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PRIMEIRO sEMESTRE
2017 ISSN 1984-056X
palco giratório: 20 anos de estrada Mostra Sesc de Cinema exibe produção nacional inédita A distância entre leitores e vencedores de prêmios literários
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08
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artes cênicas
caderno de teatro
música
08 Os 20 anos do Palco Giratório:
22 A trajetória de 25 anos de encontros,
33 35 anos sem Elis Regina: artigo do músico
a diversidade da produção nacional
trocas e aprendizagens do Núcleo de
e jornalista Arthur de Faria relembra os
acessível ao público de todo o país
Investigação Usina do Trabalho do Ator
bastidores da gravação do antológico
(UTA), que participa do 12º Festival
álbum Elis e Tom (1974) e o jornalista Juarez
Palco Giratório com os espetáculos
Fonseca imagina como seria a artista hoje,
Histórias Negras para Crianças de Todas
aos 72 anos
12 A experiência dos grupos gaúchos que circularam pelo projeto Palco Giratório
as Cores, Dança do Tempo e Eu Não 36 Crítico João Luiz Sampaio analisa os sentidos
15 Parlapatões, grupo do mestre da palhaçaria
Sou Macaco!, exposição fotográfica e
Hugo Possolo, é uma das atrações do 12º
intercâmbio com o coletivo boliviano
da música a partir da programação
Festival Palco Giratório em Porto Alegre
Teatro de Los Andes
do 7º Festival Internacional Sesc de Música e sua interação com a comunidade
18 A Cia. do Tijolo, que apresenta O Avesso do Claustro e Ledores no Breu no 12º Festival
38 Com os temas “Na pisada dos cocos” e
Palco Giratório, reflete sobre o Brasil atual a
“Bandas: formações e repertórios”, Sonora
partir de pensadores do século 20
Brasil chega à 20ª edição
O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. ISSN 1984-056X
www.sesc-rs.com.br
DIRETORIA Luiz Carlos Bohn
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura
Anderson Mueller Música e Audiovisual
Jane Schöninger
Artes Cênicas e Artes Visuais
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. Marcílio Dias Longaray, 01 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Canoas Av. Guilherme Schell, 5340 51 3463.6756 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur Milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403
Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871 55 3352.6225 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
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AUDIOVISUAL
ARTES VISUAIS
literatura
40 Projeto Mostra Sesc de Cinema
44 Em “Os caminhos e descaminhos da
50 A distância que separa os leitores dos
possibilita uma oportunidade
curadoria”, Francisco Dalcol reflete
livros vencedores de prêmios de literatura
para novos realizadores exibirem
sobre a banalização do termo a
em um país que não conta com políticas
seus filmes e traça um panorama
partir da análise da sua origem e
consistentes de leitura é o tema do artigo
da produção nacional em curtas
dos antecedentes da atividade até
de Henrique Rodrigues
e longas metragens; além disso,
chegar às artes visuais 52 “Por que não conhecemos as escritoras
contribui para a formação de plateia
negras gaúchas?” é a reflexão da jornalista
para o cinema brasileiro
e escritora Priscila Pasko 59 Leitura
BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal Av. General Osório, 1030 51 3682-3041 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de Moura Jardim, 1250 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata R. Luiz Marafon, 328 54 3242.3437 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí Av. Sete de Setembro, 1281 55 3423.5403 Santiago Av. Getúlio Vargas, 1079 55 3251.9373 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
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Vitor Mesquita
Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte
Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem
SescRS
Greice Zenker
Revisão de Texto
Ideograf sescrs
Impressão de 1.500 exemplares
CAPA
O Amargo Santo da Purificação, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz Foto: Claudio Etges
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Espetáculo O Avesso do Claustro, da Cia. do Tijolo Foto: Alécio Cezar
uma edição para comemorar a cultura Em 2017, celebramos os 20 anos do Circuito Nacional Palco Giratório Sesc e, ao mesmo tempo, chegamos ao 12º Festival Palco Giratório Sesc/POA, um evento que traz à Capital dos gaúchos mais de 100 sessões artísticas e proporciona um verdadeiro intercâmbio cultural. Embora o cenário político-econômico siga conturbado, acreditamos que a valorização da cultura se faz cada vez mais necessária. O acesso à cultura abre janelas e portas para a educação e enriquece a população; assim, poder alcançar pessoas em todos os cantos do país é um estímulo para seguirmos com essa missão. Nas próximas páginas, você poderá conferir os relatos de grupos que circularam por cidades distantes do nosso Brasil e, com sua arte, puderam tocar a vida destas comunidades. Por falar em tocar as pessoas, os projetos musicais também figuram nesta edição: o artigo do jornalista e crítico musical João Luiz Sampaio sobre o Festival Internacional Sesc de Música traz uma visão única e sensível do evento que reuniu mais de 250 alunos e 30 mil espectadores no início deste ano em Pelotas. Ainda na área musical, a nossa cultura não pode deixar de ser exaltada ao lembrar as mais de três décadas sem um ícone da música popular brasileira, Elis Regina, e os temas da Mostra Sonora Brasil Sesc, que dá voz a manifestações ricas e pouco conhecidas do público. O audiovisual também tem destaque nesta edição da Revista Arte Sesc, com a Mostra Sesc de Cinema. Da mesma forma, as artes visuais, com artigo de Francisco Dalcol sobre curadoria, e a literatura, com temas que permeiam os projetos Arte da Palavra e Sesc Mais Leitura. Continuemos disseminando a cultura por toda parte, da Capital aos confins do Rio Grande do Sul, pois este é o nosso papel no cenário cultural do Estado.
Luiz Carlos Bohn
Luiz Tadeu Piva
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Diretor Regional Sesc/RS
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Duas décadas de Palco Giratório Maior circuito de artes cênicas do país, em sua 20ª edição, em 2017, faz homenagem à Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre Reconhecido no cenário cultural brasileiro como uma das maiores iniciativas de difusão e intercâmbio das artes cênicas, com importante repercussão na formação de plateias a partir da circulação de espetáculos dos mais variados gêneros, o projeto Circuito Palco Giratório completa 20 anos em 2017. Neste período, levou a um público também diversificado, das capitais e do interior de todos os estados do país, 9.526 apresentações de grupos de teatro, circo, dança, entre outras linguagens artísticas, em instalações do Sesc e de parceiros, praças e outros espaços urbanos. Além de espetáculos para todas as faixas etárias, o Palco Giratório tem uma extensa programação de oficinas, mostras e encontros locais de arte e cultura, idealizada com o objetivo de promover
ARTES CÊNICAS
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e incentivar as manifestações artísticas regionais,
em 144 cidades de 26 estados e do Distrito Federal.
com Kassandra in Process, aos que Virão Depois de
fomentando a troca de experiências com os artis-
Também serão realizadas 1.188 horas de atividades
Nós / A Saga de Canudos; e 2010, com O Amar-
tas que circulam por todo o país, em cada edição,
formativas e seminários, nos quais serão discutidos
go Santo da Purificação – destaca-se no cenário
divulgando seu trabalho. O projeto também pro-
aspectos relevantes das artes cênicas e políticas
nacional por promover a abertura de renovadas
move o Pensamento Giratório, um espaço aberto
públicas para o teatro, entre outros temas. A pro-
perspectivas para o teatro na rua e a ocupação do
ao público para reflexão e discussão sobre o traba-
gramação 2017 teve início em Campina Grande,
espaço público como potencializador de reflexões
lho e a pesquisa dos grupos itinerantes.
na Paraíba, com a exibição do novo espetáculo da
políticas e estéticas.
A capilaridade do Sesc possibilita que não só
Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto
todos os estados brasileiros recebam o projeto, mas
Alegre, que está completando 39 anos de atuação
que especialmente os pequenos municípios do in-
e, como grupo homenageado desta edição, fará
terior, com mais dificuldades para a população ter
circulação especial por 19 cidades ao longo do ano.
acesso a uma produção diversificada e continuada,
Releitura da obra de Shakespeare, feita por
possam assistir a espetáculos que são referência
Augusto Boal (1931-2007), Caliban – A Tempestade
nas artes cênicas em nível nacional. Descentralizar
de Augusto Boal apropria-se da peça do dramatur-
a arte e estabelecer novas redes de circulação e in-
go inglês e do pensamento do poeta, ensaísta e crí-
tercâmbio é uma estratégia de fomentar a produ-
tico literário cubano Roberto Fernández Retamar
ção cultural e a formação de plateia, contribuindo
para questionar a exploração da América do Sul
para o desenvolvimento da cidadania.
pelo colonialismo europeu e para discutir a pos-
Na 20ª edição, o Palco Giratório conta com
tura neocolonialista dos Estados Unidos. O grupo
a participação de 20 companhias e artistas, que
– que já participou da circulação nacional do Pal-
farão 685 apresentações artísticas e intercâmbios
co Giratório 2002, com A Saga de Canudos; 2003,
Caliban, a Tempestade de Augusto Boal, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, abriu a edição 20 do projeto, em Campina Grande/PB Foto: Pedro Isaias Lucas
ARTES CÊNICAS
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O OLHAR ATENTO DA CURADORIA Uma curadoria descentralizada realizada por membros do Sesc de todas as regiões possibilita uma programação plural, com diversos sotaques – uma amostra do que está sendo produzido em todo o território nacional. Nesta edição, os 20 espetáculos contemplam teatro adulto, teatro de rua, teatro para infância e para juventude, dança, circo e intervenções urbanas, sendo que muitos destes dificilmente encontrariam, sem o apoio do Sesc, viabilidade de circulação para apresentações nas diversas regiões do país. Entre os destaques estão os espetáculos Caranguejo Overdrive, da Aquela Cia. de Teatro, montagem vencedora do Prêmio Shell em três categorias, e a intervenção urbana DNA de DAN, de Maikon K, Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna. Em São Luís existem muitos grupos teatrais em formação e expansão. Eles regularmente estão nas programações do Sesc, então fica menos difícil fazer um acompanhamento mais próximo. Não existem temporadas para os espetáculos na cidade. As apresentações de estreia acontecem normalmente por um final de semana e, depois, ficam aguardando os poucos eventos que acontecem. É importante que os trabalhos entrem na programação do Sesc, mas também que eles sobrevivam para além desta. E sem uma política pública e investimentos privados para as artes cênicas, alguns espetáculos não sobrevivem, não adquirem maturidade suficiente. Raras vezes conseguem fazer circulações, nem pelo interior ou fora do Estado. Poucos grupos conseguiram chegar a um nível de profissionalização.
Caranguejo Overdrive, Aquela Cia. de Teatro Foto: Claudio Etges
Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges
Considerando todas as limitações pelos
assistidos presencialmente pelo curador
quais os grupos cênicos passam em nos-
local, no entanto sem o compromisso de
sa região, para nós, é de extrema alegria
indicação, e assim é. Para alguns proje-
fazer parte da história dos 20 anos do
tos elaboramos o edital de credencia-
Palco Giratório, projeto pelo qual circu-
mento de propostas artísticas, o que nos
laram quatro espetáculos do Maranhão:
permite mapear boa parte da produção
Pai e Filho, da Pequena Cia. de Teatro;
e acompanhar o desenvolvimento dos
O Miolo da História, da Santa Ignorância
grupos ao longo dos anos. Analisamos
Cia. de Artes; O Divino, do Núcleo Atmos-
os aspectos conceituais da pesquisa
fera; e A Carroça é Nossa, do Xama Teatro.
e a linha de trabalho do grupo; se há
Todos esses trabalhos já possuíam um
diálogo entre os diferentes gêneros,
currículo bastante extenso. Alguns dos
tendências e estilos; os aspectos ino-
artistas tinham uma relação muito
vadores e diferenciados do espetáculo;
próxima com o projeto Palco Giratório,
a possibilidade para desdobramento de
como participantes de oficinas e apre-
ações formativas; a relação profissional
ciadores de espetáculos ao longo dos
que se estabelece a partir das contrata-
anos. Mas cada espetáculo foi indicado e
ções no Sesc; a capacidade de gestão e
entrou na circulação do palco no tempo
manutenção dos grupos; a repercussão
certo que deveria entrar.
gerada do espetáculo e a proximidade
Para além dos critérios do processo de
com os grupos nos permite, de vez em
curadoria nacional, também conside-
quando, esclarecer dúvidas e dificulda-
ramos que os espetáculos deverão ser
des sobre uma grande circulação.
ARTES CÊNICAS
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Acredito que iniciamos uma nova fase,
observo sempre o compromisso do gru-
que é o compartilhamento e as trocas
po com a cena local, as possibilidades de
ESPETÁCULOS DA 20ª EDIÇÃO
de experiências entre os grupos que já
contribuição com outras atividades do
A programação do Circuito Palco Giratório 2017
circularam. Assim, observo que natural-
projeto (oficinas, Pensamento Giratório
está no site www.sesc.com.br/palcogiratorio/
mente eles se aproximaram ainda mais
e intercâmbio). O grupo precisa estar
e novos grupos ampliaram seus desejos.
amadurecido para a “empreitada” que é
É o sonho de todos os grupos, mas isso
circular esse país continental. Além dis-
acontece sem pressão e como conse-
so, sempre que um grupo sergipano está
quência de um trabalho qualitativo de
em circulação pelo país, faço questão de
todos os envolvidos.
avisar ao curador daquele Estado para
Isoneth Almeida
assistir também o espetáculo. Assim,
Curadora do Palco Giratório – Sesc/MA
podemos dividir impressões. É maravilhoso poder contar com um curador em
Para ser curador do Projeto Palco Gi-
qualquer região do país! Eu desconheço
ratório é preciso estar atento à pro-
uma curadoria com essa capilaridade.
dução cênica do nosso Estado. Não dá
Busco sempre, na medida do possível,
para assumir essa função sem ter esse
estar próximo dos artistas, visito proces-
comprometimento. Cada curador pode
sos de construção de espetáculos; é uma
indicar até cinco propostas. Sergipe é
tarefa que me dá prazer! É como se fos-
pequeno, a produção cênica também.
se um “cuidar” para no futuro distribuir,
Às vezes nem alcançamos esse número,
oportunizar, proporcionar encontros por
porque, além de primar pela qualidade,
meio desse projeto que, muito mais que uma turnê, é uma troca afetiva que já dura 20 lindos anos! André Santana
CALIBAN – A TEMPESTADE DE AUGUSTO BOAL Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS) WOMEN’S Experiência Subterrânea (SC) CARANGUEJO OVERDRIVE Aquela Cia. de Teatro (RJ) ABRAZO Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN) FUI! CiaSenhas de Teatro (PR) DILÚVIO MA Ecopoética: Arte e Sustentabilidade em Intervenções Urbanas (RS) NA ESQUINA Coletivo Na Esquina (MG) DNA DE DAN Maikon K (PR) MAIÊUTICA Raquel Mützenberg (MT) PALAFITA Grupo Fuzuê (CE)
Curador do Palco Giratório – Sesc/SE
À BEIRA DE... Silvia Moura (CE)
O projeto Palco Giratório impulsionou a
FINITA Denise Stutz (RJ)
política cultural no Sesc/BA ao ampliar sua ação para o interior. Constata-se a contribuição que tem dado para o desenvolvimento cultural local tanto em Salvador como no interior, onde existem unidades do Sesc. Quando o projeto foi implantado, em 2003, não realizávamos grandes eventos nem festivais no Estado, essas ações vieram após a realização das Aldeias. Ao fazer circular espetáculos da cena brasileira (de diversas linguagens), acompanhados de oficina ou palestras, painéis, intercâmbios, Aldeias, por onde cada etapa passa, vamos formando plateias e transformando cidadãos. Ana Paolilo Curadora do Palco Giratório – Sesc/BA
RUÍNA DE ANJOS A Outra Cia. de Teatro (BA) LETE Beradera Cia. de Teatro (RO) OS MEQUETREFE Parlapatões (SP) HAMLET – PROCESSO DE REVELAÇÃO Coletivo Irmãos Guimarães (DF) LEDORES NO BREU Cia. do Tijolo (SP) CINZAS AO SOLO Alexandre Américo (RN) O QUADRO DE TODOS JUNTOS Pigmalião Escultura que Mexe (MG) NINHOS Balagandança (SP)
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A diversidade da produção gaúcha no Palco Giratório
Louça Cinderella, teatro de objetos da Cia. Gente Falante Foto: Vilmar Carvalho
O Lançador de Foguetes, Grupo de Teatro DePernasProAr Foto: Odair Fonseca
Nas 19 edições do Circuito Palco
com esse povo nosso! Nascemos para amar esse
Giratório, os coletivos que
povo brasileiro, temos fé nele! Eles são sensíveis;
representaram o Rio Grande de Sul
com eles esse país logo fará jus ao seu tamanho”.
na circulação nacional tiveram
Essa fé fica inabalável quando pensamos o quan-
participações destacadas com teatro
to de gente acredita nesse encenar gigante; foi
de bonecos e de objetos, teatro de rua,
fácil derramar paixão por essa máquina Palco Gi-
teatro infantil, circo, entre outros
ratório, azeitá-la e fazer muito bem feito o nosso
gêneros e manifestações.
papel e algo mais! Ficar com muita saudade, sentimento que só a nossa língua brasileira compre-
Mosaico brasileiro vivo
ende, nesses momentos foram imprescindíveis de
Paulo Martins Fontes e integrantes da Cia.
compreender.
Gente Falante – Teatro de Bonecos
A luz sempre constrói por onde passa um mais estruturado ou mais atento às necessidades
rastro de consciência; muitas luzes virão, com
Fazendo uma retrospectiva da nossa experiência
de adaptação e superação, para deixar história da
prismas giratórios da diversidade. Temos fé que
“Palco Giratório”, desde o nosso primeiro circui-
nossa tessitura cultural, construindo a Identida-
os nossos governantes vão aprender e enxergar
to com o Circo Minimal (2008), já percebíamos o
de Brasileira – isso é Palco Giratório. Tanta gente
o seu papel na hora de criarem novas políticas
quão abrangente esse projeto nacional se tornava
envolvida, tanta gente abnegada e estudando ar-
públicas, se espelhando nesse colossal misturador
nas nossas vidas, um rito de passagem instigante
duamente por onde as linhas que costuram esse
de arte que chega a todos os cantos do Brasil. Te-
e com um menu cultural incrível, plataforma de
tramado diverso vão fiar, construindo um tapete
nho fé, também, que os cidadãos compreenderão
autoconhecimento, conscientizador da grande
que sobrepõe a nação com uma promessa de “mais
o quão de direito eles têm para tomar posse do
extensão territorial; e vislumbramos o tal gigante
uma vez!!!” chegar aos ribeirinhos, às favelas, aos
conteúdo que um projeto como o Palco Giratório
Brazuca e o quanto de riquezas possuímos!
vilarejos esquecidos pelos governantes, aos assí-
tem a oferecer, querendo mais e mais arte e nesse
Descentralizar, diversificar, apresentar um pa-
duos de artes, aos desconhecedores, a todos, com
movimento: “ter um espaço de ver e ter liberdade
norama de produção artística nacional, estabelecer
grandiosidade, mesmo que o espetáculo seja pe-
de expressão” garantido!
elos entre as tribos, compreender-se como núcleo
queno em escala.
Cremos na essência pura e boa brotando
artístico neste universo, deliciar-se com as diferen-
E como se fosse pouco, voltar ao circuito
nesses momentos de encontro; 20 anos de conso-
ças, comunicar-se, universalizar-se... Ficaríamos uma
novamente, revigorar a relação com os que têm
lidação promovendo integração é o papel de um
tarde inteira enumerando as joias que nos agracia-
fome de arte; nós que temos fome de dialogar,
grande sol; temos muito orgulho de fazer parte
ram ao participar dessa colossal rede de cultura, mas
de trocar figurinhas... de aprender, vendo o brilho
desse desbunde nacional, que é a permanência de
ainda seria pouco, pois haveria a citar alguns milhões
nos olhares negros, castanhos, azuis, verdes. Com
20 incríveis aniversários de um projeto no qual
de “pérolas que esse projeto distribui aos povos”, to-
Louça Cinderella (2014), foi mais incrível ainda;
sempre se presenteia a todos, sem distinção, é do
dos eles, conhecedores de teatro ou não, ampliando
foram emoções admiráveis, tínhamos que possuir
que precisamos para ter orgulho do Brasil.
seus horizontes por meio da arte disposta em “Mo-
nervos de aço para não nos contaminar e desa-
saico Brasileiro”. Sim, Mosaico Brasileiro Vivo, pul-
guar durante a encenação; depois, se esvair em
sante, cada vez mais surpreendente, a cada ano com
lágrimas com tanta gente delicada a nos acari-
o olhar mais atento, misturado, mais apreendido,
nhar e vinha a sensação de “queremos ficar mais
Parabéns aos fazedores do Palco Giratório; em todas as instâncias desse feitio! Parabéns, Palco Giratório – nosso grande orgulho nacional!
ARTES CÊNICAS
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Viver a experiência de conhecer e ser conhecido
sam e aprofundam seu trabalho tenham a mes-
ali mais perto; dentro do espetáculo, uma grande
ma oportunidade de viver este sonho de ter suas
festa, menino montado no burrico, bocas abertas,
Grupo de Teatro DePernasProAr
obras espalhadas por todos os cantos.
adultos ao longe espiando pelas portas entrea-
Dentro das atividades formativas que o Pal-
bertas. E no meio da apresentação algo inusitado
Foram tantas rodas, milhares de olhares, ali, nas
co Giratório proporciona, como Pensamento Gi-
acontece: é a chuva que vem abrandar um calor
ruas e praças deste Brasil, diferentes e ricas cul-
ratório, Intercâmbio, destacamos as oficinas, que
de quase 40 graus, as crianças começam a gritar
turas se misturaram com o nosso fazer num cons-
nos trouxeram um arremessar-se num universo
ainda mais, o Lançador com um nó na garganta,
tante devir. O Palco Giratório exige coragem, força
de novas possibilidades criativas. Oficineiro e
resolve continuar até o fim. A chuva como che-
no trabalho, generosidade e nos oferece uma outra
oficinandos juntos, rompendo barreiras, recons-
gou foi embora num piscar de olhos, o sol voltou
dimensão a nossa arte, é um sonho possível e nós
truindo técnicas, encontram-se um no outro, e
a reinar, o Lançador com seu triciclo repleto de
o vivemos com toda intensidade.
neste deslocar-se germina o ator inventivo.
engenhocas astrológicas e malabares ilusionistas
O Palco Giratório é a maior rede de intercâm-
Entre tantas histórias que vivemos, quere-
conduz todos a uma jornada para lançar fogue-
bio e difusão das artes cênicas do nosso país. Pos-
mos compartilhar uma em especial. Foi em Bu-
tes-ideias ao ar. Dentre as muitas frases que se
sui uma estrutura logística com profissionais incrí-
íque, no agreste de Pernambuco, um solo semi-
sucederam no final do espetáculo, algumas não
veis, que, com carinho, dão todo o apoio e suporte
árido, com escassez de água, e de tantas outras
saem da nossa cabeça. Uma menina de 6 anos me
necessário para a circulação, construídos em 20
coisas, numa rua com calçamento de pedra, esgo-
abraçou no final e disse “Obrigado por você ter
anos de experiência, uma rica teia que liga as artes
to a céu aberto, onde crianças com as latas pen-
chegado até aqui”; e outro menino que, gritando,
cênicas do Brasil a um público diversificado, prin-
duradas nos ombros se enfileiravam para pegar
disse “Você é o homem que traz a chuva né?”. Pois
cipalmente a lugares e cidadãos com acesso muito
água no único lugar onde existe um reservatório,
fica a reflexão: aonde o teatro chega com o proje-
restrito a equipamentos culturais e à arte, e nós
na escola da vila. Ali, pela primeira vez um espe-
to Palco Giratório, levando outras formas de arte,
tivemos a felicidade de ver e viver esta experiência.
táculo de teatro, algo a se somar nesta paisagem
sonhos e possibilidades acontecem.
O Grupo de Teatro DePernasProAr completa,
forte, verdadeira, sofrida, mas extremamente re-
Esse acúmulo de vivência e experiências rea-
neste ano, 29 anos do seu fazer artístico (apre-
ceptiva e alegre. É neste cenário que surge O Lan-
firma nossa busca de novas formas de se comuni-
senta esta alquimia entre as linguagens do tea-
çador de Foguetes: irreverente e sem uma palavra,
car com o público e o espaço urbano. Hoje, temos
tro de animação, do circo, do teatro de rua, da
vem entre as casas do pequeno povoado; mais
certeza de que estamos no caminho certo… o ca-
música e das máquinas engenhosas, elementos
de 300 crianças largando da escola se deparam
minho da construção, da arte… do lúdico… da ge-
que constituem nossa linguagem); levamos na
com algo inusitado, não sabem muito bem como
nerosidade… da vida, que propõe novos caminhos
bagagem a experiência de ter circulado em 2015
reagir, mas vão se misturando, gritando, rindo,
para que consigamos andar distintos.
no Palco Giratório com os espetáculos O Lança-
olhares curiosos, conversas, todos querendo estar
dor de Foguetes e Mira. Foram 24 estados, com 46 apresentações d’O Lançador de Foguetes, 11 apresentações do Mira, 22 oficinas, 2 encontros da atividade Pensamento Giratório e 2 intercâmbios. Um projeto necessário, que nos proporcionou diferentes olhares sobre nosso trabalho, do Sul ao Norte, do Sudeste ao Centro-Oeste e o Nordeste, das capitais às cidades pequenas e esquecidas do interior do nosso Brasil. Nosso palco é a rua, o Palco Giratório reafirma a cada edição seu compromisso com a arte pública, rico espaço urbano de vivências e carências, cumprindo assim uma de suas premissas, a disseminação e o fomento do teatro no Brasil. Desejamos que ele cresça e seja exemplo de política pública para as artes, e que um dia todos os grupos de teatro que pesqui-
Vida longa ao Palco Giratório do Sesc!
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2017
14
Lembranças de vivências fantásticas
terrestre e nos permitiu assim um contato mais
o impacto desse projeto na cultura do país e na
Giancarlo Carlomagno, ator e produtor
próximo com a população. Foram vivências fan-
vida dos artistas de teatro. Mas o que me dá ganas
do Oigalê
tásticas principalmente nas cidades mais “singelas”
de compartilhar, ao pensar no “Palco”, é justamen-
no que diz respeito ao número populacional.
te a sua capacidade de chegar a um público que,
Falar do projeto Palco Giratório do Sesc é exercitar
Diversas são as histórias, os acontecimentos e
muitas vezes, por estar fora dos grandes centros
um resgate de boas e significativas lembranças na
os encontros com profissionais da área e população
do país, fica distanciado da possibilidade de entrar
história da Oigalê. Há mais ou menos 10 anos, mais
em geral. Muitos desses encontros transformaram-
em contato com diversas linguagens, entre elas o
especificamente no ano de 2006, tivemos o privi-
-se em grandes amizades que perpetuam até os dias
teatro. Levar o teatro a cidades do interior deste
légio de participar com dois espetáculos de nosso
atuais. Para nós, participar do Palco Giratório foi
imenso país é algo de extrema importância. Des-
repertório de teatro de rua: Deus e o Diabo na Terra
uma confirmação da grande extensão do Brasil e da
centralizar é vital e necessário.
de Miséria e O Negrinho do Pastoreio.
sua imensurável diversidade cultural. As diferentes
Outra coisa que também quero ressaltar é a
Nas dezenas de apresentações teatrais e ofi-
espécies de fauna e flora, a incrível generosidade da
beleza da troca, do encontro. A aprendizagem que
cinas pelo Brasil afora (Paraná, Amazonas, Ama-
população, a possibilidade de acesso às cidades do
se estabelece é riquíssima. Tenho lições que leva-
pá, Pará, Pernambuco, Bahia, Ceará...), circulando
interior, descentralizando e possibilitando o contato
rei comigo pra sempre: são encontros com jovens
bastante pelo Norte e Nordeste, aliás algo muito
com outras culturas, climas e, acima de tudo, do ser
cheios de ânimo ou os velhos mestres da cultura
característico desse projeto, nossa maior “perna”
humano incrível que habita este país.
popular. É um grande intercâmbio de experiências.
foi no Estado de Pernambuco, onde pudemos vi-
Vida longa ao Palco Giratório!
Enfim, é um privilégio participar desse projeto que é, de fato, uma grande celebração do encontro.
venciar uma circulação terrestre por grande parte das cidades e seus diferentes biomas. Neste estado,
A celebração do encontro
iniciamos pela zona do Rio São Francisco (Petroli-
Tânia Farias, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui
na), passamos pelo agreste (Bodocó e Buíque), pelo
Traveiz – grupo homenageado no Circuito Palco
sertão (Caruaru, Arcoverde e Triunfo) finalizando
Giratório 2017
E, pra mim, o encontro é a essência do teatro.
na zona da mata (Recife e Olinda). Esta circulação ficou marcada em nossos corações pela riqueza
O Palco Giratório é, sem dúvida alguma, o maior
das cidades e pela incrível recepção do público.
e mais importante projeto de intercâmbio e circu-
Provavelmente porque todo o deslocamento foi
lação do Brasil. Poderia falar durante horas sobre
Deus e o Diabo na Terra de Miséria, Oigalê Foto: Kiran
O Amargo Santo da Purificação, Ói Nóis Aqui Traveiz Foto: Claudio Etges
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2017
15
O ativismo do palhaço Hugo Possolo, do grupo Parlapatões,
Palhaço, ator, dramaturgo, cenógrafo, figurinista,
dramaturgia própria e premiado pela Jornada Sesc
mestre da palhaçaria, tem uma
diretor e produtor cultural, Hugo Possolo é dos
de Teatro em 1993, que deu projeção nacional ao
importante atuação na articulação de
fundadores do grupo Parlapatões e, além dos es-
Parlapatões. A versão de 2001, dirigida por Possolo,
políticas para o desenvolvimento da arte
petáculos, eventos e atividades de formação, atua
faz parte do repertório até hoje.
circense no país
fortemente no desenvolvimento das políticas na-
Em Piolim, lançado no ano do centenário
cionais de teatro e circo. Foi em 1991 que o grupo
do famoso palhaço, em 1997, o circo, sempre
começou passando o chapéu ao apresentar seus
presente nas montagens do grupo, virou tema
números circenses, que aos poucos foram ganhan-
principal pela primeira vez. O evento Vamos Co-
do uma forma teatral, gerando os dois primeiros
mer o Piolim, que reuniu o repertório do grupo e
espetáculos: Nada de Novo e Bem Debaixo do
ainda uma exposição sobre a vida do palhaço, foi
Nariz. No ano seguinte, o espetáculo Parlapatões,
indicado a diversos prêmios, vencendo o Grande
Patifes e Paspalhões, que batizou o grupo, foi a
Prêmio da Crítica Associação Paulista de Críticos
primeira tentativa de utilizar elementos do teatro
de Arte (APCA). Um reconhecimento pela manu-
de rua e do circo dentro da sala de espetáculo. Po-
tenção dos espetáculos em repertório, um dos
rém, foi a montagem seguinte, Sardanapalo, com
objetivos do grupo.
Stapafúrdyo
Foto: Luiz Doro Neto
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2017
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Entre outros trabalhos de destaque do Parlapatões estão U Fabuliô (1996), representante oficial do Brasil na Expo 1998, em Lisboa; PPP@ WllmShkspr.br (1998), que se firmou como grande sucesso de público do grupo com mais de 50 mil espectadores; do mesmo ano, Farsa Quixotesca, com direção de Possolo e participação do grupo Pia Fraus, recebeu o Prêmio Panamco de melhor autor e melhor espetáculo e o APCA de melhor espetáculo; e Não Escrevi Isso deu o Prêmio Shell de cenografia a Possolo, que também fez o texto e dirigiu o espetáculo. Em 2001, o grupo encerrou o Projeto Pantagruel, cuja pesquisa sobre a obra de François Rabelais durou dois anos, resultando na encenação do espetáculo homônimo no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O ambicioso projeto marcou o fim do ciclo de montagens baseadas em pesquisa sobre comédia, carnaval e humor na Idade Média.
Mequetrefe, com roteiro, cenografia e figurino de
pojada de lidar com o improviso e a palhaça-
No ano de 2006, o espetáculo Stapafúrdyo,
Possolo, que também atua no espetáculo dirigido
ria, para juntos traduzirmos em cena o que
com roteiro e direção de Possolo e em parceria
por Alvaro Assad, da Cia. Etc e Tal. Na montagem,
queríamos do non sense, tanto humor quanto
novamente com Pia Fraus, o grupo inaugurou o
quatro palhaços que, não por acaso, se chamam
elemento poético. Também nos empenhamos
Circo Roda, lona que abrigou quatro grandes pro-
Dias, vivem a jornada de um longo dia, do des-
conjuntamente – e foi muito divertido – em
duções circenses. No mesmo ano, tiveram início
pertar à hora de ir dormir, revelando como a des-
usar a cenografia, composta por barris e es-
as atividades do Espaço Parlapatões, no contexto
construção da lógica cotidiana pode abrir espaço
cadas de metal, para que se tornassem for-
de ocupação da Praça Roosevelt por coletivos de
para outras maneiras de encarar a vida. Também
mas animadas que pudessem estimular a
teatro, impulsionando a revitalização do Centro
apresentam Parlapatões Clássicos do Circo, com
imaginação do público. Acredito que foi uma
de São Paulo. O Espaço Parlapatões produz e sedia
roteiro e direção de Possolo, um grande show de
parceria, esperada pelos dois grupos há muito
anualmente, desde a inauguração, mostras, fes-
variedades que celebra o repertório do grupo. Em
tempo, que resultou em um espetáculo sin-
tivais e eventos, como o Festival de Cenas Cômi-
60 minutos, os quatro palhaços – interpretados
gular e muito divertido.
cas, o Festival de Peças de Um Minuto, a Mostra
por Raul Barretto, Alexandre Bamba, Fabek Capreri
de Solos, Palhaçada Geral – Encontro Nacional de
e Possolo – passam das mais clássicas reprises aos
O grupo Parlapatões completou 25 anos,
Palhaços, o Concurso de Poesia Falada e a mos-
números mais inovadores em sua linguagem.
e de 1991 pra cá houve uma grande
tra anual do repertório dos Parlapatões: Sortidos
evolução em relação à democratização
& Variados. Também realiza, desde 2009, a Festa
ARTE SESC – O Parlapatões está no 12º
da arte, ao desenvolvimento do circo.
do Teatro, que, em suas três últimas edições, dis-
Festival Palco Giratório em Porto
Fale sobre este movimento do grupo na
tribuiu gratuitamente mais de 100 mil ingressos de
Alegre com o espetáculo Os Mequetrefe,
articulação das políticas de teatro e circo.
teatro para a população paulistana. Em 2013, ano
resultado do intercâmbio com a Cia.
Muitas coisas aconteceram neste período,
que o grupo encerrou as atividades do Circo Roda
Etc. e Tal. Qual a pesquisa contida neste
em especial, na formulação e, por vezes, efe-
e que o monólogo Eu Cão Eu, de e com Possolo,
trabalho?
tivação de políticas culturais para as artes
foi indicado ao Prêmio Shell de melhor texto, foi
HUGO POSSOLO – O mais interessante do
cênicas, com crescimento do teatro e entra-
aberto o Galpão Parlapatões, na Lapa, que passou
processo de criação de Os Mequetrefe foi
da em cena do circo, que sempre foi tratado
a abrigar cursos, oficinas, ensaios e um centro de
mesclar as visões de encenação entre o tea-
com muito preconceito, como se fosse mero
treinamento circense.
tro físico que Alvaro Assad, da Cia. Etc e Tal,
entretenimento. No fundo, o fato de as artes
No 12º Festival Palco Giratório Sesc em Por-
trabalhou com precisão, enquanto nós, os
circenses constituírem um saber popular e
to Alegre, no mês de maio, o grupo apresenta Os
Parlapatões, trouxemos uma forma mais des-
por ter uma tradição nômade, que não cria
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
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Clássicos do Circo Foto: Luiz Doro Neto
Os Mequetrefe
Foto: Luiz Doro Neto
Parlapatões: Claudinei Brandão, Henrique Stroter Raul Barreto e Hugo Possolo Foto: Divulgação
ganhasse o sentido público que deveria ter
as pessoas pelo prazer que o riso promove e
pela simples presença do cidadão e iluminando
faz pensar o mundo de outra maneira. Se o
mais o local. Fizemos o lugar se valorizar e, por
palhaço conquista um pouco disso, já con-
vezes, alguns teatros dali se tornaram reféns
quistou muito como artista.
da especulação imobiliária, pois os alugueis subiram de preço em razão da melhora que
O Parlapatões tem uma atividade muito
vínculos urbanos de relacionamento social
a praça recebeu. A importância da ocupação
intensa, atuando em diversas frentes...
mais fixos, muitas vezes a linguagem foi
de espaços com finalidade cultural e artística
Como conciliam tudo isso e ainda se
colocada à margem, sem o prestígio que
visa alterar o significado de cidadania por uma
dedicam com tanto afinco à pesquisa?
merece. Nos últimos 30 anos, graças à mo-
apropriação maior da população aos locais que
Nossa! São tantas coisas. De fato, conciliar
bilização constante de artistas, produtores e
devem ser para seu convívio.
tudo faz parte de um trabalho de insistência e
pesquisadores da área, alguns setores pú-
resistência permanente. Foram mais de 60 es-
blicos e privados foram sensibilizados a en-
Você é um mestre da palhaçaria e formou
petáculos nestes 25 anos, dos quais 12 perma-
tender melhor o potencial do circo. Há ainda
muitos artistas. O que prioriza passar
necem em repertório; a inauguração e manu-
muito que se fazer.
para eles?
tenção do Espaço Parlapatões, há 11 anos em
Acredito que a experiência do artista não ga-
atividade; o Circo Roda, que em 8 anos criou
Como foi o processo de ocupação da Praça
rante que ele seja uma referência, pois tanto
e circulou com 4 grandes produções circenses
Roosevelt, onde, em 2006, foi inaugurado
um novato quanto um veterano partem do
por diversas cidades; além de circularmos com
o Espaço Parlapatões, um marco na
mesmo lugar desconhecido para criar uma
nossos espetáculos pelo país e mundo afora,
revitalização do centro de São Paulo?
obra. Procuro difundir o que penso sobre
realizar eventos, festivais e mostras, que mal
O começo do processo de revitalização se deu
a importância do palhaço, que revela a in-
conseguimos pensar no que vem adiante.
com o grupo irmão, Os Satyros. Nossa chegada
capacidade humana de acertar sempre, ou
No momento, estamos estudando a obra de
na praça, já com 15 anos de estrada, somou
melhor, a capacidade de errar muito, para
Oswald de Andrade, O Rei da Vela, que tão bem
forças e gerou um processo de convivência,
mudar o olhar das pessoas. O palhaço coloca
fala sobre o Brasil em crise. Um prato cheio
pela arte e pela boemia, em um lugar onde an-
lentes, de aumento, diminuição e distorção,
para nosso humor encontrar o biscoito fino da
tes reinava a violência, o tráfico e a prostitui-
que faz o público se enxergar por outro ân-
ironia do poeta modernista.
ção de rua. Conseguimos que o espaço urbano
gulo. Sua popularidade permite transformar
primeiro SEMESTRE
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O Brasil atual pela lente de pensadores do século 20
ARTES CÊNICAS
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
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Espetáculos da Cia. do Tijolo
Criada em 2008 a partir do desejo do ator Dinho
mineiro Guimarães Rosa com o olhar do nordesti-
inspirados no legado de
Lima Flor de encenar a obra do poeta cearense Pa-
no. E foi justamente o grande poeta Geraldo Alen-
tativa do Assaré, a Cia. do Tijolo é uma das atrações
car, primo do Patativa, quem escreveu o texto do
do 12º Festival Palco Giratório em Porto Alegre,
espetáculo”, conta o ator. A partir disso, Lima Flor
pensamento e na prática
no mês de maio. O grupo apresenta o espetáculo
passou a comprar todos os livros de Patativa, mer-
de Paulo Freire para refletir
Ledores no Breu – este também na programação
gulhando na sua literatura. “Eu comecei a enten-
nacional do Circuito Palco Giratório –, com texto
der a importância deste homem diante do Brasil,
que revisita a obra do poeta paraibano Zé da Luz
a luta que ele deixou com sua militância poética,
para refletir sobre a alfabetização. O espetáculo
sua trincheira pela reforma agrária, pelas liberda-
programação do 12º Festival
O Avesso do Claustro leva ao palco o legado de
des, contra a ditadura militar, pelas Diretas. Fiquei
Palco Giratório em
Dom Helder Câmara, arcebispo de Recife e Olinda,
abastecido com tudo isso e decidi que precisava
personagem fundamental nas históricas lutas de
fazer um trabalho sobre Patativa.”
Dom Helder Câmara e no
sobre a emancipação a partir da leitura integram a
Porto Alegre
Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar
O Avesso do Claustro Foto: Alécio Cezar
resistência política contra a ditadura militar e na
Logo, juntaram-se a Lima Flor artistas vindos
construção do ideário da igreja progressista enga-
de outros grupos de São Paulo, especialmente do
jada nos movimentos sociais.
Teatro Ventoforte, liderado pelo argentino Ilo Kru-
Foi durante uma imersão de um mês no Ser-
gli, do qual Dinho fez parte por 13 anos, junto com
tão do Cariri, Ceará, com a equipe de O Homem
Rodrigo Mercadante, que embarcou na vontade de
Provisório, espetáculo com direção de Cacá Carva-
levar a obra de Patativa, sua história, sua poesia,
lho, cujo ponto de partida é Grande Sertão Vere-
para o teatro. “Um poeta que fala ‘talequá’ seu
das, que Lima Flor conheceu o universo de Patativa
povo canta, ‘talequá’ seu povo fala, uma poesia
do Assaré. “O objetivo era se embrenhar naquele
matuta, muito fincada nas questões sociais, polí-
lugar, com suas mitologias, para traduzir a obra do
ticas, na alegria”, salienta o ator.
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2017
20
Cante Lá que Eu Canto Cá, show musical
to da fome”. “Neste contexto, o Padre Cícero ga-
do poeta Zé da Luz e do ficcionista Guimarães
até hoje em repertório, foi o primeiro trabalho
nhou uma terra com um olho d’água – por isso,
Rosa, que o grupo estuda novamente o universo
da Cia. do Tijolo e inaugurou o Teatro Patativa
Caldeirão –, e entregou para o beato José Lou-
de Patativa. “Como um homem que frequentou
do Assaré, no Sesc Juazeiro do Norte. “Pegamos
renço, que construiu uma alternativa econômica,
apenas a escola formal, durante seis anos, mas
um cancioneiro brasileiro que vai discutindo o
um sistema no qual todos trabalhavam, tudo era
que leu compulsivamente, ganhou essa autono-
corpo de um poeta – Patativa era cego e tinha
de todos, nada era de ninguém. Eram chamados
mia literária, política e social?” Lima Flor explica
poemas belíssimos sobre os olhos –, os pés do
de ‘comunistas primitivos’. E o beato recebia os
que o espetáculo é acerca da emancipação: a pes-
poeta, as mãos do poeta, onde está a cabeça do
miseráveis naquela comunidade, bombardeada
soa, mais do que ler as letras, precisa ler o mundo,
poeta na construção desse corpo físico-social-
em 11 de setembro de 1936”, conta Lima Flor. Os
ter conjuntura de mundo, entender o mundo.
-metafísico?” O show, entretanto, não dava
escombros ainda existem e sediam um evento
Resultado de um ano e dois meses de pes-
conta de revelar a poesia do artista e o grupo
anual com debate e celebração. “Tivemos a opor-
quisa, o segundo espetáculo do grupo, Cantata
decidiu alargar a pesquisa para fazer Concerto
tunidade de colocar o Patativa nestas condições
para um Bastidor de Utopias, indicado ao Prêmio
de Ispinho e Fulô, com direção de Rogério Ta-
ao apresentar o espetáculo naquele local onde
Shell em três categorias e também dirigido por
rifa. “Patativa é a grande estrela do Sertão do
houve uma possibilidade de luta real pela igual-
Tarifa, junto com Mercadante, parte de um texto
Cariri, apenas o Padre Cícero ganha dele em po-
dade, em um dos momentos mais importantes e
do poeta espanhol Federico Garcia Lorca sobre
pularidade, mas em outro campo; nas artes, ele
emocionantes das nossas vidas.”
Mariana Pineda, republicana assassinada no fi-
é imbatível, porque olhou o seu homem e tra-
Cia. do Tijolo é uma homenagem a Paulo
nal do século 18 por não ter delatado os colegas.
duziu como esse homem vive, sem fugir desse
Freire, educador que difundiu a importância de
“É muito emblemático nos dias de hoje. Tem um
sofrimento.”
colocar as questões em sala de aula a partir da
momento em que ela fala: ‘se eu delatasse como
O espetáculo conta um episódio ocorrido
realidade dos trabalhadores. “Tijolo é o sentido
que seria meu nome? Ela pensa no futuro dela,
em uma localidade do Crato cearense, Caldeirão
real daquelas pessoas, serventes, pedreiros, que
no futuro do país, um país mais justo, um país de
de Santa Cruz do Deserto, região que enfrentou
estavam aprendendo a ler e este é o tema que
palavra, de dignidade. Se eu delatasse como que
uma das maiores secas entre 1932 e 35. Alguns
abordamos em nosso mais recente espetáculo”,
meus filhos iriam viver, como a sociedade, como
pesquisadores descrevem a existência de valas
explica Dinho. Em Ledores no Breu, monólogo do
meus companheiros iriam viver, qual futuro que
coletivas para enterrar as pessoas que morriam
ator, é pelas lentes de Paulo Freire, pela pedagogia
eu deixo sendo alcagueta de revolucionários?’”
de fome e até denominam a época de “holocaus-
do oprimido, com inspiração também nas obras
Em um momento do espetáculo, o elenco convida
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2017
21
ao palco uma pessoa do local que padeceu na di-
Festival de Recife, nesta cena em que o Rodrigo
tadura militar para contar a sua história. “A escola
Mercadante faz o personagem que funde esses
do Brasil não fala sobre isso e há uma geração
discursos, 600-700 pessoas queriam expulsá-lo
inteira que vive no apagão, sem a dimensão his-
do palco: ‘Fora, fascista!’ A gente provoca. Com
tórica do que é o país, por isso os grupos de teatro
muita poética, a gente faz as pessoas refletirem
comprometidos com esta linguagem, com a esté-
o que eu, como um poeta, uma professora, um
tica de descobrir e mostrar os escombros, trazem
bancário, podemos fazer minimamente pra não
o tema para discussão. Patativa deu a vida pela
cair no buraco fundo e morrer todo mundo com
reforma agrária, contra a ditadura e pelas Diretas;
esse pensamento.”
Dom Helder é um dos homens mais corajosos do
A Cia. do Tijolo é um grupo que fala pela po-
século 20, um religioso que não se apequenou
esia, poesia com endereço, não uma poesia meta-
diante desta multinacional que é a Igreja Cató-
física. Em seu cotidiano de pesquisa, está cercada
lica; Garcia Lorca foi assassinado e até hoje seu
por pessoas que pensaram o século 20, especial-
corpo não foi encontrado.”
mente o Brasil, e que permanecem atuais (entre
O Avesso do Claustro, uma celebração da
eles, Carlos Drummond de Andrade, Nise da Sil-
utopia e da canção, é construído a partir da tra-
veira, Mário de Andrade, Darcy Ribeiro, Eduardo
jetória de três personagens cheios de questio-
Galeano). Para resumir a temática dos trabalhos
namentos e perplexidades diante do momento
do grupo, Dinho cita um trecho do poema Mãos
histórico atual do país: um pesquisador em visi-
Dadas, de Carlos Drummond de Andrade – Não
ta ao Recife, uma moradora que caminha pelas
serei o poeta de um mundo caduco / Também não
ruas de São Paulo e uma cozinheira que vive aos
cantarei o mundo futuro. (...) / O tempo é a minha
pés do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, en-
matéria, do tempo presente, os homens presen-
contram-se para ouvir novamente a voz do Bis-
tes, a vida presente. – para concluir: “vamos fin-
po Vermelho. Um encontro inusitado no espaço
car o presente e discutir isso, que é a partir daqui
e no tempo, só possível no teatro, para discutir
que a gente se enxerga, para trás e para frente”.
novos mundos possíveis em tempos obscuros. O espetáculo tem orientação teórica de Frei Betto. “A gente faz o espetáculo em um momento triste do país, em 2015, com as pessoas abastadas querendo diminuir minimamente as pequenas conquistas que os pobres tiveram. Estávamos estudando sobre o Manifesto Integralista de 1932, e na saída do ensaio nos deparamos com aquela juventude sexista, que defende o fascismo, gritando contra negros, feministas, homossexuais, pedindo a volta do Regime Militar. Reforçamos a convicção de que nosso caminho era o Dom Helder e estreamos a peça num momento muito tenso. O espetáculo, que chama para a tensão todo o tempo, tem uma dialética muito grande, como em uma cena na qual as pessoas gritam, e fundimos o discurso integralista e a votação do impeachment na Câmara dos Deputados – ‘pela minha mãe, pela Lucimara...’ –, uma das coisas mais horrorosas, que a gente não vai esquecer. Durante o
Concerto de Ispinho e Fulô Foto: Alécio Cezar
Concerto de Ispinho e Fulô Foto: Alécio Cezar
Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar
Ledores no Breu Foto: Alécio Cezar
CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO
primeiro SEMESTRE
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Myra Gonçalves
#18 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As próximas páginas apresentam a trajetória e os processos criativos do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator (UTA), de Porto Alegre, desde o início dos treinamentos em 1992. O grupo, que participou, em 2012, da 7ª edição do Festival com os espetáculos A Mulher que Comeu o Mundo e Cinco Tempos para a Morte, na 12ª edição, em maio de 2017, apresenta exposição fotográfica em
Fábio Zambom
Usina do Trabalho do Ator 25 anos de encontros, trocas e aprendizagens Por Ana Cecília de Carvalho Reckziegel (Ciça Reckziegel) Atriz integrante do Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator desde 1996 e professora no Departamento de Arte Dramática da UFRGS – área de Interpretação Teatral –, no qual se graduou Bacharel em Artes Cênicas, com Habilitação em Interpretação Teatral. É mestre em Ciências do Movimento Humano e Doutora em Educação, também pela UFRGS.
comemoração aos 25 anos do UTA, os espetáculos
Histórias Negras para Crianças de Todas as Cores Macaco!, além de integrar atividade de intercâmbio
Foto ao lado: Anna Fuão, Ciça Reckziegel, Dedy Ricardo e Celina Alcântara (em cima); Thiago Pirajira, Gisela Habeyche, Shirley Rosário e Gilberto Icle (embaixo)
com o coletivo boliviano Teatro de Los Andes.
Foto: Thiago Lazeri
e Dança do Tempo, a performance Eu Não Sou
ARTES Cร NICAS CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017
23
Myra Gonรงalves
#15
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
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1 A reconstituição do primeiro momento de vida do UTA foi efetuada durante a pesquisa realizada no curso de Doutorado em Educação, com realização de Estágio Sanduíche, na Université Paris XI, com bolsa da CAPES, que resultou na tese intitulada A Função Criação no trabalho coletivo teatral – um estudo com a Usina do Trabalho do Ator. A reconstituição dá-se a partir de documentos do Arquivo do grupo, de entrevistas realizadas com os atores e da bibliografia já disponível, Icle (2002). 2 Alice Guimarães e Claudia Machado cursaram Graduação em Teatro, com Gilberto e Celina. Alice desde 1996 integra o Teatro de los Andes, na Bolívia. Claudia Machado é professora da Educação Básica em Porto Alegre. 3 Maurício Guzinski é diretor teatral, foi diretor do Grupo Pés na Terra, e coordenador da Oficina Teatral Carlos Carvalho, um setor da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, já extinto, por meio do qual foram organizadas as oficinas do LUME em Porto Alegre, em janeiro e junho de 1991.
Em maio de 2013, o Núcleo de Investigação Usina
(FERNANDES, 1998), e também pelo crescimento
orientadas por Burnier e Simioni, em Porto Ale-
do Trabalho do Ator (UTA) completou 21 anos, sua
das pesquisas acadêmicas no campo teatral. As
gre. Além disso, Alice participa de um estágio no
maioridade. Naquele ano, eu estava desenvolvendo
práticas do UTA não deixarão de ser atravessadas
grupo Lume, e, juntamente com Gilberto, integra
pesquisa para fins de doutoramento, cujo objetivo
por tais acontecimentos.
o II Retiro para Estudo do Clown e do Sentido do Cômico, ministrado por Burnier, em Campinas.
era compreender de que forma o UTA se constituiu,
os atores do UTA, a permanecermos juntos por
Novas possibilidades de atuação
tanto tempo? Como é viver-criar-trabalhar com as
A trajetória do grupo, iniciada em 1992, dá-se,
O projeto previa espaço físico e recursos financei-
mesmas pessoas por um período tão longo, e de
justamente, a partir da inquietação de alguns es-
ros para viabilizar o funcionamento de um núcleo
que forma esse tempo de convivência influi no tra-
tudantes de teatro quanto a sua formação aca-
de pesquisa para a formação do ator, cujo preen-
balho? Como o grupo desenvolveu seus processos
dêmica, sobretudo devido ao engajamento desses
chimento de vagas ocorreria por meio de concur-
de aprendizado e de criação?
mesmos estudantes em atividades artísticas e de
so público. O grupo de colegas inscreveu-se, foi
Seguimos juntos, e chegamos aos nossos 25
formação extracurriculares, e a partir das redes
selecionado, e o Núcleo de Investigação, com um
anos, com novos espetáculos e novos projetos.
de relações daí provenientes.[1] Foi neste período
total de 12 participantes, iniciou suas atividades
O desejo de festejar e compartilhar um pouco de
que Gilberto Icle e Celina Alcântara, ao lado de
no mesmo ano (ICLE, 2002).
e de que forma construiu suas práticas teatrais, sobretudo a formação de seus atores e processos de criação de espetáculos. Na ocasião, fazia-me perguntas muito simples, tais como: O que nos levou,
O grupo de colegas segue tentando desenvolver um trabalho sistemático, quando, em 1992, Guzinski concebe o projeto Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator (UTA) junto à Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
nossa trajetória se concretiza em mais uma bela
Alice Guimarães e Claudia Machado
organi-
Com o início dos trabalhos, os problemas
parceria com o Sesc, no ano do 12º Palco Girató-
zaram um grupo de estudos com o objetivo de
também começaram, sobretudo a suspensão dos
rio Sesc, em Porto Alegre, e nesta breve narrativa.
trabalhar novas técnicas de atuação e investigar
recursos financeiros, o que, num primeiro mo-
Narrativa de desejos, de encontros, de trabalho
novas possibilidades de se constituírem como
mento não desestimulou o grupo. Porém, a maior
árduo, de lutas – que se fazem cada vez mais
atores. A motivação para a criação desse grupo
necessárias – e de alegrias, pois se a alegria não
de estudos deveu-se ao encontro com Luis Otávio
existisse, com certeza não teríamos chegado até
Burnier e Carlos Simioni, respectivamente diretor
aqui. Um viva aos aniversariantes, e vamos à nar-
e ator do Lume, Núcleo Interdisciplinar de Pesqui-
rativa, à história do Núcleo de Investigação Usina
sas Teatrais – Universidade Estadual de Campinas
do Trabalho do Ator.
(Unicamp).
[2]
Optei por relatar os primeiros anos de vida
Em outubro de 1990, durante o Festival de
do grupo, quando seus integrantes, a partir das
Teatro de Canela, Gilberto e Celina, juntamente
influências recebidas, tomaram para si a res-
com Maurício Guzinski[3] e Alice Guimarães, par-
ponsabilidade sobre sua formação como atores.
ticiparam do Workshop para Atores e Diretores,
A maneira como se organizaram enquanto gru-
ministrado por Burnier, e da Oficina de Atuação,
po, como construíram seu treinamento, e como o
ministrada por Simioni. Trabalhar com as técni-
realizavam, a meu ver, foram fundamentais para
cas de treinamento corporal e vocal para atores,
sua constituição, e mesmo para sua permanên-
desenvolvidas pelo Lume naquela época, e a ideia
cia em atividade até os dias atuais. A narrativa
de um trabalho investigativo, contínuo e discipli-
se dará ora a partir das práticas do grupo e seus
nado, entusiasmou o grupo de amigos, e o Lume
integrantes, ora a partir de minha própria experi-
se tornou sua grande referência.
ência como integrante.
A partir de então, a ideia do projeto que for-
O UTA iniciou suas atividades na década de
maria o UTA começou a ser gerada, e, com o apoio
90 do século passado, quando os grupos teatrais
de Maurício Guzinski, o grupo se organiza para
recomeçavam a proliferar no Brasil. Esse período
seguir com o trabalho desenvolvido nas oficinas
foi marcado pelo enfraquecimento do chamado
em Canela. O contato com o Lume prossegue,
“teatro de diretor”, em alta na década de 1980
com orientações periódicas, e através de oficinas
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
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4 O exercício denominado “lançamentos” consiste em lançar uma bola ou outros objetos; o “samurai” tem como base três passos básicos que objetivam compor a figura de um guerreiro, sendo a “gueixa” sua versão feminina; e a “dança dos ventos” consiste num passo em ritmo ternário, semelhante ao de valsa. Todos os exercícios, bem como sua origem, estão descritos detalhadamente em ICLE (2002).
25
dificuldade era “[...] a estrutura anárquica e a falta
organização para o desenvolvimento do traba-
de objetivos em comum” entre os atores-pesqui-
lho, sobretudo devido à falta de uma pessoa para
sadores (ICLE, 2002, p. 21). Em julho do mesmo
conduzi-los, cogitaram em encerrar as atividades.
ano, dois meses após o início do trabalho, metade
Foi então que Gilberto se propôs a assumir a fi-
dos atores desiste do projeto, e os demais – entre
gura de diretor. A partir daí, o treinamento come-
Klaxon: o primeiro espetáculo
os quais, Gilberto, Celina, Alice e Silvana Stein –
çou a solidificar, o que significou, em um primeiro
Durante o ano de 1993, o grupo inicia os trabalhos
seguiram trabalhando sem muitas perspectivas,
momento, aprofundar os próprios exercícios que
para a criação de seu primeiro espetáculo, deno-
até que, em setembro de 1992, Gilberto, Alice e
vinham trabalhando: os lançamentos, o samurai,
minado Klaxon, e no decorrer desse mesmo ano
Celina participaram de uma oficina-montagem
a gueixa, a dança dos ventos (ICLE, 2002).
realiza performances em espaços da prefeitura e
oferecida pelo Festival Internacional de Teatro de
[4]
Em dezembro, após o retorno do curso em
promove cursos, oficinas e demonstrações.
Campinas, os atores que ainda permaneciam
Em Klaxon, o grupo trabalha com o tema do
A oficina, ministrada pelo ator espanhol Toni
no núcleo apresentaram publicamente uma
carnaval e com o modernismo brasileiro, a par-
Cotz, que fora integrante do Odin Teatret, dirigido
demonstração técnica com os primeiros resul-
tir do estudo da obra de Oswald de Andrade – em
por Eugenio Barba, tinha um conteúdo bastan-
tados da investigação realizada nesse primeiro
especial, Macunaíma e A Morta – e da Semana de
te semelhante ao que os atores do UTA estavam
ano de atividades, sob a orientação de Burnier.
1922. No processo de criação, o ponto de partida
tentando desenvolver. Conforme Icle (2002), a
As figuras e as cenas trabalhadas pelo grupo, e
oficina lhes possibilitou a compreensão de uma
retrabalhadas e organizadas por Burnier, foram
série de princípios para a continuidade das ativi-
construídas a partir do treinamento, e do apro-
dades do grupo no retorno a Porto Alegre, a per-
fundamento dos exercícios. Após a demonstra-
ceberem a importância de estabelecer uma linha
ção, o grupo teve um período curto de férias; no
de condução para o trabalho, e de alguém que
retorno ao trabalho, os atores decidem montar
os orientasse. Ao perceberem sua fragilidade de
um espetáculo.
Campinas.
Klaxon
Fotos: Divulgação
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5 Sobre O Mestre Ausente e a trajetória artística do UTA, ver Lisboa (2012).
foram as ações e as partituras dos atores, para as
to que tinha no trabalho físico de cada ator um
um grupo – o que na realidade já ocorria – e man-
quais o grupo dava especial atenção. Os atores
degrau para sua constituição como um ser criador.
tendo para o grupo o mesmo nome do projeto:
escolhiam figuras ligadas ao tema, e as trabalhavam
Tal espetáculo era como uma foto do caráter iden-
Núcleo de Investigação Usina do Trabalho do Ator
individualmente para criar as figuras. Cada um
titário daquele grupo. Sujeitos-atores se colocando
(UTA). Na verdade, segundo Gilberto, o UTA não foi
criava seus materiais e se dedicava a fazer suas
de uma forma responsável, séria e sensível diante
“fundado”, o que houve foi a continuidade de um
partituras de ações, que depois Gilberto ressignifi-
do espectador, que era convidado a compartilhar
trabalho que vinha sendo realizado por um mesmo
cava por intermédio do processo de montagem.
o conhecimento construído, e que era verdadeira-
grupo de pessoas, que, de forma independente, se-
mente tocado pelo trabalho.
gue seu caminho. E é por isso que o UTA considera
Em 1994, o grupo cria o espetáculo-demonstração intitulado O Mestre Ausente,[5] no qual
Seguindo a trajetória do UTA, em setembro
apresenta, de forma didática, os principais ele-
de 1994, o grupo participa do I Porto Alegre em
Este primeiro período de vida do grupo ca-
mentos do treinamento sistematizado pelo UTA, e
Cena, no qual promove um ensaio aberto de Kla-
racterizou-se pela dedicação total ao treinamen-
o qual tive oportunidade de assistir.
o ano de 1992 como o de sua criação.
xon, realiza a primeira e única apresentação do
to, e pelo desprendimento financeiro por parte
A minúcia, o cuidado e o respeito ao trabalho
espetáculo, e ministra uma oficina. No final do
dos integrantes do grupo – todos jovens estu-
e ao colega, a forma como foi realizada a apresen-
ano, o vínculo do núcleo, iniciado em 1992, com a
dantes universitários –, que seguiram trabalhan-
tação diante do público, como cada ator narrava
Secretaria Municipal de Cultura foi encerrado, uni-
do mesmo sem bolsas de estudo. Após a redução
sua própria trajetória e oferecia sua cena à plateia
lateralmente. Os atores decidem seguir com suas
do número de participantes no Núcleo de Investi-
eram o testemunho de um sério e profundo traba-
pesquisas, buscando condições que viabilizassem a
gação, as duas bolsas existentes eram repartidas
lho cotidiano. Era o testemunho de um treinamen-
continuidade dos trabalhos, e assumindo-se como
igualmente entre os seis integrantes. Em nenhum
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primeiro SEMESTRE
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momento o não pagamento da bolsa foi motivo
do Lume, o grupo era bastante rigoroso com o
Em sua discussão sobre o termo training, Fé-
para desistências daqueles que permaneceram.
cumprimento das regras. O silêncio era o grande
ral (2000) lembra que o mesmo surge, entre outros,
Para a alimentação, os atores contavam com os
“orientador” do trabalho e da disciplina, pois con-
com mais intensidade nos livros de Grotowski, Bar-
restaurantes universitários, para as viagens, a fim
duzia o ator a outra qualidade de relação consigo,
ba, Brook e Oida. A noção de treinamento, lembra
de fazer as oficinas, muitas vezes dependiam de
a outra forma de comunicação com os colegas, e
Féral, está ligada às transformações que ocorreram
auxílio financeiro de amigos; para poderem se
para um estado criativo mais sensível e aguçado.
no campo teatral, as quais envolveram igualmente
sustentar, tentavam trabalhar fora dos horários
o ator e sua formação. As práticas de treinamento
proveniente da opção por um trabalho artístico
Bases pedagógicas para o aprendizado do ator
diferenciado, em vez de uma rentabilidade que
Antes de prosseguir, gostaria de trazer uma bre-
para o ator, mas também “[...] uma educação mais
talvez pudesse ocorrer com a produção comercial
víssima discussão sobre a noção de “treinamen-
completa capaz de desenvolver o corpo, o espírito
de espetáculos (AUTANT-MATHIEU, 2013).
to”, a qual, ao longo dos anos, ainda se mantém
e o caráter desses artistas” (FÉRAL, 2000, p. 15).
De outro lado, a organização do grupo e do
bastante controversa, embora a grande maioria
Esses reformadores objetivavam, ainda, permitir
trabalho já vinha se firmando nos dois primeiros
dos grupos que surgiu nas décadas de 1980 e
ao ator, por intermédio do treinamento, “[...] um
anos. Gilberto havia assumido a direção e o tra-
1990, e mesmo o UTA, não o pratique mais da
estado de criatividade sobre a cena” (FÉRAL, 2000,
balho se realizava a partir de regras para garantir
mesma forma. Mas tanto naquele período, como
p. 16). Assim, para o trabalho do ator, a noção de
o comprometimento e repartição das atividades
ainda hoje, atores e coletivos teatrais oscilam
treinamento se confunde com a de pedagogia, um
entre todos os integrantes. Uma das principais
entre uma aceitação cega e apaixonada, e uma
espaço que possibilite a exploração e a construção
regras era a proibição de conversa entre os in-
negação total e absoluta. O importante, aqui, é
de novas formas para criar. E era nesta linha de
tegrantes do grupo, mesmo durante o intervalo.
esclarecer o leitor da noção, e sobretudo do sen-
compreensão de treinamento que, a meu ver, Bur-
As conversas eram permitidas apenas ao final
tido do treinamento para aquele momento, e para
nier conduzia seus estudos.
do encontro, para tecer comentários ou planejar
aquele grupo de atores.
destinados ao grupo. Em sua convivência, os integrantes do grupo pareciam privilegiar aspectos cultivados nas comunidades artísticas: a relação de amizade em vez da competição; a perseverança e a coragem em vez do desânimo e da acomodação; e a aceitação de uma vida com parcos recursos financeiros,
romperam com a formação dada nas escolas, por intermédio do trabalho de numerosos diretores pedagogos como Stanislavski, Meyerhold, Vakhtangov, Craig, Copeau, Jouvet, Decroux, Lecoq, entre outros. Esses diretores pedagogos, desde o início do século 20, ofereceram novas bases pedagógicas para o aprendizado do ator, incluindo, nessa nova pedagogia, não apenas uma preparação física
Em suas pesquisas, tinha como objetivo de-
trabalhos futuros. As regras garantiam também
senvolver técnicas de representação para o ator,
a rigidez e o cumprimento dos horários durante
e nesse sentido, defendia a necessidade de um
o trabalho – de chegada, saída e de intervalo – e,
espaço no qual o ator pudesse se trabalhar. Com-
também, a limpeza da sala, por meio de um esca-
preendia que o treinamento deveria “[...], além de
lonamento entre os atores. Ao lembrarem dessa
trabalhar o aspecto físico e mecânico, trabalhasse
época, os atores que participaram desse primeiro
também o universo interior do ator e, sobretudo,
momento do UTA espantam-se com o nível de
os canais de comunicação entre eles. Isso de ma-
exigência e a dura disciplina que se impuseram.
neira sistemática e disciplinada” (BURNIER, 2009,
Compreendem, porém, que, para a consolidação
p. 63). E sob essa visão, do treinamento como um
do grupo e da organização do trabalho de pes-
espaço onde o ator pudesse se trabalhar, criando
quisa e artístico, foi de fundamental importância.
sua própria pedagogia, é que o UTA balizou suas
Desde o início do projeto da Prefeitura de
práticas teatrais.
Porto Alegre, quando permaneceram no grupo
A partir do trabalho desenvolvido nas ofi-
de pesquisa apenas os atores que vieram a com-
cinas com o Lume, o UTA encontrou o caminho
por o UTA, e até o encerramento do projeto pela
para a organização de seu próprio treinamento.
Prefeitura, o treinamento se realizava das sete da manhã à uma da tarde. Por forte influência
O Mestre Ausente Foto: Divulgação
Os atores prosseguiram a partir dos exercícios trabalhados com Burnier e Simioni, e também
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6 Ver Icle, 2002.
incluindo diferentes técnicas corporais, já conhe-
cia do “bobo da corte europeu”, e do “bugio”, um
e de retomar sua própria pesquisa. Nesta fase, o
cidas pelos integrantes do grupo, as quais eram
macaco típico do Rio Grande do Sul, que vive em
aprendizado dos exercícios dava-se por imitação.
compartilhadas com os demais. Cada ator era
bandos e cujo nome denomina o único ritmo mu-
Gilberto conduzia o treinamento da forma mais
responsável por dirigir a parte do treinamento
sical genuinamente gaúcho, e a história de Antônio
econômica possível, falando apenas o necessário,
em que tivesse maior domínio técnico e conheci-
Chimango, inspirada no poema de Amaro Juvenal.
enquanto Alice e Celina treinavam normalmente
mento sobre a técnica a ser trabalhada. Alice, por
A oficina foi aberta à comunidade, com dura-
conosco. Elas tomavam a iniciativa de auxiliar de
exemplo, era responsável por conduzir o treino do
ção de três meses e contou com 20 participantes,
alguma forma, quando algum dos atores tinha
exercício do samurai; Celina e Gilberto, o treino
além dos quatro atores que integravam, naquela
muita dificuldade em executar o exercício pedido,
do exercício da batalha; e Silvana, técnicas de
ocasião, o UTA. Numa primeira fase, os participan-
mas em nenhum momento explicavam verbal-
dança contemporânea. Assim, cada um foi as-
tes experimentaram elementos do treinamento
mente, apenas executavam o exercício.
similando, tanto os exercícios, como a forma de
sistematizado pelo grupo. Após, vivenciaram uma
transmiti-los, trabalhá-los e aperfeiçoá-los. Mes-
proposição de trabalho que buscava abordar téc-
mo quando Gilberto assumiu a direção do grupo,
nicas para a constituição de uma figura bufonesca
essa forma de proceder, com o rodízio da con-
na sua relação com a figura do bugio. Por fim, uma
dução dos exercícios, vigorou por muito tempo.
etapa em que o espetáculo foi construído a partir
Durante o treinamento, Gilberto trabalhava como
do processo de improvisação.
[6]
os demais atores; no entanto, programava-se
Ao término do projeto, ainda em 1996, a atriz
para, ao mesmo tempo, observar e estimular os
Silvana Stein resolveu sair do grupo e transferiu-
colegas, quando houvesse uma estagnação so-
-se para Minas Gerais. Houve uma reestruturação
bre um mesmo trabalho ou mesmo a direção, se
da composição do grupo, e foram convidados para
assim fosse necessário. Assim, ora atuando, ora
ingressar no UTA os atores Leonor Melo, Xico de
coordenando o trabalho e dirigindo os espetácu-
Assis, Raquel Carvalhal, e esta que vos fala, todos
los, apoiado nas vivências de direção de Burnier,
remanescentes do processo de criação do espetá-
Gilberto dirige o grupo em seus dois primeiros
culo O Ronco do Bugio.
trabalhos, e o UTA chega ao momento de sua primeira grande reestruturação.
A identidade gaúcha Em 1994, o UTA passou a trabalhar no Centro Cultural Cia. de Arte; dois anos depois, em 1996, o grupo criou um espetáculo intitulado O Ronco do Bugio, primeiro espetáculo do UTA pensado e estruturado para o espaço da rua. Esse espetáculo originou-se do projeto Oficina-Montagem, que teve um duplo objetivo: artístico e administrativo. No âmbito administrativo, o grupo precisava reorganizar-se estrutural e financeiramente. Para isso, o grupo inscreveu o projeto Oficina-Montagem no edital de financiamento do Fumproarte, com o qual foi contemplado. Artisticamente, o objetivo era investigar as relações possíveis entre técnicas de atuação estrangeiras e uma identidade gaúcha, utilizando as figuras do bufão, a partir da referên-
Nesse momento, o grupo retoma seu treinamento, com o objetivo de transmiti-lo de forma mais aprofundada para os novos integrantes
O Ronco do Bugio Foto: Divulgação
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Treinamento como processo criativo
foi constituindo um espaço de formação, criação
para a Bolívia e passou a integrar o grupo Te-
e autonomia do ator.
atro de los Andes, no qual permanece até hoje,
As regras de pontualidade, do silêncio, da divi-
Quando os novos atores atingiram um nível
e cujo espetáculo Mar teremos a oportunidade
mais avançado em termos de assimilação e do-
de assistir durante esta edição do Festival Palco
mínio técnico e expressivo, o grupo retomou seu
Giratório. Mundéu permaneceu no repertório
modo de trabalhar, com cada ator conduzindo e
do UTA de 1998 a 2002; durante esse período, a
responsabilizando-se pelo próprio treinamen-
atriz Raquel Carvalhal transferiu-se para Brasí-
to, com a liberdade de escolher sua sequência de
lia, dando lugar para Elisa Pierin. Após um ano,
são de tarefas eram cumpridas à risca por todos
exercícios, como desenvolvê-los, e também com a
Elisa e Xico deixaram o grupo, e a atriz Dedy Ri-
os participantes. Havia uma sequência de exer-
opção de introduzir novas práticas. Embora exe-
cardo passou a integrar o UTA, permanecendo
cícios que iam se encadeando uns nos outros, e,
cutado individualmente, o treinamento continua-
até hoje.
assim, podíamos seguir sem parar, sem quebrar
va inserindo o ator no grupo, uma vez que todos
a atmosfera do treinamento. Com o passar das
trabalhavam juntos, na mesma sala, num procedi-
horas de treinamento, essa grande dança das
mento que é utilizado pelo UTA até hoje, e durante
energias, oriunda da sequência dos diferentes
o qual uns auxiliam os outros quando solicitados,
exercícios, era direcionada para improvisações
tanto por meio da observação e do comentário do
dos atores sobre apenas um dos exercícios, tor-
trabalho, como ensinando novos exercícios, ou tra-
nando-o vivo, dinâmico e pleno de possibilida-
balhando em dupla com os colegas.
des expressivas.
Nesta nova etapa, com nova constituição, o
Embora, aparentemente, o treinamento não
grupo iniciou uma pesquisa sobre a codificação de
fosse um momento de criação, impulsionou um
ações e suas possibilidades narrativas, a partir do
modo de criar no interior do trabalho do grupo,
estudo da dança indiana Baratha Nathyam. A pes-
por meio do improviso. Seja na preparação dos
quisa culminou com a montagem do espetáculo
atores ou no transbordamento que os exercícios
Mundéu, o Segredo da Noite, cujo processo deu-se
tiveram, indo da preparação para sua paulatina
de forma acentuadamente colaborativa.
transformação em cena, seja na disciplina, desde
Durante o processo de Mundéu, o Segredo
a mais rígida até a mais flexível; o treinamento
da Noite, a atriz Alice Guimarães transferiu-se
Mundéu, o Segredo da Noite Foto: Divulgação
Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves
CADERNO DE TEATRO
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A reinvenção do grupo A partir de um prolongado estudo sobre másca-
A pesquisa com as máscaras e o processo
integrantes com cenas criadas a partir de literatura
ra, em especial a máscara expressiva, em 2006,
completamente anárquico, lúdico e transgressor
sobre o tema da morte, e por meio do qual o UTA
o grupo estreou o espetáculo A Mulher que Co-
de A Mulher que Comeu o Mundo começou a
começou a explorar novas possibilidades de atua-
meu o Mundo, que permanece no repertório até
revigorar o grupo e transformar o treinamento,
ção e processo de criação. Em 2015, estreiou Dança
o presente momento. Entre o término de Mundéu
que assumiu a atmosfera lúdica do jogo teatral
do Tempo, que mergulha na cultura e religiosidade
e o início desta nova pesquisa, vieram completar
inerente ao trabalho com máscara. Desde então,
afro-brasileiras, e propõe a concreta participação
a formação do grupo os atores Gisela Habeyche
o treinamento não se dá da mesma forma, e, por
do público no espetáculo.
e Thiago Pirajira, e também Shirley Rosário, como
determinados períodos, não é diário, devido aos
colaboradora artística e assistente de direção. O
vários compromissos do grupo ou de seus atores.
UTA, desde então, é composto por Gilberto, Celina, Ciça, Dedy, Gisela, Thiago e Shirley.
O que podemos dizer desses 25 anos de vida? Em se tratando do primeiro período de existência
Em 2010, o grupo estreou Cinco Tempos para
do grupo, no qual mais me alonguei, o que mais
a Morte, cuja montagem mescla vivências de seus
salta aos olhos é a procura de um caminho, do que
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e de como fazer, que resulta na invenção do pró-
mos também nossa amiga Anna Fuão, que se jun-
prio fazer, e na construção dos próprios conheci-
tou a nós para assumir a produção, que até então
mentos técnicos. Principalmente, o grupo constrói
era uma das atribuições exercidas pelos atores do
estratégias de como relacionar-se entre seus inte-
grupo. Anna Fuão foi alguém especial e impor-
grantes durante o trabalho, e de como se relacio-
tante para a trajetória do UTA. Anna nos brindou
nar com Gilberto na função de diretor e, ao mesmo
com sua alegria, com sua verdadeira ânsia de vi-
tempo, de ator. O grupo constrói sua própria forma
ver, de ser, de fazer, mas, ao mesmo tempo, para
de trabalhar em grupo, de saber fazer-se grupo, e
nossa tristeza, nos deixou muito cedo. Saudades
reinventar-se a cada dia de trabalho.
eternas, Anna. Amor eterno. A ti, querida Anna,
Antes de encerrar esta narrativa, gostaria de
todos nós, do UTA, dedicamos este breve relato.
deixar aqui, em nome do UTA, nossa homenagem e
Construíste conosco a nossa história, e tua cons-
agradecimento a todos que participaram e partici-
trução ainda reverbera.
pam de nossa trajetória: especialmente aos nossos
Referências Bibliográficas
AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine. Oeuvres Communes. In: AUTANT-MATHIEU, Marie-Christine (Org.). Créer, Ensemble. Points de vue sur les communautés artistiques (fin du XIXeXXe siècles). Montpellier: L’Entretemps, 2013. P. 13-22. BURNIER, Luís Otávio. A Arte de Ator: da técnica à representação. Campinas: UNICAMP, 2009. FÉRAL, Josette. Vous avez dit “training”? In: MÜLLER, Carol (Org.). Le Training de l’Acteur. Arles: ACTES SUD-PAPIERS, 2000. P. 7-27. FERNANDES, Silvia. A Criação Coletiva do Teatro. Urdimento: revista de estudos em artes cênicas, Florianópolis, n. 2, p. 1321, 1998. ICLE, Gilberto. Teatro e Construção de Conhecimento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002. LISBOA, Eliane Tejera. Usina do Trabalho do Ator: reconhecimento de uma identidade. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 2, n. 2, p. 479-501, jul./dez. 2012. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/30132>. Acesso em: 10 fev. 2013.
Evoé para todos nós.
maravilhosos colaboradores, Marlene Goidanisch, Flávio Oliveira e Luciana Prass; aos nossos amigos do Lume, e a Burnier, in memoriam, por terem nos apontado o caminho. Ao Augusto, “nosso nenê”, filho de Gilberto e Celina, nosso maior fã, que rodou milhares de quilômetros conosco pelo Brasil afora. Mais uma vez, agradecemos imensamente ao Sesc, por nos acolher e festejar conosco nossos 25 anos. Por fim, com muito carinho, gostaríamos de
Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves
Cinco Tempos para a Morte
lembrar que naquele momento em que Gisela,
Foto: Myra Gonçalves
Thiago e Shirley ingressaram no grupo, convida-
Cinco Tempos para a Morte Foto: Myra Gonçalves
MÚSICA
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Por Arthur de Faria Músico, jornalista e produtor fonográfico. Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, tem seis CDs lançados – cinco com o Arthur de Faria e Seu Conjunto –, e uma dezena de publicações sobre a música do Rio Grande do Sul. Produziu 27 discos e assinou 35 trilhas sonoras para cinema e teatro. Publicou dezenas de ensaios, artigos, livros e fascículos sobre música popular e dedica-se há três décadas à pesquisa sobre a história da música de Porto Alegre. É autor do livro Elis: uma biografia musical (2015, Arquipélago). *Texto originalmente escrito em 2014 para a “Coleção Folha O Melhor de Elis Regina”, editada por Carlos Calado, sobre o disco Elis e Tom (1974).
Elis E Tom (1974) Elis tinha trauma com Jobim.
via falado nada nem sobre churrascos nem sobre
lou com Tom (ou, ao menos, disse que falou) e
Aos 19 anos de idade, com quatro discos lança-
seus odores.)
acertaram que tudo seria feito em Los Angeles,
dos, tinha batido no teto das suas possibilidades
onde o Antonio Brasileiro estava morando.
morando em Porto Alegre. Com fome de Brasil,
***
ela chegara ao Rio de Janeiro, acompanhada do
Segundo depoimento do produtor, velho amigo
(com o filho de Elis, João Marcello), mais seu em-
pai, dia 28 de março de 1964. Antes mesmo do
e parceiro de Elis, Armando Pittigliani, tudo co-
presário Roberto Oliveira (que também trabalha-
Golpe Militar de três dias depois, sofreria uma
meçou quando André Midani, diretor da Philips/
va com televisão e documentaria tudo para um
pancada e tanto.
Phonogram, quis homenagear sua cantora pre-
especial da Bandeirantes).
“Esta gaúcha é muito caipira. Ainda está cheirando a churrasco.”
Detalhes acertados, lá se vão Elis e Cesar
ferida pelos seus 10 anos de casa. A proposta era simples: peça o que você quiser.
Tudo certo, tudo lindo. Exceto pelo fato de que Tom não tinha en-
A frase teria sido dita por Antonio Carlos Jo-
Midani, Pittigliani e Roberto Menescal (outro
tendido exatamente o que ia acontecer (ou fez-se
bim, como argumento para vetar a menina como
amigo próximo e grande parceiro de palcos e es-
de desentendido – jamais saberemos). Aloysio sa-
protagonista feminina do disco que ele estava
túdios da baixinha) eram os cabeças da gravadora
bia que um projeto como aquele poderia ou não
arranjando: Pobre Menina Rica, o musical escrito
que, naquele momento, tinha em seu cast nada
agradar o amigo cheio de manias. Resultado: dei-
por Vinícius de Moraes e Carlos Lyra.
menos que Chico Buarque, Caetano Veloso, Os
xou para contar tudo só quando um “não” fosse
Mutantes, Erasmo Carlos, Jorge Ben, Gilberto Gil
quase impossível.
Essa é a versão consagrada da história – só que não foi bem assim. A própria Elis contou, em mais de uma entrevista, a sua versão dos fatos:
e muitos, mas muitos outros.
A cena: aeroporto de Los Angeles, sete da
Elis podia pedir um carro, uma viagem, qual-
manhã, depois de longa viagem. Na descida do
“Cheguei à rodoviária, o Umberto Contar-
quer coisa. O que ela quis? Estrutura para gravar
avião, lá está Jobim, elegantíssimo, vestido à Bo-
di (engenheiro de som da CBS) estava me espe-
o disco que quisesse, do jeito que quisesse, onde
gart – gabardine e chapéu –, com uma rosa na
rando. Me levou pra conversar. (...) Tremia feito
sonhasse... e com Tom Jobim!
mão. Leva a equipe direto para sua casa, para um
uma besta. Porque, de repente, você entra no céu
Sim. O mesmo Tom que ela tanto odiara no
e conhece Deus! (…) Cheguei hoje, amanhã tem
episódio de Pobre Menina Rica. O compositor das
Tom, Vinícius, Carlinhos e eu… Estado de choque,
canções do álbum Por Toda a Minha Vida, grava-
né?(…) Me disse depois um simpático cidadão que
do em 1959 por Lenita Bruno, que Elis e Cesar
eu não poderia fazer o disco porque o Tom não
ouviam sem parar, fantasiando em um dia fazer
– E vocês, vieram fazer show aqui na América?
queria fazer arranjo pra ser cantado com gosto de
um disco-songbook como aquele sobre a obra
Elis, Cesar e Roberto gelaram. Aloysio viu
churrasco! (…) Fiquei com esse troço entalado du-
jobiniana.
rante anos.”
Os chefes toparam na hora, e já saíram defi-
café da manhã antes do check in no hotel. Lá pelas tantas, entre uma xícara e outra, pergunta:
que aquela era a hora de usar toda a sua diplomacia. Aparentemente, foi dando certo.
(Só depois de Elis e Tom ela teve coragem de
nindo o produtor: Aloysio de Oliveira era perfeito.
Mas depois de muita explicação, quando Tom já
tirar a história a limpo, com o próprio Jobim. Pra
Parceiro de Jobim em algumas canções, ex-dire-
parecia quase convencido, veio a pergunta:
sua surpresa, era tudo mentira. No final das con-
tor do Bando da Lua de Carmen Miranda, desde
– Quem vai escrever os arranjos?
tas, ele nem ao menos arranjara o disco. Apenas
os anos 1940 ele circulava com desenvoltura pelo
Aloysio:
estava no estúdio naquele momento, e não ha-
showbizz e mundo do disco nos EUA. Aloysio fa-
– O Cesar.
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
33
A impressão que ficou em Cesar é de que,
De qualquer forma, terminam o disco. No
nesse tempo todo, nem ele nem Jobim dormiram
dia seguinte, ânimos serenados, despedida no
uma única hora.
aeroporto. É quando Tom, à guisa de pedido de
Mas, enfim, ficou tudo pronto. Hora de gra-
desculpas, profere a frase que ficou clássica:
var (todos juntos no estúdio – como Elis sempre gostou). O projeto todo ocupou pouco mais de duas
– Sabe o que é Mariano? É que enquanto eu tomo banho de banheira, vocês tomam banho de chuveiro. Você me entende?
semanas – 22 de fevereiro a 9 de março de 1974
Silêncio e pânico. Tom pega o telefone e, sem nenhuma explicação, passa a ligar para os arranjadores “oficiais” da Bossa Nova; os maestros que, nos discos gravados pela sua turma nos EUA, tinham vestido de orquestra a sonoridade que Jobim e João Gilberto haviam inventado: Claus Ogerman, Nelson Riddle, Johnny Mandel… Cesar conta, em sua autobiografia, Solo: “Eu me encolhia tanto, me sentia tão pequeno que, se me sentasse numa gilete, balançaria as pernas; Elis contava os tacos do assoalho, com cara de quem ia começar a chorar. Tom seguia andando pela sala… (…) E não olhava para mim.” O acaso trabalhou a favor: nenhum arranjador deste calibre estava disponível naquele momento. Era já o final da tarde quando terminou aquele café da manhã de pesadelo. Chegando ao hotel, tinham o repertório quase definido, e Cesar havia ganho alguma confiança de Jobim. Alguma. Os dias seguintes ele passou trancado no quarto do hotel escrevendo os arranjos, enquanto Elis e Roberto inventavam passeios para distrair João Marcello e deixá-lo tranquilo frente ao maior desafio de sua vida.
– entre viagens, preparação, gravação e mixagem.
***
Mas dentro do estúdio mesmo, foram entre dois
O show de lançamento aconteceu em São Pau-
a três dias (as versões variam).
lo, e foram apenas duas apresentações: Elis, sua
Na primeira sessão, registraram os arranjos
banda, Tom e uma orquestra regida pelo mesmo
mais camerísticos: Tom no piano, Elis na voz, sex-
maestro do disco de Lenita Bruno que inspirara
teto de cordas e flauta. Tudo certo, tudo lindo,
tudo: Leo Peracchi.
todos felizes.
Conforme ia ouvindo disco e show, a crítica
Aí, dias depois, para gravar o resto, chega
se rendia definitivamente à cantora que se sofis-
a espetacular banda de Elis. E aí, segundo Cesar,
ticara a olhos vistos nos últimos três. Seu prestí-
Tom surtou novamente: trazer instrumentistas do
gio, aos 29 anos, tinha finalmente encostado na
Brasil para o lugar onde, segundo ele, estavam os
sua popularidade.
melhores músicos do mundo? Mais de uma pessoa já escreveu sobre essa “crise”, o que é estranho: em seus discos america-
O DISCO
nos, Jobim sempre fez questão de músicos brasi-
Comecemos pelo fato de que Elis e Tom foi ma-
leiros na base: violão, bateria e percussão. Não há
ravilhosamente gravado e mixado por Humberto
como, hoje, ter a real medida do que aconteceu,
Gatica, engenheiro de som que estreara naquele
mas o que parece inequívoco é que ele não gos-
ano de 1974, e logo se tornaria o que é hoje: um
tou nada do trio baixo, guitarra e piano... elétricos
dos maiores e mais requisitados profissionais do
– o que também é curioso, porque Tom já havia
ramo no planeta.
tocado piano elétrico em seus LPs gringos.
Depois, o repertório, dividido em três blocos.
Elis, por sua vez, alternava euforia com desa-
Há quatro canções de câmara, escritas até
bafos ao telefone para Menescal – que ligava to-
1958 por um Jobim ainda com ambições erudi-
dos os dias do Rio, preocupado:
tas, pré-Bossa Nova, parceiro do então apenas
“Está uma merda, não tem nada bom! O
poeta Vinícius de Moraes: Modinha, O Que Tinha
Tom (…) é um chato, reage contra os aparelhos
de Ser, Por Toda a Minha Vida e Soneto de Sepa-
eletrônicos (…). A gravação está babaca, parecen-
ração. Boa parte delas havia sido estreada nos
do Bossa Nova.”
dois songbooks anteriormente dedicados à obra
Bossa Nova nunca foi predileção de Elis – o
de Jobim: o já citado disco de Lenita Bruno e
– Ô, Mariano, em que música você está?
que explica o número significativo de não bossas
Canção de Amor Demais, o marco zero da Bossa
Tom ligava uma, duas, dezenas de vezes por dia.
em Elis e Tom.
Nova, da Elizeth Cardoso (que de Bossa Nova ti-
– Ô, Mariano, quantos dedos você tem nas mãos? Você não gosta de acordes de três notas? – Ô Mariano, estou aqui na minha banheira,
Pouco tempo depois, ela comentaria:
nha só duas canções).
“Foram momentos vividos por duas pesso-
Cronologicamente, o segundo bloco é o
as muito tensas, que só conseguem descontrair
Jobim da Bossa Nova, o Jobim internacional, de
através da música. Ficou a saudade de um pas-
canções lançadas basicamente por João Gilberto
tenso, meus rins doem… como é que anda o
sado recente, em que as cores eram outras e as
e regravadas à exaustão por músicos e cantores
trabalho?
pessoas, mais felizes.”
de todo mundo. Há seis delas ali: Só Tinha de Ser
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
34
Com Você, Triste, Corcovado, Brigas, Nunca Mais,
de pequenos improvisos com Cesar, ao final, a
Fotografia e Inútil Paisagem.
apatia se desmancha.
Por fim, as novidades de um compositor que,
E então o disco muda de clima, para a pri-
nos últimos cinco anos, em vez de deitar na fór-
meira de suas tantas canções de câmara, Modi-
mula que o consagrou, se reinventava. É onde o
nha. O piano e o arranjo de cordas e flautas é o
disco mais luze: Águas de Março, Pois É, Retrato
único de Jobim no disco. Elis está impecável, e
em Branco e Preto e Chovendo na Roseira.
emite um dos graves mais bonitos da sua fono-
A primeira delas abre o disco, Elis superando
grafia: o “Ah”, antes de “não seja a vida sempre
sua própria versão anterior (do disco Elis de 1972).
assim...” E há ainda, nos compassos finais, uma
Leonard Feather, um dos críticos mais respeita-
embargada de voz que só um grande intérprete
dos do jazz, coloca esta na lista das 10 melhores
não deixaria emergir na cafonice.
gravações da história. E é essa mesma versão que,
Triste, de 1967, é bem a Bossa amada pelos
quanto mais passam os anos, mais frequentemen-
americanos. Novamente a polirritmia armada
te aparece no topo das mais variadas listas. Qual
entre as levadas de violão e piano (como em
o segredo? Além da obra-prima de composição
Águas de Março) dá uma leveza que quase em-
sono de assovio e piano que já havia marcado
em letra e música (um dos pontos altos do Jobim
polga Elis. Quase.
Águas de Março. Na base, seu violão enrosca-se
letrista), a interpretação luminosa e descontraída
Na sequência, outro clássico: Corcovado, de
com o de Oscar Castro-Neves e Elis enfrenta a
nos coloca quase como voyeurs da intimidade de
1960. Tom na voz e violão; arranjo de cordas de
dificílima melodia com um sorriso na cara. Nou-
dois imensos artistas, brincando, cantando, rindo
Cesar em nítida paleta jobiniana; Jobim colocan-
tro paralelo com Águas..., por trás da aparente
e inventando, como se aquilo fosse a coisa mais
do um sutilíssimo piano por cima. Impecáveis,
singeleza, esconde-se genial complexidade. O
simples do mundo. A Bossa Nova possível de 1972,
trazendo novidade e sentimento para uma can-
disco poderia acabar aí, sorrindo.
sol em meio aos temporais.
ção já então massacrada em centenas de versões.
Mas então se recolhe. Inútil Paisagem é no-
E com aquela banda.
E então outro grande momento íntimo:
vamente a menor formação possível: voz de Elis,
Depois de dois anos juntos, Cesar Camargo
O Que Tinha de Ser. Voz de Elis e piano do autor,
piano – onde sobram em ideias o que se econo-
Mariano (piano), Luisão Maia (baixo elétrico), Pau-
uma infinidade de sutilezas. Seguida de, no mes-
miza em notas – de Tom. E fim.
linho Braga (bateria) e Chico Batera (percussão)
mo clima, uma recriação de Retrato em Branco e
Muitos consideram Elis e Tom o melhor tra-
tinham encontrado uma sonoridade tão moderna
Preto sem baixo nem bateria: “apenas” o tão dra-
balho de sua intérprete. Outros tantos, a obra-
quanto particular, agora com Hélio Delmiro no
mático quanto econômico piano de Jobim emol-
-prima de seu compositor. Há quem o elenque
violão e na guitarra. O som partia da Bossa Nova
durado pelo arranjo de cordas idem, de Cesar.
como o melhor disco da música brasileira.
para definir uma nova levada e um suingue únicos.
Praticamente uma nova canção.
Luisão, em especial, era um gênio. Tocou com Elis
E volta o sutil suingue da banda, mais impres-
até o fim, e é considerado o definidor do que seria
sionante do que nunca, em Brigas, Nunca Mais. Elis
o baixo elétrico na música brasileira. Somando-se
está solar, solta, quase como em Águas de Março.
a eles, reforços de peso – como o violão de um dos
Muito diferente de Por Toda a Minha Vida: voz e
maiores músicos brasileiros emigrados para os
cordas, arranjo de Cesar, tudo é contenção.
EUA nos anos 1960: Oscar Castro-Neves.
Segue-se uma versão absolutamente ino-
O segundo tema do disco é Pois É. Com letra
vadora de Fotografia, num típico arranjo do Ce-
de Chico Buarque, muda tudo de cor: Elis é serena
sar naqueles anos, ideias originais se sucedendo
tristeza, num arranjo totalmente com a cara do
em desfile. Dava pra fazer uns quatro arranjos
quinteto de Cesar. Bossa novística até na duração
com elas.
de menos de dois minutos.
Então Soneto de Separação, novamente
Formação que se repete em Só Tinha de
piano e voz de Tom, cordas arranjadas por Cesar.
Ser Com Você, onde a pequena transgressão é
E vem a segunda canção que mais se eternizou
o piano elétrico. Visivelmente, é a faixa em que
do disco: uma radiante versão de Chovendo na
Elis menos parece divertir-se. Nem quando divi-
Roseira, valsa-jazz com Jobim repetindo o unís-
PARA LER FARIA, Arthur de. Elis: uma biografia musical. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2015. FARIA, Arthur de. As Origens, da série A Música de Porto Alegre (CD e fascículo). Porto Alegre, Unidade Editorial Porto Alegre / SMC, 1995. KIECHALOSKI, Zeca. Elis Regina, da coleção Esses Gaúchos. Porto Alegre, Editora Tchê, 1984. MARIANO, Cesar Camargo. Solo: Memórias. São Paulo: Leya, 2011. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade: a história e as histórias de Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CABRAL, Sergio. Antônio Carlos Jobim, Uma Biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1997. PARA OUVIR Canção do Amor Demais – Elizeth Cardoso (Festa, 1958) Por Toda a Minha Vida – Lenita Bruno (Festa, 1959) Chega de Saudade – João Gilberto (Odeon, 1959) O Amor, o Sorriso e a Flor – João Gilberto (Odeon, 1960) João Gilberto – João Gilberto (Odeon, 1961)
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
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Juarez Fonseca Jornalista, colunista de Zero Hora
Como seria Elis hoje? Em março passado, Elis teria completado 72 anos.
Assim era Elis, que às vezes estava ótima, fe-
de Sangue, de Jerônimo Jardim e Ivaldo Roque,
A mesma idade de Chico Buarque e Ivan Lins. Edu
liz, e às vezes ficava áspera, amarga. Ainda mais
ambas em 1980. Na última vez, pediu que eu lhe
Lobo tem 73, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Milton
naquele momento, em que o casamento de 9
enviasse fitas e que passasse aos compositores o
Nascimento, 74. Projetados por Elis, João Bosco
anos e dois filhos com César Camargo Mariano
seu endereço em São Paulo.
e Aldir Blanc estão com 70. Belchior, que faleceu
naufragara e ela buscava apoio no advogado/na-
Vitor Ramil foi dos raros que mandou uma
recentemente, também estava. Grandes cantoras
morado paulista que estava ao lado dela no hotel
fita e (pasmem!), ela passou um telegrama para
da geração dela, Gal está com 71 e Bethânia, 70.
e no Gigantinho. Quatro meses depois, a morte
ele, pedindo que enviasse outra fita, pois aquela
Exceto Belchior, todos seguem em plena e criativa
absurda, por overdose acidental, pois não era
estava com áudio ruim. Além de Vitor, imagino
atividade. Como estaria hoje Elis, que morreu há
consumidora habitual de drogas. Nos muros do
que em sua “pesquisa” logo entrariam Nei Lisboa,
35 anos, em 19 de janeiro de 1982? Antes de mais
país espalha-se a frase “Elis vive”.
Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro, Kleiton &
nada, ela tinha apenas 36 anos e estava exercendo
Os argentinos costumam fazer uma brin-
Kledir, Antonio Villeroy, Mário Barbará, Nico Nico-
a plena potência de seus papéis de mãe, mulher,
cadeira quando alguém fala na morte de Carlos
laiewsky, Humberto Gessinger, para ficar em al-
artista, cidadã. Como estaria hoje?
Gardel. “Ele não apenas não morreu, como canta
guns novos da época. Ao lado de Itamar Assump-
Cabe recapitular setembro de 1981, quando
cada vez mais”, retrucam. O mesmo podemos di-
ção, Luiz Tatit, Marina, Arnaldo Antunes, Cazuza,
esteve pela última vez em Porto Alegre, com o
zer de Elis. Seus discos são a prova disso. Ouça-
Renato Russo, Nando Reis, depois os novos dos
show Trem Azul. Era sua primeira apresentação no
-os. Ela continua cantando demais. E certamente
anos 90, Ed Motta, Chico César, Zeca Baleiro, Van-
Gigantinho e o público, pequeno para as dimen-
ainda há interpretações por descobrir – não faz
der Lee, os dos anos 2000, e assim por diante.
sões do ginásio, no máximo 3 mil pessoas (onde
muito, saiu um álbum com gravações inéditas, ao
Quer dizer: ela seguiria fazendo o que sem-
cabem 15 mil). Ela estava tensa na entrevista do dia
vivo, no Festival de Montreux. Mas o que gravaria
pre fez, também gravando os nomes de sua gera-
anterior no hotel; queixava-se daquele momento
se continuasse aqui?
ção e os mais antigos. Claro que tudo isso é teoria,
em que vivia uma situação maluca entre gravado-
Apoiado em seus últimos discos e na dispo-
mas a homenagem que eu poderia prestar a Elis
ras. Devia um disco para uma (Warner), que deixou
sição que manifestava, pedindo que lhe mandas-
é esta. Imaginando a continuidade do trabalho,
por se sentir explorada, havia recém-lançado um
sem fitas, acredito que sem comprometimentos
com os acréscimos naturais de sua personalidade
disco por outra (EMI) e assinado contrato com uma
provincianos, mas como atenção de novidade,
inquieta, e concluindo que continuaria na frente.
terceira (Som Livre). Difícil entender como teria se
nos anos 80 ela se voltaria para os novos autores
Além disso, a maior cantora brasileira de to-
metido naquele imbroglio muito mais jurídico do
gaúchos. Sabia da força da movimentação local
dos os tempos também seria uma estrela interna-
que artístico. Depois da entrevista, me contou que
e me pedia informações. Estava querendo novas
cional, eu não tenho a menor dúvida.
no auge do rolo não podia nem ouvir as palavras
expressões para lançar, como fizera nos anos 60
“música” e “gravadora”, pois lhe davam erisipela.
com Edu Lobo, Milton, Gil; nos 70 com Bosco e Al-
Que chegou a pensar em não fazer mais discos, em
dir, Ivan Lins, Belchior... Já havia gravado Peque-
abrir um bar e cantar só para os amigos...
no Exilado, no disco de Raul Ellwanger, e Moda
Elis Regina em 1977 Foto: Juarez Fonseca
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
36
por João Luiz Sampaio, Jornalista e crítico musical, autor de Ópera à Brasileira, Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção e Guiomar Novas do Brasil, entre outros livros. Assina o blog cultura.estadao.com.br/blogs/joao-luiz-sampaio.
Sentidos da música A formação de músicos no Brasil tem passado, nos
e não tão dependente das grandes instituições
Nas comunidades carentes, em geral, faltam
últimos 20 anos, por uma profunda transforma-
musicais que, em tempos de crise, preocupadas
saúde, educação de qualidade, emprego, sanea-
ção. O crescimento da vida musical – com o proje-
com a própria sobrevivência, deixaram de lado a
mento. Do jovem, no entanto, é tirado ainda um
to da nova Orquestra Sinfônica do Estado de São
possibilidade de, como pontos irradiadores do va-
outro direito fundamental, o direito de sonhar, o
Paulo colocando a possibilidade de novos paradig-
lor da música, desenvolver um papel mais amplo
direito à individualidade. Em outras palavras, a
mas de qualidade artística e de gestão – deu força
no diálogo com a sociedade e com outros proje-
questão que esses projetos se colocam é: como
à ideia de que era preciso investir na preparação de
tos menores e regionais.
acreditar em si mesmo em um contexto no qual se
músicos de qualidade, capazes de abastecer o novo
Seja como for, nessa transformação pela
vive à margem, apartado dos bens compartilhados
mercado que se desenhava à luz de um renasci-
qual passou a formação de músicos no Brasil, há
por uma sociedade? A música é uma resposta. Ao
mento da vida sinfônica do país.
pelo menos um aspecto que sugere uma percep-
tocar um instrumento, devolve-se ao jovem à pos-
Com o passar do tempo, porém, apesar do
ção mais ampla do fazer musical: o desenvolvi-
sibilidade de se expressar. E essa expressão aconte-
surgimento de novos projetos e da reestrutura-
mento de projetos sociais ligados à música. Eles
ce no espaço da coletividade. Afinal, o som de um
ção de outros antigos, os cortes em orçamentos
são muitos e diversificados, tanto do ponto de
conjunto, seja ele uma orquestra ou um quarteto
e a influência nociva das trocas políticas nos pro-
vista artístico como no que diz respeito às rea-
de cordas, é a soma do som de cada instrumento
jetos artísticos, talvez seja necessário reconhecer
lidades institucionais. Mas carregam um ponto
que, ao se combinar com os demais, tem como ob-
que o tal renascimento ainda sucumbe perante a
em comum: a ideia de que a arte pode ser uma
jetivo não apenas a reafirmação do seu valor indi-
frágil situação institucional de muitas orquestras.
ferramenta de transformação social. Isso se dá
vidual como também a harmonia do todo.
Por conta disso, é possível criticar o foco quase
não apenas porque, ao ensinar ao jovem um ins-
Não é preciso muito para entender o para-
exclusivo dos projetos de formação na vida or-
trumento, dá-se a ele uma possibilidade de cami-
lelo possível entre o ato de fazer música e o de
questral, que poderia abrir espaço para a música
nho profissional. Há outro sentido, talvez ainda
construir uma nova sociedade, tendo como pon-
de câmara e outros formatos que pudessem levar
mais importante do que a inserção no mercado
to de partida a aproximação entre as diferenças
a um mundo artístico ainda mais descentralizado
de trabalho.
em busca de um bem-estar comum. Ainda assim,
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
37
persiste a crítica de que, ao se acoplar à arte um sentido, ou uma missão, tira-se dela o seu valor intrínseco. Uma sinfonia de Beethoven, em outras palavras, seria importante como manifestação do gênio artístico ocidental, independentemente da função que se dá a sua interpretação que, antes de mais nada, precisa se fundamentar na qualidade da execução. É uma falsa polêmica. Entender que a arte pode ser uma ferramenta não significa necessariamente abrir mão da qualidade, e identificar nela um sentido não é o mesmo que abrir mão de outros, pelo contrário: atualizar, a partir de dilemas contemporâneos, a relação que se tem com a música é um elogio a seu valor intrínseco e formal. Tudo isso vem à mente à luz da experiência de acompanhar, durante alguns dias, a programação do Festival Internacional Sesc de Música, realizado em janeiro em Pelotas, com direção artística do maestro Evandro Matté. De cara, ele oferece a uma grande quantidade de jovens músicos a possibilidade de estudar com grandes professores, o que pode ser uma experiência definidora na trajetória de cada um desses alunos. Esse trabalho individual reafirma a necessidade de trabalho e estudo, de
imaginação na formatação de recitais e a abertura
fora que ela gostaria de conhecer. Como musicis-
dedicação ao instrumento, do refinamento da téc-
na hora de escolher repertórios são características
ta? Não necessariamente. Se for para fazer músi-
nica, da construção de uma personalidade musical.
fundamentais para a formatação de uma carrei-
ca, ótimo, mas o importante é que agora ela tinha
Mas há um outro aspecto, simbólico. Um festival
ra. E, em segundo lugar, que quando se estabelece
aquela vontade. Pouco depois, eles falavam sobre
como esse é um ponto de encontro de músicos de
com a comunidade um diálogo direto, tornando-
seus compositores preferidos. Um grupo defendia
diferentes origens, nacionalidades, situações eco-
-se referência para um grupo de pessoas, não há
Mozart, outro grupo falava em Beethoven. Mozart
nômicas, técnicas, estéticas. E o compartilhamento
gênero menos popular ou inviável – as longas filas
é claro; Beethoven, dramático. E a dramaticidade
de experiências não se limita aos horários livres, às
para os recitais, todos esgotados, são prova disso.
não era uma qualidade? Os argumentos eram os
festas, às conversas. Ele se dá também no palco.
Se a música clássica deixou de ser um gênero
mais diversificados, e a resposta importa menos do
É desse diálogo com o outro, afinal, que resultam
presente no debate cultural, cada vez mais se fe-
que a simples existência da discussão empolgada.
as apresentações espalhadas pela programação,
chando em um nicho, isso tem menos a ver com
A música, talvez, não precise ter uma “utilidade”.
o desafio de conhecer quem está ao seu lado por
a música em si do que com o modo como ela é
Mas é especial vê-la fazendo parte do dia a dia das
meio do fazer musical.
feita e compreendida por aqueles que a fazem. No
pessoas, sendo assumida como um patrimônio a
Nesse sentido, é particularmente importante
penúltimo dia de festival, me deparei com alunos
ser compartilhado de maneira tão descontraída,
que, além da prática orquestral, seja impulsiona-
de um projeto parceiro do Festival Sesc, a Orques-
divertida, emotiva, racional – e essencial.
da a música de câmara, não apenas pelo campo
tra Areal, que fizeram apresentações e puderam
que abre ao intérprete, mas pelo caráter essen-
acompanhar como ouvintes as aulas. Eram oito
cial do diálogo de sensibilidades que ela propõe.
jovens, com uma idade média de 16 anos. Uma das
Com curadoria do pianista Max Uriarte, a série
alunas me disse que nunca pensou na possibilida-
traz algumas outras lições importantes. Primeiro,
de de deixar Pelotas, mas que, ouvindo um pouco
a ousadia na escolha dos programas, aberta a di-
da experiência do violinista Emmanuele Baldini,
ferentes períodos e formações, lembrete de que a
chegou à conclusão de que havia um mundo lá
7º Festival Internacional Sesc de Música Fotos: Flávio Neves
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
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Sonora Brasil difunde a autêntica música brasileira Maior projeto
práticas e novos hábitos de apreciação musical,
“Bandas: formações e repertórios” traça um
de circulação musical
promovendo apresentações de caráter acústico
panorama das tradicionais bandas que, espalhadas
por essência, que valorizam a autenticidade sonora
por todo o Brasil, são reconhecidas como importan-
das obras e de seus intérpretes. Para os artistas que
tes instituições formadoras de músicos, responsá-
se dedicam à construção de uma obra de funda-
veis pela base da educação musical de um grande
“pisada dos cocos”
mentação artística não comercial, o maior projeto
número de instrumentistas que hoje integram or-
e “Bandas: formações
de circulação musical do país contribui para a difu-
questras e conjuntos de câmara. São identificadas
são do trabalho, consequentemente, estimulando
como parte da história de uma infinidade de cidades
suas carreiras.
brasileiras, ocupando lugar de destaque na memória
do país, na 20ª edição, apresenta os temas Na
e repertórios”
Coco de roda, samba de coco, coco de zambê,
das pessoas. Têm origem no meio militar, do qual as-
coco de pareia, coco furado, coco de embolada...
similaram características marcantes, como o uso de
são muitas as variantes que justificam a denomi-
uniforme, o repertório de marchas e a instrumenta-
nação “cocos”, sempre no plural. “Na pisada dos
ção, e são responsáveis pela criação de um gênero
cocos” apresenta variantes desta expressão lítero-
musical tipicamente brasileiro: o dobrado. Mesmo
cênico-musical típica da região Nordeste do Brasil
tendo esta força como expressão cultural, com o
Levar ao público de todo o país a pluralidade das
trazendo dois grupos que praticam cocos do litoral
passar do tempo, a necessidade de adequação de
expressões musicais pouco difundidas fora do am-
e dois do interior. É uma prática coletiva que envol-
repertórios ao gosto popular e às possibilidades téc-
biente onde são populares é o objetivo do Sonora
ve, na maioria das vezes, grupos mistos, formados
nicas e interesses dos seus integrantes, fez com que
Brasil – Formação de Ouvintes Musicais, que, no
por homens e mulheres, que são encontrados nas
repertórios tradicionais, compostos para formações
biênio 2017-2018, promove a circulação de gru-
áreas urbanas e na zona rural, inclusive em aldeias
originais, fossem desaparecendo, dando lugar aos
pos que representam diversas variantes de “cocos”
indígenas e comunidades quilombolas, onde a
arranjos de clássicos da música popular, de temas
nordestinos e de bandas tradicionais que fazem
dança e a música, integradas, estão presentes nos
de filmes de cinema e de outras vertentes populari-
parte da memória cultural das suas cidades de ori-
terreiros, nas festas populares e em ritos religio-
zadas nos meios de comunicação. Recuperando es-
gem. Quatro grupos que são autênticos represen-
sos. Cantadores e dançadores são acompanhados
ses repertórios originais, históricos ou recentemente
tantes de cada tema circulam pelas cinco regiões
ora por instrumentos de percussão como bumbo,
compostos, o Sonora Brasil traz quatro formações
brasileiras, realizando aproximadamente 450 con-
ganzá, pandeiro, caixa e outros, ora por palmas
distintas, sendo três representando os grupos tradi-
certos em mais de 100 cidades, a maioria distante
ou pela batida dos pés que marcam o andamen-
cionais que se apresentam nas ruas e praças, e um
dos grandes centros urbanos.
to, simulando a pisada que prepara o chão batido,
representando o segmento da música de concerto
Ao proporcionar às populações o contato
atividade praticada nos mutirões e à qual se atribui
com repertório inspirado na sonoridade das bandas.
com a qualidade e a diversidade da música bra-
esta característica da dança. Circulam pelo Sonora
São eles: Corporação Musical Cemadipe (GO), ABan-
sileira, o Sonora Brasil busca despertar um olhar
Brasil os grupos: Coco de Zambê (RN), Samba de
dinha (AM), Sociedade Musical União Josefense (SC)
crítico sobre a produção e sobre os mecanismos
Pareia da Mussuca (SE), Coco do Iguape (CE) e o
e Quinteto de Metais da UFBA (BA).
de difusão da música no país, incentivando novas
Coco de Tebei (PE).
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2017
39
Sociedade Musical União Josefense Coco do Iguape Quinteto de Metais da UFBA Corporação Musical Cemadipe ABandinha Coco de Tebei Samba de Pareia da Mussuca Fotos: Divulgação
AUDIOVISUAL
primeiro SEMESTRE
2017
40
Oportunidade para novos realizadores A Mostra Sesc de Cinema, além de
Em um momento no qual a cultura sofre uma
documentos, seguida de seleção, com critérios de
promover a exibição de filmes que
retração de investimentos, um novo projeto do
curadoria, para realização das mostras estaduais.
não entram em circuitos comerciais
Sesc contribui para o fortalecimento da produção
O edital do projeto não limitou os filmes em ter-
e programação de TV, faz um raio X
artística audiovisual nacional, por meio da difu-
mos de categoria, gênero ou estilo, apenas de-
da produção audiovisual no Brasil e
são e promoção da discussão e do intercâmbio
terminou que as obras fossem curta-metragem –
contribui para a formação de público
entre realizadores, público, estudantes e críticos.
até 30 minutos de duração – ou longa-metragem
para o cinema nacional
A Mostra Sesc de Cinema, projeto realizado em
– duração superior a 70 minutos.
HORAS Ficção, 2016, 15 minutos Direção: Boca Migotto
um esforço conjunto do Departamento Nacional
Em todo o Brasil, foram inscritos 1.246 traba-
(DN) com as administrações regionais, e que em
lhos entre filmes documentários e de ficção. Após a
breve terá o edital da 2ª edição lançado, é uma
validação, o número ficou em 848. No Rio Grande
oportunidade para novos cineastas apresenta-
do Sul, foram 56 curtas e 4 longas, sendo 25 docu-
rem filmes que não tiveram espaço no mercado
mentários e 35 filmes de ficcção. A Mostra Estadu-
exibidor. Também busca traçar um panorama da
al gaúcha, de 5 a 9 de junho no Sesc Centro e na
produção nacional que não chega ao circuito co-
Sala Redenção, em Porto Alegre, terá 17 curtas e 2
mercial, nem alternativo, e identificar os gargalos
longas. “Temos interesse em abrir o maior espaço
e as demandas dos artistas, a fim de promover
possível para que esses materiais sejam vistos e
DIÁRIOS DALTÔNICOS Documentário, 2014, 17 minutos Direção: Patrícia Monegatto
ações específicas para o desenvolvimento técnico
discutidos, mas não temos capacidade de absorver
e criativo na área cinematográfica e do audiovi-
uma programação muito grande, porque tem que
EM 97 ERA ASSIM Ficção, 2016, 90 minutos Direção: Zeca Brito
sual nas diversas regiões.
funcionar bem como mostra”, salienta a assessora
LIPE, VOVÔ E O MONSTRO Ficção/animação, 2016, 9 minutos Direção: Felippe Steffens e Carlos Mateus DAS URHAUS – A CASA PRIMORDIAL Documentário, 2015, 15 minutos Direção: Hopi Chapman e Karine Emerich A RUA DAS CASAS SURDAS Ficção, 2015, 8 minutos Direção: Gabriel Mayer e Flávio Costa
O projeto ocorre em três etapas: estadual,
de Cinema do Departamento de Cultura do Sesc,
regional e nacional. Na primeira, os filmes inscri-
Nadia Moreno, coordenadora para implantação do
tos são avaliados por uma comissão para sele-
projeto nos Departamentos Regionais.
ção dos filmes, composta por membros do Sesc e
Os filmes selecionados para as mostras esta-
convidados (no caso do Rio Grande do Sul, Gus-
duais seguem na disputa para representar os seus
tavo Spolidoro, cineasta, e Tânia Cardoso, coor-
estados na etapa regional. Cada estado indica no
denadora e curadora da Sala Redenção – Cinema
máximo 2 longas e 4 curtas, e a comissão regio-
Universitário). Nessa fase, ocorreu a validação dos
nal, formada por membros do Sesc nos estados
AUDIOVISUAL
primeiro SEMESTRE
2017
41
que pertencem à região e do Departamento Na-
que não aparecem nas estatísticas. “Tem uma
Para subsidiar o planejamento das ações na
cional, seleciona novamente até 2 longas e 4 cur-
cadeia de objetivos que vão se estruturando no
área audiovisual, o Sesc realizou uma pesquisa na
tas. O prêmio principal é a participação na Mostra
apoio a estes artistas, entremeada no decorrer da
ficha de inscrição com a perspectiva de identificar,
Nacional, no segundo semestre, e um contrato de
Mostra”, salienta a coordenadora.
a partir do cruzamento de todos os dados, o perfil
licenciamento com o Sesc, em âmbito nacional,
O motivo de o edital não incluir a opção da
de inscrição, tanto dos filmes quanto dos artistas, o
para exibição dos filmes nos projetos da área de
inscrição de filmes média-metragem, optando por
que é interessante oferecer como oficina ou outras
audiovisual da instituição por dois anos. Após este
estender a categoria curta até 30 minutos, mais
inciativas que contribuam para o crescimento do
período, os trabalhos permanecem no acervo do
extensa que a classificação da Agência Nacio-
audiovisual nas regiões ao longo do ano. “Também
Sesc e ficarão disponíveis para pesquisa. O anúncio
nal do Cinema (Ancine), foi filtrar obras inéditas
a mostra organizada em cada estado, que inclui
dos selecionados para a etapa regional será du-
das que já tenham alguma carreira de exibição.
debates, abertos ao público, com os realizadores e
rante as mostras estaduais, quando também serão
“A maior faixa de produções é aquele tamanho que
outros convidados para discutirem suas obras com
reconhecidos os destaques nas áreas de atuação
as pessoas fazem para TV, entre 30 e 55-60 mi-
as pessoas, e não apenas com a finalidade de exibir
– fotografia, direção de arte e roteiro – com certifi-
nutos. Ainda assim identificamos alguns materiais
por exibir, já tem este viés de promover o desen-
cados tanto para a produção do filme quanto para
que já tinham sido exibidos, que eram claramente
volvimento técnico e criativo, além de fortalecer
o profissional que assina aquela função. No evento
coprodução com canais de TV, então já sabe que
a atuação do Sesc na área audiovisual”, destaca a
nacional, haverá entrega de troféus.
tem exibição agendada”, diz Nadia, que acompa-
coordenadora.
nhou a triagem de cerca de 50% dos filmes, como
MAPEAMENTO DOS ARTISTAS
representante do DN nas comissões estaduais.
Os curadores
Fomento, colaboração, desenvolvimento da arte
Sobre as temáticas das obras, segundo a
A iniciativa do Sesc em organizar uma mostra de
cinematográfica e apoio ao lançamento de no-
coordenadora, destacaram-se as relacionadas à
cinema que é ao mesmo tempo regional e nacio-
vos talentos são os desdobramentos do projeto.
sexualidade e gênero. “Também os espaços ur-
nal se faz importante por várias razões. Primeiro
“A ideia não é apenas possibilitar aos realizado-
banos, algumas questões interessantes que não
porque ela cria condições de se fazer um mape-
res um espaço de exibição local de seu material
foram muitas em volume, mas que apareceram
amento das produções de cada região do Brasil e
e intercâmbio com os artistas locais, mas tam-
de forma muito significativa, de ficção científica,
também possibilita a troca e o intercâmbio entre
bém de uma circulação nacional, com um quan-
tem uma geração pegando carona nas séries de
essas produções; incentiva a produção e realiza-
titativo mais equânime por região geográfica do
zumbi, vídeo arte, instalação, registros de inter-
ção sobretudo de novos realizadores que, muitas
país”, explica Nadia. O Sesc pretende ainda iden-
venção urbana, filme de gênero tradicional, docu-
vezes, encontram dificuldade para a distribuição
tificar quem são estes artistas, dar visibilidade nos
mentário de personagens que têm algum signifi-
e exibição de seus filmes. Hoje se sabe que está
projetos da instituição ao que estão produzindo,
cado na cultura do local, tem o personagem que é
mais fácil realizar filmes de baixo orçamento, mas
como uma forma de colaborar com seus currícu-
o homem comum, e uma variedade interessante.
a distribuição continua sendo complicada. Mesmo
los, além de trazer para o público, por meio das
Mas o que mais me chamou a atenção, pelo signi-
que existam os festivais e os filmes circulem en-
obras, os temas que estão mais prementes e que,
ficado e não pela quantidade, foram as questões
tre eles, ainda assim, para ser exibido fora de tal
em princípio, ficam nas gavetas. Outro desdobra-
de identidade e de gênero, principalmente na ver-
circuito, ainda é bem complicado. E a Mostra Sesc
mento é fazer um mapeamento desses artistas
tente da afetividade.”
de Cinema é uma oportunidade que pode atingir
AUDIOVISUAL
primeiro SEMESTRE
2017
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todas as pontas da cadeia. Classificar-se em um
bem definidas mesmo, mas chama a atenção como
festival, ganhar um prêmio, um reconhecimento e,
cada vez mais esse questionamento se faz. Talvez
também, ter o filme exibido em vários lugares do
pela consciência cada vez maior de que realidade
Brasil. Sem contar que a iniciativa surgiu em um
filmada não é exatamente realidade, e que cada
momento de grande crise no país. E sabemos que
vez que algo é filmado, pensado, editado, temos
o primeiro corte acontece nos projetos culturais.
outra coisa.
ÀS MARGENS Documentário, 16 minutos Direção: Boca Migotto
Infelizmente. Então um novo projeto como esse é
Tânia Cardoso
de fato uma boa notícia, ainda mais que é para ter
Coordenadora e curadora da Sala Redenção –
ÁGUA Ficção, 2014, 15 minutos Direção: Giulia Góes
outras edições.
Cinema Universitário
RUBY Ficção, 2015, 17 minutos Direção: Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jorge Loureiro FREQUÊNCIAS DO INTERIOR Documentário, 2015, 25 minutos Direção: Neli Mombelli LUNA 13 Ficção, 2016, 17 minutos Direção: Filipe Barros CENTRAL Documentário, 2016, 86 minutos Direção: Tatiana Sager Codireção: Renato Dornelles O CAÇADOR DE ÁRVORES GIGANTES Ficção, 2016, 10 minutos Direção: Anttonio Pereira
Muitos dos filmes enviados são documentários e ficções, mas interessante notar que as
O júri para a seleção dos filmes no Rio Grande do
margens estão cada vez mais apagadas a ponto
Sul procurou trabalhos bastante ecléticos, que
de haver uma certa interrogação a respeito daqui-
pudessem se diferenciar e dar uma amostra bem
lo que é narrado, contado. É como se tivéssemos
diversificada da produção gaúcha. Temos docu-
personagens e atuação nos documentários. Muito
mentários de longa-metragem, temos ficção de
mais construção do que representação, de certa
longa-metragem, documentários sociais de con-
forma. E os filmes de ficção muitas vezes também
teúdo muito forte em curta-metragem, animação
brincam com a questão da representação. E talvez
infanto-juvenil... Um filme que ganhou o Festival
uma das questões que levam a esse estranhamen-
de Gramado, sensacional, que é Lipe, Vovô e o
to seja porque as narrativas são construídas a par-
Monstro. Temos ficções também. Tentamos dar
tir da memória, de alguma situação vivida de for-
uma abrangência e mostrar que o cinema gaúcho
ma muito particular. As margens nunca são muito
tem uma relevância de animação, seja na ficção
AUDIOVISUAL
primeiro SEMESTRE
2017
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seja em documentário, e acho conseguimos isso
produzidos não são assistidos pelo público. Nesse
com essas escolhas, e espero que o público tam-
contexto, o Sesc com sua capilaridade pode, por
bém se agrade ao deparar com este tipo de filme.
meio da Mostra Sesc de Cinema, colaborar para
Filmes como Ruby, que apesar de dialogar um
que o público tenha acesso e conheça a produção
pouco mais com uma ideia experimental, foi uma
cinematográfica do país.
grande unanimidade entre os jurados. Então temos de tudo um pouco.
Participar de um processo curatorial dessa natureza é sempre complexo, mas muito en-
Buscamos fazer uma curadoria que pudesse
riquecedor, pois envolve aprendizado, trocas e
ser bem representativa do que é realizado no Rio
conhecimento. Foi um trabalho exaustivo, pois
Grande do Sul e acredito que a mostra vai agradar
cada escolha significou abrir mão de algum tra-
aos diversos tipos de expectadores.
balho, visto que a qualidade dos filmes inscritos
Gustavo Spolidoro
foi muito interessante. A composição foi além dos
Cineasta
elementos estéticos de uma produção, lançou-se um olhar sensível sobre assuntos e temáticas im-
O edital contribui significativamente para o in-
portantes como arte, memórias, prostituição, sis-
centivo da linguagem audiovisual, possibilitando
tema carcerário, entre outros. Enfim, o resultado
visibilidade e janelas de exibição a produções lo-
foi bastante satisfatório e o público poderá as-
cais, que muitas vezes não são contempladas nos
sistir na Mostra um belo panorama da produção
circuitos de exibição alternativo e comercial. Atu-
audiovisual no Estado.
almente existem diversos mecanismos de fomento
Anderson Mueller
para a produção; entretanto, na cadeia de exibi-
Coordenador Estadual da Mostra Sesc de Cinema
ção existem gargalos e, em sua maioria, os filmes
OBJETOS Ficção, 2015, 16 minutos Direção: Germano de Oliveira DOMÉSTICAS Documentário, 2016, 15 minutos Direção: Felipe Diniz “N” DE VANESSA Documentário, 2015, 14 minutos Direção: Maria Carmencita Job O CORPO Ficção, 2015, 16 minutos Direção: Lucas Cassales TEMPORAL Ficção, 2016, 13 minutos Direção: Gabriel Honzik PISKA Documentário, 2016, 19 minutos Direção: Nelson Brauwers e Andruz Vianna
ARTES VISUAIS
PRIMEIRO primeiro SEMESTRE
2017
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por Francisco Dalcol, Jornalista, crítico de arte, curador independente e doutorando em Teoria, Crítica e História da Arte (UFRGS). Em suas pesquisas, investiga relações entre crítica e curadoria.
Caminhos e descaminhos da curadoria
Curador “Aquele que é encarregado, pela justiça, de cuidar dos interesses das pessoas que estão impedidas de fazê-lo / Pessoa que faz parte do Ministério Público, sendo responsável pela defesa de incapazes, ausentes ou massas falidas / Aquele que atua no cumprimento das vontades da pessoa que faz um testamento, assegurando que suas vontades sejam mantidas: curador de resíduos / Pessoa encarregada pela defesa da
Já faz algumas décadas que as palavras “cura-
“responsável pelo cardápio”, ou “curador de casa
família e das relações matrimoniais: curador de
dor” e “curadoria” circulam no meio artístico.
noturna” em vez de “gerente de programação”.
família / Quem se responsabiliza pelos casos de
Contudo, ampla difusão não necessariamente
O mesmo vale para o clássico trabalho do “edi-
menores abandonados ou de crianças infrato-
se reverte em maior compreensão, tendo em
tor”, responsável por selecionar, organizar e dar
ras: curador de menores / Encarregado de zelar
vista que os delineamentos dos termos nun-
forma a determinados conteúdos, tarefa que
pelos direitos e deveres de um órfão, além de
ca cessaram de se definir. Se no começo apa-
agora também tem passado a ser chamada de
tratar de todos as ações que lhe dizem respeito:
receram para designar um profissional e uma
“curadoria”. Não é por acaso que a mania de lis-
curador geral dos órfãos”.
atividade estrita ao campo dos museus e das
tas-sobre-qualquer-coisa é acompanhada pela
exposições de artes visuais, atualmente o
expressão “curadoria de conteúdo”.
Os mesmos dicionários de nossa língua também
que se vê é uma profusão das expressões nos
Um bom modo de se tentar entender os
mais variados setores, e não só da cultura.
caminhos e descaminhos percorridos tanto pelo
É bastante comum ouvirmos falar em curador
profissional em curadoria como pelo trabalho
de arquitetura, de moda, de design ou em cura-
curatorial é investigar as origens das palavras
Curador
doria de programação e seleção em festivais de
e os antecedentes da atividade. E, com sorte,
“Aquele que cura; que ajuda na recuperação de
teatro, cinema e literatura, mas também — e até
esboçar-se um breve panorama de contextua-
um doente”.
mesmo — em curadoria gastronômica, de festa
lização histórica, política, social e estética que
e de decoração.
convergem ao apontar o curador no sentido mesmo de cura física, remetendo ao campo da medicina:
ajude a melhor situar os contornos assumidos
A compreensão de “curadoria de arte” vai apare-
Ao mesmo tempo em que os termos se po-
pelo “curador” e pela “curadoria”, desde sua
cer apenas como um entre os diversos itens que
pularizam nas mais diversas áreas, esse maior
emergência até a crescente valorização ainda
encontramos no verbete “curador”, e somente nos
alcance parece mais confundir seus reais signi-
em curso.
dicionários que o apresentam em versões atuali-
ficados e competências. E, ademais, a difundir
zadas. O Michaelis diz o seguinte:
clichês empobrecedores. A dificuldade se torna
As origens dos termos
ainda maior porque a proliferação das expres-
No latim, encontramos expressões como “cura-
Curador de artes
sões ainda está em curso, nomeando novas ati-
re” e “curator”, as quais, no tempo dos romanos,
Aquele que tem a incumbência de organizar, pro-
vidades e até mesmo antigas tarefas que não
eram empregadas para designar o trabalho dos
videnciar a conservação de obras de arte em mu-
eram assim chamadas. A questão que se impõe é
altos funcionários encarregados de supervisio-
seus, galerias de arte etc.
que a banalização, nos piores casos, tem levado
nar obras públicas. Aqui, já aparece o atributo
também à vulgarização da atividade curatorial.
da responsabilidade de zelar. É uma noção muito
Mas quando se refere a “curadoria”, o próprio Mi-
O que ajuda a explicar a apropriação é ba-
semelhante às que constam em nossos dicioná-
chaelis retoma os significados médico e jurídico
sicamente uma tentativa de atribuir distinção
rios de língua portuguesa, mas com uma cono-
em detrimento ao emprego no campo artístico.
simbólica a determinadas funções com o obje-
tação endereçada ao campo jurídico, referente
tivo de conferir um caráter enobrecedor à ativi-
à aquele que trata das questões do Direito em
Curadoria
dade daqueles que passam a se valer dos termos.
nome de alguém. Vejamos uma pequena compi-
1 Ato ou efeito de curar.
Afinal, pode sempre parecer mais bacana alguém
lação de exemplos de significados que encontra-
2 (JUR) Cargo, poder, função ou administração de
ser chamado de “curador de menu” em vez de
mos em diferentes dicionários:
curador; curatela.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
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1
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Se prosseguirmos na aventura histórica das palavras, ainda na Idade Média, já cristianizada, encontraremos a noção de “curatour” como o sacerdote encarregado do cuidado — e cura — das almas. Ou seja, aqui a igreja atribui um papel específico do campo religioso ao que antes, com os romanos, voltava-se ao zelo do bem público. O colecionismo e os museus Os antecedentes de uma atividade curatorial como compreendemos hoje no campo da arte podem ser situados no Renascimento, quando, por volta do século 16, o hábito e a mania pelo colecionismo dão origem aos chamados “gabinetes de curiosidades[2]”. Como se sabe, são acervos que reuniam objetos zoobotânicos adquiridos nas conquistas territoriais, mas também descobertas e resgates de artefatos arqueológicos do passado e relíquias da antiguidade pagã grega, romana e de eras remotas, advindos dos intercâmbios comerciais no contato com povos distantes. Mantidos pela realeza e pela aristocracia, esses gabinetes de curiosidades, também chamados de “quartos das maravilhas”, logo demandaram um encarregado por organizar as coleções com vistas à conservação e à apresentação das peças. Aqui, ressalte-se, ainda em ambientes privados e domésticos, apontando para critérios e interesses baseados conforme um gosto de ordem pessoal. Esse ponto é importante para situar a transição ao momento seguinte, que se dá com a criação dos primeiros museus abertos ao público. Convoquemos novamente a etimologia: “museu” vem do grego “mouseion” e do latim “museum”, significando a ideia de templo das musas, as deusas da memória. Desde a antiguidade, há registros de certo pendor dos povos a guardar relíquias do passado e objetos de culto, mas será de fato com a era das grandes navegações do século 16 e a filosofia iluminista e enciclopedista a partir do século 17 que surgirão os primeiros museus como conhecemos hoje. As coleções reunidas por esses templos da razão e do esclarecimento, voltados a temas como história natural, arqueologia e antropolo-
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2017
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gia, farão com que surja a necessidade de um
nos até a metade do século 20, inclusive no Brasil,
profissional responsável por conservar, orga-
prevalecendo sobre “comisario” (espanhol), “cura-
nizar e apresentar artefatos e documentos. E
tore” (italiano), “Ausstellungsmacher”/“Kurator”
também a comandar a ampliação dos acervos,
(alemão) e até mesmo “curateur” (francês) e
propiciando a elaboração de metodologias que
“curator”/“curatorship” (inglês).
os abordem enquanto campo de conhecimen-
É importante ressaltar que o binômio cura-
to. Essa tarefa de seleção, estudo, salvaguarda
dor/curadoria como se emprega hoje surge da
e comunicação das coleções no ambiente dos
confluência de duas expressões que dizem res-
museus designará uma atividade que oferece os
peito a dois papéis distintos, ainda que comple-
princípios para as pioneiras práticas curatoriais,
mentares: o responsável pelo acervo e o respon-
neste momento ainda mais próximas ao papel
sável pela exposição. E, em ambos os casos, dando
do conservador de acervo.
conta de dois profissionais que se tornam espe-
Os museus de arte surgirão posteriormente,
cialistas pelo saber notório em suas áreas, o que
trazendo as questões que envolvem as coleções
também convoca outra expressão que se difundiu
dos museus científicos. Também terão a mesma
a partir da França, o “connaisseur”, aquele que é
função: educar e ilustrar o público. Um dos prin-
conhecedor, que tem a qualidade de perito.
cipais marcos desse período é o Museu do Louvre, em Paris, institucionalizado em 1793 com a ta-
O artista como curador
refa de exibir publicamente as coleções artísticas
As expressões permanecerão restritas ao ambien-
reunidas pela família real e pela aristocracia. Com
te museológico por algumas décadas, mesmo que
o desenvolvimento da História da Arte enquanto
se verifiquem eventos históricos que bem podem
disciplina, a arte do passado ganha um tratamen-
ser entendidos como antecedentes da curadoria,
to científico que a explica a partir de um esque-
a exemplo de exposições comandadas por artis-
ma temporal fundamentado no desenvolvimento
tas. Basta lembrarmos de Gustave Courbet, quan-
de estilos e gêneros (vem daí a cronologia que
do, em 1855, organizou o Pavilhão do Realismo
começa na arte da antiguidade, passa pela arte
promovendo uma histórica exposição individual
medieval e renascentista e segue com os conhe-
ao mostrar seus trabalhos fora do Salão de Paris.
cidos “ismos” da era moderna). E a compreensão,
Outro momento se deu com o Salão dos Recusa-
o estudo e a difusão do conhecimento artístico
dos (1863), o mesmo no qual a obra Almoço na
enquanto ciência serão tarefa de especialistas em
Relva, de Édouard Manet, causou tremendo es-
por inteferências no ambiente. Na primeira de-
História da Arte. Nesse movimento, o Louvre ofi-
tranhamento e polêmica. E também com a mos-
las, houve, por exemplo, apresentação de perfor-
cializa, em 1826, o que seria o primeiro cargo de
tra independente do Salão em que Claude Monet
mance e uma intervenção no teto com sacos de
curador em museu de arte, mas ainda voltado ao
apresentou Impressão, Nascer do Sol (1872), junto
carvão. Já a segunda se tornou célebre pelo ema-
cuidado das coleções.
a pintores como Pierre-Auguste Renoir, Camille
ranhado de fios brancos que praticamente invia-
Aqui, é válido novamente se ater às palavras.
Pissarro, Paul Cézanne e Edgar Degas, grupo este
bilizavam a circulação do público pelo ambiente,
As expressões empregadas em francês nesse mo-
que após a exposição seria chamado de impres-
ao mesmo tempo em que obliteravam a visão das
mento são “conservateur de musée” e “conserva-
sionista.
obras. É preciso lembrar que até então era ha-
teur du patrimonie”, que dizem respeito ao con-
Algumas décadas mais tarde, Marcel Du-
bitual os quadros de pintura estarem presos à
servador de museu e de patrimônio. É também
champ faria às vezes de curador ao organizar duas
parede e as esculturas serem apresentadas em
no ambiente museológico da França que logo
mostras hoje emblemáticas e que também forne-
pedestais. Outro marco da ideia de artista-como-
surgirá o antecedente do curador de exposições
cem antecedentes para a atividade curatorial: a
-curador, no caso de si mesmo, é a exposição em
como entendemos hoje: o “commissaire de expo-
“Exposição internacional do surrealismo” (1938 )[3],
que Yves Klein apresentou O Vazio (1958) em Pa-
sitions”, encarregado da exposição. Tanto é que a
em Paris, e a mostra “Primeiros documentos do
ris. O artista esvaziou a galeria de qualquer obra,
expressão francesa será o nome dado internacio-
surrealismo” (1942), em Nova York. Em ambas,
mantendo apenas uma cortina que, ao ser aberta
nalmente ao organizador de exposições pelo me-
Duchamp foi o responsável pela montagem e
pelo público, revelava a ousadia logo na entrada.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2017
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4
A obra era a própria exposição, ou a não exposição.
guagens, materiais, processos criativos e até mes-
maior parte das grandes mostras pelo mundo se
E o gesto envolvendo um modo de apresentação
mo a desmaterialização do objeto artístico. Eram
organizavam em torno de critérios formais, estilís-
conceitual aponta para aspectos que permeiam a
artistas que transitavam nos desdobramentos do
ticos ou cronológicos. Com essas duas exposições,
ação curatorial.
minimalismo e dos conceitualismos, todos hoje
Szeemann não só lançou premissas de autoria e
fundamentais para a História da Arte contempo-
viés conceitual/temático para grandes exposições
O curador independente
rânea, como Carl Andre, Giovanni Anselmo, Joseph
no campo da atividade e do pensamento curato-
É com a arte contemporânea que irá se difundir o
Beuys, Walter de Maria, Hans Haacke, Michael Hei-
rial, como também se projetou ao posto de mais
termo “curador independente” que permanece nos
zer, Joseph Kosuth, Sol LeWitt, Richard Long, Bruce
importante curador independente do sistema ar-
dias de hoje. Atribui-se a expressão às experiências
Nauman, Claes Oldenburg, Richard Serra e Robert
tístico internacional de então.
do suíço Harald Szeemann, notadamente por duas
Smithson. Três anos mais tarde, Szeemann se tor-
exposições suas que são consideradas marcos da
naria célebre ao assinar a curadoria da Documenta
atividade e do pensamento curatorial. Em 1969,
5 de Kassel[4] (1972), que, por ser configurada como
na Kunsthalle de Berna, Szeemann foi responsável
um evento atrelado a uma proposição lançada pelo
pela emblemática “When attitudes become form”,
curador aos artistas, lançou as bases sobre as quais
mostra que se notabilizou por trazer a público
grandes mostras e eventos artísticos se inspirariam
tendências artísticas que enfatizavam novas lin-
a partir dali, a exemplo das bienais. Até então, a
Primeiros documentos do surrealismo, 1942 Marcel Duchamp O vazio, 1959 Yves Klein When attitudes become form, 1969 Szeemann
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Szeemann ainda delineou a atividade de um profissional que não está ligado ou trabalhando diretamente com uma coleção de museu. Na condição de curador independente, passou a frequentar os ateliês de artistas e, em vez de privilegiar obras já prontas, a estimular a proposição de novos trabalhos, ainda inexistentes. É preciso ressaltar que essa passagem acompanha também as mudanças operadas pelas próprias práticas dos artistas no campo da produção contemporânea. Dito de outro modo, novos entendimentos artísticos, que desafiavam convenções de exposição e apresentação da arte, são acompanhados por uma nova compreensão da atividade curatorial. Ao mesmo tempo, os
sentando-se como um curador que dava espaço e
cem antecedentes para se pensar sobre o papel
museus passavam a valorizar o modelo de exposi-
estímulo para que os artistas criassem novas pro-
do curador e a atividade curatorial em ambientes
ção temporária, dentro de estratégias de comuni-
posições, intervenções, situações e performances,
institucionais.
cação entre instituição e público. E o responsável
todas elas efêmeras. “Do corpo à terra” ficaria mar-
A Bienal de SP seguiria pautando a discus-
por elas, muitas vezes um curador independente
cada por duas das mais contundentes manifesta-
são sobre o papel do curador no Brasil, agora com
convidado, começou a assumir importância fun-
ções assumidamente políticas por parte dos artis-
alta carga polêmica. Em 1985, a crítica Sheila
damental nesses processos de mediação.
tas visuais em tempos de ditadura militar no Brasil:
Leirner assumiu a curadoria e realizou uma edi-
Mesmo com o pioneirismo, o saldo das ini-
a intervenção Trouxas Ensanguentadas, de Artur
ção que ficou conhecida como a “Grande tela”[5].
ciativas de Szeemann não foi tão harmônico, pois
Barrio, e a ação Tiradentes: totem-monumento ao
O motivo foi o modo de apresentar um extenso
muitos acusaram-no e a seus seguidores dali em
preso político, de Cildo Meireles. Morais também
conjunto de pinturas ao longo de três corredores
diante de serem impositivos, por demais autorais,
sinalizou o crítico que toma para si o engajamen-
de cem metros de extensão, praticamente cola-
a ponto de rivalizarem com as obras e os artistas.
to junto aos artistas e passa para a ação: no texto
das lado a lado, embaralhando noções de autoria,
Questões que estimulam inflamados debates até
mimeografado e distribuído no evento, ele lançou
procedência e geração. Foi um gesto de curadoria
hoje sobre o poder e a autoridade do curador.
a expressão “arte de guerrilha”.
radical enquanto crítica, pois o argumento cura-
No Brasil, o termo curadoria se difundiu de
torial se articulava a serviço de um comentário
Curadoria no Brasil
fato somente a partir dos anos 1980, quando
sobre a profusão, à época, de uma pintura de viés
No mesmo período em que Szeemann apontava
Walter Zanini assumiu as edições da Bienal de São
expressionista que, na visão da curadora, seguia
para novos entendimentos sobre curadoria, no
Paulo de 1981 e 83 na condição de curador-geral.
o rastro internacional da transvanguarda italiana
Brasil também surgiam experiências pioneiras, ain-
Até então, o responsável era chamado de diretor
e do neoexpressionismo alemão com intenções e
da que seus responsáveis não fossem chamados de
artístico, quando não era o próprio presidente
consequências mercadológicas. Muitos artistas
curadores. Foi o caso de Frederico Morais em suas
assessorado por especialistas e jurados. Como
participantes protestaram em desagrado, apon-
ações no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de
curador da Bienal, Zanini desmontou o esquema
tando o caráter impositivo da curadoria, e alguns
Janeiro e quando organizou, em Belo Horizonte, a
de apresentação das obras em espaços separados
chegaram a pedir a retirada de suas obras. A dis-
mostra “Do corpo à terra” (1970). Na condição de
conforme as representações de cada país, pas-
cussão sobre o poder dos curadores frente aos
responsável pelo evento expositivo, convidou di-
sando a agrupá-las pelo critério conceitual/te-
artistas avançaria nas décadas seguintes, virando
versos artistas a apresentarem trabalhos no espaço
mático de “analogia de linguagens”. A trajetória
o milênio.
público. Como crítico e agitador cultural, Morais já
pregressa do professor, crítico e historiador como
Um aspecto importante colocado pela Bie-
havia organizado diversas mostras e escrito textos
diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC)
nal da “Grande tela” foi a relação entre discurso
que são manifestos das vanguardas brasileiras dos
da Universidade de São Paulo (USP) entre 1963 e
crítico, projeto curatorial e expografia. Ou seja,
anos 1960 e de uma virada da arte contemporânea
78, quando estimulou e deu espaço à pesquisa de
de uma argumentação crítico-teórica articulada
no Brasil. Mas foi em “Do corpo à terra” que ele
novas práticas e linguagens artísticas e a reno-
ao manejo de obras e ao modo como são apre-
radicalizou os modelos expositivos no país, apre-
vados modelos de apresentação, também ofere-
sentadas no espaço de exposição. Essa tarefa
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Trouxas ensanguentadas[6], Artur Barrio
Álvaro Siza, projeto pelo qual ganhou o Leão de
ículos de comunicação ou para a universidade ou
Tiradentes: totem-monumento ao preso Político[7], Cildo Meireles
Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, passaram
para as instituições artísticas. Neste último caso,
a ser convidados curadores externos à instituição
encontrando espaço nas curadorias.
para propor mostras sobre Iberê Camargo e outros
Ao mesmo tempo, há uma complexificação
artistas. Começaram a atuar nas duas instituições
do pensamento curatorial que leva a atividade
curadores vindos de fora, destacadamente de São
ao divã. Talvez os melhores exemplos de projetos
Paulo e Rio de Janeiro, logo passando a nomes do
curatoriais hoje sejam os que colocam em discus-
cenário internacional. Houve momentos em que
são os seus próprios modelos e as circunstâncias
os mesmos curadores transitaram entre a Bienal
em que são realizados, preferindo propor a incer-
do Mercosul e a Fundação Iberê Camargo, como
teza da abertura de uma experiência em lugar do
foram os casos de Gabriel Pérez-Barreiro, José
fechamento em torno da defesa de uma tese. São
Roca e Luis Pérez-Oramas. Em relação à atividade
muitos os exemplos, e quase todos passam pelo
curatorial do Rio Grande do Sul, também deve ser
entendimento de que o papel de um curador e a
intelectual e criativa, que alia aspectos técnicos
destacada a atuação do Santander Cultural com
missão de um projeto curatorial estão para além
e simbólicos, acompanha os desdobramentos da
seu programa expositivo.
de uma exposição bem acabada acompanhada de
A circulação de curadores internacionais
texto crítico. Nesse sentido, têm surgido iniciati-
Seria também na Bienal de SP que se irradia-
aponta para a centralidade que a figura passa a
vas que se aliam à chamada virada educacional e
ria a vitalidade de um projeto curatorial que parte
exercer no sistema artístico globalizado. Passando
social da arte, priorizando projetos interdiscipli-
de uma concepção que extrapola as narrativas es-
de um projeto a outro, entre diferentes institui-
nares que se desenvolvem por meio de progra-
tabelecidas da História da Arte como modo pos-
ções, muitos dos profissionais se transformam em
mas e plataformas. Um marco foi a 6ª Bienal do
sível de oferecer uma diferenciada leitura sobre a
grife por conta da influência e da rede de contatos
Mercosul (2007).
arte. Foi o caso da edição de 1998, em que Paulo
que desenvolvem, emprestando assinatura, prestí-
Para ser curador, não é preciso formação,
Herkenhoff se valeu da noção de antropofagia, de
gio e legitimação às iniciativas a que se associam
mas é certamente necessário que se tenha conhe-
Oswald de Andrade, como mote conceitual para se
temporariamente. Um dos maiores exemplos de
cimentos em teoria, crítica, História da Arte, mu-
pensar a condição e a produção artística a partir de
um curador que se tornou superstar é o suíço Hans
seologia, expografia e gestão. E também aptidões
uma matriz genuinamente brasileira, desatrelada
Ulrich Obrist, dado o alto poder de circulação e in-
para liderar e trabalhar em equipe em contextos
de modismos e tendências internacionais. E aqui
fluência que detém.
institucionais. Mas, acima de tudo, é preciso co-
atividade curatorial no mundo todo.
deve ser ressaltada a potencialidade que a curado-
Há ainda que se alertar para os perigos das
nhecer e entender a arte como esfera do sensível
ria reserva enquanto pesquisa e atitude reflexiva
exposições curatoriais do tipo blockbuster, que
com repercussão e implicações reais. Trata-se do
que questiona cânones e estimula um renovado
mais parecem ter como compromisso índices de
entendimento de que o curador deve se posicionar
debate e uma nova experiência com a arte. Afinal,
audiências que fornecem dados que atendem a
criticamente na contemporaneidade, convocando
o curador enquanto crítico lida diretamente junto
estratégias de marketing. Outro aspecto que muito
a curadoria como um dispositivo que colabora a se
às obras com as quais articula um discurso que se
se discute é que o chamado curador independente
pensar e intervir na dimensão complexa com que
dá não só no texto, mas também no espaço.
não é tão independente assim, pois está a serviço
a realidade se apresenta, produzindo novas experi-
de um projeto e uma instituição atendendo a fi-
ências e formas de encontro, afeto e conhecimento
O curador e o sistema da arte
nalidades e intenções. Uma vez que está a “serviço
— tanto do meio da arte quanto do campo social-
No Rio Grande do Sul, a figura do curador começou
de e para algo”, seria melhor chamá-lo de “curador
-político. Em lugar dos modelos e das convicções,
a ser de fato difundida pela mesma época, com a
freelancer”. Também por essa questão são feitas di-
apostar nas hipóteses e nos possíveis, não sem o
primeira edição da Bienal do Mercosul (1997), que
ferenciações entre as atividades do curador e a do
risco de se adentrar no desconhecido. Talvez esse
destacou Frederico Morais como curador. As edi-
crítico, pois este último estaria “mais distanciado”
seja um papel conscientemente crítico que o cura-
ções seguintes teriam outros responsáveis à frente,
das instituições e “menos comprometido” com suas
dor possa tomar para si diante da atividade curato-
mas sempre nomeados como curadores. A Funda-
estratégias. As aspas aqui, contudo, são necessárias,
rial. E também um modo de oferecer uma resposta
ção Iberê Camargo também reforçou o investi-
dadas as condições de elaboração e circulação do
à banalização e ao empobrecimento em curso dos
mento na atividade e no profissional. Com a aber-
discurso crítico na contemporaneidade. Ademais, a
termos “curador” e “curadoria”.
tura em 2008 do prédio assinado pelo português
atividade crítica há tempos vem migrando dos ve-
literatura
primeiro SEMESTRE
2017
POR Henrique Rodrigues,
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Nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É especialista em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Trabalha na gestão de projetos literários no Sesc Nacional. Participou de várias antologias literárias e é autor de 12 livros, entre os quais o romance O Próximo da Fila (Record). www.henriquerodrigues.net
Os prêmios e o feijão com arroz literário Na ausência de políticas consistentes de leitura no país, quem afinal lê os nossos escritores premiados?
Na última cerimônia de entrega do Prêmio São
muito aquém do que escrevem. Mas isso é um de-
Paulo de Literatura, o escritor Marcelo Maluf, ao
bate para outro momento. Ou talvez nem mereça.
ser anunciado vencedor na categoria estreantes
O que Maluf trouxe de diferente foi, em ple-
acima de 40 anos pelo livro A Imensidão Íntima
na celebração por um feito à primeira vista indi-
dos Carneiros, me surpreendeu. Dedicou sua vi-
vidual, ter oferecido a premiação ao coletivo, ao
tória “aos professores, bibliotecários, mediadores
universo fora do umbigo, às figuras invisíveis que
de leitura e a todos que trabalham pela constru-
contribuem, com todas as dificuldades, para que
ção do pensamento crítico, pela compreensão da
se forme o leitor literário num país com índices
diversidade, da liberdade e da sensibilidade, aos
tão vergonhosos.
seres humanos que têm fome e sede de fabulação e do saber”.
Quando o vi recebendo a premiação, falando para uma plateia na qual o governador Geraldo
A surpresa veio pelo fato de que o belo ro-
Alckmin figurava na primeira fila, e que logo em
mance tem pitadas da – muitas vezes erronea-
seguida a Beatriz Bracher iria anunciar o prêmio
mente criticada – autoficção: o autor mergulhou
principal, não pude deixar de enxergar como um
nos seus antepassados árabes para construir uma
ato de ousadia e transgressão. Sob os flashes de
bela narrativa lírica. Há quem critique esse recur-
um dos principais prêmios literários na maior ca-
so de escrita, muitas vezes associando a figura do
pital do país, o jovem (ou seminovo, como digo
escritor que usa algum elemento da própria vida
sobre nós que beiramos os 40) autor não nos
como elemento de fabulação a um ególatra in-
deixou esquecer do que é realmente importante:
veterado. Não que eles inexistam, pelo contrário.
a leitura e os leitores.
São muitos os casos, na cena cultural e midiática
Por um tempo voltei para pouco mais de um
brasileira, de personas literárias cuja imagem fica
mês, na Bienal do Livro de São Paulo. Participava
literatura
primeiro SEMESTRE
2017
51
de um debate sobre a importância dos prêmios
E também não se deve esperar que os escri-
literários e a sua participação na formação de
tores sejam performers do palco. Vale lembrar o
leitores. Havia representantes do Jabuti, Oceanos,
caso do escritor Rafael Gallo, que também venceu
do próprio Prêmio São Paulo e eu sobre o Prê-
o Prêmio São Paulo na categoria estreante com
mio Sesc. Do lado de fora da sala onde falávamos,
menos de 40 anos com o romance Rebentar. De-
uma multidão gritava para ouvir – e tirar selfies
pois de conversar com leitores numa Bienal, rece-
– um youtuber, e por vezes nosso debate teve de
beu um bilhete no qual era sugerido que fizesse
ser interrompido até que o barulho diminuísse.
mais stand up, provavelmente porque sua fala
Mas na hora lancei para os colegas de mesa umas
não era circense como se esperava.
perguntas que até agora me instigam: por que há
Daí a importância também dos modelos de
uma distância tão grande entre os dois mundos?
divulgação, esse assunto que também é um nó.
Como fazer para que esses jovens interessados
As editoras investem pouquíssimo para divulgar
pelo objeto livro, que vêm lotando esses eventos
as obras nacionais que não tenham grande po-
de grande porte, possam conhecer os autores que
tencial de venda. Há muito vigora uma linha de
descobrimos e celebramos nos prêmios literários?
pensamento segundo a qual o lucro advindo dos
Algumas respostas simples poderiam surgir.
best-sellers é que torna viável a publicação dos
Inclusive uma primeira, mais simples: está bem
livros que vendem menos. Essa regra coloca os
assim, porque se tratam de dois extremos incom-
autores brasileiros num status de resignação co-
patíveis com a “alta literatura” premiada sendo
tista, como se fosse um grande favor ter o seu
complexa demais para ser lida pela choldra, que
livro publicado. Quando o título é premiado, pode
segue as leis do mercado em busca dos livros da
no máximo voltar às livrarias com uma tarja de
moda – e, no caso, a bola da vez são os youtu-
vencedor, mas por pouco tempo, já que a fila das
bers. Esse pensamento, além de preconceituoso,
gôndolas anda rápido e os best-sellers estão es-
seria frívolo demais para quem já lidou tanto com
perando.
soas os leriam nos transportes públicos e exem-
livros de premiados quanto com os jovens que
Por outro lado, não podemos nos esquecer
plares permaneceriam nas vitrines das livrarias
estão lendo mais hoje. Ser um leitor fã de deter-
das campanhas de formação de leitores. Ainda
durante longo período. E não é o “mercado” que
minado tipo de livro não significa que o indivíduo
que existam muitos projetos de pequeno e alguns
vai mudar essa situação.
seja fechado para novas ideias e formatos. Pelo
de médio porte de norte a sul, não há hoje no
Por isso vale repetir a dedicatória de Mar-
contrário, tenho participado de muitos eventos
país uma grande política de leitura em execução.
celo Maluf. Paralelamente aos grandes prêmios
literários com jovens e o que percebo é um desejo
Educação e leitura são palavras muito bonitas em
e eventos literários, precisamos olhar seriamente
grande por novas leituras. Em muitas ocasiões,
campanhas políticas, mas remodelar o formato
para o trabalho cotidiano da formação de leito-
basta um papo com grupos de leitores para que
do ensino de literatura e instituir o livro como um
res, o feijão com arroz que possa dar sustância
nossas certezas sejam revistas e atualizadas.
bem cultural desejável no âmbito familiar é tarefa
na formação de consumidores de cultura livresca.
Outra resposta seria pela aproximação dos
para muitos anos. E o resultado, depois de grande
São ações regulares, sistemáticas e pouco visíveis
autores premiados com o público em bate-papos.
investimento e trabalho, começaria a ser perce-
que, aplicadas em escala, podem fazer a necessá-
Bem, essa etapa é cumprida de certo modo pela
bido em mais tempo do que dura um mandato
ria ponte entre os grandes livros e os potenciais
maioria dos prêmios. O São Paulo, Oceanos e Sesc
de governo. Seria fundamental a implantação de
leitores deles.
promovem encontros dos seus finalistas ou pre-
política de Estado, que se sustentasse em todos
miados, sendo que o último os leva para diversas
os governos, ou apesar deles.
atividades literárias em diversos lugares do país.
Com esse quadro, vivemos um boom lite-
Mas ainda assim isso não significa que os encon-
rário no Brasil, de qualidade e quantidade, cuja
tros se revertam em leitura efetiva. Em muitos
explosão tem alcance ainda muito restrito. Num
casos o público quer apenas saber sobre a rotina
mundo perfeito, os livros vencedores de prêmios
do escritor e seus “processos criativos”, ou apenas
literários, pela divulgação que recebem, entrariam
tirar fotos. E quase não compra os livros.
rapidamente para as listas de mais vendidos. Pes-
literatura
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Por Priscila Pasko, Jornalista, escritora e editora do blog Veredas Texto originalmente publicado no blog Veredas, do site Nonada, e financiada por seus leitores (nonada.com.br/veredas) Agradeço o apoio, os esclarecimentos de todos os entrevistados e aqueles que, de alguma forma, me auxiliaram na produção desta matéria: as pistas e conversas apontadas por vocês foram fundamentais. Fernanda Oliveira, Camila Petró, Matheus Marçal, Jeferson Tenório, Alfeu Sparemberger, Vitor Diel, Nonada (Rafael Gloria e Thaís Seganfredo), muito obrigada.
Por que não conhecemos as escritoras negras gaúchas?
literatura
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Quem são as escritoras negras gaúchas?
Optei por fazer um recorte sucinto, buscando
blicações próprias, tendo em vista as dificuldades
A pergunta foi feita durante meses por
informações na tentativa de traçar um panora-
financeiras, como é o caso da maioria das acadê-
mim a dezenas de pessoas do circuito li-
ma das escritoras publicadas ou reconhecidas
micas da ALFRS. “Para buscar [informações sobre
terário e acadêmico do Rio Grande do Sul.
a partir dos anos 1980. Ainda que tenha sido a
escritoras negras gaúchas], só indo muito a sebos
Como resposta, quase sempre, enxergava
minha intenção inicial, não foi possível resgatar
e buscando por manuscritos, talvez. Não é sempre
uma expressão reticente da interlocutora
toda a trajetória das autoras negras do Estado.
que encontramos uma Carolina [Maria] de Jesus
ou do interlocutor. Percebi com espan-
Justamente porque não encontrei especialistas
[1914-1977] por aí, com livros publicados de ma-
to – e certa dose de ingenuidade – que a
que pudessem traçar um panorama da escrita
neira formal”, diz Camila, explicando que outras
pergunta correta a ser feita era por que
das primeiras mulheres negras na história da
fontes viáveis de consultas são revistas, jornais,
não conhecemos as escritoras negras
literatura gaúcha. Contatei pessoas ligadas às
“coisas soltas e esparsas”.
gaúchas?
áreas de Letras e História, e os dados são quase inexistentes.
Taiasmin Ohnmacht, Ana dos Santos e Lilian Rocha Foto: Maia Rubim | Nonada
É difícil encontrar até mesmo reportagens na internet a respeito das autoras negras gaúchas
Foram inúmeras as consultas que fiz à mes-
e as suas obras, o que certamente indica certo
tra em História (UFRGS) Camila Petró, que já pes-
descaso ou desconhecimento da mídia e crítica.
quisou sobre a Academia Literária Feminina do
As informações que localizei constavam em blogs
RS (ALFRS). Segundo ela, a dificuldade em se lo-
pessoais ou então naqueles pertencentes a movi-
calizar escritoras negras está na ausência de pu-
mentos negros.
literatura
primeiro SEMESTRE
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A poeta Lilian Rocha foi a primeira entrevis-
ção à escravidão. “Mas poesia negra não é só isso.
estreou o seu primeiro livro, Flor (2009). Ela tam-
tada com quem me encontrei. Ela pontuou que
Existem outras que não são contestatórias e que,
bém participou de diversas antologias – a mais
existem, sim, muitas mulheres negras escreven-
por isso, muitas vezes deixam de ser reconhecidas
recente delas é Sopapo Poético: pretessência (Li-
do; no entanto, um dos motivos de parte delas
como poesia negra”, adverte Eliane. “Que espaço
bretos, 2016).
não publicar está no bolso. “A questão da publi-
terão os negros que não se encaixam neste perfil
Lilian Rocha destaca que a temática da poe-
cação – não só das mulheres negras, mas princi-
da categoria de poesia em geral e na própria poesia
sia negra trata sobre o que é ser mulher, e mulher
palmente – delibera dinheiro, o que muitas vezes
negra?”, pergunta-se Eliane.
negra, das dificuldades no trabalho, do compa-
essas escritoras não possuem”, explica.
Para a poeta e professora de Literatura Brasi-
nheiro que a abandona sozinha com os filhos,
Sendo assim, a divulgação do trabalho das
leira na rede pública estadual Ana dos Santos, ain-
restando a ela o papel de provedora da família.
poetas concentra-se na oralidade, ou seja, em
da se faz necessário ressaltar a cor de quem escre-
“Mas claro que a poesia fala sobre outros aspec-
espaços culturais e em eventos nos quais as mu-
ve. “Se tu olhares o cânone literário, vais enxergar
tos. O amor está muito presente na escrita das
lheres negras produzem. “A maioria não tem nada
apenas escritoras brancas. A Clarice Lispector é
mulheres negras. Negro também ama”, brinca,
publicado. Guarda em seu caderninho, em sua
escritora, mas a Veralinda Menezes é uma escri-
mencionando outros assuntos tratados pelas po-
agenda, exibe em clubes sociais negros”, comenta
tora negra”, fala Ana. “Eu preciso dizer que ela é
etas, como o cabelo e a beleza da mulher negra,
Lilian, que participa ativamente do Sopapo Poé-
negra porque esta palavra sempre foi ligada a uma
a sua ancestralidade, a religiosidade, as crenças, a
tico – Ponto Negro da Poesia, sarau promovido
questão negativa, pejorativa que a gente precisa
cultura, o erotismo e o preconceito racial.
mensalmente em Porto Alegre. Além de integrar
ressignificar, trocar de lugar”. Conforme a profes-
diversas antologias, Lilian publicou A Vida Pul-
sora, a cor precisa ser enfatizada “para que um dia
AS PORTAS TOMBADAS DA ACADEMIA
sa (Editora Alternativa, 2013) e Negra Soul (Edi-
ela não precise mais ser usada e que se possa dizer
Bem se sabe que, durante séculos, a literatura foi
tora Alternativa, 2016).
‘Veralinda é uma escritora brasileira’”.
um espaço de tradição e dominação masculina,
Mesmo que a escritora consiga lançar um
Entre os concursos nos quais Ana foi pre-
reflexos que são sentidos até hoje. No caso da
livro, encontrará outros entraves. Lilian diz que,
miada como poeta, está o Ministério da Poesia
mulher negra, além do gênero, ela enfrenta outro
para vender, é preciso que a obra esteja disponível
– World Art Friends (Porto, Portugal), no qual
preconceito, o de raça e, por vezes, o de classe.
em uma livraria – considerando que não são todas que manifestam interesse na literatura de autoria negra. “E, se tiver, geralmente [o livro] está lá atrás. O vendedor nem sabe onde é a prateleira da literatura negra ou se existe aquele escritor. Até conseguimos escrever, mas como vender a obra?”, indaga Lilian. Quando perguntei à poeta Eliane Marques sobre a produção das escritoras negras gaúchas, ela me devolveu outros questionamentos, como “o que os complementos mulher e negra acrescentam à poesia? Para que os textos sejam aceitos é necessário este acréscimo? Será que nós estamos sendo lidas ou procuradas por uma curiosidade e não por um valor que poderíamos acrescentar e trazer à literatura?”. Essas foram as reflexões lançadas por Eliane, vencedora na categoria Poesia do Prêmio Açorianos de Literatura 2016, com o livro e se alguém o pano (Escola de poesia, 2016). A poeta lembra que, normalmente, é dito que a poesia negra cobra os direitos de seu povo e o pagamento de uma dívida histórica em rela-
literatura
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Poeta Eliane Marques venceu o Prêmio Açorianos de Literatura Foto: Lidiane Bach, Nonada
Livros publicados por autoras negras Fotos: Divulgação
Faz sentido, portanto, que tal contexto influencie
brasileiras ou estrangeiras. O que não consegui
“Não é nenhuma crítica à academia, mas ao fato
diretamente na produção literária de mulheres
identificar foi um número significativo de pesqui-
de sermos promotoras da nossa própria posição
negras, não apenas no Rio Grande do Sul, como
sas e pessoas dedicadas a investigar as autoras
na sociedade. Não vou ficar dizendo ‘ah, não sou
no Brasil inteiro.
negras gaúchas e suas particularidades.
recebida na academia’. Nós precisamos saber em
A escritora, pesquisadora e coordenadora de
Para a professora de Comunicação Da-
quais lugares queremos entrar. Parece que a mu-
fomento às Ações Inclusivas do IFSUl (Instituto
niela Santos, que também atua no projeto de
lher negra fica numa posição passiva de esperar
Federal Sul-Rio-Grandense/Pelotas), Olga Perei-
extensão Aruanda, da Feevale, ainda há pouca
que seja reconhecida”, adverte Eliane. Ela destaca
ra, explica que o período escravagista no Brasil
representatividade da população negra no con-
que é possível construir os próprios espaços e que
“proliferou o vírus perverso” da depreciação do
texto acadêmico e, consequentemente, poucos
a mulher negra seja protagonista da sua própria
negro e de sua intelectualidade. Com quatro li-
trabalhos produzidos sobre a literatura criada
história. “Não vamos esperar que nos abram as
vros publicados, entre eles Cicatrizes da Escra-
por ela. Segundo a professora, enquanto a pre-
portas. Iremos abri-las; e, se necessário, arrombá-
vidão: da história ao silenciamento (Um2, 2015)
sença da raça negra na universidade for tímida,
-las”, conclui.
e Reinterpretando Silêncios: reflexões sobre a
dificilmente serão apresentados estudos acerca
Sendo legitimada ou não, o fato é que a
docência negra na cidade de Pelotas (Nandyala,
da realidade dessa população, que inclui a litera-
literatura negro-brasileira (termo cunhado pelo
2015), Olga diz que reconhecer a ausência de re-
tura. Daniela esclarece que os frutos da política
escritor e pesquisador Cuti) como um todo se-
ferenciais escritos por mãos negras é admitir o
de cotas demorarão algum tempo para serem
gue um caminho à parte do universo acadêmi-
racismo como fator preponderante de negação
colhidos, já que se trata de uma década frente a
co. Ações promovidas por bibliotecas públicas ou
da intelectualidade desses sujeitos. “Em se tratan-
500 anos de história.
comunitárias, seminários, livrarias mais plurais,
do da mulher negra, velhos pré-conceitos equivo-
Contudo, Daniela não acredita que o escas-
projetos de resgate ou de promoção de autoras
cados tendem a se duplicar com velocidade, uma
so debate da escrita de autoria negra deva-se à
negras multiplicam-se pelo Brasil. “Penso que é
vez que a cor da pele, historicamente conceituada
simples falta de interesse em estudar esses au-
fundamental contar com obras de escritoras ne-
pela erotização, relega a intelectualidade dessas
tores e autoras. O interesse sequer é possibilita-
gras em nossas livrarias e bibliotecas”, diz Márcia
mulheres e, como consequência, suas produções
do, em função da hegemonia cultural. “Uma vez
Cavalcante, professora e fundadora da ONG Ci-
literárias”, pontua.
que a produção acadêmica e cultural ainda tem
randar, que atua no fortalecimento de bibliotecas
Enquanto a reportagem era produzida,
como referência e como enunciador legítimo o
comunitárias em Porto Alegre e outras cidades do
18 universidades/instituições foram contatadas.
homem heterossexual branco de classe média,
RS. “Primeiramente porque temos boa literatura,
Solicitei a indicação de nomes de pesquisadores
as vozes de outros grupos sociais seguem sendo
de muita qualidade e que não são conhecidas,
que pudessem comentar a respeito da escrita
tidas como dissonantes, logo, são abafadas”, ex-
pois não há interesse ou esforço em reconhecê-
produzida por autoras negras gaúchas. Daque-
plica a professora.
-las como importantes. Segundo, porque quando
las que retornaram, apenas cinco apontaram um
De outro lado, Eliane Marques pensa que
isso não acontece revela uma grande falha em
nome – nenhum deles pertencente à faculdade
a mulher negra deve se questionar sobre os lu-
relação à equidade de nossa cultura, história e
de Letras da universidade em questão. Isso não
gares que quer ocupar. A poeta diz que não é
arte brasileira.”
revela, entretanto, que não estejam sendo apre-
pelo fato de ser “a academia” que deseja se in-
A cidade de São Paulo conta com uma
sentados trabalhos a respeito de escritoras negras
serir ou ser reconhecida como tal nesse espaço.
iniciativa bastante focada: a Livraria Africani-
literatura
primeiro SEMESTRE
2017
56
dades, espaço que dialoga com matrizes afro-
ce? E quando consegue, como se inserir em um
sidero revolucionário dentro da literatura juvenil
-brasileiras e feministas. A proprietária, Ketty
mercado editorial majoritariamente masculino
afro-brasileira, por quebrar o padrão das prince-
Valêncio, enfatiza: “quem não é visto não é lem-
heterossexual branco de classe média, tanto na
sas”, explica Ana. Ela se refere ao livro Princesa
brado” e, para ela, quem aponta este holofote é
concepção das obras legitimadas quanto no ge-
Violeta, lançado em 2008, que conta a história de
a academia. Porém, ressalta Ketty, para muitos,
renciamento das editoras? Difícil.”
uma princesa que sofre ao descobrir que seu pai
fazer parte deste universo não é importante.
Taiasmin Ohnmacht, psicóloga e escritora,
preferia ter um filho homem. Então, com ajuda de
“Felizmente, a literatura afro-brasileira sempre
concorda com Daniela. “É um bom apontamento,
um apaixonado, ela se prepara, transformando-se
sobreviveu por meio do boca a boca, da militân-
mas talvez não seja o único. O mundo dos ro-
em uma guerreira. A primeira edição foi indepen-
cia e de uma mídia independente que ajuda a
mancistas é bem masculino, mesmo que a gente
dente; a segunda e terceira foram lançadas pela
divulgar, mas, mesmo assim, algumas obras so-
tenha alguns nomes femininos”. Profissional libe-
Editora dos Príncipes Negros, que também publi-
frem injustamente o apagamento pela história”,
ral, Taiasmin trabalha em seu consultório. Mãe de
cou outra obra de Veralinda, Lilinda, Minha Amiga
pondera. Ketty conta ainda que, ao participar de
dois filhos e casada, diz que produzir não é tarefa
Rosinha (2009).
um evento como expositora, realiza um trabalho
fácil. Acorda às 6h para escrever. “Sentar para es-
A poeta Lilian Rocha menciona o nome da
de abordagem. Precisa apresentar as obras e fa-
crever é uma loucura. E olha que minha rotina de
romancista e também poeta Maria do Carmo dos
lar um pouco sobre a biografia de cada escritor.
horários é superflexível. É uma criança pedindo
Santos, natural de Cruz Alta (RS) e que atualmente
“É notável o desconhecimento desses escritos.
colo, é outra procurando algo que não encontra.
reside em Florianópolis (SC). Tem em seu currículo
Algumas obras literárias enegrecidas são ven-
Preciso dizer ‘agora não, estou escrevendo’”.
o livro de poesia Coisa de Negro (1988), o infantil
didas em grandes livrarias, mas o seu acervo
A autora criou a sua primeira poesia aos dez
O Sonho de Benedito (2003) e, com sua filha Dan-
eurocêntrico as engolem. No entanto, o público
anos de idade. Mas foi quando Taiasmin começou
dara Yemisi dos Santos, o romance Século XIX,
cativo de literatura afro-brasileira e feminista
a se interessar de fato pela escrita literária que ela
Uma história recuperada, este lançado em 2012.
consegue resgatá-la”.
optou pela prosa. “Eu não produzo poesia para ser literatura. Por outro lado, eu faço esta busca na
...
POR ONDE ANDA A PROSA NEGRA GAÚCHA?
prosa”, diz. Em 2012, Taiasmin publicou três con-
Durante os meses em que produzi esta reporta-
tos em uma coletânea, resultado de uma oficina
A proposta desta reportagem, em sua ori-
gem, todas as escritoras negras com quem con-
literária com o escritor Alcy Cheuiche. Em 2016,
gem, era bastante simples e objetiva: falar sobre
versei eram poetas. Foi então que, de imediato,
em parceria com Carlos Alberto Soares, lançou
as escritoras contemporâneas negras gaúchas.
surgiu outra dúvida: quem são e onde estão as
o livro Ela Conta, ele Canta (Cidadela, 2016), no
Contudo, infelizmente, em se tratando de mulhe-
prosadoras negras gaúchas? Elas existem, porém
qual ela escreveu contos, e Soares, os poemas. No
res escritoras – e escritoras negras – quase nada
são raras – não apenas no Rio Grande do Sul – e
momento, Taiasmin está trabalhando no projeto
se mostra tão revelador, justamente porque du-
praticamente desconhecidas do mercado edito-
de seu primeiro romance.
rante muito tempo o cânone literário tentou es-
Foi a poeta e professora Ana dos Santos
conder seus nomes, suas obras, seu talento e sua
Daniela Santos da Silva, do Projeto Aruanda,
quem me apresentou algumas prosadoras negras
história. Posso encerrar a reportagem sem muitas
da Feevale, diz que não há como pensar a pro-
gaúchas – resultado de uma pesquisa empírica
respostas, mas, ao menos, já sei quais perguntas
dução artística da mulher negra sem considerar
e intensa que ela fez. Uma delas é Maria Hele-
devem ser feitas.
a sua trajetória histórica e as suas condições de
na Vargas da Silveira (1940-2009), romancista,
existência na sociedade atual. A herança escravo-
contista, cronista e poeta, natural da cidade de
crata, explica, é evidente no trabalho doméstico,
Pelotas, no Sul do Estado. A autora, que também
especificamente: a maioria das empregadas do-
foi educadora e ativista da valorização da cultu-
mésticas brasileiras é negra e, dentre essas pro-
ra negra, denuncia em suas obras o preconceito
fissionais, as brancas recebem um salário quase
racial. Maria Helena publicou cerca de 12 títulos,
rial, da crítica e da academia.
20% maior. Além disso, Daniela esclarece que grande parte das mulheres negras é chefe de família, cui-
entre eles É Fogo (1987), O Sol de Fevereiro (1991), Negrada (1994), As Filhas das Lavadeiras (2002) e Helena do Sul (2007).
da e sustenta sozinha os filhos. “Que condições
Veralinda Menezes foi outra escritora citada
tem esse sujeito de sentar e produzir um roman-
por Ana. “Veralinda escreveu um livro que eu con-
_ Durante as conversas, as entrevistadas citaram nomes de poetas negras gaúchas, como Delma Gonçalves, Isabete Fagundes Almeida, Fátima Farias e Pâmela Amaro. _ A historiadora Camila Petró concedeu as imagens do Cadernos literários 6 (Edição Caravela), publicado em 1982, pelo do Instituto Cultural Português. Ali constam poemas da poeta Alsina Alves de Lima. São mencionadas outras três escritoras negras (poetas e cronistas) no Cadernos Literários 19 – Poetas Negros do Brasil, uma homenagem do Departamento de Assuntos Africanos-Instituto Cultural Português, de Porto Alegre, publicado em julho de 1983. Nele, poemas de Gloria Terra (1962), Mirna Rodrigues Pereira (1955) e Naiara Rodrigues Silveira (1969).
literatura LEITURA
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2017
57
LINHA M
A VIDA DAS SOBRAS
SUBMISSÃO
CIVILIZAÇÃO
Patti Smith
Carlos Caramez
Michel Houellebecq
Niall Ferguson
Companhia das Letras
Editora Leitura XXI
Alfaguara/Objetiva
Crítica/Planeta
Linha M é um movimento
Curtos, vigorosos, proféticos.
Lançado em 2015, mas
Para entender o domínio
constante entre o passado e o
Inquietantes e marginais, os poemas
ambientado na França de
ocidental. No século 15, as
presente de Patti Smith, que
falam das sobras, do que aí está a
2022, o livro acompanha as
civilizações do Oriente dominavam
amadurece o inebriante espírito
nos dilacerar num “país sem pátria”.
transformações na vida de um
o mundo. A China Ming se
jovem de Só Garotos (2010).
Imprescindíveis em tempos de
professor universitário após
desenvolvia e os otomanos
Recordações da vida com Fred
desmanche, falam de uma geração
um acirrado segundo turno
tomavam Constantinopla.
Sonic Smith, viagens inusitadas
que sonhou, se desesperou, lutou para
nas eleições presidenciais, que
A Europa Ocidental era só miséria
da Guiana Francesa ao Japão,
voltar a sonhar, e vê a desesperança
têm por desfecho a vitória de
e pragas. Nações como Inglaterra,
obsessões literárias, perdas
minar o sonho. O que sobrou? A leitura,
Mohammed Ben Abbes, candidato
França e Portugal tentavam
dilacerantes, faíscas de novos
aos sobressaltos, vai sinalizando.
da Fraternidade Muçulmana.
reverter o quadro com ações
planos e a melancolia do presente
É preciso resistir, mesmo com o pouco
O polêmico escritor francês,
colonizadoras. O historiador
solitário em Nova York constroem
que sobrou. O livro A Vida das Sobras,
que se posiciona publicamente
escocês Niall Ferguson com
uma poderosa atmosfera sensível
que o poeta Carlos Caramez, jornalista
à direita no espectro político,
Civilização – Ocidente x Oriente
em Linha M. Intercalada por
e produtor cultural, acaba de lançar,
aponta como a ascensão do
nos traz à luz como a Europa e
referências de livros, filmes e
fecha a trilogia “poemas incuráveis”.
regime islâmico impacta na vida
o Ocidente todo reverteram o
seriados, a narrativa é regada a
Antes vieram Última Safra do Silêncio
do acadêmico de uma forma
quadro e sobrepujaram o Oriente.
café e coberta pela afetividade que
(Mercado Aberto), Prêmio Açorianos de
inesperadamente positiva. No
A premissa é a explanação sobre
Smith destina a insólitos lugares e
Literatura em 1999, e Construção das
entanto, tais transformações
seis “aplicativos” do Ocidente:
objetos, completando assim uma
Ruínas (Leitura XXI). Há, neste tecido
sociais impressionam menos do
competição, ciência, direito de
leitura comovente sobre a vida
poético, vozes de quem não desiste.
que a presença de Marine Le Pen
propriedade, medicina, consumo
dessa artista fascinante.
Vozes que são sintetizadas pelo poema
como a candidata presidencial
e ética do trabalho. Na conclusão,
que abre o livro (tudo o que eu tenho
derrotada.
Niall, que virá a Porto Alegre,
/ é meu corpo / o que faço / é minha
em outubro, para o Fronteiras
vida / nada é mais veloz / que a minha
do Pensamento, questiona se o
pressa) e pelo último (preciso firmar
Ocidente pode manter o domínio
meu ponto / nunca ficar pronto).
ou se decai pela perda de fé da
A resistência está na coragem de dar
geração atual nesta civilização.
vida às sobras.. Isabel Waquil
Lelei Teixeira
Bruna Fetter
Luiz Gonzaga Lopes
Jornalista e produtora cultural
jornalista
Pesquisadora e curadora independente
jornalista
primeiro SEMESTRE
2015
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