Revista Arte Sesc - 2º semestre 2015

Page 1




08

26

10

difusão cultural

artes cênicas

música

08 As ações desenvolvidas pelo programa Arte

10 Circo Social: as ações pedagógicas e de

26 O atual cenário da música de câmara no

Sesc no ano de 2015 contribuíram para a

inclusão com crianças e adolescentes em

formação de cidadãos mais conscientes

comunidades de Porto Alegre e do Rio de Janeiro, pelos olhares de Dilmar Messias, um

Rio Grande do Sul 34 Entrevista com a percussionista Clarissa

dos fundadores do Circo Teatro Girassol, e de

Severo de Borba, integrante do cenário

Junior Perim, do Circo Crescer e Viver

francês de música contemporânea que estará no 6º Festival Internacional Sesc de Música

14 CADERNO DE TEATRO

A pesquisa do dramaturgo e diretor de teatro

37 Projeto que visa à difusão da música

gaúcho Decio Antunes sobre a ocupação

brasileira, o Sesc Partituras disponibiliza um

de espaços com o que chama de teatro

acervo digitalizado com mais de 2 mil obras

coreográfico e detalhes do processo de

de 222 compositores

produção de oito espetáculos, incluindo Um dia assassinaram minha memória, que

40 5º Festival Brasileiro de Música de Rua

integrou o 10º Festival Palco Giratório Sesc

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

DIRETORIA

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL

Luiz Carlos Bohn

Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Canoas  Av. Guilherme Schell, 5340  51 3456.2013 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

www.sesc-rs.com.br

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Cinema

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403 Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


42

50

54

CINEMA

ARTES VISUAIS

literatura

42 A cineasta e professora de cinema

50 3º Rio Pardo em Foto, evento que

54 Mostras literárias em circulação pelos

Flávia Seligman faz uma análise de três

reuniu 40 fotógrafos em sete mostras

municípios do Rio Grande do Sul apresentam

documentários produzidos recentemente no

no Centro Regional de Cultura,

o haikai engajado de Millôr Fernandes e

Rio Grande do Sul: Mamaliga blues, Filme

movimentou a histórica cidade nos

Paulo Leminski

sobre um Bom Fim e Castanha

meses de setembro e outubro, levando os envolvidos a sonhar em atingir

44 Artigo de Marco Aurélio Fialho aborda o fake na produção de Orson Welles, criador do

59 Escritor Cristiano Baldi analisa o herói

as proporções do tradicional

na literatura e no cinema a partir do

festival Paraty em Foco

monomito de Campbell, padrão de narrativa

aclamado Cidadão Kane, que completaria 100

amplamente utilizado como uma espécie de

anos em 2015

fórmula mágica 61 Leitura

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 3º andar  55 3423.5403 Santiago  R. Pinheiro Machado, 2232  55 3251.5528 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Editora

Rua Mariante, 200 Sala 02  51 3013.1330  Porto Alegre/RS

Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Greice Zenker

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

CAPA

shutterstock.com


segundo SEMESTRE

2015

6


segundo SEMESTRE

2015

7

Quase Paisagem – Taim Foto: Cristiano Sant'Anna

Cultura PARA UM MUNDO MELHOR Sedimentar a cultura é, sem dúvida, uma nobre missão. Com o Arte Sesc, o Sistema Fecomércio-RS tem levado a centenas de municípios gaúchos as mais variadas manifestações artísticas. E esta edição da Revista Arte Sesc traz um panorama de tudo o que foi realizado ao longo de 2015 e destaca projetos como o Festival Internacional Sesc de Música. É por meio da música que se sonha, que se pensa num mundo melhor, mais harmônico. O Festival nos orgulha e aponta uma imensa responsabilidade, que é a de novamente tocar o coração das pessoas. Ainda na área musical, artigos sobre o cenário da música de câmara no Rio Grande do Sul e sobre o Banco Sesc de Partituras podem ser conferidos nesta edição. Nas artes cênicas, a publicação apresenta o circo contemporâneo como elo de integração social. Já no Caderno de Teatro, o artigo de Decio Antunes mostra sua pesquisa sobre ocupação de espaços, memória e um trabalho de ocupação com dança e teatro. Literatura, cinema e artes visuais também são pauta da Revista Arte Sesc e das ações que desenvolvemos pelo Estado. Para o Sistema Fecomércio-RS, é um imenso orgulho atuarmos diretamente na descentralização da cultura e na formação de plateias. Afinal, como diria o filósofo Jacob Klatzkin, “uma das principais tarefas da cultura é fazer da necessidade, liberdade”. Que em 2016 consigamos dar continuidade à promoção do bem-estar social dos comerciários e da comunidade em geral, com a intensificação das atividades de cultura, educação, saúde, esporte e lazer. Um ótimo ano a todos e boa leitura!

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


DIFUSÃO CULTURAL

segundo SEMESTRE

2015

8

cultura: diversidade, descentralização e abrangência o Arte Sesc – Cultura por toda parte promove uma programação sistemática que contempla artes cênicas, música, cinema, literatura e artes visuais em todo o Rio Grande do Sul Ao realizar atividades que o consolidam cada

com o público. O projeto Teatro a Mil, desti-

Em formato de circuito, com apresentações

vez mais como uma das principais instituições

nado a estudantes das redes públicas de ensino

únicas ou eventos abertos à comunidade, o

promotoras de cultura no Estado, o Sesc/RS

fortalece a ação de formação de plateia com

Sesc/RS difundiu a pluralidade da música

contribui para o desenvolvimento de pessoas

uma programação de teatro infantil em diversos

brasileira e também internacional nos palcos

mais conscientes para as artes e movimenta

municípios. Ainda nas artes cênicas, o Circui-

próprios e também de instituições parceiras

toda a cadeia cultural, criando oportunidades

to Palco Giratório leva a diversas cidades do

por todo o Rio Grande do Sul no projeto Sesc

para os artistas e demais envolvidos. No ano de

interior espetáculos que traçam um panorama

Música. Outros projetos já consolidados que

2015, de 1º de janeiro a 30 de novembro, foram

da produção nacional. Os espetáculos que inte-

divulgam a música brasileira são os Concer-

realizados em torno de 2,8 milhões de atendi-

gram o circuito nacional do projeto, produções

tos Banco de Sesc de Partituras, que estimula

mentos nas atividades ligadas às diversas mani-

convidadas, além de grupos locais e regionais,

a formação de grupos de câmara, e o Sonora

festações culturais. Desses atendimentos, quase

fazem um “pouso” no Festival Palco Giratório,

Brasil – formação de ouvintes musicais, que,

200 mil referem-se a atividades formativas, o

que completou 10 anos em maio de 2015.

em 2015, apresentou o tema Violas brasileiras.

que reforça a preocupação da organização com o caráter educativo dos seus programas. Entre as principais ações culturais do Estado, está o projeto Rio Grande no Palco com sua programação consistente e sistemática de teatro adulto, infantil, teatro de rua, teatro de objetos, de bonecos, circo e dança. Ao facilitar o acesso a produções diversificadas, com referencial no meio cultural, a iniciativa promove a troca de experiências entre os grupos e também

ARTES CÊNICAS 592.851 atendimentos em teatro 1.583 espetáculos de teatro 85.061 atendimentos em dança 227 espetáculos de dança


DIFUSÃO CULTURAL

segundo SEMESTRE

2015

9

ATI V IDADES FORMATIVAS

242.268

at e n d i m e nto s

MÚSICA 756.551 atendimentos 1.119 espetáculos A programação do projeto identifica-se como desenvolvimento histórico da música nacional. Realizado em Pelotas no mês de janeiro, o 5º Festival Internacional Sesc de Música, contou com a participação de 300 alunos da América Latina e 40 professores provenientes de 12 países, além do Brasil, consolidando-se como um dos maiores eventos de música instrumental e de concerto da América Latina. Os destaques do programa de artes visuais em 2015 foram as exposições itinerantes Só Lâminas, com obras originais de Nuno Ramos, e

8.250 atendimentos em atividades formativas de cinema 36.616 atendimentos em atividades formativas de música 34.054 atendimentos em atividades formativas de teatro e dança 151.764 atendimentos em atividades formativas de literatura 11.059 atendimentos em atividades formativas de artes plásticas

CINEMA 151.054 atendimentos 1.553 sessões Exibição de filmes em praças e em salas, reali-

para as oficinas do projeto Sesc Mais Leitura,

zação de mostras, debates e oficinas de cinema

voltado a estudantes das redes públicas, e as

e vídeo são as atividades que compõem o Cine

feiras de livros. Outras atividades desenvolvi-

Sesc, projeto que privilegia a formação de pú-

das foram hora do conto, sarau poético, roda de

blico e o desenvolvimento artístico e cultural.

leitura, encontro com escritores, sempre con-

O projeto é destinado ao circuito alternativo de

tribuindo com o acesso a uma diversidade de

exibição, com sessões gratuitas.

gêneros literários. A descoberta do prazer pela leitura, conceito no qual as ações literárias são

O Sesc/RS deu continuidade, em 2015, às diver-

embasadas, é promovida pela mediação realiza-

sas ações de estímulo à leitura, com destaque

da na rede de bibliotecas.

Portinari: trabalho e jogo, formada por reproduções de um dos mais importantes artistas do País. As mostras circularam por diversas cidades acompanhadas de projeto pedagógico.

ARTES VISUAIS 267.823 atendimentos 212 exposições

LITERATURA

424.197 atendimentos 2.060 atividades 554.131 atendimentos nas bibliotecas fixas 176.425 atendimentos nos Bibliosesc 127.584 empréstimos realizados


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2015

POR Dilmar Messias

10

fundador do Circo Teatro Girassol, assumiu como diretor do Theatro São Pedro em janeiro de 2015, quando o Girassol passou a ser administrado por Débora Rodrigues e Tuta Camargo

O papel do circo na inclusão social As experiências do Circo Girassol, de Porto Alegre, e do Circo Crescer e Viver, do Rio de Janeiro, com o Circo Social, que utiliza o ensino das artes circenses como ferramenta pedagógica e elo de integração em comunidades.

CIRCO TEATRO GIRASSOL: UMA EXPERIÊNCIA ARTÍSTICA E COMUNITÁRIA

Com o aperfeiçoamento da equipe, formamos os primeiros artistas/professores do projeto O Circo é Nosso. De lá para cá, a Escola do Circo e Teatro Girassol tornou-se referência no ensino das técnicas circenses, e a grande maioria dos artistas do circo gaúcho teve, no Girassol, a base de sua formação.

A ideia não é de formar artistas de circo

É bastante singular a história dos projetos sociais

De 2004 a 2007, em nosso espaço, no bairro Nave-

e, ainda menos, deixar acreditar os bene-

O Circo É Nosso e O Circo Para Todos que, ao lado

gantes, em Porto Alegre, reunimos os meninos e as

ficiários que esse é o fim da ação. A pro-

dos 12 espetáculos montados por nós, ao longo

meninas que, tomados pela curiosidade, se aproxi-

posta é de usar o circo como pedagogia

destes 15 anos de existência, se constituem na

mavam para assistir nossos ensaios e logo iam ex-

alternativa para jovens em dificuldades

contribuição social do Circo Teatro Girassol à

plorando os equipamentos e entrando neste clima

e ajudar, assim, toda a inclusão social.[1]

comunidade gaúcha e ao circo em geral. Todos

de criação. Esta atitude foi o ponto de partida para

sabem que, ao longo de nossa trajetória teatral, a

darmos início às oficinas regulares para crianças.

presença do circo como elemento estético, e técnico, marcou nosso trabalho. Mas foi só em 1999

Trabalhamos, também, em uma experiência

que esta influência se materializou em projeto e,

muito interessante da Secretaria Municipal de

em maio do ano 2000, com a estreia, o espetáculo

Educação, com menores infratores e menores

Pão & Circo, transformou-se em realidade.

em situação de risco que se encantaram com o circo e nos deixaram grandes ensinamentos. Este

No dia 2 de dezembro de 2015, o Girassol recebeu o Prêmio Humanidades do Instituto Brasileiro da Pessoa, pelo seu trabalho social

Foto: Circo Teatro Girassol / Divulgação

Então, as oficinas ministradas ao elenco do circo

circo renovado, além de ir para as ruas e praças,

pelo professor Renato Coelho, ex-integrante da

tomou para si uma das tarefas mais nobres: a

Intrépida Trupe, um dos mais conceituados gru-

inclusão social. Usado em todo o mundo como

pos circenses brasileiros, passaram a ser divididas

um poderoso instrumento de integração e desen-

com os interessados, especialmente jovens, que

volvimento de crianças e adolescentes, o apren-

se multiplicavam movidos pelo fascínio que o cir-

dizado das técnicas circenses age positivamente

co contemporâneo estava despertando. Começou

nos mais variados núcleos sociais, possibilitando

assim o nosso projeto de oficinas, que itinerou

a inclusão através do aprimoramento físico e in-

pelo Rio Grande do Sul junto com os espetáculos

telectual. São inúmeros os benefícios das ativida-

de nosso repertório. Em 2002, assinamos um con-

des circenses, não somente pelo aspecto lúdico de

vênio de cooperação tecnicopedagógica com a

suas técnicas, mas também pela disciplina, pela

Escola Nacional de Circo do Ministério da Cultura.

concentração, pela capacidade de inteiração, pelo


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2015

1 HUGUES Hotier, Un cirque pour l'éducation. Parigi, L'Harmattan, 2001, p. 117 (referido por Fabio Dal Gallo no artigo O circo social e a universalidade da linguagem circense, publicado no site Circonteúdo – o portal da diversidade circense, www.circonteudo.com.br).

desenvolvimento motor e pela desinibição, proporcionadas pelos constantes treinamentos. Foi assim que se consolidou em nós a ideia de usar a arte circense como instrumento de transformação das relações sociais, objetivando diminuir desigualdades e resgatando jovens em situações de vulnerabilidade social. No final de 2007, já em nosso espaço definitivo, no Bairro Bom Jesus, o mais populoso e também um dos mais violentos de Porto Alegre, começamos a aplicar toda a nossa experiência no projeto chamado O Circo Para Todos, criando um ambiente propício para o desenvolvimento das capacidades criadoras de crianças e jovens. Paralelamente às aulas, os alunos acompanham nosso processo de treinos e ensaios, no qual a dedicação e a disciplina são fundamentais, para a segurança, para o desfrute do trabalho, e saudáveis quando transferidas para o ambiente familiar ou nas relações cotidianas. A proposta do grupo tem como base os seguintes princípios: exercício do jogo cooperativo, da investigação estética, e da reflexão de valores éticos em prol do crescimento pessoal e coletivo. O objetivo primordial das aulas não é formar um artista circense simplesmente, é, além da complementação de técnicas de iniciação ao circo e ao teatro, proporcionar, através dessas atividades, uma maneira de manter o corpo e a mente saudáveis, beneficiando o ser integralmente.

11


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2015

POR Junior Perim[1]

12

cofundador e coordenador executivo do Circo Crescer e Viver, é também idealizador e diretor geral e artístico do Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro.

crescer e viver: De enredo de escola de samba a empreendimento circense com cunho social

Temos os programas de formação artística

O circo volante, embora seja uma atividade

e de residência artística, dois projetos de fruição,

relacionada a nossa produtora, vende ingressos

um é o circo volante, que se apresenta em cidades

a preços populares e parte deles é sempre doada

do interior do estado fluminense, e outro é a lona,

para escolas públicas de projetos sociais e cultu-

onde ocorrem os projetos de circo social e o de

rais. Além disso, a maior parte da equipe que atua

formação artística, residências, mas também é um

nos espetáculos de cada temporada nas cidades é

espaço de difusão da produção circense. Realiza-

formada por jovens recrutados em organizações

mos o maior festival circense do mundo, o Festival

socioculturais de menor porte, para que acumulem

O Circo Crescer e Viver iniciou as atividades como

Internacional de Circo do Rio de Janeiro. Mesmo

ou desenvolvam um repertório de competências e

um projeto social de circo, em 2001, dentro de

que este ano tenha sido um pouco menor, ainda

conhecimentos para trabalhar e operar processos

um programa que envolvia outras atividades

figura entre os maiores do seu gênero artístico.

de produção de um grande evento, de uma grande

numa agremiação carnavalesca, em São Gonçalo,

Somos a ação social que inventa o empre-

estrutura cultural, como é o nosso circo. Procura-

na metrópole carioca. Logo, fomos consolidan-

endimento até para segurar a sua sustentabilida-

mos gerar sempre um impacto social mesmo nas

do uma metodologia de trabalho social voltado

de. Temos ainda uma produtora, com finalidades

ações que visam à geração de recursos.

a crianças e adolescentes de classes populares,

lucrativas, especialmente para a manutenção das

utilizando o circo como ferramenta de educa-

atividades sociais. Todas as atividades que empre-

Trajetória do Crescer e Viver

ção complementar, de educação para a cidada-

endemos, tenha ela caráter social, sociocultural

O projeto social voltado a crianças e adolescen-

nia, formação de valores, de desenvolvimento

ou cultural, por conta da nossa missão, dos nos-

tes surgiu dentro da escola de samba Unidos do

de habilidades sociais e artísticas. Em 2003, este

sos objetivos institucionais, dos nossos valores,

Porto da Pedra, da qual eu era dirigente. Em 2000,

projeto social se converteu em uma ONG, o Circo

têm uma dimensão coletiva, um viés social.

havíamos escolhido o enredo Um sonho possível:

Crescer e Viver, e passou a atuar somente com a

O festival de circo, por exemplo, ao contrário

crescer e viver agora é lei, para discutir em um

da maioria dos festivais de arte do Rio de Janeiro,

dos principais eventos do Brasil, que é o Carnaval

Atualmente, o Crescer e Viver não é só um

rompe com uma lógica da geografia, da difusão

carioca, os avanços que a implementação do Es-

projeto social, e sim um empreendimento circense

concentrada na área central e na zona sul. A pro-

tatuto da Criança e do Adolescente, uma década

que atua nos diferentes elos da cadeia produtiva

gramação acontece em diferentes regiões do mu-

antes, efetivamente havia assegurado. Serviu de

do circo. Tem o programa de circo social e tam-

nicípio, a maior parte em favelas e territórios po-

motivação para utilizar a força de mobilização

bém um conjunto de programas e atividades que

pulares. O sentido é de reconhecer e desenvolver

sociocultural de uma escola de samba para reali-

envolvem a área de formação artística, da difusão,

as dinâmicas econômicas locais, gerar a inclusão

zar ações no entorno.

da fruição, da produção. Enfim, tem uma dimensão

produtiva das pessoas que vivem naquele territó-

Oferecemos de oficina de cavaquinho a au-

muito maior, sendo um dos maiores empreendi-

rio, além de assegurar o acesso a bens de cultura

las de jiu-jítsu, atividades esportivas, culturais,

mentos circenses do Brasil.

e a produção artística carioca.

mas quando começamos a desenvolver ativi-

linguagem do circo, já projetando sua expansão.


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2015

13

1 Edição a partir da transcrição de conversa telefônica.

Apresentação do Circo Social no Festival Internacional de Circo do Rio de Janeiro, em dezembro de 2015 Fotos: Christine Keller

os resultados mais percebidos, e que buscamos, são a melhoria das comunicações, o desenvolvimento de inteligências múltiplas, a proatividade da criança, que desenvolve capacidades criativas, torna-se um agente da mobilização sociocultural de seu território. A ideia é intervir em três subsistemas condades circenses, chamou muito a atenção dos

de – o jovem de classe popular sofre a pressão

correntes no processo de desenvolvimento da

beneficiários e da comunidade infantil e juvenil.

do trabalho, a pressão familiar de uma ativida-

criança e do adolescente numa perspectiva inte-

Percebemos a força pedagógica que a linguagem

de produtiva, por engajamento econômico. Eram

gral: família, escola e comunidade. Entendemos

tem, ou seja, alguns elementos intrínsecos à prá-

jovens que haviam desenvolvido competências e

que é preciso intervir na família, no sentido de

tica e à transmissão de saberes e conhecimentos

habilidades artísticas, e que queriam ter o circo

melhorar a comunicação interna e até mesmo

circenses no campo dos valores humanos, da co-

como um campo de profissionalização e trabalho.

para referenciar para programas sociais ofere-

operação, ficaram muito evidentes. Por meio de

Então, incitado pelo próprio desejo do nosso pú-

cidos pelo Estado – muitos nem conhecem as

atividades físicas e corporais dos exercícios cir-

blico-alvo, criamos alternativas para que também

possibilidades –, a fim de melhorar a situação fa-

censes, era muito mais fácil desenvolver a cogni-

o circo fosse um campo de profissionalização,

miliar, já que isto também impacta no desenvol-

ção desses valores.

trabalho, engajamento produtivo.

vimento. Em relação à escola, o objetivo é mostrar

Avançamos num processo de escrita, de

Percebemos a necessidade de qualificar o

para a criança que a progressão dela na vida vai

consolidação, significação da metodologia, de-

processo formativo, melhorar os modos de pro-

depender também de um percurso escolar formal,

senvolvimento de método de avaliação, método

dução e criação dos espetáculos, criar estratégia

além das habilidades que desenvolve na ativida-

de acompanhamento. Fomos buscar a interação

de diálogo com o mercado de lazer, cultura e en-

de do circo. E, na comunidade, percebemos uma

com outros atores sociais do Brasil e do mundo

tretenimento. Isso foi gerando a expansão dos

criança mais cooperativa, mais proativa, mobili-

que desenvolviam trabalhos com este público e

nossos objetivos, da nossa atuação, não apenas

zadora de outras.

ingressamos na rede Circo do Mundo Brasil, uma

social, mas dos campos de intervenção artística

Não mensuramos autoestima. Tenho que

organização que envolve mais de 30 organizações

estética, de ação na cidade, nos diálogos com as

apostar que o conjunto de habilidades sociais e

que utilizam o circo como ferramenta pedagógi-

políticas públicas de cultura. A instituição passou

de mudanças comportamentais que eu observo,

ca alternativa. Depois de uma troca bastante rica,

a ganhar outro status de crescimento, de desen-

aqui, no circo, que sejam positivos, será incorpo-

acabamos saindo em 2010. A rede desenvolve um

volvimento, de maturidade que torna o Crescer e

rado para toda vida. Se o jovem vai ser um artista

fenomenal trabalho tanto para fruição do circo

Viver uma instituição bastante diversa do ponto

de circo, se vai se envolver com a criminalidade,

como para desenvolvimento de crianças e jovens,

de vista programático.

se vai ou não ter uma relação mais afetuosa ou uma atitude mais responsável dentro da socieda-

mas percebemos que, além de um trabalho social, deveríamos assumir responsabilidade também

Resultados do Circo Social

de é uma aposta. Acho que sim, porque ofere-

com o desenvolvimento da linguagem circense.

O Circo Social não tem nenhuma perspectiva

cemos um repertório de conhecimento, redes de

O contato com a arte circense nos fez per-

profissionalizante. Mas, como os beneficiários

relações e práticas que são voltadas para desen-

ceber uma certa fragilidade estética e institucio-

têm acesso a todos os equipamentos do pro-

volver esse sujeito do ponto de vista pessoal, éti-

nal. Por outro lado, era uma forma de responder

grama de formação artística, resulta que muitos

co e moral. A força de outras variáveis, para além

àquelas crianças que viraram adolescentes, que

que vão para este programa, vindos do projeto

do circo, a gente não pode controlar.

passaram para uma idade produtiva da juventu-

social, têm uma vantagem artística. Entretanto,


segundo SEMESTRE

2015

14

DeCIO ANTUNES Do pessimismo com o humano à pesquisa sobre ocupação de espaços e convergência de linguagens

CADERNO DE TEATRO


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

15

#15 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que, nos últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, o dramaturgo e diretor Decio Antunes, um dos grandes nomes da cena teatral do Rio Grande do Sul, discorre sobre sua trajetória artística, sua pesquisa sobre o que denominou de teatro coreográfico e processos de produção de oito espetáculos emblemáticos em sua carreira, entre eles Um dia assassinaram minha memória, convidado do 10º Festival Palco Giratório Sesc, realizado em maio de 2015.

Corte

Mulheres insones

Extremi

Novena à Senhora da Graça

A casa

Um dia assassinaram minha memória

Foto: Carlos Sillero

Foto: Daniel de Andrade

Foto: Claudio Etges

Corte

Foto: Carlos Sillero

Foto: Claudio Etges

Foto: Marco Peres

Foto: Claudio Etges


CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

16

TRAJETÓRIA ARTÍSTICA Comentar sobre a própria trajetória artística,

Dessas impressões inicialmente intuitivas,

sua gênese, quando nesses casos sempre há

digamos assim, que se dão, portanto, no plano

dimensões pessoais e históricas entrelaçadas, é

dos sentimentos, mais epidérmica até mesmo,

Devo referir, contudo, que a literatura foi a

uma tarefa complexa. E digo isso por crer que,

eu diria, foram se agregando outros níveis de

porta de entrada inicial rumo à expressão artís-

inicialmente, os processos de criação e, por con-

análise, que vão se adensando ao longo do

tica e fui um devorador de livros desde cedo. De

seguinte, as opções por uma forma de expressão

tempo e que, acredito, configuram minha atu-

passagem, registro que esse meu envolvimen-

estão sempre envoltas em certa nebulosidade,

ação social e artística até hoje – e que oscila

to fez com que, em 1995, recebesse o primeiro

impregnadas das primeiras vivências, dos pri-

do pessimismo com o humano e, ao mesmo

prêmio no Concurso Nacional de Contos Josué

meiros embates na relação com as pessoas, com

tempo, um grande esforço de superação desse

Guimarães com o conto O elevador, publicado

as suas inserções no mundo social, mediadas

estado para algo que considero necessário: o

pelo Instituto Estadual do Livro – IEL.

por tua personalidade.

de agir criticamente, de apontar, expor, radio-

A segunda porta foi o cinema, relação in-

grafar, como se queira, estas mesmas relações.

tensa desenvolvida desde a infância. Como re-

exemplo de tantas outras no País – que teve

Hoje, fazendo uma retrospectiva, vejo

sultado desse meu interesse pelo cinema criei,

imensas dificuldades sociais, em que a luta pela

que as obras que optei encenar ao longo do

junto a vários amigos, em 1974 – eu então com

vida era uma constante, sem facilidades. Isso

tempo estão imersas numa visão dramática,

22 anos –, um cineclube, ao qual demos o nome

gerou uma compreensão intuitiva muito pre-

trágica, do homem, seja em sua vida familiar

de Grupo de Estudos e Criação Experimental de

matura da hipocrisia das relações humanas em

ou social. Desde minha montagem de Entre

Cinema, e cuja sede cedida foi o Clube de Cultura,

sociedade, dos preconceitos, das violências e do

quatro paredes, de Sartre, ainda como exer-

localizado na Rua Ramiro Barcelos. Éramos um

caráter obscuro que permeiam essas relações.

cício de direção no Departamento de Arte

grupo de jovens que tinha a saudável pretensão

Isso me impôs uma necessidade de expressão; a

Dramática no final dos anos 1970; até chegar

de criar, em Porto Alegre, um espaço em que con-

opção, no meu caso, foi artística.

a minha opção de encenar Corte e Um dia as-

vivessem reflexão e prática sobre o cinema.

Por exemplo, venho de uma família – a

A casa

Foto: Claudio Etges

sassinaram minha memória – creio que essa visão de mundo fica evidente.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

17

Foi inaugurado com a exibição do Cidadão

influência de nomes como Bertolt Brecht e seu

Kane, do Orson Welles, um curso de linguagem

teatro épico), mas havia também processos de

cinematográfica, ministrado pelo jornalista e

criação que buscavam experimentar paralela-

crítico de cinema Jefferson Barros, que culmi-

mente linguagens cênicas (não menos político,

nou com um filme produzido pelos alunos em

diga-se), e em que foram referência Antonin

Super-8, a que se seguiu um ciclo chamado “Ci-

Artaud, o polonês Jerzy Grotowski, entre tan-

nema da Alma” (título dado por Jefferson), com

tos outros. Esse cenário se reproduzia também

alguns títulos da filmografia de Michelangelo

no RS no período, com dois grupos expressivos,

Antonioni e Ingmar Bergman. Por serem filmes

Província e Arena.

que estavam fora do circuito de exibição há

Outra dimensão que foi decisiva para mim

muito tempo, alcançou grande sucesso de pú-

nesse período é a que se refere ao espaço cê-

blico na época.

nico. Desde os primórdios do século 20 que o

Tentamos continuar, mas as dificuldades

tema espaço impôs-se aos criadores cênicos,

eram imensas: falta de dinheiro, censura oficial.

por diferentes razões e estéticas. Desde os ma-

Precisávamos ter autorização a cada sessão;

nifestos expressionistas, passando pelas teorias

ainda assim, tentavam impedi-la de todas as

de Artaud (França), do teatro épico de Piscator

formas. Com todos esses episódios, o grupo se

e Brecht (Alemanha), Luca Ronconi (Itália), do

desfez e encerrou-se minha trajetória que co-

Living Theater de Julian Beck (Estados Unidos)

meçava com o cinema – paixão primeira como

até chegarmos a Jerzy Grotowski (Polônia), que

projeto de expressão artística. Foi nesse mo-

com seu Teatro Laboratório criou os mais ex-

mento – naquela época era desejo de todo esse

pressivos estudos sobre a relação espaço-obra

grupo encontrar formas de participação social

encenada-plateia.

diante dos impasses produzidos pela ditadura

O que se encontra entre os diferentes

militar e a falta de liberdade expressão – que

criadores é o consenso de opor-se e encontrar

passei a cogitar o teatro. Essa opção me leva ao

alternativas à supremacia do palco italiano –

ingresso no bacharelado em Direção Teatral na

herança burguesa consolidada no século 17 e

UFRGS – Curso de Arte Dramática.

que se mantém predominante até a atualidade

Cabe observar que, fazendo agora essa re-

na construção de novas casas de espetáculos

trospectiva, percebo que esse mergulho inicial em

(se não possuem, hoje, a mesma característica

diferentes artes norteariam minhas opções futu-

arquitetônica não deixam de enfatizar as hie-

ras, no que se refere à adoção de convergências

rarquias sociais com suas plateias alta, baixa e

de linguagens nas obras que viria a encenar.

mezanino). Além de se contrapor a essa hierarquização social presente em sua arquitetura, o

CURSO DE ARTE DRAMÁTICA

desejo era romper a quarta-parede do natura-

Ao ingressar no Curso de Arte Dramática, vivi

novada, ritualizada, de encontro humano mais

polaridades e efervescência, e delas se construí-

radical. Essa experimentação mudou a face da

ram as bases das pesquisas futuras. Se, na épo-

criação cênica contemporânea no que se refere

ca, vivíamos no plano nacional sob uma ditadura

ao espaço cênico e habita até hoje as preocu-

militar e a liberdade de expressão extremamente

pações dos encenadores em qualquer capital

restrita, isso não impediu uma riqueza de pro-

do mundo – independente de maior ou menor

postas no Brasil, por conta de grupos como Ofi-

intensidade ou ênfase. Da minha parte, essa di-

cina, Arena, Opinião, e existia desde espetáculo

mensão ganhará ao longo dos anos cada vez

com ênfase explícita na temática política (sob a

maior ênfase e pesquisa.

lismo, implodir a rígida separação palco/plateia do palco italiano, possibilitar uma relação re-

ESPETÁCULOS COM DIREÇÃO/ DRAMATURGIA DE DECIO ANTUNES com a Jogo de Cena Companhia Teatral: 1985 O pulo do gato (o dia mais feliz de nossas vidas), de Carlos Carvalho 1988 A serpente, de Nelson Rodrigues 1996 Projeto trilogia perversa - 1941, de Ivo Bender 2000 As núpcias de Teodora - 1874, de Ivo Bender 2001/2002 Ano novo, vida nova, de Vera Karam 2002/2003 A ronda do lobo - 1826, de Ivo Bender 2006-2007 Mulheres insones, teatro coreográfico baseado nas personagens femininas das obras míticas e psicológicas de Nelson Rodrigues 2009 Corte, baseado em autores clássicos e contemporâneos, com proposta dramatúrgica e direção geral de Decio Antunes. 2014 Um dia assassinaram minha memória, baseado em autores clássicos e contemporâneos, com proposta dramatúrgica e direção geral de Decio Antunes

Em parceria com a GEDA Companhia de Dança Contemporânea 2005 Il faut trouver chaussure à son pied, baseado nos estudos do antropólogo francês Jean-Yves Leloup sobre o Corpo e Seus Símbolos, detendo-se nos pés e sapatos como símbolos eróticos 2011-2012 Cem metros de valsa e um grama 2010 Dores em Allegro, performance na arquitetura urbana, utilizando as escadarias da Igreja das Dores, de Porto Alegre 2010 Inverno, performance integrante do projeto Todas as Estações em Movimento

Com diferentes grupos e companhias teatrais e de dança 2001/2002 Novena à Senhora da Graça, baseado no poema de Theodemiro Tostes e música de Luiz Cosme 2007 A casa, dança-teatro com produção da Cia. Flamenco Silvia Canarim, baseado em A casa de Bernarda Alba, de F.G. Lorca


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

18

ANOS 1980: CONFRONTAÇÕES ESTÉTICAS E DIVISOR DE ÁGUAS Logo após a minha formação como bacharel em Direção Teatral na UFRGS, fui convidado pelo Grupo Estrado, do ator João Biratã Vieira, a dirigir, em 1978, o texto do dramaturgo alemão Martin Walser, Uma visita, que estreou no Teatro Tasso Correa do Instituto de Artes e que recebeu, na oportunidade, avaliação positiva da crítica. Como características principais estavam a

impacto. A partir desse contato direto com a lin-

mais em encenações futuras. No trabalho dos in-

utilização de elementos cenográficos mínimos e

guagem do tanztheater eu deixaria Bremen com a

térpretes, a base dialógica – sintetizada ao extremo

a aposta radical no jogo entre os intérpretes. Na

certeza de que essa linguagem encontrava resso-

– dava margem a uma pesquisa de composição das

dramaturgia, um gerente de empresa em viagem,

nância em meu próprio imaginário.

personagens e suas relações fundamentalmente

levado por seu motorista, visita a ex-amante, hoje casada com um operário. A ironia tragicômica gerada na relação entre as personagens expunha o que denominei, na época, de estudo sobre a hipocrisia das relações sociais.

na ação e no jogo. Os longos silêncios tensiona-

PIC-NIC: PESQUISA SOBRE O ESPAÇO E A AÇÃO CÊNICA

vam ao máximo o conflito dramático existente no convívio daquela família de classe média e seus preconceitos por terem de dividir o espaço com o casal de operários e seu filho.

Em 1982, resultado da encenação de Uma vi-

No meu retorno à Porto Alegre, reinicio, com pa-

sita, inicio tratativas junto ao Instituto Goethe para

trocínio do Instituto Goethe, a encenação de Pic-

a encenação de outro dramaturgo contemporâneo

-nic, do dramaturgo alemão Renke Korn, realizada

alemão, Renke Korn. A obra de meu interesse era

através da Companhia Teatral Gestus, que eu havia

Pic-nic, uma sátira contundente às relações sociais

criado sob a evidente influência de Bertolt Brecht

na Alemanha, mas que encontrava paralelos com a

como o nome revela. Foi apresentado no Teatro

EXTREMI: PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NA CONVERGÊNCIA DE LINGUAGENS

realidade brasileira. É quando, nesse diálogo, rece-

do Instituto Goethe e também recebeu muito boa

Durante a encenação de Pic-nic, começo a escrever

bo convite para viagem à Alemanha, que se daria

acolhida do público e da crítica.

o roteiro que se tornaria minha primeira experiên-

no início de 1983, o que adia o projeto de encena-

Na encenação, o espaço do teatro foi altera-

cia no que viria a chamar posteriormente de teatro

ção da obra para o segundo semestre. Essa viagem

do para sua total ocupação. No cenário, de Flávio

coreográfico. O roteiro de Extremi era fruto da mi-

me oportunizará uma confrontação estética que

Bettanin (Prêmio Açorianos de Melhor Cenografia),

nha vivência em Bremen no ano de 1983, quando

será decisiva na minha trajetória como encenador.

a clareira de uma floresta foi transformada em es-

conheci o teatro de dança de Reinhild Hoffmann,

Nos primeiros meses de 1983, permaneço em

truturas de ferro; a copa das árvores, sucatas de

e da intenção em realizar minha própria experiên-

Bremen e conheço o teatro de dança de Reinhild

carro. A cenografia contava ainda com a estru-

cia de encenação, unindo as linguagens do teatro

Hoffmann, contemporânea de Pina Bausch, e que

tura integral de um carro recortado e uma moto,

e da dança. O ano era 1984. Estreou, também com

ali desenvolvia seu projeto coreográfico, tendo

apenas sua estrutura de metal, sustentadas por

o apoio do Instituto Goethe, em seu teatro, no dia

como sede um antigo cinema da cidade. Naquela

estruturas de ferro, reforçando a dimensão da dra-

26 de novembro e cumpriu temporada até 20 de

oportunidade, assisto duas de suas encenações:

maturgia que enfocava os sonhos de consumo de

dezembro daquele ano.

Reis e rainhas (Könige und Königinnen) e sua cria-

bens industriais pelas personagens. O público via a

Extremi foi concebido como ato sem pala-

ção coreográfica para Pierrot Lunaire, de Arnold

cena através das estruturas de ferro, como se es-

vras, constituído por diferentes quadros visuais

Schöenberg. A potência imagética, a utilização do

piasse os personagens na clareira da floresta.

em movimento e enfocava a personagem de uma

espaço, os elementos cênicos, a corporeidade dos

Nessa montagem, já praticava minha pes-

mulher em crise com sua identidade. A sucessão

intérpretes e sua associação à música e às dife-

quisa sobre os signos da cenografia e sua relação

das ações apresenta sua desorientação, a tensão

rentes sonoridades foram, para mim, de grande

com a plateia, dimensão que irá se reforçar ainda

entre impulsos essenciais e o peso de sua herança


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

19

histórica e a busca de superação dos seus limites.

coreógrafa e professora Cecy Franck, nome funda-

UMA PROPOSTA DE TEATRO COREOGRÁFICO

mental da dança moderna no Rio Grande do Sul,

Hoje, é de conhecimento da crítica que acompa-

que havia estudado com Marta Graham, e que, de

nha minimamente meu trabalho de encenador

forma pioneira, trouxera para os bailarinos gaú-

que há muito tempo exerço a criação cênica li-

chos as bases de sua dança. Cecy assumir a criação

gada à literatura dramática e em processos que

coreográfica, mesmo não sendo a proposta base

extrapolam fronteiras de linguagens, para o qual

de seu processo de criação, foi demonstração da

tenho contado com parcerias fundamentais.

Foi interpretada pela então bailarina Viviane Nerva. Para a criação da coreografia, integrou-se a

Uma visita

Fotos: Janice Amaral

Cem metros de valsa e um grama Foto: Carlos Sillero

curiosidade e da personalidade artística marcante

Desde 1984, como referi sobre o espetáculo

de sua criação trabalhar sobre pressupostos da

que caracterizou toda sua trajetória. Pude contar,

Extremi, o teatro, a ópera e a dança visitaram

linguagem teatral, o que fez quando encenou

ainda, no desenho de luz, que foi essencial à pro-

minhas encenações e, talvez agora, com as rup-

sobre a vida de Frida Kahlo, Silvia Plath, entre

posta estética desenvolvida, com a participação de

turas de fronteiras na cena, tenha apenas ga-

outras obras. E o utilizo por estar mais identifi-

Paulo Mauro da Silva.

nhado mais visibilidade. Na sequência, Novena

cado com minha matéria, que são os elementos

Na intenção de o projeto do espetáculo pres-

à Senhora da Graça, Mulheres insones, A casa,

dramáticos do teatro associados a uma drama-

tar-se à convergência de diferentes linguagens ar-

Corte, Um dia assassinaram minha memória,

turgia do movimento e do gesto e da corporei-

tísticas, o roteiro de Extremi ainda serviu de base

entre outros espetáculos, deram continuidade

dade do intérprete.

para a criação de pinturas de Isaías Malta e de es-

a essa prática, mas apresentando e adensando

tímulo para a exposição fotográfica de Daniel de

novas abordagens.

Importante referir, ainda, enquanto união da música na cena, que o universo da ópera me

Andrade. As duas exposições ficavam à disposição

Primeiro, passei a adotar, a partir de certo

serviu de fonte na busca de associação das lin-

do público após as apresentações do espetáculo,

momento, o termo teatro coreográfico, tomado

guagens, daí a importância de ter encenado sobre

permitindo, assim, que associasse novas interpre-

de empréstimo do coreógrafo austríaco Johann

músicas de Franz Léhar (Viúva alegre) e Araújo

tações ao que havia assistido.

Kresnik, que tem como uma das características

Vianna (Carmela).


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

20

NOVENA À SENHORA DA GRAÇA

tivo de Theodemiro Tostes, um aspecto bastante

co antes do poeta/personagem afirmar: “Guardei a

significativo é o fato de sua poesia aproximar-se

música mais pura/para cantar quando chegasses.”)

constantemente da música, não só em termos de

Sendo assim, na encenação, o surgimento dos

O espetáculo Novena à Senhora da Graça, foi cria-

musicalidade dos versos, mas de proposição ex-

músicos no palco se dá como uma fantasmagoria,

do sobre material literário não dramático (no caso,

plícita de atmosfera, andamentos.

assim como a figura feminina surge inicialmente

o poema profano de Theodemiro Tostes, musicado

Por outro lado, ao ler a Novena, outra im-

como silhueta, vulto, mas no alto – local próprio

por Luiz Cosme). Estreou em 2001, no Theatro São

pressão muito forte que fica é o fato de o poema

para o platônico e o religioso – em espécie de ni-

Pedro, com produção da Fundação Teatro São Pe-

ter uma progressão dramática muito expressiva

cho que lembra altar, para, conforme avança o po-

dro, participação da sua Orquestra de Câmara, com

até o aleluia final – o que desloca a ideia de nar-

ema e o erótico se afirma, assumir sua concretude,

regência do maestro paulista Lutero Rodrigues. A

rador para personagem, que fala a sua amada

culminando na nudez.

obra retornaria à cena em 2002.

oscilando constantemente de estado de espíri-

Na equipe de criação, contei com o escultor

to, por vezes denotando amor platônico, outras

Felix Bressan na composição do cenário; a parti-

vezes ficando melancólico pelas lembranças de

cipação do ator Fernando Kike Barbosa, interpre-

amores frustrados, até chegar à plena e vigorosa

tando o poeta; a criação do desenho de luz por

afirmação da paixão.

João Castro Lima. Devo referir, ainda, meu primeiro

Com base nesses dois pontos – poema e mú-

encontro com a coreógrafa Carlota Albuquerque,

sica/personagem – a encenação busca flagrar o

criadora da Terpsí Teatro de Dança (companhia

poeta/personagem no momento em que constrói

criada em 1987) e que se tornaria importante par-

o poema – recurso que captura ou alude para o

ceira também em outras encenações.

processo criador de Theodemiro Tostes. Por se tra-

Na encenação e seus vínculos com o teatro

tar de um personagem/poeta, que vincula a mú-

coreográfico, o poema, originalmente concebido

sica à sua criação, ele, na primeira parte (Inicial)

para ser apenas narrado, eu transformo associan-

enuncia sua ideia do poema (fato é que não existe

do-o a um personagem (no caso, o poeta no ato

intervenção orquestral), para, em seguida, passar a

da criação do poema). Essa concepção nasceu

ouvir a música organicamente vinculada ao poema

de um longo estudo sobre o próprio autor e sua

(parece que o próprio Luiz Cosme assim o entende,

obra. Pelo que pude depreender do processo cria-

fato é que incide o primeiro trecho orquestral pou-

Novena à Senhora da Graça Idem Idem Fotos: Marco Peres

Mulheres insones Foto: Claudio Etges


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

21

MULHERES INSONES: TEATRO COREOGRÁFICO INSPIRADO NAS PERSONAGENS FEMININAS DE NELSON RODRIGUES O roteiro de Mulheres insones necessitou 10 anos para chegar à cena. Foi escrito logo em seguida à Extremi, mas apenas se viabilizou a partir da parceria construída em Novena à Senhora da Graça com a coreógrafa Carlota Albuquerque, nome de referência do teatro de dança no Brasil. Na criação do roteiro de Mulheres insones, trabalhei sobre uma base dramatúrgica consistente (as obras míticas e psicológicas de Nelson Rodrigues) e personagens de igual força. Prescinde do texto e centra-se exclusivamente nos núcleos dramáticos e em imagens essenciais contidas nas obras e aposta no movimento e no gesto como poética narrativa do espetáculo. Para tanto, lancei mão do núcleo dramático central de uma de suas obras, Dorotéia, pertencente a sua fase mítica, apresentando-a como a representação cênica do tênue limiar entre o sonho e a consciência da personagem central - ela que é personagem-imã do feminino em Nélson, uma vez que carrega correspondência em várias outras personagens do autor. A encenação, assim, apreende alguns dos procedimentos dramatúrgicos caros ao autor, como a simultaneidade dos estados de consciência, o flashback, a livre associação, o corte cinematográfico - tudo sob a perspectiva da composição e múltiplas abordagens do herói expressionista. Para além desse núcleo central, Mulheres insones joga com vários arquétipos femininos do autor, como a prostituta, a virgem, a noiva, as tias solteironas, e temas recorrentes em sua obra, como religiosidade, sexualidade e repressão, paixão e culpa, amor e morte. Com base no roteiro, a encenação estrutura-se remetendo para imagens conscientes e sub-


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

22

Mulheres insones A casa Fotos: Claudio Etges

signos que invadem a mente da personagem, a

A CASA: TEATRO COREOGRÁFICO SOBRE O UNIVERSO DE FEDERICO GARCIA LORCA

cenografia adaptou todo o espaço do Teatro do

“... nos oito anos que vai durar o luto

Museu do Trabalho.

não entrará nesta casa o vento da

conscientes, recurso que o dramaturgo utiliza em várias obras, como Senhora dos afogados, Álbum de família, Vestido de noiva e Valsa nº 06, além da já citada Dorotéia. Para que fosse atingida a mobilidade dos

Em convergência com a dramaturgia paro-

rua. Viveremos emparedadas, como se

xística e onírica da obra do dramaturgo, houve a

tivéssemos entaipado as portas e as

utilização e revelação integral das coxias, camas

janelas com tijolo.”

de ferro são suspensas, passarelas aéreas com

Bernarda Alba, in A casa

ações sobre a plateia são construídas, algumas

de Bernarda Alba

dezenas de metros cúbicos de areia, simultaneidade de ações em diferentes espaços. Essas

“Não me acostumo. Não posso viver

opções foram fundamentais para o mergulho

encurralada. Não quero ficar com as

do público na proposição onírica do espetáculo –

carnes mirradas como as vossas; não

ele tinha que acompanhar a cena que ocorria de

quero perder a alvura da pele, nesta

forma simultânea em diferentes quadrantes do

prisão(...). Quero sair daqui!”

espaço, no nível do chão e aéreo – e para a eluci-

Adela, filha de Bernarda, in A casa de

dação das obras e do universo rodrigueano e suas

Bernarda Alba

combinações de elementos expressionistas, projeções subconscientes e personagens arquétipos.

Em julho de 2007, outra experiência como

Para o embasamento da criação, foi ela-

encenador foi a dramaturgia e direção do espetá-

borado o seminário “O feminino em Nelson Ro-

culo A casa, baseado na obra A casa de Bernarda

drigues”, e a equipe viveu as oficinas “A forma

Alba, de Federico Garcia Lorca, a partir de convi-

da emoção”, ministrada por Denise Namura, da

te que recebi do Grupo Flamenco Silvia Canarim,

Companhia À Fleur de Peau, de Paris, e “A cons-

que tinha como intenção aproximar-se da danza-

trução da personagem rodrigueana”, ministrada

-teatro flamenca.

pela encenadora paulista Cibele Forjaz. Parale-

O que havia aplicado como pressuposto de

lo a isso, a equipe procedeu a leituras e inter-

investigação para a dramaturgia da cena em Mu-

pretação das diferentes obras que embasaram

lheres insones, no que denominei teatro coreo-

o roteiro Mulheres insones, e seu processo de

gráfico, foi possível transcrever para este espetá-

criação, em colaboração com as intérpretes, se

culo, uma vez as semelhanças de se basearem em

deu por meio de intensos laboratórios de impro-

um texto dramático, personagens e história. Na

visação. Estreou em 2006 e retornou à cena em

progressão dramática imprimida ao espetáculo, a

2007, no Teatro do Museu do Trabalho.

obra foi dissecada para ganhar a síntese nas suas

A produção recebeu os Prêmios Açorianos

situações-limite.

de Melhor Espetáculo, Cenografia (Felix Bres-

A fusão das linguagens da dança (nesta obra,

san), Figurino (Daniel Lion), Iluminação (Guto

especificamente o flamenco) e do teatro na abor-

Greca) e Trilha Sonora Original (Flávio Olivei-

dagem do universo de Lorca, trouxe diferentes

ra). Também recebeu os Prêmios Quero-Quero

desafios e caminhos à encenação. Inicialmente, a

de Melhor Espetáculo, Cenografia, Figurino e

opção pela ação pura, desenhada por corpos em

Iluminação, e o Troféu RBS Cultura de Melhor

movimento, sem qualquer narrativa por meio das

Espetáculo pelo Júri Popular.

palavras, tão caras a esse grande poeta e drama-


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

23

turgo espanhol. Em segundo lugar, a compreen-

Ao propor à coreógrafa Silvia Canarim criar

história contemporânea e a situação da mulher

são de que este texto que compõe a trilogia a que

este espetáculo em uma casa, tinha como inten-

na sociedade; sobre signos e simbologias na obra

se integra Yerma e Bodas de sangue, traz, além

ção transformá-la num microcosmo de limite, de

de Lorca; além de jogos dramáticos centrados na

da história de Bernarda e suas filhas, inúmeros

clausura, capaz de expressar a história dessas mu-

expressão física das emoções; inter-relação; estu-

signos e metáforas poderosas.

lheres impedidas de viver plenamente. Nos traje-

dos de personagens a partir de focos de energia

Por um lado está a Espanha de forte tra-

tos percorridos pelas personagens nesta casa que

corporal aplicados ao movimento; a que se as-

dição católica; de outro, a ditadura franquista

concentra a memória também trágica da ditadura

sociou a incorporação do estatuto simbólico do

– lembremo-nos de que o poeta escreveu esta

militar brasileira (tinha sido sede do DOI-CODI), em

objeto cênico na expressão da personagem.

obra no ano de 1936, quando a ditadura já te-

cada desvão, nos seus labirintos, plasmaram-se

A cada momento, elementos fundamentais

cia sua trajetória e da qual seria vítima, com seu

imagens fundindo diferentes associações. Com vi-

envolvendo todos os integrantes da equipe fo-

assassinato dois meses após terminá-la. Por ser

gor poético e dramatúrgico – mesmo concentran-

ram: impasse, crise, diálogo, soma de sensibilida-

difícil afirmar propósito consciente, cabe apenas

do alusões ao universo feminino –, Lorca na verda-

des e de heterogeneidades na busca de incorporar

afirmar que, com ela, o poeta vaticinou a tragédia

de nos fala do aviltamento da condição humana

à base do flamenco uma síntese expressiva que

que viveria a Espanha naquele período – e que

quando submetida a qualquer forma de opressão.

reunisse tradição e ruptura, de modo a trazer para

encontra no Guernica de Picasso todo seu horror.

Por se tratar de uma primeira experiência do

Nesse sentido, a casa que Lorca inclui no título – e

grupo na dança-teatro flamenca, o processo de

A casa ganhou Prêmios Açorianos de Melhor

que mantém de forma rígida moral, sexualidade

construção do espetáculo obedeceu a longo pro-

Espetáculo, Trilha Sonora Original (Felipe Azevedo),

e culpa, honra social e repressão – abarca todos

cesso de investigação baseado na obra escolhida,

Cenografia (Voltaire Danckwardt), e Troféu RBS

esses referenciais.

em seu contexto histórico e correlações com a

Cultura de Melhor Espetáculo pelo Júri Popular.

a cena toda força dramática da obra.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

24

CORTE: INÍCIO DA TRILOGIA SOBRE HISTÓRIA, CORPO E MEMÓRIA

intenções de poder geopolítico; ser imigrante, a

móveis estão abandonados, aos pedaços, restos de

simples cor da pele e opção religiosa fez recru-

outdoor suspensos, um imenso relógio de rua tem

descer a violência gerada pela intolerância e pre-

seus ponteiros imóveis; um semáforo de forma

conceitos; mesmo o Brasil se viu envolvido com o

intermitente acende o sinal vermelho; câmeras

assassinato de Jean Charles num metrô em Lon-

instaladas no cenário por vezes flagram os perso-

Corte sm

dres, suspeito de ser um terrorista.

nagens (e o próprio público), como se estivessem

Ato de cortar (se); interrupção; redução.

Anterior a tudo isso, a proximidade do ano 2000 já acendera e conturbara a imaginação do

sendo vigiados, e suas imagens são transmitidas na TVs das vitrines.

Em 2009, com a JogoDeCena, retorno ao espaço

homem, tornando-o uma espécie de marco di-

Nesse vagar em meio aos escombros urba-

do Teatro do Museu do Trabalho para a encena-

visório do fim ou reinício da aventura humana.

nos dessa sociedade tecnológica, na perplexida-

ção de Corte, que dá início ao projeto de trilogia

Prognósticos místicos do final dos tempos; bug

de da solidão planetária, as personagens são as-

que denominei História, Corpo e Memória. Nesta

do milênio; a iminência de uma guerra nuclear

saltadas por lembranças, fantasmagorias, que as

produção, participa da equipe a coreógrafa Maria

pelo descontrole dos computadores; realização

levam a refletir sobre seus destinos nesse limite

Waleska Van Helden, da GEDA Dança Contempo-

de inventários de contradições e contrastes, como

histórico. Cabe referir, ainda, dentro da experi-

rânea, com que irei dividir diversas encenações,

a da convivência do mais vertiginoso desenvolvi-

mentação de fundir diferentes tempos históri-

pela convergência de focos ligados a performan-

mento tecnológico com o atraso, a permanência

cos, que todas as personagens compõem uma

ces em espaços não tradicionais.

da barbárie e da miséria em escala planetária.

Babel, onde todas as falas se dão em diferentes

Se, nas encenações anteriores, Mulheres inso-

Corte mergulha nessa atmosfera de final de

idiomas como espanhol, francês, inglês, alemão,

nes e A casa, eu me detinha em diferentes obras de

milênio e inventário flagrando em termos ceno-

dependendo da personagem e sua transposição

um mesmo dramaturgo e em uma obra específica

gráficos – realização do escultor Felix Bressan a

contemporânea. Como exemplos, cito a perso-

de outro, em Corte minha proposta dramatúrgica

partir da minha concepção – a imagem do caos,

nagem da mitologia grega Cassandra, cujas vi-

é livremente inspirada em obras e personagens de

no qual personagens vagam solitários sobre os

sões e profecias são sobre o nazismo e que fala

diferentes autores, clássicos e contemporâneos,

escombros urbanos de uma sociedade tecnológi-

em alemão; ou o texto de outra personagem,

dramaturgos, romancistas e poetas, numa mistura

ca após devastação (nuclear? climática?).

que vê sangue em suas mãos, como uma Lady

deliberada de tempos históricos.

A cena opta por um espaço que reproduz

Macbeth, extraído diretamente do original em

A encenação Corte buscou refletir sobre a

uma grande avenida urbana, com suas ruas, vi-

história contemporânea no século 21 naquilo que

trines despedaçadas e a exposição de objetos de

Na minha pesquisa quanto à relação cena/

a caracterizou desde o início: a égide da violên-

desejo de uma sociedade tecnológica e de con-

espectador, o público assiste a tudo nos dois la-

cia a partir do ataque ao World Trade Center, que

forto: vestuário exposto em lojas vestidos por

dos dessa avenida – como testemunha cúmplice

mergulhou o mundo numa era de desconfianças

manequins; dentro das lojas, telas de computa-

desse momento. Corte, pela articulação e pelo

mútuas entre nações e culturas. Controles ex-

dores e TVs ainda transmitem imagens múltiplas

aprofundamento da relação entre espaço cênico

tremos em nome da segurança promoveram re-

e fragmentadas – pela primeira vez, associo tec-

e dramaturgia, relação cena e plateia, partituras

taliações em países e obscureceram verdadeiras

nologia audiovisual em uma obra; nas ruas, auto-

de movimentos e corporeidade dos intérpretes

inglês de Shakespeare.


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2015

25

em fusão de tempos históricos, assentam as ba-

trazem falas e diferentes tessituras de histórias

ses da segunda parte da trilogia sobre História,

estimuladas por livros, objetos, personagens e

Corpo e Memória.

que são compartilhadas com o público. É o esfor-

Corte Idem Idem

Foto: Carlos Sillero

Um dia assassinaram minha memória

ço humano para não deixar morrer sua história,

Foto: Claudio Etges

seu rosto, sua identidade. O espaço da encenação

UM DIA ASSASSINARAM MINHA MEMÓRIA: SEGUNDA PARTE DA TRILOGIA HISTÓRIA, CORPO E MEMÓRIA

e as ações das personagens surgem assim como

Esta encenação estreou em 31 de outubro de

os gregos, a memória era a mãe das nove musas

2014 e cumpriu temporada até 23 de novembro

e se chamava Mnemósine. A ideia era de que a

daquele ano. Oportunizou meu reencontro com

memória é mãe das artes. (...) memória provém de

a coreógrafa Carlota Albuquerque, que assinou

memorosis – aquele que recorda.”

metáfora da resistência humana para manter-se intacta em meio à devastação. Como refere o escritor venezuelano Fernando Báez, em seu livro História universal da destruição dos livros: “Não se deve ignorar que, para

como codiretora. Para a encenação, escolhi o Mu-

Durante o longo processo de criação desse

seu Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, buscando

espetáculo, uma das principais investigações foi a

mais uma vez associar a dimensão simbólica do

respeito do espaço e sua apropriação pelas intér-

espaço e seu vínculo com a dramaturgia, na me-

pretes, vivenciando e reverberando impressões e

dida em que sua função é armazenar a história

sentimentos a partir dele. Outra fonte da criação

social e cultural.

foram estudos sobre a memória e a afirmação de

A exemplo da primeira parte da trilogia, Corte, minha proposta dramatúrgica foi livremente

que somos aquilo que lembramos e somos aquilo que esquecemos.

inspirada em obras de diferentes autores, tanto

Perguntas como “O que deliberadamente se

da literatura dramática quanto do romance e da

quis esquecer? O que deliberadamente fizeram ou

poesia, e insiro as personagens numa situação

tentaram nos forçar a esquecer?” deram margem

à investigação e confrontações das intérpretes com suas próprias memórias e vivências, contribuindo decisivamente para a construção da dramaturgia. Nessa construção, longe de querer dar respostas, na relação com o público que era acolhido no espaço para conviver com as personagens, o mais importante era deixar a provocação: caberia a cada um perseguir, como os personagens, seus próprios vestígios e fragmentos, e assim encontrar sua história, seu rosto e sua identidade. É o ato de colar as cinzas, de dar forma à escuridão, como diz uma das personagens desta obra. Em maio de 2015, Um dia assassinaram

histórica-limite, de forma atemporal, durante um

minha memória retornou à cena, como espetá-

conflito de grandes proporções. A diferença está

culo convidado por Palco Giratório Sesc 10 Anos.

em que a imersão e percepção da história se dão

Em setembro, participou do 22º Porto Alegre em

a partir da ótica exclusivamente feminina, a partir

Cena, Festival Internacional de Artes Cênicas. Re-

de cinco mulheres abrigadas nessa casa-museu.

cebeu os Prêmios Açorianos 2014 de Melhor Es-

Ao destacar a mulher como protagonista, ela

petáculo, Direção (Decio Antunes e Carlota Albu-

adquire dimensão arquetípica, na medida em que

querque), Trilha Sonora (Ricardo Pavão), Figurino

é a única capaz de gerar, de dar continuidade à

(Daniel Lion) e Iluminação (Guto Greca).

civilização humana. É a partir do seu olhar, sentimentos e percepções que oscilam da esperança à desesperança nesse limite histórico, que esta

EPÍLOGO?

criação cênica constrói sua narrativa. Com suas

Atualmente, continuo como encenador nessa

lembranças aos pedaços, o que elas realizam ali

pesquisa, com diferentes parceiros e bases de

é o que se poderia denominar de uma arqueolo-

criação no que denomino, hoje, teatro coreográ-

gia da imaginação. Ao executarem esse trabalho,

fico. Essa forma de abordagem, contudo, não de-

passado, memória individual e histórica, delírios e

fine que será uma base imutável; na verdade, será

sonhos se confundem.

dinâmica a cada obra e será ela que ditará suas

A ação, construída como um jogo ininterrupto que desenvolvem enquanto buscam sobreviver,

necessidades e a minha de falar através da cena.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

26

Um panorama da música de câmara no Rio Grande do Sul Iniciativas pontuais buscam desenvolver o gênero e, por meio de concertos realizados em comunidades, incentivar a formação de plateias Ainda longe da popularização que desfruta

da pelo Centro de Cultura Musical da PUCRS, e

diálogos entre o repertório histórico e as múl-

na Europa e nos Estados Unidos e que seria com-

a programação do Festival Internacional Sesc de

tiplas tendências da música atual. Conforme o

patível com a sua relevância, pode-se dizer que a

Música desenvolvida na Bibliotheca Pública Pe-

maestro Antonio Borges-Cunha, diretor artístico

música de câmara passa por um bom momento

lotense. “O festival apresenta uma série impres-

da OCTSP, do repertório histórico – barroco, clás-

no Rio Grande do Sul. Para o maestro Evandro

sionante porque os professores são expoentes em

sico e romântico –, a orquestra tem apresentado

Matté, coordenador do Festival Internacional

seus instrumentos, temos 50 professores de 12

obras que raramente são incluídas no repertório

Sesc de Música, a música de concerto como um

países. Em termos de importância artística, é a

de orquestras brasileiras, ou que ainda não foram

todo atravessa uma fase de crescimento, e a

iniciativa que mais se destaca durante todo o ano

apresentadas em Porto Alegre, apesar de serem

música de câmara está inserida neste contexto

no Estado”, aponta Matté.

consideradas obras-primas da música ocidental.

positivo. “As orquestras, entre elas a Orquestra

A OCTSP foi criada em 1985 e se mantém

“Em 2008, por exemplo, a orquestra apre-

Sinfônica de Porto Alegre (Ospa), a Unisinos/An-

com o apoio da inciativa privada e por um con-

sentou os Concertos para 1, 2, 3 e 4 cravos de

chieta, a da Universidade de Caxias do Sul e a do

junto de associados, modelo inédito no Brasil.

Bach. Foi a primeira vez que o público da cidade

Theatro São Pedro, estão com programações de

Considerado um dos principais grupos de câmara

teve a oportunidade de ouvir e ver quatro cravos

muita qualidade; recentemente, foi criada a Or-

em atividade continuada no País, realiza atual-

no palco em interpretações históricas com solis-

questra de Gramado, e esta evolução nos últimos

mente três séries de apresentações: Concertos

anos, ainda que faltem programas mais estáveis,

Oficiais, Concertos para a Juventude e Concertos

é consequência das leis de incentivo à cultura”,

Populares, bem como a produção de óperas e ba-

afirma o maestro, que atua na Orquestra Unisi-

lés. A OCTSP é formada por 22 músicos de cordas

nos/Anchieta e na Ospa.

(12 violinos, 4 violas, 4 violoncelos e 2 contra-

Entre as iniciativas estáveis ligadas à música

baixos) e conta com a participação de sopros e

camerística no Rio Grande do Sul, estão as da Or-

percussão, de acordo com as exigências do reper-

questra de Câmara do Theatro São Pedro (OCTSP),

tório selecionado para cada temporada.

da Escola da Ospa, os programas do Departamen-

A programação da série Concerto Oficiais

to de Música de Câmara da Orquestra Sinfônica

fundamenta-se no princípio de inclusão e re-

da UCS, o Quinteto Porto Alegre, os grupos da

novação do repertório da música de concerto,

Fundarte de Montenegro, a programação realiza-

buscando uma identidade estética por meio de

Conjunto Instrumental da Fundarte Foto: Fundarte / Divulgação


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

27

tas nacionais e internacionais. Em 2012, a produ-

da comunidade artística de diversas áreas, lotan-

do Matos, James Correa, Pedro Figueiredo, Ricardo

ção da ópera Così Fan Tutte, com recitativos nar-

do o Theatro São Pedro em duas récitas. O mérito

Eizirik, Bruno Ângelo. Em 2010, a OCTSP estreou e

rados em português e árias cantadas em italiano,

artístico da interpretação de Pierrot Lunaire pela

gravou em CD duplo o balé Mahavidyas do compo-

foi considerada pelo público e por especialistas

OCTSP teve repercussão nacional, motivando o

sitor Vagner Cunha, obra premiada em quatro ca-

como uma proposta inovadora que facilitou a co-

convite do Sesc/SP para apresentações na capital

tegorias pelo Açorianos de Música. As composições

municação com expectadores experientes e com

paulista com direção cênica de Gerald Thomas.

de Celso Loureiro Chaves foram gravadas ao vivo e

iniciantes no repertório operístico.”

Em 2007, o espetáculo foi reprisado no Porto Ale-

publicadas em CD em 2013, recebendo o troféu de

gre em Cena.

melhor disco do ano do Açorianos.

Para a inclusão da criação musical dos séculos 20 e 21, o maestro Cunha destaca que a

A segunda maneira de renovação do repertó-

Para as celebrações dos 30 anos da OCTSP,

OCTSP tem agido de duas maneiras fundamen-

rio tem sido por meio da inclusão de compositores

a série de Concertos Oficiais 2015 aprimorou os

tais. A primeira consiste em programar compo-

brasileiros desses séculos. Além de compositores

princípios de inclusão e renovação que têm ca-

sitores e obras essenciais do modernismo e do

consagrados como Armando Albuquerque, Bru-

racterizado a sua programação. Foram realizados

pós-modernismo musical internacional. Alguns

no Kiefer, Radamés Gnatalli, Villa-Lobos, Camargo

12 Concertos Oficiais e 12 Concertos Banrisul para

exemplos: estreias nacionais de obras de Pier-

Guarnieri, Ernani Aguiar, Edino Krieger, a OCTSP tem

Juventude, além da produção do espetáculo A His-

re Boulez, Alfred Schnittke, Arvo Pärt. Em 2006,

encomendado e estreado obras de compositores do

tória do Soldado, de Igor Stravinsky.

Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, obra de

Rio Grande do Sul. Alguns compositores que tive-

“A programação segue uma agenda planeja-

referência do expressionismo musical do início do

ram obras estreadas nas temporadas mais recentes

da em detalhes com antecedência na temporada

século 20, atraiu o interesse do público em geral e

são Celso Loureiro Chaves, Flávio Oliveira, Fernan-

anterior, o que é fundamental para a elaboração


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

28

dos projetos de captação de recursos via leis de

Concertos na Serra

último domingo de cada mês. Em parceria com o

dependendo dos recursos captados, a orquestra

Sob o guarda-chuva da Orquestra Sinfônica da

existe de forma ininterrupta desde 1993. Além

organiza as três séries de concertos. Para o me-

UCS (OSUCS), a Universidade de Caxias do Sul

dos grupos da OSUCS, participam outros grupos e

lhor aproveitamento do investimento com en-

mantém um departamento de música de câma-

músicos convidados não só do Rio Grande do Sul,

saios e com solistas convidados, a orquestra sis-

ra que desenvolve programas continuados, com

mas também de outros países e estados brasilei-

tematizou os Concertos Oficiais. Cada programa

um corpo artístico de 14 músicos, sendo que 11

ros. Já participaram dos Concertos, atualmente

preparado é apresentado em dois concertos aos

integram a orquestra. As formações são Quinteto

realizados na Sede Social do Recreio da Juventu-

sábados e domingos, normalmente na segunda

de Metais (1º e 2º trompetes, trompa, trombone e

de, o Quinteto Villa-Lobos (RJ), Quarteto de Cor-

ou terceira semana de cada mês. Os Concertos

tuba), Grupo das Cordas (4 violinos, 2 violas, vio-

das da Cidade de São Paulo, Quinteto de Metais

Populares ocorrem no último domingo do mês,

loncelo e contrabaixo) e um pianista. O coordena-

da OSPA, Quinteto de Metais da Universidade de

às 11h. A série Concertos Banrisul para Juventu-

dor do Setor de Desenvolvimento Cultural, Moa-

Louisville (Estados Unidos), os trompetistas Fred

de, realizada desde 2000, consiste em 12 apre-

cir Lazzari, explica que o Grupo das Cordas atua

Mills (Estados Unidos) e André Henry (França),

sentações para estudantes de escolas públicas e

com formações especialmente de duo, quarteto e

Ária Trio (Caxias do Sul), o violonista Lúcio Yanel

particulares. “Dessa forma, buscamos melhorar

octeto e que acontecem, também, recitais destes

(Argentina/Brasil), Coro da UCS, Quarteto Scar-

o relacionamento com a comunidade e ampliar

instrumentistas com acompanhamento de piano,

lati (Porto Alegre), entre outros. Outra ação é os

o acesso e o interesse pela música de concer-

recitais de piano solo etc. “Nenhum dos grupos é

Concertos de Integração, série de concertos que

to”, justifica o maestro. Além das apresentações

engessado e procuramos trabalhar as ideias artís-

acontece na região de abrangência da UCS, for-

no Theatro São Pedro, a orquestra se apresenta

ticas de seus integrantes”, explica.

mada por cerca de 70 municípios. As apresenta-

incentivo à cultura”, afirma Cunha. Segundo ele,

Museu Municipal de Caxias do Sul, o programa

no interior do Estado, como em janeiro de 2015,

Entre as inciativas desenvolvidas pela UCS

ções acontecem em eventos como Feira do Livro,

quando realizou o concerto de abertura do Festi-

estão os Concertos ao Entardecer, série oficial de

Semana do Município e programações realizadas

val Internacional Sesc de Música, em Pelotas.

concertos que acontece de março a novembro, no

nos períodos de Páscoa e Natal.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

29

Lazzari destaca que, além da intensa par-

em locais onde as pessoas não escutam música,

pósios, semanas acadêmicas, o departamento

Oportunidade para estudantes de música

busca desenvolver programas continuados,

O projeto Escola da Ospa na Comunidade, lançado

programa bem mais erudito. Segundo Grendene,

com diferentes grupos, abordando estilos, pe-

em 2015, busca desenvolver a música de câmara

trata-se de uma oportunidade para os alunos se

ríodos e compositores das mais variadas épo-

no Estado e a formação de plateia. Por meio da

apresentarem como grupos de câmara e fazerem

cas e países, com foco sempre voltado para a

iniciativa, foi criado um quarteto de cordas, um

um trabalho mais elaborado.

formação dos artistas e do público. Segundo

quinteto de cordas e um quinteto de metais que

Iniciativas como esta buscam desenvolver o

ele, programas continuados, como é o caso da

se apresentam de duas a três vezes por mês, em

gênero. “A música de câmara é um campo muito

série Concertos ao Entardecer, são fundamen-

uma programação sistemática, na capital gaúcha

rico e eu vejo que infelizmente é pouco explorado.

tais para que as pessoas adquiram o hábito

e região metropolitana. “Além de ser um projeto

Eu mesmo, além de diretor da escola, sou clari-

de frequentar as salas de concerto. “Uma das

de inserção social, de levar o nome da Ospa e a

principais características na prática da músi-

música que a gente faz para diversos locais, este

ca de câmara é que, diferente da orquestra, na

projeto visa a estimular os alunos a fazerem mú-

qual, via de regra, predomina a grande massa

sica de câmara”, diz o diretor da Escola de Música

sonora, produzida por um grande contingente

da Ospa, Diego Grendene.

ticipação dos grupos em momentos culturais de eventos acadêmicos, como congressos, sim-

de instrumentistas, neste segmento a pessoa-

“Procuramos executar um repertório que

lidade do instrumentista é que se destaca e de

alia tanto a música erudita quanto uma música

forma muito mais próxima e direta com o pú-

erudita mais ligeira, mais acessível, e também

blico, oportunidade propiciada, também, pelo

uma mais popular, para que isto possa gerar uma

tamanho das salas de concerto.”

interação maior com a plateia. Estamos tocando

não têm o hábito de ir a concertos”, destaca. Para 2016, existe a intenção de que os grupos da escola façam o pré-concerto da Ospa, tocando um

Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro Foto: Rafael Wilhelm


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

30

netista e tem algumas obras que talvez em toda

vazão a todos os artistas deste meio. “O maior en-

camerística e outros com convidados externos,

a minha carreira eu tenha tocado apenas uma

trave possivelmente seja o financeiro, pois há músi-

tanto para completar a formação sinfônica quan-

ou duas vezes, como o Quinteto de Mozart ou o

cos e formações camerísticas preparadas para fazer

to para atuar como solista à frente da orquestra.

Quinteto de Brahms, que são muito famosas. Isso

música em alta qualidade numa escala bem maior

O repertório é pensado para se adequar a cada

se deve ao fato de que temos poucos espaços,

do que a que estamos experimentando no momen-

público e abranger vários estilos musicais que te-

pouco projetos que incluem a música de câmara”,

to”, analisa. Segundo ele, a PUCRS provavelmente é

nham combinação artística com a orquestra atual.

lamenta o diretor.

uma das universidades que tem maior quantidade

A universidade realiza uma série com

Outra instituição que incentiva as formações

e qualidade de recitais/concertos no País, entre as

uma vertente mais popular, que são os Concertos

camerísticas para o desenvolvimento dos alunos é a

universidades que não possuem graduação em mú-

PUCRS; outra série voltada para a música erudita e

Fundarte, fundação criada a partir do Conservatório

sica. São no mínimo 50 apresentações de música

nomes internacionais, que é Concertos Internacio-

Municipal de Música, em Montenegro. Hoje, o gê-

de câmara por ano, com repertórios desde a músi-

nais PUCRS; uma série mista entre erudito e popu-

nero é representado pelo Grupo das Cordas, Grupo

ca antiga, música contemporânea, música erudita

lar, com abertura para a música de câmara e corais,

de Choro, Conjunto Instrumental e Camerata, for-

em geral e música popular de diversas tendências

que é Concertos Especiais PUCRS; e uma última

mados por estudantes, e a Orquestra de Sopros, de

como choro, música vocal e música gaúcha. “É um

série voltada às comunidades, levando concertos

caráter profissional. As formações cumprem uma

movimento expressivo dentro da universidade e

com repertório direcionado para cada realidade, que

agenda de apresentações em eventos da comuni-

aberto à comunidade, de forma quase sempre gra-

é Concertos PUCRS na Comunidade. Além disso, o

dade, saraus e recitais, de março a dezembro.

tuita. Temos, aqui, um ambiente propício para uma

instituto promove a Sobremesa Musical, um projeto

formação (também artística) necessária para com-

de música semanal voltado para o público interno,

Programas musicais

por uma formação integral, mesmo não tendo um

porém aberto à comunidade, a exemplo das outras

curso superior de música.”

séries, que abrange uma grande variedade de estilos

A programação é feita a partir da orientação

musicais, privilegiando a música de câmara em inú-

O maestro Marcio Buzatto, do Instituto de Cultura

da direção, com a colaboração do maestro nas

meras formações, até orquestrais. São, em média, 33

da PUCRS, compartilha da opinião de que faltam

questões de repertório e partituras. De forma mis-

edições da Sobremesa Musical por ano.

recursos e casas de concerto suficientes para dar

ta, alguns concertos são realizados em formação

Grupo de Violões da Fundarte Foto: Fundarte / Divulgação


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

31

POR Tiago Linck, Trompetista da Ospa e do Quinteto Porto Alegre

Do desejo à exceção A ideia de formar o grupo partiu do desejo que

vez por semana para trabalhar novos progra-

tações musicais, percebo que cada vez mais as

os cinco, todos integrantes da Ospa, comparti-

mas e aprimorar o repertório já conhecido e,

pessoas aqui no Rio Grande do Sul estão co-

lhavam de fazer música de câmara. O trabalho

nas semanas que antecedem recitais, intensi-

nhecendo e consumindo música erudita. O que,

com o quinteto de metais exige uma aborda-

ficamos os ensaios, chegando a nos encontrar

na minha opinião, evolui de forma mais lenta é

gem, do ponto de vista técnico, bem diferente

até cinco vezes por semana.

a iniciativa e o interesse dos músicos em fazer

do que estamos acostumados na orquestra. No

Os recitais do quinteto são realizados ba-

música de câmara. Resolver criar um grupo de

quinteto, estamos muito mais expostos, cada

sicamente a partir de convites de instituições

música de câmara; reunir pessoas que tenham

detalhe é percebido e é fundamental para uma

culturais locais e de outros estados e países

a mesma motivação; investir muito antes de ter

performance de qualidade. Uma das motivações

também. No Rio Grande do Sul, o grupo se

qualquer retorno, todas essas questões podem

de criarmos este grupo de música de câmara

apresenta regularmente na Biblioteca Pública

se tornar empecilhos e, acredito, a causa para

foi a oportunidade de fazer música de manei-

do Estado do RS, na Pinacoteca Ruben Berta,

termos pouquíssimos grupos de música de

ra colaborativa. O resultado final das obras que

no Instituto Goethe e na Bibliotheca Pública

câmara no Estado. Percebemos isso no nosso

preparamos é sempre o fruto de um trabalho

Pelotense. Recentemente, o quinteto foi con-

trabalho com o quinteto. Aliás, essa foi uma das

realizado em conjunto, em que cada um, além

vidado para ministrar masterclasses e realizar

nossas motivações quando nos reunimos: in-

de ser responsável por sua própria parte, tem a

concertos em dois importantes festivais de

centivar a criação de novos grupos de câmara,

responsabilidade de comunicar-se da maneira

música: 28º Festival Internacional de Música do

principalmente quintetos de metais. Esperamos

mais clara possível com os demais colegas.

Pará e 2º Festival Internacional de Metais Uru-

que nosso empenho seja recompensado nesse

brass, em Montevidéu, no Uruguai.

sentido também. A música e, principalmente o

O quinteto possui uma agenda de ensaios regular, independente da quantidade de com-

De maneira geral, não só em relação à

promissos agendados. Encontramo-nos uma

música de câmara, mas para todas as manifes-

Quinteto Porto Alegre é formado pelos músicos Elieser Fernandes Ribeiro e Tiago Linck (trompetes), Israel Oliveira (trompa), José Milton Vieira (trombone) e Wilthon Matos (tuba) Foto: Quinteto Porto Alegre / Divulgação

público, agradecem.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

POR Max Uriarte,

32

Pianista, coordenador de música de câmara do Festival Internacional Sesc de Música

O ambiente intimista e privado da música de câmara ao alcance do grande público A programação do 6º Festival Internacional Sesc de Música, a realizar-se de 18 a 29 de janeiro, na cidade de Pelotas, assim como em edições anteriores, prevê nove concertos do gênero na Bibliotheca Pública Pelotense, sempre às 19h.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

33

Um dos gêneros atualmente mais consolidados

nem de longe como na Europa ou nos Estados

pertório camerístico internacional e brasilei-

da música de concerto é a música de câmara, que

Unidos. Basta prestar atenção ao grande núme-

ro, abrangendo diversos estilos, do barroco à

se utiliza de formações instrumentais mais redu-

ro de agrupamentos estáveis e à quantidade de

música contemporânea. É uma oportunidade

zidas, e com obras que originalmente eram exe-

festivais internacionais (somente de concertos)

ímpar de ouvir grandes intérpretes atuando

cutadas em ambientes privados. Diferenciava-se,

e programações dedicadas exclusivamente a

em formações instrumentais que vão desde

desta forma, de gêneros de caráter mais público,

este gênero no hemisfério Norte.

o duo até o octeto. Além do repertório tradi-

que geralmente faziam uso de grupos musicais

No Rio Grande do Sul, a prática de fazer

cional, a série tem apresentado também obras

maiores, como a música sinfônica, a música sa-

música em conjunto continua seu desenvol-

de compositores menos conhecidos, primeiras

cra, a ópera, a música militar etc. Hoje, contudo,

vimento em ritmo lento e de forma bastante

audições modernas de obras antigas e estreias

a música de câmara caracteriza-se por ser ampla-

tímida. Seria necessário criar séries regulares

absolutas de obras contemporâneas brasileiras

mente disseminada, sendo um dos gêneros mais

de concertos com retribuições financeiras ade-

e estrangeiras.

praticados e divulgados da música erudita.

quadas aos músicos, que viabilizem a vinda de

Torna-se quase irreal realizar esta sequência

O gênero camerístico instrumental consoli-

conjuntos musicais de fora do Estado e im-

de espetáculos fora do contexto de um festival, se

da-se no repertório erudito a partir do século 18

plementar patrocínios a grupos instrumentais

considerados os elevados custos que seriam ne-

na Europa, evoluindo para um período de grande

estáveis. Certamente, a ausência de incentivos

cessários para reunir tantos músicos destacados

difusão no início do século 19, na medida em que

não contribui para a mudança deste panorama.

em um número grande de apresentações.

novas formas de sociabilidade da cultura ociden-

Aliás, nos últimos anos, o surgimento de grupos

Entre os pontos altos da programação

tal gradativamente estimulam a prática e o con-

estáveis no Rio Grande do Sul deve-se princi-

camerística da sexta edição, que ocorrerá em

sumo de música em ambientes públicos, onde o

palmente ao mérito pessoal de alguns músicos

janeiro de 2016, figuram obras como o Octe-

caráter originalmente intimista e privado da mú-

e de sua devoção por esta peculiar forma de

to para cordas op. 20 de F. Mendelssohn, que

sica de câmara passa a ser compartilhado e pro-

fazer música.

incluirá, entre seus executantes, nomes como

pagado através de audiências cada vez maiores. Em suas origens, a sociedade brasileira não

Yang Liu, Emmanuele Baldini e Cármelo de Los

incentivassem a música de câmara, e não é de se

O FESTIVAL DO SESC

Santos, e o Septeto n. 3 de S. Neukomm, con-

estranhar que somente raros indícios apontem

Neste cenário pouco animador tanto para os mú-

Além disso, contará também com a presença de

para práticas musicais deste gênero no Brasil até

sicos como para os apreciadores, um evento anu-

mais dois solistas internacionais.

o final do século 18.

al desponta no Sul do Estado com especial brilho:

Oportunidade imperdível para os apreciado-

O início do século 19, com a chegada da

o Festival Internacional Sesc de Música, sediado

res do gênero, este evento é, certamente, a mais

corte de D. João VI ao Rio de Janeiro (1808) e a

em Pelotas. Este grande evento multifacetado

importante manifestação de música de câmara

abertura dos portos brasileiros ao intercâmbio de

inclui entre suas propostas, além do aspecto pe-

do Estado e uma das maiores do País.

bens materiais e culturais, pode ser caracterizado

dagógico e da inclusão social, uma extensa pro-

como um ponto de renovação nas práticas musi-

gramação de apresentações musicais em diversos

cais no Brasil. A partir deste momento consolida-

espaços – todas com entrada franca – na qual

-se um corpo de profissionais da música mais

destaca a série de recitais de música de câmara

numeroso e cosmopolita e também ampliam-se

a cargo do corpo docente do festival, composto

as possibilidades para novos formatos de práticas

por reconhecidos músicos do cenário nacional e

musicais, tanto de caráter público como priva-

internacional.

proporcionou um ambiente cultural que fosse muito propício às formas de sociabilidade que

do. Desta significativa mudança surge, assim, no

Esta série por mim coordenada e apresen-

Brasil, o que hoje poderíamos entender como um

tada inicia cada recital com informações sobre

público de música de concerto.

os compositores e sobre as obras. Desde sua

Na atualidade, a prática da música de câma-

primeira edição, em 2011, vem oferecendo ao

ra no Brasil encontra-se bastante difundida, mas

público as mais representativas obras do re-

gregando celebrados músicos da Orquestra Filarmônica de Berlim, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e da Orquestra Sinfônica da Bahia.


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

34

Sonoridade nada convencional A percussionista brasileira Clarissa Severo de Borba,

Coordenadora do departamento de percussão

realizando concertos em cidades da Europa, dos

no Conservatório de Le Mans, França, Clarissa

Estados Unidos, da China e do Brasil.

Severo de Borba é professora do Festival In-

integrante do cenário

ternacional Sesc de Música desde a primeira

francês da música

edição, em 2010. Natural de Santa Maria, a per-

Comecei meus estudos musicais aos cinco

cussionista foi aluna de Ney Rosauro e, nos Es-

anos, primeiramente, ao piano e à flauta.

tados Unidos, de Mark Ford e Chistopher Deane,

Esses primeiros anos foram muito impor-

período em que também desenvolveu estudos

tantes, pois são determinantes na aprendi-

Sesc de Música, de 18 a 29 de

de composição musical que resultaram em suas

zagem musical, onde se descobre a vocação

janeiro, em Pelotas

primeiras obras escritas para percussão solo e

musical. Foi somente aos 12 anos que me

para grupos de música de câmara. Nesta época,

interessei pela percussão, após assistir a um

também iniciou pesquisa sobre as possibilidades

concerto do Grupo de Percussão da Univer-

técnicas, convencionais e não convencionais dos

sidade de Santa Maria (UFSM), dirigido, na

instrumentos de percussão, embrião para uma

época, pelo professor Ney Rosauro. Comecei

sólida carreira na França, onde faz parte da cena

a ter aulas no curso extraordinário de músi-

de música contemporânea e de improvisação,

ca desta instituição e, em 1992, fiz vestibular

contemporânea, dará curso no 6º Festival Internacional

Projeto solista “Que serais-je sans jardin” Fotos: Arquivo pessoal

Como foi o teu início na percussão?


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

35

professores Mark Ford e Christopher Deane,

positor foi uma das razões pelas quais eu

grandes nomes no mundo da percussão e ex-

sempre quis fazer música... buscar novos ca-

celentes professores. Estes dois anos de mes-

minhos, novas sonoridades, novas maneiras

trado foram, talvez, os mais importantes na

de escrever e compreender a música, correr

minha formação, pois foi neste momento que

riscos, sempre ser curioso. Aliás, na minha

comecei a descobrir a grande diversidade dos

opinião, um artista sem curiosidade é um

nossos instrumentos, os tipos de estética di-

artista sem interesse.

ferentes, as metodologias de ensino variadas e as passarelas existentes entre as artes em

Tua atuação pedagógica exige muito e

geral. A possibilidade de estudar e conhecer

mesmo assim continuas com a carreira

outros repertórios com professores especia-

ativa em espetáculos diversos. Uma

lizados, outros instrumentos (em especial de

atuação retroalimenta a outra?

world music, que são muito presentes nas

Minha ideia era ficar somente dois anos na

universidades americanas), enriqueceram

França, mas fui ficando, trabalhando com

muito minha maneira de tocar e de pensar

músicos e orquestras. Em 2006, fiz concurso

a música. As múltiplas conversas e experiên-

para ser professora nos conservatórios da

cias artísticas que tive com meus professores,

França, passei e, desde então, sou professora

sobretudo, Christopher Deane, me fizeram

no Conservatório de Le Mans. Também fui

descobrir que caminho eu queria percorrer

professora de percussão nos conservatórios

dentro desta família de instrumentos que é a

de Alençon e Cholet. O trabalho pedagógico

percussão: A música contemporânea e a pes-

é muito importante para os músicos. Poder

quisa do material sonoro.

transmitir

para o bacharelado de percussão. Também

Depois do mestrado, a University of Miami

as descobertas e adaptar-se aos diversos

neste período fazia cursos no Rio de Janeiro

me propôs uma bolsa de estudos para o

alunos enriquece muito. Claro que é difícil

com o professor Luiz Anunciação, o Pindu-

doutorado, e ali estive de 1999 a 2002 dan-

conciliar os concertos, as aulas e a vida de

ca, um dos pioneiros da pedagogia percus-

do aulas, dirigindo o grupo de percussão,

família, ainda mais agora que sou mãe, mas

siva no Brasil. Foram muitos os concertos,

atuando como percussionista na orquestra

se organizando tudo é possível.

festivais e cursos durante esta época de

de Miami, além do curso. Uma época de

Acho muito importante para os alunos que

bacharelado sob a orientação do professor

efervescência de ideias musicais, de en-

eles tenham professores que estejam na vida

Ney Rosauro. Minha formação se deu em

contros determinantes com compositores,

real de músicos, ou seja, tocando, atualizan-

1996; em 1997, após concurso, ganhei uma

de estreias de peças escritas para mim e de

do-se, aprendendo repertório novo e não

bolsa de estudos integral da Fundação Vi-

concertos múltiplos nos Estados Unidos, na

repetindo as mesmas músicas de 20 anos

tae de São Paulo para fazer meu mestrado

Europa e na China. Em 2003, após ter fei-

atrás! Temos a sorte de que nossos instru-

no exterior. Não existiam muitas universi-

to concurso para um ensemble de música

mentos são tão diversos e o repertório está

dades no Brasil com a possibilidade de fazer

contemporânea em Paris, me instalei nesta

crescendo cada vez mais. É importante que

estudos de percussão clássica e, além disso,

cidade e continuei meu trabalho voltado à

o percussionista de hoje aprenda a música

nenhuma oferecia mestrado. Hoje em dia,

música contemporânea e às extended tech-

do seu tempo, tente compreender os no-

os músicos brasileiros têm a possibilidade

niques para instrumentos de percussão, ou

vos processos musicais, as novas estéticas,

de fazer estes cursos superiores no Brasil

seja, maneiras não convencionais de tocar,

utilize a tecnologia de maneira inteligente

com excelentes professores.

pesquisar sonoridades que não temos o há-

e, sobretudo, que encontre compositores

bito de explorar nos instrumentos.

com quem possa trabalhar. Explorar a mú-

Estudar em outro país foi determinante

Na França, tive a oportunidade de tocar com

sica profundamente e buscar sempre novas

para o teu trabalho?

excelentes músicos e também de participar

maneiras de tocar. Desde 2013, também dou

Meus estudos de mestrado foram feitos na

do grupo de Pierre Boulez, em 2003 e 2004.

aulas nos conservatórios da aglomeração

East Carolina University, sob a orientação dos

Uma experiência incrível, já que este com-

Francilienne, em paralelo aos espetáculos de

conhecimentos,

compartilhar


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

36

percussão, como solista, e com orquestras,

mentos. Porque esse festival, ao trazer tantos

Colômbia, é excelente. O festival está cada vez

grupos de teatro, artes plásticas etc.

professores de países diversos, promove o

mais ultrapassando fronteiras e o objetivo é

intercâmbio entre culturas diferentes. E esta

ir cada vez mais longe. Pela diversidade das

Com um olhar de fora, mas que também

é uma parte muito importante do festival.

estéticas que são trabalhadas, do background

é de dentro, qual a tua percepção do

Evidente que os professores que estão atuan-

dos professores e dos próprios alunos – se

Festival Internacional Sesc de Música?

do em universidades brasileiras também são

eu fosse aluna, ia adorar fazer este tipo de

Desde a primeira edição, pude ver como evo-

relevantes e serão sempre a referência mais

evento.

luiu em todos os aspectos: logística, nível dos

importante para os alunos, mas os que vêm

Como professora, o que me motiva a parti-

alunos e logística da cidade. Na percussão,

de fora proporcionam esta abertura, esta ja-

cipar é encontrar alunos novos, poder me

é sempre muito complicado, porque aquele

nela para o que está acontecendo no mundo

adaptar, sanar as curiosidades, poder fazer

aluno que faz violino leva seu instrumento;

musicalmente. Para mim, é uma alegria fazer

este tipo de troca: você me mostra o que está

na percussão, é diferente. O evento tem que

parte desde o princípio e ver o festival crescer

acontecendo com você e eu mostro o que

disponibilizar os instrumentos. No primeiro

a cada ano.

está acontecendo comigo, como podemos

festival, os instrumentos não permitiam mais

Na edição de 2016, foram muitos os músicos

colocar estas coisas juntas e qual é o resulta-

de oito, nove alunos. Ainda antes do segundo,

inscritos na percussão, mais de 50 para 12

do disso. Acho que para o professor não tem

o Evandro Matté (coordenador do festival) fez

vagas, e isso é bastante raro no Brasil, onde

nada melhor do que estar em contato com

contato comigo para eu intermediar a com-

normalmente não passam de 20 a 30 inscri-

alunos com vontade de tentar experimentos

pra com uma empresa francesa, fabricante de

tos. A seleção foi muito difícil, porque o nível

novos e depois vê-los fazendo e indo cada vez

instrumentos de percussão, e consegui que

dos músicos de diversos estados do Brasil e

mais longe. Não tem sentimento melhor para

comprassem quase todo o material pela me-

de países como Chile, Uruguai, Argentina e

um professor.

tade do preço. E agora vai ter ainda mais, por-

A cada ano, temos alunos novos. Alguns vêm

que a Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

desde o primeiro ano e fazem contato du-

comprou o instrumental completo. Essa evo-

rante o ano, aos quais envio partituras. Mas

lução é muito importante para nós. Quanto

uma das coisas que mais me motiva para este

mais instrumentos, mais alunos podem parti-

tipo de evento é compartilhar nossos conhe-

cipar, porque não podemos ter uma marimba,

cimentos musicais, porque os alunos também

um xilofone para vários alunos; temos que

têm os seus, e principalmente poder, ao final

proporcionar material suficiente para o tra-

do festival, pensar ‘eu pude tirar essa dúvida

balho individual de todos os alunos e também

e colocar o aluno num caminho que ele não

para poder trabalhar repertórios diferentes.

conhecia’. É superimportante. É poder mostrar

Além desta questão prática, eventos des-

que não há só uma maneira de fazer, é dar

te tipo no Rio Grande do Sul são essenciais

uma sugestão – sem jamais impor a sua pró-

para os alunos, ainda que a internet possibi-

pria maneira, porque o aluno que vem já está

lite toda esta abertura para o mundo, o que

adiantado e o bom professor tem que mostrar

representa um avanço enorme para quem

com muita tática o motivo pelo qual o outro

utiliza com inteligência. Mesmo que, hoje,

caminho seria melhor. Esse tipo de evento va-

diferente da minha época de estudante do

loriza isso.

bacharelado, a internet possibilite pesquisar músicas novas no YouTube, por exemplo, e o contato com professores durante o ano inteiro, o que representa muito em termos musicais, é essencial que – pelo menos uma vez por ano – os alunos tenham este contato direto, físico, ao vivo, com alguém que vem de fora, seja na percussão ou em outros instru-


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

POR Sylvia Leticia Guida, Graduada em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Especialista em Educação Musical pelo Conservatório Brasileiro de Música. Pós-graduada em Gestão e Marketing na Cultura pela Faculdade de Comunicação Social do Centro de Produção da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Cepuerj). Mestre em Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FVG). é professora de violino na Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec) e Assessora Técnica em Música no Departamento Nacional do Sesc, onde, juntamente com Gilberto Figueiredo e Thiago Sias, coordena o Sesc Partituras.

Este artigo foi baseado em parte da minha Dissertação de Mestrado Profissional “As possibilidades e os desafios para a disponibilização de acervos de partituras na internet: um estudo de caso do projeto Sesc Partituras”. Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/13690 1 Estamos chamando de música de concerto aquela cuja especificidade é a centralidade da partitura, que tem um papel fundamental tanto no processo de criação (composição), quanto na execução. Atualmente, para remeter-se a esse gênero de música, são utilizadas, no Brasil, principalmente três qualificações diferentes: “clássica”, “erudita” e “de concerto”. Cada uma delas reflete, por motivos diversos, certa posição política e estética de quem as adota, apesar de poderem ser usadas como sinônimos. Optamos, aqui, pela expressão “música de concerto”, pela intenção de delimitar não um gênero, mas uma forma de apreciação musical, de produção e de consumo da música. “Concerto” é um espetáculo musical, onde as pessoas vão exclusivamente para ouvir e apreciar música. 2 A Bienal de Música Brasileira Contemporânea, realizada atualmente pela Funarte, é considerada a mais abrangente mostra da música erudita contemporânea brasileira.

37

Sesc Partituras: um projeto de difusão da música brasileira de concerto A música brasileira de concerto

estejam estudando instrumentos de orquestra,

O Brasil possui imenso patrimônio de música de

apresentações públicas continua sendo basica-

concerto,[1] que reflete uma rica produção de diversos estilos e períodos. Essa produção, apesar de pouco divulgada, continua intensa, como podemos perceber, por exemplo, pelas Bienais de Música Brasileira Contemporânea,[2]que, em suas 21 edições – a mais recente realizada em 2015 –, receberam a cada evento inscrições de centenas de

No Brasil, embora cada vez mais jovens o repertório oficial dos cursos de música e das mente o mesmo, fundamentado nos “cânones” clássicos da música europeia. Acredito que o desconhecimento do repertório produzido no País explique-se, ao menos em parte, pela dificuldade de acesso às partituras.

novas obras originais. Apesar desses dados, a mú-

A música escrita

sica brasileira de concerto, tanto a histórica quanto

O desenvolvimento da notação musical foi o pri-

a contemporânea, ainda é bastante desconhecida

meiro grande marco na história da música, com-

dos intérpretes e do público e pouco presente

parável ao desenvolvimento da escrita. Acerca da

nos repertórios de orquestras, grupos de câmara

música de antes do advento de sua notação res-

e solistas no Brasil e no mundo. O dossiê de 2013

taram poucos vestígios inevitavelmente incom-

apresentado pela revista especializada “Anuário

pletos e obscuros, como instrumentos musicais

Viva Música!” reuniu o levantamento de dados da

ou imagens em pinturas.

atividade das 12 principais orquestras brasileiras e

Foi no século 11 que o monge Guido d’Arezzo

comprovou que a porcentagem de repertório de

colocou os neumas sobre um sistema de quatro

música brasileira nas apresentações no ano não

linhas, que evoluiu para a notação usada até hoje.

chegou a 24% na média em relação ao volume de

No século 15, foi inventada a prensa de Gutenberg

música estrangeira.

e, desde logo, a imprensa foi aplicada à música. As


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

38

3 A expressão “música ligeira” é utilizada em oposição à “música séria”, no sentido de “erudita”. Até o século 20 não existia o conceito de música popular urbana como entendemos hoje. A música popular era sinônimo de folclórica. Eram chamadas de “música ligeira”, por exemplo, a música de dança, do teatro de variedades e as canções. 4 Manuscritos autógrafos são aqueles produzidos pelos próprios compositores. 5 O direito moral é atribuído ao criador da obra e não pode ser transferido ou vendido. Já o direito patrimonial, que permite explorar comercialmente a obra, pode ser transferido a terceiros, incluindo empresas.

obras manuscritas eram compostas para execu-

poucos passa à mera administração dos direitos

A partitura é mais do que um documen-

ção local e sua circulação era restrita, mas, com

patrimoniais[5] das obras na inclusão em fono-

to histórico, mas a despeito disso nunca houve

a consolidação da imprensa musical no século

gramas, filmes cinematográficos e publicitários.

efetivamente no País uma política voltada para

19, as obras puderam ser distribuídas massiva-

Hoje, as poucas editoras que ainda editam par-

a difusão de partituras da música brasileira, que

mente e esse fato contribuiu decisivamente para

tituras impressas, em geral, são pequenas inicia-

sempre ficou à mercê de um mercado inexistente.

transformar a música em mercadoria.

tivas individuais.

Houve iniciativas isoladas e muitas vezes pessoais

A notação musical possibilitou a perpetuação de todo um patrimônio e uma nova forma

que não fizeram parte de uma política pública. Podemos citar, na primeira metade do século 20, os

foi possível a criação de uma música complexa

O acesso e a preservação de partituras no Brasil

composta através da sintaxe musical, pensada

A grande parte da música brasileira que perma-

uma grande diversidade de tipos documentais re-

para grandes orquestras.

de criação e transmissão. Foi a partir dela que surgiu a figura do compositor na era moderna e

esforços do musicólogo alemão naturalizado uruguaio Francisco Curt Lange, um pioneiro nas pesquisas musicológicas na América Latina. Ele reuniu

neceu manuscrita ficou em acervos documentais

lacionados à música latino-americana dos séculos

O mercado da música impressa deu-se no

públicos ou pessoais, e não houve historicamen-

18 e 19, o que incluía muitos manuscritos musicais

Brasil a partir da fundação da Imprensa Régia

te uma política direcionada para a preservação e

e cópias de partituras. Porém, somente em 1995

em 1808. A partir de então, foi crescendo e fir-

difusão do conjunto dessas obras. Durante mais

o seu arquivo pessoal foi integrado à Universida-

mando-se, provocando transformações nos pro-

de 60 anos, o principal órgão de preservação do

de Federal de Minas Gerais sob a denominação de

cessos de produção musical e tornando os edi-

patrimônio no Brasil foi o Sphan, atual IPHAN –

Acervo Curt Lange-UFMG (ACL-UFMG).

tores de partituras os primeiros empresários da

Instituto Nacional do Patrimônio, cuja política era

Durante as décadas de 1970 e 1980, o com-

indústria da música. Do processo lento e do alto

centrada no tombamento de monumentos e pré-

positor e produtor musical Edino Krieger foi im-

custo da confecção de partituras decorria que o

dios históricos.

portante divulgador da música brasileira, em espe-

lucro era gerado pelo número de vendas. E por

Somente a partir da Constituição Federal de

cial a composta na segunda metade do século 20.

este motivo, o foco dos editores era a “música

1988 que o conceito de patrimônio ampliou-se,

Edino apoiou, ampliou e criou programas de difu-

ligeira”, que podemos chamar hoje de popular,[3]

sendo incluídos, no artigo 216, como constituintes

são da música brasileira, editando e disseminando

especialmente canções acompanhadas ao piano,

de patrimônio cultural brasileiro, os bens de na-

partituras. Em 1981, Krieger assumiu a direção do

vendidas para execução em saraus caseiros.

tureza material e imaterial. Este alargamento do

Instituto Nacional de Música da Funarte (INM),

Podemos dizer que o mercado editorial

conceito de patrimônio é fundamental para pen-

dando início a um período de grande impulso à

nunca foi muito rentável para música de con-

sarmos políticas de preservação para a música de

difusão da música no País, principalmente através

certo e, em decorrência disso, grande parte des-

tradição escrita, a qual possui como característica

do projeto Pro-Memus.

sa produção brasileira permaneceu em manus-

a dimensão tangível, representada, por exemplo,

critos, fossem autógrafos[4] ou de copistas, ou,

por instrumentos musicais e partituras em papel, e

com raras exceções, em edições estrangeiras.

ao mesmo tempo intangível, que é o conhecimen-

Com o advento da gravação no final do

to e a tradição que conserva viva a prática musical.

século 19, outra grande revolução ocorreu. A

Para preservarmos a música de concerto, é neces-

A internet e as novas possibilidades de acesso às partituras

partitura foi aos poucos adquirindo importân-

sário então tocá-la, renovando sua existência, pois

Ao logo da segunda metade do século 20, o de-

cia menor na música popular. Assim, o papel das

apesar de sua forte relação com a escrita, ela con-

senvolvimento das tecnologias da informação

editoras, fundamental na divulgação e no con-

tinua sendo uma arte essencialmente performáti-

enfraqueceu cada vez mais as fronteiras entre o

trole das obras, realizado através da publicação

ca, que só se materializa sonoramente no tempo e

digital e o físico. Hoje, o meio digital é utilizado não

e comercialização de partituras impressas, aos

em cada performance.

somente na interação com antigas formas de aces-


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

6 Fonograma é a fixação de sons de uma interpretação de obra musical ou de outros sons. Cada registro ou fonograma, portanto, é único e original. Essa fixação pode ser tanto em suporte material (CD, DVD, LP) ou digital (Mp3).

39

so à cultura, como também na produção e difusão

lização instauram um novo paradigma de difusão

na escrita musical ou cujo manuscrito se perdeu;

de bens culturais. Com a criação, a produção, a

do repertório da música de concerto, possibilitando

na divulgação de revisões de musicólogos.

difusão e o acesso aos bens culturais possibilitados

o acesso e a localização de obras. As possibilidades

Lançado em 2012, o Sesc Partituras tem

pelas novas mídias digitais, não só grande parte da

são inúmeras não só através de catálogos online,

sido elogiado por compositores e intérpretes.

produção cultural já nasce no meio digital, como

como também por meio de acesso direto a obras

Seu acervo vem crescendo constantemente e já

é transferida para ele. É fundamental, então, re-

completas para download. As editoras têm seus

quadriplicou de volume, tornando-se o site com

fletirmos sobre a salvaguarda da memória cultural

catálogos na web. Entre os compositores contem-

maior conteúdo exclusivamente brasileiro dis-

e artística na era da internet. Entre os espaços de

porâneos, a tendência é que eles próprios editem

ponível integralmente para download gratuito.

memória estão os acervos e as bibliotecas digitais,

digitalmente e divulguem suas obras em páginas e

Conta atualmente com mais de 2 mil obras de

que vêm recebendo grande atenção das políticas

blogs próprios. Para o repertório histórico, muitos

222 compositores de 25 estados. Com o intuito

públicas no Brasil nos últimos anos.

acervos e bibliotecas estão disponibilizando catá-

de somar forças para a divulgação da música bra-

Quando pensamos em novas mídias digitais

logos online com sistemas de busca elaborados;

sileira, o Sesc Partituras também realiza parcerias

aplicadas à difusão da música, habitualmente ten-

outros, até oferecerem download da obra comple-

com outras instituições ligadas à música brasilei-

demos a focar no acesso ao fonograma[6] por meio

ta. Entretanto, a maior parte das iniciativas ainda é

ra, que permitem o acesso aos seus acervos por

do compartilhamento, download ou streaming.

isolada e carece de divulgação.

meio da busca em nosso site.

O conhecimento formal da música, que inclui a prática de leitura e escrita musical, é muito pouco

Entre os destaques do acervo temos compositores consagrados como Guerra-Peixe, Francisco

nais e, talvez por esse motivo, as partituras tenham

O projeto Sesc Partituras

sido durante muito tempo esquecidas pelas políti-

O Sesc Partituras é um site que difunde a música

Brasileira de Música (ABM), com o intuito de dispo-

cas públicas de cultura.

difundido. Ele acaba restrito aos músicos profissio-

Mignone, Lorenzo Fernandez e Villa-Lobos. Este último é resultado de uma parceria com a Academia

brasileira através da disponibilização de partituras

nibilizar parte da obra coral de Villa-Lobos da Cole-

Como vimos, não houve um mercado edito-

digitalizadas e editoradas para download gratuito.

ção Escolar de Canto Orfeônico, ainda em fase final

rial forte na música de concerto no Brasil, e cada

O projeto é um aperfeiçoamento do Banco Digital

de revisão musicológica, para publicação no site.

vez mais esse mercado diminui. Hoje, praticamente

Sesc de Partituras, que, iniciado em 2007, implan-

Entre os compositores contemporâneos de

não existem lojas físicas, e nas poucas editoras e

tou computadores com acervo de obras digitaliza-

destaque internacional temos, para citar alguns,

lojas especializadas ainda ativas as opções de tí-

das em 17 unidades do Sesc e programas de edi-

Edino Krieger, Ernani Aguiar, Villani-Côrtes e o vio-

tulos nacionais são bastante limitadas. Essa situ-

toração de partituras, tornando-se um importante

lonista e compositor Sebastião Tapajós.

ação reflete-se na escassez de repertório brasileiro

subsídio de pesquisa para estudantes dos cursos

disponível para aquisição ou empréstimo nas bi-

do Sesc e músicos locais. Em 2010, iniciou-se um

bliotecas especializadas que dependem da música

processo de reestruturação visando à ampliação

impressa. Além disso, por questões de direitos au-

de seu alcance com disponibilização das partituras

A série Concertos Sesc Partituras

torais, não é possível reproduzir ou fazer emprés-

pela internet através de um sistema de buscas vol-

Cumprindo o objetivo de divulgar a música brasi-

timos de partituras na maior parte das bibliotecas

tado principalmente para intérpretes.

leira, a série realiza sistematicamente a execução

brasileiras, condição fundamental para um intér-

O projeto atua: na editoração de manuscri-

das obras de seu acervo para o público por meio de

prete estudá-las e executá-las. Se as obras impres-

tos originais de interesse histórico, muitos deles

concertos em todos os estados do Brasil. Em suas

sas são raras, o acesso a manuscritos dos acervos é

pertencentes a acervos particulares; na recepção e

11 edições já realizadas, a última em novembro de

dificultado pela fragilidade dos originais.

publicação de obras de compositores contemporâ-

2015, foram 231 concertos com a participação de

Nesse cenário, a internet, a popularização dos

neos, muitos ainda pouco conhecidos; na transcri-

cerca de 2 mil músicos.

programas de editoração de partituras e a digita-

ção para a partitura de obras ainda não registradas


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

40

festival de música de rua

Conexão entre a boa música e o público Um encontro entre diversos gêneros musicais, da

de concerto em pontos de ônibus, por exemplo,

As inscrições para os músicos participarem

música erudita à eletrônica, passando por jazz,

e isso facilitou para que chamássemos a atenção

do festival, que também terá atividades na Apae

música regionalista e pelo rock, em praças, esta-

também dos meios de comunicação tradicionais.

e na Apadev, como forma de democratização do

ções, pontos de ônibus e outros locais de grande

Tem muita gente disposta a recolocar a música

acesso à cultura, permanecem abertas duran-

circulação de pessoas na Serra gaúcha, é o que

bem-elaborada no lugar dela. Os jornalistas têm

te todo o ano. Os critérios de seleção priorizam

propõe o Festival Brasileiro de Música de Rua.

sido parceiros fundamentais nessa tarefa.”

a criatividade, a inovação, a técnica e a mensa-

O evento, que nasceu em Caxias do Sul, quase

O festival tem como objetivos principais o

gem poética. “Música instrumental, música auto-

como um “grito de desespero”, nas palavras de

resgate do valor da música e a aproximação dos

ral e música étnica ou tradicional têm preferência

seu coordenador e idealizador, o baterista Luciano

músicos com os espectadores, buscando contribuir

e não são aceitas músicas de apologia às drogas

Balen, conquistou visibilidade ano a ano ao levar

efetivamente para a formação de público para a

ou à violência”, afirma o coordenador. No total,

a música de qualidade onde o público está, ex-

música artística. Além disso, promove o encontro

estão previstas 60 apresentações, em horários e

pandindo sua territorialidade para outras cidades

de músicos de distintos gêneros, fomentando a di-

pontos de grande circulação de pessoas de Caxias

da região a partir de 2014 e, depois de quatro

versidade cultural, e une as cidades da Serra pelos

do Sul, Antônio Prado, São Marcos, Vacaria, Nova

edições realizadas, aumentou em 1.000% o orça-

laços da música, promovendo trocas entre artistas

Petrópolis, Flores da Cunha, Farroupilha e Bento

mento para edição 2016, por conta de concursos

locais e internacionais. Outro aspecto é o encontro

Gonçalves.

públicos e parcerias, entre elas, com o Sesc, cor-

entre os músicos e agentes da cultura através das

O 5º Festival Brasileiro de Música de Rua

realizador desde a última edição, juntamente com

conferências “Negócio da Música”, realizados pela

será realizado de 1º a 10 de abril de 2016, com o

a Incubadora da Música.

Incubadora da Música, visando à promoção de ar-

mote União dos Extremos, uma espécie de pedido

tistas e grupos estreantes, bem como a democrati-

de paz, segundo Balen. “Nestes tempos em que

zação do acesso à cultura.

todo mundo fala o que pensa, doa a quem doer…

“Falo em ‘grito de desespero’ porque, para a grande maioria das pessoas, a música perdeu o status de arte. Ela se tornou diversão, entrete-

Balen ressalta que, com a decadência das

Precisamos voltar a conversar. Abrir diálogo! No

nimento. Muitos não conseguem ir a um show

grandes gravadoras, o “negócio da música” mudou

caso do Rio Grande do Sul, que sempre foi um es-

para simplesmente ouvir música bem-elaborada.

muito. “Antes, quem fazia o filtro eram as gravado-

tado muito fechado em suas tradições, conside-

A televisão brasileira, com sua programação du-

ras e, com o advento do download gratuito, tudo

ro importante olharmos para outros estados. Se

vidosa e cada vez mais apelativa, contribui muito

mudou. Agora, talvez não tenhamos tantos filtros.

quisermos levar a música produzida no RS para

pra isso. Temos quase duas gerações inteiras que

A internet dá acesso a qualquer música de qual-

a parte de cima do Brasil, precisamos ouvir e co-

não dão nenhum valor pra música como arte”,

quer lugar do mundo. Acho que alguns músicos

nhecer a música de lá. É como refazer a amizade.

explica Luciano. O músico utiliza o termo “música

encontraram a rua como uma vitrine. E, afinal de

Mas tem uma mensagem mística nisso também.

bem-elaborada” para definir qualquer gênero que

contas, não é assim que fazem os pássaros? Eles

Acho que é chegada a hora de aprendermos a

busque uma proximidade maior com a arte, com

não cantam, independentemente, de ter alguém

viver com as diferenças de entendimentos. É pre-

a poesia, com desafios sonoros, com surpresas,

assistindo?” Apesar de o festival se chamar de

ciso respeitar as escolhas. Falando como gaúcho,

com o que chama de “nó na orelha”.

“música de rua”, são poucos os artistas genuina-

acho que é chegado o momento de se sentir bra-

Segundo o baterista, ele e seus parceiros na

mente de rua que participam. “Na verdade, a gente

sileiro. Pertencente a uma nação. Ou, quem sabe,

concepção do festival – todos músicos – sentiram

coloca na rua a música que normalmente não está

ser um gaúcho, brasileiro e latino-americano?

que precisavam colocar música de qualidade em

em locais abertos. A gente vai ocupando os espa-

Acho que é isso! Dar uma atenção às questões de

locais públicos, onde as pessoas não poderiam dei-

ços, imitando os passarinhos! Se vai ter alguém pra

pertencimento.”

xar de notar. “Por isso, apresentamos jazz, música

escutar, isso já não depende da gente.”


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2015

41

Evento realizado na Serra gaúcha leva música de qualidade para locais de grande circulação Fotos: Marcelo Casagrande


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

POR Flávia Seligman,

42

Cineasta e professora de cinema da Unisinos e da ESPM-Sul

A delicadeza de cada um: três documentários gaúchos O ano de 2015 foi marcado

Sua selfie. Cássio faz várias selfies, filmando a

Castanha conta sua história com a ajuda da

pela estreia e exibição de

si mesmo e a família, garantindo ao filme um

mãe, de colegas e de amigos, recriando o dia a

ar de registro bastante moderno.

dia, misturando realidade e ficção. Não se sabe o

documentários em

De busca também parece ser o outro do-

que é verdade e o que os realizadores gostariam

longa-metragem. São filmes

cumentário da safra, Filme sobre um Bom Fim,

heterogêneos, na sua maioria

de Boca Migotto. Através de depoimentos e

A grande ligação entre estes três filmes é a

material de arquivo, o diretor reconstitui a cena

forma como as narrativas são conduzidas. Ma-

cultural dos anos 1980 na cidade de Porto Ale-

maliga é narrado na primeira pessoa. Tolpolar

gre, mais especificamente neste bairro. Música,

conta a sua própria história, junto com o pai e a

se destacam da produção

teatro, cinema, contracultura, aids. A euforia do

irmã, e vai conduzindo o espectador como se ele

contemporânea brasileira.

pós-ditadura dá lugar para um período de in-

estivesse em casa.

certezas sociais. O filme foi um sucesso. Conse-

No filme sobre o Bom Fim, os entrevista-

Os filmes são jovens, mesmo quando falam de

guiu o que nenhum outro longa gaúcho havia

dos falam com tanta intimidade da sua parti-

um passado longínquo, como é o caso de Ma-

conseguido: 10 semanas em cartaz numa sala de

cipação na cena cultural que ela parece voltar

maliga blues, de Cássio Tolpolar, no qual o di-

cinema. A busca da própria história, uma histó-

à tona, com toda a força. As histórias de cada

retor leva o pai, filho de imigrantes judeus, no

ria recente, mas ao mesmo tempo distante, um

um tornam-se memórias de toda uma geração.

início do século 20 de volta à Moldávia para

período de alegria e de boas perspectivas con-

Isto foi tão forte que o filme acabou ficando 10

encontrar o túmulo de seus antepassados. As

trastando com o que se apresenta hoje.

semanas em cartaz em salas alternativas da ci-

de jovens realizadores, que se alinham e, ao mesmo tempo,

que fosse verdade.

únicas referências que possuíam eram alguns

Migotto conversa com protagonistas da agi-

dade, primeiro no cinema do Santander Cultural

nomes de cidades e uma foto que o avô tira-

tação dos anos 1980 como se estivesse tomando

e depois na Casa de Cultura Mario Quintana,

ra ao lado da lápide, antes de partir. No seu

uma cerveja nos bares da época. Olhos nos olhos,

com algumas sessões lotadas e formando filas

primeiro longa de busca, e aqui usa-se “busca”

as memórias vão surgindo, como na entrevista

para ingresso.

para classificar um documentário que estabe-

com o escritor Eduardo “Peninha” Bueno.

Em Castanha, entramos na casa do prota-

lece um objetivo e tem no próprio filme a sua

O terceiro filme, Castanha, é um documen-

gonista, acordamos e dormimos com ele, con-

metodologia, mostra trajetórias, e na sua maio-

tário/ficção. Um docudrama, gênero híbrido que

versamos com a mãe do ator, que dramatiza seu

ria (pelo menos as que estudamos e contamos

dramatiza fatos reais. Quem busca um docu-

próprio papel. Nos misturamos numa história

aqui), na primeira pessoa. Uma experiência

mentário sobre a vida e a obra de João Carlos

de vida bastante peculiar, com detalhes íntimos,

própria e tão só por isto pode ser registrada

Castanha, ator porto-alegrense com grande par-

como os amores passados do protagonista e a

desta maneira, com o olhar do realizador au-

ticipação no cinema e no teatro desde a movida

relação com o sobrinho, usuário de drogas.

tor, senhor do seu método, da sua busca e da

cultural dos anos 1980, encontra uma recriação,

elaboração de sua trajetória/forma de registro.

feita pelos próprios protagonistas.

Esses documentários marcaram um ano de longas-metragens, que ainda contou com o


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

43

Mamaliga blues

Fotos: Cássio Tolpolar / Divulgação

Castanha

Fotos: Tokyo Filmes / Divulgação

Filme sobre um bom fim

Foto: Epifania Filmes / Divulgação

filme de estreia de Márcio Reolon e Felipe Matzembacher, Beira Mar. Uma viagem sensível e adolescente nas descobertas. Também Dromedário no asfalto, de Gilson Vargas, no qual um homem (Marcos Contreras) viaja ao Uruguai à procura do pai. Em todos esses filmes há uma procura que pode ser colocada também como a própria procura do cinema gaúcho do seu lugar. São filmes simples, mas não simplórios. Com orçamentos bem mais apertados do que os longas do centro do País, porém com uma delicadeza extrema em contar pequenas histórias. E estes pequenos e delicados relatos vão tornando-se grandes e revelando um cinema que se afirma.


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

Por Marco Aurélio Fialho,

44

assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do Sesc

MR. FAKER:

Orson Welles e a autoria na indústria do cinema Criador de Cidadão Kane, filme que até hoje, quase 75 anos depois de lançado, ainda é considerado por muitos críticos o mais relevante da história da sétima arte, completaria 100 anos em 2015 “Arte é uma mentira. Uma mentira que

nessa perspectiva e de serem um embate perma-

radas por críticos de todo o mundo como o mais

nos faz perceber a verdade.”

nente entre o que é verdade e o que é mentira,

relevante filme da história do cinema. E o surpre-

Pablo Picasso

mais especialmente de como se tece um e outro.

endente, Welles realizou o filme com apenas 25

Para Welles, eles são uma moeda de duas faces,

anos de idade.

Chamar Orson Welles pela alcunha faker (impos-

retroalimentada incessante e ininterruptamente.

Quando relacionamos Welles com transborda-

tor) não chega a ser, neste caso específico, incrimi-

A genialidade de Welles, tão propalada por

mento, o fazemos no intuito de melhor compreen-

nador, tampouco soaria como elogioso, mas seria

seus contemporâneos, e incluindo nesse con-

der seu universo artístico a partir de sua personali-

justo. Entretanto, todo cineasta deveria se orgulhar

texto os críticos de cinema de todos os tempos,

dade marcante que se esparrama em seu trabalho,

de ser chamado de prestidigitador, pois que no fim

ganhou força graças a sua visão audaciosa e às

tal uma digital, com um impulso autoral insinuante,

das contas todos o são mesmo. Welles nada mais

vezes exagerada e transbordante sobre o cinema.

como se fora uma mácula irrefreável e irreprimível.

fez do que dignificar essa obviedade profissional, e

Até a sua faceta de ator sempre fora enigmática e

Transbordante talvez seja uma boa palavra

buscou, ao longo de sua tumultuada carreira, criar

barroca, capaz de provocar assombros no especta-

para definir Orson Welles. Identifica-se nele a exis-

um conceito estético em suas obras, nas quais o

dor. Ele funcionava como um ímã para os espec-

tência de algo para além do artista criador, que res-

uso do falso fosse compreendido como intrínseco

tadores, roubando a ação, como frequentemente

vala ali e se amplia na sua personalidade. Diretor

ao próprio fazer artístico. O falso como essência da

se costuma dizer. Quase sempre atuava como

de cinema e teatro, radialista, ator de cinema e tea-

própria arte, como pilar construtivo irrevogável e

protagonista em seus filmes, o que conferia uma

tro, roteirista, prestidigitador, artista múltiplo. Pela

inevitável desse processo.

faceta única a seus trabalhos, sua presença servia

imponência de sua presença e de suas ideias cul-

Somos sabedores que o ilusionismo constitui

para dar o tom na construção dos personagens

tivou muitos inimigos, em especial em Hollywood,

a base do cinema. Segundo o Dicionário Houaiss

dos atores que contracenaram com Welles. Dirigir

mas também uma imensidão de admiradores que

da Língua Portuguesa, ilusionismo seria “a arte de

e protagonizar lhe conferia esse benefício artístico.

não cansam de vê-lo como gênio, excêntrico e

criar ilusão por meio de artifícios e truques; pres-

Corpulento, alto e com olhar confiante e afir-

polemista. Welles esforçava-se em fazer um cine-

tidigitação”. Portanto, fica difícil separar o cinema

mativo, Welles possuía uma presença imponente.

ma autoral em meio a maior indústria do cinema

do ilusionismo. O ilusionismo é intrínseco ao ci-

Logo em seu primeiro longa-metragem, Cidadão

mundial e pagou um alto preço por essa escolha.

nema. Welles entendeu isso desde sempre e esco-

Kane (1941), deixou perplexo o meio cinemato-

O transbordamento não é aqui utilizado tão

lheu o cinema como sua forma de expressão, por

gráfico da época. Apesar de criticado nos Estados

somente para definir sua obra, mas também como

compreendê-lo por esse viés. Nenhuma linguagem

Unidos, o filme foi descoberto pelos intelectuais

um ponto referencial e de integralidade. Assim, a

artística é tão eficiente em iludir quanto o cinema.

franceses após o fim da Segunda Guerra Mundial,

personalidade de Orson Welles está rigorosamente

Em sua própria constituição, inclusive os filmes de

em 1945, e, desde então, o filme de Welles está

presente em tudo que fez na carreira, e até fora

Welles são paradigmáticos e podem ser analisados

presente em praticamente todas as listas elabo-

dela, isto é, sua aparição deve ser entendida sem-


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

45

Fotos: Frames extraídos do filme Cidadão Kane

pre como um acontecimento, seja como diretor

processo de produção dos estúdios hollywoodia-

das a partir de seu imaginário político e filosófico,

seja como ator ou em qualquer outra função que

nos, sua inconformidade ao status quo. Numa ob-

da sua visão ontológica, mesmo sabendo que elas

tenha desempenhado ao longo de sua vida.

servação superficial, se considera primeiramente

se assemelhem com as de David contra Golias.

Nesse enfoque do transbordamento, a busca

as aparências de que Welles nada mais é que um

Essas relações eram penosas e inglórias realmen-

da verdade não pode ser considerada como essen-

lunático, um derrotista a enfrentar ingloriamen-

te, mas refletiam bem sua obsessão em realizar

cial na concepção de seus filmes, pois ela tende

te os poderosos estúdios e seus produtores. Mas

plenamente seus anseios artísticos e não era só

ao exato, à precisão, à crueza, enfim, ela tem que

quando imergimos em seus projetos e compreen-

uma questão de terminar seus projetos a todo o

ser. Já o falso não, ele precisa ser convicentemente

demos sua visão artística, construímos outra con-

custo. O pensar wellesiano não era propriamente

over para poder ser aceito, não precisamente como

cepção a seu respeito. É notória sua predileção

finalístico e sim processual.

ele é, falso, mas para poder parecer indubitável e

por certas obras como Don Quixote (Miguel de

No decorrer de sua carreira, quem mostrou

inequivocamente verdadeiro.

Cervantes), O processo (Franz Kafka) e O coração

maior dificuldade em lidar com a personalida-

Quando relacionamos Welles com transbor-

da selva (Joseph Conrad), que materializam a luta

de marcante de Welles foram os produtores de

damento, o fazemos pensando que nele reside

de homens contra processos de aprisionamento

Hollywood, que dificilmente conseguiam dobrá-lo.

certa insanidade, não uma insanidade pela insani-

do indivíduo. Assim, as diversas batalhas de Wel-

Welles sabia o que queria e era constantemente

dade, mas sim advinda pela sua não aceitação do

les contra donos de estúdios devem ser analisa-

acusado de ser intolerante, lutava para ter o con-


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

46

1 Welles (1986). 2 Welles (1986, p. 84). 3 Welles (1986).

trole artístico de sua obra, o que é bem compreensível para um criador.

Esses embates impregnam a obra de Welles

central na construção da obra wellesiana. Como

e não podem ser desvinculados dela. A sua obra

desdobramento, podemos também desmembrar

Quanto ao seu espírito inconformado, certa

nos interroga o tempo todo sobre a possibilidade

outros temas adjacentes, tal como os da traição,

vez o próprio disse: “Os santos e os artistas não

de realização autoral dentro do processo produ-

do assassinato, da inveja e das crises de consciên-

se evidenciaram na história pelo seu conformis-

tivo de uma grande indústria, repleta de chefões

cia. Ressalta-se sua visão crítica acerca de como

mo, e é um fato evidente, mas esquecido, de que

poderosos e endinheirados. A análise atenta de seu

os poderosos exercem seu macro e micropoderes,

não existe arte ou artista domado, dominado ou

processo criativo deve esbarrar, inevitavelmente,

como os organizam e os estruturam.

posto de quatro.”.[1]

nessa tensão entre artista/criador e indústria.

Welles chegou a declarar sua visão acerca da arte e que contrastava radicalmente com o

Pelo seu humanismo radical, de colocar usualmente o indivíduo como elemento central de sua obra, muitos críticos o definem como um

fala é bem clara a respeito: “Hollywood trata

WELLES, UM DEMIURGO CONTEMPORÂNEO

todo mundo mal. Tudo que alguém seja capaz

“A palavra ‘gênio’ foi a primeira que ouvi,

também reforça esse caráter renascentista de

de declarar sobre Hollywood é verdade. Mas

quando ainda estava no berço. Assim,

Welles. A relação poder, crise de consciência e

eu me sentia melhor, mais à vontade, quando

até chegar à meia-idade, nunca pensei

traição são temas congruentes nas obras dos dois

Hollywood era uma cidade-fábrica, os grandes

que não fosse um gênio. Os adultos,

artistas. No cinema, Welles filmou três peças de

estúdios, com os grandes dinossauros sentados

então, esperavam que eu fizesse algu-

Shakespeare, enquanto no teatro montou desde a

atrás de suas escrivaninhas.”[2]

ma coisa extraordinária. Tentei fazê-las.

adolescência incontáveis adaptações.

modus operandi praticado pelos estúdios. Sua

Definitivamente, Welles não abria mão do

Sempre achei, porém, que não estava

renascentista, o que não chega a ser um exagero. A influência do dramaturgo William Shakespeare

Muitas vezes apontado como prodígio,

domínio artístico das suas obras, e como consequ-

correspondendo.”[3]

Welles teve uma formação muito sólida e de-

ência disso travava embates fervorosos contra os

Orson Welles

senvolveu um gosto pelas artes desde a adoles-

donos de estúdio. Essa era uma questão realmente

cência. A literatura sempre o seduziu, basta ver

fundamental, constituidora mesmo. Hollywood

Orson Welles foi um artista que conseguiu

as adaptações literárias que realizou no cinema.

se consolidou economicamente por meio da in-

refletir como poucos o século 20, em especial o

E os escritores adaptados, quando analisados

tervenção dos produtores nos filmes, vistos como

seu país, os Estados Unidos; mas também sou-

em conjunto, mais do que simples referências,

seus produtos finais, sua fonte de maior ou menor

be envolver sua obra em meandros filosóficos ao

compõem um quadro de influências substanti-

lucro, ou de um possível fracasso. A briga era de

incluir questionamentos profundos sobre o papel

vas, formadoras mesmo do seu caráter e de seus

caráter classista, de um lado os objetivos do ar-

do homem no mundo contemporâneo. A busca

princípios artísticos e humanísticos. São eles:

tista em salvaguardar sua liberdade de criação, e

ou o questionamento do sentido da vida pelos

Joseph Conrad, Franz Kafka, Miguel de Cervan-

de outro os empresários, esforçando-se em ter um

indivíduos permeiam suas tramas e seus perso-

tes e William Shakespeare.

produto final rentável. Por isso, os artistas estão

nagens. Personagens em situação-limite, imersos

Poucos artistas antes dos 25 anos consegui-

sempre propensos a correr risco enquanto os em-

em encruzilhadas advindas de suas ambições

ram dois feitos atingidos por Welles. O primeiro foi

presários tendem à estabilidade de seus negócios.

políticas e econômicas podem ser considerados

causar, aos 23 anos, uma comoção geral ao nar-


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

47

rar em um programa de rádio da CBS (Columbia

forço de decifração de qual seria o significado

Broadcasting System) uma invasão de marcianos,

dessa enigmática palavra.

Se a primeira obra de Welles pode ser vista como seu manifesto artístico, sua última obra,

inspirada no livro A guerra dos mundos, de H. G.

Com Cidadão Kane, Welles discute a ques-

F for Fake, vislumbra-se como seu testamento. As

Wells. Várias pessoas, desesperadas, tomaram o

tão da importância da riqueza para o indivíduo

duas obras descortinam o esforço uníssono de

que ouviram como verdade e abandonaram suas

e mexe diretamente com os elementos forma-

conceber a arte e a vida em sua dimensão con-

casas em fuga, causando um grande alvoroço em

dores da sociedade capitalista norte-americana,

traditória. Apreende-se Kane como um podero-

várias cidades americanas. Claro que houve todo

o enaltecimento do enriquecimento individual

so homem que construiu um império, mas, por

um planejamento, a programação musical foi in-

como força motriz da dinâmica social. Inteli-

mais que se esforcem em conhecê-lo, isso não é

terrompida para a notícia extraordinária, tudo

gentemente, a discussão encaminha-se para a

possível, pois sua palavra final, rosebud, continua

muito bem calculado pelo então l’enfant terrible.

infelicidade do protagonista, que, apesar de de-

até o fim indecifrável para todos, apenas nós es-

O segundo foi realizar um filme de estreia até hoje

tentor de poder econômico, e até político, não

pectadores sabemos tratar-se de uma lembrança

defendido pelos críticos como o mais relevante da

consegue substituir a maior perda de sua vida, a

nostálgica da sua infância. A verdade para Welles

história do cinema: Cidadão Kane.

subtração de sua infância feliz.

reside no sujeito, e é indivisível; já a mentira é

Esse tema, o da construção da verdade ou,

O filme foi reconhecido como uma obra ge-

se alguém preferir, da mentira, sempre acom-

nial, mas Welles pagou um alto preço pela sua

panhou a sua carreira. De Cidadão Kane a F for

ousadia temática. William Randolph Hearst, um

Rosebud... essa é a palavra-enigma, a peça

Fake esse tema permeou toda sua obra. Welles

famoso plutocrata, dono de um poderoso jornal

que falta e ao mesmo tempo a palavra-síntese

devotou uma boa parte de sua vida em desven-

da época, e uma das inspirações para a cons-

para o entendimento mais profundo sobre o ho-

dar o papel do cinema nesse processo cogniti-

trução do personagem Kane, investiu de forma

mem Charles Foster Kane. Mas também não há

vo de colocar o espectador em uma posição de

sistemática contra o filme e a carreira de Welles.

uma explicação, um desfecho no qual o diretor

questionar os artifícios que possibilitam a construção tanto da verdade como da mentira. Ao falar de Orson Welles fica impossível não se mencionar que Cidadão Kane, sua obra

social, e compartilhada, pode até ser considerada por todos como uma verdade.

tudo explicita sobre Kane. Fica para o especta-

Dossiê Cidadão Kane

dor juntar as peças dispersas no decorrer de 120 minutos. Mas, ao final, fica sempre a pergunta: afinal qual seria o sentido da vida? O que se

máxima e importante do ponto de vista estéti-

“Talvez rosebud fosse algo que Kane não

acompanha em Cidadão Kane são narrativas de

co, também fornece contribuições para além do

conseguiu, ou perdeu. Mas não explica

pessoas que conviveram com ele, mas podemos

universo cinematográfico ao propor uma análi-

tudo. Nenhuma palavra pode explicar a

afirmar que o ser humano pode ser assim com-

se pertinente sobre seu tempo. O filme retrata

vida de um homem. Acho que rosebud é

preendido, apenas através do outro, da visão

em flashback a vida conturbada do milionário

só uma peça de um quebra-cabeça, uma

do outro, ou outros? Kane é uma figura pública

Charles Kane, dono de um importante jornal, o

peça que falta.” (Parte do diálogo final

notória, um homem típico do mundo midiático

Inquirer. O ponto de partida é o do momento de

de Cidadão Kane, dita por Sr. Thompson,

nascente. Welles então propõe uma discussão in-

sua morte, quando Kane profere a misteriosa

jornalista destacado para descobrir o

teressante sobre os primórdios desse fenômeno,

palavra rosebud. A partir de então, começa o es-

significado de rosebud para Kane.)

no qual somos apenas uma imagem. Daí o filme


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

48

propor, como primeira narrativa sobre Kane, o documentário sobre sua vida pública.

A narrativa de Welles lembra o método uti-

são as informações que os personagens vão des-

lizado por Sherlock Holmes, o da decifração de

crevendo ao longo do filme. Nos documentos do

A narrativa de Cidadão Kane se constrói as-

mistérios por meio de indícios ou vestígios. Só

tutor Thatcher possivelmente está mencionado o

sim, pelos outros. Apenas um objeto, um mero

que essa tarefa é inglória, pois só há um único

trenó, o tal objeto cuja marca é rosebud e que

trenó de criança, nos alça abruptamente para uma

vestígio a ser descortinado, o do significado da

queimará numa fogueira, apenas como um ve-

reflexão sobre os sentimentos de um indivíduo e,

palavra rosebud. Xanadu, porém, também pode

lho e desimportante brinquedo. Talvez Thatcher

consequentemente, sobre o sentido da vida. O di-

ser apontado como uma fonte cheia de vestígios,

pudesse ser o único a conhecer o que seria o tal

lema de Kane é o de todos nós: o que seria impor-

mas a sua suntuosidade é tanta, já que representa

rosebud. Esse é o ardil wellesiano. Outro ardil foi

tante na vida? No somatório final, o que realmente

nada mais nada menos que uma síntese da histó-

o de mostrar que, no meio daquele acúmulo ab-

importa e vale a pena?

ria da humanidade, com suas réplicas históricas

surdo, de esculturas valiosas, havia um pequeno

Talvez por isso, devido a essas inevitáveis per-

e sua fauna e flora abundantes, que fica difícil

regalo, de valor sentimental inestimável e que só

guntas, o filme inicia e termina com a mesma ima-

achar algo de valor sentimental. Xanadu é a ex-

tinha valor para Kane, da mesma maneira que o

gem: uma placa da entrada da mansão de Xanadu

pressão do arrivismo típico dos capitalistas norte-

globo de vidro com a casa em meio à neve. Qual

indicando “não ultrapasse”. Não é à toa que Wel-

-americanos.

seria então a verdade e a mentira a ser descoberta

les retorna no final à mesma placa inicial. A placa

Não é casualmente que no documentário

sobre Charles Foster Kane? A imprensa construiu

funciona como um convite à circularidade, uma

sobre Kane ouvimos as seguintes frases sobre sua

a sua versão, assim como cada um dos persona-

chamada para que juntemos como espectadores

Xanadu: “desde as pirâmides, Xanadu é o monu-

gens ouvidos no filme. Welles expõe todas elas,

o quebra-cabeça proposto por Welles, pois, afinal,

mento mais caro que um homem construiu para

mas delega apenas ao espectador a montagem

só se chega à repetição da placa quem chegou ao

si”... “um império dentro de um império”... e so-

dessa ideia de quem era essencialmente Kane.

final do filme.

bre Kane: “uma poderosa figura de nosso século.

Somente o espectador reúne todos os elementos

Seis depoimentos compõem o quebra-cabeça

O Kubla Khan dos Estados Unidos, Charles Foster

e pode juntar todas as peças desse tabuleiro, que

de Kane. Em cada depoimento Welles nos revela

Kane”.... Como inventariar o excesso? E nessa pro-

foi a vida de Kane. Até o segredo rosebud, jamais

facetas e fases da vida desse cidadão chamado

fusão de objetos, como então encontrar os tais

revelado ou sabido nem pelos personagens, está

Charles Foster Kane. Mas destaca-se um ardil inte-

vestígios que nos levariam ao significado de rose-

circunscrito aos espectadores e a mais ninguém.

ressante de Welles nesse quebra-cabeça. A infância

bud? Não seria como procurar uma agulha num

Estruturalmente Cidadão Kane surpreende

de Kane, fase mais importante e onde encontramos

palheiro? Rosebud é apenas uma palavra, é eté-

até hoje com a sua narrativa fragmentada advin-

a chave para o entendimento do personagem, só

rea, e, tal como uma brisa, não possui uma forma,

da do conjunto de várias memórias. Os flashba-

nos chega pelas leituras dos diários e arquivos de

não é papável.

cks que desfilam na tela vão montando o grande

seu tutor Thatcher. A ausência desse testemunho

Mas Welles nos brinda com os seis blocos

puzzle do filme e reconstruindo a temporalidade

vivo faz com que tratemos apenas dos vestígios

de depoimentos, que nada mais são do que fatos,

da história. A fotografia de Gregg Tolland emba-

deixados e não abre a possibilidade de resposta de

aparentemente desprovidos de grande impor-

sa essa audácia narrativa com o uso constante

uma pergunta específica, no caso, o que significa-

tância, são apenas fatos comuns de um homem

da profundidade de campo, que mantém o foco

ria o tal rosebud.

bem-sucedido. Casamento, herança e trabalho

tanto no primeiro plano quanto no plano mais


CINEMA

segundo SEMESTRE

2015

49

4 Ver detalhes em Bazin (2014).

distanciado de uma mesma cena. Uma das sequ-

ver o que seria o enigmático rosebud, proferido

ências mais impressionantes no uso dessa técnica

então como sua derradeira palavra. Mas a cena

acontece quando o tutor dá a notícia aos pais de

de sua morte é bem explícita e as imagens não

Kane sobre a herança milionária e que ele pre-

deixam margens para dúvidas. Kane está sozi-

cisará estudar em um dos melhores colégios do

nho na hora de sua morte e, consequentemen-

mundo. Welles constrói um plano-sequência no

te, quando proferiu seu rosebud. Sendo assim,

qual o tutor conversa com os pais de Kane dentro

quem teria escutado a tal palavra? Vemos cla-

da casa, enquanto ele brinca na neve com o seu

ramente a entrada da enfermeira em seu quarto

trenó rosebud ao fundo, todos e tudo em foco.

quando ele já está morto. Certamente, mais uma

Essa sequência é uma das mais importantes do

vez, Welles nos prega uma de suas tradicionais

filme ao mostrar que o destino de Kane estava

mentiras e nos mostra sua faceta fake. Não po-

sendo decidido a sua revelia, assim como a sua

demos esquecer que a palavra é dita em um pla-

infelicidade. A subtração da infância de Kane

no-detalhe da sua boca, isto é, diretamente para

é fundamental, jamais será recuperada por ele.

o espectador. Mas mesmo assim fica a pergunta:

Welles tece uma síntese da falência moral nor-

será que seu objetivo era mostrar a todos que,

te-americana: Kane vira uma pequena peça da

como artista, podia se dar o privilégio da inven-

engrenagem capitalista, milionário, mas escravo

ção e subverter a noção de verdade e mentira?

do sistema, tanto quanto um operário pobre de

Tudo isso aqui comentado e refletido é suficiente para colocar Cidadão Kane ainda hoje

uma indústria. A própria narrativa de Cidadão Kane já

como um marco indiscutível da história do ci-

impõe sua edição, condicionada pelas próprias

nema. Mesmo depois de mais de 70 anos, o filme

memórias dos personagens do filme. Apesar de

continua tendo o seu reconhecimento e ratifi-

o filme possuir muitas cenas e personagens, há

ca o gênio Welles, sua inteligência, seu caráter

momentos de grande economia de planos, pois

rebelde, inconformista e sua coragem estética

a profundidade de câmera utilizada no conceito

em utilizar plenamente os recursos narrativos

fotográfico poupa a filmagem de diversos planos

e de linguagem disponíveis no início dos anos

de campo e contracampo. Inclusive, há uma

1940. O legado de Shakespeare enfim tinha um

sequência em que Welles cria seis pequenos

herdeiro à altura e o cinema alguém capaz de

planos que sintetizam a falência do primeiro

reinventá-lo sem ter que negar a sua vocação

casamento de Kane. Welles consegue representar

narrativa. Pena Hollywood não ter reconhecido

meses em apenas alguns poucos segundos.

em sua plenitude toda a explosão artística e

[4]

Mas há em Cidadão Kane uma grande mentira a ser desmascarada. Todos procuram resol-

criativa de Welles.

REFERÊNCIAS bibliográficas BAZIN, André. O que é cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014. BORDWELL, David & THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Editora Unicamp/Edusp, 2013. CASTRO, Ruy. Saudades do século 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. DINIZ, Eleazar. Cinema no Brasil: impressões. Rio de Janeiro: produção independente, 2013. EBERT, Roger. Grandes filmes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. INFANTE, Guillermo Cabrera. Cinema ou sardinha: 2 volumes. Rio de Janeiro: Gryphus, 2014. LABAKI, Amir (org.). Folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MASCARELLO, Fernando. (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2008. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. MÜLLER, Adalberto & Scamparini, Julia. Muito além da adaptação. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013. ROCHA, Glauber. O século do cinema. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985. SOUZA, Enéas de & Pereira, Robson de Freitas. Cinema: o divã e a tela. Porto Alegre: Artes e ofícios, 2011. STAM, Robert. A literatura através do cinema. Minas Gerais: Editora UFMG, 2008. TRUFFAUT, François. Os filmes de minha vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. VEILLON, Olivier-René. O cinema americano nos anos cinquenta. São Paulo: Martins Fontes, 1993. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz & Terra, 2008. WELLES, Orson. O pensamento vivo de Orson Welles. São Paulo: Martin Claret, 1986. ZUNZUNEGUI, Santos. Orson Welles. Madrid: Cátedra. 2010.


segundo SEMESTRE

2015

50

Nesta página: Escrevendo com a luz Fotos: Elvira Fortuna

Na outra página: 1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: André Ávila Foto: Camila Domingues Foto: Mauro Schaefer Foto: Daniel Marenco Foto: Eneida Serrano

Rio Pardo: a Paraty gaúcha? Evento de fotografia, que tem o Sesc como um dos realizadores, reuniu 40 profissionais em sete mostras nos meses de setembro e outubro no Centro Regional de Cultura e em outros locais

ARTES VISUAIS


ARTES VISUAIS

segundo SEMESTRE

2015

51

Comparar o evento Rio Pardo em Foto, que rea-

Se o evento de Paraty foi criado para valo-

cultural que o município já havia experimentado

lizou a sua 3ª edição em 2015, ao já tradicional

rizar a fotografia, o de Rio Pardo tem como ob-

em outras épocas, em especial, no final do século

Paraty em Foco – criado em 2005 pelo fotógra-

jetivo fazer com que esta arte estabeleça uma

19, um período de pujança econômica. “Pensa-

fo italiano Giancarlo Mecarelli com o intuito de

relação direta com a comunidade, no sentido

mos em alguma coisa para movimentar a cidade,

incentivar e promover a arte fotográfica e se

de oferecer a diversidade de olhares vista pela

e a fotografia é um instrumento muito bom para

tornou uma das maiores iniciativas culturais do

lente qualificada dos fotógrafos que participam

mexer com olhares. A cidade não estava mais se

país ligadas a essa área – pode parecer exage-

das mostras – em 2015, foram 40 profissionais –,

enxergando. Com o tema ‘um olhar diferencia-

ro. Mas se depender do desejo e da empolgação

estendendo-se para além do espaço expositivo,

do’, provocamos a população para que prestasse

dos envolvidos que viram, no festival realizado

aproximando-se do cotidiano das pessoas e, fi-

atenção, desse importância para o local onde vive

na histórica e fotogênica cidade gaúcha, o po-

nalmente, ocupando a cidade.

e que, acostumada, acaba vendo com um olhar

tencial de crescimento, em especial pela aco-

A arquiteta Vera Schultze, uma das idealiza-

lhida da população, não será surpresa se nos

doras do Rio Pardo em Foto, conta que o evento

Apesar de o Rio Pardo em Foto ter iniciado

próximos anos o Rio Pardo em Foto tomar pro-

surgiu da iniciativa de um grupo de amigas, como

com um caráter local, até para torná-lo viável, o

porções bem maiores.

forma de estímulo ao retorno da efervescência

grupo de mulheres já vislumbrava, para as edições

trivial”, afirma.


ARTES VISUAIS

segundo SEMESTRE

2015

52

Quase paisagem - Taim Foto: Cristiano Sant’Anna

1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: Rodrigo Rodrigues Foto: Leonardo Accurso

seguintes, um evento marcante que trouxesse pes-

em diferentes fases do curso, “revelações” e “cor não

nossa estadia fotografando e conhecendo um pou-

soas para a cidade, como o de Paraty, ou mesmo o

define amor”.

co mais de Rio Pardo, uma cidade incrível e cheia de

Festival de Inverno, em Ouro Preto e Mariana, Minas

Para o coordenador do Curso de Fotografia da

história, que foi palco de diversos acontecimentos

Gerais. “Rio Pardo tem este clima, tem este acolhi-

Unisc, Alexandre Borges, o Rio Pardo em Foto forta-

históricos importantes, como a Guerra Guaranítica,

mento; só não tem o evento de grande porte”, ana-

lece a importância da fotografia no desenvolvimen-

a Revolução Farroupilha e a Guerra do Paraguai.”

lisa Vera. Segundo ela, “a primeira edição foi tímida,

to das pessoas, no convívio, inclusive em relação à

“Rio Pardo é uma cidade maravilhosa que, com

praticamente paroquial, mas teve boa aceitação e

autoestima e a tudo que envolve o conhecimento

todo potencial turístico e documental, tem tudo

muita repercussão. Levamos a fotografia para rua

dessa arte, não atrelada a outro conhecimento, de-

para se transformar na nossa Paraty”, empolga-se

através de projeções noturnas no Museu Barão de

pendente, mas sim a fotografia como protagonista.

o fotógrafo Luiz Ávila, coordenador do Núcleo de

Santo Ângelo, antigo Solar do Almirante Alexandri-

“A cidade de Rio Pardo precisa disso. É uma cidade

Jornalistas de Imagem, vinculado ao Sindicato dos

no, um prédio colonial com importância arquitetô-

muito bonita e, de certa forma, se percebe um olhar

Jornalistas RS. “A ideia é fantástica e tem tudo para

nica e histórica, e no Centro Regional de Cultura”.

desgastado sobre a própria cidade, que tem caracte-

crescer bastante e se espalhar por toda a cidade. Já

Em 2015, o evento passou a contar com a par-

rísticas muito peculiares, parecida com outras cida-

imagino exposições fotográficas ao ar livre, feira de

ceria da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc)

des históricas do País e que já estão alguns passos

livros fotográficos, debates acadêmicos, saídas foto-

e as mostras apresentaram trabalhos de fotógrafos

à frente nesta relação de respeito, de autoestima.”

gráficas, fotógrafos do Mercosul convidados.”

que são expoentes no Estado, diferente das edições

Alexandre revela que já existe um movimento de

O fotógrafo Cristiano Sant’Anna destaca o po-

anteriores em que os participantes eram amadores.

construção de condições para que, em médio prazo,

tencial de descentralização do projeto, não só uma

As sete mostras distintas exibiram desde registros

se caminhe para um trabalho parecido com o que

descentralização da capital, mas também das cida-

históricos dos primeiros momentos do Colégio

se faz em Paraty, e, a partir da fotografia, se leve

des que são polo regional. “É um evento muito legal

Auxiliadora, prédio que atualmente sedia o Centro

turistas a Rio Pardo. “Isso fará com que os próprios

que acontece em uma pequena cidade que vive do

Regional de Cultura, às “quase paisagens” do Taim,

moradores consigam ver sua cidade com um olhar

turismo histórico, que sequer é a cidade principal da

de Cristiano Sant’Anna. O fotógrafo Gilberto Perin

mais carinhoso.”

região, a qual tem importantes centros culturais e

incitou a reflexão do público com as suas “fotogra-

A fotógrafa Elvira Fortuna destaca a qualidade

de educação, o Sesc como promotor de cultura, e

fias para imaginar”, enquanto Elvira Fortuna, na ex-

dos trabalhos das mostras, espalhadas pela cidade,

isso estabelece trocas muito ricas”, destaca o fotó-

posição “escrevendo com a luz”, apresentou recortes

e também a intensa programação concentrada no

grafo, que já levou sua exposição Quase paisagem

urbanos da capital gaúcha. O Núcleo de Jornalistas

Centro Regional de Cultura direcionada aos aprecia-

– Taim, projeto contemplado pelo Fundo de Apoio à

da Imagem ocupou outros espaços da cidade com

dores de fotografia. “Além de gratificante, a expe-

Cultura (FAC) do governo do Estado, a Porto Alegre e

obras que ilustram o noticiário do mundo. O evento

riência foi muito rica em cada uma das etapas do

Buenos Aires, além do 3º Rio Pardo em Foco.

contou, ainda, com duas mostras de alunos da Unisc

projeto, desde a primeira reunião, a montagem e a


ARTES VISUAIS

segundo SEMESTRE

2015

53

1ª Mostra do Núcleo de Jornalistas de Imagem Foto: Ubirajara Machado Foto: Silvio Ávila

Fotografias para imaginar Fotos: Gilberto Perin

Rio Pardo em Foto, a imaginação em cada imagem Por Gilberto Perin, fotógrafo A história nas ruas, uma paisagem e topografia

Os mais de 50 fotógrafos reunidos em mos-

visível, mas que nos deixa espaço para imaginar

fotogênicas, casas e prédios que merecem ser

tras, exposições e cursos – além do engajamento

o que acontece em cada fotografia, teve uma

observados e conservados. Esses são alguns dos

da Prefeitura, do Sesc e da Unisc – revelam que o

receptividade carinhosa no Centro Regional de

motivos de orgulho e consideração de professo-

Rio Pardo em Foto se prepara para novos saltos a

Cultura Rio Pardo – há 10 anos respirando diver-

res, alunos, historiadores, donas de casa, comer-

distância e em altura. Com o envolvimento comu-

são e arte. Essa exposição, com fotos de diversas

ciantes, autoridades e a totalidade de quem vive

nitário constante, não é difícil imaginar que cada

cidades daqui e lá de fora, encontrou a acolhida

em Rio Pardo. A fotografia se coloca à disposição

habitante da cidade se tornará cada vez mais

do olhar e reflexão do público rio-pardense, mos-

para eternizar momentos importantes, pequenos

participante e um divulgador do evento. Os fotó-

trando que a imaginação vai estar sempre pre-

detalhes, rostos, gestos sutis e grandiosos. Rio

grafos do Rio Grande do Sul já descobriram a im-

sente no Rio Pardo em Foto.

Pardo em Foto faz parte dessa “invasão” da ima-

portância e o prazer de participar desse festival.

gem, da memória, da estética e da busca sempre renovada de novos olhares.

‘Fotografias para Imaginar’, uma série de imagens nas quais a presença humana não é


literatura

segundo SEMESTRE

2015

Por Breno Serafini,

54

escritor, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é autor de Mosaico Laico (CBJE, 2010, poemas), Geração pixel (2011, Edições do autor, poemas), Millôres dias virão (Libretos, 2013, sobre Millôr Fernandes), Picassos falsos (2014, Buqui, crônicas) e Bichos de todos os reinos (2015, Edições do autor, poemas, infantil).

Hai-kai, a ponta do iceberg milloriano O cético sábio/ sorri/ só com um lábio.

veio a assumir o novo nome já na adolescência,

rico Chateaubriand), por motivo de cancelamento

Millôr Fernandes

graças à descoberta do registro impreciso do escri-

da publicidade, com a seção Poste-Escrito, sob o

vão na sua certidão de nascimento, que, ao grafar

pseudônimo Vão Gôgo. O sucesso dessa emprei-

Tal qual objeto multifacetado, que requer perí-

o traço do ‘t’ do nome Milton, deixou-o acima da

tada fez com que se tornasse seção fixa e, mais

cia em sua apreensão, a leitura da obra de Millôr

letra ‘o’, o que foi acrescido de uma incompletude

tarde (em 1945), com o mesmo pseudônimo, estre-

Fernandes a partir dos hai-kais pode ser apenas a

da letra “n”, sugerindo um ‘r’. Isso talvez explique

asse em O Cruzeiro a seção O Pif-Paf, ilustrada por

ponta de um iceberg a dilacerar certezas titânicas

a verdadeira obsessão pela reescritura do nome,

Péricles. Dezenove anos depois (em 1964), já con-

de um desavisado leitor. Multiartista, que construiu

uma constante na obra do multiartista, que pode

sagrado em sua atuação multimídia, que incluía o

uma ponte entre palavra e ilustração, ciente de que

ser exemplificada pelo livro Um nome a zelar (FER-

jornalismo, a tradução, o roteiro cinematográfico,

uma não esgotava a outra, ou, mais do que isso,

NANDES, 2008).

a ilustração, o texto dramático, a poesia, o humor,

podiam ser, ora complementares, ora autônomas,

o hai-kai etc., lançou uma revista quinzenal com

Millôr apropria-se de todas as formas para, a partir

o mesmo nome (Pif-Paf), considerada o início da

delas, dilapidar a sua estrutura, libertando-as de

imprensa alternativa no Brasil.

seus grilhões rígidos para detonar certezas e abrir

Já em 1969, foi um dos fundadores do cole-

novas vertentes. Clássico desse questionamen-

tivo ícone ipanemense O Pasquim, que teve uma

to é sua afirmação acerca do ditado chinês “uma

vida longa (e tumultuada) no seu papel preponde-

imagem vale por mil palavras”, em que questiona:

rante de resistência à ditadura, em nome da liber-

“tente dizer isso com uma ilustração”.

dade de expressão. Tudo sempre pela via da inte-

Seguindo a linha do humor como constante

A esse respeito, aliás, ele mesmo reconhece

ligência, do humor e do sarcasmo, num carioquês

questionamento dos micro e macropoderosos de

a anterioridade do traço gráfico à escrita em sua

de vários sotaques que repercutia por todo o Brasil,

plantão, utiliza-se do tríptico de versos oriental

obra, sendo que, particularmente nesse caso, há

naqueles tempos sombrios.

para buscar o outro lado das coisas, uma constante

uma fusão das duas coisas, já que a letra passa

Outro aspecto relativo a sua infância pare-

em sua obra – disposição anárquica de fragmentos,

por um processo de elaboração plástica que sugere

ce também ter tido influência marcante na sua

arestas cortantes que guardam beleza justamente

uma não hierarquização entre grafia e ilustração,

produção artística: com as perdas do pai, aos três

por suas muitas pontas, a provocar e a riscar fundo

no fundo configurando a mesma coisa. Além dis-

anos, e da mãe, aos 12, em sua orfandade, cedo

em cada um de nós a certeza de que tudo é provi-

so, em alguns momentos de sua obra aparece a

assumiu a posição filosófica da “paz da descrença”,

sório, inclusive nós mesmos. Exemplo disso, vindo

proeminência do traço artístico, de que são exem-

o que lhe permitiu uma reflexão da realidade es-

de um ateu convicto, é o questionamento: “Olho,

plos: a premiação na Exposição Internacional do

corada no ceticismo. Essa precoce condição “sem

alarmado/ e se a vida for/ do outro lado”.

Museu da Caricatura de Buenos Aires, juntamente

pai nem mãe” acabou repercutindo em sua obra,

E nada menos do que alguns aspectos da

com o romeno/norte-americano Saul Steinberg

através de um humor operado por um relativismo

obra (e vida) de Milton Viola Fernandes, vulgo Mil-

(em 1955); um cartaz da Anistia Internacional (em

absoluto, centrado no dialogismo. A esse respeito,

lôr, para exemplificar isso. Já a transformação de

1980); e as muitas e variadas ilustrações em que

com a ajuda de Slavutzky e Kupermann (2005), po-

um em outro foi um longo processo, que incluiu

a paisagem é o Rio de Janeiro, Ipanema ao fundo.

demos buscar em Freud, de Totem e tabu, a expli-

o anagrama Notlim e chegou ao mil vezes Millôr

Noutros, há a proeminência da escrita, também

cação para tal característica. Segundo Kupermann,

atual. Nascido no Rio de Janeiro, em 16 de agosto

ela artística, que começou com um chamado – já

se o humorista consegue identificar-se “[...] até

de 1923 – e tendo como data oficial de nascimen-

aos 16 anos – para preencher o espaço de quatro

certo ponto com o pai, é apenas na medida em que

to o dia 27 de maio de 1924 –, o Guru do Meyer

páginas da revista A Cigarra (a convite de Frede-

pode reconhecer sua orfandade, ou seja, a falência


literatura

segundo SEMESTRE

2015

55

Referências BIBLIOGRÁFICAS Fernandes, Millôr. Um nome a zelar. Rio de Janeiro, Desiderata, 2008. Fernandes, Millôr. In: Milton, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. Fernandes, Millôr. Hai-kais. Porto Alegre, L&PM, 2014. Fernandes, Millôr. Millôr definitivo: a bíblia do caos. Porto Alegre, L&PM, 2013. Fernandes, Millôr. Disponível em: <http://www2.uol.com.br/millor/>. Acesso em 02 dez. 2015. Slavutzky, A.; Kupermann, D. Seria trágico... se não fosse cômico: humor e psicanálise. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005.

da pretensão de possuir qualquer garantia trans-

vivemos, “não me sigam, eu também estou perdido”.

lamento inglês, em 1644. Nela, expõe o indispen-

cendente (idealizada) de onisciência e onipotência,

Nesse processo, anterior e posterior a O Pasquim,

sável Decálogo Milloriano:

atributos do pai da horda há muito ausente” (p.

que incluiu marcas como a polissêmica “livre-

1 Só existe um modo de ser livre:

34). Ou, dito de outra forma e transposto para as

-pensar é só pensar”, o bordão “arte é intriga” e

palavras de Millôr, “(...) tudo pode me acontecer, a

a ideologicamente palindrômica “a mala nada na

mim que já perdi o que tinha para perder e que

lama” (tanto faz ler da direita para a esquerda

aprendi a rir com a vida” (p. 35).

quanto da esquerda para a direita), Millôr marcou

ser o opressor. 2 O escravo quase sempre é colaborador de sua escravidão. 3 A Constituição, que institui que todo homem

Biografismos à parte, a expressão “o humoris-

presença em grandes publicações, todas com re-

tem direito à liberdade, não conhece o

ta nunca atira para matar”, citada na abertura de

percussão nacional, como as revistas O Cruzeiro,

homem-padrão. Ele tem que ser obrigado

A bíblia do caos (2002), seu livro de pensamentos

Veja, Istoé e diversos jornais, como O Globo, Jornal

à liberdade.

e frases, é considerada por ele mesmo referência

do Brasil etc. Atualmente, para acompanharmos a

4 A liberdade absoluta só existe em momentos-

de humor. Mas que estranho tom é esse de quem

sua obra, podemos acessar a sua página na inter-

limite, quando não se tem mais nada a perder.

é considerado um dos maiores humoristas brasi-

net: www2.uol.com.br/millor/. Lá vamos encontrar

leiros? Diferentemente do riso fácil, da chalaça,

uma voz extremamente pessoal e subjetiva, distan-

alcançada em detrimento de algum outro (ou

podemos constatar um certo distanciamento nar-

te de qualquer dita imparcialidade que o veículo

de muitos outros) ego. Portanto a liberdade

rativo operado por Millôr, que consegue, através

venha se atestar – nesse sentido, Millôr sempre fez

mesmo utópica só poderá ser a média da

do humor e da ironia, testemunhar o seu tempo

o possível e o impossível para fazer respeitar o seu

satisfação de todos os egos.

resguardado pela (auto) crítica mordaz. Para isso,

nome, o de seus leitores e seus (poucos) cabelos

Uma insatisfação. Uma mediocridade.

em muito a realidade o ajudou: para entendermos

brancos. Sabia que entre a graça e a desgraça há

6 Deve-se exigir toda liberdade dos que

o Brasil nesse longo (e inacabado) processo da

um limiar mínimo, que entre o trágico e o cômico,

estão acima. E ser leniente na exigência de

ditadura à democracia – não só política, mas

tudo pode ser uma questão de ponto de vista.

contrapartida dos que estão abaixo. Mas o

5 A satisfação de nosso ego (liberdade) só é

contrário é mais factível.

econômica –, encontramos, no conjunto de sua

Então, nesses casos, talvez o melhor caminho

obra, uma desconstrução proposital do discurso

seja mesmo o do ceticismo, ou melhor, saber que

sério, a instauração de um espaço carnavalizado

às vezes o cômico pode ser uma defesa contra o

o tempo todo. O encarcerado pode fugir

que é o espelho, nem sempre deformado, daquele

trágico. No fundo, ele percebe que “o homem [em

a qualquer descuido. Donde o prisioneiro

captado na realidade. Assim, escudado pela crítica

seus 15 minutos de fama] é um ator que gagueja

ser (filosoficamente) mais livre do que o

do riso, expõe a ambivalência não só da cultura

na sua única fala, desaparece e nunca mais é ouvi-

brasileira, mas do próprio homem universal, atra-

do”, na clássica frase de Shakespeare, em Macbeth.

vés de uma análise de riso reduzido, onde não há

Conforme lida, podemos considerá-la trágica ou

a absolutização de nenhum ponto de vista, de ne-

cômica – eis o fundamento do espírito humano,

nhum polo da vida e da ideia. Segundo ele, “humor

seja o leitor cético ou ascético.

é você pensar de novo sobre cada coisa o tempo

Apontado por muitos como um dos maio-

todo. É você desconfiar de qualquer ideia que te-

res pensadores brasileiros e um dos de maior in-

nha mais de seis meses de vigência.”.

serção na vida nacional, Millôr Fernandes filia-se

7 O carcereiro não pode vigiar o prisioneiro

carcereiro. 8 As prisões mais sujas, todos sabem, são as mais livres. 9 Ninguém pode nos dar liberdade. Mas qualquer um pode tirar, a começar pelos pais, trazendo-nos ao mundo em condições inadequadas. 10 Com liberdade total o mais forte domina o

Além disso, nesse caso, radicalmente, o que é

a uma tradição da literatura brasileira que des-

mais fraco em nome de sua liberdade, o mais

conteúdo é forma: mais do que nenhum escritor/

preza o oficial. Frasista que perde o amigo, mas

inteligente espezinha o mais ignorante em

cronista brasileiro de seu tempo, Millôr instaurou

não a ética, sabe que a liberdade individual se

nome de sua inteligência, o mais belo seduz

a primazia absoluta da fragmentação em seu dis-

sobrepõe a qualquer ideologia ou governo e faz

mais em detrimento do fisicamente destituído.

curso, compondo uma linguagem mosaica que

do humor “a quintessência da seriedade”, cons-

Franklin, ao fazer o lema da Revolução

pressupõe um leitor disposto a se embrenhar no

truindo com ele uma crítica visceral ao homem

Francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade,

caleidoscópio da sua narrativa, já que, nas amarras

de nosso tempo.

usou o elemento conciliador e humanístico Fraternidade para sugerir um equilíbrio

dessa escritura estilhaçada, não há indicação de fio

Nesse sentido, vale recuperar o que escre-

a ser puxado para desfazer a verdadeira colcha de

veu na orelha de uma edição brasileira do livro

impossível no paradoxo Liberdade x Igualdade

retalhos (patchwork) discursiva. Parece querer-nos

Areopagítica, de John Milton, verdadeiro libelo

(FERNANDES in MILTON, 1999, orelha).

dizer, também ele, diante da crise de ideologias que

pela liberdade de imprensa, apresentado ao Par-


literatura

segundo SEMESTRE

2015

Por Jéferson Assumção,

56

escritor, autor de mais de 20 livros, entre eles Cabeça de mulher olhando a neve (BesouroBox, 2015), A vaca azul é ninja em Uma vida entre aspas (Libretos, 2014) e Máquina de destruir leitores (Sulina, 2000). Pós-doutorando em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em Filosofia pela Universidade de León, Espanha.

PAULO LEMINSKI Elogio ao zen inquieto Ele era faixa preta de judô e escrevia poesia. O pai

e morreu jovem, aos 45 anos, de cirrose hepática,

gio. Se presentifica na vivacidade do escrito, cheio

descendia de poloneses e a mãe era uma negra

promovida pelo alcoolismo. Era a mesma idade de

de vida a nos puxar para dentro não de um mundo,

brasileira. Compôs versos em latim, mas foi um

outro samurai-escritor japonês a quem Leminski

mas do próprio mundo. A simplicidade da poesia

poeta vanguardista, filho de pai militar. Mesmo

admirava e que cometeu suicídio num ritual de

mostra o afã de claridade e desvelamento, porque

brasileiro e descendente de polacos, considerava-

harakiri aos 45 anos: Yukio Mishima (1925-1970).

no fundo está impregnada da fé no mistério que

-se nipônico de coração. Falava francês, inglês,

Com Matsuo Bashô, que nascera exatos 300 anos

faz tudo aparecer e ser. Incluindo o luminoso, a

japonês e era grande conhecedor de latim e gre-

antes de Leminski, e com o grande autor de Con-

palavra concreta, com casca, com som, com a cara

go. Dedicou-se ao haikai e às letras de rock, aos

fissões de uma máscara, Leminski partilhava o

que a gente vê na rua.

trocadilhos e à crítica literária. Por essas e muitas

projeto zen de transformar a vida em arte. E assim

Ele não era Cruz e Souza ou Bashô, não era

outras, o curitibano Paulo Leminski (1944-1989) é

o fez. Ensinou, com seu ecletismo, um amor por

Jesus nem Trotski, mas um caprichoso relaxado

o poeta tão vivo que é nos dias de hoje. Em nossos

viver tudo, todos, o todo, a centenas de milhares de

que ajudou a modernizar a poesia brasileira pela

tempos de dissolução tecnológica das fronteiras

leitores, nunca inertes ante tanta e transbordante

marginal, combatendo a careta formalidade da

geográficas, históricas, culturais, linguísticas, for-

vida, a dele e a de que seus poemas foram veículo.

academia e abrindo registros de descolonizações.

mais, Leminski é cada vez mais lido e amado. E isso

Redefiniu mapas afetivos, que iam do Japão do

por uma obra que pareceu ser feita para a era da

lago Biva, na Otsu, de Bashô, à Ilha de Santa Cata-

infinita reprodutibilidade técnica digital e da diver-

rina, negra, simbolista e pulsantemente erótica da

sidade cultural em rede.

poética de Cruz. Este Cruz amado por Paulo, como

Ex-seminarista, curtia o zen e o contempo-

um Jesus do Desterro, carregando seu sinal e o ins-

râneo e buscava pela forma uma informalidade

trumento de seu suplício: poeta assinalado.

e pela técnica, a simplicidade. Não por acaso, es-

Já Paulo, poeta pop, ex-estranho, íntimo em

creveu sobre a vida de Cruz e Souza (1861-1898),

seu exílio geográfico-metafísico, de pequenos

Jesus Cristo (1-33 d.C.), León Trotski (1879-1940)

e negros olhos arregalados dentro do freme dos

e Matsuo Bashô (1644-1694). Para ele, essas eram

óculos, abertos como máquinas de ver apontadas

quatro manifestações radicais da forma-vida, com

para tudo. Tudo mesmo, do corpo ao dentro dos

as quais sentia uma profunda identificação e a res-

Zen, quase monge beneditino, Leminski foi

órgãos dos sentidos, às palavras como elas andam

sonância de suas obras e biografias em seu íntimo

um homem do século 21, avançado no tempo, ca-

em casa, como elas se mostram na janela, como

inquieto. O primeiro, o poeta simbolista negro de

paz de antecipar em vida e versos a informalidade

elas tomam banho e fazem suas necessidades.

Santa Catarina. O segundo, um profeta-santo rei

da cultura contemporânea, a hipermoderna, a lí-

Marginal, diziam. Preferível autêntico e antipar-

dos judeus. Os dois últimos, o revolucionário russo

quida vida contemporânea. Os anos 1970 e 1980

nasiano, poeta de símbolos claros, diretos, sem

e o poeta zen-budista japonês, que trocou a vida

não se tratavam de uma época de tanta conexão

sombras, som do pulo do sapo na água de alguma

samurai pelo caminhar e fazer sua poesia. Não ti-

tecnológica como a atual, mas a inquietude movia

província como Nara ou Shiga, no silêncio de um

nha nada a ver com cada um deles em particular,

o olhar, a mão, a boca desejosos para o outro lado

mato do Japão feudal.

mas os amou e promoveu a vida toda.

do mundo e da rua. Essa vontade transbordante

Esse nosso John Lennon, o de Curitiba, nipô-

Morou em uma comunidade hippie nos

realizava a presencialidade do outro como resulta-

nico como o próprio, pop como o outro, amado

anos de 1970, mas era publicitário. Amou a vida

do da magia do arrebatamento, do amor e do elo-

igualmente pela cara que tinha, tão cheia de es-


literatura

segundo SEMESTRE

2015

57

pírito e frontalidade, urgente em sua vida também

lancolia que é ao mesmo tempo condição para a

polilingue paroquiano cósmico!, para o concretis-

curta de só 40 anos, pelo gesto que propunha,

poesia (e para a filosofia): seja ela o blues que vai

ta. Era em si um oxímoro, uma contradição em

pela roupa e os bigodes que envergava, os cabelos

dentro do rock, o baço amargo do romantismo, o

termos ao mesmo tempo que a dubiedade irônica

desgrenhados de hippie, com o poder da flor ins-

banzo de Cruz, a Sabishisa do caminhante Bashô

de um dioscuro. Foi chamado de punk parnasia-

talada no cabelo quase que contrastando com os

e seus haikais a buscar a simplicidade complexa

no, dadaísta clássico, a aliança da concentração

bigodões – se é que há alguma diferença entre os

da lágrima do peixe, da lua na neve. Leminski teve

com a descontração, conforme José Miguel Vis-

bigodes dos polacos e as flores.

a acuidade necessária para enxergar a poesia dis-

nik, para quem Leminski era uma espécie de lugar

so e daquilo, e por isso é o poeta, o prosador, o

entre o erudito e o desbundado.

Tudo isso para complexificar, simplificando, retirando as máscaras ao colocá-las, ao assumi-

homem do elogio.

Assim mesmo, se percebe a cada tentati-

-las enquanto um Yukio Mishima sem a loucu-

Caetano também gosta de enaltecer e o ga-

va de uma definição de Leminski uma espécie

ra ultradireitista do japonês halterofilista, faixa

bou algumas vezes. Numa delas, disse que ele tem

de língua bífida, antagônica, contrastante, a ter

preta em Kendô, espécie de São Sebastião tres-

uma mistura de concretismo com beatnik, que

que fazer uma coisa outra que não os elementos

passado pela própria espada. Samurai, também,

seus poemas eram concisos, rápidos e inspirados,

de que dispõe. É que falar de Leminski instaura

Mishima, como Paulo e John e Bashô e Cruz, e

“um barato muito único na curtição da literatura

uma espécie de fala, pois afim de captar a poesia

por que não Jesus. Viu a vida em close, venceu

no Brasil”. A professora Leyla Perrone-Moysés o

do que se equilibra em opostos e gera um outro

com a distração do perplexo ante o que não

chamou de Samurai-malandro, que bastava olhar

sempre arejador e adâmico, mesmo que em sua

conhecia, mas amava e assim se filiou à mais

nos olhos dos poemas de Leminski para ver que o

impossibilidade de ser qualquer coisa pela primei-

brasileira tradição dos antropófagos, dos tropi-

poeta estava dentro deles, que o que não interes-

ra vez. A poesia de Leminski, uma espécie de lisa

calistas, mesmo que desde a gelada Curitiba, da

sava não ia junto para dentro da poesia. Era uma

prosa, concisa e prometeica. A prosa, poética e

terra dos muitos pinhões, centro de uma das li-

forma de escrever só como essencial. Haveria um

catártica, entranha do antropófago, barriga cheia

teraturas mais diversas e interessantes do Brasil.

“olho do furacão imóvel”, enquanto o poeta ad-

de ideias, formas, cores e carnes. Ele escancara a

Leminski, assim como Trotski, sabia pôr os pin-

ministra o que escreve jogando com isso e para

erudição provinciana dos nossos, aplaude Visnik,

gos nos “is” também no que se referia ao mundo

dentro dele. “Do rio de palavras, Leminski se ri, e à

mas não pelo flanco, e sim por dentro. Chamou

da exploração à brasileira, dos negros pobres e

verborragia desatada ele pede, exigente, um mo-

a prosa da torrente do Catatau de “enxame de

indigentes, dos polacos e imigrantes que ele te-

mento de silêncio. Para bom entende-dor, meia

consciência”, em que o pai do racionalismo, René

matizou e pincelou com o riso melopeico que

palavra raspa; e para bom gozador, uma pisca-

Descartes se viu nos trópicos como que o próprio

tanto também fez rir e ver.

da basta. Leminski já foi e já voltou, e quem não

ocidente dentro do olho do furacão vital-natural-

Assim como os delicados, Leminski era

percebe a inteireza de suas meias-palavras ainda

-mítico de uma realidade plena de razões sempre

um homem que sabia elogiar, praticamente só

nem saiu de casa”, disse em comentário publica-

além das que se conhece. Vejamos, em alguns de

o tipo de pessoa capaz de chegar ao outro, de

do em Toda a poesia, de 2013.

seus poemas, um pouco do que se fala:

estar aberto para a beleza da alma e da carne do

Este samurai malandro, segundo a comen-

outro, tanto dos referidos e preferidos Cruz e os

tadora, ganha a partida seja com a lâmina da

Dor elegante

santos de sua mitologia pessoal, mas também

malandragem ou um jogo de cintura que, em

Um homem com uma dor

Gilberto Gil, o “mimo de todos os orixás”, o Tor-

sua velocidade, nos surpreende, golpe e ginga

É muito mais elegante

quato e o Trotski, a Alice, Moraes, Caetano, Bor-

tão simples que soam a um desaforo. É o que

Caminha assim de lado

ges, Bandeira, Pound, Oswald, Haroldo, Poe, Bob

preconiza Leila. De tal forma este efeito de sim-

Como se chegando atrasado

Marley, Lennon. Um homem que sabe elogiar é

plicidade na poesia de Leminski se dá que, diz

Chegasse mais adiante

um homem com uma flor no cabelo, um homem

Leila, qualquer “metagesticulçaão crítica ficaria

Carrega o peso da dor

que come tudo ao redor, Abaporu polaco, Aba-

ridícula, contraposta ao gesto exato do poeta”.

Como se portasse medalhas

poru negro de bigodes, como Cruz, nome que ele

A crítica literária lhe faz também fez o encômio

Uma coroa, um milhão de dólares

preferia em relação ao completo, o nome Souza

de o chamar de beatnik caboclo com filosofia de

Ou coisa que os valha

do dono branco.

malandro zen.

Ópios, édens, analgésicos

Quando escreveu sobre Cruz e Sousa, em

Haroldo de Campos resolveu apelidá-lo de

Não me toquem nessa dor

Blues & Souza, explicitou-se nos sentimentos da

um “Rimbaud curitibano com físico de judoca”.

Ela é tudo o que me sobra

Sabishisa, do Spleen, do Banzo e do Blues. A me-

Outros elogios atravessados: Caipira cabotino,

Sofrer vai ser a minha última obra


literatura

segundo SEMESTRE

2015

58

Poesia:

a voz, além, nem palavra.

ainda em 1968, com quem teve Áurea e Estrela,

“words set to music” (Dante via Pound),

O dialeto que se usa

além de Miguel Ângelo, que morreu com 10 anos.

“uma viagem ao desconhecido”

à margem esquerda da frase,

(Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra

eis a fala que me lusa,

non (Um atrapalho no trabalho), John Fante (Per-

Pound), “a fala do infalável” (Goethe),

eu, meio, eu dentro, eu, quase.

gunte ao pó), Yukio Mishima (Sol e aço), Petronio

“linguagem voltada para a sua própria

Leminski era também tradutor de John Len-

(Satyricon), Samuel Beckett (Malone morre), James

materialidade” (Jakobson), “permanente

m, de memória.

hesitação entre som e sentido” (Paul

Os livros sabem de cor milhares de

Valery), “fundação do ser mediante a

poemas.

dura, gravada em 1981, tornou o escritor-poeta

palavra” (Heidegger), “a religião original

Que memória!

curitibano conhecido em todo o País. Paulinho

da humanidade” (Novalis), “as melhores

Lembrar, assim, vale a pena.

Boca de Cantor gravou-o também (Valeu, 1981) e

palavras na melhor ordem” (Coleridge),

Vale a pena o desperdício, Ulisses

Ney Matogrosso (Promessas demais, com Moraes

“emoção relembrada na tranquilidade”

voltou de Tróia,

Moreira e Zeca Baleiro, 1982), Moraes Moreira (De-

(Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred

assim como Dante disse, o céu não

sejos manifestos, com Moraes Moreira e Zeca Ba-

de Vigny), “se faz com palavras, não

vale uma história.

leiro, 1986), Arnaldo Antunes (Luzes, 1994), Itamar

com ideias” (Mallarmé), “música que se

Um dia, o diabo veio seduzir um

Assumpção (Dor elegante, 1998) e outros. A partir

faz com ideias” (Ricardo Reis/Fernan-

doutor Fausto.

da década de 1970, publicou poemas em diversas

do Pessoa), “um fingimento deveras”

Byron era verdadeiro. Fernando, pessoa,

revistas. Paralelamente, o trabalho, belíssimo, em

(Fernando Pessoa), “criticism of life”

era falso.

prosa. Foi em 1975 que saiu Catatau, livro em

(Mathew Arnold), “palavra-coisa” (Sar-

Mallarmé era tão pálido, mais parecia

“prosa experimental”. A dor elegante da cirrose o

tre), “linguagem em estado de pureza

uma página.

matou no dia 7 de junho de 1989.

selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to

Rimbaud se mandou pra África, Hemin-

inspire” (Bob Dylan), “design de lingua-

gway de miragens.

gem” (Décio Pignatari), “lo impossible

Os livros sabem de tudo.

hecho possible” (Garcia Lorca), “aquilo

Já sabem deste dilema.

que se perde na tradução (Robert Frost),

Só não sabem que, no fundo,

“a liberdade da minha linguagem”

ler não passa de uma lenda.

(Paulo Leminski)…

Não discuto não discuto com o destino o que pintar eu assino

Paulo Leminski, além do poeta Homem-antena poundiano, liquidificador subtro-

Invernáculo

pical de frutos do pensamento artístico de todo

Esta língua não é minha,

o mundo, estava vivo o tempo todo, a ponto de

qualquer um percebe.

quase explodir. Os concretistas o acolheram, mas

Quem sabe maldigo mentiras,

ele andava de lado, com uma forma inquieta e

vai ver que só minto verdades.

desajustada de estar no mundo, como se num

Assim me falo, eu, mínima,

exílio. Em 1964, foram publicados seus primeiros

quem sabe, eu sinto, mal sabe.

poemas, na revista dos paulistanistas da poesia

Esta não é minha língua.

concreta: Invenção, que tinha Décio Pignatari no

A língua que eu falo trava

comando. Deu aulas de História e de Redação a

uma canção longínqua,

partir de então. Casou-se com a poeta Alice Ruiz

Joyce (Giacomo Joyce), entre outros. Compôs diversas músicas. Uma delas, Ver-

Obra poética: Quarenta clics em Curitiba (com o fotógrafo Jack Pires), 1976 Polonaises, 1980 Não fosse isso e era menos/não fosse tanto e era quase, 1980 Tripas, 1980 Caprichos e relaxos, 1983 Hai Tropikais (com Alice Ruiz), 1985 Um milhão de coisas, 1985 Caprichos e relaxos, 1987 Distraídos venceremos, 1987 La vie en close, 1991 Winterverno (com desenhos de João Virmond), 1994 O ex-estranho, 1996 Toda poesia, 2013 Infanto-juvenil: Guerra dentro da gente, 1986 A lua foi ao cinema, 1989 Prosa: Catatau, 1975 Agora é que são elas, 1984 Descartes com lentes (conto), 1995 Biografias e ensaios: Matsuó Bashô,1983 Jesus, 1984 Cruz e Souza, 1985 Trotski: a paixão segundo a revolução, 1986 Poe, Edgar Allan. O corvo, 1986 Anseios crípticos (anseios teóricos): peripécias de um investigador dos sentidos no torvelinho das formas e das idéias, 1986 Poesia: a paixão da linguagem, 1987 Vida (biografias: Cruz e Souza, Bashô, Jesus e Trótski), 1990. Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego, 1994 Ensaios e anseios crípticos, 1997


literatura

segundo SEMESTRE

2015

Por Cristiano Baldi,

59

escritor e doutorando em Escrita Criativa pela pontifícia universidade católica do rio grande do sul (PUCRS)

A HISTÓRIA SECRETA Luke Skywalker, um dos protagonistas de Guerra nas estrelas, leva uma vida pacata no planeta Tatooine. Ele passa a maior parte do tempo ajudando o seu tio Owen com o trabalho na fazenda da família. Certo dia, Luke recebe uma misteriosa mensagem holográfica em que uma jovem mulher clama por ajuda. Para Luke, a mensagem é uma novidade que chega para interromper sua rotina cansativa e sem graça. Ele sente que deve fazer algo a respeito, mas, quando finalmente é chamado a tomar parte na aventura e enfrentar o Império Galático, ele declina. Justifica sua atitude com a desculpa de que não pode abandonar seus tios, que precisa ficar com eles em Tatoonie. Corta para Neo, o herói da trilogia Matrix. Durante o dia, Neo é um funcionário de uma grande empresa de software. É um trabalho entediante, repetitivo, ao qual ele não consegue se dedicar como deveria. Ele chega atrasado com frequência e mantém uma relação conturbada com o chefe. À noite, Neo é um hacker. Passa as madrugadas no computador pesquisando a vida de outros hackers famosos. Em uma determinada manhã, ele está trabalhando em sua mesa e a polícia aparece no escritório. Assim que os policiais descem no andar em que ele trabalha, Neo recebe um telefonema. A voz do outro lado dá orientações do que ele deve fazer para fugir dos agentes. Neo, entretanto, tem medo de andar no parapeito em torno do prédio, a dezenas de metros de altura, acaba capturado e é levado para interrogatório. Ninguém diria que os dois personagens são iguais. Luke vive numa galáxia muito distante e Neo é um hacker com um emprego entediante. Mas nesse momento de suas trajetórias os dois se comportam de forma muito parecida. Depois de serem provocados a abandonar suas rotinas – rotinas que não são emocionantes nem especialmente agradáveis –, eles relutam em encarar o desconhecido. Ainda que por motivos diferentes, Luke e Neo não encontram força, vontade ou coragem para assumir os desafios que aparecem de repente. Mas não são apenas Luke e Neo que se comportam deste jeito. A literatura, o teatro e o cine-

ma – e também a mitologia e a religião – estão abarrotados de personagens que, em um primeiro instante, recusam a grande aventura de suas vidas. Por medo, por receio, por apego à rotina, por desinteresse: não importa. A questão é que, nesse momento da história, personagens que à primeira vista são muito diferentes começam a ficar parecidos. Todos eles estão cumprindo uma das etapas de uma história secreta, uma história que está escondida por trás de inúmeras histórias que a humanidade conta desde a antiguidade, uma espécie de esquema que foi inicialmente identificado pelo estudioso americano Joseph Campbell, na metade do século 20. Segundo Campbell, essa história secreta faz com que muitas narrativas sejam, de algum modo, iguais umas às outras, ainda que o público e mesmo seus autores não se deem conta disso. Ainda criança, Campbell mostrou grande interesse pela mitologia. Na faculdade, estudou literatura de língua inglesa e literatura medieval. Depois de acabar o mestrado, ele se mudou para a Europa, onde pesquisou mais a fundo a filosofia oriental. Já de volta aos Estados Unidos, para completar seu doutorado, Campbell se desentendeu com os professores, desistiu do curso e acabou se tornando um pesquisador independente. Ele se sentiu especialmente seduzido pelos estudos do psiquiatra e psicoterapeuta Carl Jung a respeito dos arquétipos. Em um trabalho de 1912, Jung usou o termo arquétipo pela primeira vez, para designar símbolos que habitavam o inconsciente de todas as pessoas, independentemente do lugar de onde vinham ou da época em que viveram. Em outras palavras, Jung achava que existem imagens e narrativas que estão escondidas na mente de todos os seres-humanos, desde o nascimento. Essas imagens e narrativas povoam a nossa imaginação, a imaginação do aborígene australiano, a imaginação dos homens que viviam nas cavernas e também a das pessoas que nascerão daqui a milhares de anos. Sob a influência da psicologia jungiana, Campbell começou a prestar atenção nas histó-

rias e notou que algumas etapas das narrativas mitológicas, religiosas e artísticas se repetiam com alguma insistência. Eventos muito parecidos aconteciam em histórias muito distantes no tempo e no espaço. O Novo e o Antigo Testamento, as tragédias gregas, os mitos indígenas, os romances modernos: todos eles pareciam obedecer a um mesmo princípio fundamental. Campbell chamou esse padrão de monomito, ou jornada do herói, e escreveu um livro sobre assunto – uma obra que o transformou em um homem famoso – chamado o Herói de mil faces. Mas por que as pessoas contam essa mesma história desde a antiguidade? E, pior, por que as pessoas continuam indo ao cinema, comprando livros, assistindo a peças de teatro que repetem uma mesma estrutura? Uma explicação é que as etapas propostas por Campbell são bastante próximas dos desafios ou das situações que nós experimentamos em nossas próprias vidas. Ainda que não percebamos, gostamos de nos ver representados nas histórias, de ver o personagem enfrentando emoções e dilemas parecidos com os nossos. Sentimos que há verdade na história e que ela fala direto aos nossos sentimentos e emoções mais profundos. Em seu livro, Campbell identificou 17 etapas do monomito, pelas quais uma história passa desde o momento que começa até o seu final. A recorrência dessas etapas, que não precisam estar todas presentes e nem têm de cumprir uma ordem rígida, é o que aproxima as narrativas umas das outras. É que aproxima Buda de Alice no país das maravilhas; é o que aproxima o clássico literário moderno Lolita, de Vladimir Nabokov, da franquia hollywoodiana Jogos vorazes; é o que faz com que Jesus Cristo, no Novo Testamento, seja, em alguma medida, parecido com Simba, do Rei Leão. E entre essas etapas está aquela que Joseph Campbell chamou de recusa do chamado. Ela acontece quando o protagonista do filme, do livro ou da história mitológica, depois de ser convocado a encarar um desafio e a deixar de lado sua antiga rotina, recusa ou questiona essa convocação. Isso


literatura

segundo SEMESTRE

2015

60

é precisamente o que fazem Luke Skywalker e Neo. Quando defrontados com uma força externa que os chama para uma aventura, eles acham justificativas para ignorar esse chamado. A recusa do chamado é um bom exemplo de como os personagens, ao viver a jornada do herói, fazem com que nos identifiquemos com eles. Ao ver esse receio e essa vacilação, enxergamos que há algo de humano naquele personagem, algo de verdadeiro, e então nos aproximamos emocionalmente dele. Imagine a sua própria vida. É bastante provável que você já tenha sido chamado para uma nova aventura, que tenha encarado a situação com algum nervosismo e alguma relutância, e que tenha considerado seriamente não aceitar o desafio. Pode ser um novo emprego, uma mudança de cidade, a escolha de um curso superior, um pedido de casamento ou a decisão de ter filhos: todas essas situações representam aventuras e, em boa parte das vezes, não se pode encará-las sem alguma dúvida e ansiedade. Assim como acontece com você, Luke Skywalker e Neo também têm suas próprias dúvidas e não saem por aí aceitando qualquer desafio que apareça – ao menos não sem refletir a respeito e sofrer algum abalo emocional com a decisão. De alguma forma, os personagens se comportam como nós em momentos de grandes escolhas, ficam nervosos, questionam a própria capacidade. Falta-lhes coragem, em um primeiro momento, para encarar a grande aventura de suas vidas. Assim como a recusa do chamado, as demais etapas do monomito também podem ser associadas à vida das pessoas comuns. Uma dessas etapas, chamada por alguns seguidores de Campbell de encontro com o mentor, acontece quando o protagonista encontra outro personagem que servirá como uma espécie de guia no início da aventura. Muitas vezes, o mentor é o responsável por fazer com que o herói finalmente aceite o desafio que surge a sua frente. No caso do jovem Luke Skywalker, o papel do mentor é desempenhado, ao menos no início do filme, pelo experiente jedi Obi-Wan Kenobi. Para Neo, em Matrix, o mentor é Morpheus, um dos líderes da luta entre os humanos e as máquinas. É ele quem convence Neo a sair da Matrix e conhecer a dura realidade à que a espécie humana está submetida. Para nós,

que não vivemos em um filme, o mentor pode ser um professor, um primo mais velho, um de nossos avós, um amigo, nossos pais, enfim, qualquer pessoa que nos ajude a aceitar os desafios e nos oriente sobre como os vencer. Também no caso do encontro com o mentor podemos encontrar relação entre a vida do herói e a nossa própria vida. O mentor é mais um elo de identificação entre nós e a história que estamos lendo ou assistindo. Mas é sempre assim? Todas as histórias seguem um mapa? É claro que não. O monomito, ou jornada do herói, não existia antes das histórias, como um modelo para elas. Ele existe, isso sim, em virtude das histórias. O que Campbell fez foi identificar um padrão que existia em muitas narrativas e organizar um raciocínio a respeito desse padrão. Muitos filmes e livros não trazem esta estrutura por trás e, ainda assim, somos capazes de gostar deles. Mesmo aquelas histórias que trazem muitos elementos do monomito não precisam trazer todos eles e, frequentemente, uma ou mais etapas ficam de fora. No filme Jogos vorazes, por exemplo, a protagonista Katniss não recusa o chamado. Pelo contrário: ela se oferece para viver a aventura no lugar de sua frágil irmã caçula. Assim se dá também com o mito grego de Perseu. Quando a tarefa de matar a Medusa lhe é delegada, o herói prontamente aceita e parte para cumprir o desafio. É óbvio que a indústria do entretenimento não poderia ignorar uma ferramenta tão promissora e cheia de potencial. Não demorou muito

Versão simplificada do monomito de Campbell

para que escritores e cineastas usassem os estudos de Campbell em seus filmes e livros. George Lucas declarou abertamente que se inspirou no livro de Campbell para criar os primeiros lançamentos da franquia de Guerra nas estrelas. Filmes como O senhor dos anéis, A história sem fim, Tubarão e Clube da luta também trazem muitos elementos do monomito. Mesmo as comédias românticas ou os filmes de arte, como os do diretor japonês Akira Kurosawa, mantêm um diálogo direto com a jornada do herói. Em razão disso, muitos críticos afirmam que o monomito pausteriza as produções literárias e cinematográficas, e cria uma fórmula fácil para o sucesso comercial. Em alguma medida, esta é provavelmente uma afirmação procedente. Basta ver os inúmeros lançamentos de filmes e livros que se apoiam na jornada do herói ou em simplificações baseadas nas proposições originais de Campbell. Por outro lado, muitas dessas obras caem no esquecimento ou acabam se transformando em fracassos de público ou crítica – ou de ambos. E o contrário também é verdadeiro. Narrativas que pouco têm a ver com o monomito acabam seduzindo os espectadores e os críticos. Isto mostra que, apesar de o monomito funcionar como inspiração e como ferramenta auxiliar para os criadores, ele não basta por si só. Há infinitos artifícios narrativos que não foram identificados, que não estão previstos em nenhuma estrutura ou regra, que são criados toda vez que alguém escreve um livro ou um filme. A partir de hoje, comece a prestar atenção nos filmes que você assiste e nos livros que lê. Você vai se deparar muitas vezes com o protagonista recusando o chamado para a aventura e, mais tarde, encontrando o seu mentor. Você vai perceber que, apesar de ter personalidades e características físicas diversas, os personagens são muito mais parecidos do que normalmente imaginamos. Mas, principalmente, comece a prestar atenção em sua própria vida. Você vai se dar conta de que, de algum modo, você é igual aos heróis. Que você também reluta e sente ansiedade no momento em que uma nova aventura surge em sua vida. Que você também tem mentores. E que talvez seja por isto que você gosta dos personagens dos bons filmes e livros. Porque eles são como você.


literatura LEITURA

segundo SEMESTRE

2015

SEGUNDO SEMESTRE

2015

61 61

L OT E S VA G O S O C U PAÇ Õ E S B reno S ilva

E X P E R I M E N TA I S e

L o u ise G an z

Amor sem fim

Short movies Gonçalo M Tavares

LOTES VAGOS – ocupações experimentais

VERMELHO AMARGO

Ian McEwan Cia. das Letras

Dublinense

Breno Silva e Louise Ganz

Cosac Naify

Bartolomeu Campos de Queirós

Ed. Cidades Criativas “Se a observação da variedade humana

Sou apaixonada pelos autores de

Lançado em 2009, o livro apresenta

Ao ler a epígrafe “foi preciso deitar

pode dar prazer, isso também se aplica

língua portuguesa, principalmente

um relato detalhado do projeto

o vermelho sobre papel branco

às semelhanças.” Com esta conclusão

pelos do continente africano, cujo

Lotes Vagos: Ação Coletiva de

para bem aliviar seu amargor”, o

do narrador logo nas primeiras páginas

vocabulário é tão rico e diverso, tão

Ocupação Urbana, desenvolvido

leitor perceberá que não se trata

de Amor sem fim, o inglês Ian McEwan

permeado pela língua dos povos

pelos artistas Breno Silva e Louise

de uma simples leitura.

dá o tom de mais uma história vivida

ancestrais quanto o do português

Ganz em Belo Horizonte e Fortaleza.

Delicada e cortante como “arame

por gente comum. Como é comum

falado no Brasil. O escritor angolano

Nos anos de 2005, 2006 e 2008, em

farpado”, a prosa poética de

na obra do autor, o extraordinário

Gonçalo M Tavares é uma linda

conjunto com grupos de artistas,

Bartolomeu Campos de Queirós é

– fundamental a toda narrativa de

descoberta para quem, como eu, é fã

arquitetos e diversas outras pessoas

dolorosamente bela.

respeito – acontece num dia qualquer.

de outro angolano, o Pepetela. Mas

que se engajaram na proposta,

As fatias cada vez mais finas de

Do título à última página, o livro é uma

Short Movies não é exatamente um

lotes de propriedade privada foram

tomate servidas pela madrasta

provocação. De forma indireta, mas

livro. É preenchido por letras, palavras

transformados em espaços públicos

sugerem uma contagem regressiva

absolutamente firme, McEwan instiga

e frases a cada página, porém, como

temporários. Hortas, oficinas, refeições

para tentar suprir a ausência de

o leitor a um balanço sobre alguns dos

o próprio título indica, é tão próximo

coletivas, spa, sala de estar, salão de

afeto. O narrador observa seus

paradigmas que compõem o padrão

do cinema quanto da literatura. Short

beleza, redário, palco para shows,

irmãos mais velhos irem embora

contemporâneo de felicidade.

Movies são filmes escritos. Cada

casa temporária... as possibilidades de

de casa.

O casal que compõe a trama é formado

“conto” (digamos assim) deve ser lido

ativação foram inúmeras. No livro, os

De inspiração autobiográfica, a

pelo que se espera, socialmente,

como se estivesse sendo visto como

artistas buscam explicitar as questões

história revisita uma infância

de dois perfeitos exemplares da

um filme de curta duração. Os textos

que o trabalho levanta, desde o limite

melancólica e revela, de sobrevoo,

espécie humana: um homem e uma

do escritor me remetem aos filmes de

entre público e privado, até as formas

pequenas fragilidades cotidianas.

mulher, adultos, europeus, urbanos,

artistas: alguns são nonsense beirando

alternativas de organização social em

“Mesmo em maio – com manhãs

politicamente corretos. Tudo vai bem

o surrealismo, outros descrevem uma

micro-escalas e seus desdobramentos

secas e frias– sou tentado a

até que o testemunho de uma tragédia

única cena, uma paisagem, o vento

quanto às relações de convivência no

mentir-me. E minto-me com

invade o cotidiano. Ao leitor, surge uma

na paisagem, um sentimento no

mundo contemporâneo.

demasiada convicção e sabedoria,

experiência tão transformadora quanto

rosto de um personagem. E assim o

sem duvidar das mentiras que

passear num balão descontrolado. Não

livro na mão do leitor/espectador se

invento para mim.”

é de sensações assim que se faz um

transforma em tela de cinema.

bom livro? Leia e confira.

Gustavo Machado

adriana martorano

Aline Bueno

vitor mesquita

Escritor e jornalista

jornalista e gestora cultural da casa das artes villa mimosa

gestora CULTURAL DA ASSOCIAÇÃO CULTURAL VILA FLORES

artista visual e designer gráfico


primeiro SEMESTRE

2015

62



6º Festival Internacional Sesc de Música Pelotas-RS

De 18 a 29 de janeiro de 2016

Recitais na Bibliotheca Pública Pelotense, Concertos no Theatro Guarany, Largo do Mercado Público, Catedral, Praia do Laranjal e Festival na Comunidade. Confira a programação em: sesc-rs.com.br/festival

Apoio Institucional:

Realização:


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.