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PRIMEIRO SEMESTRE
2018 ISSN 1984-056X
NARRATIVAS E CONTRASTES NO FESTIVAL PALCO GIRATÓRIO OS 20 ANOS DO SONORA BRASIL A TRAJETÓRIA E OS PROCESSOS CRIATIVOS DO TEATRO DA VERTIGEM
28
08
40
artes cênicas
caderno de teatro
música
08 A questão racial está no centro do debate no
28 Teatro da Vertigem: os 25 anos do
40 Os 20 anos do Sonora Brasil – Formação
espetáculo do Coletivo Negro, de São Paulo,
coletivo, formado pelos diretores
de ouvintes musicais, o maior projeto de
na programação do 13º Festival Palco Giratório
Antônio Araújo, Eliana Monteiro e
circulação de música do país
Sesc em Porto Alegre
Guilherme Bonfanti, que tem uma trajetória marcada pela ocupação
10 Viviane Juguero defende, em artigo,
46 Com o tema Na Pisada dos Cocos, Sonora
de espaços não convencionais como
Brasil circula com quatro grupos que mantêm
dramaturgias radicais para gerar a consciência
hospital, igreja, travessa subterrânea
viva a cultura do Nordeste
de que a violência contra a mulher está
desativada, balancins na fachada
fundamentada em aspectos culturais
externa de prédio na Av. Paulista e até
16 Reverberações do Seminário Práticas de Emergência Cênica, ação realizada no 12º
49 Alejandro Brittes e Magali de Rossi investigam
mesmo o Rio Tietê; os longos processos
a origem e outros aspectos do Chamamé, que
de criação de espetáculos como BR-3,
será tema da ópera Terra Sem Males, com
Kastelo e O Filho
estreia prevista para o segundo semestre, em
Festival Palco Giratório Sesc, e o debate sobre
São Miguel das Missões (RS)
questões fundamentais do contexto social, histórico e cultural contemporâneo O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
DIRETORIA Luiz Carlos Bohn
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br ISSN 1984-056X
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coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura
Anderson Mueller Música e Audiovisual
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Artes Cênicas e Artes Visuais
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aUdioVisUaL
artes VisUais
LiteratUra
54 Mostra O Lobo à Espreita faz homenagem ao
69 No artigo O Triângulo Atlântico, o crítico de
77 Poeta e músico Ronald Augusto, que circula
centenário de nascimento do cineasta sueco
arte e curador da 11ª Bienal de Artes Visuais
por municípios gaúchos pelo projeto Sesc
ingmar Bergman, diretor de 53 produções para
do Mercosul, Alfons hug, discorre sobre o
Mais Leitura, é autor do artigo Vozes Negras
cinema e TV, entre elas Persona, Morangos
olhar lançado pela exposição para o oceano
na Literatura: além da recepção convencional
Silvestres, O Sétimo Selo e Fanny e Alexander
que liga os destinos da América, África e Europa há mais de 500 anos
61 O escritor e cineasta Tabajara Ruas, cuja
80 Feliz Aniversário, conto inédito de Luisa Geisler, escritora duas vezes vencedora do
obra circulará em uma mostra do Sesc/RS no
Prêmio Sesc de Literatura
segundo semestre de 2018, revela 20 anos de 82 Natália Polesso, autora de Amora (2015),
bastidores das produções da Walper Ruas
livro vencedor dos prêmios Ages – livro do 64 Filmes selecionados na etapa estadual da
ano, Jabuti e Açorianos, apresenta o conto inédito Amanda
2ª Mostra Sesc de Cinema representam a pluralidade da produção cinematográfica
84 dicas de Leirura
gaúcha
CAPA
Unidades sesc/senac alvorada av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal av. General osório, 1030 51 3682-3041 caçapava do sul av. 15 de novembro, 267 55 3281.3684 capão da canoa av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí morada do Vale r. Álvares cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba r. nestor de moura Jardim, 1250 51 3402.2106 itaqui r. dom Pedro ii, 1026 55 3433.1164 Jaguarão r. 15 de novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha rua nivio castelano, 926 54 3358.5729 nova Prata r. Luiz marafon, 328 54 3242.3437 osório av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das missões r. marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 quaraí av. sete de setembro, 1281 55 3423.5403 santiago av. Getúlio Vargas, 1079 55 3251.9373 são Gabriel r. João manuel, 508 55 3232.8422 são sebastião do caí r. 13 de maio, 935 sala 04 51 3635.2289 são sepé r. coronel chananeco, 790 55 3233.2726 sobradinho r. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 três de maio travessa da Praça Bandeira, 65 55 3535.2255 três Passos rua dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria r. Júlio de castilhos, 1874 54 3232.8075
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diretor editorial e de criação designer e editor de arte
clarissa eidelwein (mtb nº 8.396) edição e reportagem
Patrícia Lima
revisão de texto
o Filho, teatro da Vertigem Foto: Humberto araújo
PRIMEIRO SEMESTRE
2017
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PRIMEIRO SEMESTRE
2017
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Obra de Faig Ahmed, no Margs, por ocasião da 11ª Bienal do Mercosul Foto: Tuane Eggers
cultura para emocionar A arte está por toda a parte e presente em momentos extremamente relevantes de nossas vidas. E aqui no Sesc/RS temos clareza da grande importância de se promover o fazer artístico, mas principalmente de facilitar o acesso do público a essas manifestações. Trabalhamos diuturnamente para que, pelo fomento das ações culturais, façamos a formação de plateia em todo o nosso Estado. Exemplo disso é o que ocorre, há 13 anos, com o Festival Palco Giratório Sesc, em Porto Alegre. É uma iniciativa ainda jovem, mas com grau de amadurecimento que nos mostra o quanto é fundamental proporcionarmos eventos como este a milhares de espectadores. Esta edição da Revista Arte Sesc apresenta matéria especial sobre o Festival e artigos de grupos participantes, como o caderno especial sobre os 25 anos do Teatro da Vertigem. Também aborda conteúdos relacionados ao Sonora Brasil Sesc, à Bienal do Mercosul e ao Prêmio Sesc de Literatura, e muito mais. Notem que a diversidade de linguagens é uma das premissas do Arte Sesc – Cultura por toda parte e é evidenciada nesta publicação, ao apresentarmos temáticas das artes cênicas, da música, da literatura, do audiovisual e das artes visuais. Espalhando a cultura por todas as regiões do Rio Grande do Sul, seguimos com o propósito de cuidar, emocionar e fazer pessoas felizes. Que mais sorrisos possam ser vistos nos nossos teatros, galerias, cinemas, praças, ruas e palcos! Uma ótima leitura!
Luiz Carlos Bohn
Luiz Tadeu Piva
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Diretor Regional Sesc/RS
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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O negro na cena Coletivo Negro, com o espetáculo Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, coloca a questão racial no centro do debate
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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Cinquenta espetáculos de 43 grupos oriundos de
no país em todos os níveis, em todos os campos
Para Jé Oliveira, nos últimos anos, do ponto
13 estados brasileiros, 100 sessões artísticas, além
com relação à questão racial. No teatro não se-
de vista das instituições, entre elas o Sesc, abriu-
de atividades de intercâmbio e conexões, estão
ria diferente, e nosso empenho é no sentido de
-se uma possibilidade de debate para provocar a
em cartaz no 13º Festival Palco Giratório Sesc em
tratar o tema do ponto de vista de negros e ne-
reflexão acerca do racismo e do extermínio, tan-
Porto Alegre, de 4 a 26 de maio. A programação,
gras, pelo viés poético e cênico”, afirma o diretor
to físico quanto simbólico, da juventude negra.
com o objetivo de instigar o pensar crítico, traz
e dramaturgo, que também atua nos espetáculos
As peças vêm tendo boa recepção do público e
trabalhos que caminham pelo limite do que é le-
da companhia.
da crítica. Em 2012, o Coletivo Negro, via edital
gitimado socialmente, nas fronteiras da dignida-
“Assim como Simone de Beauvoir fala que
público, foi o primeiro grupo de teatro que de-
de, em terrenos marginalizados e com difícil ou
não se nasce mulher, mas torna-se mulher, entre
senvolveu uma pesquisa racial a ocupar artisti-
quase nenhuma inserção. Muitas dessas histórias
os negros também é assim. Eu queria entender a
camente o Teatro da Universidade de São Paulo
contadas através do teatro, da dança, da música e
trajetória política de afirmação que uma pessoa
(TUSP). Revolver circulou pelo país e participou,
do circo carregam a marca da violência – simbó-
negra percorre até se identificar como tal”, expli-
inclusive, de um festival em Angola, na África,
lica, física, social e psicológica.
ca. Essa foi a investigação para a elaboração da
enquanto Farinha com Açúcar, há três anos em
Exemplo de dramaturgia política é a peça-
dramaturgia de Farinha com Açúcar, espetáculo
cartaz, esteve na programação de todos os gran-
-show Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de
que integra o circuito nacional do Palco Girató-
des festivais do Brasil.
Meninos e Homens, que tem a violência contra os
rio 2018. O artista entrevistou 12 homens negros
“Do ponto de vista social, mais amplo, o diá-
jovens negros como tema central. Nela, o Coletivo
de diversas idades e ocupações. Foi aplicado um
logo não evoluiu e a gente continua sendo assas-
Negro, de São Paulo, utiliza-se da presença cênica
questionário padrão, abrindo-se para temas mais
sinado. O que aconteceu com a Marielle Franco,
como construção poética, em busca de uma rela-
específicos a partir das respostas. “Um elemento
por exemplo, só teve tamanha repercussão por
ção íntima com o público, para contar, expor, cele-
de unidade para a maioria dos participantes é a
ela ser uma vereadora. Isso acontece todos os
brar, refletir e dialetizar o personagem do homem
relação precoce com a morte. Morte de parentes
dias na periferia, com homens e mulheres, sobre-
negro na urbanidade periférica. O grupo teve ori-
próximos, de amigos, sobretudo de modo violen-
tudo com homens.”
gem na pesquisa que Jé Oliveira iniciou no curso de
to e pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Direção da Escola Livre de Teatro de Santo André,
É o eixo norteador da obra. Começamos falando
sobre a invisibilidade social, com a colaboração dos
da morte para chegar na vida. Invertemos a tra-
estudantes de Atuação Jefferson Matias e Thaís
jetória da vida natural para tentar refletir sobre
Dias, e está completando 10 anos. “Para continuar
isso: precisamos de fato poder viver e há séculos
a debater e a fazer um teatro comprometido com
estamos sendo impedidos.”
questões étnico-raciais, convidei os atores Ra-
Um dos entrevistados mencionou a memória
phael Garcia, da Escola de Arte Dramática da USP,
afetiva de ver um tio, aos finais de semana, com
Flávio Rodrigues e Aysha Nascimento, também da
um toca-discos na calçada, limpando os vinis e co-
Escola Livre, que investigavam essa temática. Já
locando música para a vila inteira ouvir e dançar,
nos primeiros encontros, nos reconhecemos como
uma espécie de DJ. “Essa imagem, de alguma for-
coletivo”, conta o idealizador. Desde então, o gru-
ma, está contida no espetáculo porque o encontro
po encenou Movimento Número 1: O silêncio de
com a cultura ocorre mais pela via da música. Isso
depois... (2011), {ENTRE} (2014), Revolver (2015),
ecoa com a minha trajetória de afinidade com mú-
Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Me-
sica negra, o funk dos anos 70 e depois o rap dos
ninos e Homens e Ida (2016).
Racionais Mc’s como os principais disparadores e
A investigação levou à percepção de que a
fomentadores de uma capacidade de identificação
presença do negro na dramaturgia nacional era
racial e revide social”, diz o dramaturgo. Ele está
invisível, quando existia. “Havia uma carência
em cena acompanhado de uma banda formada
grande de ter nossas questões representadas
pelos músicos Cássio Martins, Dj Tano – Záfrica
em primeira pessoa, então nos movimentamos
Brasil, Fernando Alabê, Mauá Martins e Melvin
muito com esse aparato poético de linguagem
Santhana. Eventualmente Kl Jay, integrante dos
para tentar diminuir o hiato histórico que existe
Racionais Mc’s, participa como DJ do espetáculo.
Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens integra o Circuito Nacional do Palco Giratório Foto: Evandro Macedo
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
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Por Viviane Juguero Dramaturga, brincante, professora e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS.
1 Ou vetorizado, conforme Patrice Pavis (2010). 2 Cronotopo, segundo Mikhail Bakhtin (2010). 3 O vídeo está disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=tItTvA4e6eo
Dramaturgias radicais no combate à violência contra a mulher Apesar das inúmeras medidas públicas, das severas
As dramaturgias estão imbricadas no con-
obras audiovisuais e videoclipes, além de determi-
leis e dos programas de conscientização adotados,
texto histórico/sociocultural do qual fazem parte e
nadas criações musicais, coreográficas e circenses,
a violência contra a mulher no Brasil só aumenta,
exercem funções basilares na estruturação social,
podem ser observadas do ponto de vista da criação
em crescente sucessão de crimes de feminicídio,
já que são essenciais às formas de subjetivação de-
dramatúrgica.
além de assustadores índices de agressão física,
senvolvidas em cada sociedade, aos valores éticos
No que diz respeito às construções de gê-
moral, psicológica e afetiva. A ineficácia das me-
e morais que as respaldam, às construções discur-
nero, pedagogias subliminares predominantes
didas de punição com vistas à redução dos crimes
sivas críticas, à consolidação de pedagogias subli-
em discursos artísticos da cultura brasileira con-
revela que o tema precisa de ações que gerem a
minares e ao direcionamento da estruturação de
tribuem de forma contundente na manutenção e
consciência de que essa violência está fundamen-
desejos, anseios e objetivos que predominam em
na geração do “emocionar”, que resulta em agres-
tada em aspectos culturais, que precisam ser mo-
determinados ambientes culturais. Evidentemen-
sões contra a mulher. Não é possível dissociar os
dificados desde a raiz.
te, essas dramaturgias participam dessas mesmas
altos índices de feminicídio no Brasil, os números
Segundo Humberto Maturana e Gerda Ver-
construções, vinculadas a outros fatores sociais
de estupro e as agressões físicas, verbais e morais
den-Zoller (2004), a configuração do “emocionar”
que, por sua vez, são influenciados por elas e as
sofridas pelas mulheres, das produções culturais
embasa a perpetuação da maneira de conviver
influenciam.
que constroem a imagem de mulher-objeto. São
em uma determinada cultura, durante seguidas
A definição de dramaturgia sofreu diversas
incontáveis realizações artísticas, oriundas de di-
gerações. Para os autores, a especificidade da co-
alterações no decorrer da história. Em meus estu-
versos setores da sociedade, que incentivam o
ordenação de coordenações de ações e emoções
dos, proponho concebê-la como a criação discur-
abuso sexual, moral e, até mesmo, as agressões
(2004, p.14) resulta na rede de conversações que
siva de um trabalho estético composto de ações
físicas contra as mulheres. Um exemplo bastan-
constitui o modo de convivência de uma dada
em desenvolvimento, num processo autoral axio-
te eloquente dessa realidade é o vídeo da música
cultura, gerando hábitos, valores e maneiras de
lógica e perceptivamente direcionado (BAKHTIN,
Fala Aqui Com a Minha Mão, de Wesley Safadão[3],
perceber o mundo.
2010)[1], que forma um conjunto complexo de
um cantor muito popular nas camadas menos
elementos organizados em tempo e espaço ficcio-
intelectualizadas da sociedade brasileira. A letra
nal[2] de maneira roteirizada, denotando, de forma
prega a irresponsabilidade masculina para com a
latente ou explícita, a possibilidade de materializa-
companheira (agregando status social a esse com-
ção em outra linguagem artística.
portamento, que é incentivado e louvado) e induz
A Mulher Arrastada, na programação do 13º Festival Palco Giratório em Porto Alegre, traz a história real de uma mulher, negra, trabalhadora, mãe, assassinada pela polícia do Rio de Janeiro em 2014 Foto: Regina Peduzzi Protskof
Entendo também que a dramaturgia pode ser
à agressão física, caso ela demonstre descontenta-
concretizada em sentido estrito, como texto literá-
mento com o desrespeito sofrido. Ele canta: “Fala
rio de caráter tabular (UBERSFELD, 2010), ou em
aqui com a minha mão, que eu não ‘tô’ com pa-
sentido amplo, como construção discursiva da en-
ciência para muita discussão”. Por que esse tipo
cenação (PAVIS, 2010). Dessa forma, peças teatrais,
de manifestação não é considerado crime em nos-
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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artes cênicas
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
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Quarto 19, na programação do Festival, é a história de uma mulher de classe média que espera o filho mais novo entrar na escola para ter algum tempo para si Foto: Cris Lyra
sa sociedade? As recentes conquistas nos campos
a percepção de um mundo constituído pelo res-
racial, religioso e da afetividade gay têm evitado
peito à diversidade e pela valorização das atitudes
manifestações culturais explícitas dessa natureza
de cooperação e de real interesse em aprender na
(embora, infelizmente, ainda existam as agressões
alteridade. desde a mais tenra idade, as meninas
estéticas implícitas em grande quantidade). Por
são submetidas a construções estéticas e compor-
que em relação à mulher essas violências são tole-
tamentais que as valorizam como objetos sexuais
radas? Mais assustadora ainda é a maneira como
ou, ao contrário, como seres maternais despro-
essas construções discursivas são justificadas e
vidos de sexualidade e desejo. Já os meninos são
banalizadas. Num dos vídeos que apresenta a can-
confrontados com modelos de masculinidade em
ção citada, as pessoas dançam abrindo e fechando
que a força física e o desfrute sexual de diversas
o polegar em oposição aos demais dedos unidos,
mulheres são considerados ideais. isso impede que
como se a mão estivesse falando, o que, para al-
ações de cumplicidade e respeito para com suas
guns, resulta na compreensão de que se trata de
companheiras gerem o prazer e a satisfação que
uma brincadeirinha inocente. No entanto, deixar
poderiam ser vivenciados com base em princípios
uma pessoa que foi desrespeitada falando sozinha
culturais diversos.
não seria, por si só, uma grande agressão? A ambi-
A cultura machista é composta por valo-
guidade do gesto e os valores exaltados na canção
res basilares e emoções que englobam homens
não deixam nenhuma dúvida sobre o incentivo à
e mulheres em um sistema complexo, no qual a
prática de desrespeitos de múltiplas ordens contra
polarização de gênero resulta em percepções sec-
a mulher. infelizmente, nossas produções culturais
tárias que não contribuem para a superação do
estão repletas de exemplos dessa natureza.
problema. dizer que determinadas mulheres se
À revelia de a legislação brasileira condenar
comportam de maneira tal, que provocam deter-
os crimes de abuso contra a mulher, inúmeros ob-
minadas atitudes por parte dos homens, tem sido
jetos estéticos, para adultos e crianças, continuam
argumento de justificativa do machismo em di-
incentivando os mais variados tipos de violência,
versos contextos. O comportamento de homens e
falsamente respaldados em discursos que defen-
mulheres resulta de pressões e valores sociais que
dem a “liberdade de expressão”. O enorme público
os respaldam. Qualquer tentativa de simplificação
que consome essas dramaturgias revela, de forma
e generalização resultaria em análises superficiais.
assustadora, o quanto a sociedade brasileira ainda
A violência contra a mulher (alicerçada no machis-
precisa evoluir nesse sentido e explicita os motivos
mo) não é uma questão de responsabilização de
emocionais e axiológicos que fazem com que as
gênero, mas sim um problema cultural que atinge
legislações tenham sido muito pouco eficazes na
toda a sociedade de forma complexa e induz com-
diminuição de agressões morais, físicas e afetivas
portamentos e visões de mundo. Enquanto esse
contra as mulheres.
tema não for abordado enfaticamente na raiz do
Mesmo em meio às inúmeras discussões atu-
problema, não acredito que alguma lei, por si só,
ais sobre o tema, ainda predominam construções
poderá evitar a crescente sucessão de agressões e
artísticas cujo discurso de gênero ou objetifica a
crimes existentes em nossa sociedade.
mulher ou idealiza sua capacidade de tolerância,
Cabe integrar a essa reflexão o quanto as
de luta e de realização de diversas tarefas ao mes-
emoções que geram essas ações têm resultado
mo tempo. Essas dramaturgias respaldam, sublimi-
em milhares de crianças sem pai e na sobrecar-
narmente, atitudes de exploração e abandono afe-
ga de mulheres, que muitas vezes ainda são res-
tivo e estrutural sofrido por milhões de mulheres.
ponsabilizadas por serem mães solteiras. Não há
No que diz respeito à infância, meninas e
uma cobrança moral e severa no que concerne ao
meninos são vítimas de um sistema que os rotula
abandono paterno, apesar do avanço ocorrido na
em estereótipos comportamentais que dificultam
legislação atinente em nosso país. A condescen-
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
13
Narrativas de Cor e Cór (2015), com dramaturgia de Viviane Juguero, aborda a relação matrística cooperativa como alternativa ao sistema competitivo patriarcal Foto: Acervo do Programa FORPROF/UFRGS
dência social com a irresponsabilidade paterna é
Por certo, essa realidade é composta por
Desenvolvi o conceito de dramaturgia radi-
revelada, por exemplo, quando um homem é de-
inúmeros fatores vinculados a seus contextos es-
cal no decorrer do meu doutorado, realizado no
clarado um excelente pai porque visita os filhos
pecíficos. No entanto, o papel das manifestações
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
nos finais de semana, os leva para passear e “aju-
discursivas artísticas da cultura machista é con-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a
da” nas despesas. Quando uma mãe seria louvada
tundente nos processos que geram e respaldam
orientação de João Pedro Gil.
por tal comportamento?
as construções éticas, morais e afetivas que em-
A dramaturgia radical está fundamentada no
basam as emoções, das quais resultam ações de
envolvimento investigativo, afetivo, político e pe-
desrespeito e violência contra a mulher.
dagógico de quem cria composições artísticas, re-
Quantos dos adolescentes mortos diariamente no Brasil são oriundos de famílias desestruturadas e sofrem com a rejeição física, sentimental
Devido à complexidade das constituições
velado na assunção de sua responsabilidade, con-
e moral paterna? Quantas crianças são vítimas do
sociais, não é possível nem idealizar o papel
forme preconiza Mikhail Bakhtin (2010). A noção
abandono afetivo materno devido à desestrutura-
das construções discursivas do teatro, audiovi-
de radical que abordo é proposta por Paulo Freire
ção emocional de mães subjetiva e objetivamente
sual, música e artes plásticas, nem negligenciar
(2016 [1970]), para quem o posicionamento radical
sobrecarregadas, além de moralmente abusadas?
a força da sua influência na configuração de
pressupõe a permanente busca de consciência na
O oferecimento de estrutura física pode maquiar,
cada sociedade. Com base na convicção de que
percepção das ações em seus contextos sócio-his-
em muitos casos, a ausência de cumplicidade emo-
somente a alteração das emoções, geradas por
tóricos, reconhecendo a dialeticidade necessária a
cional sofrida por milhares de crianças e jovens.
valores éticos e morais subjetivados e objetiva-
toda a transformação, por meio de escolhas em-
O abandono afetivo na infância e na adolescência,
dos em ações, é capaz de transformar realidades,
basadas na práxis – ação e reflexão. Associo esse
que resulta da desestruturação emocional da cul-
defendo a fundamental relevância da criação de
embasamento à noção de pedagogia radical, que
tura machista, agride mulheres e homens e está
dramaturgias radicais no combate à violência
Henry Giroux (1988) propõe ao vincular os pensa-
presente em todas as classes sociais.
contra a mulher.
mentos de Freire e Bakhtin. Para Giroux, os textos
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
14
4 Com base no entendimento de que o pensamento filosófico é toda a construção heterocientífica que enfoca a complexidade da vida (BAKHTIN, 2010).
são construtos sociais concatenados aos interesses
gerados e geradores, constituindo complexas rela-
nem da consciência nem da afetividade, nem da
que os sustentam e legitimam e que podem tanto
ções dialéticas de coordenações interdependentes
objetividade, nem da subjetividade, as quais ope-
possibilitar quanto restringir determinadas repre-
de geração das condições de vida. Desse modo, o
ram em permanentes relações dialéticas.
sentações sociais e reflexões. Giroux entende que
sentido figurativo de origem, presente na palavra
A dramaturgia radical é gerada por reflexões,
todo o texto é gerado pelo contexto e gerador des-
raiz, é um aspecto fundamental no entendimento
afetamentos e instabilidades. A pessoa criadora
te mesmo contexto, em uma construção dialética
da dramaturgia radical como fator determinante
é convidada a refletir sobre si mesma e sobre os
que permite transformações, mas também pode
na construção moral, ética, estética e afetiva social.
grupos com os quais pretende dialogar. Ela precisa
ratificar e fortalecer valores constituídos.
Nesse sentido, encontro na brincadeira as raízes da
ainda reconhecer que as criações artísticas abar-
No conceito de dramaturgia radical, agrego
dramaturgia (SANTOS, 2004; JUGUERO, 2014) e os
cam escolhas conscientes e construções incons-
aos autores citados as ideias desenvolvidas por
fundamentos ontológicos da complexidade de seu
cientes, assim como fatores culturais e pessoais,
Maturana e Verden-Zoller (2004) sobre a origem
papel na constituição social como um todo.
subjetivos e objetivos, identificáveis ou não iden-
matrística da humanidade. A noção matrística de
Para Paulo Freire (2016 [1970]), o posiciona-
tificáveis (BAKHTIN, 2010). Nesse tipo de criação, a
radical é de que não há nem subordinação nem
mento radical é dialético e precisa ser desenvolvido
autora ou o autor aceita colocar-se em uma situa-
independência absoluta de nenhum campo do vi-
por meio da consciência colaborativa e do esforço
ção de “risco responsável” – uma posição que pode
ver e do saber. Assim, todas as ações, pensamen-
de pensar no modo de pensar da outra pessoa ou
ser comparada, metaforicamente, com o equilíbrio
tos, sentimentos e percepções humanos estão
grupo, respeitando as diferentes culturas e modos
precário que Barba (1995) sugere ao ator –, na qual
encadeados em um amplo sistema no qual são
de expressão. Nesse processo, o pensamento críti-
é possível ousar e assumir escolhas estéticas, éti-
co surge do diálogo que oportuniza a transforma-
cas, afetivas, políticas e pedagógicas, evidenciadas
ção e reflexão de todos os envolvidos, não havendo
na composição artística e nas formas de proposi-
uma via de mão única na qual os detentores da
ção dialógica.
Quarto 19 tem concepção e atuação de Amanda Lyra
sabedoria apresentam verdades absolutas a seres
O posicionamento filosófico[4] que embasa
considerados ignorantes e desprovidos de toda a
a dramaturgia radical está distante tanto da in-
Foto: Cris Lyra
consciência. Com base nessas premissas, a noção
tenção de transformar o mundo abruptamente
No 13º Festival Palco Giratório: As Mulheres do Aluá, do grupo O Imaginário (RO), coloca em foco as relações de gênero e o universo feminino em diferentes épocas, na Amazônia
de radical que proponho para o conceito de dra-
quanto da crença que é impossível transformá-
maturgia radical é constituída pela integração en-
-lo. Ao reconhecer que as elaborações artísticas
tre razão e emoção, não sendo possível prescindir
fazem parte de uma engrenagem social em per-
Foto: Leonardo Valério
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
15
manente construção, assim como todos os discur-
especificidades de linguagem em cada caso, reco-
sos e atos, percebe que as dramaturgias integram
nhecendo a lógica lúdica do pensamento infantil
a cultura cotidiana de forma intensa e significativa,
(JUGUERO, 2014) e os processos de constituição
exercendo papel eloquente nas constituições axio-
de valores, hábitos e afetos predominantes nes-
lógicas culturais que respaldam a coordenação de
ses momentos da vida. Dessa forma, as criações
ações e emoções que geram os modos de vida.
afetivas, envolventes e desafiadoras parecem ser
A dramaturgia radical não pretende apre-
caminhos que respeitem a autonomia das crian-
sentar discursos ortodoxos, mas possibilitar novas
ças na criação de sentidos e que instiguem as
percepções sobre os aspectos culturais que levam
múltiplas percepções, vetorizando (PAVIS, 2010)
à manutenção e à ampliação das agressões con-
construções éticas e morais que contribuam em
tra a mulher. Este tipo de criação pode explicitar
um posicionamento crítico, autocrítico e afetivo.
e questionar construções artísticas discursivas que
As dramaturgias para crianças podem colaborar
suscitam elaborações subjetivas e emocionais que
na percepção orgânica da diversidade, na des-
respaldam a violência contra a mulher. As drama-
construção de modelos de gênero hegemônicos
turgias radicais precisam desnudar a contradição
e na elaboração de distintas maneiras de agir e
da cultura brasileira que gera, por um lado, as ne-
emocionar, fundamentadas no amor e no respeito
cessárias e bem elaboradas leis que confrontam
à alteridade.
as agressões contra a mulher e, por outro, os pro-
Por fim, cabe salientar que este artigo in-
dutos que originam e sustentam essas agressões.
tegra meu trabalho como pesquisadora e artista
Elas podem ser uma maneira de lutar não somen-
criadora, tendo a práxis como base investigativa,
te contra o efeito da violência, mas, em especial,
fundamentada na metodologia dialética que João
contra suas causas. Como gerar novas emoções e
Pedro Gil (1999, 2004) propõe ao campo das Artes
desejos, que resultem em transformações efetivas
Cênicas, na qual teoria e prática são reconhecidas
dos modos de agir e de se relacionar?
como parte integrante de um mesmo processo
No que diz respeito às crianças e adolescentes, a dramaturgia radical compreende as
criativo, sem dissociação e em cooperação.
Referências BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec Ed. da Unicamp, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2016. GIL, João Pedro Alcantara. “A abordagem dialética na pesquisa de teatro e educação”. CENA: Revista do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Porto Alegre, n. 3, p. 59-66. Novembro de 2004. . Para além do jogo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1999. GIROUX, Henry. Escola Crítica e Política Cultural. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. JUGUERO, Viviane. Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças. Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Porto Alegre, 2014. MATURANA, Humberto; VERDE-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar. São Paulo: Palas Athena, 2004. PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010. SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos. Brincadeira e conhecimento: Do faz-de-conta à representação teatral. Porto Alegre: Mediação, 2004. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.
Exploração sexual, violência e abandono estão em O Cavalo de Santo (2016), com dramaturgia de Viviane Juguero e direção de Jessé Oliveira Foto: Acervo de Jessé Oliveira
O Método Arbeuq (2016) tem dramaturgia radical de Viviane Juguero e direção de Jessé Oliveira Foto: Márcio Garcia
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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Por Patrícia Fagundes Diretora da Cia Rústica de Teatro, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC).
Vera Lúcia Bertoni dos Santos Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC).
PRÁTICAS DE EMERGÊNCIA CÊNICA: seminário em tempos de urgência ou para estender a conversa Celebrando sua intenção artístico-pedagógica ex-
zados em diferentes Mesas Temáticas, com inter-
riências vivenciadas nos diferentes encontros, de
pandida, o Festival Palco Giratório Sesc, nas três
venções artísticas incorporadas. São elas: Poéticas
modo a aprofundar temas relacionados a seus
mais recentes edições, promove um Seminário
Urbanas; Lugar de Mulher; Movimentos da Pala-
interesses de pesquisa na área de Artes Cênicas.
que, na articulação entre a programação cênica e o
vra; Colaborações e Horizontalidades: processos de
Os textos produzidos evidenciaram pontos de vis-
debate sobre questões fundamentais do contexto
criação; e Corpo Político.
ta diferenciados sobre os temas do Seminário e
social, histórico e cultural contemporâneo, propõe um espaço-tempo de encontro e reflexão.
A parceria entre o Festival Palco Giratório e
possibilitaram narrativas de experiências pessoais
o PPGAC da UFRGS concretiza-se a partir da con-
relacionadas à criação, à fruição, à produção e à
Desenvolvido em parceria com o Programa de
cepção e da organização compartilhadas entre nós,
formação artística, tudo articulado aos concei-
Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de
professoras do PPGAC, e a coordenação do Sesc
tos referenciais das pesquisas dos seus autores.
Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
no planejamento do Seminário, cujas atividades se
O compartilhamento das produções escritas dos
(PPGAC), e promovendo a interseção entre universi-
vinculam a uma disciplina (Tópico Especial II) ofe-
participantes entre si, e conosco, através de um
dade e produção artística, arte e outros saberes, po-
recida a estudantes regulares de cursos de mestra-
blog de acesso restrito, e de exposições orais para
lítica e criação cênica, o Seminário do Festival Palco
do e de doutorado da UFRGS. Também participam
o grande grupo, propiciou trocas frutíferas que re-
Giratório Sesc foi inaugurado no ano de 2016, sob a
das aulas alunos de outras universidades, além
sultaram na revisão e no aprimoramento do mate-
temática Práticas Políticas da Cena Contemporânea,
de artistas, professores e pesquisadores selecio-
rial, motivando esta publicação.
e teve sua segunda edição em 2017, com o título
nados e inscritos na condição de “aluno especial”.
Assim, pensamos em tornar os textos públi-
Práticas de Emergência Cênica.
Os temas do Seminário são abordados em Mesas
cos, para apresentar um panorama dos debates
Em 2018, o Seminário do Festival recebe a de-
Temáticas previamente definidas, compostas por
ocorridos no evento, demonstrando a pluralidade
nominação Práticas de Reinvenção em Tempos de
docentes do Programa e por convidados eventuais:
dos discursos e dos pontos de vista que compuse-
Urgência, pensada a partir da necessidade, e mes-
artistas, professores, pensadores. O formato dos
ram os encontros.
mo da urgência, de responder coletivamente aos
encontros prevê exposições individuais dos convi-
Além de dar visibilidade à rica e entusiasmada
desafios e golpes nos tempos turbulentos em que
dados, debates com o público presente e interven-
conversa iniciada no Seminário de 2017 e conti-
vivemos. Em diálogo com o mundo, no enfrenta-
ções artísticas. Além da presença nos encontros
nuada na sala de aula da disciplina do PPGAC, os
mento das provocações e nas limitações de diver-
do Seminário e em alguns encontros específicos
textos são aqui compartilhados com a intenção de
sas ordens, as artes tendem a reinventar, sob estí-
da disciplina, é solicitado aos alunos o compareci-
estender a nossa conversa a outras gentes, artis-
mulos diversos, modos de criação e de produção de
mento a dois espetáculos da programação do Fes-
tas ou não, dispostas a pensar coletivamente seus
formas alternativas de existência. O objetivo desta
tival Palco Giratório (indicados previamente com
fazeres artísticos, pedagógicos, críticos e reflexivos
edição é promover a reflexão e o debate acerca da
intenção de fomentar o debate e a reflexão crítica
como ações alternativas comprometidas com a
criação e da produção cênicas, compreendendo-as
em sala de aula). É essencial ainda a produção e o
transformação da sociedade frente a uma reali-
como respostas potenciais aos estímulos e dilemas
compartilhamento de textos que reflitam e apro-
dade adversa, na qual as práticas cênicas consti-
éticos, sociais, culturais e urbanos processados na
fundem aspectos enfocados nas Mesas Temáticas.
tuem-se como emergência.
contemporaneidade.
Aos alunos do PPGAC participantes do Semi-
Práticas de Reinvenção em Tempos de Ur-
nário na edição 2017, propusemos que a escrita
gência desenvolve-se em cinco encontros, organi-
dos textos refletisse assuntos abordados e expe-
Boa leitura!
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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1 DAVID GIORDANI Artista, coach, escritor e professor. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS giordanodavi@gmail.com / davigiordano.com.br
Seminário Práticas de Emergência Cênica, no 12º Festival Palco Giratório
quer uma dessas situações, estão criando um tra-
Heloisa Gravina, no Seminário
contemplados com nossos fazeres: espectadores,
balho de nível pedagógico com aqueles que são
Foto: Claudio Etges
alunos e sociedade em geral. Cada um dos convidados trouxe uma provocação interessante para confrontar com o título
Pedagogias indisciplinadas ou aprendizados disciplinados por desejo?[1]
do tema do encontro: “Pedagogias Indisciplinadas”. Isso abriu novos pontos de vista sobre aquilo que temos como noção de disciplina. O primeiro convidado, Airton Tomazoni, comentou que a dança, em sua história e forma-
A primeira conversa do Seminário Práticas de
dade, em momentos de crises políticas, econômi-
ção dentro da sociedade, sempre foi marcada por
Emergência Cênica, realizado no 12º Festival Palco
cas e sociais que afetaram diretamente o Brasil de
uma forte disciplina, como é possível perceber no
Giratório Sesc/POA, foi sobre o tema Pedagogias
2017. Nesse sentido, ter como abertura do Semi-
desenvolvimento do balé clássico e com o sur-
Indisciplinadas. Estiveram presentes a professo-
nário um diálogo direto com a Pedagogia é mais
gimento dos manuais de dança. Na tradição, es-
ra e pesquisadora Vera Lúcia Bertoni dos Santos
do que urgente. É também uma forma positiva
ses manuais se tornaram rigorosos instrumentos
(UFRGS), o coreógrafo, jornalista e gestor cultu-
de integrar a cultura e os aspectos formativos
pedagógicos, com registros de regras, notações e
ral Airton Tomazoni (Centro Municipal de Dança
sobre o que se faz e o que precisa ser feito para
formas de movimento que devem ser obedecidas.
da Prefeitura de Porto Alegre) e a professora e
pensar os reais sentido e lugar da arte em nossa
Com o passar dos séculos, a evolução da dança
educadora Fabiana Marcelo (UFRGS). Junto com
sociedade.
moderna até a atual dança contemporânea, hoje
o público, os convidados provocaram discussões
A relação entre pedagogia e fazer artístico
vemos um número grande de encenações que
em torno de práticas de aprendizagem em artes
trouxe como eixo mobilizante a questão da “in-
buscam colocar corpos em cena para romper as
cênicas envolvidas por um campo expandido de
disciplina”, ou seja, daquilo que pode vir a pro-
convenções e provocar formas de estranhamento
fazeres pedagógicos formais e não formais em
vocar, criar estranhamento, deslocar os sentidos
e descontrole no palco.
escolas, projetos sociais, oficinas, universidades e
comuns e propor novas formas de ver a vida e
Já a professora Fabiana Marcelo, cuja fala
escolas de arte, entre outros contextos.
o mundo. Assim, tanto aqueles que trabalham
é estimulada pelo campo da Educação, revela a
Primeiramente, é fundamental ressaltar que
diretamente em cena (atores, diretores, autores,
necessidade de refletir sobre os últimos aconteci-
o título “Práticas de Emergência Cênica” está di-
performers, cenógrafos, figurinistas) como tam-
mentos sociais como forma de encontrar que tipos
retamente vinculado à necessidade de pensar e
bém os professores de artes – sendo que muitos
de “pedagogias indisciplinadas” se dão hoje em
refletir sobre as artes cênicas na contemporanei-
profissionais estão em ambas funções – em qual-
nosso país. Em sua visão, a arte é vital para desper-
artes cênicas
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
18
2 PATRÍCIA RAGAZZON
tar o caráter político, resultando assim em outras
dologia científica das artes cênicas, com um viés
perspectivas mais afetivas, poéticas e sensíveis de
sensível de pessoalidade.
experienciar o mundo e aceitar as diferenças.
Em arte, nosso papel não é necessariamente ensinar um conteúdo específico, mas transmitir
Em todas as falas, vemos que os três profis-
desejo e interesse por aquilo que fazemos. dessa
A terceira convidada, Vera Lúcia Bertoni dos
sionais trafegam por múltiplos fazeres e atividades
forma, a disciplina parte sempre de dentro e não
Santos, refletiu sobre suas experiências no en-
nos campos da arte e da educação, provocando-
de fora. Mais do que regra, disciplina é cartogra-
sino do teatro e sobre sua trajetória no campo
-nos a compreender que a disciplina é um motor
fia subjetiva, que se estende em rizomas afetivos
da arte educação. Recentemente, completou 26
de condução afetiva-cognitiva-estética-intelectu-
numa comunidade sensível de pessoas interessa-
anos como professora do curso de Licenciatura
al-política. Todos necessitamos da disciplina para
das por compartilhar conhecimentos, experiências
em Teatro da uFRGS, tendo assim forte influên-
fazer nossos trabalhos afetarem e serem afetados
e saberes na relação entre arte e vida.
cia e importância na formação dos professores de
por aqueles que fazem parte de nossos círculos de
Artes Cênicas do Rio Grande do Sul. Sua fala está
convívios formativos.
atravessada por relatos e memórias que nos cons-
Percebe-se que a disciplina não vem de uma
cientizam do papel das narrativas como procedi-
visão tradicional, que pressupõe uma imposição
mentos pedagógicos, com o objetivo de estimular
externa ou um meio social específico. Ao invés dis-
a criação de depoimentos pessoais. O compartilha-
so, a pedagogia se baseia na disciplina como forma
mento de experiências é fundamental para artis-
de despertar um compromisso interno de desejo e
tas e professores em formação cuja sensibilidade
interesses de nossos alunos e espectadores em re-
A aprendizagem começa quando não
é necessária para a ideia de que a arte é sempre
lação à arte. Sendo assim, disciplina é envolvimen-
reconhecemos, mas ao contrário, estra-
um experimento coletivo em torno de memórias,
to, é afeto, é desejo, é a ética de querer estar junto.
nhamos, problematizamos.
de desvios, de atravessamentos e de trânsitos, que
isso traz uma nova perspectiva em relação à disci-
Virgínia Kastrup
trazem a metáfora do percurso autobiográfico do
plina, que é operar modos de funcionamento que
sujeito contemporâneo. A fala de Bertoni ressalta
façam sentido para as nossas escolhas e buscas de
Em meio ao caos e ao colapso social que refletem
cada vez mais a necessidade de aproximar a meto-
reinvenção no contexto da contemporaneidade.
a falta de perspectivas para as políticas públicas
peDagogias, inDisciplinas e a escuta Do silêncio[2]
artes cênicas
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
19
culturais, um espaço aberto se apresenta para tra-
A partir da metade do século 19, com o
belece novos critérios, que podem desencadear
zer inquietações e produção de conhecimento no
crescimento da população e dos centros urbanos,
outras formas de subjetivação. Ao perceber o
campo das Artes Cênicas. Trata-se do Seminário
dos avanços da Revolução industrial e do sistema
outro enquanto imagem múltipla, em suas va-
Práticas de Emergência Cênica, do 12º Palco Gira-
capitalista liberal, os conceitos de normatização
riações de perspectiva, para além de qualquer
tório. O encontro teve como temática inicial as Pe-
da sociedade trouxeram a ideia de adequar todos
classificação que viria a perpetuar a manuten-
dagogias Indisciplinadas, com a participação dos
os indivíduos a sua estrutura. Os que não esti-
ção da ordem predominante – sexista, de classe
professores: dra. Vera Lúcia Bertoni dos Santos, dr.
vessem aptos a fazer parte deste quadro social
média, racista – a ordem é subvertida pela estra-
Airton Tomazoni e dra. Fabiana Marcelo.
eram presos, exilados ou enviados a instituições
tégia do envolvimento da partilha.
As falas trazidas pelos debatedores e pelos
para incapazes. desde então, e mantendo os mes-
Para que seja possível intervir dessa forma
colegas que contribuíram com a discussão, bem
mos paradigmas históricos e sociais, a sociedade
no processo educativo, sem os rígidos manuais
como a participação da musicista Simone Rasslan,
predetermina o indivíduo “normal”, como forma
pedagógicos que disciplinam os corpos, a escu-
provocaram uma efervescência de pensamentos
subjetiva de dominar. “Pelo estabelecimento das
ta necessita estar presente. A escuta de si, do
que transbordam as dicotomias disciplina e indis-
práticas disciplinares o corpo dos indivíduos pas-
outro, do seu entorno, do grupo todo, deixando
ciplina, bastante mencionada. Também espalham-
sa a ser vigiado, educado, explicado e classificado
que se instaure um silêncio para a própria per-
-se pelo pensar as práticas educativas em sala de
de acordo com os saberes de cada época.” (LOPES;
cepção. O que é requisitado? O que existe como
aula e o próprio processo criativo do artista, pas-
FABRiS, 2013 p. 49)
potencial de troca? Qual narrativa o outro tem
sando pela delicada necessidade de escuta.
Essa prática ocorre com todas as minorias
para contar?
O texto que segue sintetiza alguns assuntos
vítimas de exclusão social: mulheres, velhos,
Não existem metodologias únicas, a não
que atravessaram meu pensar, a partir de dizeres
negros, índios, homossexuais, transgêneros,
ser que a formação exige ouvir o outro para que
que ainda ressoam em mim como uma autoria co-
deficientes, doentes mentais, indivíduos mar-
o espaço do ensino permita a experiência. Ora,
letiva das pessoas que partilharam do momento.
ginalizados, segregados por ordem de pobreza,
mas para que isso ocorra também é necessário
violência ou inabilidade para corresponder aos
certo rigor, alguns pressupostos éticos de com-
padrões estabelecidos.
prometimento e disciplina. A disciplina chega
As práticas educativas podem acontecer de duas maneiras: dentro de contextos formais, institucionalizados como as escolas e as universidades;
Em uma crise moral e ética, vivemos um
aqui sem a carga militarizada e massificadora,
ou de modo informal, em oficinas, laboratórios,
golpe político e uma opressão que pode parecer
mas com sentido diferenciado. Esta é uma dis-
vivências e na própria elaboração dos fazeres coti-
tácita e, por esse mesmo motivo, neutralizadora
ciplina que ainda se encontra em processo de
dianos repletos de sentidos pedagógicos e capazes
dentro de um sistema que não possibilita con-
ressignificação, sem caráter utilitário para for-
de produção de aprendizagem e de conhecimen-
dições de existência igualitárias. A indisciplina
matação dos indivíduos. é uma construção a se
to. A dissonância entre as palavras “Pedagogias” e
se faz necessária como forma de resistência, de
fazer e a se problematizar constantemente para
“indisciplinadas” poderia estar contextualizada nos
ato político, de busca por uma nova ordem a ser
uma real modificação social, na qual seja possí-
critérios de educação e criação artística?
proposta. A indisciplina, nessas circunstâncias,
vel que todos tenham as mesmas possibilidades
A terminologia da palavra “indisciplina” re-
pode ser vista como um meio de intervir nas re-
de inscrever suas histórias.
mete a algo descompromissado, sem regras, deso-
lações que reproduzem modos de pensar predo-
bediente. Tudo o que vai contra o sólido edifício da
minantes, de natureza conservadora.
Pensar a disciplina sob este aspecto seria como pensar a própria educação e o processo
ordem disciplinar, que está associado aos campos
No campo do ensino-aprendizagem, é pos-
científico e também pedagógico. A disciplina pres-
sível pensar em desarticular as lógicas estabele-
supõe um regramento, uma organização que pode
cidas que geram o pensamento binário, levando
estar relacionada a servir ao bem comum. No en-
a ressaltar as diferenças. Ao invés disso, as prá-
A experiência da abertura como expe-
tanto, cada vez mais tem se identificado a contex-
ticas de formação transformadoras, no contexto
riência fundante do ser inacabado que
tos sociais autoritários como modos de normatiza-
atual, tendem a propor caminhos para se pensar
terminou por se saber inacabado. Seria
ção da sociedade. O estudo inicial de meu projeto
a alteridade, de acordo com a fala da professo-
impossível saber-se inacabado e não se
de dissertação, que envolve a cena e a deficiência
ra Fabiana: “A indisciplina diz respeito à fala do
abrir ao mundo e aos outros à procura
relaciona os modos de disciplina dentro dos con-
outro e à potência de convocar ao pensamento.”
de explicação, de respostas a múltiplas
ceitos da deficiência, buscando uma perspectiva
Educar e criar a partir do compartilhamen-
histórico-social.
to e da construção na relação com o outro esta-
criativo, sempre inacabados como tudo o que é humano. Começa pela escuta, então se abre.
perguntas. Paulo Freire (1996)
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
20
3 Lindsay Gianoukas Atriz e bailarina. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A coreografia da ocupação: violência e reticência[3] Ao contrário do que pode aparentar em uma primeira impressão, a ocupação implica antes um movimento do que uma tomada de posição fixa. Assim, ocupar seria deslocar uma condição que diz respeito à variação de espaços, estados, noções, formas, etc. Seria mover-se em direções múltiplas, precipitar-se. As ideias aqui descritas ganharam corpo – um corpo também móvel, vivo, passível de adequações, movimentos, retomadas e indecisões – inspiradas pela reunião de quatro pessoas de notável reconhecimento no campo das artes cênicas, que expuseram suas experiências na tarde do dia 19 de maio de 2017, por ocasião do Seminário Práticas de Emergência Cênica, parte da programação do 12º Palco Giratório Sesc. Sob o título
pesquisa parecem resistir à estabilidade, ao con-
resgate da percepção e a pluralização de sensações
de Ocupações: Cena, Espaço e Cidade, congregava
forto e à ordem pré-concebida.
inaugurais, diante de fatos ou discursos dados.
Nesse sentido, sua ocupação, ou seja,
É possível dizer que as ações dos coletivos
Guilherme Bonfanti e o Prof. Dr. Fábio Salvatti, re-
seus movimentos, deflagram múltiplas proble-
estão impregnadas de violência quando provocam
presentando a Bahia, São Paulo e Santa Catarina,
máticas no interior de seus contextos, desfazem
efetivamente o deslocamento do que se supõe
respectivamente. Eles comentaram suas práticas
uma certa invisibilidade não somente de espaços
definido para a abertura de possibilidades inédi-
e, mais especificamente, seus modos diversos de
urbanos, mas também das condutas sociais, das
tas, jamais supostas. Seja porque o espaço cênico
movimento tanto nas referidas cidades, por meio
narrativas disseminadas, das relações impostas/
migrou para a igreja, o hospital, o rio Tietê, como
de suas manifestações artísticas, mas também em
dispostas no seio de seus microcosmos operacio-
no caso do Teatro da Vertigem, seja porque essas
seus questionamentos, visões, incertezas e movi-
nais. Dessa forma, antecipam o foco para o amor-
ações precisam de autonomia criativa e inventiva
mentos de pensamento.
fo, provocando novos movimentos a partir de suas
no coração de um bairro marginalizado, com pes-
os artistas Luiz Antonio Sena Jr, Eliana Monteiro,
Através da exposição das práticas e dos mo-
práticas. Essas mesmas práticas que teimam em
soas que a sociedade se esforça para invisibilizar,
dos de existências dos coletivos A Outra Compa-
tomar rumos inversos ou diversos no curso de uma
como no caso da A Outra Companhia de Teatro.
nhia de Teatro (BA) e do Teatro da Vertigem (SP),
corrente social, histórica, cultural, política e econô-
Ou, ainda, porque transformam o discurso visual
além do Estúdio de Arte Rebelde (SC), com o movi-
mica, que insiste em reproduzir conceitos e produ-
e narrativo dos corpos e dos cartazes que prolife-
mento específico intitulado Glitter Block, gostaria
zir distâncias erguidas pelo sistema das relações de
ram nas manifestações políticas que denunciam o
de destacar especialmente o caráter nômade das
poder convencionadas. Negligenciando o conforto
golpe (#ForaTemer), como no caso do Glitter Block.
experiências apresentadas. Refletindo sobre suas
(ao abrir mão de salas convencionais ou espaços
Essa violência, pré-requisito para a aprendizagem,
naturezas de descolamento de territórios, percebe-
equipados para inserir-se em locais “invisíveis” das
segundo Gilles Deleuze (2003), que força o pen-
-se que ao mesmo tempo em que contaminam o
cidades de São Paulo ou Salvador), a segurança
samento à reorganização dos signos (dis)expostos,
entorno, ressignificam espaços e provocam rup-
(pela necessidade de pôr-se em risco, destacada
pertence mesmo à dimensão da arte.
turas, rasgos geográficos ou redistribuição dos
em todos os relatos expostos) e a estabilidade (por
“A função do artista é violentar”, dizia Glau-
discursos. Desorganizando o senso comum, des-
uma urgência de desestabilizar comportamentos e
ber Rocha. E o que fazem essas ações que in-
fazendo conceitos impregnados sobre espaços
posturas normativas e normatizadas), acabam por
terferem nos signos dados para promover seus
urbanos ou mesmo desestabilizando narrativas
reiterar a função teatral. Fazem isso ao colocar a
deslocamentos espaço-temporais-discursivos, em
hegemônicas dentro de manifestações políticas, as
performatividade como recurso operativo, para in-
construções críticas que rasgam o entendimento,
experiências das duas companhias e do grupo de
tensificar um certo estranhamento que convoca o
senão promover a ruptura entre o antes e o de-
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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dades, de causar transformações avassaladoras, portanto. Mas de promover deslocamentos que, por sua vez, têm o poder de propagar contaminações, de reverberar outras forças e conexões no seio de nossos precários contextos. Ocupar é mover, não se instalar em um território. E porque a nossa língua é vasta e produtora de proliferantes cacofonias, recorro à música que os “In-visíveis” entoavam no seio do seu marginal espetáculo, para promover, na linguagem textual, a possibilidade de abrir esse exercício intelectual para a sonoridade da palavra que, por sua vez, pluraliza os sentidos da emissão: Ocupa eu Ocupa tu Ocupa ele Ocupa ela pois da experiência? Direcionar o canhão de luz
noite, lugar pouco frequentado, protagonistas in-
para o lixo que se acumula nas margens ao invés
comuns. Também o trabalho Cidade Proibida que,
de iluminar o ator, conforme narrou Eliana Mon-
inclusive, teve um fragmento exposto na mesma
Que possamos ocupar o pensamento, a cida-
teiro sobre a encenação de BR-3; propor o glitter
tarde dentro do seminário, também convida a um
de, o teatro, a vida de novos movimentos parece
ou purpurina como arma de combate e reorganizar
deslocamento dos espaços e discursos da cidade
ser o desejo (palavra recorrente nos discursos dos
as palavras de ordem nas manifestações, segundo
e de sua população. Enfiar o céu sob um viaduto,
artistas neste seminário) dessa violência impres-
descrito por Fábio Salvatti; compor suas derivas,
obra da artista Zoé Degani, trabalho em que me
cindível. E, se a cena está ocupando novos espaços
“figuras que existem atravessadas pelo mar que
debrucei durante pesquisa prévia, também con-
e possibilidades expressivas, tem sido também ocu-
é a cidade”, de acordo com Luiz Antonio Sena Jr:
fere uma violência sensível-perceptiva ao próprio
pada de inaugurais corpos, estéticas e linguagens.
tudo isso violenta a percepção. O policial atingido
lugar em que se habita. O território implicado de
Mas essa temática ocupará um próximo texto.
com glitter, a moça de salto 15 que se desloca na
sua imprescindível desterritorialização, que con-
A ocupação, assim, é uma dança que coreografa as
embarcação que corta o fétido e feio rio que atra-
fere movimento ao estático: é estético, poético,
instâncias discursivas, poéticas, estéticas, sociais,
vessa São Paulo, por exemplo, são convocados a
performativo. Importante ressaltar a relevância
culturais, políticas, econômicas e históricas, na me-
novas sensações. Afinal, “a arte não pensa menos
atribuída à inexistência de premeditação de muitas
dida em que se move: não há roteiro a ser seguido,
que a filosofia, mas pensa por perceptos e afectos”
das ações mencionadas. Assim, o movimento seria
mas rotas por serem trilhadas. A ocupação é então
(DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.88). Os exemplos de
o responsável por revelar a natureza violenta das
o movimento das reticências: abrindo...
ocupação de espaços e de contaminação das for-
ocupações expostas e não ao contrário.
ças de deslocamento expostos parecem lidar com
Por fim, gostaria de pontuar a molecularidade
tal dimensão de violência. Rasgar. Arrancar. Expor.
implícita nas ações descritas. Territórios micropo-
São os movimentos que definem as ocupações, o
líticos. “Meu papel é na minha aldeia”, dizia Zoé
pensamento manifesto da arte.
Degani (GIANUCA, 2013, p.114,201). Com outras
Inevitável remontar à própria cidade, às ativi-
palavras, os artistas aqui mencionados e também
dades de ocupação que me rodeiam e, assim, des-
a idealizadora e mediadora do seminário àquela
locam, violentam. Em Porto Alegre assisti ao tra-
tarde, Patrícia Fagundes, diretora de Cidade Proi-
balho intitulado In-visíveis, apresentado por atores
bida, reiteravam esse caráter molecular dos deslo-
e moradores de rua, em conjunto, que nos fazia
camentos experimentados. Não se trata do jovem
percorrer as ruas do Centro Histórico da cidade à
anseio clichê de “mudar o mundo”, de proferir ver-
Ocupa todo mundo. Ocupa todo mundo.
In-visíveis, da Trupe pé di Marmibó Foto: Divulgação
Cidade Proibida, da Cia Rústica de Teatro Foto: Adriana Marchiori
Cidade Proibida
Foto: Critiano Primm
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
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4 Diego Nardi
Ocupações: cena, espaço e cidade[4]
of Cards Brazil” que estamos vivendo, semana em
como o feminismo e o movimento LGBT. Um modo
que se completou um ano de “Ocupa MinC” em
cênico de ocupação, uma ocupação dentro de um
Santa Catarina. Os fatos que Salvatti traz ao semi-
movimento de manifestação de rua.
No dia 19 de maio de 2017, ocupamos o Teatro
nário nos levam a lembrar de maio de 2016, o ano
Luís Antônio Sena Jr, ator de A Outra Com-
de Arena de Porto Alegre, passados alguns minu-
que não acabou. Foi em maio de 2016 que o atual
panhia de Teatro, da Bahia, é o segundo convi-
tos das 14 horas, para discutir o tema Ocupações:
governo extinguiu o Ministério da Cultura e que,
dado-ator da tarde de quinta-feira. Sena Jr, que
cena, espaço e cidade. A cena teve como persona-
pressionado pela ocupação das sedes estaduais do
também atua como diretor de espetáculos da
gens principais: Fábio Salvatti, Luís Antônio Sena
órgão, voltou atrás em sua decisão. Essas ocupa-
companhia, abre nos falando sobre o nascimen-
Jr, Guilherme Bonfanti e Lili Monteiro (os nomes
ções são parte de uma série de atos de protesto
to d’A Outra, e como eles começaram a ocupar
aparecem em ordem de entrada). A cena faz parte
que aconteceram em nosso país e que tiveram
o bairro do Politeama, em Salvador. O relato
da peça episódica Práticas de Emergência Cênicas,
início em julho de 2013. De lá pra cá são recor-
traz uma reflexão sobre as “realidades” do fazer
que se desenvolve ao longo de duas semanas du-
rentes os protestos de rua no Brasil, sejam eles pró
teatral em Salvador e em Porto Alegre. Na fala
rante o 12º Festival Palco Giratório. A escolha “te-
ou contra o governo, de partidários da esquerda
de Sena Jr fica evidente uma vontade, um dese-
atral” de introduzir o tema e os participantes do
ou direita, “coxinha” ou “mortadela”. Foram nesses
jo de ter um espaço próprio para o trabalho de
evento surge a partir de uma relação que podemos
protestos que Salvatti realizou uma série de ações
grupo. Penso logo na situação da nossa cidade,
estabelecer com a palavra “ocupar”. Ocupar pode
chamadas Vulva – La Revolución, referência que
Porto Alegre. Diretamente no sucateamento dos
ser definido como encher um espaço de lugar e
dispensa apresentações. As ações eram realizadas
espaços públicos de arte, e obviamente na Usina
de tempo. Essa definição, ainda que muito sim-
pelo grupo de pesquisa formado por alunos da
do Gasômetro, espaço que possibilita, através do
ples, pode nos levar a pensar em teatro – já que
universidade e chamado “Glitter Block”, referência
projeto Usina das Artes, a ocupação dos espaços
tempo e espaço são as matérias do teatro e das
aos manifestantes mascarados presentes nos pro-
da Usina pelos artistas da cidade. Aqui os gru-
artes cênicas em geral. Assim, podemos enxergar
testos. O lema do grupo era o glamour contra o
pos estão ocupando juntos um espaço público
poeticamente as ocupações como um ato cênico, e
bom senso, buscando carnavalizar o movimentos
sucateado, e lá o grupo ocupa um espaço priva-
do mesmo modo o terceiro encontro do seminário.
de rua, realizando uma metacrítica aos próprios
do num bairro marginalizado da capital baiana.
Como dito anteriormente, o primeiro “ator”
movimentos. Com paródias e cartazes inspirados
O ator e diretor comentou as dificuldades que
da tarde foi o Prof. Dr. Fábio Salvatti, da Universi-
nos movimentos, o Glitter Block busca ampliar os
o grupo teve para se inserir dentro da comuni-
dade Federal de Santa Catarina. Ele também inicia
sentidos e abrir outros espaços dentro dos protes-
dade do Politeama. Falou ainda sobre a falta de
sua fala com uma alusão não ao teatro, mas à te-
tos. A proposta também é inspirada nos elemen-
público que tiveram no primeiro trabalho reali-
levisão. Comenta os eventos da semana do “House
tos visuais e nos discursos de outros movimentos,
zado no bairro, tanto da classe artística quanto dos próprios moradores do local. A ausência de espectadores não parecia ser uma questão para os membros da companhia, que surgiu no Teatro Vila Velha e durante anos teve o seu suporte. Essa relação de teatros municipais e tradicionais como incubadora de novos grupos, que parece ser mais viva em outras cidades do país, atualmente não existe em Porto Alegre. No entanto, há espaços como o curso de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos quais há muito têm surgido grupos que se destacam na cena cultural porto-alegrense. O grupo soteropolitano estabeleceu um diálogo com o Politeama com um projeto de shows chamado “Música de Quinta”. A partir do projeto, o grupo desenvolveu um espetáculo cujos personagens, (chamados por eles de “derivas”), representam figuras como a prostitu-
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primeiro SEMESTRE
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ta, o traficante evangélico e o morador de rua.
os espaços, mas terminamos com o exercício da
a própria cidade, como os processos de gentri-
Desloca-se assim o olhar para o Politeama, com
imaginação de um mundo melhor. Como é cidade
ficação e museificação. Lili Monteiro ressalta
a arte e seu viés político e social em oposição aos
que você imagina?
a relação dos temas dos espetáculos com São
processos de gentrificação das grandes cidades.
Por fim, após uma breve intervenção de Ci-
Paulo, como em Paraíso Perdido, que surge num
Ocupar um local proibido – assim surgiu a
dade Proibida no nosso texto, retornamos com a
momento em que há uma efervescência do mo-
proposta de Cidade Proibida. Durante o seminá-
entrada do Teatro da Vertigem em cena. Guilher-
vimento de cristãos carismáticos. Ou em O Livro
rio, tivemos a apresentação/intervenção de tre-
me Bonfanti e Lili Monteiro nos trazem as expe-
de Jó, em que a ocupação cênica de um hospital
chos do espetáculo do qual faço parte como ator.
riências do Vertigem, um dos grupos que mais
fechado no centro da cidade suscita temas como
A proposta da diretora da Cia Rústica de Teatro,
levam o tema da ocupação para a cena. Bonfanti
o HIV. A diretora teatral encerra sua fala trazendo
Patrícia Fagundes, era fazer um encontro cênico
começa relembrando os primeiros trabalhos do
o foco para o momento presente, em que o atu-
festivo em locais tidos como “proibidos” à noite.
grupo, que completou 25 anos em novembro de
al prefeito promove um desbotamento da cidade,
Um dos motes desse trabalho, que surgiu no perí-
2017. A trilogia de estreia do grupo buscou outros
apagando os trabalhos de grafite e pichação, desa-
odo pós-julho de 2013, foi o iminente “cercamen-
espaços “alternativos” como meio de questionar
lojando moradores de rua e promovendo uma lim-
to” do Parque Farroupilha. Assim, a Redenção,
o teatro que era feito na época e, também, pelos
peza da área da Cracolândia no centro da cidade.
como é conhecido o Parque, foi o local de escolha
deslocamentos que esses outros lugares pode-
Durante os movimentos de ocupação das se-
para a estreia do espetáculo. Em um dos nossos
riam gerar. O grupo vai mais além na ocupação
des do MinC cantava-se uma música que resume o
encontros durante o processo de criação, fizemos
dos espaços, saindo da proteção de edifícios
nosso encontro e os desejos de futuro que surgem
um tour noturno pela Redenção. Não que nos fal-
como a igreja, o hospital interditado ou o presídio
a partir dele: Ocupa eu, ocupa tu, ocupa tudo!
tasse o conhecimento do parque, porém há outra
abandonado e indo para dentro do rio. Em BR-3,
vida no local quando o sol se põe. O que, de cara,
o Vertigem cria um espetáculo dentro do Rio Tie-
já nos questionamos: proibida para quem? Certa-
tê, em São Paulo, que atraiu o olhar para as rela-
mente não para aqueles que procuram por “diver-
ções políticas e intensas que se estabelecem nes-
são”. Os espaços da cidade têm uma memória que
se convívio íntimo com a cidade. O grupo possui
está presente no espetáculo, viva nos persona-
uma sede no bairro da Bela Vista, na capital pau-
gens que passam pela passarela do cenário. São
lista, e a cada espetáculo parte para outros locais
personagens locais e universais ao mesmo tem-
de diálogo com a cidade, como em Bom Retiro.
po, presentes em diversas das cidades pelas quais
O espetáculo trouxe questionamentos para o
passamos desde 2013. Cidade Proibida evoca a
grupo sobre os seus modos de produção e sobre
voz da cidade: seus acontecimentos, preconceitos e desejos de futuro, num convite a ocupar os espaços que nos são tirados pelo medo da violência, compartilhando de um acontecimento cênico ou de uma fruta. Tivemos a oportunidade de ocupar, mesmo que brevemente, espaços muito distintos, do alto de uma cidade a uma antiga estação ferroviária no interior do Ceará. Ocupamos também outros espaços de reinvindicação: por uma cidade com um cais sem shoppings, por uma usina aberta e cheia de arte e por uma escola melhor. As ocupações dos secundaristas brasileiros, ao que parece, se tornaram a maior ocupação mundial. Os jovens ocuparam as escolas, colocando seus corpos contra a violência policial e a favor de seus desejos de um futuro melhor. Com Cidade Proibida não ocupamos permanentemente
In-visíveis
Foto: Divulgação
Ator Heinz Limaverde em demonstração de Cidade Proibida, no Seminário, e Pedro Lunaris (plateia) Foto: Claudio Etges
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5 Lisandro Bellotto
Corpos Urgentes[5]
estão sendo mortos sistematicamente, violenta-
O corpo é ambíguo. Vivê-lo é afirmar sua potência
Um minuto de silêncio.
dos, sob tentativa constante de apagamento ou naturalização de sua morte, por isso urgentes.
e descobrir sua precariedade. Viver o prazer que o
2. A professora e artista Adriana Alcure (RJ),
acaricia, a dor que o destrói – revela toda a infini-
em leitura cheia de paixão, a partir de um peque-
dade dos corpos. Um corpo torturado é um objeto
no trecho do espetáculo Cidade Correria, do Co-
de tortura nas mãos malignas do torturador. Um
letivo Bonobando, denuncia a violência e a opres-
corpo amado é um corpo do desejo.
são histórica do Brasil colonial até os dias de hoje.
Esse breve texto sobre o corpo e seus movi-
Ela relaciona isso tudo com a perspectiva de vida
mentos, da antropóloga gaúcha Ivete Kiel (2004),
dos jovens de periferia (em 2012, segundo dados
inscreve o mesmo no lugar da experiência, da
da Anistia Internacional, 30 mil jovens entre 15 e
urgência transbordante de vida; corpo presente,
29 anos foram assassinados no Brasil, sendo 77%
concreto e delicado, que diz respeito ao espaço
negros). A partir de residência artística realizada
que habitamos, que nos conforma e delimita;
no Espaço Cultural Arena Carioca Dicró, na Penha,
nossa casa orgânica. E por outro movimento su-
o grupo praticou uma escrita coletiva e processu-
cinto, transcrevo através do gravador da memó-
al, alavancando o espetáculo em bairro periférico
ria, fragmentos de falas e imagens dos convida-
do Rio de Janeiro. Lugares considerados espaços
dos que impulsionaram essa escrita, a partir do
de vazio cultural, como se lá nada artístico pu-
encontro Corpos Urgentes, dentro do Seminário
desse aflorar, a partir da lógica de apagamento
Práticas de Emergência Cênica do Festival Palco
dos corpos que habitam determinados territórios.
Giratório Sesc 2017.
Material dramatúrgico nascido do atrito direto
1. A professora e artista Celina Alcântara
entre os artistas residentes, a comunidade e a
(RS) afirma o corpo negro como espaço de ur-
convivência nada pacífica com policiais da UPP
gência a ser discutido. Ela canta, (do refrão “eu
instalada na região. Com a residência, o espe-
vim de Aruanda”), convida todos os presentes a
táculo nasceu, se apresentou nas comunidades
cantarem juntos, em uníssono, transbordando a
e agora realiza temporadas nos bairros institu-
individualidade da sua voz, tão potente quanto
cionalizados, fazendo um desviante trajeto de
encantadora, para o coletivo, imbricando mo-
dentro do bairro para fora, e não o inverso, como
mentaneamente corpos e raças. Performance
ações artísticas de colonização na periferia. Como
reveladora do desejo de coletivizar o debate so-
se nesses territórios não houvesse nenhuma cul-
bre os sistemáticos massacres que os corpos ne-
tura viva e pulsante, como o funk e o hip hop.
gros sofrem, principalmente aqueles pobres de
O foco nos artistas de periferia, nos atores e atrizes
periferia, situação que lhe inquieta. Música que
negros, se torna urgente justamente pela tentativa
veio acompanhada de referências a autores que
de seu apagamento a partir da lógica racista. Se
pensam o tema, como parte do livro de Galeano
pensarmos nas artes presenciais, essa necessida-
(1999), Curso Básico de Racismo e Machismo, que
de é ainda maior, na medida em que o corpo é a
diz que o preconceito é um mal herdado geneti-
mais urgente das matérias cênicas. É preciso que
camente, endêmico na sociedade. Assim como o
o negro retome seu espaço de fala urgentemente,
livro de crônicas #Parem de nos Matar, de Cidinha
assim como os índios diariamente chacinados.
da Silva (2016), denunciando o genocídio de ne-
3. A professora e artista Caroline Teixei-
gros, a política de segurança pública que promo-
ra (RN) chama a atenção para a dificuldade de
ve o extermínio nas periferias brasileiras (tantos
inclusão dos corpos deficientes em todas as es-
Amarildos classificados como “cidadão suspeito
feras da sociedade – seja nas áreas educativa,
padrão”), até os massacres na Nigéria. Corpos que
profissional, afetiva ou artística. O corpo, na sua
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Cidade Proibida
Foto: Adriana Marchiori
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6 Davi Giordano
O eu, o outro e as múltiplas identidades em cena...[6]
integridade física perfeita, já consiste em tabu, do qual pouco se fala e para o qual se dá espaço para conhecê-lo, no corpo do deficiente essa questão se adensa. A “sociedade da eficiência” em que vivemos ainda não aceita o corpo deficiente, ou em instância maior, qualquer corpo que não
O último dia do Seminário Práticas de Emer-
corresponda à norma estabelecida. Mesmo com
gência Cênica, do Festival Palco Giratório Sesc/
os constantes e bem-vindos debates acerca do
POA, foi marcado pelo tema Fricções cênicas:
assunto, na opinião de Caroline, ainda existem di-
atravessamentos e alteridades. Para refletir sobre
versas estratégias que evitam debater a questão
a cena contemporânea diante das ações descolo-
para além das superficialidades e preconceitos.
nizadas, antropofágicas e políticas, foram convidados Dedy Ricardo (RS), Heloisa Gravina (RS) e
Nas três falas evidenciam-se diversificadas
Walmir Santos (SP).
estratégias de repressão e preconceito, (racial, sexual, de gênero e de aparência), mas que se di-
ao longo dos tempos pela facilidade de contro-
O perfil dos participantes trouxe uma diversi-
recionam a uma mesma matriz: o corpo – incluo
le dos meios de comunicação, agora colocada a
dade interessante de experiências e currículos para
aqui a transfobia como outro corpo urgente per-
descoberto pelo avanço tecnológico.
enriquecer os múltiplos pontos de vista sobre o de-
seguido e violado no Brasil e não abordado pelos
Para cada tipo de exclusão são necessárias
bate. A primeira convidada, Dedy Ricardo, abordou
convidados. Tudo isso me leva a mapear causas
ações para conscientização e resistência a tais
sua trajetória como artista e militante negra den-
da perpetuação e naturalização do preconceito.
preconceitos. As universidades, artes e mídias
tro do grupo de teatro Usina do Trabalho do Ator,
Um viés possível de compreensão passa pela ten-
precisam se configurar como espaços de reflexão
que neste ano comemora 25 anos de atividades ar-
dência perigosa do discurso único e totalizante.
contundentes e permanentes. E, em âmbito priva-
tísticas e formativas no Rio Grande do Sul. A partir
Seja do homem branco heterossexual – o “macho
do, é preciso ficar atento para o preconceito que
disso, ela refletiu sobre o papel de artistas negros
alfa”, seja daquele que tem suas capacidades fí-
nos habita, muitas vezes subterrâneo, velado, para
ao longo dos tempos em nosso país. A segunda
sicas perfeitas, não levando em conta o outro, o
que uma estética da experiência, da empatia e da
convidada, Heloisa Gravina, é bailarina, pesquisa-
diferente. A abertura e a consciência da multipli-
multiplicidade se sobreponha à outra, totalitária.
dora e professora do Curso de Dança da Univer-
cidade de realidades existentes deveria ser carac-
E para finalizar, cito trecho musical dos Titãs, can-
sidade Federal de Santa Maria. Com um trabalho
terística da pós-modernidade urgente. O mundo
tado no espetáculo Cabeça um documentário cê-
desenvolvido em dança no campo da antropologia,
explicado, analisado ou construído a partir de
nico (RJ), apresentado dentro da programação do
Gravina trouxe reflexões sobre as danças popula-
pontos de vista centralizadores exclui a realida-
Palco Giratório. Teatro urgente para tempos de
res e afrodescendentes. Já o terceiro convidado,
de do(s) outro(s), das diferentes culturas e modos
caos e desilusão:
Walmir Santos, editor da plataforma Teatrojornal, contribuiu com comentários sobre diversas formas
de vida, segundo o filósofo Vattimo (1987). Por conseguinte, o passado e o presente não podem
Sinto no meu corpo
de teatros colaborativos, grupos e coletivos artísti-
mais ser pensados sem prever a existência da di-
A dor que angustia
cos que fortaleceram as novas produções teatrais
ferença – não como uma ameaça –, mas como
A lei ao meu redor
a partir dos anos 1990.
parte integrante da realidade. A “história” da hu-
A lei que eu não queria
manidade não pode ser unívoca, excluindo inú-
Estado Violência
tão central o tema das identidades: das formas
meras pessoas e povos que se encontram fora do
Estado Hipocrisia
de constituição da arte negra em nosso país, da
“eixo”. O mundo é constituído de rede intrincada
A lei não é minha
legitimação de outros fazeres de dança advindos
de idiomas, corpos e culturas diversos. Logo, o
A lei que eu não queria
de memórias e práticas populares, assim como
pensamento, quando deixa de se preocupar com
Meu corpo não é meu
caminhos encontrados por diversos fazedores de
as questões de alteridade e não procura relações
Meu coração é teu
teatro no Brasil para a manutenção de princípios
com a multiplicidade de olhares que constituem
Atrás de portas frias
coletivos e políticos.
agora o real expandido e estilhaçado, não faz ou-
O homem está só
De forma ampla, o debate teve como ques-
A discussão refletiu sobre os modos como os
tra coisa senão fortalecer visões dominantes, uni-
campos da ética e da estética estão diretamente
laterais e ditatoriais. Percepção sempre ocultada
relacionados. Ao se pensar em modo de produção
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2018
27
artística, estamos diretamente abordando os meios
da visão marcada exclusivamente pela herança
de pensamento e de constituição política da cena
europeia – o que pode resultar em enfoques mais
contemporânea. A noção de fricção tem justamen-
nacionais e identitários daquilo que está ao nosso
te relação com isso: criar modos de atrito, de (re)
redor. Walmir Santos se aproxima dessas questões
existência e de força para fazer vigorar os sentidos
ao dizer que os teatros de grupo no Brasil precisam
de uma arte que expressa as múltiplas identidades
se legitimar como uma forma de defender projetos
culturais do país.
independentes e autorais que se diferenciam das
Somos todos atravessados pelos discursos
políticas de mercado direcionadas por lógicas pre-
que nos constituem em nossas experiências coti-
dominantemente capitalistas.
dianas. Em seu papel, a arte tem o poder de provo-
Essas falas trazem o anseio por novos pro-
car linguagens e ações de diálogo entre sociedade
cessos formativos, que tragam a produção de uma
e acontecimentos. Aproveitando a forma como o
arte nacional diante de um campo ético, poético,
grupo Usina do Trabalho do Ator vem contribuin-
estético e político. Essas atitudes mais direciona-
do para pensar o papel do artista negro no Sul do
das dos artistas evidenciam um empoderamento
Brasil, podemos também comentar que esse tipo
por aquilo que entendemos como cultura e modos
de trabalho, voltado para reivindicações sociais,
de fazer arte.
já foi desenvolvido por muitos artistas anteriores, como Abdias Nascimento, Carolina de Jesus, Mercedes Baptista, até artistas contemporâneos como Ayrson Heráclito, Sidney Santiago Kuanza, Liniker, Zezé Motta, entre outros. No campo das artes cênicas, o debate sobre
dança moderna brasileira ao trazer para os palcos
a presença de negros na arte foi decisivo em al-
os símbolos dos orixás e da cultura popular. Em
guns momentos centrais do século 20. Entre eles,
todos esses exemplos, vemos artistas e projetos
podemos citar a criação do Teatro Experimental do
culturais que marcaram a construção de memórias
Negro, em 1944, um coletivo de teatro formado
e de tributos sobre o patrimônio cultural produzido
exclusivamente por negros em todos os papéis e
por artistas e realizadores negras e negros, sendo
funções. Além disso, o T.E.N. teve um papel fun-
as suas iniciativas importantes marcos no campo
damental enquanto atitude política em sua época,
das artes cênicas.
por criar diversos canais de atuação social, como
Tais casos nos mostram que, quando nos co-
uma associação de empregadas domésticas, um
locamos artisticamente diante do mundo, expres-
jornal (Quilombo) e produção de debates e even-
samos aquilo que somos ao produzir nossos dis-
tos culturais. Outro momento fundamental foi a
cursos em diálogos de provocação aos contextos
montagem da dramaturgia Anjo Negro, do autor
de afirmação, de inclusão e de interação.
Nelson Rodrigues, emblemática na história do
No contexto atual, Dedy Ribeiro ressalta
teatro brasileiro. Em sua estreia, a peça provocou
como a Usina do Trabalho do Ator segue sua políti-
bastante polêmica, uma vez que ressaltou o tema
ca pedagógica em relação trabalho de formação do
do racismo e foi censurada em 1948, por ser uma
ator ao potencializar uma relação ética com ques-
tentativa de questionar a presença de negros nos
tionamentos políticos. Heloisa Gravina defende
palcos nacionais. O terceiro e último aspecto a ser
cada vez mais a importância de incluir temáticas
comentado é a importância do trabalho de Mer-
e experiências de danças populares e de matrizes
cedes Batista para a dança brasileira. Conhecida
africanas dentro dos currículos de formação nas
por ser a primeira bailarina negra a fazer parte do
graduações de Artes Cênicas. Isso nos traz a neces-
Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Ja-
sidade de, cada vez mais, encontrar novos modos
neiro, Mercedes concebeu o “Balé Folclórico” e a
de produção de conhecimento que se distanciem
Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2003. ______; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FAGUNDES, Patrícia (Silvia Patrícia). Dramaturgia de Corpos e Espaço em Cidade Proibida. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://portalabrace.org/viiicongresso/resumos/ processos/FAGUNDES,%20Patricia.pdf FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GIANUCA, Lindsay. O Oceano Cênico de Zoé Degani: por uma cenografia plural. Dissertação de Mestrado: PPGAC, IA, UFRGS, 2013. KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. In: Psicologia em Estudo: Educação & Sociedade. vol. 6, n. 1, p. 17 - 27, jan./jun. 2000. LOPES, Maura Corsini; FABRIS, Eli Henn. Inclusão e Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. ROCHA, Glauber. Documentário exibido no programa Diverso, pela TV Brasil em 03 de setembro de 2016. Dist.: versátil Espetáculos Mencionados In-visíveis. Trupe pé di Marmibó. Direção: Cristiane Bilhalva. Atuadores: Arlete Cunha, Anderson Rosa, Carolina Pommer, César Ramos, Ciçu, Cristiane Bilhalva, Deyvid Soares, Isaias Luz e convidados. Ano de estreia: 2014, em Porto Alegre, RS. Cidade Proibida. Cia Rústica de Teatro. Direção: Patrícia Fagundes. Elenco: Ander Belotto, Camila Falcão, Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Laura Backes, Lisandro Bellotto, Lucca Simas, Mirna Spritzer, Priscilla Colombi, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Suzi Weber. Ano de estreia: 2013, em Porto Alegre, RS. (https://projetocidadeproibida. wordpress.com)
Heinz Limaverde, da Cia Rústica de Teatro Foto: Claudio Etges
caderno artes decênicas teatro
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
28
o caderno de teatro é uma seleção de artigos, reportagens, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto alegre. sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa arte sesc – cultura por toda parte. as páginas a seguir apresentam o processo criativo de espetáculos do coletivo teatro da Vertigem, que completa 25 anos de uma trajetória marcada
#20
pela ocupação de espaços não convencionais, entre eles O Filho, Kastelo, BR-3 e os da trilogia Bíblica, a partir de relato da diretora eliana monteiro e de artigo do designer de luz Guilherme Bonfanti. o grupo participa da 13ª edição do Festival em Porto alegre, no mês de maio, com O Filho, espetáculo inspirado em Carta ao Pai, de Kafka, uma década depois de apresentar na capital gaúcha História de Amor (últimos capítulos).
artes cênicas caderno de teatro
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
O Livro de Jó
Foto: Edouard Fraipont
O Paraíso Perdido Foto: Claudia Calabi
BR-3
Foto: Edouard Fraipont
O Paraíso Perdido
Foto: Edouard Fraipont
Apocalipse 1, 11
Foto: Claudia Calabi
Kastelo
Foto: Nelson Kao
teatro Da vertigem: 25 anos De ocupação De espaços não convencionais
29
caderno de teatro
PRiMEiRO SEMESTRE
2017 2018
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um breve histórico Do teatro Da vertigem: Da trilogia bíblica à aDaptação De carta ao pai, De KafKa
Tietê, e em 2011 foi reconhecido com a Triga de
realizou a ópera dido e Enéias, de henry Purcell,
Ouro na Quadrienal de Praga como Melhor Produ-
num dos galpões da central de produção de
ção Teatral do mundo em quatro anos.
cenários e figurinos do Teatro Municipal.
No ano seguinte, o grupo estreou História
A obra O Castelo, de Franz Kafka, serviu de
de Amor (últimos capítulos) de Jean-Luc Lagarce,
inspiração para Kastelo, espetáculo encenado no
espetáculo vinculado à exposição sobre a trajetória
prédio do Sesc da Avenida Paulista, em 2010. do lado
dos 15 anos do grupo, e adaptou o BR-3 para a
de dentro, o público assistiu, através das vidraças,
Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Em 2008,
às cenas realizadas no exterior do edifício com os
do intercâmbio artístico com os grupos LOT, de
atores suspensos por balancins de construção e
Lima, Peru, e zikzira, de Belo horizonte, foi criada a
cabos de segurança. Na sequência vieram: Cartas
intervenção cênica A Última Palavra é a Penúltima,
de Despejo, em sua sede; a intervenção Cidade
a partir do texto O Esgotado, de Gilles deleuze, na
Submersa, no terreno da antiga rodoviária do
passagem subterrânea interditada da Rua Xavier
bairro da Luz; e o espetáculo Bom Retiro 958
de Toledo, no centro de São Paulo. No mesmo ano
metros, em São Paulo, posteriormente adaptado
A companhia Teatro da Vertigem, que tem como proposta a realização de seus espetáculos em locais não convencionais, foi criada em 1991, com experimentos baseados na Mecânica Clássica aplicados ao movimento expressivo do ator. Sua primeira peça foi Paraíso Perdido, apresentada na igreja de Santa ifigênia, em São Paulo. Na sequência, encenou O Livro de Jó no hospital humberto Primo, circulando ainda por algumas capitais do Brasil, além de Bogotá, na Colômbia, e Ärhus, na dinamarca. Em Moscou, participou do 3º Festival internacional de Teatro Anton Tchekhov. Completando a trilogia bíblica e consolidando o processo colaborativo como modo de criação, em 1998 o grupo estreou Apocalipse 1,11 no antigo Presídio do hipódromo, na capital paulista. Além de participar dos principais festivais do país, o Vertigem viajou com a peça para Lisboa, em Portugal, e para os festivais nacionais de Caracas, na Venezuela, de Colônia, na Alemanha, e de Wroclaw, na Polônia. Em 2003, a partir de um projeto de residência artística na Casa Nº 1, desenvolveu estudos, treinamento e ensaios para o projeto BR-3, o mais ousado da companhia, com pesquisa de campo no bairro da Brasilândia, na periferia paulistana, e oficinas com moradores em trabalho de instrumentalização artística. Somou-se ao processo de criação uma viagem por terra à Brasília/dF e Brasileia, no Acre. O espetáculo teve estreia em 2006, no Rio
BR-3
Foto: Nelson Kao
Luciana Schwinden em Apocalipse 1,11 Foto: Lenise Pinheiro
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017
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1 Texto editado a partir da transcrição de relato falado.
para Patronato 999 metros, versão chilena que
direção. “Eu não tenho essa função de ouvinte,
a periferia, violenta inclusive; Brasília/DF, o centro
manteve os mesmos eixos de investigação, como
mas começa a me ajudar”, ele disse. Larguei meu
do poder; e Brasileia/AC, podemos dizer que é
a moda, a imigração, o consumo e as relações de
emprego e fui aprender teatro, primeiro cursando
periferia do Brasil, quase fronteira com Bolívia
trabalho.
a faculdade e agora estou iniciando o mestrado de
e muito longe do sudeste e do sul. Fomos até o
Em 2014, o diretor artístico do Teatro da Ver-
direção. Nestes 20 anos, eu já dirigi sozinha, codirigi
Acre por terra – 40 dias viajando – para descobrir
tigem, Antônio Araújo, a convite do Villes en Scè-
com o Tó, fui indicada ao Prêmio Shell com direção
se temos algum tipo de identidade, conhecendo
ne, estreou com a companhia o espetáculo Dizer o
de cena e pesquisa do BR-3. A pesquisa, realizada
realidades que não imaginávamos que existiam.
que Você Não Pensa em Línguas que Você Não Fala,
coletivamente, ganhou o prêmio, assim como me-
Em Mato Grosso, tem a Vila Bela da
produção do Teatro Nacional da Bélgica com o Fes-
lhor direção para Antonio Araújo e melhor ilumina-
Santíssima Trindade, com uma população 100%
tival de Avignon, na Bolsa de Valores de Bruxelas,
ção para Guilherme Bonfanti.
negra. Não teve mistura de raça. Era a primeira
e em Avignon, no Hôtel des Monnaies. O grupo
capital do Estado, que acabou sendo transferida para Cuiabá pela logística, e os senhores
de Arte de São Paulo, recriando a intervenção de
O percurso para dentro de BR-3 em busca de uma identidade nacional
2008, agora com o nome de A Última Palavra É a
Tó havia assistido a uma exposição de imagens
pouco tempo de escravidão, eles não têm o peso
Penúltima 2.0.
também foi convidado a participar da 31ª Bienal
migraram deixando os escravos. Por terem tido
sobre a construção de Brasília. Toda vez que acaba
do açoite. Já nasceram livres, com sobrenomes
De Paraíso Perdido a O Filho, que estreou em
uma peça, conversamos sobre o que faremos na
dados pelos padres. Assim como essa tem
2015 e tem inspiração no texto Carta ao Pai, de
próxima. “Fui a essa exposição e achei incrível,
milhares de outras. Já havíamos decidido que a
Franz Kafka, o Teatro da Vertigem criou 15 espe-
várias pessoas do país inteiro construíram e fiquei
peça seria no Rio Tietê porque foi por dali que
táculos. Seus processos costumam durar cerca de
pensando se existe identidade no Brasil”, disse ele.
os bandeirantes saíram para desbravar o Brasil,
dois anos até a estreia.
Decidimos pesquisar a partir de localidades que
e também porque, na viagem, tudo que víamos
começavam com ‘Bra’: um bairro de São Paulo bem
era em deslocamento. Outro motivo que ficou
periférico, Brasilândia, onde o tráfico é muito forte,
claro é que, se existe algum tipo de identidade,
Brasília e Brasileia, no Acre. Em São Paulo, apesar
é a devastação. Na Floresta Amazônica, vimos
de estarmos no centro financeiro do país, pegamos
o inconcebível: o equivalente a um campo de
....
Foi ao teatro e mudou de vida ou o impacto de O Livro de Jó[1] por Eliana Monteiro
diretora dos espetáculos A Última Palavra É a Penúltima, Kastelo, Mauísmo e O Filho
Entrei no Teatro da Vertigem em 1998, no começo do processo de criação do Apocalipse 11,1. O grupo já havia encenado O Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Faz 21 anos. Eu era funcionária pública e não cogitava fazer teatro até assistir O Livro de Jó. Esse espetáculo me pegou de um jeito, foi tão visceral, a melhor peça da vida. De tão impactante, uma coisa do bem contra o mal, assisti 10 vezes e pensei: é isso que eu quero fazer. Quando o grupo foi fazer Apocalipse 11,1, eu já havia falado com o Tó (Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem) que eu queria fazer parte, mas não como atriz, queria aprender
CADERNO DE TEATRO
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Lucienne Guedes em O Paraíso Perdido Foto: Claudia Calabi Apocalipse 1,11 Foto: Edouard Fraipont
futebol para uma vaca pastando. Que lugar em
ção. Para que ficasse parado na cena, tínhamos
a afundar e isso saiu em todos os jornais. O es-
São Paulo é tão devastado quanto a floresta? O
que ter feito ao contrário, rio acima. Tivemos que
petáculo desafiava a gente o tempo todo, não ti-
Tietê.
escolher outros lugares. Foi muito difícil porque ti-
nha apresentação tranquila, era o Tietê querendo
Foi uma dificuldade tremenda porque a gente
vemos que lidar com a natureza. Por mais que seja
mostrar que ainda é um rio. Chovia em qualquer
não tinha a menor ideia de que iria ficar até 16
um esgoto, ainda é um rio. Na estreia, por exem-
lugar e mudava tudo.
horas dentro do rio. Ensaiávamos muito e alguns
plo, estava chovendo em Paraisópolis, mas não em
Teve um dia que chegamos às cinco da tar-
atores tiveram que tirar habilitação para pilotar os
São Paulo. O rio começou a subir muito e tive que
de para o espetáculo às oito, e o pessoal de uma
barquinhos. Tivemos que perder o medo de cair no
ligar para o DAEE (Departamento de Águas e Ener-
comunidade próxima a um dos cenários tinha
rio ao subir e descer do barco, já que a água é com-
gia Elétrica) para abrir as comportas para escoar
roubado os ferros, tipo trilho de trem. Quebraram
pletamente poluída, praticamente um esgoto. Eu
a água – eu era a responsável por isso – porque o
tudo e não conseguiram levar o material por causa
ficava num barco, o Tó noutro e algum estagiário
barco não podia mais navegar, estava muito peri-
do peso. Em duas horas refizemos o cenário em
noutro. O primeiro percurso tinha 11 quilômetros.
goso. Todos os lugares das cenas alagaram. Era um
madeira porque não dava para soldar. Tínhamos
Ficava todo mundo espalhado pela beira do rio
sufoco porque a gente não tinha noção do que era
que ter outras habilidades além das artísticas, tive
acompanhando. No primeiro “passadão”, diminu-
fazer um espetáculo no rio.
até que pilotar barco substituindo um marinheiro.
ímos para 4 quilômetros para diminuir o tempo de
Tinha um repórter do New York Times co-
Pensávamos: hoje vai dar tudo certo, mas só vía-
percurso e facilitar o entendimento da história, so-
brindo a estreia do BR-3 e tínhamos um pacto
mos o que ia acontecer na hora. Foram dois meses
bre uma mulher dos confins do Brasil, que depois
que ninguém podia cair no rio. Aconteceu de tudo
e meio. Era para ser um ano. O dono do barco di-
de perder o marido na construção de Brasília vai
naquele dia, cenas alagadas, aquela sujeira toda
zia que era nosso apoiador e, sem nunca ter nos
para São Paulo, onde se torna chefe do narcotráfi-
quando o barquinho parava. Ao final do percurso,
falado nada, triplicou o valor. Nossas peças levam
co da Vila Brasilândia.
o barcão atracou e pensamos – todo mundo des-
muito tempo de criação, normalmente de um ano
Quando a embarcação maior, que levaria o
ce e voltamos tranquilos. Mas na cena final, tem
e meio a dois anos. BR-3 teve um processo de pes-
público, chegou, percebemos que havíamos per-
um pedalinho, que ficou batendo em um muro
quisa de dois anos e meio. A gente queria ficar um
dido um mês porque o barco, por não ter break,
de concreto com a subida do nível da água e se
ano em cartaz e tivemos que parar. Ficou inviável.
era levado pela correnteza quando deveria ficar
encheu de furinhos. Quando os dois atores en-
Na sequência, criamos uma peça pequena e
parado nos lugares estabelecidos para a encena-
traram para iniciar a cena, o pedalinho começou
passamos a dar aula em vários lugares, pela pre-
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017
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feitura. A gente aprendeu muito sobre produção,
Exatamente depois que BR-3 deixou de ser apre-
juntos até pagar a dívida. Apesar de não ter sido
vimos que até então não éramos produtores. Éra-
sentado no Tietê, um adido cultural da França, no
feita em formato colaborativo, quando vem His-
mos um grupo que fazia peças. A partir daí vimos
ano Brasil-França, pediu para escolhermos um
tória de Amor e a discussão sobre a relação de um
como era importante ter conhecimento de produ-
texto para encenar. Optamos por História de Amor
grupo de teatro que havia acabado e volta 10 anos
ção e viramos produtores também. Analisar antes,
(últimos capítulos), de Jean-Luc Lagarce, e fizemos
depois, percebemos quanto amor ainda tinha. Foi
estruturar melhor.
uma peça muito pequena no palco. É a história de
incrível porque a gente falava, os atores choravam.
Quando fomos fazer BR-3 na Baía da Gua-
um dramaturgo, um diretor e uma atriz que têm
Fomos segurando e pagando a dívida e continuou
nabara, em 2007, acreditamos que já havíamos
um grupo de teatro. Eles se separam. Ela vai embo-
o grupo. Foi perfeito.
passado por tudo o que poderíamos ter passado
ra com o diretor. Era mulher do dramaturgo. Larga
BR-3, apesar de traumático, trouxe um re-
no Tietê. Chegando lá, vimos que existe um tal de
o diretor também e vai viver a vida dela. A peça
conhecimento enorme, com a medalha de melhor
vento noroeste que, quando bate, a maré baixa.
começa quando o dramaturgo chama os dois para
produção teatral do mundo na Quadrienal de
A área onde faríamos ficou na areia, o barco não
voltarem à sala de ensaio 10 anos depois para fazer
Praga. Foi bem importante. Se conseguíssemos
navegava. Todo o percurso estava definido, a peça
a peça que ele escreveu. Quando começam a ler é
fazer novamente, faríamos com o maior prazer.
praticamente pronta e, na semana da estreia, co-
a peça sobre a vida deles. A separação do ponto de
Com tudo mais planejado, não com a loucura que
meçou a bater esse noroeste. O Tó não estava lá,
vista do dramaturgo. Quando BR-3 acabou, quase
foi. Mas também sem um pouco de loucura não
eu dirigi, e tive que adequar todo o percurso. Você
que o Vertigem acaba também. Ficamos endivida-
se faz nada. O grupo foi antes e depois de fazer
não tem domínio da natureza.
dos, encenar no Tietê para os atores, mais expostos
a peça. Teve um amadurecimento muito grande
à água, era ainda pior do que para nós. E acabou
para todo mundo.
Por pouco o grupo não acabou
tão rápido, foi muito ruim. Combinamos de ficar
O espaço não convencional como parte da dramaturgia Em nosso processo, primeiro vem o que vamos pesquisar. Logo depois o local onde o espetáculo será encenado. Por exemplo, em O Livro de Jó, a temática da pesquisa foi a aids, que tinha acabado de entrar no Brasil e atingiu muitas pessoas, de forma rápida. Onde poderia ser encenada? No hospital. Em Apocalipse 1,11, a pesquisa da dramaturgia nos levou ao Carandiru, por conta do massacre. Logo, encenamos em um presídio. Os espaços estão intimamente ligados à pesquisa que vamos desenvolver. Porque a memória do espaço é muito importante. Se você tira O Livro de Jó do hospital é outra peça. O Paraíso Perdido foi na Igreja de Santa Ifigênia. Se você a coloca em qualquer outro lugar, perde completamente o sentido. A discussão é a queda do anjo do paraíso e ele querendo voltar, se religar. Não imagino fora da igreja. Seria outra peça, não teríamos a memória do espaço. Algumas pessoas desmaiavam em cenas de O Livro de Jó e tínhamos que colocá-las em um quartinho, dar água, sal. Em uma apresentação, sem dar indícios, um homem desmaiou e ficou muito nervoso, esbravejava “vocês colocam éter aqui, onde já se viu isso”. Explicamos que não, pois
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primeiro SEMESTRE
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ninguém ficaria em pé. Ele insistia: “e esse sangue?”.
mas ninguém entrava no castelo, que era o
sistema. Os atores praticaram rapel durante um
Tive que dar a fórmula: Karo, chá de nogueira e
grande olho que sabia da vida de todo mundo.
ano para poder encenar na parede envidraçada,
água. “Você jura?”. No final, ele veio conversar
Ninguém sabia o que acontecia de verdade lá
suspensos em balancins de construção estreitos
comigo e comentou que já tinha passado muito
dentro. A questão do pós-moderno é que as
e amarrados por cordas de segurança. Essa foi a
por hospital e provavelmente essa memória... Não
pessoas se sentem inseridas e nunca estão. E há
pesquisa. Infelizmente, não conseguimos viajar
era o cheiro daquele hospital, mas era o cheiro
um buraco gigantesco em você querer pertencer
com o espetáculo.
de todos os hospitais pelos quais ele já havia
a um lugar e nunca estar. Qual seria o castelo
passado. Essa memória do lugar, para nós, é uma
agora, em 2010? Em São Paulo temos prédios
Por que o Kafka não saiu de casa?
dramaturgia também.
envidraçados, as grandes corporações. Aí surgiu
A pesquisa para a criação de O Filho parte do fato
Eu já tinha dirigido A Última Palavra É a
a ideia de tentar com o Sesc da Paulista, que é
de eu gostar muito do Kafka e também de uma
Penúltima quando fizemos Kastelo, no Sesc da
um prédio envidraçado, sem ser uma grande
questão pessoal familiar. Meu pai é uma pessoa
Avenida Paulista. Pensamos sobre uma questão
corporação de negócios. A pesquisa é essa: eles
incrível, tem 84 anos e nunca foi uma pessoa
que se sobressaía na cidade de São Paulo naquele
trabalharem do lado de fora, como se estivessem
dura, ele ouve muito e tem dificuldade de assumir
momento. Eram as câmeras de segurança, mas
trabalhando dentro. É como se tivessem inseridos
liderança. Quando comecei a pensar na peça,
de que forma isso afetava a vida das pessoas
nessa corporação, mas na verdade estão do
tinha uma relação do meu avô com o pai dele.
na cidade? Comecei a estudar vários autores
lado de fora, nunca dentro. Esse era o mote do
Meu bisavô deveria ter hoje uns 125 anos. Muito
e n’O Castelo, do Kafka, autor de que eu gosto
Kastelo, esse excesso de trabalho. Na Paulista, o
patriarcal, dominava todo mundo. Meu avô casou
muito, tinha essa questão da sociedade do
centro financeiro, você trabalha muito achando
com uma índia, a mãe do meu pai, e meu bisavô
trabalho toda em volta, formando um vilarejo,
que é uma coisa e está completamente fora do
não suportava. Ele batia no meu avô, fazia tocaia,
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
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o proibia de ver a mãe. Meu avô não suportou e
não era fácil, ele era pobre. Até 1848, no Império
uma família, seus filhos não passassem pelo que
acabou se matando. Meu pai tinha apenas sete
Austro-húngaro, o judeu podia ter quantos filhos
passou. A família da Julie era considerada de ju-
anos – ele viu meu bisavô fazer isso – e acabou
quisesse, mas só era permitido ao primeiro casar,
deus excêntricos, tinha músico, médico, um que
assumindo uma reponsabilidade muito grande,
era para controle da população. Neste ano, uma
era como um representante religioso que previa
apesar da idade. Fiquei pensando como uma
lei autorizou que todos casassem, e Jacó, que já
o futuro, o pai dela tinha cervejaria famosa. Eles
sociedade, nessa época, considera que alguém
tinha 33 anos, casou imediatamente com a vizinha
ligados ao belo, à arte. Franz foi o primeiro filho,
tem tal domínio sobre a vida de outro, mesmo
Francesca. Deste casamento nasceram seis filhos,
o segundo morreu muito pequeno com uma do-
que seja o filho? Comecei a investigar Carta
o terceiro é o Hermann, pai do (Franz) Kafka.
ença tipo febre amarela, depois vieram mais duas
ao Pai e a vida do Kafka. Seu pai, Hermann, era
O avô do Kafka era um açougueiro. Não importa-
filhas. Toda a carga ficou com o primogênito, de
extremamente poderoso, era ele que mandava, e
va se estivesse frio, os filhos tinham que entregar
me veio a pergunta: por que o Kafka não saiu de
as carnes mesmo assim. Hermann não suportava
casa? Ele tinha 42 anos quando morreu, por que
isso, era empreendedor. Com quase 14 anos, saiu
ele não casou? Por que não foi fazer a vida dele?
de casa e foi vender coisas para o império todo e
Fui estudar a vida do Hermann. Fomos eu e o
não voltou mais. Quando chegou em Praga, mui-
Guilherme Bonfanti para Praga e refizemos todo o
to trabalhador, com 30 anos, conheceu o pai de
caminho do Kafka, uma pesquisa muito profunda.
Julie (que viria a ser sua esposa). A princípio, foi
Fui ao castelo, fui à casa que ele morou dentro do
um casamento arranjado, mas me parece que se
castelo. Uma casinha. Ele tinha um emprego, era
apaixonaram depois. Ele, de uma família pobre,
como se fosse o INSS. A vida do Hermann também
trabalhou muito para que, no dia em que tivesse
Atriz Katia Bissoli em Bom Retiro 958 metros Foto: Jennifer Glass
O Filho
Foto: Flavio Portella
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
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quem se esperava que fosse empreendedor. Mas
um caminho – não sei se é uma resposta – da
ele puxou à mãe, era ligado ao belo e à escrita,
descartabilidade. Ficou todo mundo descartável.
além de ter um tipo físico franzino. Uma das fi-
Ninguém tem compromisso com nada. Ou muita
lhas dos Kafka, Ottla, foi quem puxou ao pai: alu-
gente tem pouco compromisso. Um pai forte que
gou uma casa no campo, saiu de casa e tornou-se
tinha o controle inibia sua vida. Pelo descontrole,
empreendedora. Também cuidava do irmão, que
agora, não chegamos a lugar nenhum. Só mudou.
era apaixonado por ela. A briga toda girava em
A primeira ideia foi fazer o espetáculo em
torno disso. A Ottla e a outra irmã casaram e fo-
uma fábrica ou em um grande galpão. Seria um
BR-3 (2006)
ram fazer suas vidas. Franz não conseguia sair de
lugar que funcionasse como um grande depósito
História de Amor (últimos capítulos) (2007)
perto do pai. O meu pai nunca conseguiu sair de
de móveis descartados por famílias que não de-
perto da lembrança do pai dele. Meu avô nunca
ram certo. Os móveis não podem ser novos, têm
conseguiu sair, ele podia ter casado e ido embora,
que ter a memória – aqui não é a história do es-
mas ele ficou perto do seu pai, no mesmo lugar,
paço, mas dos móveis que estão ali. O espetáculo
apanhando até se matar.
fala de uma família que vai se desenvolvendo ali
ESPETÁCULOS Paraíso Perdido (1992) O Livro de Jó (1995) Apocalipse 1,11 (2000)
A Última Palavra é a Penúltima (2008) Dido e Enéias (2008) Kastelo (2010)
A pergunta que fez com que todo o grupo
e o público vai vendo as gerações passando, o que
Mauismo (2010)
quisesse entrar nessa empreitada comigo, que era
aconteceu com essas pessoas. Ou o que aconte-
Cartas de Despejo (2011)
uma coisa pessoal e passou a ser uma questão
ce, agora, com a maioria das pessoas. Fica essa
de todo mundo é: se, na sociedade patriarcal, o
discussão: se em uma sociedade patriarcal havia
Kafka acreditava que todos os seus problemas
problemas, e Kafka achava que a mão do seu pai
estariam resolvidos não fosse a presença tão do-
era tão forte, se não fosse tão forte ele teria sido
minante de seu pai, hoje, em que a figura do pai
feliz, o que é a sociedade hoje? Meu pai achou a
está tão reduzida – não vivemos mais em uma
vida inteira que, se seu pai tivesse ficado a seu
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on
sociedade patriarcal – melhorou? O problema
lado, teria sido feliz. O meu avô queria ficar perto
ne parle pas (Dizer o que pensamos em língua que
era a figura tão forte do pai dele, que domina-
do pai dele porque achava que seria feliz. E agora
não falamos, 2014)
va todo mundo. Se Kafka estivesse aqui, agora,
que é esse descontrole total, ninguém tem tanta
ele iria dizer: o que aconteceu? Chegamos em
responsabilidade. Esse é o lugar que fomos inves-
A Última Palavra é a Penúltima 2.0 (2014)
Cidade Submersa (2011) Bom Retiro 958 metros (2012) Orfeu e Euridice (2012)
tigar para fazer O Filho. Kafka dizia que passou a
Patronato 999 metros (2015)
vida inteira olhando pela janela, por incapacidade
O Filho (2015)
de se inserir na vida, e eu me identifico.
O Filho
Foto: Humberto Araujo
Patronato 999 metros Foto: Divulgação
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017 2018
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por Guilherme Bonfanti
Designer de luz; integra o Teatro da Vertigem desde sua fundação; colaborou com os principais diretores, cenógrafos, arquitetos e coreógrafos do Brasil; é coordenador do curso de Iluminação da SP Escola de Teatro.
Luz em processo, a experiência de BR-3
incorporassem à pesquisa sobre os três espaços a serem visitados pela encenação: Brasília, Brasilândia e Brasileia. Fomos a Brasilândia, onde trabalhamos por um ano. Ali ministrei uma oficina de iluminação, com o intuito de conhecer melhor o bairro e poder, em troca, circular tranquilamente, em diferentes horários, para perceber as atmosferas do local. Desse convívio veio a ideia de precariedade como conceito para Brasilândia. Nunca me interessou reproduzir uma cópia fotográfica, mas sim poder olhar para essa realidade e transformá-la em linguagem de luz – luz para teatro, feito na cidade, não em um palco.
Muito se fala sobre o papel e o momento da en-
ceituais: construção artesanal, experimentação e
Interrompemos os trabalhos para viajar a
trada da luz num espetáculo. É comum ouvirmos
testes, observação da luz natural e da luz artifi-
Brasileia, no Acre. Saímos de São Paulo na noite
que essa entrada deve acontecer sempre uma
cial, pesquisa teórica, de campo e de materiais.
de 29 de junho de 2004, por terra, e chegamos a
semana antes da estreia, ou até mesmo no dia.
Além destes, também destacaria a construção de
Brasília, nossa primeira parada, onde ficamos por
Primeiro vem o texto, que motiva o diretor a es-
uma dramaturgia lumínica, com a pretensão de
10 dias. Dali seguimos rumo ao Acre, passando
colher um elenco. Depois de definidos esses três
buscar a criação de linguagem autônoma a partir
por diversas cidades até chegarmos ao nosso des-
elementos, vêm os demais: cenografia, figurinos
da verossimilhança no uso dos artefatos lumino-
tino, Brasileia, onde nos fixamos por 15 dias. Éra-
e música. Ah, esqueci: e a luz! Mas nem sempre
técnicos: noção de risco, instabilidade, processo
mos 16 profissionais: autor, diretor, assistente de
foi assim, considerando a experiência que relato
de construção artesanal, condução do olhar, luz
direção, designer de luz, diretor de arte, figurinis-
a seguir, ocorrida em São Paulo, a partir de 1992.
como personagem, trabalho em equipe, ética nas
ta, fotógrafo e videomaker, músico, uma pessoa
Ela prova que esse processo vem se firmando
relações e, por fim, um dos maiores aprendizados
responsável pelos relatos, produtor e cinco atores.
como um procedimento, e não mais ao acaso.
nestes anos de pesquisa, ter generosidade com
Tínhamos feito uma pré-produção e os dias
Vamos à história.
todo o conhecimento adquirido.
eram repletos de encontros, nos quais tentáva-
Ao longo deste relato me deterei na ex-
mos entender as diferentes visões sobre Brasília
na Igreja de Santa Efigênia, iniciava-se a traje-
periência de BR-3, pois ela sintetiza tudo o que
e sua construção, a problemática das diversas
tória de mais um grupo paulistano, o Teatro da
vem sendo construído. Ao sairmos da experiência
fronteiras com o Acre e a fragilidade no contro-
Vertigem, e junto com ele a minha história como
da Trilogia bíblica, organizamos um fórum para
le desse ir e vir de países próximos, com nações
designer de luz. Três anos depois, em 1995,
discutir o que faríamos e, nesse momento, a luz
indígenas desaparecendo e identidades sendo
no segundo trabalho, O Livro de Jó, no Hospi-
já estava presente no processo. Após elegermos
perdidas, a problemática do desmatamento. Em
tal Humberto Primo, os procedimentos para se
um tema, como sempre fazemos, iniciou-se o
nenhum momento houve a intenção de apreen-
criar uma luz começaram a ficar mais claros. Em
processo para a encenação de BR-3, que foi um
der a luz de cada lugar. Meu foco e interesse es-
Apocalipse 1,11, no Presídio do Hipódromo, em
de nossos trabalhos mais complexos: do início
tavam voltados para conhecer esses lugares nos
1999, as experiências anteriores revelaram-se
até a estreia, em 2006, foram exatos três anos de
quais não habito. Desses fins de tarde, vendo o
um método e, finalmente, em 2006, com BR-3,
preparação, sempre tendo a luz como uma das
pôr do sol no eixo monumental em Brasília, da
no leito do Rio Tietê, elas se tornaram um pro-
preocupações.
ida ao Vale do Amanhecer, da visita ao Congresso,
Em 1992, com o espetáculo Paraíso Perdido,
cedimento, que consolidaria uma maneira de
Tema definido e escolhido o dramaturgo – o
do céu que nos dá uma visibilidade absurda, mui-
pensar e atuar nos processos de criação de luz
escritor Bernardo Carvalho –, abriu-se o ciclo de
to azul e branco, do caminhar sem destino certo,
da companhia.
pesquisa teórica e de seminários na Casa 1, uma
surgiu a luminosidade de Brasília.
A cada passo foram sendo descobertos os
antiga edificação no centro velho de São Paulo.
No Acre, tínhamos a floresta e o desmata-
elementos constitutivos deste processo, em cuja
Ali trabalhamos durante um ano e meio, perío-
mento como elementos mais fortes. Dessa con-
montagem foram se agregando princípios con-
do em que abri espaço a estagiários para que se
vivência surgiu o verde como símbolo do Acre.
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017
38
No meio disso tudo a fé, presente nos crentes
utilização de espelhos, uso de sombras: cada um
Nesse tempo de trabalho no Vertigem percebo
evangélicos da Brasilândia, nas comunidades
desses elementos foi trabalhado, pesquisado e
como tudo fica aberto quando nos deparamos com o
místicas de Brasília e no Santo Daime, no Acre.
experimentado. Partimos para a aplicação dos
espaço, como as áreas (direção, atores, texto, direção
Movimentar-se pelo Brasil e observar essas dife-
elementos escolhidos nas cenas ensaiadas, de-
de arte, música, figurinos) ficam permeáveis. Minhas
rentes realidades provocou em mim a consciên-
senhos técnicos do projeto de luz, montagem da
impressões/ideias poderiam influenciar (e devem ter
cia das dimensões e das diferenças de meu país,
iluminação e, por fim, a apresentação pública do
influenciado) os demais; confesso que isso nunca
muito mais do que me forneceu um projeto de
processo de construção da iluminação, para fina-
me preocupou, as ideias são sempre lançadas sem a
luz definido para o espetáculo. Ficamos um tem-
lizar com a temporada do espetáculo.
premissa da autoria. Estávamos todos entrando no
po absorvendo o impacto da destruição que pre-
Paralelo a esse período na Casa 1, começa-
rio pela primeira vez e, como num turbilhão de ima-
senciamos e partimos para a segunda etapa, que
mos a visitar o Tietê. No primeiro contato não
gens, minha cabeça passou a projetar possibilidades
era a construção dramatúrgica. Nessa nova fase
havia nenhuma preocupação com os aspectos de
para o trabalho da luz. Alguns devaneios e outras
incorporam-se os estagiários.
luz, mas apenas de promover uma aproximação,
ações mais factíveis. Procuro abrir meu sensorial e
Desenvolvemos um levantamento sobre
abrir os sentidos e tentar captar sensorialmente o
não apenas calcular o que conseguirei fazer. Trato
a luz nos espaços, a atmosfera e os elementos
que aquele lugar me dizia. Já na segunda ida ao
de ver/pensar todas as possibilidades.
que a compunham em cada lugar. Em Brasilân-
Tietê, meu olhar se aguçou e percebi que havia
Esse período na Casa 1 se desdobrou para
dia, houve uma pesquisa de campo; em Brasília
certo delírio de minha parte e um pensamen-
dar início ao levantamento das cenas e ao come-
e Brasileia, a pesquisa ficou restrita às imagens
to muito grandioso, que ia além, muito além de
ço de um desenho do que seria o espetáculo. Foi
captadas na viagem e a alguns relatos. O resulta-
nossas condições de produção. Mas não havia
novamente um período muito intenso e de muita
do foi apresentado em workshops. Materiais que
ainda uma preocupação com as reais condições
criatividade. Com o surgimento das cenas, algu-
seriam aplicados no projeto de luz do espetácu-
de execução. Era um momento de ideias, de abrir
mas ideias foram se consolidando e ganhando
lo; experiências com fogo, carbureto, leds, lasers;
possibilidades, não de defini-las.
forma, outras sendo abandonadas. Para esta eta-
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2017
39
pa, o grupo de estagiários sentiu necessidade de
a atmosfera necessária da cena. E, para isso, preciso
aprimorar alguns conhecimentos.
ter pelo menos duas ou três possibilidades de luz
Partimos para o período de levantamento
para cada cena.
das cenas. Passaram-se assim oito meses de tra-
Finalizamos uma primeira versão encenada do
balhos dentro da Casa 1. O que nos interessava
texto, ainda que fora do espaço definido, ainda que
eram questões mais conceituais, texturas, opção
sem todos os aparatos que compõem a cena. A pre-
de materiais a serem utilizados e a busca pela luz
cariedade nos acompanha em todos os sentidos e
de cada lugar. Consideravam-se perdas e ganhos, e
etapas da criação.
um certo desnorteamento, talvez pelo excesso de
A partir daqui começamos nossa saga de co-
ideias sendo jogadas nas cenas – trata-se de uma
locar o espetáculo no espaço, o Rio Tietê. A bordo
característica dos nossos processos: criamos muito
de uma embarcação aberta, com um frio de 10oC,
e jogamos muita coisa fora.
atores e demais criadores lançaram-se na aventura
Um processo de criação é construído com mui-
de dar vida a uma ideia que estava “levantada” em
tos reveses e poucos acertos, é exatamente o perí-
uma casa que tinha toda a estrutura para funcio-
odo do erro, do excesso de ideias, de pensar coisas
narmos. Agora nos víamos imersos em uma expe-
mirabolantes. Procuro ter um repertório grande de
riência para a qual não tínhamos respostas e nem
possibilidades, vou aos poucos olhando para tudo
mesmo perguntas, dada a novidade da ação. Isso é
aquilo e analisando o que é artificial, o que não cabe
parte do processo. Daqui em diante caberia um ou-
ou não dialoga com a direção de arte, com o tex-
tro relato, pois foram oito meses dentro do rio até
to. Trato de não me deixar levar pelo belo ou pelo
chegar à estreia.
efeito, penso sempre no que é essencial para criar
Roberto Audio e Sergio Pardal em BR-3 Foto: Edouard Fraipont
Encenação de BR-3 na Baía da Guanabara Foto: Divulgação
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
40
Por Gilberto Figueiredo, Sylvia Letícia Guida e Tiago Portella Otto equipe de Música do Departamento Nacional do Sesc.
SONORA BRASIL:
podem ser abordados períodos históricos (Sonora Brasil 500 Anos – 1999), referências regionais (Regiões – 2003; Na Pisada dos Cocos – 2017/2018), expressões culturais de comunidades tradicionais (Sagrados Mistérios: vozes do Brasil – 2011/2012; Tambores e Batuques – 2013/2014), formações
maior projeto de circulação de música do país completa 20 anos
instrumentais ou instrumentos (Bandas de Música: formações e repertórios – 2017/2018; Sotaques do Fole – 2011/2012; Violão Brasileiro – 2009), obras de relevância histórica (A obra de Claudio Santoro e Guerra-Peixe – 2010; Villa-Lobos – 2008), dentre outros. O desenvolvimento do conteúdo dos temas ocorre através do programa de concerto e de um roteiro de falas definidas pela curadoria, com a contribuição dos músicos. Essas ações são complementadas por um catálogo, distribuído gratuitamente às plateias, com informações sobre o proje-
O INÍCIO
nais, especialmente com relação ao aspecto con-
to, sobre os grupos e sobre os programas que cada
No dia 2 de maio de 1998, o grupo Quadro Cer-
ceitual. No mesmo ano, e com o mesmo objetivo,
um apresenta. O material contém ainda um artigo
vantes subiu ao palco do Teatro Jofre Soares, em
surgiu o Palco Giratório, também um projeto de
encomendado para a publicação, escrito por um
Maceió, para a realização do primeiro concerto
circulação, este na área das Artes Cênicas.
especialista no tema. Atualmente, para cada tema
do projeto Sonora Brasil. Integrado por Helder
Para o aprimoramento na gestão desses dois
são produzidos em torno de 45 mil exemplares do
Parente, Nicolas de Souza Barros, Mário Orlando
projetos foi necessária a organização de encon-
catálogo. As cidades recebem quatro grupos por
e Clarisse Szajbrum, o grupo era na época consi-
tros que reunissem os técnicos do Sesc, encarre-
ano, cada um representando um recorte do tema
derado um dos mais importantes intérpretes de
gados da programação das áreas nos Regionais.
proposto. A complementariedade desses recortes
música antiga no país.
Os encontros, com regularidade anual, se torna-
sugere que o público assista aos quatro concertos,
Naquele ano, cinco estados realizaram os
ram o principal espaço de discussão sobre pro-
de modo a obter uma visão geral do tema. Supõe-
quatro circuitos – Alagoas, Pernambuco, Ceará,
gramação, responsáveis pelo constante aprimo-
-se que a ausência de um grupo (recorte) possa
Rondônia e Paraná – totalizando 50 apresenta-
ramento dos profissionais e pela construção de
comprometer a plena compreensão da concepção
ções realizadas em 14 cidades. Das outras etapas
um alinhamento conceitual nas ações realizadas
de abordagem do tema central.
de circulação participaram o Quinteto Latino-
em todo o país. O Sonora Brasil, que a princípio
Essa lógica foi compreendida desde o início
-americano de Sopros da Paraíba (PB), o Quarteto
seria apenas um projeto de referência, sem dei-
pelos Departamentos Regionais, que são os res-
Romançal (PE) e a Camerata Contemporânea do
xar de sê-lo também ampliou as possibilidades de
ponsáveis pela definição de quais cidades, em seu
Rio de Janeiro (RJ).
atuação de um fórum que se tornou espaço de
Estado, acolherão o projeto, e de quantos con-
Nascia aí uma ação que em alguns anos se
curadoria, de formulação de novas ideias, de tro-
certos cada uma realizará. Com raras exceções,
tornaria o maior projeto de circulação musical
ca de experiências e, acima de tudo, de discussão
tornou-se uma constante a realização dos quatro
do país, alcançando o seu ápice no ano de 2015,
sobre assuntos relacionados a todos os campos
recortes, promovendo a circulação dos grupos por
quando realizou 482 concertos em 132 cidades,
de ação do Sesc na área da Música.
trajetos idênticos, assim como é recorrente o retorno do projeto às mesmas cidades no ano seguinte.
cobrindo todos os estados do país. A criação do Sonora Brasil – Formação de
AS TEMÁTICAS
Ouvintes Musicais ocorreu a partir da necessida-
As apresentações do Sonora são contextualizadas
A CURADORIA
de do Sesc ter um projeto que alcançasse todo o
a partir de temáticas específicas. Desde a primeira
A curadoria que define os parâmetros para a rea-
Brasil, sob gestão do Departamento Nacional, que
edição, os critérios que definem os grupos que fa-
lização do projeto é formada pelos técnicos res-
servisse de referência para o desenvolvimento de
rão a circulação se baseiam num tema central que
ponsáveis pela gestão da programação da área de
programações locais pelos Departamentos Regio-
trata de um assunto específico da música brasileira:
Música nos Departamentos Regionais e nos Polos
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
41
de referência do Departamento Nacional, e pelos
discussões, com vistas a uma deliberação asserti-
Analistas de Música do DN. Cabe a esse coletivo
va com relação aos temas e aos grupos.
a elaboração dos temas centrais apresentados a
Os critérios utilizados se baseiam: no caso
cada ano/biênio e a escolha dos grupos e mú-
dos temas, na relevância no contexto do desenvol-
sicos que serão convidados para apresentar os
vimento da música no país, na viabilidade de es-
recortes temáticos. Para alcançar o necessário
truturação dos conteúdos e no ineditismo, consi-
aprofundamento inerente à ação curatorial, faz
derando as temáticas já abordadas anteriormente;
parte das atribuições do técnico conhecer os di-
e no caso dos grupos, na relação com o tema, na
versos segmentos da cena musical de seu Esta-
qualificação técnica e/ou no domínio do conteúdo
do, tanto no âmbito das comunidades tradicio-
e na possibilidade real de cumprir, com qualidade,
nais quanto no âmbito profissional, nos campos
o compromisso de realização dos concertos e a
da música popular e de concerto. Os programas
jornada de viagens. Em alinhamento com a Política
apresentados no Sonora são construídos espe-
Cultural do Sesc, de descentralização, valorização
cialmente para o projeto, a partir de pesquisas
dos contextos regionais e incentivo aos artistas de
realizadas pela curadoria em conjunto com os
todo o país, procura-se dar espaço à diversidade
músicos participantes. A intenção é transgredir
de manifestações culturais.
o repertório canônico, dando espaço a músicas pouco conhecidas.
Com o objetivo de contribuir para a ampliação da experiência musical de suas plateias, a ten-
Essas definições acontecem nos Encontros
dência do projeto, com raras exceções, sempre foi
Nacionais da área de Música, que ocorrem com
abordar temas relacionados à música de concerto
regularidade anual. Nestes fóruns são tratadas
ou à produzida por comunidades tradicionais, seg-
todas as modalidades de ação em Música que
mentos pouco difundidos nos meios de comuni-
constam do rol de atuação do Sesc. Porém, em
cação. A música popular, especialmente a urbana,
anos elencados para a curadoria do Sonora Brasil,
cuja concepção, estrutura e forma dialogam mais
o projeto ganha ênfase, com uma carga horária
diretamente com objetivos de viés comercial, cos-
especial que permita a apreciação das propostas
tuma ser inserida em outras programações desen-
trazidas pelos técnicos e o amadurecimento das
volvidas pelo Sesc.
Catálogos temáticos do Sonora Brasil
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
42
Alguns temas trataram especificamente
temas, selecionando quatro grupos para cada um.
relação ao uso de espaços alternativos, o que ga-
da música de concerto, como Edino Krieger e
No primeiro ano do biênio, um tema circula pe-
rante a interiorização dos circuitos até cidades que
as Bienais de Música Brasileira Contemporânea
los estados das regiões Sul e Sudeste, enquanto o
não possuem equipamentos culturais. O formato
(2013/2014), Villa-Lobos (2008) e Sonora Brasil
outro circula pelo Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
também se adequa às formações, por exemplo, dos
Século XXI (2000); outros, especificamente da
No segundo ano ocorre a inversão, de modo que os
grupos de comunidades tradicionais, que podem
música produzida por comunidades tradicionais,
grupos completem o circuito nacional, passando
se apresentar em ambientes abertos.
como Na Pisada dos Cocos, (2017/2018) e Tam-
por todos os estados. Devido a alterações no nú-
Esta metodologia também cria uma aproxi-
bores e Batuques (2013/2014); mas a maioria
mero de concertos em alguns estados e com vistas
mação do público com o artista, facilitando inte-
dos temas possibilitou a interação entre os dois
a reequilibrar os circuitos, no biênio 2017/2018 a
rações pouco comuns nesta relação, que podem
segmentos e, em alguns casos, dialogou com a
região Centro-Oeste compôs a circulação com o
promover desdobramentos importantes no campo
música popular, como no caso de Sotaques do
Sul e o Sudeste.
do desenvolvimento da Música e na formação de
Fole (2011/2012) e Sonora Brasil Regiões (2003).
No segundo caso, a curadoria criou a Mos-
plateias. Faz parte da experiência de fruição um
A música antiga, que é enquadrada no campo da
tra Sonora Brasil, modelo que prevê a realização
momento de diálogo com a plateia, que ocorre
música de concerto, foi contemplada em várias
dos quatro concertos em dias consecutivos, com
logo após o concerto, no qual é possível aprofun-
das 10 primeiras edições, como nos temas Mundo
o objetivo de potencializar a comunicação do
dar assuntos abordados no roteiro, responder a
Novo (2004), Sonora Brasil Origens (2001) e So-
projeto e, consequentemente, a mobilização de
perguntas, enfim, potencializar essa aproximação
nora Brasil 500 Anos (1999) .
plateias. O modelo também possibilita ao público
com vistas à sensibilização do público para o con-
Com relação aos grupos/artistas, dentre os 85
a visão global do tema através do conjunto de
teúdo musical contido no tema.
que circularam nestes 20 anos, alguns reconheci-
apresentações. O ano inaugural foi 2012, com
damente de alto nível de performance se destaca-
a realização de Mostras em Brasília (DF) e Porto
AÇÕES COMPLEMENTARES
ram, como o duo formado por Toninho Ferragutti
Velho (RO). Em 2018, 52 cidades de 23 estados
Algumas atividades complementares de caráter
e Bebê Kramer (2011/2012), o Quarteto Brasília
aderem ao formato.
formativo são ou foram incorporadas à agenda do projeto, dialogando de forma direta com a reali-
(2010), o Quinteto Villa-Lobos (2002), o violonista Turíbio Santos (2000) e o Quadro Cervantes (1998
OS CONCERTOS ACÚSTICOS
zação dos concertos. Como ocorreu, por exemplo,
e 2005), entre outros.
Todas as apresentações do Sonora Brasil são acús-
ao longo da 8ª edição, em 2005, quando circulou
Também cabe à curadoria aprimorar a me-
ticas. Essa escolha pretende oferecer ao público
pelos Departamentos Regionais a exposição A His-
todologia do projeto, identificando problemas e
uma alternativa de escuta que hoje se restringe
tória do Violão – mostra de instrumentos musicais,
discutindo soluções. Foi esse fórum que deliberou
às salas de concerto, no âmbito da música erudita.
que apresentava instrumentos originais e réplicas
sobre duas das principais atualizações ocorridas no
Num tempo histórico no qual, de um modo geral,
fabricadas pelo luthier Joaquim Pinheiro. A expo-
Sonora: a passagem do cronograma anual para o
as apresentações musicais visam a atingir grandes
sição narrava de forma concisa o desenvolvimento
bianual e a realização das Mostras.
plateias, utilizando sistemas de sonorização que
do instrumento ao longo dos séculos. Uma outra
No primeiro caso, o problema foi o aumento
amplificam o som em patamares bastante ambi-
exposição, Corpo do Som, realizada em Vitória –
gradativo na abrangência do projeto, que atingiu
ciosos, ouvir música em salas de pequeno e mé-
ES, na 18ª edição, em 2015, apresentava a viola
seu ápice em 2010, quando cada uma das quatro
dio porte, com som natural, tornou-se algo raro.
machete. Organizada pelo luthier Rodrigo Veras,
etapas realizou, em média, 85 concertos, exigindo
Inevitavelmente essa experiência suscita um olhar
reunia peças, ferramentas, matérias-primas e ou-
dos músicos um período de aproximadamente 120
crítico sobre a questão, tanto para o ouvinte quan-
tros elementos relacionados à fabricação desta
dias de viagem. O volume de concertos tornava a
to para o músico, provocando reflexões acerca dos
viola que é utilizada no samba de roda do Recôn-
circulação extremamente desgastante, além de ser
modelos de apresentação e do significado de cada
cavo Baiano.
um impeditivo para muitos músicos, especialmen-
experiência de apreciação. Sem a intenção de jul-
A partir de 2013, foram incluídas na progra-
te os que também atuam como professores em
gar os formatos destinados a espaços que exigem
mação oficinas ministradas pelos músicos que
universidades e conservatórios. A solução para o
grandes estruturas de sonorização, entendemos
estão em circulação, de um modo geral relacio-
problema foi discutida no Encontro Nacional de
ser necessário atuar de forma crítica. Assumimos
nadas à técnica instrumental e ao canto. E, mais
2010 e implantada em 2011, quando começou a
esse papel considerando a vocação da instituição
recentemente, foram incorporadas às Mostras
funcionar o cronograma bianual (2011/2012). No
para desenvolver ações que se configurem como
a contratação de grupos locais e a realização
novo modelo, a curadoria passou a definir dois
novas alternativas para as plateias, inclusive com
de ações formativas, como oficinas, palestras e
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
43
debates, sempre considerando a relação com o
OS NÚMEROS
dades. Um resultado de grande relevância para
tema. Cabe salientar os intercâmbios ocorridos
De 1998 a 2017, o Sonora Brasil realizou 5.726
um projeto que tem como um de seus objetivos
entre os grupos de tradição, cujo contato seria
apresentações de 85 grupos, em mais de 150
oferecer acesso ao seu conteúdo de forma des-
improvável fora do âmbito do projeto.
cidades de todos os estados do Brasil. Já partici-
centralizada, contemplando públicos de todas
param do projeto 481 músicos.
as capitais do país e de dezenas de cidades do
Em 2016, na Mostra Sonora Brasil, realizada na cidade do Rio de Janeiro, foi incluída na pro-
Na primeira edição, foram realizados 50
gramação uma Roda de Conversa que reuniu os
concertos em 14 cidades de cinco estados, e
grupos que circularam pelo tema Sonoros Ofícios:
desde então, com a adesão crescente dos De-
cantos de trabalho. Foi a primeira vez na história
partamentos Regionais do Sesc, o projeto foi
do projeto que ocorreu um evento reunindo os
ampliando sua abrangência até atingir, em
Alguns estados realizam concertos apenas
quatro grupos. Em 2017, uma segunda Roda reu-
2015, a marca de 482 apresentações em 132 ci-
em suas capitais. Outros, a maioria, promovem a
interior. Desde 2012, todos os estados recebem o projeto. Em 2018 serão realizados 372 concertos em 97 cidades.
niu os músicos que circularam pelo tema Bandas de Música: formações e repertórios. Outras ações, voltadas para o registro e para
600
a difusão do projeto, possibilitam a ampliação de seu alcance e contribuem para a longevidade da
500
relação do público com os conteúdos temáticos. São elas: a gravação em áudio realizada no estú-
400
dio do Sesc Casa Amarela, em Recife – PE, a gravação em audiovisual realizada pelo Departamen-
300
to Nacional em parceria com o Sesc TV e as duas videoconferências anuais realizadas também pelo
200
DN. Esses registros contribuem para a memória da música brasileira, fixando repertórios e perfor-
100
mances únicas, incluindo os diversos mestres e mestras de tradição que circularam pelo projeto.
0
No primeiro caso, todos os grupos, durante a realização do circuito de Pernambuco, dedicam um dia à gravação do repertório do concerto. Além
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018
Número de concertos realizados ano a ano
da composição do acervo histórico do projeto, é
16
produzido um CD de cada tema, reunindo uma
14
amostragem do repertório dos grupos. No segundo caso, são realizadas gravações do repertório e en-
12
trevistas cujo material também vai compor o acer-
10
vo histórico do Sonora, além de gerar uma série de
8
programas exibidos na emissora Sesc TV. Com relação às videoconferências, elas são
6
realizadas por especialistas convidados para falar
4
sobre os temas de cada biênio. São transmitidas
2
jetivo de subsidiar os profissionais responsáveis pela realização do projeto para que se apropriem dos conteúdos relacionados aos temas. São gravadas e podem ser utilizadas em outras atividades desenvolvidas com outros públicos.
0 RS SC PR ES MG RJ SP DN ESEM CCSP DF GO EESP MT MS TO AC AP AM PA RO RR AL BA CE MA PB PE PI RN SE OUTROS PAÍSES
para a rede Sesc de todo o Brasil e cumprem o ob-
Representatividade dos estados com relação à participação de grupos nos circuitos
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
44
interiorização. Pernambuco (15), Rio Grande do
de que essa escolha atenda plenamente os objeti-
Cinco músicos/grupos gaúchos circularam
Sul (12), Santa Catarina (9) e Bahia (8) se desta-
vos do projeto. Nas edições cujos temas abordam
pelo Sonora: Daniel Wolff, Gilberto Monteiro, o
cam como os que contemplam o maior número
a produção musical das comunidades tradicio-
grupo Alabê Ôni e dois músicos que integraram
de cidades em 2018.
nais já existe uma tendência à representação de
duos com artistas de outros estados: Bebê Kramer e Manuelai Camargo.
Outro aspecto importante relacionado à
estados que estão fora do eixo que concentra a
abrangência nacional do projeto diz respeito à
maioria das oportunidades de trabalho no campo
Daniel Wolff foi o primeiro representante
participação de grupos/artistas das diversas regi-
da música. Os estados que mais estiveram repre-
do Estado a participar do projeto. O violonista
ões do país. No processo de escolha, a curadoria
sentados nas edições do Sonora foram o Rio de
circulou em 2009 apresentando a obra de com-
considera, em primeiro lugar, a capacidade de o
Janeiro (15), Pernambuco (14), São Paulo (8), Pa-
positores nascidos nos estados da região Sul do
grupo cumprir com qualidade a apresentação do
raná (8) e Bahia (8).
Brasil. Pelo tema Violão Brasileiro, dividiu o pal-
recorte temático que lhe foi designado. No entanto, nos casos em que há opções de escolha, é dada prioridade aos representantes de estados pouco contemplados nas edições anteriores, des-
co com João Pedro Borges (MA), que apresenta-
Representatividade dos estados com relação à participação de grupos nos circuitos
va os compositores do Nordeste. O duo apresentou solos e duos compostos originalmente para o instrumento.
O Sesc Rio Grande do Sul participou do projeto
Bebê Kramer, acordeonista que participou
pela primeira vez em sua 9ª edição, no ano de
no biênio 2011/2012 formou duo com o também
2006, levando 24 concertos para 11 cidades, e
acordeonista Toninho Ferragutti (SP). No tema
desde então tem participado de todas as edições
Sotaques do Fole, o recorte temático apresenta-
Foto: Divulgação Sonora Brasil
e ampliado o número de cidades participantes.
do por eles tratava do repertório composto para
Gilberto Monteiro (RS)
Desde 2013, tem realizado a Mostra Sonora Bra-
o acordeão relacionado à música de concerto e
Foto: Divulgação Sonora Brasil
sil em Porto Alegre, mas mantém a circulação
a uma música popular urbana que exigia alto
Duo Ferragutti Kramer (SP/RS)
pelo interior em períodos independentes. Em
nível de performance, incluindo aí obras de Do-
2018, recebe o tema Na Pisada dos Cocos, reali-
minguinhos e dos próprios integrantes do Duo,
zando 48 apresentações em 12 cidades.
entre outras.
Daniel Wolff (RS)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
Alabe Ôni (RS)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
Duo Cancionâncias (RJ)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
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Também pelo tema Sotaques do Fole, o gaúcho Gilberto Monteiro apresentou repertório que
para a preservação e valorização da memória da música brasileira.
contou o desenvolvimento da gaita ponto no
Em 2018, uma programação especial come-
Estado do Rio Grande do Sul. Com roteiro bem
morativa dos 20 anos inclui duas ações que en-
elaborado que incluía alguns causos, Gilberto
tram para a história do projeto por seu signifi-
mostrou a trajetória do instrumento desde o iní-
cado, beleza e importância como marco de uma
cio do século passado até os dias de hoje, com re-
conquista que precisa ser reconhecida, valoriza-
pertório que percorria de Tio Bilia a composições
da e comemorada. A primeira é a realização da
de sua autoria.
exposição Experiência Sonora Brasil, inaugurada
Manuelai Camargo, cantora lírica gaúcha ra-
em abril na galeria do Sesc Casa Amarela, em
dicada no Rio de Janeiro, integrando o Duo Can-
Recife – PE, e que depois irá circular por outros
cionâncias com o violonista Cyro Delvízio (MS),
Departamentos Regionais. A exposição reúne
participou no biênio 2013/2014, apresentando re-
um amplo acervo áudiovisual interativo, con-
pertório composto para canto e violão inserido no
tendo registros do projeto desde sua primeira
tema Edino Krieger e as Bienais de Música Brasi-
edição. É um mergulho no universo infinito que
leira Contemporânea. Além de músicas de Edino,
conduz o público por uma imensa variedade de
o duo interpretou obras de outros compositores
sons e expressões musicais, que representam to-
que foram apresentadas nas bienais.
das as regiões do país.
No mesmo biênio, pelo tema Tambores e
A segunda é a realização do concerto co-
Batuques, o grupo Alabê Ôni apresentou o Tam-
memorativo dos 20 anos, com o grupo Quadro
bor de Sopapo, narrando sua história desde os
Cervantes, no dia 2 de maio, na cidade de Ma-
tempos das charqueadas, em Pelotas. O grupo foi
ceió – AL. Neste mesmo dia e na mesma cida-
formado para o projeto Sonora Brasil e contou
de, em 1998, aconteceu o primeiro concerto do
com a participação de Richard Serraria, Kako Xa-
projeto, realizado também pelo Quadro Cervan-
vier, Pingo Borel e Mimmo Ferreira, músicos pes-
tes. No dia seguinte ao concerto, será realizada
quisadores que atuam em prol da valorização e
uma Roda de Conversa com a participação de
revitalização da cultura de matriz africana no Rio
sete convidados que participaram da construção
Grande do Sul. Seu repertório apresentava ma-
dessa história.
çambiques, quicumbis, alujás e candombes.
Também nesse ano serão escolhidos os temas e grupos que circularão no biênio 2019/2020.
20 ANOS
O tempo não para e ainda há muito o que se des-
O Sonora Brasil é motivo de orgulho para o Sesc
cobrir sobre nossa música. O Sonora Brasil é um
e para todos os profissionais da área de Cultura
grande álbum que coleciona retratos do imenso
que atuam nos seus Departamentos Regionais de
painel sonoro da cultura musical brasileira. Ál-
todo o país. Não apenas por sua magnitude, mas
bum que, mesmo sendo ampliado a cada ano,
principalmente por sua importância no fomento
certamente nunca estará completo.
ao desenvolvimento da música e à formação de plateias, o Sonora é reconhecido por músicos, críticos e outros profissionais da área como o maior projeto de circulação de música do Brasil. O vasto conteúdo produzido nas pesquisas que orientam o desenvolvimento dos temas, disponibilizado ao público através dos concertos, dos catálogos, das ações formativas e dos vários outros produtos resultantes do projeto, colabora de forma incisiva
Caixeiras do Divino (MA)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
Raízes do Samba de Tocos (BA) Foto: Divulgação Sonora Brasil
Grupo Ilumiara (MG)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
Quinteto Brasília (DF)
Foto: Divulgação Sonora Brasil
Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
46
1 Texto compilado a partir de informações do catálogo Na Pisada dos Cocos : circuito 2017/2018. – Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2017 (Sonora Brasil)
A cultura viva do Nordeste
[1]
Com o tema Na Pisada dos Cocos, quatro grupos
diversos músicos brasileiros passaram a incluir
mantém a tradição de dançar coco para aplainar
de diferentes localidades e variantes do gênero cir-
o gênero em seu repertório. Os emboladores de
o chão de barro das casas de taipa. É cantado por
culam pela região Sul, difundindo a tradição oral
coco, emboladores ou cantadores de embolada
mulheres e dançado por casais. Não utiliza instru-
perpetuada em pequenas comunidades
normalmente apresentam esse tipo de poesia
mentos e a base rítmica é marcada pela pisada dos
Na Pisada dos Cocos apresenta variantes de
improvisada tradicional em shows, festivais de
dançadores. A sonoridade que resulta do canto,
expressão cênica e musical típica da região Nor-
repentistas e outros eventos, ao som do pandeiro
somada ao ritmo da pisada, remete a um ritual in-
deste, mais especificamente dos estados de Ala-
e, mais raramente, de ganzás.
dígena. Também faz parte da memória do grupo a
goas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e
Para se tornar cantador de coco, dançador
Sergipe, a zona do coco. Trata-se de uma prática
ou tocador de bumbo, caixa e ganzá, reconheci-
coletiva que envolve, na maioria das vezes, grupos
do por aqueles que também participam da brin-
O grupo é formado pelas cantadeiras Maria
mistos, formados por homens e mulheres das áre-
cadeira ou do público tradicional, é necessário
do Carmo de Jesus, Nivalda Rosa Gomes do Nas-
as urbanas e da zona rural, de aldeias indígenas e
uma longa vivência comunitária, responsável
cimento e Maria Nazaré Nunes dos Santos, e pelos
comunidades quilombolas, nas quais a dança e a
pelo aprendizado, que tem na base a observação
dançadores José Lira dos Santos e Janaína Maria
música, integradas, estão presentes nos terreiros,
de como se canta, como se improvisa, como se
dos Santos, Edna Nivalda do Nascimento Silva e
nas festas populares e em ritos religiosos, do ca-
encaixa um verso para ser cantado em roda, de
Agnaldo José da Silva, Genivaldo Lira dos Santos e
tolicismo e de religiões afro-brasileiras. Coco, coco
modo a obter a resposta dos que estão na roda
Edilane dos Santos.
de roda, coco de tebei, coco de zambê, coco furado,
e o acompanhamento instrumental dos tocado-
samba de coco e sambada são denominações que
res. Para a brincadeira ser boa é necessário que os
identificam a comunidade a que pertence.
cantadores saibam improvisar, que tocadores sai-
A expressão poética musical faz parte da
bam imediatamente acompanhar a palavra can-
grande família do samba. Alia dança, canto, mú-
tada e que os participantes da roda cantem em
sica e poesia oral e se caracteriza como celebra-
coro a “resposta” ao verso improvisado do canta-
ção, festa comunitária, sendo também chamada
dor. Tudo repleto de situações da vida cotidiana.
de brincadeira e apreciada por pessoas de todas
Nos últimos 15 anos, tem crescido a produção
as idades. Os conhecimentos são de transmissão
de CDs e DVDs de grupos tradicionais de canto e
oral nas comunidades tradicionais, com singula-
dança que, por intermédio de músicos, de pesqui-
ridades nas diferentes localidades. Um exemplo é
sadores e de editais, têm conseguido ultrapassar
o coco dançado aos pares, isto é, em pareia e com
as fronteiras de suas comunidades, inserindo-se
trupé (tropel), referente ao som das pisadas fortes
algumas vezes no mercado cultural, ganhando vi-
com sapatos, tamancos ou chinelos, funcionando
sibilidade nas suas cidades e estados e até mesmo
como percussão.
no resto do país.
cantoria do rojão, associada ao uso da enxada na preparação da terra para o plantio.
https://vimeo.com/18675000 Documentário Tebei
Como gênero musical, o coco frequenta a século 20. Seu destaque no rádio, entretanto,
De pequenas comunidades para todo o Brasil
ampliou-se com artistas como o paraibano Jack-
O Coco de Tebei é praticado por um grupo de agri-
son do Pandeiro e o pernambucano Manezinho
cultores e tecelões da comunidade Olho D’Água do
Araújo, conhecido como Rei da Embolada nas
Bruno, na cidade de Tacaratu, sertão pernambu-
décadas de 1950 e 1960. A partir dos anos 1970,
cano, próximo à divisa com Bahia e Alagoas, que
indústria fonográfica brasileira desde o início do
Coco do Iguape Samba de Pareia da Mussuca Foto: Divulgação Sonora Brasil
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
47
Comunidade de remanescentes quilombolas que se empenha para manter as tradições herdadas de seus antepassados, o povoado de Mussuca, no município de Laranjeiras, próximo a Aracaju, Sergipe, tem a pesca e a cata de crustáceos, assim como a culinária, como suas principais atividades econômicas. É lá que se mantém viva a manifestação cultural do samba de pareia, cuja origem é estimada em 300 anos, relacionada a um ritual de nascimento, em que o grupo se apresenta, em pares – daí o nome –, para desejar as boas-vindas ao recém-nascido. Atualmente, é dançado por mulheres, enquanto os homens são os tocadores que sustentam o ritmo com dois tambores médio-graves e uma porca (cuíca). Completa a instrumentação um ganzá, tocado por uma das mulheres, e a pisada dos tamancos das dançadeiras como principal elemento rítmico. Embora não se caracterize como um folguedo, o samba apresenta dança coreografada e trajes padronizados. As letras das músicas fazem alusão a situações do dia a dia, normalmente com muita irreverência. O Samba de Pareia da Mussuca é liderado por uma mestra, dona Nadir, o que é raro nos grupos de tradição, e conta com a participação de Mangueira (Acrisio dos Santos), Carmélia dos Santos, Elenilde da Silva, Maria Edenia dos Santos, Maria Ednilde dos Santos, Cecé (Maria José dos
cionada com o mesmo tecido usado nas velas das
o gesto da umbigada. Apesar da prevalência de
Santos), Maria Lucia Santos, Maria Luiza dos San-
jangadas, tingida com a tinta retirada da casca do
homens, não há restrições à participação das
tos, Maria José dos Santos e Normália dos Santos.
cajueiro azedo.
mulheres. Os instrumentos são o caixão, feito de
Os integrantes do Coco do Iguape são pesca-
O Coco do Iguape tem o andamento mais
madeira e num formato que permite ao tocador
dores artesanais da praia homônima do litoral cea-
acelerado e uma dança mais pulada. A música
sentar sobre ele; o ganzá, espécie de chocalho fei-
rense, localizada no município de Aquiraz, primeira
mantém a estrutura de refrão fixo, apresentado
to com latas reutilizadas; e o triângulo, inserido a
capital do Estado, a 30 km de Fortaleza. Liderados
pelo mestre e cantado pelos brincantes, e estro-
partir de influências externas.
pelos mestres Raimundo da Costa, que desde os
fes emboladas pelos mestres, algumas criadas
Como a maioria dos integrantes são fami-
10 anos de idade pratica o coco de embolada, e
no calor da brincadeira. A dança acontece em
liares do mestre Raimundo, percebe-se o envolvi-
Chico Caçoeira, apresentam-se descalços, como os
pares, um de cada vez no meio da roda, com tro-
mento dos jovens com o coco e, em pelo menos
outros cocos do litoral, e com vestimenta confec-
cas constantes marcadas pelo convite feito com
um deles, já foi identificado o perfil de liderança
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
48
2 Show Lá Vai Maria, grupo Três Marias https://www.youtube.com/watch?v=HK9fx8aVHM8
para consolidar a continuidade do grupo por mui-
se expressar, celebrar e ao mesmo tempo questio-
referência no choro; Pâmela Amaro, mulher negra,
to tempo. Além dos mestres, participam Klévia do
nar conceitos e padrões culturais relacionados a
artivista, atriz, cantora, compositora e musicista
Iguape (Klévia Cardoso da Silva), Renato Cabral,
diversas formas de opressão. O grupo conta com
– toca pandeiro e cavaquinho; e a contrabaixista
Wellington Monteiro, Gatinho (João Anastácio de
a parceria e conselho de mestres e mestras como
e arranjadora Tamiris Duarte, que acompanha o
Carvalho), Caboquim (José Ailton da Costa Miran-
a Mestra Martinha do Coco (PE), Mestre Paraque-
mestre de cultura popular Tião Carvalho (Mara-
da), Altamiro da Costa e Adonai Ribeiro.
das (RS), Mestre Tião Carvalho (MA) e do babalaô
nhão), em São Paulo; todas porto-alegrenses.
É principalmente no município de Tibau do
Ìdòwú Akínrúlí (Nigéria). O repertório apresenta
A sonoridade do grupo é composta por vozes,
Sul, litoral do Rio Grande do Norte, que se pratica o
o trabalho autoral do grupo, visitando tradições
diversos instrumentos de percussão (alfaia, con-
coco de zambê, expressão cultural que teria chega-
como samba de coco, capoeira angola, jongo, forró
gas, ilu, matracas, ganzá, zabumba, djembe, agê,
do aos engenhos de cana-de-açúcar e às colônias
de rabeca, bumba meu boi, samba e afoxé.
agogô e pandeiro) e cordas (rabeca, contrabaixo e
pesqueiras da região por intermédio de africanos
Atualmente, o grupo é composto por cinco
cavaquinho). O projeto Três Marias nasce na estra-
escravizados. Como tantas manifestações da tra-
integrantes. Andressa Ferreira, percussionista, can-
da, entre passadas de chapéu nas ruas de Lisboa,
dição oral, correu o risco de desaparecer, até que
tora e compositora brasiliense, é filha de piauien-
Cavalcante, Galícia e no metrô do Rio de Janeiro, a
no fim do século 20, o mestre Geraldo Cosme, li-
ses e vivenciou em casa e nas festas de família a
festivais e salas de teatro internacionais com a Cia
derando um grupo familiar, retomou o zambê em
música nordestina como forró, xote e samba de
Mamulengo Presepada (DF).
sua forma original: com dois tambores, um deles o
coco. Rabequeira, violinista, cantora, percussio-
próprio zambê, também chamado de pau furado
nista, compositora e antropóloga, Gutcha Ramil é
ou oco de pau, maior e mais grave, e o chama, am-
natural de Pelotas/RS e em, uma família de músi-
bos construídos artesanalmente com troncos de
cos, desde sempre conviveu com a música dentro
árvores da região. Podem aparecer outros instru-
de casa. As duas coordenam o grupo Três Marias,
mentos de percussão, no caso do grupo do mestre
do qual fazem parte ainda a percussionista Thayan
Geraldo, até lata de tinta.
Martins, que já tocou com muitos músicos que são
O canto é puxado pelo mestre e respondido pelo coro de vozes, e a dança acontece em uma roda que mantém ao centro os tocadores. Os brincantes se revezam reverenciando o tambor e realizando passos livres que lembram movimentos da capoeira e do frevo. Somente homens praticam o coco de zambê. O grupo é formado por Didi (Djalma Cosme da Silva), Uzinho (Severino de Barros), Tonho (Antonio Cosme de Barros), Mestre Mião (Damião Cosme de Barros), Zé Cosme (José Cosme Neto), Kéké (Ckebesson da Silva), Pepé (Ederlan da Silva) e Beto (José Humberto Filho de Oliveira).
Três Marias bebe na fonte do coco[2] Engajadas na manutenção e reinvenção de expressões tradicionais, as Três Marias percorrem uma caminhada de valorização e empoderamento das mulheres na música, no toque dos tambores e no protagonismo nas brincadeiras e nas tradições populares. O grupo radicado em Porto Alegre mostra a expressão de mulheres musicistas que, por diversos caminhos, encontram na música e nas artes da cultura popular a possibilidade de se fortalecer,
Três Marias, grupo de mulheres musicistas radicado em Porto Alegre, conta com a parceria e o aconselhamento de mestres da cultura popular Foto: Ramon Moser
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
Por Alejandro Brittes Compositor e intérprete de música regional do litoral argentino, com 30 anos de trabalho pela difusão do chamamé. Cursou Música Clássica na Escola Juan Pedro Esnaola, tem sete álbuns gravados e está compondo a ópera Chamamé: Terra sem Males, com estreia prevista em São Miguel das Missões e na Arena de Verona, Itália.
1 Coleti, Giovanni Domenico (Vol. 2, pp. 280-281 e 330). 2 Tradução do Avá (Nossa Gente) denominação dos guaranis quando falam de si mesmos, (1974:2)
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Magali de Rossi Produtora e gestora cultural licenciada em História, com especialização em Realidade Brasileira Sociocultural pela UFRGS. É criadora da Caravana Chamamecera e da primeira ópera sobre o chamamé, chamada Terra sem Males, com estreia prevista para 2018.
CHAMAMÉ: UMA HISTÓRIA PARA SER CONTADA O artigo propõe o debate em torno do imaginário
questionamento: de onde tudo isso surgiu? por
ses. Nos últimos anos, vem sendo cada vez mais
simbólico e da memória coletiva, passando por
que somos assim? que histórias esse ritmo tem
executado e utilizado por diversas instituições
aspectos da historiografia vigente, de vivências e
a nos contar?
para formação de plateia, tanto em seu país
registros orais sobre o chamamé. Um desafio para
O conceito da “terra sem males” foi atribuído
de origem como no Brasil e em outros países.
que o leitor amplie sua lupa e olhe desde cima
pelos guaranis ao seu vasto território, e é nele que
Definimos o chamamé como a “world music do
para o tema, para que possa pensar nas frontei-
solidificam as bases para a formação musical do
século 21”.
ras como tão somente traçados geopolíticos, es-
chamamé, esse patrimônio vivo, imaterial, irregu-
paços mutáveis no âmbito da memória. Também
lar, circular e cotidiano que temos aqui e que nos
perceberá a música como resultado de um longo
identifica e nos liga às gerações passadas e nos
A ritualidade do chamamé e seu berço originário
processo e verá de que forma ela cumpre uma
conecta com as futuras através de nosso “DNA
O chamamé é resultado de um processo de acul-
função no imaginário social e na memória cog-
musical” e de nossa memória coletiva.
turação com mais de 400 anos de construção
nitiva. Assim, poderá compreender um pouco o
O gênero musical foi gestado no território
rítmica. Para conhecer sua origem, entender seu
das “30 Reducciones Jesuíticas Guaraníes”, da
significado ritualístico e sua formação enquanto
Província do Guayrá[1], e nasceu no nordeste ar-
gênero, além de compreender sua eleição, dentro
A história de um povo e a essência da Terra Sem Males
gentino, na província de Corrientes, oriundo de
da memória coletiva, como parte da identidade
um processo típico de aculturação. Esse ritmo re-
de uma vasta região, é necessário remontar o
A música e a terra são indissociáveis. Ambas nu-
vela uma espécie de arquitetura emocional capaz
passado. Da cosmovisão da etnia Avá-guaranis[2]
trem-se, suas frequências dialogam, mesmo que
de edificar pontes imaginárias de latinidade, entre
aos processos históricos de ocupação territorial
de maneira imperceptível e, juntas, equilibram a
as distâncias cartográficas e fronteiras impostas,
europeia do final do século 17 até os últimos
humanidade e dão ao povo sua identidade. Talvez
unindo gerações em seu entorno.
anos do século 18, quando teve início, no sul da
chamamé e sua ritualidade.
por isso o chamamé seja um dos poucos ritmos
Consumido por aproximadamente 35 mi-
América, a intervenção jesuítica com o projeto
musicais que traz consigo o estranho fervor do
lhões pessoas, possui adeptos em muitos paí-
de evangelização missionária das populações
música
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
50
3 Violão na língua guarani. 4 A Guerra Guaranítica (1753-1756) foi o conflito armado envolvendo as tribos Guarani das missões jesuíticas contra as tropas espanholas e portuguesas, como consequência do Tratado de Madri (1750) que definiu uma linha de demarcação entre os territórios coloniais espanhol e português na América do Sul 5 Tau Golin – Cartografia da Guerra Guaranítica
Alejandro Brittes está compondo a ópera Chamamé: Terra Sem Males Foto: dyogo Amorin
Fiesta Nacional del Chamamé, em Corrientes, Argentina Foto: Turismo Corrientes
autóctones, mais conhecidas como Reducciones jesuíticas guaraníes, da região do Guayrá.
A música barroca possui inúmeras caracterís-
Tais características fizeram com que os
ticas, entre elas a substituição das escalas modais
guaranis aprendessem rapidamente a música
Essas reduções jesuíticas se estendiam da
gregas, com a utilização do moderno sistema tonal
barroca, pois possuíam aptidão natural e divi-
América Central até o sul da América do Sul e se
maior e menor, definindo a harmonia e as tona-
diam a mesma compreensão. O sedimento para
consolidaram em todas as esferas do conjunto
lidades acrescidas da criação do baixo contínuo.
a formação do chamamé está, então, nas bases
missionário, nos seguintes países: Brasil (nos Sete
Essa mudança enriqueceu os contrapontos entre
seculares guaraníticas e europeias presentes no
Povos das Missões, no Rio Grande do Sul); Argenti-
as melodias graves e agudas, a partir de uma orna-
ritmo como o conhecemos e que dão a esse gêne-
na (no litoral e na província de Corrientes, em parte
mentação muito própria: notas agudas simbolizam
ro musical a característica de sagrado.
das províncias de Entre Rios e de Misiones, circun-
a tentativa de alcançar a deus; já o baixo contínuo,
dado o Rio uruguai); e Paraguai, onde ocorreu a
com as notas graves, representa o mundano ou a
primeira redução.
vida terrena.
música Barroca e música GUarani na estrUtUra mUsicaL do cHamamé
A população guarani tem uma cosmovisão
Nota-se que nesse momento histórico exis-
A partir da metade do século 18 houve grandes
muito complexa e profunda, segundo a qual a mú-
te, em continentes diferentes, uma cosmovisão
mudanças na ocupação territorial onde reinavam
sica é algo natural, bem como a dança, e ambas
similar em relação à música. de um lado, e des-
os 30 povos jesuíticos. A primeira foi em 1750,
cumprem função ritualística como uma reza, ser-
de sempre, os indígenas guaranis cantando seus
quando da assinatura do Tratado de Madri, que
vindo como ferramentas para manter contato com
cantos tradicionais com voz aguda para alcançar
estabeleceu um acordo de troca de territórios
o universo. utilizam instrumentos musicais percus-
as suas divindades e tentando, através dos ins-
entre as coroas, definindo uma linha imaginária
sivos e de cordas como rabeca e o M’baracá , que,
trumentos percussivos e dança, falar com a terra.
de demarcação entre os territórios coloniais es-
juntamente com a dança, fazem o contato com a
de outro lado, na Europa, a música barroca feita
panhol e português na América do Sul[5]. Essa li-
terra, ou melhor, com a “terra sem males”, e seu
para deus, com suas notas agudas para alcançá-
nha passava sob as reduções orientais, ou seja, os
canto é elevado aos céus em busca das divindades.
-lo, e o baixo contínuo com suas notas graves, re-
Sete Povos ao leste do Rio uruguai. Em 1753, os
Ao chegarem, os padres jesuítas se depararam com
presentando a impureza humana. Fica claro aqui
impérios invadiram os Sete Povos com seus exér-
essa realidade. Logo trataram de adotar, em seus
que os músicos barrocos europeus e os guaranis
citos de mercenários bandeirantes portugueses e
projetos educativos em prol da evangelização, ins-
entendem e sentem a música como Rito Sagrado.
espanhóis, iniciando a Guerra Guaranítica[2]. Pra-
trumentos como música, arquitetura, pintura, dan-
Ambos estabelecem uma dualidade, um diálogo
ticamente toda a população indígena foi morta
ça, escultura e literatura, baseados no movimento
invisível entre as duas esferas, o mundano ou ter-
e casas, plantações e igrejas foram queimadas e
barroco, predominante na Europa naquele período.
reno e o divino.
destruídas. Os poucos sobreviventes foram bus-
[3]
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
51
6 Dominus ac Redemptor Texto apostólico promulgado no dia 21 de julho de 1773 pelo Papa Clemente XIV, pelo qual extinguia a Companhia de Jesus por completo. 7 Esteros del Iberá (junção do espanhol, esteros com o guarani ý berá, “água brilhante”) é uma mistura de pântanos, lagos, lamaçais e cursos d’água no centro e centro-norte da Argentina, na província de Corrientes. Os Esteros formam o segundo maior complexo de zonas úmidas do mundo, só não sendo maior que o Pantanal, no Brasil. São ecossistemas de origem pluvial, com uma área entre 15 000 e 20 000 km². https://pt.wikipedia.org/wiki/Esteros_del_Iber%C3%A1 8 Terminologia ou nomenclatura criada por Magali de Rossi para definir conceito sobre aspectos antropológicos, ritualísticos na escolha da divisão musical 6/8 no chamamé. Além disto, o conceito nos remete a uma matriz “universal”, segundo a qual diversas culturas o usam em suas músicas em uma única situação específica: Para se conectar com suas divindades.
tonal. Eixo este que representa o homem e que, a partir de sua humanidade, tenta alcançar a Deus. A segunda premissa é a herança da polifonia na estética do chamamé, ou seja, a presença de uma multiplicidade de sons harmoniosos. Um exemplo disso são as obras com participação dos conhecidos duos vocais, como Mis Amores (versão de Tránsito Cocomarola), na qual o duo vocal realiza a melodia principal, enquanto o fundo musical instrumental é levado a cabo pelo bandoneón e pelo acordeão, em uma polifonia melódica, dando sustento harmônico à melodia principal. Ao substituirmos as vozes do duo vocal pelo primeiro e segundo violino e o acompanhamento instrumental do acordeão e do bandoneón por uma viola e um violoncelo, temos um quarteto de cordas próprio do barroco, respeitando suas conjugações melódicas e harmônicas de contrapontos e variações. car refúgio do outro lado do Rio Uruguai, nas
do Sul, juntamente com os sobreviventes guaranis
Os duos vocais se caracterizam por terem vozes
reduções da Argentina.
do lado Argentino, espalharam-se pela província
agudas e separadas por intervalos de terceiras e
[7]
de Corrientes, ocupando os Esteros de Iberas
sextas, oitavas, quartas, quintas etc, o que é co-
através do Rei Carlos III, publicou a Pragmática
e assentando-se em aldeamentos pelo litoral ar-
mum na música barroca e que hoje utilizamos na
Sanción de 02 de abril 1767, cujo objetivo foi a
gentino, trabalhando como peões ou com práticas
estrutura musical e identidade do chamamé.
expulsão de todos os jesuítas que estavam nos
agrícolas. Outros ainda emigraram para os centros
A herança guarani, talvez a mais importante,
territórios de domínio espanhol. Em 1773, com
urbanos para trabalhar como comerciantes, lu-
é oriunda das práticas religiosas ritualísticas, exer-
a Dominus ac Redemptor , a Igreja dissolveu a
thiers, artesões etc.
cidas pelo pajé. Era ele quem tocava o M’baraká
Na década seguinte, o império espanhol,
[6]
Companhia de Jesus e as reduções argentinas re-
Apontamos, então, algumas premissas que
(violão) para entrar em um campo metafísico
ceberam outras congregações religiosas que não
comprovam que o chamamé se origina na influ-
através do “rasguear” do instrumento, criando um
tinham as mesmas práticas de ensinamento dos
ência do barroco europeu na música guaranítica.
vértice de frequência sonora, um mantra que, no
jesuítas, fragilizando a organização. Essa situação
A primeira delas é que todo chamamé é tonal e
decorrer da história, transforma-se e dá uma iden-
favoreceu a ação dos bandeirantes portugueses e
não modal. Ao analisar os registros fonográficos
tidade singular ao gênero.
dos conquistadores espanhóis que começaram a
encontrados nos princípios do século 20, ou os
Essas são algumas constatações que provam
invadir sistematicamente as reduções, de olho no
chamamés resgatados do folclore popular de au-
que o chamamé se formou nas bases de duas
gado e nas grandes extensões de terra. Com isso,
tores anônimos, como El Carau, recopilada pelo
grandes influências, a barroca e a guarani – sem o
os guaranis ficaram sem proteção e acabaram fu-
músico Emílio Chamorro, ou La llorona, resgatada
encontro dessas duas culturas, não existiria o rit-
gindo dos aldeamentos cristãos. De 1776 a 1810,
pelo bandoneonista argentino Maurício Venezue-
mo. Por ser algo presente, vivo e inerente à identi-
durante as guerras de independências hispânicas,
la, e da primeira gravação, intitulada Corrientes
dade cotidiana, não necessita ser resgatado.
findou-se por completo a experiência da Compa-
Poty (La Flor de Corrientes), registrada em 1930
nhia de Jesus.
por Samuel Aguayo, na Argentina, percebemos
O fim das reduções não foi o fim dos conhe-
que essas músicas e suas respectivas gravações
A divisão musical 6/8 – a matriz ancestral
cimentos musicais ensinados pelos padres em sua
são tonais, o que se repete nos demais registros do
Uma das perguntas instigantes em torno do cha-
jornada junto aos guaranis e nem o fim da tradi-
período até hoje. Essa é uma característica musical
mamé é: por que esse ritmo possui a divisão mu-
ção musical dos povos originários. Pelo contrário,
herdada do barroco ocidental, movimento artísti-
sical 6/8 – binário composto e não quaternário ou
os que sobreviveram à Guerra Guaranítica e ao
co em que se deixa de lado os modos gregos para
ternário? Esse questionamento aparentemente
massacre ocorrido nos Sete Povos do Rio Grande
basear a composição no desenvolvimento do eixo
sem importância na busca pelas origens musicais
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primeiro SEMESTRE
2018
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9 p.ext. Lugar onde algo é gerado e/ou criado, fig. aquilo que é fonte ou origem, ETIM lat. matrix,īcis 'mãe, origem; útero'– Dicionário online: https://www.dicio.com.br/ 10 Ascendência; a reunião das gerações anteriores de alguém: os índios cultuam seus ancestrais: Dicionário online: https://www. dicio.com.br/ 11 https://www.youtube.com/watch?v=kD5Hrzqbx7Y 12 http://www.abcdogaucho.com.br/painel-debatera-a-influencia-do-chamame-na-formacao-da-identidade-musical-do-rs/ 13 O Sheng é um instrumento musical chinês composto por tubos verticais. Alguns acreditam que Johann Wildeepere Amiot viajou para a China e trouxe os primeiros shengs para a Europa em 1740 e 1777, respectivamente, embora haja evidências de que instrumentos de palheta livre musical semelhantes ao shengs fossem conhecidos na Europa um século antes.
do chamamé pode ser uma das provas pontuais da contribuição dos guaranis na eleição da divisão. Sobre isso, apresentamos um novo elemento para debate em torno da origem do chamamé, a matriz[9] ancestral[10][8]. O músico e investigador Pocho Roch, em 2005, documenta em seu artigo Chamamé: Expresión cultural musical correntina três formas distintas dos povos guarani-avá executarem canto, dança e música. A fim de comprovar a ritualidade do chamamé, ele denomina Porãhei os cantos autênticos e verdadeiros, Guau ai os pequenos cantos sagrados e koty hu os profanos. Para Roch, a diferença entre os cantos se refere aos instrumentos utilizados, a quem os executa e ao método. O pesquisador afirma ainda que o uso da divisão musical 6/8 deixou de ser uma reza-dança quando iniciou a
Ópera sobre o chamamé tem estreia prevista em São Miguel das Missões (RS), uma das 30 reduções jesuíticas onde se originou o ritmo, da fusão das culturas guarani e barroca Foto: arquivo de Magali de Rossi
presença dos jesuítas. Em conversa com o cacique Vherá Poty, em
cultura afro utiliza a divisão 6/8 em situação simi-
Feito esse breve aporte, destacamos que essa
2017, em Porto Alegre, durante a pré-produção
lar a dos guaranis. O povo negro, quando realiza
matriz ancestral, identificada na divisão rítmica, é
da ópera Terra Sem Males, a origem do Chamamé,
suas comemorações tradicionais e festejos, toca o
inerente à formação musical do chamamé. O gê-
perguntamos: “vocês possuem músicas em 6/8 que
tambor na divisão 4/4. Já quando quer que os seus
nero poderia ser 4/4, mas a base ritualística e an-
possam ser apresentadas durante o espetáculo?”
orixás desçam ao plano terreno, muda a batida do
cestral dos guaranis, reforçada a partir das peças
Ele responde: “sim, claro! Porém, não podemos
tambor para 6/8.
barrocas escritas e executadas nos 30 povos em
executar em um palco, por que essa divisão mu-
Ao analisar as culturas além-mar, como a cel-
6/8, deixou gravado no imaginário popular algo
sical somente pode ser feita na casa espiritual e
ta, que data de até 4 mil anos atrás, percebe-se que
que nunca foi esquecido: a sua matriz ancestral e
pelo pajé para falar com as nossas divindades.” Fica
as principais músicas cantadas e lembradas são
sagrada. Hoje, século 21, ao executar esse ritmo,
claro que o 6/8 nunca foi esquecido pela memória
aquelas relacionadas a lendas ou feitas para exal-
estamos nos conectando ao universo, através da
coletiva guaranítica e tampouco deixou de ter pa-
tar a natureza, considerada uma divindade na cos-
batida ou do “rasguear” do violão, herança guara-
pel simbólico, mesmo com o processo missionário
movisão dos celtas, e são executadas em espaços
nítica que nos condiciona a um transe emocional,
jesuítico.
fechados e religiosos. Culturas milenares, separa-
a uma espécie de frequência quântica.
Seguindo a análise da matriz ancestral, a mú-
das por continentes, utilizam a divisão 6/8 quando
sica barroca também utilizava a divisão musical 6/8
realizam seus rituais sagrados e o quaternário 4/4
e tinha como função simbólica alcançar a Deus.
para festividades. Os guaranis utilizam o compasso
A mais famosa do período foi a Jesus bleibet meine
quaternário para celebrações a céu aberto ou em
A importância do acordeão no chamamé e a relação com a dualidade: terra e divino
Freude BWV 147, de J.S.Bach[11], uma cantata em
seus rituais de colheita e de fatos do cotidiano.
Além do violão, outro instrumento de imensa
compasso binário composto muito executada em
A eleição do compasso composto como a di-
importância no chamamé é o acordeão. Existe
igrejas e salões na Europa. Muitas suítes cataloga-
visão musical do chamamé deve-se à existência de
uma identificação profunda com o som do ins-
das como giga ou sonatas de chiesas são músicas
uma memória de longa data sendo preservada nos
trumento e com a sua função simbólica. Com
em 6/8, executadas também nas missões jesuíticas.
costumes e cumpre um papel simbólico importan-
possível origem na China, a milenar existên-
Certamente a música barroca, com divisão binária
te. Guardada em nossa memória cognitiva, a 6/8
cia do acordeão data de 2 mil anos. Pesquisas
composta, não foi estranha para os guaranis.
pode ser considerada a divisão da alma, enquanto
apontam para uma derivação do instrumento
O historiador Luiz Cláudio Nunes Knierim,
a 4/4 representa o terreno e o corpo, também com
de tubo, chamado Sheng[13]. Segundo o padre
também em 2017, no Painel sobre Chamamé na
papel importante nas culturas ancestrais, pois ce-
Julian Zini, em sua pesquisa sobre as origens
Casa de Cultura Mario Quintana , afirmou que a
lebrar os feitos e as conquistas é celebrar a vida.
do chamamé, o povo chamamecero escolheu o
[12]
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2018
53
acordeão porque se identificou com o órgano
O acordeão logo foi adotado no folclore po-
no; a mão direita executa as notas agudas com o
misional, construído quando da chegada de An-
pular, especialmente no chamamé, possivelmente
objetivo de dialogar com o “divino”. Possivelmente,
tônio Sepp na Redução de Yapejú, na Argentina.
pela sua praticidade e por substituir outros tantos
esses elementos também tenham contribuído para
A intenção era reproduzir os órgãos de tubo eu-
instrumentos de uma orquestra. Existem grava-
que o acordeão e o bandoneón fossem os princi-
ropeus e garantir a aplicação do baixo contínuo,
ções originais que revelam chamamés magistral-
pais instrumentos do ritmo, acompanhados pelo
acompanhamento importante na música barro-
mente executados por orquestras. Entretanto, é
violão. É tão profundo, em nossa compreensão, o
ca. Ainda segundo o padre Zini, o órgano misio-
inviável uma orquestra ir para um fundo de campo
valor simbólico no imaginário do mencho ou do
nal feito nas reduções jesuíticas é responsável
tocar um baile, pelo custo e pelo transporte. Já o
peão, que quando o acordeonista, na execução
pela escolha e inclinação do “ouvido” do povo
acordeão e o violão, presentes no dia a dia do peão
de um chamamé, toca uma nota aguda e evoca
chamamecero para o acordeão moderno.
e do camponês, podiam tranquilamente substituir
um sapucay, há uma espécie de descarga elétrica
um quarteto de cordas.
produzida pelo corpo quando o cérebro resgata da
No chamamé, o acordeão tem sua entrada na América do Sul após a grande emigração eu-
Sem descartar as questões de praticidade
ropeia de alemães, poloneses e, principalmente,
e identificação com o órgano misional, acredita-
italianos, a partir 1860. Na Argentina, país de ori-
mos que o fator determinante para a adesão ao
Trata-se de um ritmo com profundo valor
gem do ritmo, existem registros de fontes orais,
instrumento está relacionado ao campo simbólico.
antropológico, simbólico e histórico que mantém
conforme documentadas por Pocho Roch, de que
O acordeão atende à dualidade mundano-divino
viva, através do imaginário coletivo, a função ri-
em 1865, durante a guerra da Tríplice Aliança
presente na cosmovisão guarani e na música bar-
tualística da música, que perdeu grande espaço na
contra o Paraguai, já se executavam chamamés
roca. Simbolicamente, os baixos do instrumento
cena cultural moderna.
com acordeão e violão.
conectam ao tempo musical, à terra, ao munda-
Rito guarani na Aldeia Tiaraju, na BR 280, em Araraqui (SC) Foto: Bárbara Elice
memória o simbolismo do divino, o “Universo” realizando a conexão.
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PRiMEiRO SEMESTRE
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POR MARCO AuRELiO LOPES FiALhO CRíTiCO dE CiNEMA NO BLOG CiNEFiALhO.BLOGSPOT.COM.BR E ANALiSTA EM AudiOViSuAL dO dEPARTAMENTO NACiONAL dO SESC.
o lobo à espreita: uma homenagem ao centenário De ingmar bergman
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
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1 ORFALI, Kristina. Um modelo de transparência: a Suécia. In Ariès, Philippe e Duby, Georges (org.). História da Vida Privada, vol. 5. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. P.609. 2 ARMANDO, Carlos. O Planeta Bergman. São Paulo: Oficina de livros. 1988. p.59.
Bergman foi definitivamente um artista sueco.
pelo centro (partido de concentração liberal), até a
vezes, participantes diretos de “pequenas” guer-
Suas maiores influências artísticas vêm do pró-
direita (partido progressista conservador).
ras pelo mundo afora.
prio teatro e do cinema sueco: ibsen, Strindberg
Pelo menos em dois importantes eventos a
Apesar de a Suécia manter a neutralidade no
e Victor Sjöström. No panorama do cinema mun-
Suécia pôde afirmar sua posição de neutralidade
período pós-guerra, os ecos da Guerra Fria resso-
dial, influenciou mais outros artistas do que foi
perante o continente e o mundo. Primeiro, duran-
am também na aparente frieza sueca, mesmo que
por eles influenciado. Seu estilo é inconfundível,
te a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados
esta não seja vislumbrada de maneira exacerbada.
marcante. diálogos densos, câmera que penetra
unidos convidam a Suécia a engrossar as fileiras
Em 1952, Bergman filma Monika e o Desejo, filme
rostos e os revela, em especial os das mulheres.
da Entente, tendo como resposta uma categórica
no qual o conflito patrão/trabalhador é latente,
As atrizes foram suas grandes estrelas e para elas
recusa. Em um segundo momento, quando a Fin-
até mesmo em uma análise superficial. Mas, no
dedicou personagens extremamente sensíveis e
lândia convida a Suécia a juntar-se aos exércitos
todo, esses conflitos continuam muito escamo-
eloquentes. Teve relacionamentos amorosos com
brancos na luta contra os bolcheviques russos, a
teados. Aqui é pertinente lembrar a observação
algumas de suas musas. São musas de muitos fil-
resposta também foi uma recusa. Essa posição de
da historiadora Kristina Orfali, de que a Suécia
mes. difícil esquecer o silêncio enigmático e feroz
neutralidade será fundamental para um entendi-
da social democracia, do final dos anos 1940, é
de Liv ullmann em Persona e da sua angustiante
mento mais apurado acerca do cinema bergmania-
“poupada da Segunda Guerra Mundial, mantém
Jenny em Face a Face; do sofrimento da persona-
no, considerando que os impactos desta postura
intacto seu aparato produtivo e surge aos olhos
gem de harriet Andersson em Gritos e Sussurros
isenta e introspectiva que o país assume no seu
da Europa devastada como um país da utopia
e sua intempestiva Monika em Monika e o Dese-
fazer político, nos âmbitos interno e externo, tam-
materializada, ‘os americanos da Europa’”. Kristi-
jo; do carisma inebriante de Bibi Andersson em
bém se reflete em seu cotidiano e na forma com
na acrescenta ainda que “a imprensa, com suas
O Sétimo Selo e Persona; o olhar penetrante de
que os suecos encaram a própria vida.
manchetes, contribuiu para criar a imagem de
ingrid Thulin em Morangos Silvestres e sua desa-
Com a predominância do partido social de-
uma Suécia ideal: ‘A Suécia, Estado social moder-
vergonhada Vogler em A Hora do Lobo; da vaidosa
mocrata (de esquerda) a partir de 1920, a Suécia
no’; ‘Aqui não existe fome nem miséria’; ‘Gênese
e egocêntrica mãe vividamente interpretada por
inicia uma trajetória na qual as reformas sociais
da harmonia social’, enfim, modelo material que
ingrid Bergman em Sonata de Outono. dentre
serão as grandes protagonistas, aprofundadas
fascina os franceses do pós-guerra.”[1]
vários, esses são alguns exemplos de femininos
de 1936 em diante com o desenvolvimento das
Bergman não comungava dessa propensão à
expressivos na obra bergmaniana.
instituições de assistência e seguridade social. As
neutralidade política adotada por seu país. deixou
medidas propiciam, em paralelo, um progresso
isso claro em uma entrevista à época do lança-
sUécia, essa nossa desconHecida
industrial intenso, fundamental para que a Suécia
mento do filme Vergonha (1968): “este filme está
Apesar de situada na Europa, epicentro de impor-
consiga vencer a grande crise econômica mundial
ligado ao sentimento de culpa que envergonhava
tantes transformações históricas da humanidade,
desencadeada pela quebra da bolsa de Nova York
a Suécia inteira, neutra durante a Segunda Guerra
a Suécia manteve-se numa posição de neutrali-
em 1929. Ainda mais surpreendente foi a perma-
Mundial e testemunha do terror.[2]
dade perante os grandes acontecimentos políticos
nência da neutralidade bélica da Suécia durante
Mas o modelo de neutralidade sociopolítica
e sociais do século 20, o que fez com que o país
a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o que
adotado pela monarquia parlamentar não pode
desenvolvesse características muito singulares e
lhe garantiu a posição de ser modelo e pioneiro
tudo explicar. do ponto de vista cultural, há um
ficasse alheio do imaginário mundial. Pouco co-
na implantação de um Estado do bem-estar no
isolamento ocasionado também por outros fato-
nhecemos sobre a sua história e sua cultura. Por
mundo pós-1945.
res, um deles provenientes do clima. O clima sueco
isso mesmo falaremos um pouco sobre esse país
A partir do fim da Segunda Guerra, em 1945,
influencia muito na mentalidade do país: o inverno
tão enigmático e situado em uma região muito fria
desenha-se um novo mapa político mundial com
é rigoroso e esse frio excessivo agrega uma at-
do planeta.
a formação de dois blocos polarizados: de um
mosfera sombria. O grau de pobreza é ínfimo, mas
Em quase toda a primeira metade do século
lado o socialista (uRSS), de outro, o capitalista
o suicídio é um fato recorrente no país, causado
20, a Suécia foi governada por uma monarquia
(EuA). Nesse momento histórico, o acirramento
pela chamada ‘angústia da floresta’, um sentimen-
parlamentar, sob a égide do reinado de Gustavo
ideológico é um elemento norteador e causador
to comum que persegue os suecos, uma solidão
V (1907-1950). Esse modelo de gestão política foi
de conflitos, não mais situados na Europa, mas
mergulhada na natureza hostil. A religiosidade
responsável pelo fortalecimento dos partidos po-
agora localizados em países fora do eixo de po-
ascética dos luteranos, somada a um racionalismo
líticos, organizados em um amplo espectro que ia
larização. inaugura-se então a chamada Guerra
exacerbado, não supre a ausência do calor huma-
da esquerda (partido social democrata), passando
Fria, com EuA e uRSS como financiadores e, às
no. E Bergman, apesar de ter sido educado nesse
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PRiMEiRO SEMESTRE
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3 4 5 6
BJÖKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 1977. p.12. BERGMAN, Ingmar. Lanterna Mágica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1988. 2ª Edição. p.13. BERGMAN, Daniel. Crianças de Domingo. Filme. Roteiro Ingmar Bergman. Suécia. 118’. 1992. BERGMAN. 1988. p.21.
contexto cultural, tentou em sua obra estabelecer um visível lastro crítico em relação a essa herança. impossível não recordar aqui das suas próprias palavras mordazes: “Fiquei à mercê de uma educação literalmente medieval, feita de maus tratos físicos e psicológicos que visavam destruir toda e qualquer manifestação natural de vitalidade”.[3] Bergman, nessa citação, expõe um dado fundamental e que alicerça a história da Suécia. desde o século 12, a questão religiosa possui um fator primordial de unidade do reino sueco, e, desde lá, demarcou uppsala – cidade onde Bergman nasceu – como a capital religiosa da Suécia.
BerGman, Um FUracão siLencioso ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918,
A primeira ligação de Bergman com o cine-
Aos 20 anos estreou no teatro como dire-
em uppsala, Suécia. Filho de um pastor luterano,
ma ocorreu aos nove anos de idade, no natal de
tor, função que nunca abandonou, e que exerceu
teve uma educação rigorosa e autoritária, calcada
1927, quando “não resistiu à tentação de ver o ir-
paralelamente ao cinema, primeiro como rotei-
em valores e costumes como os da confissão, cas-
mão presenteado com um projetor e sugeriu uma
rista, depois como diretor, em 1945, quando di-
tigo, pecado, perdão e indulgência, que marcaram
barganha que terminou sendo definitiva para o
rigiu Crise, seu primeiro filme. Mas a influência
significativamente sua trajetória como homem e
futuro de sua vida: trocou um exército de solda-
do teatro se fez marcante em toda sua obra ci-
como artista.
dinhos de chumbo pelo cinematógrafo”.[6]
nematográfica.
Em sua autobiografia, intitulada Lanterna
Aos 12 anos, Bergman adquiriu toda a obra
O ano de 1940 foi um divisor de águas para
Mágica, o diretor sueco descreve inusitadas pu-
de August Strindberg (1849-1912) contra a von-
a carreira artística de Bergman. Em 1940, assu-
nições que sofreu em sua infância: sempre que
tade do pai, que ameaçou jogá-la fora. Astuta-
miu a função de diretor-assistente no Teatro
contava uma mentira recebia castigos constran-
mente escondeu em seu armário e devorou aque-
dramaten, em Estocolmo, lugar que ocupou até
gedores, como desfilar vestido de menina ou ser
le que se tornaria para ele um grande mestre.
1942. Ainda em 1940, assinou um contrato que
trancafiado em um armário. é ainda nesse perío-
dele passou a admirar as críticas cruéis à família
durou quatro anos como roteirista na Svensk
do que vivencia sentimentos como vergonha ou
burguesa sueca. Mais à frente dirigiu diversas de
Filmindustri, empresa que, cinco anos depois,
humilhação, temas explorados sistematicamente
suas peças para o teatro.
apoiou sua estreia como diretor de cinema. Em
em suas obras. No filme Crianças de Domingo,
Ainda adolescente, deixou a família e foi viver
1944, assumiu o cargo de diretor do Teatro Mu-
dirigido pelo seu filho daniel Bergman, a partir de
em Ganula Stam, bairro de Estocolmo, tradicional
nicipal de helsingborg, no qual permaneceu até
um roteiro do próprio ingmar Bergman, assiste-
reduto de artistas. Lá, Bergman se envolveu com
1946. Nesse mesmo ano, tornou-se o primeiro
-se a vários momentos de humilhação, algumas
o teatro e com a literatura, sendo influenciado
diretor do Teatro Municipal de Göteborg, ficando
impostas pelo pai, outras por crianças mais ve-
principalmente pelo já citado dramaturgo August
lá até 1949. Em 1954, já usufruindo de sua fama
lhas. Nesse filme há uma sequência que vale ser
Strindberg, do qual herdou as personagens femi-
no cinema, assumiu a função de diretor no Teatro
mencionada. Já no auge dos seus 60 anos de
ninas destruidoras e as figuras masculinas destru-
Municipal de Malmö, até 1960.
idade, ingmar vai visitar o pai, bem idoso, ago-
ídas. desse ambiente também assimilou o tema
devido ao trabalho intenso no teatro, os pri-
ra entrevado e quase à morte. Em uma conversa
da dúvida sobre a existência de deus, resultado do
meiros filmes de Bergman sofreram uma signifi-
entre os dois, o filho dirige a ele, friamente, dura
contato com as ideias pessimistas do filósofo So-
cativa influência dessa sua formação. Ele próprio
palavras. diz que não o perdoava pelas humilha-
ren Kierkgaard, além de ter conhecido um dos pa-
reconheceu que os primeiros filmes eram teatrais
ções que sofreu, devolvendo ao pai a humilhação
triarcas do cinema sueco, o diretor Victor Sjostrom.
em demasia pelo fato de ainda não se sentir fa-
degradante que tanto experimentou na infância,
do autor do clássico O Vento, estrelado pela atriz
miliarizado com a técnica cinematográfica. Essa
sem levar em consideração que o velho dava os
Lilian Gish, absorveu a compreensão da natureza
intimidade só vai começar com o filme Juventude
últimos suspiros em seu leito.
como elemento de sustentação dramática.
(1951). “Pela primeira vez, eu tinha a impressão de
[4]
[5]
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PRiMEiRO SEMESTRE
2018
57
7 BJÖRKMAN. 1977. p.31. 8 COTA, Ricardo. http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm 9 TRUFFAUT, François. Os Filmes da Minha Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1989. p.278.
trabalhar de uma maneira pessoal, com um estilo
obra foi, filme a filme, refletindo questões vitais
um cinema ao mesmo tempo humano e meta-
pessoal, era o meu filme, do começo ao fim. Su-
para o ser humano, visitando nosso íntimo, re-
físico, abre um profundo fosso entre a sua obra
bitamente, percebi que tinha colocado a câmera
virando tabus, indagando acerca do sentido da
e o cinema de massas. Ao aproximar-se de sua
no lugar certo, que tinha conseguido o resultado
existência e da morte. As relações humanas foram
obra é bom saber que o público não encontra-
procurado, que tudo funcionava muito bem.”[7]
exploradas em toda a sua complexidade, desde a
rá facilidades, nem na abordagem temática nem
Em mais de 58 anos como diretor, realizou
dimensão social até os conflitos interiores. é no
na forma cinematográfica. Mas quem encarar
53 trabalhos, incluindo os filmes feitos para te-
indivíduo que a obra bergmaniana se realiza e en-
corajosamente o desafio não se arrependerá.
levisão. Em 1982, aos 64 anos, anunciou a apo-
contra o seu habitat. Certa vez, no lançamento do
As recompensas serão imensas, pois o espectador
sentadoria ao realizar Fanny e Alexander, mas
filme Da Vida das Marionetes, em 1980, o cineas-
descobrirá a capacidade que a obra bergmaniana
retornou dois anos depois com Depois do Ensaio.
ta expôs com exatidão sua concepção estética e
tem de penetrar na alma humana, de desvendar
Fez ainda alguns filmes para TV, até enfim filmar
humana: “instintivamente as pessoas têm sempre
seus aspectos mais sombrios e inóspitos.
seu derradeiro trabalho, Saraband (2003), vindo a
medo das emoções. Na minha geração, no meu
é importante alertar ainda que existe, na obra
falecer quatro anos depois, em 2007, aos 89 anos.
meio, educar não era formar um ser humano, mas
bergmaniana, uma variedade estilística bem mais
Analisar Bergman considerando o volume de sua
criar uma pequena marionete, destinada a existir
complexa do que se supõe habitualmente. Como
obra é surpreendente. Mais impressionante, po-
e a andar numa sociedade autoritária. Para que
bem salienta Ricardo Cota, “embora Bergman
rém, é analisá-lo sob uma perspectiva qualitativa.
um menino não se comporte como uma menina
seja quase sempre lembrado por suas obsessões
Chega a ser assustador, se pensarmos pela ótica
é preciso ser duro com ele e, assim, muito cedo,
mais frequentes, como o passar do tempo,
da densidade e profundidade de seus trabalhos,
aprendemos a interpretar nossos papéis. Por isso,
a morte, a impossibilidade de comunicação,
sem contabilizar as inúmeras peças de teatro que
seriamente, creio que é, que seria maravilhoso
presentes em filmes como Luz de Inverno,
dirigiu no mesmo período. A constância produtiva
ensinar o ABC das emoções. Com esse ABC eu
e criativa de Bergman é explicada em seu próprio
tento trabalhar e atingir o d do abecedário, mas
depoimento: “sempre gostei da minha profissão,
nós somos todos analfabetos nesse campo.”[9]
e nossas relações são totalmente despojadas de
O compromisso de Bergman, então, está no estu-
neuroses. O processo de criação propriamente
do desses mecanismos que apodrecem o homem
dito, o fato de trabalhar, de fazer coisas, de fazer
desde o nascimento até a morte e que aprisionam
coisas novas e apagar as precedentes. A profis-
a existência.
são que exerço corresponde à minha natureza, ao meu lugar no mundo.”
[8]
Ao tratar de temas tão difíceis de serem abordados e penetrados, Bergman afasta-se ra-
No decorrer de sua longa carreira, Bergman
dicalmente do chamado cinema de entreteni-
foi adquirindo maturidade técnica e pessoal. Sua
mento, divertido e espetacularizado. Ao elaborar
Personna , 1966 Personna , 1966 Face a Face, 1976 Crise, 1946
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10 COTA, Ricardo. http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm 11 ARMANDO. 1988. p.336.
O Sétimo Selo, O Silêncio, Persona e tantos outros,
uma coisa interessante a esse respeito: ‘quan-
expressão ou reação. Ele não é descritivo, mas
o conhecimento mais aprofundado de sua obra
do você me fala, eu não compreendo nada do
sim analítico. O close em sua obra o define, por
revela um autor de talentos múltiplos. O Olho do
que você quer dizer, mas quando você não me
isso é pleno. Tem como função fazer com que
Diabo, Sorrisos de uma Noite de Amor e Para não
fala nada, compreendo tudo perfeitamente’”[11] ,
o espectador entre na intimidade de um perso-
Falar de Todas as Mulheres são filmes de um bom-
disse ingmar Bergman. Como diretor de cinema,
nagem, sinta a verdade dele como se fosse sua.
humor surpreendente, sobretudo quando se sabe
construiu a carreira em paralelo a de diretor te-
Não por acaso, Bergman foi o diretor que melhor
que são filmes do mesmo autor de Vergonha,
atral. Essa combinação é importante para uma
aproximou Freud do cinema. Não se contentou
Face a Face e Da Vida das Marionetes.”[10]
compreensão de sua arte. Nesse intercâmbio
em apenas mostrar a angústia de um persona-
O Sétimo Selo (1956) e Morangos Silvestres
entre teatro e cinema, a relação com os atores
gem. Foi além e fez dela a angústia de todos
(1957) foram dois filmes realizados em sequên-
foi a mais profícua e, ao assistirmos seus filmes,
nós, e por um motivo simples: os sentimentos
cia, na segunda metade da década de 1950, e fo-
isso salta aos olhos. Bergman tinha um profun-
dos personagens vêm da mesma sociedade que
ram cruciais para a consolidação da imagem de
do respeito e admiração pelos atores e atrizes.
nos gestou. Os filmes têm a capacidade de des-
Bergman no cenário cinematográfico mundial.
Não à toa os projetou constantemente, valori-
pertar no espectador essas verdades. Pergunta-
zando nas obras as suas atuações. Alguns deles
mos se não há um resquício altamente religioso
a reLação de BerGman com atrizes e atores
ficaram conhecidos como bergmanianos, tal a
nessas premissas bergmanianas? A ausência de
frequência dessa parceria e fidelidade artística
deus, aspecto tão presente em algumas de suas
“Pouco a pouco, consegui estabelecer uma téc-
entre o diretor e seu elenco. A câmera de Berg-
obras, provocou um humanismo extremado, um
nica pessoal de trabalho com os atores. Preparo
man parecia estar à mercê de seus personagens,
predomínio do corpóreo e um antiascetismo.
a filmagem nos mínimos detalhes em casa. é lá
o seu posicionamento sugeria isso. O humanis-
Subliminarmente, porém, o close em Bergman
que concebo as cenas, os cenários, a interpreta-
mo bergmaniano se consubstancia na primazia
resgata a confissão. A educação religiosa rígida
ção em geral. Quando chego ao local de filma-
do personagem sobre o cenário.
recebida na infância foi renegada, como é sabi-
gem com os atores, pode acontecer que, apesar
O rosto sempre foi o lugar por onde Berg-
do, na fase adulta. Todavia, um passado vivido é
de tudo preparado, o tom, uma nova inflexão de
man adentrou os mistérios da psiquê humana, e
difícil de ser apagado por inteiro. Essa “religio-
frase, um gesto, uma expressão, a reflexão de
o close o seu instrumento mais precioso e reve-
sidade”, conforme descrevemos anteriormente,
um ator me incitem a mudar totalmente a cena.
lador, a busca invasiva pelos recantos inimagi-
trouxe um vigor original e irrepreensível para a
Eu sinto interiormente que o resultado será me-
náveis. O rosto é o último reduto do humano e o
obra bergmaniana.
lhor, mas isso nunca tem a necessidade de ser
olhar a nossa masmorra, onde nos revelamos ou
dito entre nós. Acontece um montão de coisas
nos escondemos. Por isso, o close em Bergman
entre mim e os atores, e sobre um plano que é
difere do close em outros diretores – vai muito
impossível de analisar. ingrid Thulin me disse
além de mostrar mais de perto uma determinada
Morangos Silvestres, 1957 A Hora do Lobo, 1968 A Hora do Lobo, 1968 Vergonha, 1968 Vergonha, 1968
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
59
12 ARMANDO. 1988. P.196 a 201.
BerGman Por BerGman[12] “A minha atitude em relação à minha
Pretender o contrário seria grotesco.
“é um dos sentimentos que marcaram
Mas não faço propaganda por uma
a minha infância: a humilhação. Ser
tendência ou por outra…”
humilhado fisicamente, em palavras ou em uma situação. Eu me pergunto se as
prática da arte é que eu fabrico objetos mais belos que a média. Faço artigos de
“depois da estreia de Persona, algumas
crianças não experimentam a todo ins-
consumo. Se, em seguida, um deles ad-
jovens mulheres da esquerda dinâmica
tante e de forma intensa este sentimen-
quire uma dimensão suplementar, isso
me declararam guerra e queriam a todo
to de humilhação nos contatos com os
dá sempre muito prazer. Mas não traba-
preço demonstrar que as personagens
adultos e com as outras crianças. Todo
lho para obter a imortalidade.”
femininas do filme eram a imagem de
o nosso sistema de educação é em re-
uma concepção reacionária da mu-
alidade uma humilhação, e, quando eu
“Os artistas não são praticamente
lher… Mas a moral puritana que me
era criança, isto era ainda mais eviden-
mais os visionários sociais. E eles não
persegue como um cão – eu convivi
te do que hoje. O pranto da humilha-
devem imaginar que ainda são. A re-
com ela durante toda minha infância
ção e o sentimento de ser humilhado
alidade anda sempre mais depressa
– me ensinou que, para ser educado,
causaram muitos problemas em minha
que o artista e suas visões políticas.”
eu não devia falar nunca de duas coi-
vida de adulto (…) A pessoa humilha-
sas: do sexo e do dinheiro. Meus filmes,
da se pergunta constantemente como
“dizem hoje que toda arte é ação po-
entretanto, são de preferência físicos, e
ela poderá humilhar uma outra pessoa,
lítica, mas eu diria também que toda
eles vão além não somente da sexua-
como ela poderá devolver a bala, esma-
arte tem afinidade com a ética. Na
lidade mas de todo o problema moral.
gar o adversário, paralisá-lo até elimi-
realidade, é a mesma coisa… é o que
Minha fascinação permanente pela
nar dele a ideia de uma reação.”
Eugene O’Neill queria exprimir, di-
raça feminina é uma das minhas prin-
zendo: ‘Toda obra dramática que não
cipais forças motrizes. é evidente tam-
“Não censuro certos críticos pelo fato
trata de relações humanas com deus
bém que um tal vínculo implica uma
de fazerem filmes nem certos cineastas
é sem valor’. Fico sempre surpreendido
ambivalência, encerra uma contradi-
por se dedicarem à crítica. Simplesmen-
quando dizem que sou arredio a tudo,
ção. Mas tenho para o bem do mal que
te, alguém que, como eu, está há quase
que me sinto à margem da sociedade,
aceitar a etiqueta anti-sexual. Tenho
trinta anos em contato com o teatro e
que isolo… declarei muito claramente
muito medo dos moralistas porque eu
com o cinema, conduz-se automatica-
que não sou um artista engajado po-
mesmo o sou. é verdadeiramente difícil
mente, como uma velha raposa muitas
liticamente, mas, naturalmente, sou a
descobrir um moralista mais moralista
vezes mordida no rabo, nas patas ou no
expressão da sociedade na qual vivo.
do que eu.”
focinho. é um reflexo bastante natural.
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
60
Quando encontro um crítico, mostro-
téria de meus filmes são experiências da
“Quando exibo um filme, sou culpado
-me muito cortês, mas algo em mim
vida, cujo suporte intelectual e lógico é
de fraude. uso um aparelho construído
fica alerta. Nada posso contra isso. No
frequentemente desagradável.”
para se aproveitar de uma certa fraque-
entanto, no momento em que a crítica
za humana, um aparelho com o qual eu
renunciar à sua função de crítica e em
“Fazer filmes é também mergulhar até
posso sacudir a plateia de uma maneira
que eu próprio deixar de fazer cinema,
as mais profundas raízes, até o mundo
altamente emocional – fazê-la rir, gritar
então poderemos verdadeiramente nos
da infância (...) Tomo consciência disso
de medo, sorrir, acreditar em histórias de
encontrar.”
quando entro no local de filmagens, ou
fadas, tornar-se indignada, sentir-se cho-
quando estou com uma câmera entre as
cada, encantada, profundamente tocada
“Os personagens de meus filmes são
mãos e os técnicos em torno de mim.
ou talvez, bocejar de tédio. Em qualquer
exatamente como eu, são animais con-
Então digo para mim mesmo: ‘venham,
dos casos eu sou um impostor ou, se a
duzidos pelos instintos e que, no melhor
nós vamos começar uma brincadeira.’
plateia está desejosa de ser guiada, um
dos casos, refletem quando eles falam.
Me lembro exatamente quando eu
feiticeiro. Apresento truques de feitiçarias
A capacidade intelectual dos meus per-
era pequeno, tirava, um por um, meus
com aparelhos tão caros e maravilhosos
sonagens é relativamente reduzida. Os
brinquedos do armário antes de brincar.
que qualquer artista do passado daria
corpos constituem a parte principal com
Tenho a mesma impressão num local de
tudo no mundo para possuí-los.”
um pequeno buraco para a alma. A ma-
filmagens. há uma certa analogia”.
O Sétimo Selo, 1957
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
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61
POR TABAJARA RuAS ESCRiTOR E CiNEASTA
Walper ruas: vinte anos fazenDo filmes
tros, solenes, hieráticos, lentamente, em grupos ou solitários. Foram chegando, descendo as lombas, tornando-se pouco a pouco uma multidão de gente a cavalo, de ponchos escuros e chapéu. Começamos a gritar. A equipe começou a gritar. Todos no comboio gritavam e acenavam lenços. E a gauchada também começou a acenar e gritar. Chegaram mais de 1.200 cavaleiros. E foi assim, numa festa espontânea e genuína, que começou a manhã da nossa grande cena, do nosso batismo de fogo. O destino do filme é bem conhecido. Brilhou nos festivais de Gramado (quatro Kikitos), Recife (quatro Passistas), Brasília (dois Candangos) e ainda em Trieste, huelva, Figueira da Foz... Mas ninguém faz filmes para festivais. Nada supera o prazer de contar uma história e ser entendido, ou pelo menos ouvido. de alguma maneira contamos a história do general Netto e seu sonho maluco de fundar um país. A crítica foi extremamente generosa. O grande hélio Nascimento escreveu “o melhor filme do gênero feito no país”. Permaneceu quatro anos em cartaz no Canal Brasil, o que significa milhões de espectadores. Nossa segunda incursão na ficção, o filme Netto e o Domador de Cavalos, partiu da ideia de contar a criação do Corpo de Lanceiros Negros.
A Cabeça de Gumercindo Saraiva Foto: divulgação Walter Ruas Produções
Em seu todo, o filme é uma releitura de antigos temas regionais, como a Guerra dos Farrapos e a
depois de quase 20 anos fazendo filmes,
quanto o longo comboio de ônibus e caminhões
lenda do Negrinho do Pastoreio. Entrecruzando
uma das lembranças que mais emociona a tur-
se arrastava na estrada de terra, eu remoía: e se
esses motivos, buscamos uma síntese das raízes
ma aqui da Walper Ruas Produções aconteceu
os figurantes não aparecerem? Tínhamos pas-
da formação do Rio Grande e seus mitos contem-
naquela manhã de setembro, fria e luminosa, em
sado a semana convocando o pessoal dos CTGs
porâneos, ao mesmo tempo em que procuramos
que fomos filmar a batalha do Seival para Netto
e afins para participar das filmagens. Fizemos
dar, a índios e negros, papel de protagonistas.
Perde sua Alma, nos vastos campos de uruguaia-
visitas, reuniões, preleções e chamamentos nas
Escrevo no plural porque todo filme tem um di-
na. éramos dois diretores, Beto Souza e eu, éra-
rádios, mas não tínhamos nenhuma segurança.
retor, mas ele é feito em equipe. Aprofundamos
mos ambos estreantes, tínhamos quase zero de
E agora estávamos ali, na manhã fria, levando
a premissa para colocar a questão da traição aos
experiência em filmagens e sem dúvida éramos
uma equipe de mais de cem técnicos com tonela-
escravizados que lutaram ao lado dos Farrapos,
suspeitos, perante a equipe, de que não tínhamos
das de equipamento, rumo ao local do encontro.
a crueldade do sistema escravista e o genocídio
Eram seis horas da manhã, um raio de sol
indígena, fantasmas do nosso passado que ainda
a menor ideia do que estávamos fazendo. isso não estava tão longe da realidade...
despontou atrás das coxilhas silenciosas, indife-
hoje nos assombram.
Queríamos, em nossa inocência ou orgu-
rentes e desertas em torno da estrada. Quero-
O crítico Luiz Carlos Merten escreveu que
lho, filmar algo jamais tentado antes no cinema
-queros gritavam e davam voltas no ar. Então,
“muita gente recebeu o filme em Gramado como
praticado no sul: encenar uma batalha, inteira e
apareceu o primeiro cavaleiro. Como num filme.
um épico, mas não é. Sua história, mais drama
completa, com milhares de figurantes a cavalo,
imponente, recortado no alto da coxilha. E logo
do que aventura, atravessa o épico ou o prece-
canhões disparando e cargas de cavalaria. En-
um segundo. E um terceiro. Foram surgindo ou-
de, de forma mais intimista, e só no final Netto e
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
62
seu parceiro, o domador de cavalos, estão prontos para a batalha. O fim de Netto e o Domador de Cavalos é o começo de Netto Perde sua Alma. O filme trata de injustiça, de desigualdade social e racial, aponta para uma utopia revolucionária.
Netto e o Domador de Cavalos Foto: dulce helfer
Werner Schüneman em Netto Perde Sua Alma
Pensamos então na infância dele: se você tem seis anos de idade e está brincando na frente de casa,
Foto: Marcus Jung
numa pequena gleba de agricultura familiar, e vê
Sirmar Antunes em Netto e o Domador de Cavalos
um cavalo se aproximando no alto da coxilha, seu
Foto: dulce helfer
coraçãozinho salta no peito. é seu pai que está
Pode ser que tudo isso seja clássico demais para
chegando! Mas o cavalo chega mais perto e há
certos gostos, mas também é uma resistência à
algo estranho com o cavaleiro. Ele está mal equi-
globalização.” O consagrado escritor Luiz Antonio
librado, tem o peito manchado de sangue e quan-
de Assis Brasil, em zero hora, assinalou: “O fil-
do ele chega diante da casa de madeira despenca
me é o retrato de um Rio Grande ‘real’, em que
no chão. Morto.
a luta pela sobrevivência e as guerras brutalizam
O pai de Leonel Brizola tinha lutado na revo-
as pessoas. As ações são praticadas por homens
lução federalista de 1923, e foi assassinado numa
ásperos, sujos da terra do pampa. Conhecemos
tocaia quando chegava em casa, após o fim do
também um Rio Grande multicultural: há escra-
conflito. Fizemos o documentário em codireção
vos muçulmanos, que rezam voltados a Meca e
com Rogério Ferrari, procurando mostrar como
recitam trechos do Corão; há índios endurecidos
o episódio influenciou as atitudes de Brizola em
no contato com o colonizador e que, melhor do
toda sua vida, nos anos em que esteve no poder
que este, são capazes de viver em harmonia com
ou quando amargou o exílio.
a natureza. Ao lado disso, há pérfidos oficiais do
Baseado no romance homônimo de José
império, bêbados e venais. Não é um quadro belo,
Antônio Severo, Os Senhores da Guerra foi, sem
mas fascinante por sua poderosa verdade. Só de-
dúvida, a produção mais tumultuada e difícil da
pois de ver Netto e o Domador de Cavalos pode
Walper Ruas. Pensado para ser um díptico, no
alguém dizer que conhece o Sul.”
meio das filmagens foi se tornando claro que isso
Nossa próxima experiência foi um documen-
seria, por motivos de orçamento e captação, qua-
tário de longa-metragem, Brizola Tempos de Luta,
se impossível. O filme tem duas enormes bata-
feito por encomenda para um grupo de admi-
lhas, com canhões, trens em movimento, marchas
radores do último caudilho gaúcho. A ideia era
de exércitos de cavalaria e locações em diversos
buscar uma fórmula capaz de contar a história de
pontos do Rio Grande. Então, enquanto avançá-
Leonel Brizola, fugindo dos clichês de louvação a
vamos com as filmagens, mexíamos sem parar no
figuras públicas que fizeram carreira na política.
roteiro, procurando adaptar e resolver as novas
aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
63
questões que se apresentavam. Mesmo assim,
e também diretora, ela conduziu com firmeza os
Acreditamos que a coesão entre os trabalhos
chegamos ao final com um filme coeso e bem
complicados processos de realização. O crítico
aparece no resultado visto nas telas. A ideia de
resolvido tecnicamente, que teve boa acolhida da
Nei duclós escreveu, em seu blog: “Os filmes da
exibi-los todos no circuito do Cine Sesc 2018-
crítica. Recebeu dois Kikitos no Festival de Cine-
Walper Ruas são filmados em cenários espanto-
2019 é, para nós, muito honrosa. Ficamos felizes
ma de Gramado, um para a excelente atuação de
sos, de gaúchos montados a cavalo na areia e no
com a oportunidade porque vai permitir que mais
Andrea Buzato e, o outro, um Kikito Especial do
pampa infinito, de seres humanos cercados pelo
gaúchos possam assistir um pouco de sua histó-
júri, que dividimos com a lenda Fernanda Monte-
drama da paisagem. Reinventaram o conceito
ria, das suas raízes – e, por que não? – da sua cara
negro. O filme de certa maneira deu maioridade
de clássico ao cruzar a mitologia do faroeste e
no cinema. Bom espetáculo!
aos experimentos de linguagem praticados pela
dos romances de cavalaria com a ficção histórica
Walper Ruas desde o ano 2000.
gaúcha. Suas obras geraram novos rostos para a
Nosso quinto longa, que está em fase de fi-
tela, personagens magníficos nunca antes explo-
nalização, é A Cabeça de Gumercindo Saraiva cuja
rados, novas histórias, novos enfoques. devemos
Foto: divulgação Walper Ruas Produções
estreia será no segundo semestre de 2018. O filme
à mitologia cinematográfica de seus filmes uma
Os Senhores da Guerra
conta a estranha história da missão recebida pelo
solução audiovisual poderosa, uma legítima e
major Ramiro de Oliveira: levar a cabeça do caudi-
verdadeira nova estética.”
lho Gumercindo Saraiva para o governador Júlio de Castilhos, da região das Missões, onde foi morto e decapitado, até o palácio do governo em Porto Alegre. Essa filmagem foi uma aventura bem mais leve se comparada às outras. Agora tínhamos boa experiência acumulada, equipe engajada e orçamento compatível com as necessidades do filme. Estamos torcendo para que ele tenha uma carreira parecida com os que o antecederam, e acreditamos que ele confirmou os procedimentos estéticos que vínhamos perseguindo. Nesses anos todos, a dura tarefa da produção executiva desses filmes coube a Ligia Walper, sócia da Walper Ruas desde o começo. Profunda conhecedora dos segredos do cinema, roteirista
Os Senhores da Guerra
Foto: divulgação Walper Ruas Produções
A Cabeça de Gumercindo Saraiva Foto: divulgação Walper Ruas Produções
aUdioVisUaL música
PRiMEiRO SEMESTRE
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um recorte plural Da proDução cinematográfica gaúcha Fortalecer a produção audiovisual por meio da
cosme
difusão e da promoção da discussão e do inter-
Cosme é um documentário musical com Thiago
câmbio entre os realizadores. Esse foi o objetivo
Médici, um cantor e compositor de música folk,
da segunda edição da Mostra Sesc de Cinema, que
amigo íntimo do diretor do filme, Luciano Scherer.
para a eXibiÇão NaCioNal da
teve 55 filmes inscritos no Rio Grande do Sul, entre
“Após alguns anos sem ver o Thiago, fui até a itália
2ª mostra sesC de CiNema
curtas e longas metragens. Vinte foram seleciona-
encontrá-lo. Ele estava morando no país há dois
dos para exibição na mostra estadual, de 2 a 6 de
anos e, nesse tempo, começou a compor e tocar
abril, em Porto Alegre, quando foram conhecidos
músicas no violão, instrumento que havia apren-
os seis trabalhos que seguem na disputa para inte-
dido a tocar recentemente, sozinho, enquanto es-
grar a programação da mostra nacional. Os curtas-
perava por sua cidadania italiana em uma pequena
-metragens Cosme, Mãe dos Monstros, Secundas
vila no interior. Eram músicas profundas que me
e Sob Águas Claras e Inocentes, além dos longas
tocaram, e por isso resolvi filmar”, conta Scherer.
Foto: divulgação
Desvios e Redenção, são os filmes com chances de
No retorno ao Brasil, o diretor não conseguiu mon-
Cosme
circular por todos os estados do país, capitais e até
tar o filme. Aproveitou a estreia de Ruby, primeiro
Foto: divulgação
mesmo cidades em que a população não têm aces-
filme que dirigiu, com Guilherme Soster e Jorge
Secundas
so regular a sessões de cinema.
Loureiro, em Portugal, e visitou novamente o ami-
seis Filmes do rs, de FiCÇão e doCumeNtários, Curtas e loNgas, iNtegram a seleÇão
Redenção
Foto: divulgação
A Mãe dos Montros
Foto: divulgação
música aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
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65
go, desta vez em Londres, para filmar esse outro
isso a Mostra Sesc tem um papel fundamental, de
secUndas
momento em sua vida.
fazer com que os trabalhos cheguem ao público.”
destaque nas categorias direção, para Cacá Nazá-
O filme foi feito de forma totalmente inde-
Ruby, selecionado na 1ª edição da Mostra,
rio, e Montagem, para Matheus Piccoli, na etapa
pendente, com a ajuda de pessoas próximas ao
está sendo exibido em 2018 pela SescTV. O apoio
gaúcha da Mostra Sesc de Cinema, o documentá-
diretor: o próprio Thiago, davi Rodrigues, encar-
que os diretores receberam da instituição con-
rio de curta-metragem Secundas registra o movi-
regado do som, diego Placeres, também músico, e
tribuiu com a produção do primeiro longa-me-
mento de estudantes que foram presos e agredi-
Maíra Flores na finalização, colorimetria do filme
tragem, Meu Caminho Para o Céu. “Vejo não só a
dos pela polícia ao ocupar o prédio da Secretaria
e design. Cosme estreou no Festival Luso Brasi-
Mostra Sesc como de extrema importância para
da Fazenda do RS, em junho de 2016, e ainda
leiro de Santa Maria da Feira, em Aveiro, Portu-
o meio cinematográfico nacional, mas também a
hoje enfrentam processo judicial. “Fui falar sobre
gal, e seguiu carreira em eventos como a Mostra
instituição Sesc, de forma geral, por ser um apoia-
cinema aos estudantes em uma escola ocupada e
CineBh, em Minas Gerais, Mostra do Filme Livre
dor e parceiro das diversas áreas artísticas em tem-
percebi, ao observar um grupo que liderava, que
e Festival Curta Cinema, no Rio de Janeiro, entre
pos de tantos retrocessos políticos nesse sentido”,
existia recorte para um curta. Ali eu vi que tinha
outros, incluindo o Mimo Festival, dedicado a fil-
destaca o realizador.
mes sobre música. Para Scherer, a Mostra Sesc de Cinema é atualmente um dos festivais mais significativos do país, por abranger um panorama da produção nacional de todos os estados, na primeira fase, em uma mostra estadual , para depois colocar os filmes em diálogo em uma mostra nacional. “Essa abordagem é muito interessante pelo fomento ao meio audiovisual, em diversos sentidos: divulgação e exibições dos filmes, proposições de discussão com os realizadores nas sessões, apoio financeiro para as produções selecionadas e oportunidade de fazer parte de um panorama nacional, que será exibido em cada Estado, sempre gratuitamente, em um papel de formação de público. O mais gratificante é que as pessoas podem ver o filme, e por
aUdioVisUaL música
PRiMEiRO SEMESTRE
2018
66
personagens”, conta Nazário. Segundo o diretor,
em um processo de criar outros espaços que não
pela cidade, em direção ao aeroporto, o sujeito
em um documentário para a juventude, a forma é
apenas o espaço padrão de exibição.
estabelece diálogos com outros, consigo mesmo e
muito importante, os jovens têm uma relação com
No currículo do cineasta estão Justiça Infi-
o corpo, é tudo coreografado, muito diferente de
nita (2002), ficção premiada no Festival de Gra-
uma manifestação tradicional com palanque e pa-
mado como melhor curta e como melhor monta-
O filme, que recebeu destaque de Roteiro e
lavras de ordem. E o filme mostra isso, é ágil, tem
gem no Festival de Brasília; upgrade do Macaco
direção de Atores na 2ª Mostra Sesc de Cinema,
um ritmo forte, faz com que o espectador entre na
(2005), documentário sobre o primeiro coletivo
vem percorrendo uma excelente carreira por fes-
narrativa, sofra junto com os estudantes.
de arte urbana de Porto Alegre; o road movie
tivais. Foi premiado no Festival AdF de Fotografía
com a nação, que repousa, apática, em seu leito de morte”, afirma o diretor.
“Eu não tinha estrutura para acompanhar o
poético Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes
Cinematográfica (Argentina), no 2º Festival inter-
dia a dia do movimento, fiz imagens nas esco-
(2013), que fala da vida e obra de Caio Fernando
nacional de Cine de Quito (Equador), na Mostra
las, mas as mais impactantes eu consegui com
Abreu, entre outros filmes.
Gaúcha do 45º Festival de Cinema de Gramado,
o Matheus Chaparini, jornalista do Jornal Já que
no Cineserra 2017 e no 14º Curta Santos. Tam-
estava na Secretaria da Fazenda e foi preso, e
soB ÁGUas cLaras e inocentes
bém foi selecionado para o festival 58º ziNEBi
com um estudante de São Paulo que fazia ima-
Realizado em quatro diárias, o curta de Emiliano
(Espanha), para a 10ª Mostra de Cinema de Belo
gens para um documentário, também detido”,
Cunha apresenta a passagem de um sujeito pela
horizonte, para o Cine Esquema Novo 2016 e para
relata o diretor. Secundas foi escolhido o melhor
cidade de Porto Alegre, à noite, em um processo
o 24º Festival MixBrasil de Cultura da diversidade,
filme da mostra de curtas gaúchos no 45º Festi-
de despedida daqueles que ama, pois há um forte
entre outros.
val de Cinema de Gramado e melhor curta pela
sentimento de insuportabilidade. O personagem
Emiliano, que já dirigiu e fez o roteiro de To-
Associação de Críticos de Cinema do RS, além de
é representado por diversos atores e não atores.
mou Café e Esperou (2013), dirigiu a série de quatro
ter participado de importantes festivais como a
“Trata-se de um filme de sensações, que vem da
episódios Horizonte B e co-dirigiu, com Lívia Pas-
Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Ge-
partilha pessoal e de muitas pessoas próximas de
qual e Thais Fernandes, Navegantes (2015), con-
rais, iV Fronteira – Festival internacional do Filme
uma percepção de como o ódio, a hipocrisia e a
sidera a Mostra Sesc imprescindível para a cine-
documentário e Experimental, em Goiás, e Fes-
decadência moral do país tornaram quase insupor-
matografia regional e nacional, pois proporciona
tival Cinélatino Rencontres de Toulouse, França,
tável a permanência. Ao mesmo tempo, há o sen-
visibilidade para uma gama de propostas estéticas
onde teve as sessões lotadas de estudantes. Sobre
timento contraditório de que esta é a cidade e este
que, usualmente, não chegariam aos espectadores.
a Mostra Sesc de Cinema, Nazário destaca a in-
é o país em que queremos estar, para ajudar na
“A mostra contempla filmes com desenhos narra-
teriorização da proposta, que leva os filmes para
construção de um horizonte mais solidário, equa-
tivos mais diretos e também mais experimentais,
lugares em que as pessoas têm pouco acesso,
litário e de justiça social. Então, nessa passagem
dando conta da diversidade expressiva existente
música aUdioVisUaL
PRiMEiRO SEMESTRE
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1 Trailer de MãE DOS MONSTROS, https://youtu.be/dtesNI-HdSA
em cada uma das regiões do país.” Atualmente, o
filmagem, uma em estúdio e duas em um circo, já
do o processo mais representativo da produção
diretor está em processo de pós-produção do pri-
que a protagonista é perseguida por uma trupe
nacional”, avalia o diretor do filme, destaque na
meiro longa-metragem, Raia 4, contemplado no
circense.
mostra em desenho de Som para Tiago Bello.
Edital Prodecine 5.
“O filme teve uma carreira de festivais muito
Formado em cinema, Marcel Kunzler atua
bacana nos Estados unidos. é um filme de gênero,
como diretor, roteirista e editor de imagens des-
mãe dos monstros[1]
de nicho e está rodando festivais de horror, princi-
de 2004. Fez dois curtas de gênero semelhantes
O filme, concebido para o trabalho de conclusão
palmente”, conta Julia, surpresa e feliz com a sele-
ao Redenção: Ar Rarefeito e Estrada. “Atualmen-
do curso de design por Julia zanin de Paula, é
ção de seu primeiro filme para a Mostra Sesc – jus-
te, tenho três projetos em desenvolvimento: Fim
um curta-metragem de terror, inspirado no con-
tamente por ser uma mostra mais geral, com um
da História, longa de ficção-científica do qual sou
to La Mère aux Monstres, de Guy de Maupassant.
público maior e mais diverso. “Muito mais gente
co-roteirista e codiretor, em fase final de roteiri-
“é uma crítica, uma exposição chocante, crua e
vai poder ver e entender a nossa mensagem, além
zação e projeto; Armas Silenciosas para Guerras
metafórica para algo que vemos muito: o hipe-
de se divertir assistindo.” O filme já ganhou alguns
Secretas é uma de série de espionagem que ven-
raproveitamento do corpo da mulher e a falta
prêmios e, na Mostra Sesc, recebeu destaque em
ceu o prêmio de Melhor Piloto no 2º Telas Festival
de limites para o entretenimento”, explica Julia,
direção de Arte para Sandro Merino dreher, e dire-
internacional de TV de SP; e o longa Rivotril, drama
roteirista e diretora do filme. Seu TCC foi sobre
ção de Fotografia para Bolivar Andrade Lauda.
contemporâneo em fase de roteirização.
como fazer o expectador sentir medo e tensão através da linguagem visual.
redenção
Na primeira etapa da concepção, Julia reali-
O longa-metragem de Marcel Kunzler, uma copro-
zou um estudo de mercado e estratégias de marke-
dução entre Primeiro Corte Produções e Velha Fil-
ting para lançar o filme, já idealizado sem diálogos
mes, conta a história de uma comunidade que vive
para poder participar de festivais pelo mundo, sem
isolada em uma cidade abandonada. Aborda temas
barreira linguística ou gastos com legendagem.
como amizade, união e vida em comunidade. Re-
Na segunda etapa, pesquisou o gênero terror e
denção é uma aventura fantástica com um pé na
como criar tensão e medo através de ritmo de
ficção-científica que estreou na TVE/RS em 2016 e
edição, paleta e cor, fotografia, enquadramentos,
atualmente está em cartaz no canal CineBrasilTV.
Foto: Edu Rabin/Ausgang
movimentos de câmera, arcos visuais etc. Somen-
“A Mostra Sesc tem grande importância por am-
Desvios
te depois disso partiu para o roteiro. dessa fase à
pliar o alcance das obras audiovisuais. A estrutura
entrega do filme, foram dois meses, três diárias de
de rodadas estaduais também é relevante, tornan-
Sobre Águas Claras e Inocentes
Foto: Felipe Rosa
Secundas
Foto: divulgação
aUdioVisUaL
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POR PEdRO GuiNdANi diRETOR dO LONGA DESVIOS, SELECiONAdO PARA A ETAPA NACiONAL dA 2ª MOSTRA SESC dE CiNEMA
um projeto, pouco Dinheiro e amigos fiÉis
Desvios
Foto: Felipe Rosa
Foi em 2013, era uma época em que havia poucas formas de viabilizar os filmes aqui no Rio Grande do Sul para quem ainda não tinha uma trajetória consolidada. Era, então, um período em que todo mundo dava jeito de fazer um curta com os amigos ou pra RBS, ou tentava de alguma forma emplacar um longa em algumas das poucas oportunidades
depois de escrever o roteiro, tratei de ir cha-
outro curta na RBS, chamado O Holandês Miste-
então disponíveis – isso, porém, acabava sendo
mando os amigos: o Rafael Mentges, que tinha
rioso, para o programa histórias Extraordinárias.
algo difícil de se conseguir, sem ser conhecido pela
feito meu curta anterior realizado nas mesmas
Nos anos seguintes, trabalhei como continuísta,
direção de curtas ou sem algum padrinho forte;
condições, O Que Ficou Pra Trás, veio para fazer o
assistente de produção e outras funções em co-
era difícil fazer o primeiro longa. A vontade, porém,
papel principal; o Felipe Rosa, diretor de foto, en-
merciais, curtas, longas e séries em Porto Alegre,
sempre esteve aí, e as tecnologias já permitiam fa-
trou meio assustado com a ideia de fazer um lon-
até dirigir outro curta, O Que Ficou Pra Trás, que
zer um filme com boa qualidade técnica sem uma
ga em nove diárias; o Beto Picasso, meu ex-sócio,
citei antes. depois veio o Desvios, seguido de um
grana imensa por trás. Eu e o davi de Oliveira Pi-
veio como diretor de produção; o Binho Lemes,
documentário, Para o Que Der e Vier, que passou
nheiro, produtor do filme e meu sócio na Ausgang
meu sócio na época, foi o diretor de arte; o Bunker
na TVE como média-metragem. Estou trabalhando
– que tinha feito seu primeiro longa anos antes,
Studio, parceiros de sempre do som, entrou junto.
para transformá-lo em um longa-metragem, deve
com recursos próprios – começamos a conversar
A partir desse núcleo, chamamos o resto do pes-
ficar pronto no ano que vem. Além disso, fui pro-
sobre a possibilidade de fazermos dois longas, um
soal e fizemos a coisa acontecer, da forma mais
dutor executivo de três projetos, entre eles o curta
dirigido por cada um.
enxuta possível. A etapa de produção custou 8
Sob Águas Claras e Inocentes, do Emiliano Cunha,
Essa conversa, que começou mais da boca
mil reais, do meu bolso, ainda cheio por conta de
o primeiro filme lançado pela nossa produtora,
pra fora, ganhou força quando a Secretaria de
trabalho numa campanha política no ano anterior.
a Ausgang, e que também foi selecionado na 2ª
Cultura do Estado anunciou que haveria um se-
depois, levantamos 100 mil pelo edital aquele de
Mostra Sesc de Cinema. Outros quatro projetos da
gundo edital de finalização, que permitiria a con-
finalização do Governo do Estado.
produtora estão em pós-produção.
clusão de mais dez filmes (como tinha acontecido
desvios teve circulação em alguns festivais:
A Mostra Sesc de Cinema é uma iniciativa bem
dois anos antes, num movimento que foi bem
estreou no Festival de Gramado em 2016, na
positiva, que permite que filmes nem tão conheci-
importante para o cinema local). isso impediria
Mostra Gaúcha de Longas (embora o Merten, crí-
dos pelo grande público consigam ter mais uma
que os filmes morressem na praia (ou melhor, na
tico do Estadão, tenha escrito que merecia estar
oportunidade de circular e serem vistos. é sempre
ilha), sempre um risco grande para filmes sem
na competitiva), depois passou no Bogocine, em
bom que o público possa ver mais filmes gaúchos e
grana. A restrição, obviamente, era fazer o filme
Bogotá, na Colômbia, e a seguir esteve em alguns
brasileiros, e também que os filmes possam ser exi-
mais barato possível: o mínimo de locações, equi-
outros festivais aqui no Brasil, nos Estados uni-
bidos em outras regiões do país, atingindo outros
pe pequena, quase nada de luz, elenco minúsculo.
dos e na índia.
públicos, além de trazer filmes de outros lugares
O projeto do davi acabou não saindo, mas segui
A minha trajetória iniciou no curso de Au-
para serem apreciados pelo público aqui. Agrade-
adiante e assim surgiu o Desvios, que não por
diovisual da PuCRS, onde me formei em 2006, na
ço ao Sesc pela escolha do filme, pela oportuni-
acaso é uma história sobre confinamento e auto-
primeira turma. Logo depois de sair da faculdade,
dade de exibir o longa dentro da programação da
privação de liberdade, a partir da trajetória de um
fiz direção de produção no 3 Efes, longa do Car-
mostra e pela iniciativa, que tem minha torcida e
sujeito que resolve se esconder num apartamento
los Gerbase. Em 2007, tive um projeto aprovado
apoio para que continue, floresça e se perpetue na
(o meu, na vida real) depois de aplicar um golpe
como diretor e roteirista no histórias Curtas, da
programação cultural das cidades onde acontece.
na sua empresa e enlouquece lá dentro.
RBS TV, chamado Os Olhos de Capitu; depois dirigi
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
69
por Alfons Hug crítico de arte e curador da 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul
O triângulo atlântico Depois de dedicar-se no passado, em primeiro
são chamadas até hoje de West Indies (Índias
cia espanhola e portuguesa no Atlântico. Antes,
lugar, à América Latina, a 11ª edição da Bienal do
Ocidentais).
reflete um ato de húbris hegemônica sem par:
Mercosul lança agora um olhar mais abrangen-
O Oceano Atlântico testemunhou também
a audácia de reclamar para si, do Polo Norte ao
te para o Atlântico, mais especificamente para
os maiores movimentos migratórios da história
Polo Sul, a totalidade dos hemisférios ocidental
aquele triângulo mágico que liga os destinos da
do homem, entre voluntários e involuntários.
e oriental – o primeiro no caso da Espanha, o
América, África e Europa há mais de 500 anos.
À frente do chamado de Goethe: Amerika, du hast
segundo para Portugal, cujo foco de interesse
Todos os oceanos são imensos celeiros de
es besser (América: uma vida melhor!), mais de 60
estava menos na América do que nas suas pro-
história e cultura. Porém, nenhum deles supe-
milhões de europeus fugiram da pobreza em bus-
priedades lucrativas na Ásia Oriental, sobretudo
ra o Atlântico em sua acumulação de dramas e
ca de um futuro mais iluminado nas novas terras
nas Ilhas Molucas. Para poder alcançá-las com
cataclismos que mudariam o curso da história
ocidentais, enquanto pelo menos 12 milhões de
segurança pela via marítima, Portugal instalou
mundial para sempre.
africanos eram traficados como escravos para o
bases ao longo de toda a costa africana ocidental no fim do século 15, o que levou, por outro
O Atlântico sempre foi, desde a primeira
Brasil, para as Antilhas ou para os Estados Unidos.
travessia, em 1492, cenário para permanentes
E como se a fronteira entre o Velho e o
transposições de fronteiras, incluindo aque-
Novo Mundo não fosse suficiente, Espanha e
Pré-requisito para esses avanços foram duas
la entre o Novo e o Velho Mundo. A sua costa
Portugal traçaram mais uma linha divisória com
inovações técnicas de importância inestimável:
ocidental permaneceu desconhecida por muito
o Tratado de Tordesilhas (1494), o que viria a ter
o desenvolvimento de um novo tipo de navio no
tempo, e até mesmo sua descoberta deve-se a
consequências políticas e culturais abrangentes
século 15, a Caravela Latina, sob a regência de D.
um mal-entendido, já que os primeiros nave-
e isolaria o Brasil do resto da América do Sul.
Henrique; e como a criação do sistema de nave-
gadores europeus acreditavam ter encontrado
Porém, o Tratado de Tordesilhas não é só
a Índia. De fato, as ilhas anglófonas do Caribe
uma demarcação histórica das áreas de influên-
lado, à emersão da África no cenário atlântico.
gação astronômica, com o qual se pôde alcançar o Hemisfério Sul pela primeira vez.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
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Os retornados Em pleno centro de Lagos, na Nigéria, encontra-se o Brazilian Quarter, um bairro que lembra o centro histórico do Rio de Janeiro ou de Salvador da Bahia, construído pelos assim chamados “retornados”, ex-escravos regressos do Brasil que representavam mais de 10% da população em 1880. Lá eles formaram rapidamente a elite da cidade, guardando o sobrenome português até hoje. Ainda existe até mesmo uma escola de samba. Houve uma migração de regresso parecida para o Benim, o Togo e Gana, assim como um fluxo de ex-escravos norte-americanos retornando para a Libéria e a Serra Leoa. Para os retornados, chamados de amarôs ou agudás em iorubá, a África era sinônimo de uma promessa – a promessa de uma retomada da história e da dignidade. A sua origem não se encontrava atrás, mas diante deles. Construída por engenheiros brasileiros, a Water House, assim como a Ebun House, a Shitta Bey Mosque e alguns outros monumentos históricos da antiga Lagos, está corroída pelo tempo e funde-se a um passado que, agora, corre o risco de ser varrido pela megacidade com seus atuais 22 milhões de habitantes. Mas, por ora, a nostalgia ainda leva os mo-
Do outro lado do Atlântico, no Rio de Janei-
radores a resistir ao declínio no Bairro Brasileiro.
ro, os fundamentos do antigo mercado de escra-
Em Lagos, nunca se sabe se as pessoas cons-
vos no Cais do Valongo vieram à tona durante
Da perspectiva arejada e fresca do alto do
troem a sua cidade ou se são elas mesmas as
obras de escavação para as Olimpíadas. Ali foram
Corcovado, mal se pode imaginar os dramas so-
pedras da construção. Para cada problema que
vendidos mais de um milhão de escravos entre os
ciais anônimos, a luta diária pela sobrevivência
solucionam, Lagos cria um novo, numa sucessão
séculos 16 e 19.
em uma economia precária, a violência latente e
interminável de provações.
Nos últimos anos, uma Pequena África foi
forense, pois até um cemitério de escravos foi descoberto recentemente.
os desgastes emocionais dos que estão submeti-
Toda a costa da África Ocidental e Central
construída em torno do Cais do Valongo, com
está coberta de testemunhos arquitetônicos
galerias e centros culturais afro-brasileiros. Mais
Em uma de suas canções, Gilberto Gil de-
do tráfico de escravos, seja a Ilha de Gorée, no
da metade dos 11 milhões de cariocas são afro-
nominou essa imagem complexa de “O paraíso
Senegal, ou o Castelo de Elmina e a Colônia de
descendentes. Não é de se admirar, portanto, que
paradoxo”, referindo-se à intransponível ambiva-
Brandemburgo, também chamada Grande Frie-
o legado cultural africano seja o foco de tantas
lência entre beleza natural e exiguidade humana.
drichsburg, em Gana; Uidá, em Benim, as Ruínas
discussões nos dias de hoje.
Para Pablo Neruda, por sua vez, o Rio era uma
dos ao calor sufocante lá em baixo.
de Bimbia na República dos Camarões, a Fortaleza
Próximo ao Cais do Valongo, encontramos o
de São Miguel, em Luanda, ou o assim chamado
Morro da Providência, a primeira favela do Rio,
O Rio Grande do Sul, assim como todo o Sul
Point of no Return, em Badagri, na Nigéria. E o
onde havia, até o começo do século 20, um mer-
do Brasil em geral, é considerado comumente
Rio Escravos no Delta do Níger, que carrega no
cado clandestino para o tráfico de escravos. Ali,
como “terra de brancos” por conta da imigração
próprio nome a sua sombria sina.
a busca por vestígios ganha um caráter quase
em massa de europeus no século 19, sobretudo
“esmeralda extraída do sangue”.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
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italianos e alemães. O que se esquece é que, a
de Atlântico Negro, um complexo entrelaçamento
partir de 1737, já havia escravos no Rio Grande
de componentes políticos, econômicos e culturais
do Sul, usados como mão-de-obra no temido tra-
dos dois lados do oceano, indo do Rio da Prata,
balho nas charqueadas. Fato é que, no começo
no Uruguai, a Nova York, e de Dacar à Cidade do
do século 19, a parcela de escravos em relação
Cabo. Por outro lado, em rigor, teríamos que am-
ao total da população daquela área era de 30%
pliar esse espaço até a Europa, já que foi este o
– mais alta do que no Rio de Janeiro ou Salvador.
continente que criou o tráfico de escravos e que
Testemunhos dessa presença africana são, até hoje, os 130 quilombos no Rio Grande do Sul, cinco deles na capital.
mais se beneficiou do triângulo transatlântico. A partir de 1942, o Atlântico transforma-se em uma verdadeira plataforma de interdepen-
Porto Alegre é uma cidade tipicamente
dências para as economias da África, América,
atlântica, não só pelo fato de os primeiros colo-
Caribe e Europa. Enquanto fusão de regiões re-
nos virem dos Açores, mas também porque a sua
lativamente autônomas, essa constelação passa
história reflete todas as particularidades desse
a ser o motor de mudanças históricas sem pre-
oceano de forma exemplar.
cedentes. Os afrodescendentes formavam o nú-
Obra do artista venezuelano radicado em Berlim Marco Montiel-Soto, no Memorial do Rio Grande do Sul
O Bairro Brasileiro em Lagos, o antigo mer-
cleo dessa dinâmica, pois todo o complexo do
Foto: Tuanne Eggers
cado de escravos no Rio, assim como os quilom-
tráfico transatlântico de escravos, em cujo centro
bos, compõem um eixo que poderíamos chamar
estavam as plantações no Brasil, no Caribe e na
Obra de Mary Evans, artista nigeriana radicada em Londres, no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
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América do Norte, constituiu um elo importante
O Novo Mundo passa a ser a foz para a qual
Vale pensar nessa arbitrariedade colonialista
no surgimento do capitalismo moderno. Slavery
correm os mais diferentes afluentes culturais, a
ao se observar a recente onda de refugiados em di-
is capitalism with its clothes off [A escravidão é o
“terra vazia” onde pessoas de todas as partes
reção ao Norte, movimento que vem ganhando di-
capitalismo sem roupas] (Paul Gilroy).
do mundo se encontraram, depois de os colo-
mensões bíblicas e é alimentado pelo êxodo rural,
Com exceção do Alasca e da costa norte-
nizadores europeus terem dizimado a população
por mudanças climáticas, conflitos internos e, não
-americana do Pacífico, praticamente todos os
indígena. Ninguém, com exceção dos indígenas,
menos relevante, por uma dinâmica demográfica
portos americanos foram pontos de transbordo
pertencia originalmente a esse lugar, nem os
sem precedentes que levará a população do conti-
de escravos – até mesmo cidades como Buenos
europeus, nem os africanos, os asiáticos ou os
nente a se quadriplicar ao longo do século, passan-
Aires, Montevideo ou Valparaíso, o que geral-
árabes. Em rigor, até os nativos também foram
do de 1,2 bilhão a aproximadamente 5 bilhões de
mente não se supõe. Se o número de afrodescen-
imigrantes quando chegaram da Ásia pelo Es-
habitantes. Com isso, a África abrigará quase me-
dentes na Argentina hoje é relativamente baixo,
treito de Bering, há 20 mil anos.
tade da população mundial no ano 2100, segundo
isso se deve, basicamente, à Guerra do Paraguai
O Novo Mundo é o lugar no qual assimila-
estimativas da ONU. Até lá, a megacidade de Lagos
(1865), na qual batalhões de negros foram siste-
ções e justaposições culturais foram negociadas,
– atualmente uma das metrópoles com a mais alta
maticamente dizimados.
onde a diáspora instalou-se sobre uma terra in-
taxa de crescimento – será provavelmente a maior
A atual supremacia das metrópoles do Norte
cógnita. Ele tornou-se o símbolo da própria mi-
cidade do mundo. Em 1950, a cidade tinha quase
só é possível graças aos lucros obtidos no histó-
gração, do viajar, do estar permanentemente em
500 mil habitantes, hoje já são 22 milhões.
rico comércio triangular: armamentos da Europa
movimento e da incerteza do regresso.
para a África, escravos da África para a América, açúcar e algodão da América para a Europa.
Essa convulsão demográfica – que se anun-
Assim, o Atlântico não nos leva a um país
cia como um leve tremor e colocará o continente
com uma cultura nacional rígida, mas antes flu-
e o mundo diante de desafios insuspeitáveis – é
Embora no século 18 a escravidão já fosse
ída e híbrida. O caráter aberto do mar permite
ainda mais surpreendente quando consideramos
considerada a representação do mal, e a sua
tanto o entrelaçamento quanto a movimentação.
que a população da África esteve praticamente
antítese conceitual, a liberdade, fosse aprego-
E a irresistível força do oceano pode também agir
estagnada devido ao tráfico de escravos entre os
ada pelos pensadores do Iluminismo na Europa
como uma forma alternativa de poder que sus-
séculos 17 e 19.
como o bem maior, a escravização de milhões
pende a ideia tradicional de soberania territorial.
Se até o século 19, os grandes dramas tive-
de africanos continuou intensificando-se até
Sob essa perspectiva, os barcos dos refugia-
ram como cenário o Atlântico do Sul, eles agora
que, em meados do mesmo século, a totalidade
dos que hoje vêm da África do Norte para aportar
transferiram-se com todo o furor para o Atlân-
do sistema econômico ocidental era dependen-
em Lampedusa ou na Sicília talvez mereçam uma
tico do Norte.
te dela. E foi esse desenvolvimento que, pa-
nova interpretação. Ou seriam eles apenas uma
Lá, as catástrofes estão se acumulando em
radoxalmente, propagou os ideais iluministas
contestação a Heródoto, que mais de 400 anos
intervalos cada vez mais curtos, de modo que
pelo mundo. Os mesmos filósofos que exalta-
antes de Cristo escreveu o seguinte:
podemos chamar o século 20 de “século breve”:
vam a liberdade como condição natural do ser
Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa, Se-
humano aceitaram a exploração do trabalho
Sem temer por nossas vidas nem pelo
gunda Guerra Mundial, Guerra Fria e Cortina de
escravo nas colônias como parte do inevitável
dinheiro, a cada ano enviamos um barco
Ferro, Pacto de Varsóvia e OTAN, etc.
curso da história.
à África em busca de respostas para as
É interessante como a formação de alianças
Da perspectiva cultural, a diáspora do
seguintes perguntas: Quem são vocês?
políticas – como, por exemplo, a OTAN – afeta
Atlântico Negro tornou-se espantosamente pro-
O que decretam as suas leis? Que língua
também as artes. A partir dos anos 60, desenvol-
dutiva, pois impulsionou um processo de criou-
falam? Eles, porém, nunca enviam um
veu-se uma estética hegemônica específica do
lização, levando a um intenso intercâmbio de re-
barco até nós.
Atlântico do Norte, primeiramente sobre o eixo
ligiões, idiomas, tecnologias e artes. Concepções
Nova York – Colônia, vindo depois a incluir Lon-
totalmente distintas de natureza, tempo e es-
O fluxo dos refugiados africanos é uma res-
dres e Berlim. Esta estética fez com que artis-
paço transformaram-se e reformaram-se, num
posta tardia à Conferência do Congo realizada
tas dos países da OTAN dominassem exposições
sistema extremamente dinâmico. A diversidade
em Berlim (1885), na qual a África foi partilhada
como a Documenta ou a Bienal de Veneza até o
cultural dos escravos africanos, composta de
entre as potências colonialistas europeias. O con-
início dos anos 90. Ou seja: o princípio de Alia-
centenas de idiomas e grupos étnicos, não ficava
tinente sofre as consequências dessa demarcação
dos e não Aliados foi transferido também para o
em nada atrás daquela da população indígena.
de fronteiras até hoje.
campo das artes.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
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Poderia a arte ocidental ser então considerada uma arte tribal?
Arte africana
Ao mesmo tempo, foram inauguradas várias bienais na própria África, entre outras em Dakar,
reação dos artistas à época que antecedeu a independência.
Joanesburgo, Marraquexe, Bamaco, Cairo, Cam-
Não surpreende que um continente do ta-
pala, Luanda, São Tomé e Príncipe, assim como
manho da África tenha fabricado uma profusão
em Lubumbashi, no Congo, além de vários espa-
de arquivos estéticos com raízes em pelo menos
A África moderna vive uma época densa como
ços para arte contemporânea e feiras de arte em
três legados: a cultura indígena, o cristianismo e
nenhum outro continente. Ela mal completou 50
quase todos os países importantes da região.
o islamismo, que coexistem num espaço estrei-
anos de idade e, com isso, é insignificantemente
Com isso, a arte africana contemporânea
tíssimo, como acontece na Nigéria. Os países do
mais velha do que a média de sua população
livrou-se de dois preconceitos de longa data: por
Golfo da Guiné não só abrigam cerca de mil gru-
atual. Ao mesmo tempo, ela ainda não se abriu de
um lado, o estigma do artesanato e da “arte de
pos étnicos diferentes, como ainda apresentam
todo à industrialização e, de fato, grande parte da
aeroporto”; por outro, de atribuições etnológicas.
elementos anglófonos, francófonos, lusófonos e
economia ainda consiste em escambo.
Como acontece em todo o mundo, a arte
até hispânicos e árabes.
Porém, nos últimos anos, pôde-se observar
contemporânea africana encontra-se num pro-
Entre o Senegal e a África do Sul, o Sudão e
um crescimento expressivo da produção artística
cesso permanente de renovação criativa. E, ainda
Angola, a identidade africana moderna é cunha-
nos centros urbanos. A África, como último
que sejam inegáveis as consequências do colo-
da por toda uma gama de encontros e interações
continente, torna-se enfim parte do panorama
nialismo, não se pode subestimar a importância
culturais, por intercâmbios e aculturações. E se,
artístico global, com todas as vantagens e
do intercâmbio artístico na passagem do período
no início, esses fenômenos tangiam basicamente
desvantagens que disso advêm.
colonial para o pós-colonial e, nesse contexto, a
a Europa e a América, no decurso da globalização
Obra do fotógrafo senegalês Omar Victor Diop, no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers
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primeiro SEMESTRE
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Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
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Obra do artista brasileiro Maxim Malhado (BA), no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers
Enquanto em São Tomé e Príncipe as la-
também dá à luz aquela crioulização a qual
vadeiras ainda estendem seus lençóis coloridos
Edouard Glissant refere-se ao falar do sincre-
para secar à beira do rio em meio a plantações
tismo das culturas sul-americanas e caribenhas,
seculares de cacau, como numa instalação ar-
fundamentalmente distintas das monoculturas
tística sobre o meio ambiente, o Moloque Lagos
atávicas que, seguindo a tradição, definem-se
devora, com sua bocarra insaciável, todos os que
pela exclusão.
atravessam seu caminho na labuta diária.
Os artistas centram seu interesse nesses
E se São Tomé, esse idílio na linha do Equa-
pontos de interseção das culturas indígena,
dor, continua sendo poupado pela guinada do
europeia e africana, de onde surge, consequen-
setor petroleiro no Golfo da Guiné, na Nigéria
temente, um novo amálgama americano. E essa
assomam todas as perversões de uma sociedade
fusão está ainda longe de concluir-se, mesmo
que, como um potlatch que tudo devora, apos-
porque influências de outras culturas continu-
ta no enriquecimento rápido e acaba perdendo
am sendo incorporadas.
todos os seus valores. Isso é comparável apenas com o que acontece atualmente na Venezuela. A Bienal exibe um antigo filme de propaganda de São Tomé, usado por Portugal há mais
Mas a arte contemporânea também põe o dedo na ferida do triângulo atlântico ao abordar os conflitos e transtornos causados pelo embate de civilizações e classes sociais diferentes.
de 100 anos para convencer uma Europa cética dos méritos de sua administração colonial.
A Bienal orienta-se nos cinco temas:
Quase ficamos com a impressão de que, naquela época, a ilha estava mais inserida no comércio
TRAVESSIAS DO ATLÂNTICO
internacional. Hoje, apenas um avião por dia
MATRIZES AFRICANAS
mantém o contato com o restante do mundo –
CULTURA INDÍGENA
eles agora se estendem também para a China, a
o que, dependendo da perspectiva, pode tanto
FLUXOS MIGRATÓRIOS E DIÁSPORA
Índia e o Golfo Pérsico. Ou seja, a arte africana mo-
ser uma bênção como um esconjuro.
INDIVÍDUO E SOCIEDADE
vimenta-se nas zonas de tensão entre diferentes arquivos: tradicionais e modernos, coloniais e pós-
A 11ª Bienal do Mercosul está concentrada
-coloniais, locais e globais, cosmopolitas e aqueles
A exposição
no Centro Histórico de Porto Alegre, utilizando
influenciados pela diáspora.
A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul ofe-
os espaços do Museu de Arte do Rio Grande
Por outro lado, ao contrário da arte ocidental,
rece um panorama contemporâneo das dinâmi-
do Sul, do Memorial do Rio Grande do Sul e do
que é estruturada, ou melhor, confinada em uma
cas e interdependências culturais do triângulo
Santander Cultural, assim como o da Praça da
sequência rígida de estilos, a arte africana contem-
atlântico, sem perder de vista algumas referên-
Alfândega. A poucos passos de distância encon-
porânea tem a vantagem de não ser ditada por ne-
cias históricas.
tra-se a Igreja Nossa Senhora das Dores, na qual
nhum cânone e de poder orientar-se estritamente
Protagonistas dessa busca de vestígios
será apresentada uma grande instalação sonora
transatlânticos são os 70 artistas de três con-
com oito línguas nigerianas e outras tantas lín-
Para compreender a África atual em todos os
tinentes, cujas obras abordam as dialéticas cul-
guas indígenas.
seus contrastes extremos, é aconselhável comparar
no aqui e agora.
turais dentro do triângulo. No processo, eles
No âmbito da pesquisa para a Bienal, no
São Tomé e Príncipe com Lagos. O primeiro é um
devem investigar quais são as forças inovadoras
primeiro semestre de 2017, foram realizadas
dos menores e mais pacíficos países do continente;
que podem ser mobilizadas hoje na interação
exposições com 12 artistas no Bairro Brasileiro
o segundo, a apenas uma hora de voo de distância,
entre América, África e Europa.
de Lagos, assim como no Espaço Saracura, no
é a maior cidade da África. Com mais de 22 mi-
É desse triângulo pluricultural aberto para
Rio de Janeiro. Outros artistas fizeram pesquisas
lhões de habitantes, Lagos será a cidade mais den-
todos os lados e com enorme capacidade de ab-
de campo em quilombos no Rio Grande do Sul.
samente povoada do mundo em apenas uma gera-
sorção que brotam a tensão e a dinâmica cultu-
Desta vez, um dos focos da mostra é a arte afri-
ção, pois sua população ganha oitenta habitantes
rais já descritas por Oswald de Andrade no seu
cana e afro-brasileira, apresentada pela primeira
por hora – dois mil por dia ou 700 mil por ano.
“Manifesto Antropófago”, de 1928. O Atlântico
vez nessa completude na Bienal do Mercosul.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2018
76
Cartografia dos artistas
de pessoas, coexistem ao lado de dezenas de lín-
problemas da atualidade. É quase como se hou-
guas menores, seriamente ameaçadas de extin-
vesse um acordo secreto com os grandes mestres,
ção: 152 línguas têm menos de cinco mil falantes,
um eco cuja força atravessa os séculos e que se
Nos trabalhos dos artistas oriundos de três con-
o limite mínimo para a manutenção de uma lín-
apresenta como um leal companheiro de estrada,
tinentes, surge uma cartografia complexa do
gua. As línguas basa-kontagora, kiong, kudu-co-
para que não estejamos mais submetidos somen-
Atlântico. Abordagens históricas de súbito coli-
mo, lere e njerep são faladas por menos de 100
te ao nosso raciocínio.
dem com realidades atuais, os trópicos com cli-
pessoas e desaparecerão ainda nesta geração.
mas mais amenos e estratégias documentaristas com abordagens poéticas.
Ao mesmo tempo, a arte vem incorporando
Contudo, mesmo as grandes línguas como
procedimentos das Ciências Naturais como a co-
o iorubá e o igbo correm risco de desaparecer
leta, o registro e a classificação. Em sua época,
Esse processo possibilita surpreendentes
em longo prazo, pois a língua franca, o inglês,
Alexander von Humboldt já defendia a “análise
mudanças de perspectiva, por exemplo, quando
e o inglês pidjin, avançam inexoravelmente. Em
estética de objetos da História Natural”. Ele uti-
uma artista europeia trabalha com iconografia
muitas famílias não se cultiva mais nenhuma
lizou várias vezes a expressão “Quadro da Natu-
africana; ou quando, em contraponto, um artista
língua indígena.
reza”, estabelecendo o fundamento iconográfico
africano debruça-se sobre os fenômenos sociais
Esse empobrecimento vem acompanhado de
europeus. O intercâmbio torna-se especialmente
perda de identidade e desintegração social. Re-
produtivo quando artistas afro-brasileiros pes-
presentantes da classe intelectual nigeriana che-
quisam a África Ocidental ou africanos dedicam-
gam a falar de autoescravização.
-se ao trabalho com arquivos brasileiros.
sobre o qual os artistas de hoje podem alicerçar seu trabalho. A escolha das línguas para a exposição ocorreu não somente seguindo critérios como impor-
A população indígena latino-americana
tância histórica e cultural do respectivo idioma e
Nosso mapa Atlântico está repleto de posi-
soma aproximadamente 28 milhões de habitan-
seu grupo étnico, mas também pelo grau de risco
ções artísticas que vão do Mar do Norte à Antár-
tes, ou seja, 6% da população total do continente.
de extinção e por seu apelo estético. Além disso,
tida e da costa leste norte-americana ao sul da
Espalhadas pelos seus 20 Estados, com exceção
os artistas definiram os temas e os tipos de texto
África. A Bienal estende seu foco até aquele espaço
de Uruguai, Cuba, Haiti e República Dominicana,
(por exemplo, ficção, fábula, oração, peça de tea-
tão fervorosamente disputado, no qual a civiliza-
estão presentes línguas ameríndias numa totali-
tro, trabalho acadêmico).
ção atlântica se encontra com a antiga Rota da
dade de quase 600 idiomas, o que corresponde a
Seda, suas religiões e valores, no Oriente Próximo.
10% das línguas existentes no mundo.
Ao adentrar a igreja Nossa Senhora das Dores, o visitante ouve, num primeiro momento, o mur-
Apesar das urgentes questões políticas e so-
Cerca de um terço delas está ameaçada de
múrio indefinido e polifônico de várias vozes, uma
ciais que emergem deste tópico, a Bienal persiste
extinção, e mais um terço encontra-se numa
tessitura de sons que lembra uma oração coletiva.
enfatizando a singularidade dos processos estéti-
situação crítica. Enquanto as línguas quíchua
Mas, assim que ele se aproxima das caixas de som,
cos e poéticos que, exatamente por estarem des-
(Peru, Equador, Bolívia), guarani (Paraguai), ai-
os diversos idiomas impõem-se de forma clara.
prendidos da loquacidade do dia a dia, permitem
mará (Bolívia, Chile, Peru), e náuatle (México)
A redução radical da instalação ao elemen-
a construção de universos alternativos. Quanto
têm, cada uma, vários milhões de falantes, lín-
to do som exige do visitante uma concentração
mais dramáticos os acontecimentos, maior a re-
guas como arara (Brasil), boruga (Costa Rica),
intensa, que tanto mais lhe permitirá abdicar de
levância da forma na obra de arte.
pipil (Honduras) ou chorote (Argentina), somam
elementos visuais quanto mais ele se predispu-
menos de mil falantes.
ser a mergulhar no cosmo das línguas raras. Vale
Idiomas em extinção
Enquanto no Brasil são faladas mais de 160
sublinhar ainda que todos os artistas trabalham
línguas, há poucas restantes na América Central.
em uma obra coletiva sem hegemonias nem
Das línguas existentes originalmente no ano de
hierarquias.
Das 6 mil línguas do mundo, 2 mil são faladas
1500, 85% já foram extintas. A língua yámana, da
Com cada língua extinta, desaparece não só
na África e, dessas, 500 só na Nigéria. Com isso,
Terra do Fogo, está nesse caminho: tem apenas
um legado linguístico valioso, mas também uma
o país ocupa o terceiro lugar no ranking mundial
uma única falante restante: Cristina Calderón,
visão genuína de mundo e do meio ambiente.
de diversidade idiomática, vindo logo depois de
nascida em 1938, em Puerto Williams, Chile.
Papua Nova Guiné e Indonésia. A título de com-
Em verdade, todas as vidas humanas findas
É notável que a arte contemporânea tenha
não compensam a perda de uma língua, pois é
se voltado para o legado histórico nos últimos
preciso uma língua para anunciar a morte de um
As três grandes línguas africanas, hauçá, io-
anos. Tudo indica que os jovens artistas não acre-
ser humano.
rubá e igbo, cada uma delas faladas por milhões
ditam mais poder resolver sozinhos os prementes
paração: a Europa abriga somente 120 línguas.
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
77
Ronald Augusto Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot. com e é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/. Em 2018, circula no RS pelo projeto Sesc Mais Leitura.
Vozes negras na literatura:
além da recepção convencional Podemos distinguir, esquematicamente, dois ti-
na unidade entre vida e arte, cai em contradição,
resenha em que afirma não ter cabimento falar
pos de artistas. Imaginemos, de um lado, aquele
pois sua posição, que implica a recusa de um eu
de literatura negra, porque, em sua opinião, os
espécime cuja arte se mantém muito rente à vida
enunciador que se assume negro no próprio tex-
africanos que vieram para cá não tinham litera-
e ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte
to, o fará negar, em fim de contas, a concepção
tura e que isso não fazia parte de sua cultura.
como uma transfiguração da circunstância, isto é,
de que a arte mais genuína é aquela que confina
A polêmica foi grande e frutuosa, e Gullar o seu
sua obra nos leva a supor uma indisposição com
com a vida. Em outras palavras, um escritor que,
maior beneficiado, já que, depois do texto pre-
relação ao real ou uma inclinação para a invenção
além de não dissimular sua condição de negro,
conceituoso que escreveu, recebeu informações
de um mundo alternativo. O senso comum parece
resolve tratar em sua literatura de questões como
de todos os lados sobre as tradições orais e a
disposto a dar mais crédito ao artista do primei-
o preconceito racial ou as nem tão veladas ten-
riqueza dos discursos formados a partir de sig-
ro tipo, ou seja, aquele para quem não há senão
sões étnicas da sociedade brasileira não seria um
nos não verbais presentes tanto na arte antiga,
o interesse na realidade imediata. Ao contrário
espécime do primeiro tipo de artista? Sua arte, a
quanto nas diversas culturas do ocidente e do
do representante do segundo tipo, este artista,
bem dizer, não nos faz supor um mergulho radical
oriente. Ferreira Gullar, nesse episódio bizarro,
a princípio, não pode ser um fingidor. O fruidor
num aspecto concreto da existência? O impasse
não reconheceu a importância da cultura e do
admira o poeta que suja suas ferramentas inspe-
tem a ver com a recepção. E, às vezes, a recepção,
conhecimento orais seja para o africano, seja
cionando os transes do vivido. Assim, o objeto de
mais do que desinformada, se revela maledicente.
para a sua diáspora brasileira. A capacidade de
arte se transforma num sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência existencial.
A publicação Literatura e afrodescendência
produzir tanto formas de pensamento, como de
no Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), re-
discursos literários não pressupõe de maneira absoluta a tecnologia da escrita.
Precisei desse preâmbulo pela seguinte ra-
sultado da colaboração de 61 pesquisadores de
zão: há uma percepção de que a verdadeira arte
21 universidades brasileiras e estrangeiras, reúne
Contra tal pano de fundo é que julgo impor-
se confunde com a vida e isso, bem ou mal, ser-
em seus quatro volumes um conjunto de textos
tante discutir os limites e as virtudes da literatura
ve de critério para avaliarmos uma infinidade de
literários e análises voltados à vertente negra. Tal
negra. Mas, com relação ao tema, minha atitude
manifestações criativas. Porém, talvez, com uma
vertente ou produção se constitui numa forma
tem mais de metalinguagem do que de afirma-
exceção: a literatura negra. Explico-me. Muitos
de canto crítico e paralelo ao percurso canônico
ção concludente. Uns pensam a literatura negra
não aceitam que o qualificativo seja aplicado à
das obras estruturantes da literatura brasileira
desde a perspectiva de lances identitários através
noção de literatura, baseados na crença de que a
enquanto sistema. Pouco depois do lançamento
dos quais a prática literária se efetiva como tes-
arte não tem cor. Ora, mas ao não dar crédito à
deste livro, Ferreira Gullar (1930-2016), repre-
temunho de verdade racial. Do ponto de vista da
literatura negra, o objetor, que deposita confiança
sentando parte da recepção maledicente, escreve
criação e da reificação de uma literatura negra,
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
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podemos afirmar que isso se limita com um es-
E porque ela não abarca apenas o real, nem lhe
ninguém desprezasse essa vírgula imiscuída
forço coletivo e extraliterário que tem em vista,
deve qualquer tipo de fidelidade, é que se pres-
entre os dois termos, forçando uma breve, po-
antes, redefinir um pertencimento etnopolítico,
ta, à maravilha, também como uma investigação
rém necessária disjunção. Para Oliveira Silveira,
do que propor uma forma específica de lingua-
do imaginário, das profundezas, do não dito, das
o qualificativo – seja qual for – que vem após
gem. É como se a vida, mais uma vez, tomasse a
proibições, e isso tudo operando via linguagem,
a vírgula não é, de modo nenhum, irrelevante,
dianteira, restando à arte um papel menor.
ou seja, por meio de abstrações sígnicas.
mas, apenas, secundário. Ou melhor, trata-se de
Assim, é fundamental não perder de vista
O que de fato interessa, entretanto, é o ne-
uma linha por meio da qual podemos arriscar
nessa discussão um dos termos do nosso con-
cessário comentário crítico a uma espécie de efei-
uma leitura precária, provável. Desgraçada-
ceito, a saber, a literatura – e aqui encareço a
to legitimador que – no respeitante a uma descri-
mente, as explicações inessenciais acerca da
acepção artística contida em sua área semântica.
ção-legitimação dessa literatura, negra – visa a
coisa acabam por substituí-la. Nesses debates
E sendo literatura, suas determinações se apresen-
transformar em paradigma aquelas obras em que
purgativos tendemos a ficar com a explicação
tam por meio da linguagem como um jogo equí-
se observa, em primeiro plano, à maneira de um
e descartamos o objeto artístico em si mesmo.
voco que nomeia e transfigura o real. Vale dizer,
pórtico, a afirmação da identidade, ou de um nós
Mas esses contratempos militantes, enervando
o mundo representado é, a um só tempo, emol-
excessivamente ideologizado e, de resto, difícil de
de quando em quando as discussões relativas
durado e sacudido pela linguagem. As imagens do
verificar, mas indispensável em termos de deman-
à impostura da função social da arte, estão aí
objeto literário são lacunares. O escritor antilhano
da de um grupo diante de uma situação político-
como um rumor de fundo, uma tensão; e dão,
Édouard Glissant entende a poesia como ultrapas-
-social conflituosa e/ou desfavorável. Um efeito
por assim dizer, certo charme retrô ao processo.
sagem da convenção; só com a perturbação das
observável nesse esforço de legitimação, de vez e
Um outro problema diz respeito ao seguinte:
regras públicas do discurso é que ela é capaz de
voz a serem conquistadas, talvez seja o seguinte:
quem fala, afinal de contas, no poema ou no tex-
cair em uma espécie de tormenta, de torneio, de
o escritor negro que se apresenta à discussão é
to? A busca programática de um eu enunciador
embriaguez, sem deixar de ser significante.
tolerado como útil depoente; seus escritos, ao fim
que se assume negro no tecido da linguagem, em
No que concerne às formas através das
e ao cabo, se revelam como meras provas, docu-
substituição a um conceito de literatura negra
quais esse traço constituinte de uma possível
mentos, literatura como testemunho, misto de
acoplada à cor da pele do escritor ou ao assun-
vertente negra é incorporado ao exercício poético
verismo e depoimento necessário. Não obstante o
to abordado por ele, só aparentemente indica
de cada escritor, ficamos propensos a acreditar
que quer que o escritor realize deva ser chamado
um passo à frente nessa discussão. A indagação
muito facilmente que a sua mera descrição – ou
em princípio de – pausa para a palavra a seguir
acerca de quem fala no poema resta ainda sem
a sua representação – poderia dar conta tanto
– arte, restam, ainda assim, aqui e ali, análises e
desfecho – aliás, a pergunta pode permanecer
dessa realidade, quanto justificaria a existência
intervenções que insistem em colocar sua criação
sem resposta. Digamos, entretanto, para todos os
de tal experiência expressiva no campo literário.
artística a serviço de “causas e compromissos his-
efeitos, que quanto mais valência poética um tex-
Isto equivale à certa tolerância com que tratamos
tóricos”. Pode-se argumentar que o que vem após
to contém, mais difícil se torna denunciar quem
a coisa desde o ponto de vista estético do artesa-
a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”,
ou o quê fala (ou emudece) através da máscara
nato, ou seja, quando tendemos a simpatizar, por
“feminina”, é que rende assunto a essa espécie de
do poema. Onde predomina a função poética da
exemplo, com os pintores que retratam sinceros
fogo amigo. O que parece ser fundamental admi-
linguagem, temos como resultado uma men-
quadros de costumes ou de gênero. Acreditamos,
tir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra
sagem mais ambígua. Roman Jakobson afirma:
dessa maneira, criadores e apreciadores, que tal
só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma
“a ambiguidade se constitui em característica
discurso pode dar conta da realidade de fundo,
de discurso que tem sua autonomia conectada
intrínseca, inalienável da poesia”. Portanto, con-
do contexto que molda o homem e sua experiên-
ao campo estético. Essa produção não pode fazer
tinua o linguista, não só o próprio poema, mas
cia. Mas isto é um equívoco ou uma simplificação,
uma aposta apenas no que é acidental.
igualmente seu destinatário e seu remetente se
porque esse suposto pertencimento “muito bem
A este propósito evoco uma passagem de
tornam ambíguos. O texto literário deve manter-
pintado” seja a um lugar, seja a um grupo social
minha convivência com o poeta Oliveira Sil-
-se simplesmente sob a pressuposição da existên-
e humano, é outra coisa que não essa aparência.
veira (1941-2009), intelectual negro e um dos
cia e da essência do homem-leitor. Pois quem é o
Ora, a poesia até os nossos dias já se consagrou,
proponentes do 20 de Novembro, Dia Nacional
leitor? Diz-se que procurar por este receptor ideal
e pode ser que até demasiadamente, como uma
da Consciência Negra. Uma vez, Oliveira me dis-
é como atirar em um peixe com um estilingue no
arte que consegue realmente ir além das apa-
se que não tinha trauma nenhum em se deixar
escuro. No poema, de maneira geral, o sujeito -
rências. Parece ser esta uma das suas vocações.
reconhecer como um “poeta, negro”, desde que
esse ego scriptor - vacila. A propósito, cabe lem-
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
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respeito, o grupo Quilombhoje que há mais de três décadas tem servido de espaço de lançamento e de discussão da produção negra (em prosa e poesia) mais recente. Por outro lado, sempre que me pego refletindo mais uma vez sobre essa literatura – na perspectiva dos dilemas contemporâneos –, não deixo de mencionar alguns escritores. Não porque talvez representem, com suas criações, o sangue novo na corrente sanguínea e, portanto, reuniriam, digamos assim, as melhores condições para renovar a vertente negra; não. O que importa para mim é que quando me vejo diante dos textos destes autores, percebo outras questões criativas. Suas intervenções mais do que consagrar, mantêm o espaço em construção, aberto a investigações e revisões de linguagem de toda ordem. Assim, fazendo um corte drástico no agorabrar uma pergunta de Friedrich Nietzsche: “por
prio. Portanto, se for preciso, mesmo que provi-
-agora desta produção – pois reservo, à parte,
que não somos irônicos com o sujeito, como o
soriamente, encaixar nosso virtual escritor negro
uma série de autores que, no mínimo, enrique-
somos, por exemplo, com predicado e o objeto?”.
na moldura do artista participante, ele só o será,
cem o debate –, indico ao leitor, além do imenso
Ainda nos mantemos muito respeitosos com as
no meu entender, segundo a acepção que Mario
Oliveira Silveira (1941-2009), os nomes de Ar-
ficções ou com os dogmas da gramática.
Faustino (1930-1962) empresta ao qualificativo,
naldo Xavier (1948-2004) e Ricardo Aleixo, po-
Muito bem, para todos nós, esse debate, no
a saber, seu apetite de linguagem será “partici-
etas interessados na experimentação enquanto
que concerne às posições e contraposições dos
pante como a poesia deve ser participante, isto
conquista e na intersecção entre as linguagens;
implicados, envolve uma espécie de odi et amo.
é, em todos os sentidos: cultural, social, existen-
Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma
De minha parte, me defino mais por uma atitude
cial, político, estético. Participação nos destinos
vigorosa recriação da episteme afro-brasileira; e,
problematizadora do que por uma disposição de
do homem e nos destinos da poesia”. O percurso
finalmente, Cidinha da Silva, prosadora refinada
cerrar fileiras. A ideia de criação e de reiteração
literário de qualquer artista da palavra projeta o
que situa seu texto na nervura do presente, aten-
de uma vertente negra na literatura se limita com
texto como uma fatura sígnica cuja existência
ta aos ardis das representações e das afecções a
um esforço coletivo que objetiva antes redefinir
não pode se justificar apenas para servir às ne-
que são submetidos os negros contra um pano de
um pertencimento etnopolítico do que reivindicar
cessidades de certas interpretações, por mais bem
fundo multimídia. É importante referir também a
uma comunidade cuja identidade só se manteria
intencionadas que elas sejam.
atuação do coletivo de escritores negros Ogum’s
na forma de uma camisa-de-força. O tópico da
Finalmente, toda essa rica controvérsia tem
Toques, de Salvador, que vem aplicando energia
literatura negra é um debate que não deve ser
colaborado para que a literatura negra comece a
na divulgação dos escritores negros da tradição e
encerrado, assim, às pressas. Exceto, talvez, do
assumir um lugar de importância no cenário cul-
do presente e apostando no diálogo interessado
ponto de vista acadêmico ou do discurso militan-
tural brasileiro. Há registros de escritores negros
sobre as formas discursivas assumidas por essa
te, é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As
com obras publicadas já no século 18 e seus des-
literatura. Por fim, quem está mesmo disposto
tensões étnicas, sociais, antropológicas e políticas
dobramentos em termos de formas e ideias che-
a ampliar o apetite pela literatura para além do
às quais esses textos em algum momento fazem
gam até o presente. Em Literatura e afrodescen-
convencionalmente tolerável precisa ler este con-
alusão, essas, sim, podem e devem ser resolvidas.
dência no Brasil: antologia crítica, o interessado
junto de escritores negros.
Mas um poema de verdade não admite solução.
vai encontrar um mapeamento surpreendente de
Com efeito, a arte da literatura se constitui como
poetas e prosadores negros que permaneciam à
um tipo de linguagem que não é nem “verdade”
margem. A tradição segue a se atualizar critica-
nem “mentira”, senão que tem um estatuto pró-
mente no presente. É importante lembrar, a este
Ronald Augusto Foto: Divulgação
literatura
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Fe liz ani ver sá rio
As tias permanecem no carro, Sofia e a mãe só
a filha de recomendações. A caixa gelada pesa no
buscam o bolo, questão de minutos. Saem da
colo da garota.
confeitaria, a mãe carregando, com as duas mãos,
Sofia mexeria mais as pernas se pudesse,
a caixa. No banco do carona, Juliana, a prima,
se não tivesse um metro e oitenta. Um metro e
destrava as portas. Os óculos de sol, a janela aber-
oitenta que se tornaram um metro e oitenta só
ta e a camiseta de mangas longas da prima são
de pernas. O banco vibra enquanto a mãe liga o
incompatíveis. Juliana emagreceu muito desde a
carro e dirige-se à casa de Juliana e da tia. Juliana
última vez que ela e Sofia se viram.
permanece em silêncio, mexe nas mangas, puxa-
Enquanto Sofia planeja sua entrada no banco traseiro, Juliana – no banco da frente – ajeita as mangas longas.
-as para cima das mãos. As tias voltam à conversa em voz alta com a mãe de Sofia. Falam da festa. O calor deixa marcas
As duas tias, ambas com IMC de classificação
de suor nas roupas de tecido estampado, na região
de, no mínimo, obesidade mórbida, empurram-se
das axilas. Sofia concentra-se no bolo dentro da
para que Sofia entre no carro, no banco de trás, ao
caixa: o bolo da prima é bonito, sim. Confetes co-
lado delas. A mãe de Sofia insiste para que ela co-
loridos cobrem o bolo, o recheio tem camadas co-
loque o cinto de segurança. Sofia coloca-o, ajusta
loridas das cores coloridas do colorido do arco-íris.
a postura, sente o apertão no peito. Ajusta as per-
O bolo tem – conforme a atendente chama – uns
nas com dificuldade no banco de trás do carro, as
três andares de glacê magenta. O peso pressiona
tias grunhem a cada movimento. Apertam-se. A
as pernas de Sofia, machuca. As tias falam dos sal-
mãe coloca devagar a caixa de papelão no colo de
gadinhos, da festa, dos convites, da decoração da
Sofia. Mal a mãe se vira para o volante, ela enche
casa, telefonemas, de quem virá à festa, de quem não virá, xingam os ausentes com palavrões.
Conto inédito
– Mas nem por isso as pessoas tinham que
de Luisa Geisler
deixar de comparecer – diz uma tia. – A gente não
Escritora duas vezes
precisa se ver só em aniversários. Sofia imagina que a mãe se esforce para ou-
vencedora do Prêmio
vir as tias com os ruídos de carro, que entram pela
Sesc de Literatura
janela escancarada de Juliana. A mãe, dirigindo, olhando as ruas, os carros, diz: – É que muita gente se magoou. Acham que é coisa de gente mimada.
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
81
– E não vir quer dizer o quê?
Juliana voltou para casa há apenas uma se-
Quando eram pequenas, Sofia e Juliana
Juliana pede, sua voz baixa, pede que mu-
mana. A umidade do bolo atravessa a caixa e atra-
gostavam de dançar atrás da casa, perto da
dem de assunto, que falem de outra pessoa. A
vessa a regata de Sofia, gruda na barriga. Juliana
árvore. A tia derrubaria a laranjeira para au-
tia baixa a voz, volta a falar dos salgadinhos de
perdeu tantas aulas na universidade, talvez o se-
mentar a garagem. Juliana chorou trancada
festa, do bolo escolhido colorido com colorido
mestre inteiro, talvez reprovasse por faltas. Sofia
no quarto ao saber da laranjeira.
colorido colorido especialmente para a festa.
sentiu a falta da prima durante Antropologia IV,
Juliana sempre foi sensível demais.
Reclama de um farol onde pararam.
quis dormir durante todo o pós-estruturalismo.
O farol abre. Sofia sorri. O carro vibra
O carro se abafa com a espera sob o sol,
O celular tocara num dia de calor idêntico.
com o movimento do motor, movimento
calor, bolo úmido. As pernas da tia ao lado pren-
Sofia se lembrava de que naquele dia vestiu uma
das ruas. O cheiro de suor que vem das tias
dem, cada vez mais, Sofia entre a porta do carro
jaqueta de moletom sobre o pijama e passou calor
e dela mesma não a incomoda. O morma-
e contra a gordura da tia. Sofia sente suas per-
no hospital sem poder tirá-lo. Sofia não se recor-
ço do carro, a umidade que Sofia lança na
nas mergulharem no tecido adiposo, a gordura
dava se o calor pertencia àquele dia ou ao mole-
camiseta regata, em sua testa, em torno de
da tia abraça o raquitismo de Sofia. Sofia respira
tom. Mas o corpo inteiro suava. Parecia a Sofia que
seu cabelo loiro preso num curto rabo-de-
fundo, sentindo o cheiro do aromatizador de la-
tudo aquilo fazia anos, mas foram semanas. Sofia,
-cavalo, nada daquilo a incomoda. O bolo
vanda, o cheiro de rua entra pela janela. Náusea.
de férias, meio adormecida em casa, recebendo a
pesa no colo. Juliana acabou de perguntar
Falta-lhe ar, falta-lhe ar, todo o ar do carro, todo
ligação dos tios no meio da tarde.
se está tudo bem lá, com Sofia, com Sofia e
o ar das janelas escancaradas é supérfluo, falta-lhe ar dentro do pulmão, ela nunca encherá o pulmão de oxigênio por completo, falta-lhe silêncio.
Sofia se lembrava de que fazia brigadeiro de panela naquela tarde. Chamaram Sofia e a mãe ao hospital. Sofia sujou o pijama, vestiu a jaqueta de moletom.
Sofia inspirando e expirando, repetindo
Os tios deveriam estar em viagem, mas sentiram-
para si que tudo ficaria bem, a umidade do bolo
-se culpados de deixar Juliana sozinha. A família
atravessando a caixa atravessando a calça jeans
deveria viajar em conjunto, como sempre fizera.
até as coxas magras, até os ossos.
Voltaram. Na sala de espera, as lágrimas emoldura-
Juliana vira o pescoço para trás, o cinto de
vam os discursos de “e se…”, jogando as culpas em
segurança impedindo-a de virar-se inteira. Ju-
todos os lugares e pessoas. Sofia baixou a cabeça
liana olha para Sofia por trás dos óculos de sol.
quando os pais perguntavam a ela por que Felipe, o
Os óculos de sol cobrem metade do rosto e me-
namorado de Juliana, não atendia aos telefonemas
tade da expressão. Com um sorriso literalmente
deles. O médico acalmava-os, afastava as preocu-
amarelo, Juliana diz com a voz baixa:
pações, deixassem Felipe de lado, o pior já havia
– Tá tudo bem aí contigo?
passado, Juliana estava bem, estava ali.
Juliana, a sensível Juliana, sem Felipe, mas com Sofia e Juliana e Sofia sorri: – Tudo ótimo.
literatura
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2018
82
POR Natalia Polesso Doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Seu terceiro livro, Amora (2015), foi vencedor dos prêmios AGES – Livro do ano, Açorianos de Literatura na categoria contos 2016, 1º lugar no Prêmio Jabuti categoria contos e crônicas, além do prêmio Jabuti Escolha do Leitor.
Amanda Amanda ainda está sonolenta quando o quarto passa da escuridão completa a uma penumbra azulada e, três minutos depois, a uma claridade pálida. O painel mostra sua escala de trabalho para hoje: transferência no CIIGZO do Setor 303. Acordar com a escala era algo que a irritava profundamente logo que foi relocada para a Detenção Secundária, agora tanto faz, só quer cumprir sua pena o mais rápido. Com os dedos amplia o mapa, depois suspira e diminui a imagem para conferir o trajeto. Naquela localização terá que pegar transporte duplo para chegar. Não gosta. Pegar o transporte duplo significa mais tempo embaixo da terra, mais tempo sob aquela luz descorada, mais tempo de artificialidades, para ela, desnecessárias. Amanda ainda mantém velhos hábitos. Um deles é caminhar, o outro é tomar café. Caminhar à deriva, ao ar livre, não é algo que as pessoas façam hoje. Não existe caminhar sem rumo. Todas as pessoas têm trajetos a cumprir. E quando não têm, não podem ficar na rua, simplesmente. Quando a escala de Amanda indica um local mais próximo, ela evita o transporte
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
83
las. Amanda não gosta de alimentar frustrações.
virtuais foram recolhidos e destruídos ou retidos
Prefere acreditar em pequenos gestos.
indefinidamente para análise. Amanda foi pega
O tempo de Amanda vale Trocados. Ali-
com material impróprio armazenado em um tele-
ás, o tempo de todos vale Trocados. O sistema
fone celular desconectado. Não havia muita coisa.
é simples. Os painéis contabilizam o tempo de
Eram fotos de quadrinhos: Gidalti Jr., Ana Luisa
serviços prestados e um percentual de Trocado
Koehler, Luli Penna. Material subversivo, alusivo
é investido nas CCorrentes diariamente. As pes-
à formação e à deterioração das cidades velhas e
soas são livres para fazer o que bem entendem,
antigas, além de questões sociais relativas a femi-
quando têm vontade. As vagas aparecem inin-
nismos. Apreenderam o celular e a levaram para
subterrâneo e todas as esteiras que consegue. São
terruptamente no painel de cada um, as pessoas
questionamento. Amanda não cooperou.
poucas as pessoas que ainda andam pelos anéis
selecionam a oferta e recebem uma proposta
Todos os tipos de comunicação do mundo
externos, é preciso ter estômago para encarar a
de local, trabalho, hora e Trocado. Há muita de-
velho e antigo estão banidos. Agora só há os
margem. A vida, sem os painéis, sem a luz arti-
manda. Há muito para fazer. Os serviços espe-
painéis, controlados pelo Governo. Informes,
ficial, sem o som ambiente e toda a falsificação
cializados valem entre 01-100 Trocados, nestes
notícias gerais e locais, tudo devidamente edi-
do prazer pode ser bem inóspita. Amanda ainda
setores – cifras maiores circulam em setores
tado, conforme a necessidade de cada Núcleo
assim a prefere. Ela acha que aquilo a faz lembrar
privados, não nos comuns. O valor depende da
de Setor. Também servem como meio de comu-
um pouco do que era a humanidade. O café ela
relação demanda/oferta, de maneira que você
nicação entre amigos e familiares. O controle
consegue numa loja de produtos sintéticos ainda
pode ser uma neurocirurgiã, uma doceira ou
dos painéis é absolutamente rigoroso e usá-lo
possíveis. Não é o melhor café do mundo, lembra
uma transmissora. Caso, por exemplo, a deman-
para comunicações pessoais não autorizadas sai
um pouco o café americano, mas cumpre a fun-
da da doceira estiver em alta, o valor da troca
sempre muito caro. Amanda cumpre paciente-
ção de animá-la.
de seu serviço é o que vale mais. A sensação de
mente sua pena. Quer se reintegrar à resistência
Hoje Amanda transfere informações no CII-
liberdade de escolha foi um determinante para o
assim que sair. Já sabe como.
GZO 303. Quando ela precisa ir até essa parte
crescimento dos níveis de felicidade. O índice de
Amanda calça as botas e veste o unifor-
do Condado, aproveita e compra o café. Compra
felicidade per capta é maior do que o da média
me azul, especial dos Transmissores. A função de
também algumas balas azedas, se possível, porque
ali. As pessoas têm marcado números altos ao
Amanda é receber os boletins do Centro de Infor-
gosta de interagir com a vendedora por mais um
fim de suas jornadas colaborativas, o que, para
mações Integrado do Governo e editá-los confor-
tempo. Amanda pergunta se chegaram as balas,
o Governo corresponde a uma ótima aceitação.
me o Setor para qual é enviada no dia. Ela recebe
ela responde. Amanda pergunta sobre os sabores,
A maior parte das pessoas é bombardeada com
as notícias no dia anterior, em casa, pelo painel, de
ela responde. Amanda pede uma quantidade de-
notícias positivas. Descobriram também que a
modo que trabalha nos centros dia sim, dia não. No
terminada, e ela sempre coloca uma bala a mais
sensação de satisfação é algo muito mais impor-
dia que recebe as notícias pelo painel, sua casa fica
e sorri. Uma vez Amanda comprou uma laranja,
tante do que a satisfação real, se é possível dizer
sitiada. Ela não pode transferir nenhuma informa-
gastou um minuto inteiro pedindo informações,
isso. Amanda não consegue entender. De qual-
ção, antes que sejam aprovadas pelo Conselho. Ela
quase se tocaram quando a laranja escorregou do
quer maneira, o tempo de Amanda vale menos
não tem escolha, seu serviço é sempre o mesmo.
balcão. Ao esticar o braço para alcançar o produ-
Trocados, porque uma porcentagem deles é sub-
O que a faz persistir é o azedume das balas, isso e
to no chão, por uma tensão mútua, tomaram um
traída como manutenção da pena que cumpre.
a doçura no ato singelo de adicionar uma a mais.
choque: eletricidade estática. No susto de ambas,
Oito ciclos inteiros é o que Amanda ainda
Enroladas naquele papelote extra, que promete um
a moça pode ver que o bracelete de Amanda era
tem que trabalhar naquele setor para cumprir sua
sabor de maçã verde ou amora, na verdade vão
um bracelete de Indivíduo Retido. Nesse mo-
pena. Caso seja aprovada por comportamento
instruções de fuga e localizações. Depois dos ciclos
mento, desviou o olhar e então, seus olhos e os
exemplar, o tempo diminui, mas não acontecerá,
restantes da pena, Amanda fugirá com a vendedo-
de Amanda se cruzaram. Amanda entendeu que
visto que Amanda apenas cumpre suas funções
ra, cujo nome ainda não sabe, mas cujo desejo de
aquilo era um flerte. E era. A moça quase sorriu.
sem mover um átimo a mais para nada que não
escapar daquela vida, compartilham. Micro ações
No fim, a fruta estava tão seca e com gosto de
seja estritamente oficial. Amanda cumpre pena
de camaradagem, nisso Amanda acredita por en-
passada, que nunca mais arriscou gastar tantos
por “Comunicação Não Autorizada de Natureza
quanto. E quando escaparem juntas, aí sim, poderá
Trocados por um desejo de vida que ela sabia que
Vil”. Resistiu quando proibiram as Comunicações
acreditar em grandes amores.
não seria cumprido. Agora prefere apenas as ba-
relacionadas à Arte. Todos os materiais físicos e
literatura
primeiro SEMESTRE
2018
84
MÚLTIPLA ESCOLHA
O TEMPLO Stephen Spender
OS SEGREDOS DA ARTE DA FUNDIÇÃO
MILES DAVIS – a AUTOBIOGRAFIA
Alejandro Zambra Tusquets Editores
Rocco
Julio Cesar da Silva Rivatto
Editora Campus
Os limites da ficção se alargam
“Vou para Berlim, deixo esse país
A publicação apresenta a
Comecei a ler a autobiografia desse
neste romance de Alejandro
onde a censura proíbe James Joyce
técnica da Fundição – dentro
gênio que esteve na vanguarda de
Zambra. Dispensando a
e a polícia invade a galeria em que
da linguagem da Escultura
quase todos os desenvolvimentos
formalidade, ele constrói a
os quadros de D.H. Lawrence estão
é uma das técnicas mais
do jazz dos anos 1940 até os 90 e
narrativa a partir da estrutura
sendo exibidos”. Paul, jovem poeta, vive
antigas e também uma das
não consegui mais sair de casa até
da Prova de Aptidão Verbal,
tempos difíceis na Inglaterra.
mais utilizadas. Além do que,
terminar o livro. Trata-se de uma
aplicada no Chile de 1966 a 2002
A Alemanha parecia um paraíso
procura dar visibilidade à pessoa
grande enciclopédia do gênero
aos candidatos a universidades.
eterno, sem censura, no qual a
e ao artista fundidor Vilmar
em que a retrospectiva da carreira
Com questões objetivas e textos
juventude e seus poetas tinham uma
Luiz dos Santos, que desde há
do trompetista e compositor é
de apoio, discute memória e
liberdade extraordinária para viver e se
muito vem emprestando seus
atravessada por histórias de sua
identidade, conduzido por uma
expressar. Mas o colapso econômico
conhecimentos a inúmeros
vida nem um pouco convencional.
voz que faz um acerto de contas
com a quebra da bolsa de Wall Street e
escultores gaúchos. Generoso -
Miles é considerado um dos mais
com o pai e com o filho e que
o consequente desemprego vai afetar
como em geral são os encontros
influentes músicos do século
reconhece, em si e nos outros, as
a todos. Para muitos, o verão de 1929
entre amigos - o livro vem
20. Enquanto os outros artistas
marcas deixadas pela história do
foi o último da República de Weimar,
repleto de imagens, mostrando
iam para um certo caminho, ele
país e pela ditadura. Uma reflexão
pois a Alemanha andava no rumo
os passos e os procedimentos
quebrava todos os paradigmas e,
sensível e indignada sobre as
da dominação pelos nazistas que, a
a todos aqueles que buscam
misturando muito, abria uma nova
escolhas que fazemos: legítimas,
partir de 1933, imporiam a mais rígida
desvendar os segredos da
frente. Mas o que me surpreendeu
forçadas, usuais, cruéis ou,
censura e perseguições sem fim.
fundição [fogo, água, terra e ar].
foi a sua vida pessoal, muito ativa
simplesmente, múltiplas.
O livro, único do poeta, crítico literário,
Boa leitura! Axé!
e rica em “loucuras”. Ele era de uma
Miles Davis e Quincy Troupe
professor, ensaísta, militante marxista
inteligência absurda e totalmente
e atuante na defesa civil durante
avesso a regras. Chegou a ficar seis
os bombardeios contra Londres,
meses trancado em casa, sendo
possibilita um mergulho na História
alimentado por uma pequena
que teima em ressurgir com novos
abertura. E na biografia, ele relaciona
formatos e, talvez, em cores mais
essas questões pessoais com o
espalhafatosas, mas com personagens
impacto em sua genialidade musical.
sempre reconhecíveis e perigosos. Luciana Thomé
Gilberto Perin
Leandro Machado
Evandro Matté
Jornalista
Fotógrafo, roteirista e diretor
Artista visual
Maestro
literatura
primeiro SEMESTRE
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literatura
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