teatro Girassol tornou-se referência no ensino das técnicas circenses, e a grande maioria dos artistas do circo gaúcho teve, no Girassol, a base de sua formação.
A ideia não é de formar artistas de circo
É bastante singular a história dos projetos sociais
De 2004 a 2007, em nosso espaço, no bairro Nave-
e, ainda menos, deixar acreditar os bene-
O Circo É Nosso e O Circo Para Todos que, ao lado
gantes, em Porto Alegre, reunimos os meninos e as
ficiários que esse é o fim da ação. A pro-
dos 12 espetáculos montados por nós, ao longo
meninas que, tomados pela curiosidade, se aproxi-
posta é de usar o circo como pedagogia
destes 15 anos de existência, se constituem na
mavam para assistir nossos ensaios e logo iam ex-
alternativa para jovens em dificuldades
contribuição social do Circo Teatro Girassol à
plorando os equipamentos e entrando neste clima
e ajudar, assim, toda a inclusão social.[1]
comunidade gaúcha e ao circo em geral. Todos
de criação. Esta atitude foi o ponto de partida para
sabem que, ao longo de nossa trajetória teatral, a
darmos início às oficinas regulares para crianças.
presença do circo como elemento estético, e técnico, marcou nosso trabalho. Mas foi só em 1999
Trabalhamos, também, em uma experiência
que esta influência se materializou em projeto e,
muito interessante da Secretaria Municipal de
em maio do ano 2000, com a estreia, o espetáculo
Educação, com menores infratores e menores
Pão & Circo, transformou-se em realidade.
em situação de risco que se encantaram com o circo e nos deixaram grandes ensinamentos. Este
No dia 2 de dezembro de 2015, o Girassol recebeu o Prêmio Humanidades do Instituto Brasileiro da Pessoa, pelo seu trabalho social
Foto: Circo Teatro Girassol / Divulgação
Então, as oficinas ministradas ao elenco do circo
circo renovado, além de ir para as ruas e praças,
pelo professor Renato Coelho, ex-integrante da
tomou para si uma das tarefas mais nobres: a
Intrépida Trupe, um dos mais conceituados gru-
inclusão social. Usado em todo o mundo como
pos circenses brasileiros, passaram a ser divididas
um poderoso instrumento de integração e desen-
com os interessados, especialmente jovens, que
volvimento de crianças e adolescentes, o apren-
se multiplicavam movidos pelo fascínio que o cir-
dizado das técnicas circenses age positivamente
co contemporâneo estava despertando. Começou
nos mais variados núcleos sociais, possibilitando
assim o nosso projeto de oficinas, que itinerou
a inclusão através do aprimoramento físico e in-
pelo Rio Grande do Sul junto com os espetáculos
telectual. São inúmeros os benefícios das ativida-
de nosso repertório. Em 2002, assinamos um con-
des circenses, não somente pelo aspecto lúdico de
vênio de cooperação tecnicopedagógica com a
suas técnicas, mas também pela disciplina, pela
Escola Nacional de Circo do Ministério da Cultura.
concentração, pela capacidade de inteiração, pelo
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2015
1 HUGUES Hotier, Un cirque pour l'éducation. Parigi, L'Harmattan, 2001, p. 117 (referido por Fabio Dal Gallo no artigo O circo social e a universalidade da linguagem circense, publicado no site Circonteúdo – o portal da diversidade circense, www.circonteudo.com.br).
desenvolvimento motor e pela desinibição, proporcionadas pelos constantes treinamentos. Foi assim que se consolidou em nós a ideia de usar a arte circense como instrumento de transformação das relações sociais, objetivando diminuir desigualdades e resgatando jovens em situações de vulnerabilidade social. No final de 2007, já em nosso espaço definitivo, no Bairro Bom Jesus, o mais populoso e também um dos mais violentos de Porto Alegre, começamos a aplicar toda a nossa experiência no projeto chamado O Circo Para Todos, criando um ambiente propício para o desenvolvimento das capacidades criadoras de crianças e jovens. Paralelamente às aulas, os alunos acompanham nosso processo de treinos e ensaios, no qual a dedicação e a disciplina são fundamentais, para a segurança, para o desfrute do trabalho, e saudáveis quando transferidas para o ambiente familiar ou nas relações cotidianas. A proposta do grupo tem como base os seguintes princípios: exercício do jogo cooperativo, da investigação estética, e da reflexão de valores éticos em prol do crescimento pessoal e coletivo. O objetivo primordial das aulas não é formar um artista circense simplesmente, é, além da complementação de técnicas de iniciação ao circo e ao teatro, proporcionar, através dessas atividades, uma maneira de manter o corpo e a mente saudáveis, beneficiando o ser integralmente.
11
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2015
POR Junior Perim[1]
12
cofundador e coordenador executivo do Circo Crescer e Viver, é também idealizador e diretor geral e artístico do Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro.
crescer e viver: De enredo de escola de samba a empreendimento circense com cunho social
Temos os programas de formação artística
O circo volante, embora seja uma atividade
e de residência artística, dois projetos de fruição,
relacionada a nossa produtora, vende ingressos
um é o circo volante, que se apresenta em cidades
a preços populares e parte deles é sempre doada
do interior do estado fluminense, e outro é a lona,
para escolas públicas de projetos sociais e cultu-
onde ocorrem os projetos de circo social e o de
rais. Além disso, a maior parte da equipe que atua
formação artística, residências, mas também é um
nos espetáculos de cada temporada nas cidades é
espaço de difusão da produção circense. Realiza-
formada por jovens recrutados em organizações
mos o maior festival circense do mundo, o Festival
socioculturais de menor porte, para que acumulem
O Circo Crescer e Viver iniciou as atividades como
Internacional de Circo do Rio de Janeiro. Mesmo
ou desenvolvam um repertório de competências e
um projeto social de circo, em 2001, dentro de
que este ano tenha sido um pouco menor, ainda
conhecimentos para trabalhar e operar processos
um programa que envolvia outras atividades
figura entre os maiores do seu gênero artístico.
de produção de um grande evento, de uma grande
numa agremiação carnavalesca, em São Gonçalo,
Somos a ação social que inventa o empre-
estrutura cultural, como é o nosso circo. Procura-
na metrópole carioca. Logo, fomos consolidan-
endimento até para segurar a sua sustentabilida-
mos gerar sempre um impacto social mesmo nas
do uma metodologia de trabalho social voltado
de. Temos ainda uma produtora, com finalidades
ações que visam à geração de recursos.
a crianças e adolescentes de classes populares,
lucrativas, especialmente para a manutenção das
utilizando o circo como ferramenta de educa-
atividades sociais. Todas as atividades que empre-
Trajetória do Crescer e Viver
ção complementar, de educação para a cidada-
endemos, tenha ela caráter social, sociocultural
O projeto social voltado a crianças e adolescen-
nia, formação de valores, de desenvolvimento
ou cultural, por conta da nossa missão, dos nos-
tes surgiu dentro da escola de samba Unidos do
de habilidades sociais e artísticas. Em 2003, este
sos objetivos institucionais, dos nossos valores,
Porto da Pedra, da qual eu era dirigente. Em 2000,
projeto social se converteu em uma ONG, o Circo
têm uma dimensão coletiva, um viés social.
havíamos escolhido o enredo Um sonho possível:
Crescer e Viver, e passou a atuar somente com a
O festival de circo, por exemplo, ao contrário
crescer e viver agora é lei, para discutir em um
da maioria dos festivais de arte do Rio de Janeiro,
dos principais eventos do Brasil, que é o Carnaval
Atualmente, o Crescer e Viver não é só um
rompe com uma lógica da geografia, da difusão
carioca, os avanços que a implementação do Es-
projeto social, e sim um empreendimento circense
concentrada na área central e na zona sul. A pro-
tatuto da Criança e do Adolescente, uma década
que atua nos diferentes elos da cadeia produtiva
gramação acontece em diferentes regiões do mu-
antes, efetivamente havia assegurado. Serviu de
do circo. Tem o programa de circo social e tam-
nicípio, a maior parte em favelas e territórios po-
motivação para utilizar a força de mobilização
bém um conjunto de programas e atividades que
pulares. O sentido é de reconhecer e desenvolver
sociocultural de uma escola de samba para reali-
envolvem a área de formação artística, da difusão,
as dinâmicas econômicas locais, gerar a inclusão
zar ações no entorno.
da fruição, da produção. Enfim, tem uma dimensão
produtiva das pessoas que vivem naquele territó-
Oferecemos de oficina de cavaquinho a au-
muito maior, sendo um dos maiores empreendi-
rio, além de assegurar o acesso a bens de cultura
las de jiu-jítsu, atividades esportivas, culturais,
mentos circenses do Brasil.
e a produção artística carioca.
mas quando começamos a desenvolver ativi-
linguagem do circo, já projetando sua expansão.
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2015
13
1 Edição a partir da transcrição de conversa telefônica.
Apresentação do Circo Social no Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro, em dezembro de 2015 Fotos: Christine Keller
os resultados mais percebidos, e que buscamos, são a melhoria das comunicações, o desenvolvimento de inteligências múltiplas, a proatividade da criança, que desenvolve capacidades criativas, torna-se um agente da mobilização sociocultural de seu território. A ideia é intervir em três subsistemas condades circenses, chamou muito a atenção dos
de – o jovem de classe popular sofre a pressão
correntes no processo de desenvolvimento da
beneficiários e da comunidade infantil e juvenil.
do trabalho, a pressão familiar de uma ativida-
criança e do adolescente numa perspectiva inte-
Percebemos a força pedagógica que a linguagem
de produtiva, por engajamento econômico. Eram
gral: família, escola e comunidade. Entendemos
tem, ou seja, alguns elementos intrínsecos à prá-
jovens que haviam desenvolvido competências e
que é preciso intervir na família, no sentido de
tica e à transmissão de saberes e conhecimentos
habilidades artísticas, e que queriam ter o circo
melhorar a comunicação interna e até mesmo
circenses no campo dos valores humanos, da co-
como um campo de profissionalização e trabalho.
para referenciar para programas sociais ofere-
operação, ficaram muito evidentes. Por meio de
Então, incitado pelo próprio desejo do nosso pú-
cidos pelo Estado – muitos nem conhecem as
atividades físicas e corporais dos exercícios cir-
blico-alvo, criamos alternativas para que também
possibilidades –, a fim de melhorar a situação fa-
censes, era muito mais fácil desenvolver a cogni-
o circo fosse um campo de profissionalização,
miliar, já que isto também impacta no desenvol-
ção desses valores.
trabalho, engajamento produtivo.
vimento. Em relação à escola, o objetivo é mostrar
Avançamos num processo de escrita, de
Percebemos a necessidade de qualificar o
para a criança que a progressão dela na vida vai
consolidação, significação da metodologia, de-
processo formativo, melhorar os modos de pro-
depender também de um percurso escolar formal,
senvolvimento de método de avaliação, método
dução e criação dos espetáculos, criar estratégia
além das habilidades que desenvolve na ativida-
de acompanhamento. Fomos buscar a interação
de diálogo com o mercado de lazer, cultura e en-
de do circo. E, na comunidade, percebemos uma
com outros atores sociais do Brasil e do mundo
tretenimento. Isso foi gerando a expansão dos
criança mais cooperativa, mais proativa, mobili-
que desenvolviam trabalhos com este público e
nossos objetivos, da nossa atuação, não apenas
zadora de outras.
ingressamos na rede Circo do Mundo Brasil, uma
social, mas dos campos de intervenção artística
Não mensuramos autoestima. Tenho que
organização que envolve mais de 30 organizações
estética, de ação na cidade, nos diálogos com as
apostar que o conjunto de habilidades sociais e
que utilizam o circo como ferramenta pedagógi-
políticas públicas de cultura. A instituição passou
de mudanças comportamentais que eu observo,
ca alternativa. Depois de uma troca bastante rica,
a ganhar outro status de crescimento, de desen-
aqui, no circo, que sejam positivos, será incorpo-
acabamos saindo em 2010. A rede desenvolve um
volvimento, de maturidade que torna o Crescer e
rado para toda vida. Se o jovem vai ser um artista
fenomenal trabalho tanto para fruição do circo
Viver uma instituição bastante diversa do ponto
de circo, se vai se envolver com a criminalidade,
como para desenvolvimento de crianças e jovens,
de vista programático.
se vai ou não ter uma relação mais afetuosa ou uma atitude mais responsável dentro da socieda-
mas percebemos que, além de um trabalho social, deveríamos assumir responsabilidade também
Resultados do Circo Social
de é uma aposta. Acho que sim, porque ofere-
com o desenvolvimento da linguagem circense.
O Circo Social não tem nenhuma perspectiva
cemos um repertório de conhecimento, redes de
O contato com a arte circense nos fez per-
profissionalizante. Mas, como os beneficiários
relações e práticas que são voltadas para desen-
ceber uma certa fragilidade estética e institucio-
têm acesso a todos os equipamentos do pro-
volver esse sujeito do ponto de vista pessoal, éti-
nal. Por outro lado, era uma forma de responder
grama de formação artística, resulta que muitos
co e moral. A força de outras variáveis, para além
àquelas crianças que viraram adolescentes, que
que vão para este programa, vindos do projeto
do circo, a gente não pode controlar.
passaram para uma idade produtiva da juventu-
social, têm uma vantagem artística. Entretanto,
segundo SEMESTRE
2015
14
DeCIO ANTUNES Do pessimismo com o humano à pesquisa sobre ocupação de espaços e convergência de linguagens
CADERNO DE TEATRO
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
15
#15 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que, nos últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, o dramaturgo e diretor Decio Antunes, um dos grandes nomes da cena teatral do Rio Grande do Sul, discorre sobre sua trajetória artística, sua pesquisa sobre o que denominou de teatro coreográfico e processos de produção de oito espetáculos emblemáticos em sua carreira, entre eles Um dia assassinaram minha memória, convidado do 10º Festival Palco Giratório Sesc, realizado em maio de 2015.
Corte
Mulheres insones
Extremi
Novena à Senhora da Graça
A casa
Um dia assassinaram minha memória
Foto: Carlos Sillero
Foto: Daniel de Andrade
Foto: Claudio Etges
Corte
Foto: Carlos Sillero
Foto: Claudio Etges
Foto: Marco Peres
Foto: Claudio Etges
CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
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TRAJETÓRIA ARTÍSTICA Comentar sobre a própria trajetória artística,
Dessas impressões inicialmente intuitivas,
sua gênese, quando nesses casos sempre há
digamos assim, que se dão, portanto, no plano
dimensões pessoais e históricas entrelaçadas, é
dos sentimentos, mais epidérmica até mesmo,
Devo referir, contudo, que a literatura foi a
uma tarefa complexa. E digo isso por crer que,
eu diria, foram se agregando outros níveis de
porta de entrada inicial rumo à expressão artís-
inicialmente, os processos de criação e, por con-
análise, que vão se adensando ao longo do
tica e fui um devorador de livros desde cedo. De
seguinte, as opções por uma forma de expressão
tempo e que, acredito, configuram minha atu-
passagem, registro que esse meu envolvimen-
estão sempre envoltas em certa nebulosidade,
ação social e artística até hoje – e que oscila
to fez com que, em 1995, recebesse o primeiro
impregnadas das primeiras vivências, dos pri-
do pessimismo com o humano e, ao mesmo
prêmio no Concurso Nacional de Contos Josué
meiros embates na relação com as pessoas, com
tempo, um grande esforço de superação desse
Guimarães com o conto O elevador, publicado
as suas inserções no mundo social, mediadas
estado para algo que considero necessário: o
pelo Instituto Estadual do Livro – IEL.
por tua personalidade.
de agir criticamente, de apontar, expor, radio-
A segunda porta foi o cinema, relação in-
grafar, como se queira, estas mesmas relações.
tensa desenvolvida desde a infância. Como re-
exemplo de tantas outras no País – que teve
Hoje, fazendo uma retrospectiva, vejo
sultado desse meu interesse pelo cinema criei,
imensas dificuldades sociais, em que a luta pela
que as obras que optei encenar ao longo do
junto a vários amigos, em 1974 – eu então com
vida era uma constante, sem facilidades. Isso
tempo estão imersas numa visão dramática,
22 anos –, um cineclube, ao qual demos o nome
gerou uma compreensão intuitiva muito pre-
trágica, do homem, seja em sua vida familiar
de Grupo de Estudos e Criação Experimental de
matura da hipocrisia das relações humanas em
ou social. Desde minha montagem de Entre
Cinema, e cuja sede cedida foi o Clube de Cultura,
sociedade, dos preconceitos, das violências e do
quatro paredes, de Sartre, ainda como exer-
localizado na Rua Ramiro Barcelos. Éramos um
caráter obscuro que permeiam essas relações.
cício de direção no Departamento de Arte
grupo de jovens que tinha a saudável pretensão
Isso me impôs uma necessidade de expressão; a
Dramática no final dos anos 1970; até chegar
de criar, em Porto Alegre, um espaço em que con-
opção, no meu caso, foi artística.
a minha opção de encenar Corte e Um dia as-
vivessem reflexão e prática sobre o cinema.
Por exemplo, venho de uma família – a
A casa
Foto: Claudio Etges
sassinaram minha memória – creio que essa visão de mundo fica evidente.
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
17
Foi inaugurado com a exibição do Cidadão
influência de nomes como Bertolt Brecht e seu
Kane, do Orson Welles, um curso de linguagem
teatro épico), mas havia também processos de
cinematográfica, ministrado pelo jornalista e
criação que buscavam experimentar paralela-
crítico de cinema Jefferson Barros, que culmi-
mente linguagens cênicas (não menos político,
nou com um filme produzido pelos alunos em
diga-se), e em que foram referência Antonin
Super-8, a que se seguiu um ciclo chamado “Ci-
Artaud, o polonês Jerzy Grotowski, entre tan-
nema da Alma” (título dado por Jefferson), com
tos outros. Esse cenário se reproduzia também
alguns títulos da filmografia de Michelangelo
no RS no período, com dois grupos expressivos,
Antonioni e Ingmar Bergman. Por serem filmes
Província e Arena.
que estavam fora do circuito de exibição há
Outra dimensão que foi decisiva para mim
muito tempo, alcançou grande sucesso de pú-
nesse período é a que se refere ao espaço cê-
blico na época.
nico. Desde os primórdios do século 20 que o
Tentamos continuar, mas as dificuldades
tema espaço impôs-se aos criadores cênicos,
eram imensas: falta de dinheiro, censura oficial.
por diferentes razões e estéticas. Desde os ma-
Precisávamos ter autorização a cada sessão;
nifestos expressionistas, passando pelas teorias
ainda assim, tentavam impedi-la de todas as
de Artaud (França), do teatro épico de Piscator
formas. Com todos esses episódios, o grupo se
e Brecht (Alemanha), Luca Ronconi (Itália), do
desfez e encerrou-se minha trajetória que co-
Living Theater de Julian Beck (Estados Unidos)
meçava com o cinema – paixão primeira como
até chegarmos a Jerzy Grotowski (Polônia), que
projeto de expressão artística. Foi nesse mo-
com seu Teatro Laboratório criou os mais ex-
mento – naquela época era desejo de todo esse
pressivos estudos sobre a relação espaço-obra
grupo encontrar formas de participação social
encenada-plateia.
diante dos impasses produzidos pela ditadura
O que se encontra entre os diferentes
militar e a falta de liberdade expressão – que
criadores é o consenso de opor-se e encontrar
passei a cogitar o teatro. Essa opção me leva ao
alternativas à supremacia do palco italiano –
ingresso no bacharelado em Direção Teatral na
herança burguesa consolidada no século 17 e
UFRGS – Curso de Arte Dramática.
que se mantém predominante até a atualidade
Cabe observar que, fazendo agora essa re-
na construção de novas casas de espetáculos
trospectiva, percebo que esse mergulho inicial em
(se não possuem, hoje, a mesma característica
diferentes artes norteariam minhas opções futu-
arquitetônica não deixam de enfatizar as hie-
ras, no que se refere à adoção de convergências
rarquias sociais com suas plateias alta, baixa e
de linguagens nas obras que viria a encenar.
mezanino). Além de se contrapor a essa hierarquização social presente em sua arquitetura, o
CURSO DE ARTE DRAMÁTICA
desejo era romper a quarta-parede do natura-
Ao ingressar no Curso de Arte Dramática, vivi
novada, ritualizada, de encontro humano mais
polaridades e efervescência, e delas se construí-
radical. Essa experimentação mudou a face da
ram as bases das pesquisas futuras. Se, na épo-
criação cênica contemporânea no que se refere
ca, vivíamos no plano nacional sob uma ditadura
ao espaço cênico e habita até hoje as preocu-
militar e a liberdade de expressão extremamente
pações dos encenadores em qualquer capital
restrita, isso não impediu uma riqueza de pro-
do mundo – independente de maior ou menor
postas no Brasil, por conta de grupos como Ofi-
intensidade ou ênfase. Da minha parte, essa di-
cina, Arena, Opinião, e existia desde espetáculo
mensão ganhará ao longo dos anos cada vez
com ênfase explícita na temática política (sob a
maior ênfase e pesquisa.
lismo, implodir a rígida separação palco/plateia do palco italiano, possibilitar uma relação re-
ESPETÁCULOS COM DIREÇÃO/ DRAMATURGIA DE DECIO ANTUNES com a Jogo de Cena Companhia Teatral: 1985 O pulo do gato (o dia mais feliz de nossas vidas), de Carlos Carvalho 1988 A serpente, de Nelson Rodrigues 1996 Projeto trilogia perversa - 1941, de Ivo Bender 2000 As núpcias de Teodora - 1874, de Ivo Bender 2001/2002 Ano novo, vida nova, de Vera Karam 2002/2003 A ronda do lobo - 1826, de Ivo Bender 2006-2007 Mulheres insones, teatro coreográfico baseado nas personagens femininas das obras míticas e psicológicas de Nelson Rodrigues 2009 Corte, baseado em autores clássicos e contemporâneos, com proposta dramatúrgica e direção geral de Decio Antunes. 2014 Um dia assassinaram minha memória, baseado em autores clássicos e contemporâneos, com proposta dramatúrgica e direção geral de Decio Antunes
Em parceria com a GEDA Companhia de Dança Contemporânea 2005 Il faut trouver chaussure à son pied, baseado nos estudos do antropólogo francês Jean-Yves Leloup sobre o Corpo e Seus Símbolos, detendo-se nos pés e sapatos como símbolos eróticos 2011-2012 Cem metros de valsa e um grama 2010 Dores em Allegro, performance na arquitetura urbana, utilizando as escadarias da Igreja das Dores, de Porto Alegre 2010 Inverno, performance integrante do projeto Todas as Estações em Movimento
Com diferentes grupos e companhias teatrais e de dança 2001/2002 Novena à Senhora da Graça, baseado no poema de Theodemiro Tostes e música de Luiz Cosme 2007 A casa, dança-teatro com produção da Cia. Flamenco Silvia Canarim, baseado em A casa de Bernarda Alba, de F.G. Lorca
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
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ANOS 1980: CONFRONTAÇÕES ESTÉTICAS E DIVISOR DE ÁGUAS Logo após a minha formação como bacharel em Direção Teatral na UFRGS, fui convidado pelo Grupo Estrado, do ator João Biratã Vieira, a dirigir, em 1978, o texto do dramaturgo alemão Martin Walser, Uma visita, que estreou no Teatro Tasso Correa do Instituto de Artes e que recebeu, na oportunidade, avaliação positiva da crítica. Como características principais estavam a
impacto. A partir desse contato direto com a lin-
mais em encenações futuras. No trabalho dos in-
utilização de elementos cenográficos mínimos e
guagem do tanztheater eu deixaria Bremen com a
térpretes, a base dialógica – sintetizada ao extremo
a aposta radical no jogo entre os intérpretes. Na
certeza de que essa linguagem encontrava resso-
– dava margem a uma pesquisa de composição das
dramaturgia, um gerente de empresa em viagem,
nância em meu próprio imaginário.
personagens e suas relações fundamentalmente
levado por seu motorista, visita a ex-amante, hoje casada com um operário. A ironia tragicômica gerada na relação entre as personagens expunha o que denominei, na época, de estudo sobre a hipocrisia das relações sociais.
na ação e no jogo. Os longos silêncios tensiona-
PIC-NIC: PESQUISA SOBRE O ESPAÇO E A AÇÃO CÊNICA
vam ao máximo o conflito dramático existente no convívio daquela família de classe média e seus preconceitos por terem de dividir o espaço com o casal de operários e seu filho.
Em 1982, resultado da encenação de Uma vi-
No meu retorno à Porto Alegre, reinicio, com pa-
sita, inicio tratativas junto ao Instituto Goethe para
trocínio do Instituto Goethe, a encenação de Pic-
a encenação de outro dramaturgo contemporâneo
-nic, do dramaturgo alemão Renke Korn, realizada
alemão, Renke Korn. A obra de meu interesse era
através da Companhia Teatral Gestus, que eu havia
Pic-nic, uma sátira contundente às relações sociais
criado sob a evidente influência de Bertolt Brecht
na Alemanha, mas que encontrava paralelos com a
como o nome revela. Foi apresentado no Teatro
EXTREMI: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NA CONVERGÊNCIA DE LINGUAGENS
realidade brasileira. É quando, nesse diálogo, rece-
do Instituto Goethe e também recebeu muito boa
Durante a encenação de Pic-nic, começo a escrever
bo convite para viagem à Alemanha, que se daria
acolhida do público e da crítica.
o roteiro que se tornaria minha primeira experiên-
no início de 1983, o que adia o projeto de encena-
Na encenação, o espaço do teatro foi altera-
cia no que viria a chamar posteriormente de teatro
ção da obra para o segundo semestre. Essa viagem
do para sua total ocupação. No cenário, de Flávio
coreográfico. O roteiro de Extremi era fruto da mi-
me oportunizará uma confrontação estética que
Bettanin (Prêmio Açorianos de Melhor Cenografia),
nha vivência em Bremen no ano de 1983, quando
será decisiva na minha trajetória como encenador.
a clareira de uma floresta foi transformada em es-
conheci o teatro de dança de Reinhild Hoffmann,
Nos primeiros meses de 1983, permaneço em
truturas de ferro; a copa das árvores, sucatas de
e da intenção em realizar minha própria experiên-
Bremen e conheço o teatro de dança de Reinhild
carro. A cenografia contava ainda com a estru-
cia de encenação, unindo as linguagens do teatro
Hoffmann, contemporânea de Pina Bausch, e que
tura integral de um carro recortado e uma moto,
e da dança. O ano era 1984. Estreou, também com
ali desenvolvia seu projeto coreográfico, tendo
apenas sua estrutura de metal, sustentadas por
o apoio do Instituto Goethe, em seu teatro, no dia
como sede um antigo cinema da cidade. Naquela
estruturas de ferro, reforçando a dimensão da dra-
26 de novembro e cumpriu temporada até 20 de
oportunidade, assisto duas de suas encenações:
maturgia que enfocava os sonhos de consumo de
dezembro daquele ano.
Reis e rainhas (Könige und Königinnen) e sua cria-
bens industriais pelas personagens. O público via a
Extremi foi concebido como ato sem pala-
ção coreográfica para Pierrot Lunaire, de Arnold
cena através das estruturas de ferro, como se es-
vras, constituído por diferentes quadros visuais
Schöenberg. A potência imagética, a utilização do
piasse os personagens na clareira da floresta.
em movimento e enfocava a personagem de uma
espaço, os elementos cênicos, a corporeidade dos
Nessa montagem, já praticava minha pes-
mulher em crise com sua identidade. A sucessão
intérpretes e sua associação à música e às dife-
quisa sobre os signos da cenografia e sua relação
das ações apresenta sua desorientação, a tensão
rentes sonoridades foram, para mim, de grande
com a plateia, dimensão que irá se reforçar ainda
entre impulsos essenciais e o peso de sua herança
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
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histórica e a busca de superação dos seus limites.
coreógrafa e professora Cecy Franck, nome funda-
UMA PROPOSTA DE TEATRO COREOGRÁFICO
mental da dança moderna no Rio Grande do Sul,
Hoje, é de conhecimento da crítica que acompa-
que havia estudado com Marta Graham, e que, de
nha minimamente meu trabalho de encenador
forma pioneira, trouxera para os bailarinos gaú-
que há muito tempo exerço a criação cênica li-
chos as bases de sua dança. Cecy assumir a criação
gada à literatura dramática e em processos que
coreográfica, mesmo não sendo a proposta base
extrapolam fronteiras de linguagens, para o qual
de seu processo de criação, foi demonstração da
tenho contado com parcerias fundamentais.
Foi interpretada pela então bailarina Viviane Nerva. Para a criação da coreografia, integrou-se a
Uma visita
Fotos: Janice Amaral
Cem metros de valsa e um grama Foto: Carlos Sillero
curiosidade e da personalidade artística marcante
Desde 1984, como referi sobre o espetáculo
de sua criação trabalhar sobre pressupostos da
que caracterizou toda sua trajetória. Pude contar,
Extremi, o teatro, a ópera e a dança visitaram
linguagem teatral, o que fez quando encenou
ainda, no desenho de luz, que foi essencial à pro-
minhas encenações e, talvez agora, com as rup-
sobre a vida de Frida Kahlo, Silvia Plath, entre
posta estética desenvolvida, com a participação de
turas de fronteiras na cena, tenha apenas ga-
outras obras. E o utilizo por estar mais identifi-
Paulo Mauro da Silva.
nhado mais visibilidade. Na sequência, Novena
cado com minha matéria, que são os elementos
Na intenção de o projeto do espetáculo pres-
à Senhora da Graça, Mulheres insones, A casa,
dramáticos do teatro associados a uma drama-
tar-se à convergência de diferentes linguagens ar-
Corte, Um dia assassinaram minha memória,
turgia do movimento e do gesto e da corporei-
tísticas, o roteiro de Extremi ainda serviu de base
entre outros espetáculos, deram continuidade
dade do intérprete.
para a criação de pinturas de Isaías Malta e de es-
a essa prática, mas apresentando e adensando
tímulo para a exposição fotográfica de Daniel de
novas abordagens.
Importante referir, ainda, enquanto união da música na cena, que o universo da ópera me
Andrade. As duas exposições ficavam à disposição
Primeiro, passei a adotar, a partir de certo
serviu de fonte na busca de associação das lin-
do público após as apresentações do espetáculo,
momento, o termo teatro coreográfico, tomado
guagens, daí a importância de ter encenado sobre
permitindo, assim, que associasse novas interpre-
de empréstimo do coreógrafo austríaco Johann
músicas de Franz Léhar (Viúva alegre) e Araújo
tações ao que havia assistido.
Kresnik, que tem como uma das características
Vianna (Carmela).
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
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NOVENA À SENHORA DA GRAÇA
tivo de Theodemiro Tostes, um aspecto bastante
co antes do poeta/personagem afirmar: “Guardei a
significativo é o fato de sua poesia aproximar-se
música mais pura/para cantar quando chegasses.”)
constantemente da música, não só em termos de
Sendo assim, na encenação, o surgimento dos
O espetáculo Novena à Senhora da Graça, foi cria-
musicalidade dos versos, mas de proposição ex-
músicos no palco se dá como uma fantasmagoria,
do sobre material literário não dramático (no caso,
plícita de atmosfera, andamentos.
assim como a figura feminina surge inicialmente
o poema profano de Theodemiro Tostes, musicado
Por outro lado, ao ler a Novena, outra im-
como silhueta, vulto, mas no alto – local próprio
por Luiz Cosme). Estreou em 2001, no Theatro São
pressão muito forte que fica é o fato de o poema
para o platônico e o religioso – em espécie de ni-
Pedro, com produção da Fundação Teatro São Pe-
ter uma progressão dramática muito expressiva
cho que lembra altar, para, conforme avança o po-
dro, participação da sua Orquestra de Câmara, com
até o aleluia final – o que desloca a ideia de nar-
ema e o erótico se afirma, assumir sua concretude,
regência do maestro paulista Lutero Rodrigues. A
rador para personagem, que fala a sua amada
culminando na nudez.
obra retornaria à cena em 2002.
oscilando constantemente de estado de espíri-
Na equipe de criação, contei com o escultor
to, por vezes denotando amor platônico, outras
Felix Bressan na composição do cenário; a parti-
vezes ficando melancólico pelas lembranças de
cipação do ator Fernando Kike Barbosa, interpre-
amores frustrados, até chegar à plena e vigorosa
tando o poeta; a criação do desenho de luz por
afirmação da paixão.
João Castro Lima. Devo referir, ainda, meu primeiro
Com base nesses dois pontos – poema e mú-
encontro com a coreógrafa Carlota Albuquerque,
sica/personagem – a encenação busca flagrar o
criadora da Terpsí Teatro de Dança (companhia
poeta/personagem no momento em que constrói
criada em 1987) e que se tornaria importante par-
o poema – recurso que captura ou alude para o
ceira também em outras encenações.
processo criador de Theodemiro Tostes. Por se tra-
Na encenação e seus vínculos com o teatro
tar de um personagem/poeta, que vincula a mú-
coreográfico, o poema, originalmente concebido
sica à sua criação, ele, na primeira parte (Inicial)
para ser apenas narrado, eu transformo associan-
enuncia sua ideia do poema (fato é que não existe
do-o a um personagem (no caso, o poeta no ato
intervenção orquestral), para, em seguida, passar a
da criação do poema). Essa concepção nasceu
ouvir a música organicamente vinculada ao poema
de um longo estudo sobre o próprio autor e sua
(parece que o próprio Luiz Cosme assim o entende,
obra. Pelo que pude depreender do processo cria-
fato é que incide o primeiro trecho orquestral pou-
Novena à Senhora da Graça Idem Idem Fotos: Marco Peres
Mulheres insones Foto: Claudio Etges
CADERNO DE TEATRO
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MULHERES INSONES: TEATRO COREOGRÁFICO INSPIRADO NAS PERSONAGENS FEMININAS DE NELSON RODRIGUES O roteiro de Mulheres insones necessitou 10 anos para chegar à cena. Foi escrito logo em seguida à Extremi, mas apenas se viabilizou a partir da parceria construída em Novena à Senhora da Graça com a coreógrafa Carlota Albuquerque, nome de referência do teatro de dança no Brasil. Na criação do roteiro de Mulheres insones, trabalhei sobre uma base dramatúrgica consistente (as obras míticas e psicológicas de Nelson Rodrigues) e personagens de igual força. Prescinde do texto e centra-se exclusivamente nos núcleos dramáticos e em imagens essenciais contidas nas obras e aposta no movimento e no gesto como poética narrativa do espetáculo. Para tanto, lancei mão do núcleo dramático central de uma de suas obras, Dorotéia, pertencente a sua fase mítica, apresentando-a como a representação cênica do tênue limiar entre o sonho e a consciência da personagem central - ela que é personagem-imã do feminino em Nélson, uma vez que carrega correspondência em várias outras personagens do autor. A encenação, assim, apreende alguns dos procedimentos dramatúrgicos caros ao autor, como a simultaneidade dos estados de consciência, o flashback, a livre associação, o corte cinematográfico - tudo sob a perspectiva da composição e múltiplas abordagens do herói expressionista. Para além desse núcleo central, Mulheres insones joga com vários arquétipos femininos do autor, como a prostituta, a virgem, a noiva, as tias solteironas, e temas recorrentes em sua obra, como religiosidade, sexualidade e repressão, paixão e culpa, amor e morte. Com base no roteiro, a encenação estrutura-se remetendo para imagens conscientes e sub-
CADERNO DE TEATRO
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Mulheres insones A casa Fotos: Claudio Etges
signos que invadem a mente da personagem, a
A CASA: TEATRO COREOGRÁFICO SOBRE O UNIVERSO DE FEDERICO GARCIA LORCA
cenografia adaptou todo o espaço do Teatro do
“... nos oito anos que vai durar o luto
Museu do Trabalho.
não entrará nesta casa o vento da
conscientes, recurso que o dramaturgo utiliza em várias obras, como Senhora dos afogados, Álbum de família, Vestido de noiva e Valsa nº 06, além da já citada Dorotéia. Para que fosse atingida a mobilidade dos
Em convergência com a dramaturgia paro-
rua. Viveremos emparedadas, como se
xística e onírica da obra do dramaturgo, houve a
tivéssemos entaipado as portas e as
utilização e revelação integral das coxias, camas
janelas com tijolo.”
de ferro são suspensas, passarelas aéreas com
Bernarda Alba, in A casa
ações sobre a plateia são construídas, algumas
de Bernarda Alba
dezenas de metros cúbicos de areia, simultaneidade de ações em diferentes espaços. Essas
“Não me acostumo. Não posso viver
opções foram fundamentais para o mergulho
encurralada. Não quero ficar com as
do público na proposição onírica do espetáculo –
carnes mirradas como as vossas; não
ele tinha que acompanhar a cena que ocorria de
quero perder a alvura da pele, nesta
forma simultânea em diferentes quadrantes do
prisão(...). Quero sair daqui!”
espaço, no nível do chão e aéreo – e para a eluci-
Adela, filha de Bernarda, in A casa de
dação das obras e do universo rodrigueano e suas
Bernarda Alba
combinações de elementos expressionistas, projeções subconscientes e personagens arquétipos.
Em julho de 2007, outra experiência como
Para o embasamento da criação, foi ela-
encenador foi a dramaturgia e direção do espetá-
borado o seminário “O feminino em Nelson Ro-
culo A casa, baseado na obra A casa de Bernarda
drigues”, e a equipe viveu as oficinas “A forma
Alba, de Federico Garcia Lorca, a partir de convi-
da emoção”, ministrada por Denise Namura, da
te que recebi do Grupo Flamenco Silvia Canarim,
Companhia À Fleur de Peau, de Paris, e “A cons-
que tinha como intenção aproximar-se da danza-
trução da personagem rodrigueana”, ministrada
-teatro flamenca.
pela encenadora paulista Cibele Forjaz. Parale-
O que havia aplicado como pressuposto de
lo a isso, a equipe procedeu a leituras e inter-
investigação para a dramaturgia da cena em Mu-
pretação das diferentes obras que embasaram
lheres insones, no que denominei teatro coreo-
o roteiro Mulheres insones, e seu processo de
gráfico, foi possível transcrever para este espetá-
criação, em colaboração com as intérpretes, se
culo, uma vez as semelhanças de se basearem em
deu por meio de intensos laboratórios de impro-
um texto dramático, personagens e história. Na
visação. Estreou em 2006 e retornou à cena em
progressão dramática imprimida ao espetáculo, a
2007, no Teatro do Museu do Trabalho.
obra foi dissecada para ganhar a síntese nas suas
A produção recebeu os Prêmios Açorianos
situações-limite.
de Melhor Espetáculo, Cenografia (Felix Bres-
A fusão das linguagens da dança (nesta obra,
san), Figurino (Daniel Lion), Iluminação (Guto
especificamente o flamenco) e do teatro na abor-
Greca) e Trilha Sonora Original (Flávio Olivei-
dagem do universo de Lorca, trouxe diferentes
ra). Também recebeu os Prêmios Quero-Quero
desafios e caminhos à encenação. Inicialmente, a
de Melhor Espetáculo, Cenografia, Figurino e
opção pela ação pura, desenhada por corpos em
Iluminação, e o Troféu RBS Cultura de Melhor
movimento, sem qualquer narrativa por meio das
Espetáculo pelo Júri Popular.
palavras, tão caras a esse grande poeta e drama-
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
23
turgo espanhol. Em segundo lugar, a compreen-
Ao propor à coreógrafa Silvia Canarim criar
história contemporânea e a situação da mulher
são de que este texto que compõe a trilogia a que
este espetáculo em uma casa, tinha como inten-
na sociedade; sobre signos e simbologias na obra
se integra Yerma e Bodas de sangue, traz, além
ção transformá-la num microcosmo de limite, de
de Lorca; além de jogos dramáticos centrados na
da história de Bernarda e suas filhas, inúmeros
clausura, capaz de expressar a história dessas mu-
expressão física das emoções; inter-relação; estu-
signos e metáforas poderosas.
lheres impedidas de viver plenamente. Nos traje-
dos de personagens a partir de focos de energia
Por um lado está a Espanha de forte tra-
tos percorridos pelas personagens nesta casa que
corporal aplicados ao movimento; a que se as-
dição católica; de outro, a ditadura franquista
concentra a memória também trágica da ditadura
sociou a incorporação do estatuto simbólico do
– lembremo-nos de que o poeta escreveu esta
militar brasileira (tinha sido sede do DOI-CODI), em
objeto cênico na expressão da personagem.
obra no ano de 1936, quando a ditadura já te-
cada desvão, nos seus labirintos, plasmaram-se
A cada momento, elementos fundamentais
cia sua trajetória e da qual seria vítima, com seu
imagens fundindo diferentes associações. Com vi-
envolvendo todos os integrantes da equipe fo-
assassinato dois meses após terminá-la. Por ser
gor poético e dramatúrgico – mesmo concentran-
ram: impasse, crise, diálogo, soma de sensibilida-
difícil afirmar propósito consciente, cabe apenas
do alusões ao universo feminino –, Lorca na verda-
des e de heterogeneidades na busca de incorporar
afirmar que, com ela, o poeta vaticinou a tragédia
de nos fala do aviltamento da condição humana
à base do flamenco uma síntese expressiva que
que viveria a Espanha naquele período – e que
quando submetida a qualquer forma de opressão.
reunisse tradição e ruptura, de modo a trazer para
encontra no Guernica de Picasso todo seu horror.
Por se tratar de uma primeira experiência do
Nesse sentido, a casa que Lorca inclui no título – e
grupo na dança-teatro flamenca, o processo de
A casa ganhou Prêmios Açorianos de Melhor
que mantém de forma rígida moral, sexualidade
construção do espetáculo obedeceu a longo pro-
Espetáculo, Trilha Sonora Original (Felipe Azevedo),
e culpa, honra social e repressão – abarca todos
cesso de investigação baseado na obra escolhida,
Cenografia (Voltaire Danckwardt), e Troféu RBS
esses referenciais.
em seu contexto histórico e correlações com a
Cultura de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular.
a cena toda força dramática da obra.
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
24
CORTE: INÍCIO DA TRILOGIA SOBRE HISTÓRIA, CORPO E MEMÓRIA
intenções de poder geopolítico; ser imigrante, a
móveis estão abandonados, aos pedaços, restos de
simples cor da pele e opção religiosa fez recru-
outdoor suspensos, um imenso relógio de rua tem
descer a violência gerada pela intolerância e pre-
seus ponteiros imóveis; um semáforo de forma
conceitos; mesmo o Brasil se viu envolvido com o
intermitente acende o sinal vermelho; câmeras
assassinato de Jean Charles num metrô em Lon-
instaladas no cenário por vezes flagram os perso-
Corte sm
dres, suspeito de ser um terrorista.
nagens (e o próprio público), como se estivessem
Ato de cortar (se); interrupção; redução.
Anterior a tudo isso, a proximidade do ano 2000 já acendera e conturbara a imaginação do
sendo vigiados, e suas imagens são transmitidas na TVs das vitrines.
Em 2009, com a JogoDeCena, retorno ao espaço
homem, tornando-o uma espécie de marco di-
Nesse vagar em meio aos escombros urba-
do Teatro do Museu do Trabalho para a encena-
visório do fim ou reinício da aventura humana.
nos dessa sociedade tecnológica, na perplexida-
ção de Corte, que dá início ao projeto de trilogia
Prognósticos místicos do final dos tempos; bug
de da solidão planetária, as personagens são as-
que denominei História, Corpo e Memória. Nesta
do milênio; a iminência de uma guerra nuclear
saltadas por lembranças, fantasmagorias, que as
produção, participa da equipe a coreógrafa Maria
pelo descontrole dos computadores; realização
levam a refletir sobre seus destinos nesse limite
Waleska Van Helden, da GEDA Dança Contempo-
de inventários de contradições e contrastes, como
histórico. Cabe referir, ainda, dentro da experi-
rânea, com que irei dividir diversas encenações,
a da convivência do mais vertiginoso desenvolvi-
mentação de fundir diferentes tempos históri-
pela convergência de focos ligados a performan-
mento tecnológico com o atraso, a permanência
cos, que todas as personagens compõem uma
ces em espaços não tradicionais.
da barbárie e da miséria em escala planetária.
Babel, onde todas as falas se dão em diferentes
Se, nas encenações anteriores, Mulheres inso-
Corte mergulha nessa atmosfera de final de
idiomas como espanhol, francês, inglês, alemão,
nes e A casa, eu me detinha em diferentes obras de
milênio e inventário flagrando em termos ceno-
dependendo da personagem e sua transposição
um mesmo dramaturgo e em uma obra específica
gráficos – realização do escultor Felix Bressan a
contemporânea. Como exemplos, cito a perso-
de outro, em Corte minha proposta dramatúrgica
partir da minha concepção – a imagem do caos,
nagem da mitologia grega Cassandra, cujas vi-
é livremente inspirada em obras e personagens de
no qual personagens vagam solitários sobre os
sões e profecias são sobre o nazismo e que fala
diferentes autores, clássicos e contemporâneos,
escombros urbanos de uma sociedade tecnológi-
em alemão; ou o texto de outra personagem,
dramaturgos, romancistas e poetas, numa mistura
ca após devastação (nuclear? climática?).
que vê sangue em suas mãos, como uma Lady
deliberada de tempos históricos.
A cena opta por um espaço que reproduz
Macbeth, extraído diretamente do original em
A encenação Corte buscou refletir sobre a
uma grande avenida urbana, com suas ruas, vi-
história contemporânea no século 21 naquilo que
trines despedaçadas e a exposição de objetos de
Na minha pesquisa quanto à relação cena/
a caracterizou desde o início: a égide da violên-
desejo de uma sociedade tecnológica e de con-
espectador, o público assiste a tudo nos dois la-
cia a partir do ataque ao World Trade Center, que
forto: vestuário exposto em lojas vestidos por
dos dessa avenida – como testemunha cúmplice
mergulhou o mundo numa era de desconfianças
manequins; dentro das lojas, telas de computa-
desse momento. Corte, pela articulação e pelo
mútuas entre nações e culturas. Controles ex-
dores e TVs ainda transmitem imagens múltiplas
aprofundamento da relação entre espaço cênico
tremos em nome da segurança promoveram re-
e fragmentadas – pela primeira vez, associo tec-
e dramaturgia, relação cena e plateia, partituras
taliações em países e obscureceram verdadeiras
nologia audiovisual em uma obra; nas ruas, auto-
de movimentos e corporeidade dos intérpretes
inglês de Shakespeare.
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2015
25
em fusão de tempos históricos, assentam as ba-
trazem falas e diferentes tessituras de histórias
ses da segunda parte da trilogia sobre História,
estimuladas por livros, objetos, personagens e
Corpo e Memória.
que são compartilhadas com o público. É o esfor-
Corte Idem Idem
Foto: Carlos Sillero
Um dia assassinaram minha memória
ço humano para não deixar morrer sua história,
Foto: Claudio Etges
seu rosto, sua identidade. O espaço da encenação
UM DIA ASSASSINARAM MINHA MEMÓRIA: SEGUNDA PARTE DA TRILOGIA HISTÓRIA, CORPO E MEMÓRIA
e as ações das personagens surgem assim como
Esta encenação estreou em 31 de outubro de
os gregos, a memória era a mãe das nove musas
2014 e cumpriu temporada até 23 de novembro
e se chamava Mnemósine. A ideia era de que a
daquele ano. Oportunizou meu reencontro com
memória é mãe das artes. (...) memória provém de
a coreógrafa Carlota Albuquerque, que assinou
memorosis – aquele que recorda.”
metáfora da resistência humana para manter-se intacta em meio à devastação. Como refere o escritor venezuelano Fernando Báez, em seu livro História universal da destruição dos livros: “Não se deve ignorar que, para
como codiretora. Para a encenação, escolhi o Mu-
Durante o longo processo de criação desse
seu Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, buscando
espetáculo, uma das principais investigações foi a
mais uma vez associar a dimensão simbólica do
respeito do espaço e sua apropriação pelas intér-
espaço e seu vínculo com a dramaturgia, na me-
pretes, vivenciando e reverberando impressões e
dida em que sua função é armazenar a história
sentimentos a partir dele. Outra fonte da criação
social e cultural.
foram estudos sobre a memória e a afirmação de
A exemplo da primeira parte da trilogia, Corte, minha proposta dramatúrgica foi livremente
que somos aquilo que lembramos e somos aquilo que esquecemos.
inspirada em obras de diferentes autores, tanto
Perguntas como “O que deliberadamente se
da literatura dramática quanto do romance e da
quis esquecer? O que deliberadamente fizeram ou
poesia, e insiro as personagens numa situação
tentaram nos forçar a esquecer?” deram margem
à investigação e confrontações das intérpretes com suas próprias memórias e vivências, contribuindo decisivamente para a construção da dramaturgia. Nessa construção, longe de querer dar respostas, na relação com o público que era acolhido no espaço para conviver com as personagens, o mais importante era deixar a provocação: caberia a cada um perseguir, como os personagens, seus próprios vestígios e fragmentos, e assim encontrar sua história, seu rosto e sua identidade. É o ato de colar as cinzas, de dar forma à escuridão, como diz uma das personagens desta obra. Em maio de 2015, Um dia assassinaram
histórica-limite, de forma atemporal, durante um
minha memória retornou à cena, como espetá-
conflito de grandes proporções. A diferença está
culo convidado por Palco Giratório Sesc 10 Anos.
em que a imersão e percepção da história se dão
Em setembro, participou do 22º Porto Alegre em
a partir da ótica exclusivamente feminina, a partir
Cena, Festival Internacional de Artes Cênicas. Re-
de cinco mulheres abrigadas nessa casa-museu.
cebeu os Prêmios Açorianos 2014 de Melhor Es-
Ao destacar a mulher como protagonista, ela
petáculo, Direção (Decio Antunes e Carlota Albu-
adquire dimensão arquetípica, na medida em que
querque), Trilha Sonora (Ricardo Pavão), Figurino
é a única capaz de gerar, de dar continuidade à
(Daniel Lion) e Iluminação (Guto Greca).
civilização humana. É a partir do seu olhar, sentimentos e percepções que oscilam da esperança à desesperança nesse limite histórico, que esta
EPÍLOGO?
criação cênica constrói sua narrativa. Com suas
Atualmente, continuo como encenador nessa
lembranças aos pedaços, o que elas realizam ali
pesquisa, com diferentes parceiros e bases de
é o que se poderia denominar de uma arqueolo-
criação no que denomino, hoje, teatro coreográ-
gia da imaginação. Ao executarem esse trabalho,
fico. Essa forma de abordagem, contudo, não de-
passado, memória individual e histórica, delírios e
fine que será uma base imutável; na verdade, será
sonhos se confundem.
dinâmica a cada obra e será ela que ditará suas
A ação, construída como um jogo ininterrupto que desenvolvem enquanto buscam sobreviver,
necessidades e a minha de falar através da cena.
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
26
Um panorama da música de câmara no Rio Grande do Sul Iniciativas pontuais buscam desenvolver o gênero e, por meio de concertos realizados em comunidades, incentivar a formação de plateias Ainda longe da popularização que desfruta
da pelo Centro de Cultura Musical da PUCRS, e
diálogos entre o repertório histórico e as múl-
na Europa e nos Estados Unidos e que seria com-
a programação do Festival Internacional Sesc de
tiplas tendências da música atual. Conforme o
patível com a sua relevância, pode-se dizer que a
Música desenvolvida na Bibliotheca Pública Pe-
maestro Antonio Borges-Cunha, diretor artístico
música de câmara passa por um bom momento
lotense. “O festival apresenta uma série impres-
da OCTSP, do repertório histórico – barroco, clás-
no Rio Grande do Sul. Para o maestro Evandro
sionante porque os professores são expoentes em
sico e romântico –, a orquestra tem apresentado
Matté, coordenador do Festival Internacional
seus instrumentos, temos 50 professores de 12
obras que raramente são incluídas no repertório
Sesc de Música, a música de concerto como um
países. Em termos de importância artística, é a
de orquestras brasileiras, ou que ainda não foram
todo atravessa uma fase de crescimento, e a
iniciativa que mais se destaca durante todo o ano
apresentadas em Porto Alegre, apesar de serem
música de câmara está inserida neste contexto
no Estado”, aponta Matté.
consideradas obras-primas da música ocidental.
positivo. “As orquestras, entre elas a Orquestra
A OCTSP foi criada em 1985 e se mantém
“Em 2008, por exemplo, a orquestra apre-
Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), a Unisinos/An-
com o apoio da inciativa privada e por um con-
sentou os Concertos para 1, 2, 3 e 4 cravos de
chieta, a da Universidade de Caxias do Sul e a do
junto de associados, modelo inédito no Brasil.
Bach. Foi a primeira vez que o público da cidade
Theatro São Pedro, estão com programações de
Considerado um dos principais grupos de câmara
teve a oportunidade de ouvir e ver quatro cravos
muita qualidade; recentemente, foi criada a Or-
em atividade continuada no País, realiza atual-
no palco em interpretações históricas com solis-
questra de Gramado, e esta evolução nos últimos
mente três séries de apresentações: Concertos
anos, ainda que faltem programas mais estáveis,
Oficiais, Concertos para a Juventude e Concertos
é consequência das leis de incentivo à cultura”,
Populares, bem como a produção de óperas e ba-
afirma o maestro, que atua na Orquestra Unisi-
lés. A OCTSP é formada por 22 músicos de cordas
nos/Anchieta e na Ospa.
(12 violinos, 4 violas, 4 violoncelos e 2 contra-
Entre as iniciativas estáveis ligadas à música
baixos) e conta com a participação de sopros e
camerística no Rio Grande do Sul, estão as da Or-
percussão, de acordo com as exigências do reper-
questra de Câmara do Theatro São Pedro (OCTSP),
tório selecionado para cada temporada.
da Escola da Ospa, os programas do Departamen-
A programação da série Concerto Oficiais
to de Música de Câmara da Orquestra Sinfônica
fundamenta-se no princípio de inclusão e re-
da UCS, o Quinteto Porto Alegre, os grupos da
novação do repertório da música de concerto,
Fundarte de Montenegro, a programação realiza-
buscando uma identidade estética por meio de
Conjunto Instrumental da Fundarte Foto: Fundarte / Divulgação
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
27
tas nacionais e internacionais. Em 2012, a produ-
da comunidade artística de diversas áreas, lotan-
do Matos, James Correa, Pedro Figueiredo, Ricardo
ção da ópera Così Fan Tutte, com recitativos nar-
do o Theatro São Pedro em duas récitas. O mérito
Eizirik, Bruno Ângelo. Em 2010, a OCTSP estreou e
rados em português e árias cantadas em italiano,
artístico da interpretação de Pierrot Lunaire pela
gravou em CD duplo o balé Mahavidyas do compo-
foi considerada pelo público e por especialistas
OCTSP teve repercussão nacional, motivando o
sitor Vagner Cunha, obra premiada em quatro ca-
como uma proposta inovadora que facilitou a co-
convite do Sesc/SP para apresentações na capital
tegorias pelo Açorianos de Música. As composições
municação com expectadores experientes e com
paulista com direção cênica de Gerald Thomas.
de Celso Loureiro Chaves foram gravadas ao vivo e
iniciantes no repertório operístico.”
Em 2007, o espetáculo foi reprisado no Porto Ale-
publicadas em CD em 2013, recebendo o troféu de
gre em Cena.
melhor disco do ano do Açorianos.
Para a inclusão da criação musical dos séculos 20 e 21, o maestro Cunha destaca que a
A segunda maneira de renovação do repertó-
Para as celebrações dos 30 anos da OCTSP,
OCTSP tem agido de duas maneiras fundamen-
rio tem sido por meio da inclusão de compositores
a série de Concertos Oficiais 2015 aprimorou os
tais. A primeira consiste em programar compo-
brasileiros desses séculos. Além de compositores
princípios de inclusão e renovação que têm ca-
sitores e obras essenciais do modernismo e do
consagrados como Armando Albuquerque, Bru-
racterizado a sua programação. Foram realizados
pós-modernismo musical internacional. Alguns
no Kiefer, Radamés Gnatalli, Villa-Lobos, Camargo
12 Concertos Oficiais e 12 Concertos Banrisul para
exemplos: estreias nacionais de obras de Pier-
Guarnieri, Ernani Aguiar, Edino Krieger, a OCTSP tem
Juventude, além da produção do espetáculo A His-
re Boulez, Alfred Schnittke, Arvo Pärt. Em 2006,
encomendado e estreado obras de compositores do
tória do Soldado, de Igor Stravinsky.
Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, obra de
Rio Grande do Sul. Alguns compositores que tive-
“A programação segue uma agenda planeja-
referência do expressionismo musical do início do
ram obras estreadas nas temporadas mais recentes
da em detalhes com antecedência na temporada
século 20, atraiu o interesse do público em geral e
são Celso Loureiro Chaves, Flávio Oliveira, Fernan-
anterior, o que é fundamental para a elaboração
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
28
dos projetos de captação de recursos via leis de
Concertos na Serra
último domingo de cada mês. Em parceria com o
dependendo dos recursos captados, a orquestra
Sob o guarda-chuva da Orquestra Sinfônica da
existe de forma ininterrupta desde 1993. Além
organiza as três séries de concertos. Para o me-
UCS (OSUCS), a Universidade de Caxias do Sul
dos grupos da OSUCS, participam outros grupos e
lhor aproveitamento do investimento com en-
mantém um departamento de música de câma-
músicos convidados não só do Rio Grande do Sul,
saios e com solistas convidados, a orquestra sis-
ra que desenvolve programas continuados, com
mas também de outros países e estados brasilei-
tematizou os Concertos Oficiais. Cada programa
um corpo artístico de 14 músicos, sendo que 11
ros. Já participaram dos Concertos, atualmente
preparado é apresentado em dois concertos aos
integram a orquestra. As formações são Quinteto
realizados na Sede Social do Recreio da Juventu-
sábados e domingos, normalmente na segunda
de Metais (1º e 2º trompetes, trompa, trombone e
de, o Quinteto Villa-Lobos (RJ), Quarteto de Cor-
ou terceira semana de cada mês. Os Concertos
tuba), Grupo das Cordas (4 violinos, 2 violas, vio-
das da Cidade de São Paulo, Quinteto de Metais
Populares ocorrem no último domingo do mês,
loncelo e contrabaixo) e um pianista. O coordena-
da OSPA, Quinteto de Metais da Universidade de
às 11h. A série Concertos Banrisul para Juventu-
dor do Setor de Desenvolvimento Cultural, Moa-
Louisville (Estados Unidos), os trompetistas Fred
de, realizada desde 2000, consiste em 12 apre-
cir Lazzari, explica que o Grupo das Cordas atua
Mills (Estados Unidos) e André Henry (França),
sentações para estudantes de escolas públicas e
com formações especialmente de duo, quarteto e
Ária Trio (Caxias do Sul), o violonista Lúcio Yanel
particulares. “Dessa forma, buscamos melhorar
octeto e que acontecem, também, recitais destes
(Argentina/Brasil), Coro da UCS, Quarteto Scar-
o relacionamento com a comunidade e ampliar
instrumentistas com acompanhamento de piano,
lati (Porto Alegre), entre outros. Outra ação é os
o acesso e o interesse pela música de concer-
recitais de piano solo etc. “Nenhum dos grupos é
Concertos de Integração, série de concertos que
to”, justifica o maestro. Além das apresentações
engessado e procuramos trabalhar as ideias artís-
acontece na região de abrangência da UCS, for-
no Theatro São Pedro, a orquestra se apresenta
ticas de seus integrantes”, explica.
mada por cerca de 70 municípios. As apresenta-
incentivo à cultura”, afirma Cunha. Segundo ele,
Museu Municipal de Caxias do Sul, o programa
no interior do Estado, como em janeiro de 2015,
Entre as inciativas desenvolvidas pela UCS
ções acontecem em eventos como Feira do Livro,
quando realizou o concerto de abertura do Festi-
estão os Concertos ao Entardecer, série oficial de
Semana do Município e programações realizadas
val Internacional Sesc de Música, em Pelotas.
concertos que acontece de março a novembro, no
nos períodos de Páscoa e Natal.
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
29
Lazzari destaca que, além da intensa par-
em locais onde as pessoas não escutam música,
pósios, semanas acadêmicas, o departamento
Oportunidade para estudantes de música
busca desenvolver programas continuados,
O projeto Escola da Ospa na Comunidade, lançado
programa bem mais erudito. Segundo Grendene,
com diferentes grupos, abordando estilos, pe-
em 2015, busca desenvolver a música de câmara
trata-se de uma oportunidade para os alunos se
ríodos e compositores das mais variadas épo-
no Estado e a formação de plateia. Por meio da
apresentarem como grupos de câmara e fazerem
cas e países, com foco sempre voltado para a
iniciativa, foi criado um quarteto de cordas, um
um trabalho mais elaborado.
formação dos artistas e do público. Segundo
quinteto de cordas e um quinteto de metais que
Iniciativas como esta buscam desenvolver o
ele, programas continuados, como é o caso da
se apresentam de duas a três vezes por mês, em
gênero. “A música de câmara é um campo muito
série Concertos ao Entardecer, são fundamen-
uma programação sistemática, na capital gaúcha
rico e eu vejo que infelizmente é pouco explorado.
tais para que as pessoas adquiram o hábito
e região metropolitana. “Além de ser um projeto
Eu mesmo, além de diretor da escola, sou clari-
de frequentar as salas de concerto. “Uma das
de inserção social, de levar o nome da Ospa e a
principais características na prática da músi-
música que a gente faz para diversos locais, este
ca de câmara é que, diferente da orquestra, na
projeto visa a estimular os alunos a fazerem mú-
qual, via de regra, predomina a grande massa
sica de câmara”, diz o diretor da Escola de Música
sonora, produzida por um grande contingente
da Ospa, Diego Grendene.
ticipação dos grupos em momentos culturais de eventos acadêmicos, como congressos, sim-
de instrumentistas, neste segmento a pessoa-
“Procuramos executar um repertório que
lidade do instrumentista é que se destaca e de
alia tanto a música erudita quanto uma música
forma muito mais próxima e direta com o pú-
erudita mais ligeira, mais acessível, e também
blico, oportunidade propiciada, também, pelo
uma mais popular, para que isto possa gerar uma
tamanho das salas de concerto.”
interação maior com a plateia. Estamos tocando
não têm o hábito de ir a concertos”, destaca. Para 2016, existe a intenção de que os grupos da escola façam o pré-concerto da Ospa, tocando um
Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro Foto: Rafael Wilhelm
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
30
netista e tem algumas obras que talvez em toda
vazão a todos os artistas deste meio. “O maior en-
camerística e outros com convidados externos,
a minha carreira eu tenha tocado apenas uma
trave possivelmente seja o financeiro, pois há músi-
tanto para completar a formação sinfônica quan-
ou duas vezes, como o Quinteto de Mozart ou o
cos e formações camerísticas preparadas para fazer
to para atuar como solista à frente da orquestra.
Quinteto de Brahms, que são muito famosas. Isso
música em alta qualidade numa escala bem maior
O repertório é pensado para se adequar a cada
se deve ao fato de que temos poucos espaços,
do que a que estamos experimentando no momen-
público e abranger vários estilos musicais que te-
pouco projetos que incluem a música de câmara”,
to”, analisa. Segundo ele, a PUCRS provavelmente é
nham combinação artística com a orquestra atual.
lamenta o diretor.
uma das universidades que tem maior quantidade
A universidade realiza uma série com
Outra instituição que incentiva as formações
e qualidade de recitais/concertos no País, entre as
uma vertente mais popular, que são os Concertos
camerísticas para o desenvolvimento dos alunos é a
universidades que não possuem graduação em mú-
PUCRS; outra série voltada para a música erudita e
Fundarte, fundação criada a partir do Conservatório
sica. São no mínimo 50 apresentações de música
nomes internacionais, que é Concertos Internacio-
Municipal de Música, em Montenegro. Hoje, o gê-
de câmara por ano, com repertórios desde a músi-
nais PUCRS; uma série mista entre erudito e popu-
nero é representado pelo Grupo das Cordas, Grupo
ca antiga, música contemporânea, música erudita
lar, com abertura para a música de câmara e corais,
de Choro, Conjunto Instrumental e Camerata, for-
em geral e música popular de diversas tendências
que é Concertos Especiais PUCRS; e uma última
mados por estudantes, e a Orquestra de Sopros, de
como choro, música vocal e música gaúcha. “É um
série voltada às comunidades, levando concertos
caráter profissional. As formações cumprem uma
movimento expressivo dentro da universidade e
com repertório direcionado para cada realidade, que
agenda de apresentações em eventos da comuni-
aberto à comunidade, de forma quase sempre gra-
é Concertos PUCRS na Comunidade. Além disso, o
dade, saraus e recitais, de março a dezembro.
tuita. Temos, aqui, um ambiente propício para uma
instituto promove a Sobremesa Musical, um projeto
formação (também artística) necessária para com-
de música semanal voltado para o público interno,
Programas musicais
por uma formação integral, mesmo não tendo um
porém aberto à comunidade, a exemplo das outras
curso superior de música.”
séries, que abrange uma grande variedade de estilos
A programação é feita a partir da orientação
musicais, privilegiando a música de câmara em inú-
O maestro Marcio Buzatto, do Instituto de Cultura
da direção, com a colaboração do maestro nas
meras formações, até orquestrais. São, em média, 33
da PUCRS, compartilha da opinião de que faltam
questões de repertório e partituras. De forma mis-
edições da Sobremesa Musical por ano.
recursos e casas de concerto suficientes para dar
ta, alguns concertos são realizados em formação
Grupo de Violões da Fundarte Foto: Fundarte / Divulgação
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
31
POR Tiago Linck, Trompetista da Ospa e do Quinteto Porto Alegre
Do desejo à exceção A ideia de formar o grupo partiu do desejo que
vez por semana para trabalhar novos progra-
tações musicais, percebo que cada vez mais as
os cinco, todos integrantes da Ospa, comparti-
mas e aprimorar o repertório já conhecido e,
pessoas aqui no Rio Grande do Sul estão co-
lhavam de fazer música de câmara. O trabalho
nas semanas que antecedem recitais, intensi-
nhecendo e consumindo música erudita. O que,
com o quinteto de metais exige uma aborda-
ficamos os ensaios, chegando a nos encontrar
na minha opinião, evolui de forma mais lenta é
gem, do ponto de vista técnico, bem diferente
até cinco vezes por semana.
a iniciativa e o interesse dos músicos em fazer
do que estamos acostumados na orquestra. No
Os recitais do quinteto são realizados ba-
música de câmara. Resolver criar um grupo de
quinteto, estamos muito mais expostos, cada
sicamente a partir de convites de instituições
música de câmara; reunir pessoas que tenham
detalhe é percebido e é fundamental para uma
culturais locais e de outros estados e países
a mesma motivação; investir muito antes de ter
performance de qualidade. Uma das motivações
também. No Rio Grande do Sul, o grupo se
qualquer retorno, todas essas questões podem
de criarmos este grupo de música de câmara
apresenta regularmente na Biblioteca Pública
se tornar empecilhos e, acredito, a causa para
foi a oportunidade de fazer música de manei-
do Estado do RS, na Pinacoteca Ruben Berta,
termos pouquíssimos grupos de música de
ra colaborativa. O resultado final das obras que
no Instituto Goethe e na Bibliotheca Pública
câmara no Estado. Percebemos isso no nosso
preparamos é sempre o fruto de um trabalho
Pelotense. Recentemente, o quinteto foi con-
trabalho com o quinteto. Aliás, essa foi uma das
realizado em conjunto, em que cada um, além
vidado para ministrar masterclasses e realizar
nossas motivações quando nos reunimos: in-
de ser responsável por sua própria parte, tem a
concertos em dois importantes festivais de
centivar a criação de novos grupos de câmara,
responsabilidade de comunicar-se da maneira
música: 28º Festival Internacional de Música do
principalmente quintetos de metais. Esperamos
mais clara possível com os demais colegas.
Pará e 2º Festival Internacional de Metais Uru-
que nosso empenho seja recompensado nesse
brass, em Montevidéu, no Uruguai.
sentido também. A música e, principalmente o
O quinteto possui uma agenda de ensaios regular, independente da quantidade de com-
De maneira geral, não só em relação à
promissos agendados. Encontramo-nos uma
música de câmara, mas para todas as manifes-
Quinteto Porto Alegre é formado pelos músicos Elieser Fernandes Ribeiro e Tiago Linck (trompetes), Israel Oliveira (trompa), José Milton Vieira (trombone) e Wilthon Matos (tuba) Foto: Quinteto Porto Alegre / Divulgação
público, agradecem.
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
POR Max Uriarte,
32
Pianista, coordenador de música de câmara do Festival Internacional Sesc de Música
O ambiente intimista e privado da música de câmara ao alcance do grande público A programação do 6º Festival Internacional Sesc de Música, a realizar-se de 18 a 29 de janeiro, na cidade de Pelotas, assim como em edições anteriores, prevê nove concertos do gênero na Bibliotheca Pública Pelotense, sempre às 19h.
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
33
Um dos gêneros atualmente mais consolidados
nem de longe como na Europa ou nos Estados
pertório camerístico internacional e brasilei-
da música de concerto é a música de câmara, que
Unidos. Basta prestar atenção ao grande núme-
ro, abrangendo diversos estilos, do barroco à
se utiliza de formações instrumentais mais redu-
ro de agrupamentos estáveis e à quantidade de
música contemporânea. É uma oportunidade
zidas, e com obras que originalmente eram exe-
festivais internacionais (somente de concertos)
ímpar de ouvir grandes intérpretes atuando
cutadas em ambientes privados. Diferenciava-se,
e programações dedicadas exclusivamente a
em formações instrumentais que vão desde
desta forma, de gêneros de caráter mais público,
este gênero no hemisfério Norte.
o duo até o octeto. Além do repertório tradi-
que geralmente faziam uso de grupos musicais
No Rio Grande do Sul, a prática de fazer
cional, a série tem apresentado também obras
maiores, como a música sinfônica, a música sa-
música em conjunto continua seu desenvol-
de compositores menos conhecidos, primeiras
cra, a ópera, a música militar etc. Hoje, contudo,
vimento em ritmo lento e de forma bastante
audições modernas de obras antigas e estreias
a música de câmara caracteriza-se por ser ampla-
tímida. Seria necessário criar séries regulares
absolutas de obras contemporâneas brasileiras
mente disseminada, sendo um dos gêneros mais
de concertos com retribuições financeiras ade-
e estrangeiras.
praticados e divulgados da música erudita.
quadas aos músicos, que viabilizem a vinda de
Torna-se quase irreal realizar esta sequência
O gênero camerístico instrumental consoli-
conjuntos musicais de fora do Estado e im-
de espetáculos fora do contexto de um festival, se
da-se no repertório erudito a partir do século 18
plementar patrocínios a grupos instrumentais
considerados os elevados custos que seriam ne-
na Europa, evoluindo para um período de grande
estáveis. Certamente, a ausência de incentivos
cessários para reunir tantos músicos destacados
difusão no início do século 19, na medida em que
não contribui para a mudança deste panorama.
em um número grande de apresentações.
novas formas de sociabilidade da cultura ociden-
Aliás, nos últimos anos, o surgimento de grupos
Entre os pontos altos da programação
tal gradativamente estimulam a prática e o con-
estáveis no Rio Grande do Sul deve-se princi-
camerística da sexta edição, que ocorrerá em
sumo de música em ambientes públicos, onde o
palmente ao mérito pessoal de alguns músicos
janeiro de 2016, figuram obras como o Octe-
caráter originalmente intimista e privado da mú-
e de sua devoção por esta peculiar forma de
to para cordas op. 20 de F. Mendelssohn, que
sica de câmara passa a ser compartilhado e pro-
fazer música.
incluirá, entre seus executantes, nomes como
pagado através de audiências cada vez maiores. Em suas origens, a sociedade brasileira não
Yang Liu, Emmanuele Baldini e Cármelo de Los
incentivassem a música de câmara, e não é de se
O FESTIVAL DO SESC
Santos, e o Septeto n. 3 de S. Neukomm, con-
estranhar que somente raros indícios apontem
Neste cenário pouco animador tanto para os mú-
Além disso, contará também com a presença de
para práticas musicais deste gênero no Brasil até
sicos como para os apreciadores, um evento anu-
mais dois solistas internacionais.
o final do século 18.
al desponta no Sul do Estado com especial brilho:
Oportunidade imperdível para os apreciado-
O início do século 19, com a chegada da
o Festival Internacional Sesc de Música, sediado
res do gênero, este evento é, certamente, a mais
corte de D. João VI ao Rio de Janeiro (1808) e a
em Pelotas. Este grande evento multifacetado
importante manifestação de música de câmara
abertura dos portos brasileiros ao intercâmbio de
inclui entre suas propostas, além do aspecto pe-
do Estado e uma das maiores do País.
bens materiais e culturais, pode ser caracterizado
dagógico e da inclusão social, uma extensa pro-
como um ponto de renovação nas práticas musi-
gramação de apresentações musicais em diversos
cais no Brasil. A partir deste momento consolida-
espaços – todas com entrada franca – na qual
-se um corpo de profissionais da música mais
destaca a série de recitais de música de câmara
numeroso e cosmopolita e também ampliam-se
a cargo do corpo docente do festival, composto
as possibilidades para novos formatos de práticas
por reconhecidos músicos do cenário nacional e
musicais, tanto de caráter público como priva-
internacional.
proporcionou um ambiente cultural que fosse muito propício às formas de sociabilidade que
do. Desta significativa mudança surge, assim, no
Esta série por mim coordenada e apresen-
Brasil, o que hoje poderíamos entender como um
tada inicia cada recital com informações sobre
público de música de concerto.
os compositores e sobre as obras. Desde sua
Na atualidade, a prática da música de câma-
primeira edição, em 2011, vem oferecendo ao
ra no Brasil encontra-se bastante difundida, mas
público as mais representativas obras do re-
gregando celebrados músicos da Orquestra Filarmônica de Berlim, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e da Orquestra Sinfônica da Bahia.
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
34
Sonoridade nada convencional A percussionista brasileira Clarissa Severo de Borba,
Coordenadora do departamento de percussão
realizando concertos em cidades da Europa, dos
no Conservatório de Le Mans, França, Clarissa
Estados Unidos, da China e do Brasil.
Severo de Borba é professora do Festival In-
integrante do cenário
ternacional Sesc de Música desde a primeira
francês da música
edição, em 2010. Natural de Santa Maria, a per-
Comecei meus estudos musicais aos cinco
cussionista foi aluna de Ney Rosauro e, nos Es-
anos, primeiramente, ao piano e à flauta.
tados Unidos, de Mark Ford e Chistopher Deane,
Esses primeiros anos foram muito impor-
período em que também desenvolveu estudos
tantes, pois são determinantes na aprendi-
Sesc de Música, de 18 a 29 de
de composição musical que resultaram em suas
zagem musical, onde se descobre a vocação
janeiro, em Pelotas
primeiras obras escritas para percussão solo e
musical. Foi somente aos 12 anos que me
para grupos de música de câmara. Nesta época,
interessei pela percussão, após assistir a um
também iniciou pesquisa sobre as possibilidades
concerto do Grupo de Percussão da Univer-
técnicas, convencionais e não convencionais dos
sidade de Santa Maria (UFSM), dirigido, na
instrumentos de percussão, embrião para uma
época, pelo professor Ney Rosauro. Comecei
sólida carreira na França, onde faz parte da cena
a ter aulas no curso extraordinário de músi-
de música contemporânea e de improvisação,
ca desta instituição e, em 1992, fiz vestibular
contemporânea, dará curso no 6º Festival Internacional
Projeto solista “Que serais-je sans jardin” Fotos: Arquivo pessoal
Como foi o teu início na percussão?
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
35
professores Mark Ford e Christopher Deane,
positor foi uma das razões pelas quais eu
grandes nomes no mundo da percussão e ex-
sempre quis fazer música... buscar novos ca-
celentes professores. Estes dois anos de mes-
minhos, novas sonoridades, novas maneiras
trado foram, talvez, os mais importantes na
de escrever e compreender a música, correr
minha formação, pois foi neste momento que
riscos, sempre ser curioso. Aliás, na minha
comecei a descobrir a grande diversidade dos
opinião, um artista sem curiosidade é um
nossos instrumentos, os tipos de estética di-
artista sem interesse.
ferentes, as metodologias de ensino variadas e as passarelas existentes entre as artes em
Tua atuação pedagógica exige muito e
geral. A possibilidade de estudar e conhecer
mesmo assim continuas com a carreira
outros repertórios com professores especia-
ativa em espetáculos diversos. Uma
lizados, outros instrumentos (em especial de
atuação retroalimenta a outra?
world music, que são muito presentes nas
Minha ideia era ficar somente dois anos na
universidades americanas), enriqueceram
França, mas fui ficando, trabalhando com
muito minha maneira de tocar e de pensar
músicos e orquestras. Em 2006, fiz concurso
a música. As múltiplas conversas e experiên-
para ser professora nos conservatórios da
cias artísticas que tive com meus professores,
França, passei e, desde então, sou professora
sobretudo, Christopher Deane, me fizeram
no Conservatório de Le Mans. Também fui
descobrir que caminho eu queria percorrer
professora de percussão nos conservatórios
dentro desta família de instrumentos que é a
de Alençon e Cholet. O trabalho pedagógico
percussão: A música contemporânea e a pes-
é muito importante para os músicos. Poder
quisa do material sonoro.
transmitir
para o bacharelado de percussão. Também
Depois do mestrado, a University of Miami
as descobertas e adaptar-se aos diversos
neste período fazia cursos no Rio de Janeiro
me propôs uma bolsa de estudos para o
alunos enriquece muito. Claro que é difícil
com o professor Luiz Anunciação, o Pindu-
doutorado, e ali estive de 1999 a 2002 dan-
conciliar os concertos, as aulas e a vida de
ca, um dos pioneiros da pedagogia percus-
do aulas, dirigindo o grupo de percussão,
família, ainda mais agora que sou mãe, mas
siva no Brasil. Foram muitos os concertos,
atuando como percussionista na orquestra
se organizando tudo é possível.
festivais e cursos durante esta época de
de Miami, além do curso. Uma época de
Acho muito importante para os alunos que
bacharelado sob a orientação do professor
efervescência de ideias musicais, de en-
eles tenham professores que estejam na vida
Ney Rosauro. Minha formação se deu em
contros determinantes com compositores,
real de músicos, ou seja, tocando, atualizan-
1996; em 1997, após concurso, ganhei uma
de estreias de peças escritas para mim e de
do-se, aprendendo repertório novo e não
bolsa de estudos integral da Fundação Vi-
concertos múltiplos nos Estados Unidos, na
repetindo as mesmas músicas de 20 anos
tae de São Paulo para fazer meu mestrado
Europa e na China. Em 2003, após ter fei-
atrás! Temos a sorte de que nossos instru-
no exterior. Não existiam muitas universi-
to concurso para um ensemble de música
mentos são tão diversos e o repertório está
dades no Brasil com a possibilidade de fazer
contemporânea em Paris, me instalei nesta
crescendo cada vez mais. É importante que
estudos de percussão clássica e, além disso,
cidade e continuei meu trabalho voltado à
o percussionista de hoje aprenda a música
nenhuma oferecia mestrado. Hoje em dia,
música contemporânea e às extended tech-
do seu tempo, tente compreender os no-
os músicos brasileiros têm a possibilidade
niques para instrumentos de percussão, ou
vos processos musicais, as novas estéticas,
de fazer estes cursos superiores no Brasil
seja, maneiras não convencionais de tocar,
utilize a tecnologia de maneira inteligente
com excelentes professores.
pesquisar sonoridades que não temos o há-
e, sobretudo, que encontre compositores
bito de explorar nos instrumentos.
com quem possa trabalhar. Explorar a mú-
Estudar em outro país foi determinante
Na França, tive a oportunidade de tocar com
sica profundamente e buscar sempre novas
para o teu trabalho?
excelentes músicos e também de participar
maneiras de tocar. Desde 2013, também dou
Meus estudos de mestrado foram feitos na
do grupo de Pierre Boulez, em 2003 e 2004.
aulas nos conservatórios da aglomeração
East Carolina University, sob a orientação dos
Uma experiência incrível, já que este com-
Francilienne, em paralelo aos espetáculos de
conhecimentos,
compartilhar
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
36
percussão, como solista, e com orquestras,
mentos. Porque esse festival, ao trazer tantos
Colômbia, é excelente. O festival está cada vez
grupos de teatro, artes plásticas etc.
professores de países diversos, promove o
mais ultrapassando fronteiras e o objetivo é
intercâmbio entre culturas diferentes. E esta
ir cada vez mais longe. Pela diversidade das
Com um olhar de fora, mas que também
é uma parte muito importante do festival.
estéticas que são trabalhadas, do background
é de dentro, qual a tua percepção do
Evidente que os professores que estão atuan-
dos professores e dos próprios alunos – se
Festival Internacional Sesc de Música?
do em universidades brasileiras também são
eu fosse aluna, ia adorar fazer este tipo de
Desde a primeira edição, pude ver como evo-
relevantes e serão sempre a referência mais
evento.
luiu em todos os aspectos: logística, nível dos
importante para os alunos, mas os que vêm
Como professora, o que me motiva a parti-
alunos e logística da cidade. Na percussão,
de fora proporcionam esta abertura, esta ja-
cipar é encontrar alunos novos, poder me
é sempre muito complicado, porque aquele
nela para o que está acontecendo no mundo
adaptar, sanar as curiosidades, poder fazer
aluno que faz violino leva seu instrumento;
musicalmente. Para mim, é uma alegria fazer
este tipo de troca: você me mostra o que está
na percussão, é diferente. O evento tem que
parte desde o princípio e ver o festival crescer
acontecendo com você e eu mostro o que
disponibilizar os instrumentos. No primeiro
a cada ano.
está acontecendo comigo, como podemos
festival, os instrumentos não permitiam mais
Na edição de 2016, foram muitos os músicos
colocar estas coisas juntas e qual é o resulta-
de oito, nove alunos. Ainda antes do segundo,
inscritos na percussão, mais de 50 para 12
do disso. Acho que para o professor não tem
o Evandro Matté (coordenador do festival) fez
vagas, e isso é bastante raro no Brasil, onde
nada melhor do que estar em contato com
contato comigo para eu intermediar a com-
normalmente não passam de 20 a 30 inscri-
alunos com vontade de tentar experimentos
pra com uma empresa francesa, fabricante de
tos. A seleção foi muito difícil, porque o nível
novos e depois vê-los fazendo e indo cada vez
instrumentos de percussão, e consegui que
dos músicos de diversos estados do Brasil e
mais longe. Não tem sentimento melhor para
comprassem quase todo o material pela me-
de países como Chile, Uruguai, Argentina e
um professor.
tade do preço. E agora vai ter ainda mais, por-
A cada ano, temos alunos novos. Alguns vêm
que a Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
desde o primeiro ano e fazem contato du-
comprou o instrumental completo. Essa evo-
rante o ano, aos quais envio partituras. Mas
lução é muito importante para nós. Quanto
uma das coisas que mais me motiva para este
mais instrumentos, mais alunos podem parti-
tipo de evento é compartilhar nossos conhe-
cipar, porque não podemos ter uma marimba,
cimentos musicais, porque os alunos também
um xilofone para vários alunos; temos que
têm os seus, e principalmente poder, ao final
proporcionar material suficiente para o tra-
do festival, pensar ‘eu pude tirar essa dúvida
balho individual de todos os alunos e também
e colocar o aluno num caminho que ele não
para poder trabalhar repertórios diferentes.
conhecia’. É superimportante. É poder mostrar
Além desta questão prática, eventos des-
que não há só uma maneira de fazer, é dar
te tipo no Rio Grande do Sul são essenciais
uma sugestão – sem jamais impor a sua pró-
para os alunos, ainda que a internet possibi-
pria maneira, porque o aluno que vem já está
lite toda esta abertura para o mundo, o que
adiantado e o bom professor tem que mostrar
representa um avanço enorme para quem
com muita tática o motivo pelo qual o outro
utiliza com inteligência. Mesmo que, hoje,
caminho seria melhor. Esse tipo de evento va-
diferente da minha época de estudante do
loriza isso.
bacharelado, a internet possibilite pesquisar músicas novas no YouTube, por exemplo, e o contato com professores durante o ano inteiro, o que representa muito em termos musicais, é essencial que – pelo menos uma vez por ano – os alunos tenham este contato direto, físico, ao vivo, com alguém que vem de fora, seja na percussão ou em outros instru-
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
POR Sylvia Leticia Guida, Graduada em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Especialista em Educação Musical pelo Conservatório Brasileiro de Música. Pós-graduada em Gestão e Marketing na Cultura pela Faculdade de Comunicação Social do Centro de Produção da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Cepuerj). Mestre em Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FVG). é professora de violino na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) e Assessora Técnica em Música no Departamento Nacional do Sesc, onde, juntamente com Gilberto Figueiredo e Thiago Sias, coordena o Sesc Partituras.
Este artigo foi baseado em parte da minha Dissertação de Mestrado Profissional “As possibilidades e os desafios para a disponibilização de acervos de partituras na internet: um estudo de caso do projeto Sesc Partituras”. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13690 1 Estamos chamando de música de concerto aquela cuja especificidade é a centralidade da partitura, que tem um papel fundamental tanto no processo de criação (composição), quanto na execução. Atualmente, para remeter-se a esse gênero de música, são utilizadas, no Brasil, principalmente três qualificações diferentes: “clássica”, “erudita” e “de concerto”. Cada uma delas reflete, por motivos diversos, certa posição política e estética de quem as adota, apesar de poderem ser usadas como sinônimos. Optamos, aqui, pela expressão “música de concerto”, pela intenção de delimitar não um gênero, mas uma forma de apreciação musical, de produção e de consumo da música. “Concerto” é um espetáculo musical, onde as pessoas vão exclusivamente para ouvir e apreciar música. 2 A Bienal de Música Brasileira Contemporânea, realizada atualmente pela Funarte, é considerada a mais abrangente mostra da música erudita contemporânea brasileira.
37
Sesc Partituras: um projeto de difusão da música brasileira de concerto A música brasileira de concerto
estejam estudando instrumentos de orquestra,
O Brasil possui imenso patrimônio de música de
apresentações públicas continua sendo basica-
concerto,[1] que reflete uma rica produção de diversos estilos e períodos. Essa produção, apesar de pouco divulgada, continua intensa, como podemos perceber, por exemplo, pelas Bienais de Música Brasileira Contemporânea,[2]que, em suas 21 edições – a mais recente realizada em 2015 –, receberam a cada evento inscrições de centenas de
No Brasil, embora cada vez mais jovens o repertório oficial dos cursos de música e das mente o mesmo, fundamentado nos “cânones” clássicos da música europeia. Acredito que o desconhecimento do repertório produzido no País explique-se, ao menos em parte, pela dificuldade de acesso às partituras.
novas obras originais. Apesar desses dados, a mú-
A música escrita
sica brasileira de concerto, tanto a histórica quanto
O desenvolvimento da notação musical foi o pri-
a contemporânea, ainda é bastante desconhecida
meiro grande marco na história da música, com-
dos intérpretes e do público e pouco presente
parável ao desenvolvimento da escrita. Acerca da
nos repertórios de orquestras, grupos de câmara
música de antes do advento de sua notação res-
e solistas no Brasil e no mundo. O dossiê de 2013
taram poucos vestígios inevitavelmente incom-
apresentado pela revista especializada “Anuário
pletos e obscuros, como instrumentos musicais
Viva Música!” reuniu o levantamento de dados da
ou imagens em pinturas.
atividade das 12 principais orquestras brasileiras e
Foi no século 11 que o monge Guido d’Arezzo
comprovou que a porcentagem de repertório de
colocou os neumas sobre um sistema de quatro
música brasileira nas apresentações no ano não
linhas, que evoluiu para a notação usada até hoje.
chegou a 24% na média em relação ao volume de
No século 15, foi inventada a prensa de Gutenberg
música estrangeira.
e, desde logo, a imprensa foi aplicada à música. As
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
38
3 A expressão “música ligeira” é utilizada em oposição à “música séria”, no sentido de “erudita”. Até o século 20 não existia o conceito de música popular urbana como entendemos hoje. A música popular era sinônimo de folclórica. Eram chamadas de “música ligeira”, por exemplo, a música de dança, do teatro de variedades e as canções. 4 Manuscritos autógrafos são aqueles produzidos pelos próprios compositores. 5 O direito moral é atribuído ao criador da obra e não pode ser transferido ou vendido. Já o direito patrimonial, que permite explorar comercialmente a obra, pode ser transferido a terceiros, incluindo empresas.
obras manuscritas eram compostas para execu-
poucos passa à mera administração dos direitos
A partitura é mais do que um documen-
ção local e sua circulação era restrita, mas, com
patrimoniais[5] das obras na inclusão em fono-
to histórico, mas a despeito disso nunca houve
a consolidação da imprensa musical no século
gramas, filmes cinematográficos e publicitários.
efetivamente no País uma política voltada para
19, as obras puderam ser distribuídas massiva-
Hoje, as poucas editoras que ainda editam par-
a difusão de partituras da música brasileira, que
mente e esse fato contribuiu decisivamente para
tituras impressas, em geral, são pequenas inicia-
sempre ficou à mercê de um mercado inexistente.
transformar a música em mercadoria.
tivas individuais.
Houve iniciativas isoladas e muitas vezes pessoais
A notação musical possibilitou a perpetuação de todo um patrimônio e uma nova forma
que não fizeram parte de uma política pública. Podemos citar, na primeira metade do século 20, os
foi possível a criação de uma música complexa
O acesso e a preservação de partituras no Brasil
composta através da sintaxe musical, pensada
A grande parte da música brasileira que perma-
uma grande diversidade de tipos documentais re-
para grandes orquestras.
de criação e transmissão. Foi a partir dela que surgiu a figura do compositor na era moderna e
esforços do musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange, um pioneiro nas pesquisas musicológicas na América Latina. Ele reuniu
neceu manuscrita ficou em acervos documentais
lacionados à música latino-americana dos séculos
O mercado da música impressa deu-se no
públicos ou pessoais, e não houve historicamen-
18 e 19, o que incluía muitos manuscritos musicais
Brasil a partir da fundação da Imprensa Régia
te uma política direcionada para a preservação e
e cópias de partituras. Porém, somente em 1995
em 1808. A partir de então, foi crescendo e fir-
difusão do conjunto dessas obras. Durante mais
o seu arquivo pessoal foi integrado à Universida-
mando-se, provocando transformações nos pro-
de 60 anos, o principal órgão de preservação do
de Federal de Minas Gerais sob a denominação de
cessos de produção musical e tornando os edi-
patrimônio no Brasil foi o Sphan, atual IPHAN –
Acervo Curt Lange-UFMG (ACL-UFMG).
tores de partituras os primeiros empresários da
Instituto Nacional do Patrimônio, cuja política era
Durante as décadas de 1970 e 1980, o com-
indústria da música. Do processo lento e do alto
centrada no tombamento de monumentos e pré-
positor e produtor musical Edino Krieger foi im-
custo da confecção de partituras decorria que o
dios históricos.
portante divulgador da música brasileira, em espe-
lucro era gerado pelo número de vendas. E por
Somente a partir da Constituição Federal de
cial a composta na segunda metade do século 20.
este motivo, o foco dos editores era a “música
1988 que o conceito de patrimônio ampliou-se,
Edino apoiou, ampliou e criou programas de difu-
ligeira”, que podemos chamar hoje de popular,[3]
sendo incluídos, no artigo 216, como constituintes
são da música brasileira, editando e disseminando
especialmente canções acompanhadas ao piano,
de patrimônio cultural brasileiro, os bens de na-
partituras. Em 1981, Krieger assumiu a direção do
vendidas para execução em saraus caseiros.
tureza material e imaterial. Este alargamento do
Instituto Nacional de Música da Funarte (INM),
Podemos dizer que o mercado editorial
conceito de patrimônio é fundamental para pen-
dando início a um período de grande impulso à
nunca foi muito rentável para música de con-
sarmos políticas de preservação para a música de
difusão da música no País, principalmente através
certo e, em decorrência disso, grande parte des-
tradição escrita, a qual possui como característica
do projeto Pro-Memus.
sa produção brasileira permaneceu em manus-
a dimensão tangível, representada, por exemplo,
critos, fossem autógrafos[4] ou de copistas, ou,
por instrumentos musicais e partituras em papel, e
com raras exceções, em edições estrangeiras.
ao mesmo tempo intangível, que é o conhecimen-
Com o advento da gravação no final do
to e a tradição que conserva viva a prática musical.
século 19, outra grande revolução ocorreu. A
Para preservarmos a música de concerto, é neces-
A internet e as novas possibilidades de acesso às partituras
partitura foi aos poucos adquirindo importân-
sário então tocá-la, renovando sua existência, pois
Ao logo da segunda metade do século 20, o de-
cia menor na música popular. Assim, o papel das
apesar de sua forte relação com a escrita, ela con-
senvolvimento das tecnologias da informação
editoras, fundamental na divulgação e no con-
tinua sendo uma arte essencialmente performáti-
enfraqueceu cada vez mais as fronteiras entre o
trole das obras, realizado através da publicação
ca, que só se materializa sonoramente no tempo e
digital e o físico. Hoje, o meio digital é utilizado não
e comercialização de partituras impressas, aos
em cada performance.
somente na interação com antigas formas de aces-
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
6 Fonograma é a fixação de sons de uma interpretação de obra musical ou de outros sons. Cada registro ou fonograma, portanto, é único e original. Essa fixação pode ser tanto em suporte material (CD, DVD, LP) ou digital (Mp3).
39
so à cultura, como também na produção e difusão
lização instauram um novo paradigma de difusão
na escrita musical ou cujo manuscrito se perdeu;
de bens culturais. Com a criação, a produção, a
do repertório da música de concerto, possibilitando
na divulgação de revisões de musicólogos.
difusão e o acesso aos bens culturais possibilitados
o acesso e a localização de obras. As possibilidades
Lançado em 2012, o Sesc Partituras tem
pelas novas mídias digitais, não só grande parte da
são inúmeras não só através de catálogos online,
sido elogiado por compositores e intérpretes.
produção cultural já nasce no meio digital, como
como também por meio de acesso direto a obras
Seu acervo vem crescendo constantemente e já
é transferida para ele. É fundamental, então, re-
completas para download. As editoras têm seus
quadriplicou de volume, tornando-se o site com
fletirmos sobre a salvaguarda da memória cultural
catálogos na web. Entre os compositores contem-
maior conteúdo exclusivamente brasileiro dis-
e artística na era da internet. Entre os espaços de
porâneos, a tendência é que eles próprios editem
ponível integralmente para download gratuito.
memória estão os acervos e as bibliotecas digitais,
digitalmente e divulguem suas obras em páginas e
Conta atualmente com mais de 2 mil obras de
que vêm recebendo grande atenção das políticas
blogs próprios. Para o repertório histórico, muitos
222 compositores de 25 estados. Com o intuito
públicas no Brasil nos últimos anos.
acervos e bibliotecas estão disponibilizando catá-
de somar forças para a divulgação da música bra-
Quando pensamos em novas mídias digitais
logos online com sistemas de busca elaborados;
sileira, o Sesc Partituras também realiza parcerias
aplicadas à difusão da música, habitualmente ten-
outros, até oferecerem download da obra comple-
com outras instituições ligadas à música brasilei-
demos a focar no acesso ao fonograma[6] por meio
ta. Entretanto, a maior parte das iniciativas ainda é
ra, que permitem o acesso aos seus acervos por
do compartilhamento, download ou streaming.
isolada e carece de divulgação.
meio da busca em nosso site.
O conhecimento formal da música, que inclui a prática de leitura e escrita musical, é muito pouco
Entre os destaques do acervo temos compositores consagrados como Guerra-Peixe, Francisco
nais e, talvez por esse motivo, as partituras tenham
O projeto Sesc Partituras
sido durante muito tempo esquecidas pelas políti-
O Sesc Partituras é um site que difunde a música
Brasileira de Música (ABM), com o intuito de dispo-
cas públicas de cultura.
difundido. Ele acaba restrito aos músicos profissio-
Mignone, Lorenzo Fernandez e Villa-Lobos. Este último é resultado de uma parceria com a Academia
brasileira através da disponibilização de partituras
nibilizar parte da obra coral de Villa-Lobos da Cole-
Como vimos, não houve um mercado edito-
digitalizadas e editoradas para download gratuito.
ção Escolar de Canto Orfeônico, ainda em fase final
rial forte na música de concerto no Brasil, e cada
O projeto é um aperfeiçoamento do Banco Digital
de revisão musicológica, para publicação no site.
vez mais esse mercado diminui. Hoje, praticamente
Sesc de Partituras, que, iniciado em 2007, implan-
Entre os compositores contemporâneos de
não existem lojas físicas, e nas poucas editoras e
tou computadores com acervo de obras digitaliza-
destaque internacional temos, para citar alguns,
lojas especializadas ainda ativas as opções de tí-
das em 17 unidades do Sesc e programas de edi-
Edino Krieger, Ernani Aguiar, Villani-Côrtes e o vio-
tulos nacionais são bastante limitadas. Essa situ-
toração de partituras, tornando-se um importante
lonista e compositor Sebastião Tapajós.
ação reflete-se na escassez de repertório brasileiro
subsídio de pesquisa para estudantes dos cursos
disponível para aquisição ou empréstimo nas bi-
do Sesc e músicos locais. Em 2010, iniciou-se um
bliotecas especializadas que dependem da música
processo de reestruturação visando à ampliação
impressa. Além disso, por questões de direitos au-
de seu alcance com disponibilização das partituras
A série Concertos Sesc Partituras
torais, não é possível reproduzir ou fazer emprés-
pela internet através de um sistema de buscas vol-
Cumprindo o objetivo de divulgar a música brasi-
timos de partituras na maior parte das bibliotecas
tado principalmente para intérpretes.
leira, a série realiza sistematicamente a execução
brasileiras, condição fundamental para um intér-
O projeto atua: na editoração de manuscri-
das obras de seu acervo para o público por meio de
prete estudá-las e executá-las. Se as obras impres-
tos originais de interesse histórico, muitos deles
concertos em todos os estados do Brasil. Em suas
sas são raras, o acesso a manuscritos dos acervos é
pertencentes a acervos particulares; na recepção e
11 edições já realizadas, a última em novembro de
dificultado pela fragilidade dos originais.
publicação de obras de compositores contemporâ-
2015, foram 231 concertos com a participação de
Nesse cenário, a internet, a popularização dos
neos, muitos ainda pouco conhecidos; na transcri-
cerca de 2 mil músicos.
programas de editoração de partituras e a digita-
ção para a partitura de obras ainda não registradas
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
40
festival de música de rua
Conexão entre a boa música e o público Um encontro entre diversos gêneros musicais, da
de concerto em pontos de ônibus, por exemplo,
As inscrições para os músicos participarem
música erudita à eletrônica, passando por jazz,
e isso facilitou para que chamássemos a atenção
do festival, que também terá atividades na Apae
música regionalista e pelo rock, em praças, esta-
também dos meios de comunicação tradicionais.
e na Apadev, como forma de democratização do
ções, pontos de ônibus e outros locais de grande
Tem muita gente disposta a recolocar a música
acesso à cultura, permanecem abertas duran-
circulação de pessoas na Serra gaúcha, é o que
bem-elaborada no lugar dela. Os jornalistas têm
te todo o ano. Os critérios de seleção priorizam
propõe o Festival Brasileiro de Música de Rua.
sido parceiros fundamentais nessa tarefa.”
a criatividade, a inovação, a técnica e a mensa-
O evento, que nasceu em Caxias do Sul, quase
O festival tem como objetivos principais o
gem poética. “Música instrumental, música auto-
como um “grito de desespero”, nas palavras de
resgate do valor da música e a aproximação dos
ral e música étnica ou tradicional têm preferência
seu coordenador e idealizador, o baterista Luciano
músicos com os espectadores, buscando contribuir
e não são aceitas músicas de apologia às drogas
Balen, conquistou visibilidade ano a ano ao levar
efetivamente para a formação de público para a
ou à violência”, afirma o coordenador. No total,
a música de qualidade onde o público está, ex-
música artística. Além disso, promove o encontro
estão previstas 60 apresentações, em horários e
pandindo sua territorialidade para outras cidades
de músicos de distintos gêneros, fomentando a di-
pontos de grande circulação de pessoas de Caxias
da região a partir de 2014 e, depois de quatro
versidade cultural, e une as cidades da Serra pelos
do Sul, Antônio Prado, São Marcos, Vacaria, Nova
edições realizadas, aumentou em 1.000% o orça-
laços da música, promovendo trocas entre artistas
Petrópolis, Flores da Cunha, Farroupilha e Bento
mento para edição 2016, por conta de concursos
locais e internacionais. Outro aspecto é o encontro
Gonçalves.
públicos e parcerias, entre elas, com o Sesc, cor-
entre os músicos e agentes da cultura através das
O 5º Festival Brasileiro de Música de Rua
realizador desde a última edição, juntamente com
conferências “Negócio da Música”, realizados pela
será realizado de 1º a 10 de abril de 2016, com o
a Incubadora da Música.
Incubadora da Música, visando à promoção de ar-
mote União dos Extremos, uma espécie de pedido
tistas e grupos estreantes, bem como a democrati-
de paz, segundo Balen. “Nestes tempos em que
zação do acesso à cultura.
todo mundo fala o que pensa, doa a quem doer…
“Falo em ‘grito de desespero’ porque, para a grande maioria das pessoas, a música perdeu o status de arte. Ela se tornou diversão, entrete-
Balen ressalta que, com a decadência das
Precisamos voltar a conversar. Abrir diálogo! No
nimento. Muitos não conseguem ir a um show
grandes gravadoras, o “negócio da música” mudou
caso do Rio Grande do Sul, que sempre foi um es-
para simplesmente ouvir música bem-elaborada.
muito. “Antes, quem fazia o filtro eram as gravado-
tado muito fechado em suas tradições, conside-
A televisão brasileira, com sua programação du-
ras e, com o advento do download gratuito, tudo
ro importante olharmos para outros estados. Se
vidosa e cada vez mais apelativa, contribui muito
mudou. Agora, talvez não tenhamos tantos filtros.
quisermos levar a música produzida no RS para
pra isso. Temos quase duas gerações inteiras que
A internet dá acesso a qualquer música de qual-
a parte de cima do Brasil, precisamos ouvir e co-
não dão nenhum valor pra música como arte”,
quer lugar do mundo. Acho que alguns músicos
nhecer a música de lá. É como refazer a amizade.
explica Luciano. O músico utiliza o termo “música
encontraram a rua como uma vitrine. E, afinal de
Mas tem uma mensagem mística nisso também.
bem-elaborada” para definir qualquer gênero que
contas, não é assim que fazem os pássaros? Eles
Acho que é chegada a hora de aprendermos a
busque uma proximidade maior com a arte, com
não cantam, independentemente, de ter alguém
viver com as diferenças de entendimentos. É pre-
a poesia, com desafios sonoros, com surpresas,
assistindo?” Apesar de o festival se chamar de
ciso respeitar as escolhas. Falando como gaúcho,
com o que chama de “nó na orelha”.
“música de rua”, são poucos os artistas genuina-
acho que é chegado o momento de se sentir bra-
Segundo o baterista, ele e seus parceiros na
mente de rua que participam. “Na verdade, a gente
sileiro. Pertencente a uma nação. Ou, quem sabe,
concepção do festival – todos músicos – sentiram
coloca na rua a música que normalmente não está
ser um gaúcho, brasileiro e latino-americano?
que precisavam colocar música de qualidade em
em locais abertos. A gente vai ocupando os espa-
Acho que é isso! Dar uma atenção às questões de
locais públicos, onde as pessoas não poderiam dei-
ços, imitando os passarinhos! Se vai ter alguém pra
pertencimento.”
xar de notar. “Por isso, apresentamos jazz, música
escutar, isso já não depende da gente.”
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2015
41
Evento realizado na Serra gaúcha leva música de qualidade para locais de grande circulação Fotos: Marcelo Casagrande
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
POR Flávia Seligman,
42
Cineasta e professora de cinema da Unisinos e da ESPM-Sul
A delicadeza de cada um: três documentários gaúchos O ano de 2015 foi marcado
Sua selfie. Cássio faz várias selfies, filmando a
Castanha conta sua história com a ajuda da
pela estreia e exibição de
si mesmo e a família, garantindo ao filme um
mãe, de colegas e de amigos, recriando o dia a
ar de registro bastante moderno.
dia, misturando realidade e ficção. Não se sabe o
documentários em
De busca também parece ser o outro do-
que é verdade e o que os realizadores gostariam
longa-metragem. São filmes
cumentário da safra, Filme sobre um Bom Fim,
heterogêneos, na sua maioria
de Boca Migotto. Através de depoimentos e
A grande ligação entre estes três filmes é a
material de arquivo, o diretor reconstitui a cena
forma como as narrativas são conduzidas. Ma-
cultural dos anos 1980 na cidade de Porto Ale-
maliga é narrado na primeira pessoa. Tolpolar
gre, mais especificamente neste bairro. Música,
conta a sua própria história, junto com o pai e a
se destacam da produção
teatro, cinema, contracultura, aids. A euforia do
irmã, e vai conduzindo o espectador como se ele
contemporânea brasileira.
pós-ditadura dá lugar para um período de in-
estivesse em casa.
certezas sociais. O filme foi um sucesso. Conse-
No filme sobre o Bom Fim, os entrevista-
Os filmes são jovens, mesmo quando falam de
guiu o que nenhum outro longa gaúcho havia
dos falam com tanta intimidade da sua parti-
um passado longínquo, como é o caso de Ma-
conseguido: 10 semanas em cartaz numa sala de
cipação na cena cultural que ela parece voltar
maliga blues, de Cássio Tolpolar, no qual o di-
cinema. A busca da própria história, uma histó-
à tona, com toda a força. As histórias de cada
retor leva o pai, filho de imigrantes judeus, no
ria recente, mas ao mesmo tempo distante, um
um tornam-se memórias de toda uma geração.
início do século 20 de volta à Moldávia para
período de alegria e de boas perspectivas con-
Isto foi tão forte que o filme acabou ficando 10
encontrar o túmulo de seus antepassados. As
trastando com o que se apresenta hoje.
semanas em cartaz em salas alternativas da ci-
de jovens realizadores, que se alinham e, ao mesmo tempo,
que fosse verdade.
únicas referências que possuíam eram alguns
Migotto conversa com protagonistas da agi-
dade, primeiro no cinema do Santander Cultural
nomes de cidades e uma foto que o avô tira-
tação dos anos 1980 como se estivesse tomando
e depois na Casa de Cultura Mario Quintana,
ra ao lado da lápide, antes de partir. No seu
uma cerveja nos bares da época. Olhos nos olhos,
com algumas sessões lotadas e formando filas
primeiro longa de busca, e aqui usa-se “busca”
as memórias vão surgindo, como na entrevista
para ingresso.
para classificar um documentário que estabe-
com o escritor Eduardo “Peninha” Bueno.
Em Castanha, entramos na casa do prota-
lece um objetivo e tem no próprio filme a sua
O terceiro filme, Castanha, é um documen-
gonista, acordamos e dormimos com ele, con-
metodologia, mostra trajetórias, e na sua maio-
tário/ficção. Um docudrama, gênero híbrido que
versamos com a mãe do ator, que dramatiza seu
ria (pelo menos as que estudamos e contamos
dramatiza fatos reais. Quem busca um docu-
próprio papel. Nos misturamos numa história
aqui), na primeira pessoa. Uma experiência
mentário sobre a vida e a obra de João Carlos
de vida bastante peculiar, com detalhes íntimos,
própria e tão só por isto pode ser registrada
Castanha, ator porto-alegrense com grande par-
como os amores passados do protagonista e a
desta maneira, com o olhar do realizador au-
ticipação no cinema e no teatro desde a movida
relação com o sobrinho, usuário de drogas.
tor, senhor do seu método, da sua busca e da
cultural dos anos 1980, encontra uma recriação,
elaboração de sua trajetória/forma de registro.
feita pelos próprios protagonistas.
Esses documentários marcaram um ano de longas-metragens, que ainda contou com o
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
43
Mamaliga blues
Fotos: Cássio Tolpolar / Divulgação
Castanha
Fotos: Tokyo Filmes / Divulgação
Filme sobre um bom fim
Foto: Epifania Filmes / Divulgação
filme de estreia de Márcio Reolon e Felipe Matzembacher, Beira Mar. Uma viagem sensível e adolescente nas descobertas. Também Dromedário no asfalto, de Gilson Vargas, no qual um homem (Marcos Contreras) viaja ao Uruguai à procura do pai. Em todos esses filmes há uma procura que pode ser colocada também como a própria procura do cinema gaúcho do seu lugar. São filmes simples, mas não simplórios. Com orçamentos bem mais apertados do que os longas do centro do País, porém com uma delicadeza extrema em contar pequenas histórias. E estes pequenos e delicados relatos vão tornando-se grandes e revelando um cinema que se afirma.
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
Por Marco Aurélio Fialho,
44
assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do Sesc
MR. FAKER:
Orson Welles e a autoria na indústria do cinema Criador de Cidadão Kane, filme que até hoje, quase 75 anos depois de lançado, ainda é considerado por muitos críticos o mais relevante da história da sétima arte, completaria 100 anos em 2015 “Arte é uma mentira. Uma mentira que
nessa perspectiva e de serem um embate perma-
radas por críticos de todo o mundo como o mais
nos faz perceber a verdade.”
nente entre o que é verdade e o que é mentira,
relevante filme da história do cinema. E o surpre-
Pablo Picasso
mais especialmente de como se tece um e outro.
endente, Welles realizou o filme com apenas 25
Para Welles, eles são uma moeda de duas faces,
anos de idade.
Chamar Orson Welles pela alcunha faker (impos-
retroalimentada incessante e ininterruptamente.
Quando relacionamos Welles com transborda-
tor) não chega a ser, neste caso específico, incrimi-
A genialidade de Welles, tão propalada por
mento, o fazemos no intuito de melhor compreen-
nador, tampouco soaria como elogioso, mas seria
seus contemporâneos, e incluindo nesse con-
der seu universo artístico a partir de sua personali-
justo. Entretanto, todo cineasta deveria se orgulhar
texto os críticos de cinema de todos os tempos,
dade marcante que se esparrama em seu trabalho,
de ser chamado de prestidigitador, pois que no fim
ganhou força graças a sua visão audaciosa e às
tal uma digital, com um impulso autoral insinuante,
das contas todos o são mesmo. Welles nada mais
vezes exagerada e transbordante sobre o cinema.
como se fora uma mácula irrefreável e irreprimível.
fez do que dignificar essa obviedade profissional, e
Até a sua faceta de ator sempre fora enigmática e
Transbordante talvez seja uma boa palavra
buscou, ao longo de sua tumultuada carreira, criar
barroca, capaz de provocar assombros no especta-
para definir Orson Welles. Identifica-se nele a exis-
um conceito estético em suas obras, nas quais o
dor. Ele funcionava como um ímã para os espec-
tência de algo para além do artista criador, que res-
uso do falso fosse compreendido como intrínseco
tadores, roubando a ação, como frequentemente
vala ali e se amplia na sua personalidade. Diretor
ao próprio fazer artístico. O falso como essência da
se costuma dizer. Quase sempre atuava como
de cinema e teatro, radialista, ator de cinema e tea-
própria arte, como pilar construtivo irrevogável e
protagonista em seus filmes, o que conferia uma
tro, roteirista, prestidigitador, artista múltiplo. Pela
inevitável desse processo.
faceta única a seus trabalhos, sua presença servia
imponência de sua presença e de suas ideias cul-
Somos sabedores que o ilusionismo constitui
para dar o tom na construção dos personagens
tivou muitos inimigos, em especial em Hollywood,
a base do cinema. Segundo o Dicionário Houaiss
dos atores que contracenaram com Welles. Dirigir
mas também uma imensidão de admiradores que
da Língua Portuguesa, ilusionismo seria “a arte de
e protagonizar lhe conferia esse benefício artístico.
não cansam de vê-lo como gênio, excêntrico e
criar ilusão por meio de artifícios e truques; pres-
Corpulento, alto e com olhar confiante e afir-
polemista. Welles esforçava-se em fazer um cine-
tidigitação”. Portanto, fica difícil separar o cinema
mativo, Welles possuía uma presença imponente.
ma autoral em meio a maior indústria do cinema
do ilusionismo. O ilusionismo é intrínseco ao ci-
Logo em seu primeiro longa-metragem, Cidadão
mundial e pagou um alto preço por essa escolha.
nema. Welles entendeu isso desde sempre e esco-
Kane (1941), deixou perplexo o meio cinemato-
O transbordamento não é aqui utilizado tão
lheu o cinema como sua forma de expressão, por
gráfico da época. Apesar de criticado nos Estados
somente para definir sua obra, mas também como
compreendê-lo por esse viés. Nenhuma linguagem
Unidos, o filme foi descoberto pelos intelectuais
um ponto referencial e de integralidade. Assim, a
artística é tão eficiente em iludir quanto o cinema.
franceses após o fim da Segunda Guerra Mundial,
personalidade de Orson Welles está rigorosamente
Em sua própria constituição, inclusive os filmes de
em 1945, e, desde então, o filme de Welles está
presente em tudo que fez na carreira, e até fora
Welles são paradigmáticos e podem ser analisados
presente em praticamente todas as listas elabo-
dela, isto é, sua aparição deve ser entendida sem-
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
45
Fotos: Frames extraídos do filme Cidadão Kane
pre como um acontecimento, seja como diretor
processo de produção dos estúdios hollywoodia-
das a partir de seu imaginário político e filosófico,
seja como ator ou em qualquer outra função que
nos, sua inconformidade ao status quo. Numa ob-
da sua visão ontológica, mesmo sabendo que elas
tenha desempenhado ao longo de sua vida.
servação superficial, se considera primeiramente
se assemelhem com as de David contra Golias.
Nesse enfoque do transbordamento, a busca
as aparências de que Welles nada mais é que um
Essas relações eram penosas e inglórias realmen-
da verdade não pode ser considerada como essen-
lunático, um derrotista a enfrentar ingloriamen-
te, mas refletiam bem sua obsessão em realizar
cial na concepção de seus filmes, pois ela tende
te os poderosos estúdios e seus produtores. Mas
plenamente seus anseios artísticos e não era só
ao exato, à precisão, à crueza, enfim, ela tem que
quando imergimos em seus projetos e compreen-
uma questão de terminar seus projetos a todo o
ser. Já o falso não, ele precisa ser convicentemente
demos sua visão artística, construímos outra con-
custo. O pensar wellesiano não era propriamente
over para poder ser aceito, não precisamente como
cepção a seu respeito. É notória sua predileção
finalístico e sim processual.
ele é, falso, mas para poder parecer indubitável e
por certas obras como Don Quixote (Miguel de
No decorrer de sua carreira, quem mostrou
inequivocamente verdadeiro.
Cervantes), O processo (Franz Kafka) e O coração
maior dificuldade em lidar com a personalida-
Quando relacionamos Welles com transbor-
da selva (Joseph Conrad), que materializam a luta
de marcante de Welles foram os produtores de
damento, o fazemos pensando que nele reside
de homens contra processos de aprisionamento
Hollywood, que dificilmente conseguiam dobrá-lo.
certa insanidade, não uma insanidade pela insani-
do indivíduo. Assim, as diversas batalhas de Wel-
Welles sabia o que queria e era constantemente
dade, mas sim advinda pela sua não aceitação do
les contra donos de estúdios devem ser analisa-
acusado de ser intolerante, lutava para ter o con-
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
46
1 Welles (1986). 2 Welles (1986, p. 84). 3 Welles (1986).
trole artístico de sua obra, o que é bem compreensível para um criador.
Esses embates impregnam a obra de Welles
central na construção da obra wellesiana. Como
e não podem ser desvinculados dela. A sua obra
desdobramento, podemos também desmembrar
Quanto ao seu espírito inconformado, certa
nos interroga o tempo todo sobre a possibilidade
outros temas adjacentes, tal como os da traição,
vez o próprio disse: “Os santos e os artistas não
de realização autoral dentro do processo produ-
do assassinato, da inveja e das crises de consciên-
se evidenciaram na história pelo seu conformis-
tivo de uma grande indústria, repleta de chefões
cia. Ressalta-se sua visão crítica acerca de como
mo, e é um fato evidente, mas esquecido, de que
poderosos e endinheirados. A análise atenta de seu
os poderosos exercem seu macro e micropoderes,
não existe arte ou artista domado, dominado ou
processo criativo deve esbarrar, inevitavelmente,
como os organizam e os estruturam.
posto de quatro.”.[1]
nessa tensão entre artista/criador e indústria.
Welles chegou a declarar sua visão acerca da arte e que contrastava radicalmente com o
Pelo seu humanismo radical, de colocar usualmente o indivíduo como elemento central de sua obra, muitos críticos o definem como um
fala é bem clara a respeito: “Hollywood trata
WELLES, UM DEMIURGO CONTEMPORÂNEO
todo mundo mal. Tudo que alguém seja capaz
“A palavra ‘gênio’ foi a primeira que ouvi,
também reforça esse caráter renascentista de
de declarar sobre Hollywood é verdade. Mas
quando ainda estava no berço. Assim,
Welles. A relação poder, crise de consciência e
eu me sentia melhor, mais à vontade, quando
até chegar à meia-idade, nunca pensei
traição são temas congruentes nas obras dos dois
Hollywood era uma cidade-fábrica, os grandes
que não fosse um gênio. Os adultos,
artistas. No cinema, Welles filmou três peças de
estúdios, com os grandes dinossauros sentados
então, esperavam que eu fizesse algu-
Shakespeare, enquanto no teatro montou desde a
atrás de suas escrivaninhas.”[2]
ma coisa extraordinária. Tentei fazê-las.
adolescência incontáveis adaptações.
modus operandi praticado pelos estúdios. Sua
Definitivamente, Welles não abria mão do
Sempre achei, porém, que não estava
renascentista, o que não chega a ser um exagero. A influência do dramaturgo William Shakespeare
Muitas vezes apontado como prodígio,
domínio artístico das suas obras, e como consequ-
correspondendo.”[3]
Welles teve uma formação muito sólida e de-
ência disso travava embates fervorosos contra os
Orson Welles
senvolveu um gosto pelas artes desde a adoles-
donos de estúdio. Essa era uma questão realmente
cência. A literatura sempre o seduziu, basta ver
fundamental, constituidora mesmo. Hollywood
Orson Welles foi um artista que conseguiu
as adaptações literárias que realizou no cinema.
se consolidou economicamente por meio da in-
refletir como poucos o século 20, em especial o
E os escritores adaptados, quando analisados
tervenção dos produtores nos filmes, vistos como
seu país, os Estados Unidos; mas também sou-
em conjunto, mais do que simples referências,
seus produtos finais, sua fonte de maior ou menor
be envolver sua obra em meandros filosóficos ao
compõem um quadro de influências substanti-
lucro, ou de um possível fracasso. A briga era de
incluir questionamentos profundos sobre o papel
vas, formadoras mesmo do seu caráter e de seus
caráter classista, de um lado os objetivos do ar-
do homem no mundo contemporâneo. A busca
princípios artísticos e humanísticos. São eles:
tista em salvaguardar sua liberdade de criação, e
ou o questionamento do sentido da vida pelos
Joseph Conrad, Franz Kafka, Miguel de Cervan-
de outro os empresários, esforçando-se em ter um
indivíduos permeiam suas tramas e seus perso-
tes e William Shakespeare.
produto final rentável. Por isso, os artistas estão
nagens. Personagens em situação-limite, imersos
Poucos artistas antes dos 25 anos consegui-
sempre propensos a correr risco enquanto os em-
em encruzilhadas advindas de suas ambições
ram dois feitos atingidos por Welles. O primeiro foi
presários tendem à estabilidade de seus negócios.
políticas e econômicas podem ser considerados
causar, aos 23 anos, uma comoção geral ao nar-
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
47
rar em um programa de rádio da CBS (Columbia
forço de decifração de qual seria o significado
Broadcasting System) uma invasão de marcianos,
dessa enigmática palavra.
Se a primeira obra de Welles pode ser vista como seu manifesto artístico, sua última obra,
inspirada no livro A guerra dos mundos, de H. G.
Com Cidadão Kane, Welles discute a ques-
F for Fake, vislumbra-se como seu testamento. As
Wells. Várias pessoas, desesperadas, tomaram o
tão da importância da riqueza para o indivíduo
duas obras descortinam o esforço uníssono de
que ouviram como verdade e abandonaram suas
e mexe diretamente com os elementos forma-
conceber a arte e a vida em sua dimensão con-
casas em fuga, causando um grande alvoroço em
dores da sociedade capitalista norte-americana,
traditória. Apreende-se Kane como um podero-
várias cidades americanas. Claro que houve todo
o enaltecimento do enriquecimento individual
so homem que construiu um império, mas, por
um planejamento, a programação musical foi in-
como força motriz da dinâmica social. Inteli-
mais que se esforcem em conhecê-lo, isso não é
terrompida para a notícia extraordinária, tudo
gentemente, a discussão encaminha-se para a
possível, pois sua palavra final, rosebud, continua
muito bem calculado pelo então l’enfant terrible.
infelicidade do protagonista, que, apesar de de-
até o fim indecifrável para todos, apenas nós es-
O segundo foi realizar um filme de estreia até hoje
tentor de poder econômico, e até político, não
pectadores sabemos tratar-se de uma lembrança
defendido pelos críticos como o mais relevante da
consegue substituir a maior perda de sua vida, a
nostálgica da sua infância. A verdade para Welles
história do cinema: Cidadão Kane.
subtração de sua infância feliz.
reside no sujeito, e é indivisível; já a mentira é
Esse tema, o da construção da verdade ou,
O filme foi reconhecido como uma obra ge-
se alguém preferir, da mentira, sempre acom-
nial, mas Welles pagou um alto preço pela sua
panhou a sua carreira. De Cidadão Kane a F for
ousadia temática. William Randolph Hearst, um
Rosebud... essa é a palavra-enigma, a peça
Fake esse tema permeou toda sua obra. Welles
famoso plutocrata, dono de um poderoso jornal
que falta e ao mesmo tempo a palavra-síntese
devotou uma boa parte de sua vida em desven-
da época, e uma das inspirações para a cons-
para o entendimento mais profundo sobre o ho-
dar o papel do cinema nesse processo cogniti-
trução do personagem Kane, investiu de forma
mem Charles Foster Kane. Mas também não há
vo de colocar o espectador em uma posição de
sistemática contra o filme e a carreira de Welles.
uma explicação, um desfecho no qual o diretor
questionar os artifícios que possibilitam a construção tanto da verdade como da mentira. Ao falar de Orson Welles fica impossível não se mencionar que Cidadão Kane, sua obra
social, e compartilhada, pode até ser considerada por todos como uma verdade.
tudo explicita sobre Kane. Fica para o especta-
Dossiê Cidadão Kane
dor juntar as peças dispersas no decorrer de 120 minutos. Mas, ao final, fica sempre a pergunta: afinal qual seria o sentido da vida? O que se
máxima e importante do ponto de vista estéti-
“Talvez rosebud fosse algo que Kane não
acompanha em Cidadão Kane são narrativas de
co, também fornece contribuições para além do
conseguiu, ou perdeu. Mas não explica
pessoas que conviveram com ele, mas podemos
universo cinematográfico ao propor uma análi-
tudo. Nenhuma palavra pode explicar a
afirmar que o ser humano pode ser assim com-
se pertinente sobre seu tempo. O filme retrata
vida de um homem. Acho que rosebud é
preendido, apenas através do outro, da visão
em flashback a vida conturbada do milionário
só uma peça de um quebra-cabeça, uma
do outro, ou outros? Kane é uma figura pública
Charles Kane, dono de um importante jornal, o
peça que falta.” (Parte do diálogo final
notória, um homem típico do mundo midiático
Inquirer. O ponto de partida é o do momento de
de Cidadão Kane, dita por Sr. Thompson,
nascente. Welles então propõe uma discussão in-
sua morte, quando Kane profere a misteriosa
jornalista destacado para descobrir o
teressante sobre os primórdios desse fenômeno,
palavra rosebud. A partir de então, começa o es-
significado de rosebud para Kane.)
no qual somos apenas uma imagem. Daí o filme
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
48
propor, como primeira narrativa sobre Kane, o documentário sobre sua vida pública.
A narrativa de Welles lembra o método uti-
são as informações que os personagens vão des-
lizado por Sherlock Holmes, o da decifração de
crevendo ao longo do filme. Nos documentos do
A narrativa de Cidadão Kane se constrói as-
mistérios por meio de indícios ou vestígios. Só
tutor Thatcher possivelmente está mencionado o
sim, pelos outros. Apenas um objeto, um mero
que essa tarefa é inglória, pois só há um único
trenó, o tal objeto cuja marca é rosebud e que
trenó de criança, nos alça abruptamente para uma
vestígio a ser descortinado, o do significado da
queimará numa fogueira, apenas como um ve-
reflexão sobre os sentimentos de um indivíduo e,
palavra rosebud. Xanadu, porém, também pode
lho e desimportante brinquedo. Talvez Thatcher
consequentemente, sobre o sentido da vida. O di-
ser apontado como uma fonte cheia de vestígios,
pudesse ser o único a conhecer o que seria o tal
lema de Kane é o de todos nós: o que seria impor-
mas a sua suntuosidade é tanta, já que representa
rosebud. Esse é o ardil wellesiano. Outro ardil foi
tante na vida? No somatório final, o que realmente
nada mais nada menos que uma síntese da histó-
o de mostrar que, no meio daquele acúmulo ab-
importa e vale a pena?
ria da humanidade, com suas réplicas históricas
surdo, de esculturas valiosas, havia um pequeno
Talvez por isso, devido a essas inevitáveis per-
e sua fauna e flora abundantes, que fica difícil
regalo, de valor sentimental inestimável e que só
guntas, o filme inicia e termina com a mesma ima-
achar algo de valor sentimental. Xanadu é a ex-
tinha valor para Kane, da mesma maneira que o
gem: uma placa da entrada da mansão de Xanadu
pressão do arrivismo típico dos capitalistas norte-
globo de vidro com a casa em meio à neve. Qual
indicando “não ultrapasse”. Não é à toa que Wel-
-americanos.
seria então a verdade e a mentira a ser descoberta
les retorna no final à mesma placa inicial. A placa
Não é casualmente que no documentário
sobre Charles Foster Kane? A imprensa construiu
funciona como um convite à circularidade, uma
sobre Kane ouvimos as seguintes frases sobre sua
a sua versão, assim como cada um dos persona-
chamada para que juntemos como espectadores
Xanadu: “desde as pirâmides, Xanadu é o monu-
gens ouvidos no filme. Welles expõe todas elas,
o quebra-cabeça proposto por Welles, pois, afinal,
mento mais caro que um homem construiu para
mas delega apenas ao espectador a montagem
só se chega à repetição da placa quem chegou ao
si”... “um império dentro de um império”... e so-
dessa ideia de quem era essencialmente Kane.
final do filme.
bre Kane: “uma poderosa figura de nosso século.
Somente o espectador reúne todos os elementos
Seis depoimentos compõem o quebra-cabeça
O Kubla Khan dos Estados Unidos, Charles Foster
e pode juntar todas as peças desse tabuleiro, que
de Kane. Em cada depoimento Welles nos revela
Kane”.... Como inventariar o excesso? E nessa pro-
foi a vida de Kane. Até o segredo rosebud, jamais
facetas e fases da vida desse cidadão chamado
fusão de objetos, como então encontrar os tais
revelado ou sabido nem pelos personagens, está
Charles Foster Kane. Mas destaca-se um ardil inte-
vestígios que nos levariam ao significado de rose-
circunscrito aos espectadores e a mais ninguém.
ressante de Welles nesse quebra-cabeça. A infância
bud? Não seria como procurar uma agulha num
Estruturalmente Cidadão Kane surpreende
de Kane, fase mais importante e onde encontramos
palheiro? Rosebud é apenas uma palavra, é eté-
até hoje com a sua narrativa fragmentada advin-
a chave para o entendimento do personagem, só
rea, e, tal como uma brisa, não possui uma forma,
da do conjunto de várias memórias. Os flashba-
nos chega pelas leituras dos diários e arquivos de
não é papável.
cks que desfilam na tela vão montando o grande
seu tutor Thatcher. A ausência desse testemunho
Mas Welles nos brinda com os seis blocos
puzzle do filme e reconstruindo a temporalidade
vivo faz com que tratemos apenas dos vestígios
de depoimentos, que nada mais são do que fatos,
da história. A fotografia de Gregg Tolland emba-
deixados e não abre a possibilidade de resposta de
aparentemente desprovidos de grande impor-
sa essa audácia narrativa com o uso constante
uma pergunta específica, no caso, o que significa-
tância, são apenas fatos comuns de um homem
da profundidade de campo, que mantém o foco
ria o tal rosebud.
bem-sucedido. Casamento, herança e trabalho
tanto no primeiro plano quanto no plano mais
CINEMA
segundo SEMESTRE
2015
49
4 Ver detalhes em Bazin (2014).
distanciado de uma mesma cena. Uma das sequ-
ver o que seria o enigmático rosebud, proferido
ências mais impressionantes no uso dessa técnica
então como sua derradeira palavra. Mas a cena
acontece quando o tutor dá a notícia aos pais de
de sua morte é bem explícita e as imagens não
Kane sobre a herança milionária e que ele pre-
deixam margens para dúvidas. Kane está sozi-
cisará estudar em um dos melhores colégios do
nho na hora de sua morte e, consequentemen-
mundo. Welles constrói um plano-sequência no
te, quando proferiu seu rosebud. Sendo assim,
qual o tutor conversa com os pais de Kane dentro
quem teria escutado a tal palavra? Vemos cla-
da casa, enquanto ele brinca na neve com o seu
ramente a entrada da enfermeira em seu quarto
trenó rosebud ao fundo, todos e tudo em foco.
quando ele já está morto. Certamente, mais uma
Essa sequência é uma das mais importantes do
vez, Welles nos prega uma de suas tradicionais
filme ao mostrar que o destino de Kane estava
mentiras e nos mostra sua faceta fake. Não po-
sendo decidido a sua revelia, assim como a sua
demos esquecer que a palavra é dita em um pla-
infelicidade. A subtração da infância de Kane
no-detalhe da sua boca, isto é, diretamente para
é fundamental, jamais será recuperada por ele.
o espectador. Mas mesmo assim fica a pergunta:
Welles tece uma síntese da falência moral nor-
será que seu objetivo era mostrar a todos que,
te-americana: Kane vira uma pequena peça da
como artista, podia se dar o privilégio da inven-
engrenagem capitalista, milionário, mas escravo
ção e subverter a noção de verdade e mentira?
do sistema, tanto quanto um operário pobre de
Tudo isso aqui comentado e refletido é suficiente para colocar Cidadão Kane ainda hoje
uma indústria. A própria narrativa de Cidadão Kane já
como um marco indiscutível da história do ci-
impõe sua edição, condicionada pelas próprias
nema. Mesmo depois de mais de 70 anos, o filme
memórias dos personagens do filme. Apesar de
continua tendo o seu reconhecimento e ratifi-
o filme possuir muitas cenas e personagens, há
ca o gênio Welles, sua inteligência, seu caráter
momentos de grande economia de planos, pois
rebelde, inconformista e sua coragem estética
a profundidade de câmera utilizada no conceito
em utilizar plenamente os recursos narrativos
fotográfico poupa a filmagem de diversos planos
e de linguagem disponíveis no início dos anos
de campo e contracampo. Inclusive, há uma
1940. O legado de Shakespeare enfim tinha um
sequência em que Welles cria seis pequenos
herdeiro à altura e o cinema alguém capaz de
planos que sintetizam a falência do primeiro
reinventá-lo sem ter que negar a sua vocação
casamento de Kane. Welles consegue representar
narrativa. Pena Hollywood não ter reconhecido
meses em apenas alguns poucos segundos.
em sua plenitude toda a explosão artística e
[4]
Mas há em Cidadão Kane uma grande mentira a ser desmascarada. Todos procuram resol-
criativa de Welles.
REFERÊNCIAS bibliográficas BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014. BORDWELL, David & THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Editora Unicamp/Edusp, 2013. CASTRO, Ruy. Saudades do século 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. DINIZ, Eleazar. Cinema no Brasil: impressões. Rio de Janeiro: produção independente, 2013. EBERT, Roger. Grandes filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. INFANTE, Guillermo Cabrera. Cinema ou sardinha: 2 volumes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2014. LABAKI, Amir (org.). Folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MASCARELLO, Fernando. (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2008. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. MÜLLER, Adalberto & Scamparini, Julia. Muito além da adaptação. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013. ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985. SOUZA, Enéas de & Pereira, Robson de Freitas. Cinema: o divã e a tela. Porto Alegre: Artes e ofícios, 2011. STAM, Robert. A literatura através do cinema. Minas Gerais: Editora UFMG, 2008. TRUFFAUT, François. Os filmes de minha vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. VEILLON, Olivier-René. O cinema americano nos anos cinquenta. São Paulo: Martins Fontes, 1993. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz & Terra, 2008. WELLES, Orson. O pensamento vivo de Orson Welles. São Paulo: Martin Claret, 1986. ZUNZUNEGUI, Santos. Orson Welles. Madrid: Cátedra. 2010.
segundo SEMESTRE
2015
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Nesta página: Escrevendo com a luz Fotos: Elvira Fortuna
Na outra página: 1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: André Ávila Foto: Camila Domingues Foto: Mauro Schaefer Foto: Daniel Marenco Foto: Eneida Serrano
Rio Pardo: a Paraty gaúcha? Evento de fotografia, que tem o Sesc como um dos realizadores, reuniu 40 profissionais em sete mostras nos meses de setembro e outubro no Centro Regional de Cultura e em outros locais
ARTES VISUAIS
ARTES VISUAIS
segundo SEMESTRE
2015
51
Comparar o evento Rio Pardo em Foto, que rea-
Se o evento de Paraty foi criado para valo-
cultural que o município já havia experimentado
lizou a sua 3ª edição em 2015, ao já tradicional
rizar a fotografia, o de Rio Pardo tem como ob-
em outras épocas, em especial, no final do século
Paraty em Foco – criado em 2005 pelo fotógra-
jetivo fazer com que esta arte estabeleça uma
19, um período de pujança econômica. “Pensa-
fo italiano Giancarlo Mecarelli com o intuito de
relação direta com a comunidade, no sentido
mos em alguma coisa para movimentar a cidade,
incentivar e promover a arte fotográfica e se
de oferecer a diversidade de olhares vista pela
e a fotografia é um instrumento muito bom para
tornou uma das maiores iniciativas culturais do
lente qualificada dos fotógrafos que participam
mexer com olhares. A cidade não estava mais se
país ligadas a essa área – pode parecer exage-
das mostras – em 2015, foram 40 profissionais –,
enxergando. Com o tema ‘um olhar diferencia-
ro. Mas se depender do desejo e da empolgação
estendendo-se para além do espaço expositivo,
do’, provocamos a população para que prestasse
dos envolvidos que viram, no festival realizado
aproximando-se do cotidiano das pessoas e, fi-
atenção, desse importância para o local onde vive
na histórica e fotogênica cidade gaúcha, o po-
nalmente, ocupando a cidade.
e que, acostumada, acaba vendo com um olhar
tencial de crescimento, em especial pela aco-
A arquiteta Vera Schultze, uma das idealiza-
lhida da população, não será surpresa se nos
doras do Rio Pardo em Foto, conta que o evento
Apesar de o Rio Pardo em Foto ter iniciado
próximos anos o Rio Pardo em Foto tomar pro-
surgiu da iniciativa de um grupo de amigas, como
com um caráter local, até para torná-lo viável, o
porções bem maiores.
forma de estímulo ao retorno da efervescência
grupo de mulheres já vislumbrava, para as edições
trivial”, afirma.
ARTES VISUAIS
segundo SEMESTRE
2015
52
Quase paisagem - Taim Foto: Cristiano Sant’Anna
1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: Rodrigo Rodrigues Foto: Leonardo Accurso
seguintes, um evento marcante que trouxesse pes-
em diferentes fases do curso, “revelações” e “cor não
nossa estadia fotografando e conhecendo um pou-
soas para a cidade, como o de Paraty, ou mesmo o
define amor”.
co mais de Rio Pardo, uma cidade incrível e cheia de
Festival de Inverno, em Ouro Preto e Mariana, Minas
Para o coordenador do Curso de Fotografia da
história, que foi palco de diversos acontecimentos
Gerais. “Rio Pardo tem este clima, tem este acolhi-
Unisc, Alexandre Borges, o Rio Pardo em Foto forta-
históricos importantes, como a Guerra Guaranítica,
mento; só não tem o evento de grande porte”, ana-
lece a importância da fotografia no desenvolvimen-
a Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai.”
lisa Vera. Segundo ela, “a primeira edição foi tímida,
to das pessoas, no convívio, inclusive em relação à
“Rio Pardo é uma cidade maravilhosa que, com
praticamente paroquial, mas teve boa aceitação e
autoestima e a tudo que envolve o conhecimento
todo potencial turístico e documental, tem tudo
muita repercussão. Levamos a fotografia para rua
dessa arte, não atrelada a outro conhecimento, de-
para se transformar na nossa Paraty”, empolga-se
através de projeções noturnas no Museu Barão de
pendente, mas sim a fotografia como protagonista.
o fotógrafo Luiz Ávila, coordenador do Núcleo de
Santo Ângelo, antigo Solar do Almirante Alexandri-
“A cidade de Rio Pardo precisa disso. É uma cidade
Jornalistas de Imagem, vinculado ao Sindicato dos
no, um prédio colonial com importância arquitetô-
muito bonita e, de certa forma, se percebe um olhar
Jornalistas RS. “A ideia é fantástica e tem tudo para
nica e histórica, e no Centro Regional de Cultura”.
desgastado sobre a própria cidade, que tem caracte-
crescer bastante e se espalhar por toda a cidade. Já
Em 2015, o evento passou a contar com a par-
rísticas muito peculiares, parecida com outras cida-
imagino exposições fotográficas ao ar livre, feira de
ceria da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)
des históricas do País e que já estão alguns passos
livros fotográficos, debates acadêmicos, saídas foto-
e as mostras apresentaram trabalhos de fotógrafos
à frente nesta relação de respeito, de autoestima.”
gráficas, fotógrafos do Mercosul convidados.”
que são expoentes no Estado, diferente das edições
Alexandre revela que já existe um movimento de
O fotógrafo Cristiano Sant’Anna destaca o po-
anteriores em que os participantes eram amadores.
construção de condições para que, em médio prazo,
tencial de descentralização do projeto, não só uma
As sete mostras distintas exibiram desde registros
se caminhe para um trabalho parecido com o que
descentralização da capital, mas também das cida-
históricos dos primeiros momentos do Colégio
se faz em Paraty, e, a partir da fotografia, se leve
des que são polo regional. “É um evento muito legal
Auxiliadora, prédio que atualmente sedia o Centro
turistas a Rio Pardo. “Isso fará com que os próprios
que acontece em uma pequena cidade que vive do
Regional de Cultura, às “quase paisagens” do Taim,
moradores consigam ver sua cidade com um olhar
turismo histórico, que sequer é a cidade principal da
de Cristiano Sant’Anna. O fotógrafo Gilberto Perin
mais carinhoso.”
região, a qual tem importantes centros culturais e
incitou a reflexão do público com as suas “fotogra-
A fotógrafa Elvira Fortuna destaca a qualidade
de educação, o Sesc como promotor de cultura, e
fias para imaginar”, enquanto Elvira Fortuna, na ex-
dos trabalhos das mostras, espalhadas pela cidade,
isso estabelece trocas muito ricas”, destaca o fotó-
posição “escrevendo com a luz”, apresentou recortes
e também a intensa programação concentrada no
grafo, que já levou sua exposição Quase paisagem
urbanos da capital gaúcha. O Núcleo de Jornalistas
Centro Regional de Cultura direcionada aos aprecia-
– Taim, projeto contemplado pelo Fundo de Apoio à
da Imagem ocupou outros espaços da cidade com
dores de fotografia. “Além de gratificante, a expe-
Cultura (FAC) do governo do Estado, a Porto Alegre e
obras que ilustram o noticiário do mundo. O evento
riência foi muito rica em cada uma das etapas do
Buenos Aires, além do 3º Rio Pardo em Foco.
contou, ainda, com duas mostras de alunos da Unisc
projeto, desde a primeira reunião, a montagem e a
ARTES VISUAIS
segundo SEMESTRE
2015
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1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: Ubirajara Machado Foto: Silvio Ávila
Fotografias para imaginar Fotos: Gilberto Perin
Rio Pardo em Foto, a imaginação em cada imagem Por Gilberto Perin, fotógrafo A história nas ruas, uma paisagem e topografia
Os mais de 50 fotógrafos reunidos em mos-
visível, mas que nos deixa espaço para imaginar
fotogênicas, casas e prédios que merecem ser
tras, exposições e cursos – além do engajamento
o que acontece em cada fotografia, teve uma
observados e conservados. Esses são alguns dos
da Prefeitura, do Sesc e da Unisc – revelam que o
receptividade carinhosa no Centro Regional de
motivos de orgulho e consideração de professo-
Rio Pardo em Foto se prepara para novos saltos a
Cultura Rio Pardo – há 10 anos respirando diver-
res, alunos, historiadores, donas de casa, comer-
distância e em altura. Com o envolvimento comu-
são e arte. Essa exposição, com fotos de diversas
ciantes, autoridades e a totalidade de quem vive
nitário constante, não é difícil imaginar que cada
cidades daqui e lá de fora, encontrou a acolhida
em Rio Pardo. A fotografia se coloca à disposição
habitante da cidade se tornará cada vez mais
do olhar e reflexão do público rio-pardense, mos-
para eternizar momentos importantes, pequenos
participante e um divulgador do evento. Os fotó-
trando que a imaginação vai estar sempre pre-
detalhes, rostos, gestos sutis e grandiosos. Rio
grafos do Rio Grande do Sul já descobriram a im-
sente no Rio Pardo em Foto.
Pardo em Foto faz parte dessa “invasão” da ima-
portância e o prazer de participar desse festival.
gem, da memória, da estética e da busca sempre renovada de novos olhares.
‘Fotografias para Imaginar’, uma série de imagens nas quais a presença humana não é
literatura
segundo SEMESTRE
2015
Por Breno Serafini,
54
escritor, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é autor de Mosaico Laico (CBJE, 2010, poemas), Geração pixel (2011, Edições do autor, poemas), Millôres dias virão (Libretos, 2013, sobre Millôr Fernandes), Picassos falsos (2014, Buqui, crônicas) e Bichos de todos os reinos (2015, Edições do autor, poemas, infantil).
Hai-kai, a ponta do iceberg milloriano O cético sábio/ sorri/ só com um lábio.
veio a assumir o novo nome já na adolescência,
rico Chateaubriand), por motivo de cancelamento
Millôr Fernandes
graças à descoberta do registro impreciso do escri-
da publicidade, com a seção Poste-Escrito, sob o
vão na sua certidão de nascimento, que, ao grafar
pseudônimo Vão Gôgo. O sucesso dessa emprei-
Tal qual objeto multifacetado, que requer perí-
o traço do ‘t’ do nome Milton, deixou-o acima da
tada fez com que se tornasse seção fixa e, mais
cia em sua apreensão, a leitura da obra de Millôr
letra ‘o’, o que foi acrescido de uma incompletude
tarde (em 1945), com o mesmo pseudônimo, estre-
Fernandes a partir dos hai-kais pode ser apenas a
da letra “n”, sugerindo um ‘r’. Isso talvez explique
asse em O Cruzeiro a seção O Pif-Paf, ilustrada por
ponta de um iceberg a dilacerar certezas titânicas
a verdadeira obsessão pela reescritura do nome,
Péricles. Dezenove anos depois (em 1964), já con-
de um desavisado leitor. Multiartista, que construiu
uma constante na obra do multiartista, que pode
sagrado em sua atuação multimídia, que incluía o
uma ponte entre palavra e ilustração, ciente de que
ser exemplificada pelo livro Um nome a zelar (FER-
jornalismo, a tradução, o roteiro cinematográfico,
uma não esgotava a outra, ou, mais do que isso,
NANDES, 2008).
a ilustração, o texto dramático, a poesia, o humor,
podiam ser, ora complementares, ora autônomas,
o hai-kai etc., lançou uma revista quinzenal com
Millôr apropria-se de todas as formas para, a partir
o mesmo nome (Pif-Paf), considerada o início da
delas, dilapidar a sua estrutura, libertando-as de
imprensa alternativa no Brasil.
seus grilhões rígidos para detonar certezas e abrir
Já em 1969, foi um dos fundadores do cole-
novas vertentes. Clássico desse questionamen-
tivo ícone ipanemense O Pasquim, que teve uma
to é sua afirmação acerca do ditado chinês “uma
vida longa (e tumultuada) no seu papel preponde-
imagem vale por mil palavras”, em que questiona:
rante de resistência à ditadura, em nome da liber-
“tente dizer isso com uma ilustração”.
dade de expressão. Tudo sempre pela via da inte-
Seguindo a linha do humor como constante
A esse respeito, aliás, ele mesmo reconhece
ligência, do humor e do sarcasmo, num carioquês
questionamento dos micro e macropoderosos de
a anterioridade do traço gráfico à escrita em sua
de vários sotaques que repercutia por todo o Brasil,
plantão, utiliza-se do tríptico de versos oriental
obra, sendo que, particularmente nesse caso, há
naqueles tempos sombrios.
para buscar o outro lado das coisas, uma constante
uma fusão das duas coisas, já que a letra passa
Outro aspecto relativo a sua infância pare-
em sua obra – disposição anárquica de fragmentos,
por um processo de elaboração plástica que sugere
ce também ter tido influência marcante na sua
arestas cortantes que guardam beleza justamente
uma não hierarquização entre grafia e ilustração,
produção artística: com as perdas do pai, aos três
por suas muitas pontas, a provocar e a riscar fundo
no fundo configurando a mesma coisa. Além dis-
anos, e da mãe, aos 12, em sua orfandade, cedo
em cada um de nós a certeza de que tudo é provi-
so, em alguns momentos de sua obra aparece a
assumiu a posição filosófica da “paz da descrença”,
sório, inclusive nós mesmos. Exemplo disso, vindo
proeminência do traço artístico, de que são exem-
o que lhe permitiu uma reflexão da realidade es-
de um ateu convicto, é o questionamento: “Olho,
plos: a premiação na Exposição Internacional do
corada no ceticismo. Essa precoce condição “sem
alarmado/ e se a vida for/ do outro lado”.
Museu da Caricatura de Buenos Aires, juntamente
pai nem mãe” acabou repercutindo em sua obra,
E nada menos do que alguns aspectos da
com o romeno/norte-americano Saul Steinberg
através de um humor operado por um relativismo
obra (e vida) de Milton Viola Fernandes, vulgo Mil-
(em 1955); um cartaz da Anistia Internacional (em
absoluto, centrado no dialogismo. A esse respeito,
lôr, para exemplificar isso. Já a transformação de
1980); e as muitas e variadas ilustrações em que
com a ajuda de Slavutzky e Kupermann (2005), po-
um em outro foi um longo processo, que incluiu
a paisagem é o Rio de Janeiro, Ipanema ao fundo.
demos buscar em Freud, de Totem e tabu, a expli-
o anagrama Notlim e chegou ao mil vezes Millôr
Noutros, há a proeminência da escrita, também
cação para tal característica. Segundo Kupermann,
atual. Nascido no Rio de Janeiro, em 16 de agosto
ela artística, que começou com um chamado – já
se o humorista consegue identificar-se “[...] até
de 1923 – e tendo como data oficial de nascimen-
aos 16 anos – para preencher o espaço de quatro
certo ponto com o pai, é apenas na medida em que
to o dia 27 de maio de 1924 –, o Guru do Meyer
páginas da revista A Cigarra (a convite de Frede-
pode reconhecer sua orfandade, ou seja, a falência
literatura
segundo SEMESTRE
2015
55
Referências BIBLIOGRÁFICAS Fernandes, Millôr. Um nome a zelar. Rio de Janeiro, Desiderata, 2008. Fernandes, Millôr. In: Milton, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. Fernandes, Millôr. Hai-kais. Porto Alegre, L&PM, 2014. Fernandes, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre, L&PM, 2013. Fernandes, Millôr. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/millor/>. Acesso em 02 dez. 2015. Slavutzky, A.; Kupermann, D. Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.
da pretensão de possuir qualquer garantia trans-
vivemos, “não me sigam, eu também estou perdido”.
lamento inglês, em 1644. Nela, expõe o indispen-
cendente (idealizada) de onisciência e onipotência,
Nesse processo, anterior e posterior a O Pasquim,
sável Decálogo Milloriano:
atributos do pai da horda há muito ausente” (p.
que incluiu marcas como a polissêmica “livre-
1 Só existe um modo de ser livre:
34). Ou, dito de outra forma e transposto para as
-pensar é só pensar”, o bordão “arte é intriga” e
palavras de Millôr, “(...) tudo pode me acontecer, a
a ideologicamente palindrômica “a mala nada na
mim que já perdi o que tinha para perder e que
lama” (tanto faz ler da direita para a esquerda
aprendi a rir com a vida” (p. 35).
quanto da esquerda para a direita), Millôr marcou
ser o opressor. 2 O escravo quase sempre é colaborador de sua escravidão. 3 A Constituição, que institui que todo homem
Biografismos à parte, a expressão “o humoris-
presença em grandes publicações, todas com re-
tem direito à liberdade, não conhece o
ta nunca atira para matar”, citada na abertura de
percussão nacional, como as revistas O Cruzeiro,
homem-padrão. Ele tem que ser obrigado
A bíblia do caos (2002), seu livro de pensamentos
Veja, Istoé e diversos jornais, como O Globo, Jornal
à liberdade.
e frases, é considerada por ele mesmo referência
do Brasil etc. Atualmente, para acompanharmos a
4 A liberdade absoluta só existe em momentos-
de humor. Mas que estranho tom é esse de quem
sua obra, podemos acessar a sua página na inter-
limite, quando não se tem mais nada a perder.
é considerado um dos maiores humoristas brasi-
net: www2.uol.com.br/millor/. Lá vamos encontrar
leiros? Diferentemente do riso fácil, da chalaça,
uma voz extremamente pessoal e subjetiva, distan-
alcançada em detrimento de algum outro (ou
podemos constatar um certo distanciamento nar-
te de qualquer dita imparcialidade que o veículo
de muitos outros) ego. Portanto a liberdade
rativo operado por Millôr, que consegue, através
venha se atestar – nesse sentido, Millôr sempre fez
mesmo utópica só poderá ser a média da
do humor e da ironia, testemunhar o seu tempo
o possível e o impossível para fazer respeitar o seu
satisfação de todos os egos.
resguardado pela (auto) crítica mordaz. Para isso,
nome, o de seus leitores e seus (poucos) cabelos
Uma insatisfação. Uma mediocridade.
em muito a realidade o ajudou: para entendermos
brancos. Sabia que entre a graça e a desgraça há
6 Deve-se exigir toda liberdade dos que
o Brasil nesse longo (e inacabado) processo da
um limiar mínimo, que entre o trágico e o cômico,
estão acima. E ser leniente na exigência de
ditadura à democracia – não só política, mas
tudo pode ser uma questão de ponto de vista.
contrapartida dos que estão abaixo. Mas o
5 A satisfação de nosso ego (liberdade) só é
contrário é mais factível.
econômica –, encontramos, no conjunto de sua
Então, nesses casos, talvez o melhor caminho
obra, uma desconstrução proposital do discurso
seja mesmo o do ceticismo, ou melhor, saber que
sério, a instauração de um espaço carnavalizado
às vezes o cômico pode ser uma defesa contra o
o tempo todo. O encarcerado pode fugir
que é o espelho, nem sempre deformado, daquele
trágico. No fundo, ele percebe que “o homem [em
a qualquer descuido. Donde o prisioneiro
captado na realidade. Assim, escudado pela crítica
seus 15 minutos de fama] é um ator que gagueja
ser (filosoficamente) mais livre do que o
do riso, expõe a ambivalência não só da cultura
na sua única fala, desaparece e nunca mais é ouvi-
brasileira, mas do próprio homem universal, atra-
do”, na clássica frase de Shakespeare, em Macbeth.
vés de uma análise de riso reduzido, onde não há
Conforme lida, podemos considerá-la trágica ou
a absolutização de nenhum ponto de vista, de ne-
cômica – eis o fundamento do espírito humano,
nhum polo da vida e da ideia. Segundo ele, “humor
seja o leitor cético ou ascético.
é você pensar de novo sobre cada coisa o tempo
Apontado por muitos como um dos maio-
todo. É você desconfiar de qualquer ideia que te-
res pensadores brasileiros e um dos de maior in-
nha mais de seis meses de vigência.”.
serção na vida nacional, Millôr Fernandes filia-se
7 O carcereiro não pode vigiar o prisioneiro
carcereiro. 8 As prisões mais sujas, todos sabem, são as mais livres. 9 Ninguém pode nos dar liberdade. Mas qualquer um pode tirar, a começar pelos pais, trazendo-nos ao mundo em condições inadequadas. 10 Com liberdade total o mais forte domina o
Além disso, nesse caso, radicalmente, o que é
a uma tradição da literatura brasileira que des-
mais fraco em nome de sua liberdade, o mais
conteúdo é forma: mais do que nenhum escritor/
preza o oficial. Frasista que perde o amigo, mas
inteligente espezinha o mais ignorante em
cronista brasileiro de seu tempo, Millôr instaurou
não a ética, sabe que a liberdade individual se
nome de sua inteligência, o mais belo seduz
a primazia absoluta da fragmentação em seu dis-
sobrepõe a qualquer ideologia ou governo e faz
mais em detrimento do fisicamente destituído.
curso, compondo uma linguagem mosaica que
do humor “a quintessência da seriedade”, cons-
Franklin, ao fazer o lema da Revolução
pressupõe um leitor disposto a se embrenhar no
truindo com ele uma crítica visceral ao homem
Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
caleidoscópio da sua narrativa, já que, nas amarras
de nosso tempo.
usou o elemento conciliador e humanístico Fraternidade para sugerir um equilíbrio
dessa escritura estilhaçada, não há indicação de fio
Nesse sentido, vale recuperar o que escre-
a ser puxado para desfazer a verdadeira colcha de
veu na orelha de uma edição brasileira do livro
impossível no paradoxo Liberdade x Igualdade
retalhos (patchwork) discursiva. Parece querer-nos
Areopagítica, de John Milton, verdadeiro libelo
(FERNANDES in MILTON, 1999, orelha).
dizer, também ele, diante da crise de ideologias que
pela liberdade de imprensa, apresentado ao Par-
literatura
segundo SEMESTRE
2015
Por Jéferson Assumção,
56
escritor, autor de mais de 20 livros, entre eles Cabeça de mulher olhando a neve (BesouroBox, 2015), A vaca azul é ninja em Uma vida entre aspas (Libretos, 2014) e Máquina de destruir leitores (Sulina, 2000). Pós-doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Filosofia pela Universidade de León, Espanha.
PAULO LEMINSKI Elogio ao zen inquieto Ele era faixa preta de judô e escrevia poesia. O pai
e morreu jovem, aos 45 anos, de cirrose hepática,
gio. Se presentifica na vivacidade do escrito, cheio
descendia de poloneses e a mãe era uma negra
promovida pelo alcoolismo. Era a mesma idade de
de vida a nos puxar para dentro não de um mundo,
brasileira. Compôs versos em latim, mas foi um
outro samurai-escritor japonês a quem Leminski
mas do próprio mundo. A simplicidade da poesia
poeta vanguardista, filho de pai militar. Mesmo
admirava e que cometeu suicídio num ritual de
mostra o afã de claridade e desvelamento, porque
brasileiro e descendente de polacos, considerava-
harakiri aos 45 anos: Yukio Mishima (1925-1970).
no fundo está impregnada da fé no mistério que
-se nipônico de coração. Falava francês, inglês,
Com Matsuo Bashô, que nascera exatos 300 anos
faz tudo aparecer e ser. Incluindo o luminoso, a
japonês e era grande conhecedor de latim e gre-
antes de Leminski, e com o grande autor de Con-
palavra concreta, com casca, com som, com a cara
go. Dedicou-se ao haikai e às letras de rock, aos
fissões de uma máscara, Leminski partilhava o
que a gente vê na rua.
trocadilhos e à crítica literária. Por essas e muitas
projeto zen de transformar a vida em arte. E assim
Ele não era Cruz e Souza ou Bashô, não era
outras, o curitibano Paulo Leminski (1944-1989) é
o fez. Ensinou, com seu ecletismo, um amor por
Jesus nem Trotski, mas um caprichoso relaxado
o poeta tão vivo que é nos dias de hoje. Em nossos
viver tudo, todos, o todo, a centenas de milhares de
que ajudou a modernizar a poesia brasileira pela
tempos de dissolução tecnológica das fronteiras
leitores, nunca inertes ante tanta e transbordante
marginal, combatendo a careta formalidade da
geográficas, históricas, culturais, linguísticas, for-
vida, a dele e a de que seus poemas foram veículo.
academia e abrindo registros de descolonizações.
mais, Leminski é cada vez mais lido e amado. E isso
Redefiniu mapas afetivos, que iam do Japão do
por uma obra que pareceu ser feita para a era da
lago Biva, na Otsu, de Bashô, à Ilha de Santa Cata-
infinita reprodutibilidade técnica digital e da diver-
rina, negra, simbolista e pulsantemente erótica da
sidade cultural em rede.
poética de Cruz. Este Cruz amado por Paulo, como
Ex-seminarista, curtia o zen e o contempo-
um Jesus do Desterro, carregando seu sinal e o ins-
râneo e buscava pela forma uma informalidade
trumento de seu suplício: poeta assinalado.
e pela técnica, a simplicidade. Não por acaso, es-
Já Paulo, poeta pop, ex-estranho, íntimo em
creveu sobre a vida de Cruz e Souza (1861-1898),
seu exílio geográfico-metafísico, de pequenos
Jesus Cristo (1-33 d.C.), León Trotski (1879-1940)
e negros olhos arregalados dentro do freme dos
e Matsuo Bashô (1644-1694). Para ele, essas eram
óculos, abertos como máquinas de ver apontadas
quatro manifestações radicais da forma-vida, com
para tudo. Tudo mesmo, do corpo ao dentro dos
as quais sentia uma profunda identificação e a res-
Zen, quase monge beneditino, Leminski foi
órgãos dos sentidos, às palavras como elas andam
sonância de suas obras e biografias em seu íntimo
um homem do século 21, avançado no tempo, ca-
em casa, como elas se mostram na janela, como
inquieto. O primeiro, o poeta simbolista negro de
paz de antecipar em vida e versos a informalidade
elas tomam banho e fazem suas necessidades.
Santa Catarina. O segundo, um profeta-santo rei
da cultura contemporânea, a hipermoderna, a lí-
Marginal, diziam. Preferível autêntico e antipar-
dos judeus. Os dois últimos, o revolucionário russo
quida vida contemporânea. Os anos 1970 e 1980
nasiano, poeta de símbolos claros, diretos, sem
e o poeta zen-budista japonês, que trocou a vida
não se tratavam de uma época de tanta conexão
sombras, som do pulo do sapo na água de alguma
samurai pelo caminhar e fazer sua poesia. Não ti-
tecnológica como a atual, mas a inquietude movia
província como Nara ou Shiga, no silêncio de um
nha nada a ver com cada um deles em particular,
o olhar, a mão, a boca desejosos para o outro lado
mato do Japão feudal.
mas os amou e promoveu a vida toda.
do mundo e da rua. Essa vontade transbordante
Esse nosso John Lennon, o de Curitiba, nipô-
Morou em uma comunidade hippie nos
realizava a presencialidade do outro como resulta-
nico como o próprio, pop como o outro, amado
anos de 1970, mas era publicitário. Amou a vida
do da magia do arrebatamento, do amor e do elo-
igualmente pela cara que tinha, tão cheia de es-
literatura
segundo SEMESTRE
2015
57
pírito e frontalidade, urgente em sua vida também
lancolia que é ao mesmo tempo condição para a
polilingue paroquiano cósmico!, para o concretis-
curta de só 40 anos, pelo gesto que propunha,
poesia (e para a filosofia): seja ela o blues que vai
ta. Era em si um oxímoro, uma contradição em
pela roupa e os bigodes que envergava, os cabelos
dentro do rock, o baço amargo do romantismo, o
termos ao mesmo tempo que a dubiedade irônica
desgrenhados de hippie, com o poder da flor ins-
banzo de Cruz, a Sabishisa do caminhante Bashô
de um dioscuro. Foi chamado de punk parnasia-
talada no cabelo quase que contrastando com os
e seus haikais a buscar a simplicidade complexa
no, dadaísta clássico, a aliança da concentração
bigodões – se é que há alguma diferença entre os
da lágrima do peixe, da lua na neve. Leminski teve
com a descontração, conforme José Miguel Vis-
bigodes dos polacos e as flores.
a acuidade necessária para enxergar a poesia dis-
nik, para quem Leminski era uma espécie de lugar
so e daquilo, e por isso é o poeta, o prosador, o
entre o erudito e o desbundado.
Tudo isso para complexificar, simplificando, retirando as máscaras ao colocá-las, ao assumi-
homem do elogio.
Assim mesmo, se percebe a cada tentati-
-las enquanto um Yukio Mishima sem a loucu-
Caetano também gosta de enaltecer e o ga-
va de uma definição de Leminski uma espécie
ra ultradireitista do japonês halterofilista, faixa
bou algumas vezes. Numa delas, disse que ele tem
de língua bífida, antagônica, contrastante, a ter
preta em Kendô, espécie de São Sebastião tres-
uma mistura de concretismo com beatnik, que
que fazer uma coisa outra que não os elementos
passado pela própria espada. Samurai, também,
seus poemas eram concisos, rápidos e inspirados,
de que dispõe. É que falar de Leminski instaura
Mishima, como Paulo e John e Bashô e Cruz, e
“um barato muito único na curtição da literatura
uma espécie de fala, pois afim de captar a poesia
por que não Jesus. Viu a vida em close, venceu
no Brasil”. A professora Leyla Perrone-Moysés o
do que se equilibra em opostos e gera um outro
com a distração do perplexo ante o que não
chamou de Samurai-malandro, que bastava olhar
sempre arejador e adâmico, mesmo que em sua
conhecia, mas amava e assim se filiou à mais
nos olhos dos poemas de Leminski para ver que o
impossibilidade de ser qualquer coisa pela primei-
brasileira tradição dos antropófagos, dos tropi-
poeta estava dentro deles, que o que não interes-
ra vez. A poesia de Leminski, uma espécie de lisa
calistas, mesmo que desde a gelada Curitiba, da
sava não ia junto para dentro da poesia. Era uma
prosa, concisa e prometeica. A prosa, poética e
terra dos muitos pinhões, centro de uma das li-
forma de escrever só como essencial. Haveria um
catártica, entranha do antropófago, barriga cheia
teraturas mais diversas e interessantes do Brasil.
“olho do furacão imóvel”, enquanto o poeta ad-
de ideias, formas, cores e carnes. Ele escancara a
Leminski, assim como Trotski, sabia pôr os pin-
ministra o que escreve jogando com isso e para
erudição provinciana dos nossos, aplaude Visnik,
gos nos “is” também no que se referia ao mundo
dentro dele. “Do rio de palavras, Leminski se ri, e à
mas não pelo flanco, e sim por dentro. Chamou
da exploração à brasileira, dos negros pobres e
verborragia desatada ele pede, exigente, um mo-
a prosa da torrente do Catatau de “enxame de
indigentes, dos polacos e imigrantes que ele te-
mento de silêncio. Para bom entende-dor, meia
consciência”, em que o pai do racionalismo, René
matizou e pincelou com o riso melopeico que
palavra raspa; e para bom gozador, uma pisca-
Descartes se viu nos trópicos como que o próprio
tanto também fez rir e ver.
da basta. Leminski já foi e já voltou, e quem não
ocidente dentro do olho do furacão vital-natural-
Assim como os delicados, Leminski era
percebe a inteireza de suas meias-palavras ainda
-mítico de uma realidade plena de razões sempre
um homem que sabia elogiar, praticamente só
nem saiu de casa”, disse em comentário publica-
além das que se conhece. Vejamos, em alguns de
o tipo de pessoa capaz de chegar ao outro, de
do em Toda a poesia, de 2013.
seus poemas, um pouco do que se fala:
estar aberto para a beleza da alma e da carne do
Este samurai malandro, segundo a comen-
outro, tanto dos referidos e preferidos Cruz e os
tadora, ganha a partida seja com a lâmina da
Dor elegante
santos de sua mitologia pessoal, mas também
malandragem ou um jogo de cintura que, em
Um homem com uma dor
Gilberto Gil, o “mimo de todos os orixás”, o Tor-
sua velocidade, nos surpreende, golpe e ginga
É muito mais elegante
quato e o Trotski, a Alice, Moraes, Caetano, Bor-
tão simples que soam a um desaforo. É o que
Caminha assim de lado
ges, Bandeira, Pound, Oswald, Haroldo, Poe, Bob
preconiza Leila. De tal forma este efeito de sim-
Como se chegando atrasado
Marley, Lennon. Um homem que sabe elogiar é
plicidade na poesia de Leminski se dá que, diz
Chegasse mais adiante
um homem com uma flor no cabelo, um homem
Leila, qualquer “metagesticulçaão crítica ficaria
Carrega o peso da dor
que come tudo ao redor, Abaporu polaco, Aba-
ridícula, contraposta ao gesto exato do poeta”.
Como se portasse medalhas
poru negro de bigodes, como Cruz, nome que ele
A crítica literária lhe faz também fez o encômio
Uma coroa, um milhão de dólares
preferia em relação ao completo, o nome Souza
de o chamar de beatnik caboclo com filosofia de
Ou coisa que os valha
do dono branco.
malandro zen.
Ópios, édens, analgésicos
Quando escreveu sobre Cruz e Sousa, em
Haroldo de Campos resolveu apelidá-lo de
Não me toquem nessa dor
Blues & Souza, explicitou-se nos sentimentos da
um “Rimbaud curitibano com físico de judoca”.
Ela é tudo o que me sobra
Sabishisa, do Spleen, do Banzo e do Blues. A me-
Outros elogios atravessados: Caipira cabotino,
Sofrer vai ser a minha última obra
literatura
segundo SEMESTRE
2015
58
Poesia:
a voz, além, nem palavra.
ainda em 1968, com quem teve Áurea e Estrela,
“words set to music” (Dante via Pound),
O dialeto que se usa
além de Miguel Ângelo, que morreu com 10 anos.
“uma viagem ao desconhecido”
à margem esquerda da frase,
(Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra
eis a fala que me lusa,
non (Um atrapalho no trabalho), John Fante (Per-
Pound), “a fala do infalável” (Goethe),
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
gunte ao pó), Yukio Mishima (Sol e aço), Petronio
“linguagem voltada para a sua própria
Leminski era também tradutor de John Len-
(Satyricon), Samuel Beckett (Malone morre), James
materialidade” (Jakobson), “permanente
m, de memória.
hesitação entre som e sentido” (Paul
Os livros sabem de cor milhares de
Valery), “fundação do ser mediante a
poemas.
dura, gravada em 1981, tornou o escritor-poeta
palavra” (Heidegger), “a religião original
Que memória!
curitibano conhecido em todo o País. Paulinho
da humanidade” (Novalis), “as melhores
Lembrar, assim, vale a pena.
Boca de Cantor gravou-o também (Valeu, 1981) e
palavras na melhor ordem” (Coleridge),
Vale a pena o desperdício, Ulisses
Ney Matogrosso (Promessas demais, com Moraes
“emoção relembrada na tranquilidade”
voltou de Tróia,
Moreira e Zeca Baleiro, 1982), Moraes Moreira (De-
(Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred
assim como Dante disse, o céu não
sejos manifestos, com Moraes Moreira e Zeca Ba-
de Vigny), “se faz com palavras, não
vale uma história.
leiro, 1986), Arnaldo Antunes (Luzes, 1994), Itamar
com ideias” (Mallarmé), “música que se
Um dia, o diabo veio seduzir um
Assumpção (Dor elegante, 1998) e outros. A partir
faz com ideias” (Ricardo Reis/Fernan-
doutor Fausto.
da década de 1970, publicou poemas em diversas
do Pessoa), “um fingimento deveras”
Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa,
revistas. Paralelamente, o trabalho, belíssimo, em
(Fernando Pessoa), “criticism of life”
era falso.
prosa. Foi em 1975 que saiu Catatau, livro em
(Mathew Arnold), “palavra-coisa” (Sar-
Mallarmé era tão pálido, mais parecia
“prosa experimental”. A dor elegante da cirrose o
tre), “linguagem em estado de pureza
uma página.
matou no dia 7 de junho de 1989.
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
Rimbaud se mandou pra África, Hemin-
inspire” (Bob Dylan), “design de lingua-
gway de miragens.
gem” (Décio Pignatari), “lo impossible
Os livros sabem de tudo.
hecho possible” (Garcia Lorca), “aquilo
Já sabem deste dilema.
que se perde na tradução (Robert Frost),
Só não sabem que, no fundo,
“a liberdade da minha linguagem”
ler não passa de uma lenda.
(Paulo Leminski)…
Não discuto não discuto com o destino o que pintar eu assino
Paulo Leminski, além do poeta Homem-antena poundiano, liquidificador subtro-
Invernáculo
pical de frutos do pensamento artístico de todo
Esta língua não é minha,
o mundo, estava vivo o tempo todo, a ponto de
qualquer um percebe.
quase explodir. Os concretistas o acolheram, mas
Quem sabe maldigo mentiras,
ele andava de lado, com uma forma inquieta e
vai ver que só minto verdades.
desajustada de estar no mundo, como se num
Assim me falo, eu, mínima,
exílio. Em 1964, foram publicados seus primeiros
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
poemas, na revista dos paulistanistas da poesia
Esta não é minha língua.
concreta: Invenção, que tinha Décio Pignatari no
A língua que eu falo trava
comando. Deu aulas de História e de Redação a
uma canção longínqua,
partir de então. Casou-se com a poeta Alice Ruiz
Joyce (Giacomo Joyce), entre outros. Compôs diversas músicas. Uma delas, Ver-
Obra poética: Quarenta clics em Curitiba (com o fotógrafo Jack Pires), 1976 Polonaises, 1980 Não fosse isso e era menos/não fosse tanto e era quase, 1980 Tripas, 1980 Caprichos e relaxos, 1983 Hai Tropikais (com Alice Ruiz), 1985 Um milhão de coisas, 1985 Caprichos e relaxos, 1987 Distraídos venceremos, 1987 La vie en close, 1991 Winterverno (com desenhos de João Virmond), 1994 O ex-estranho, 1996 Toda poesia, 2013 Infanto-juvenil: Guerra dentro da gente, 1986 A lua foi ao cinema, 1989 Prosa: Catatau, 1975 Agora é que são elas, 1984 Descartes com lentes (conto), 1995 Biografias e ensaios: Matsuó Bashô,1983 Jesus, 1984 Cruz e Souza, 1985 Trotski: a paixão segundo a revolução, 1986 Poe, Edgar Allan. O corvo, 1986 Anseios crípticos (anseios teóricos): peripécias de um investigador dos sentidos no torvelinho das formas e das idéias, 1986 Poesia: a paixão da linguagem, 1987 Vida (biografias: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski), 1990. Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego, 1994 Ensaios e anseios crípticos, 1997
literatura
segundo SEMESTRE
2015
Por Cristiano Baldi,
59
escritor e doutorando em Escrita Criativa pela pontifícia universidade católica do rio grande do sul (PUCRS)
A HISTÓRIA SECRETA Luke Skywalker, um dos protagonistas de Guerra nas estrelas, leva uma vida pacata no planeta Tatooine. Ele passa a maior parte do tempo ajudando o seu tio Owen com o trabalho na fazenda da família. Certo dia, Luke recebe uma misteriosa mensagem holográfica em que uma jovem mulher clama por ajuda. Para Luke, a mensagem é uma novidade que chega para interromper sua rotina cansativa e sem graça. Ele sente que deve fazer algo a respeito, mas, quando finalmente é chamado a tomar parte na aventura e enfrentar o Império Galático, ele declina. Justifica sua atitude com a desculpa de que não pode abandonar seus tios, que precisa ficar com eles em Tatoonie. Corta para Neo, o herói da trilogia Matrix. Durante o dia, Neo é um funcionário de uma grande empresa de software. É um trabalho entediante, repetitivo, ao qual ele não consegue se dedicar como deveria. Ele chega atrasado com frequência e mantém uma relação conturbada com o chefe. À noite, Neo é um hacker. Passa as madrugadas no computador pesquisando a vida de outros hackers famosos. Em uma determinada manhã, ele está trabalhando em sua mesa e a polícia aparece no escritório. Assim que os policiais descem no andar em que ele trabalha, Neo recebe um telefonema. A voz do outro lado dá orientações do que ele deve fazer para fugir dos agentes. Neo, entretanto, tem medo de andar no parapeito em torno do prédio, a dezenas de metros de altura, acaba capturado e é levado para interrogatório. Ninguém diria que os dois personagens são iguais. Luke vive numa galáxia muito distante e Neo é um hacker com um emprego entediante. Mas nesse momento de suas trajetórias os dois se comportam de forma muito parecida. Depois de serem provocados a abandonar suas rotinas – rotinas que não são emocionantes nem especialmente agradáveis –, eles relutam em encarar o desconhecido. Ainda que por motivos diferentes, Luke e Neo não encontram força, vontade ou coragem para assumir os desafios que aparecem de repente. Mas não são apenas Luke e Neo que se comportam deste jeito. A literatura, o teatro e o cine-
ma – e também a mitologia e a religião – estão abarrotados de personagens que, em um primeiro instante, recusam a grande aventura de suas vidas. Por medo, por receio, por apego à rotina, por desinteresse: não importa. A questão é que, nesse momento da história, personagens que à primeira vista são muito diferentes começam a ficar parecidos. Todos eles estão cumprindo uma das etapas de uma história secreta, uma história que está escondida por trás de inúmeras histórias que a humanidade conta desde a antiguidade, uma espécie de esquema que foi inicialmente identificado pelo estudioso americano Joseph Campbell, na metade do século 20. Segundo Campbell, essa história secreta faz com que muitas narrativas sejam, de algum modo, iguais umas às outras, ainda que o público e mesmo seus autores não se deem conta disso. Ainda criança, Campbell mostrou grande interesse pela mitologia. Na faculdade, estudou literatura de língua inglesa e literatura medieval. Depois de acabar o mestrado, ele se mudou para a Europa, onde pesquisou mais a fundo a filosofia oriental. Já de volta aos Estados Unidos, para completar seu doutorado, Campbell se desentendeu com os professores, desistiu do curso e acabou se tornando um pesquisador independente. Ele se sentiu especialmente seduzido pelos estudos do psiquiatra e psicoterapeuta Carl Jung a respeito dos arquétipos. Em um trabalho de 1912, Jung usou o termo arquétipo pela primeira vez, para designar símbolos que habitavam o inconsciente de todas as pessoas, independentemente do lugar de onde vinham ou da época em que viveram. Em outras palavras, Jung achava que existem imagens e narrativas que estão escondidas na mente de todos os seres-humanos, desde o nascimento. Essas imagens e narrativas povoam a nossa imaginação, a imaginação do aborígene australiano, a imaginação dos homens que viviam nas cavernas e também a das pessoas que nascerão daqui a milhares de anos. Sob a influência da psicologia jungiana, Campbell começou a prestar atenção nas histó-
rias e notou que algumas etapas das narrativas mitológicas, religiosas e artísticas se repetiam com alguma insistência. Eventos muito parecidos aconteciam em histórias muito distantes no tempo e no espaço. O Novo e o Antigo Testamento, as tragédias gregas, os mitos indígenas, os romances modernos: todos eles pareciam obedecer a um mesmo princípio fundamental. Campbell chamou esse padrão de monomito, ou jornada do herói, e escreveu um livro sobre assunto – uma obra que o transformou em um homem famoso – chamado o Herói de mil faces. Mas por que as pessoas contam essa mesma história desde a antiguidade? E, pior, por que as pessoas continuam indo ao cinema, comprando livros, assistindo a peças de teatro que repetem uma mesma estrutura? Uma explicação é que as etapas propostas por Campbell são bastante próximas dos desafios ou das situações que nós experimentamos em nossas próprias vidas. Ainda que não percebamos, gostamos de nos ver representados nas histórias, de ver o personagem enfrentando emoções e dilemas parecidos com os nossos. Sentimos que há verdade na história e que ela fala direto aos nossos sentimentos e emoções mais profundos. Em seu livro, Campbell identificou 17 etapas do monomito, pelas quais uma história passa desde o momento que começa até o seu final. A recorrência dessas etapas, que não precisam estar todas presentes e nem têm de cumprir uma ordem rígida, é o que aproxima as narrativas umas das outras. É que aproxima Buda de Alice no país das maravilhas; é o que aproxima o clássico literário moderno Lolita, de Vladimir Nabokov, da franquia hollywoodiana Jogos vorazes; é o que faz com que Jesus Cristo, no Novo Testamento, seja, em alguma medida, parecido com Simba, do Rei Leão. E entre essas etapas está aquela que Joseph Campbell chamou de recusa do chamado. Ela acontece quando o protagonista do filme, do livro ou da história mitológica, depois de ser convocado a encarar um desafio e a deixar de lado sua antiga rotina, recusa ou questiona essa convocação. Isso
literatura
segundo SEMESTRE
2015
60
é precisamente o que fazem Luke Skywalker e Neo. Quando defrontados com uma força externa que os chama para uma aventura, eles acham justificativas para ignorar esse chamado. A recusa do chamado é um bom exemplo de como os personagens, ao viver a jornada do herói, fazem com que nos identifiquemos com eles. Ao ver esse receio e essa vacilação, enxergamos que há algo de humano naquele personagem, algo de verdadeiro, e então nos aproximamos emocionalmente dele. Imagine a sua própria vida. É bastante provável que você já tenha sido chamado para uma nova aventura, que tenha encarado a situação com algum nervosismo e alguma relutância, e que tenha considerado seriamente não aceitar o desafio. Pode ser um novo emprego, uma mudança de cidade, a escolha de um curso superior, um pedido de casamento ou a decisão de ter filhos: todas essas situações representam aventuras e, em boa parte das vezes, não se pode encará-las sem alguma dúvida e ansiedade. Assim como acontece com você, Luke Skywalker e Neo também têm suas próprias dúvidas e não saem por aí aceitando qualquer desafio que apareça – ao menos não sem refletir a respeito e sofrer algum abalo emocional com a decisão. De alguma forma, os personagens se comportam como nós em momentos de grandes escolhas, ficam nervosos, questionam a própria capacidade. Falta-lhes coragem, em um primeiro momento, para encarar a grande aventura de suas vidas. Assim como a recusa do chamado, as demais etapas do monomito também podem ser associadas à vida das pessoas comuns. Uma dessas etapas, chamada por alguns seguidores de Campbell de encontro com o mentor, acontece quando o protagonista encontra outro personagem que servirá como uma espécie de guia no início da aventura. Muitas vezes, o mentor é o responsável por fazer com que o herói finalmente aceite o desafio que surge a sua frente. No caso do jovem Luke Skywalker, o papel do mentor é desempenhado, ao menos no início do filme, pelo experiente jedi Obi-Wan Kenobi. Para Neo, em Matrix, o mentor é Morpheus, um dos líderes da luta entre os humanos e as máquinas. É ele quem convence Neo a sair da Matrix e conhecer a dura realidade à que a espécie humana está submetida. Para nós,
que não vivemos em um filme, o mentor pode ser um professor, um primo mais velho, um de nossos avós, um amigo, nossos pais, enfim, qualquer pessoa que nos ajude a aceitar os desafios e nos oriente sobre como os vencer. Também no caso do encontro com o mentor podemos encontrar relação entre a vida do herói e a nossa própria vida. O mentor é mais um elo de identificação entre nós e a história que estamos lendo ou assistindo. Mas é sempre assim? Todas as histórias seguem um mapa? É claro que não. O monomito, ou jornada do herói, não existia antes das histórias, como um modelo para elas. Ele existe, isso sim, em virtude das histórias. O que Campbell fez foi identificar um padrão que existia em muitas narrativas e organizar um raciocínio a respeito desse padrão. Muitos filmes e livros não trazem esta estrutura por trás e, ainda assim, somos capazes de gostar deles. Mesmo aquelas histórias que trazem muitos elementos do monomito não precisam trazer todos eles e, frequentemente, uma ou mais etapas ficam de fora. No filme Jogos vorazes, por exemplo, a protagonista Katniss não recusa o chamado. Pelo contrário: ela se oferece para viver a aventura no lugar de sua frágil irmã caçula. Assim se dá também com o mito grego de Perseu. Quando a tarefa de matar a Medusa lhe é delegada, o herói prontamente aceita e parte para cumprir o desafio. É óbvio que a indústria do entretenimento não poderia ignorar uma ferramenta tão promissora e cheia de potencial. Não demorou muito
Versão simplificada do monomito de Campbell
para que escritores e cineastas usassem os estudos de Campbell em seus filmes e livros. George Lucas declarou abertamente que se inspirou no livro de Campbell para criar os primeiros lançamentos da franquia de Guerra nas estrelas. Filmes como O senhor dos anéis, A história sem fim, Tubarão e Clube da luta também trazem muitos elementos do monomito. Mesmo as comédias românticas ou os filmes de arte, como os do diretor japonês Akira Kurosawa, mantêm um diálogo direto com a jornada do herói. Em razão disso, muitos críticos afirmam que o monomito pausteriza as produções literárias e cinematográficas, e cria uma fórmula fácil para o sucesso comercial. Em alguma medida, esta é provavelmente uma afirmação procedente. Basta ver os inúmeros lançamentos de filmes e livros que se apoiam na jornada do herói ou em simplificações baseadas nas proposições originais de Campbell. Por outro lado, muitas dessas obras caem no esquecimento ou acabam se transformando em fracassos de público ou crítica – ou de ambos. E o contrário também é verdadeiro. Narrativas que pouco têm a ver com o monomito acabam seduzindo os espectadores e os críticos. Isto mostra que, apesar de o monomito funcionar como inspiração e como ferramenta auxiliar para os criadores, ele não basta por si só. Há infinitos artifícios narrativos que não foram identificados, que não estão previstos em nenhuma estrutura ou regra, que são criados toda vez que alguém escreve um livro ou um filme. A partir de hoje, comece a prestar atenção nos filmes que você assiste e nos livros que lê. Você vai se deparar muitas vezes com o protagonista recusando o chamado para a aventura e, mais tarde, encontrando o seu mentor. Você vai perceber que, apesar de ter personalidades e características físicas diversas, os personagens são muito mais parecidos do que normalmente imaginamos. Mas, principalmente, comece a prestar atenção em sua própria vida. Você vai se dar conta de que, de algum modo, você é igual aos heróis. Que você também reluta e sente ansiedade no momento em que uma nova aventura surge em sua vida. Que você também tem mentores. E que talvez seja por isto que você gosta dos personagens dos bons filmes e livros. Porque eles são como você.
literatura LEITURA
segundo SEMESTRE
2015
SEGUNDO SEMESTRE
2015
61 61
L OT E S VA G O S O C U PAÇ Õ E S B reno S ilva
E X P E R I M E N TA I S e
L o u ise G an z
Amor sem fim
Short movies Gonçalo M Tavares
LOTES VAGOS – ocupações experimentais
VERMELHO AMARGO
Ian McEwan Cia. das Letras
Dublinense
Breno Silva e Louise Ganz
Cosac Naify
Bartolomeu Campos de Queirós
Ed. Cidades Criativas “Se a observação da variedade humana
Sou apaixonada pelos autores de
Lançado em 2009, o livro apresenta
Ao ler a epígrafe “foi preciso deitar
pode dar prazer, isso também se aplica
língua portuguesa, principalmente
um relato detalhado do projeto
o vermelho sobre papel branco
às semelhanças.” Com esta conclusão
pelos do continente africano, cujo
Lotes Vagos: Ação Coletiva de
para bem aliviar seu amargor”, o
do narrador logo nas primeiras páginas
vocabulário é tão rico e diverso, tão
Ocupação Urbana, desenvolvido
leitor perceberá que não se trata
de Amor sem fim, o inglês Ian McEwan
permeado pela língua dos povos
pelos artistas Breno Silva e Louise
de uma simples leitura.
dá o tom de mais uma história vivida
ancestrais quanto o do português
Ganz em Belo Horizonte e Fortaleza.
Delicada e cortante como “arame
por gente comum. Como é comum
falado no Brasil. O escritor angolano
Nos anos de 2005, 2006 e 2008, em
farpado”, a prosa poética de
na obra do autor, o extraordinário
Gonçalo M Tavares é uma linda
conjunto com grupos de artistas,
Bartolomeu Campos de Queirós é
– fundamental a toda narrativa de
descoberta para quem, como eu, é fã
arquitetos e diversas outras pessoas
dolorosamente bela.
respeito – acontece num dia qualquer.
de outro angolano, o Pepetela. Mas
que se engajaram na proposta,
As fatias cada vez mais finas de
Do título à última página, o livro é uma
Short Movies não é exatamente um
lotes de propriedade privada foram
tomate servidas pela madrasta
provocação. De forma indireta, mas
livro. É preenchido por letras, palavras
transformados em espaços públicos
sugerem uma contagem regressiva
absolutamente firme, McEwan instiga
e frases a cada página, porém, como
temporários. Hortas, oficinas, refeições
para tentar suprir a ausência de
o leitor a um balanço sobre alguns dos
o próprio título indica, é tão próximo
coletivas, spa, sala de estar, salão de
afeto. O narrador observa seus
paradigmas que compõem o padrão
do cinema quanto da literatura. Short
beleza, redário, palco para shows,
irmãos mais velhos irem embora
contemporâneo de felicidade.
Movies são filmes escritos. Cada
casa temporária... as possibilidades de
de casa.
O casal que compõe a trama é formado
“conto” (digamos assim) deve ser lido
ativação foram inúmeras. No livro, os
De inspiração autobiográfica, a
pelo que se espera, socialmente,
como se estivesse sendo visto como
artistas buscam explicitar as questões
história revisita uma infância
de dois perfeitos exemplares da
um filme de curta duração. Os textos
que o trabalho levanta, desde o limite
melancólica e revela, de sobrevoo,
espécie humana: um homem e uma
do escritor me remetem aos filmes de
entre público e privado, até as formas
pequenas fragilidades cotidianas.
mulher, adultos, europeus, urbanos,
artistas: alguns são nonsense beirando
alternativas de organização social em
“Mesmo em maio – com manhãs
politicamente corretos. Tudo vai bem
o surrealismo, outros descrevem uma
micro-escalas e seus desdobramentos
secas e frias– sou tentado a
até que o testemunho de uma tragédia
única cena, uma paisagem, o vento
quanto às relações de convivência no
mentir-me. E minto-me com
invade o cotidiano. Ao leitor, surge uma
na paisagem, um sentimento no
mundo contemporâneo.
demasiada convicção e sabedoria,
experiência tão transformadora quanto
rosto de um personagem. E assim o
sem duvidar das mentiras que
passear num balão descontrolado. Não
livro na mão do leitor/espectador se
invento para mim.”
é de sensações assim que se faz um
transforma em tela de cinema.
bom livro? Leia e confira.
Gustavo Machado
adriana martorano
Aline Bueno
vitor mesquita
Escritor e jornalista
jornalista e gestora cultural da casa das artes villa mimosa
gestora CULTURAL DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL VILA FLORES
artista visual e designer gráfico
primeiro SEMESTRE
2015
62
6º Festival Internacional Sesc de Música Pelotas-RS
De 18 a 29 de janeiro de 2016
Recitais na Bibliotheca Pública Pelotense, Concertos no Theatro Guarany, Largo do Mercado Público, Catedral, Praia do Laranjal e Festival na Comunidade. Confira a programação em: sesc-rs.com.br/festival
Apoio Institucional:
Realização: