Revista Arte Sesc - maio 2018

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PRIMEIRO SEMESTRE

2018 ISSN 1984-056X

NARRATIVAS E CONTRASTES NO FESTIVAL PALCO GIRATÓRIO OS 20 ANOS DO SONORA BRASIL A TRAJETÓRIA E OS PROCESSOS CRIATIVOS DO TEATRO DA VERTIGEM




28

08

40

artes cênicas

caderno de teatro

música

08 A questão racial está no centro do debate no

28 Teatro da Vertigem: os 25 anos do

40 Os 20 anos do Sonora Brasil – Formação

espetáculo do Coletivo Negro, de São Paulo,

coletivo, formado pelos diretores

de ouvintes musicais, o maior projeto de

na programação do 13º Festival Palco Giratório

Antônio Araújo, Eliana Monteiro e

circulação de música do país

Sesc em Porto Alegre

Guilherme Bonfanti, que tem uma trajetória marcada pela ocupação

10 Viviane Juguero defende, em artigo,

46 Com o tema Na Pisada dos Cocos, Sonora

de espaços não convencionais como

Brasil circula com quatro grupos que mantêm

dramaturgias radicais para gerar a consciência

hospital, igreja, travessa subterrânea

viva a cultura do Nordeste

de que a violência contra a mulher está

desativada, balancins na fachada

fundamentada em aspectos culturais

externa de prédio na Av. Paulista e até

16 Reverberações do Seminário Práticas de Emergência Cênica, ação realizada no 12º

49 Alejandro Brittes e Magali de Rossi investigam

mesmo o Rio Tietê; os longos processos

a origem e outros aspectos do Chamamé, que

de criação de espetáculos como BR-3,

será tema da ópera Terra Sem Males, com

Kastelo e O Filho

estreia prevista para o segundo semestre, em

Festival Palco Giratório Sesc, e o debate sobre

São Miguel das Missões (RS)

questões fundamentais do contexto social, histórico e cultural contemporâneo O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

DIRETORIA Luiz Carlos Bohn

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

www.sesc-rs.com.br ISSN 1984-056X

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GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Audiovisual

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Canoas  Av. Guilherme Schell, 5340  51 3463.6756 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3905.3500 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403 Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099

Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Protásio Alves  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Porto Alegre  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


54

69

77

aUdioVisUaL

artes VisUais

LiteratUra

54 Mostra O Lobo à Espreita faz homenagem ao

69 No artigo O Triângulo Atlântico, o crítico de

77 Poeta e músico Ronald Augusto, que circula

centenário de nascimento do cineasta sueco

arte e curador da 11ª Bienal de Artes Visuais

por municípios gaúchos pelo projeto Sesc

ingmar Bergman, diretor de 53 produções para

do Mercosul, Alfons hug, discorre sobre o

Mais Leitura, é autor do artigo Vozes Negras

cinema e TV, entre elas Persona, Morangos

olhar lançado pela exposição para o oceano

na Literatura: além da recepção convencional

Silvestres, O Sétimo Selo e Fanny e Alexander

que liga os destinos da América, África e Europa há mais de 500 anos

61 O escritor e cineasta Tabajara Ruas, cuja

80 Feliz Aniversário, conto inédito de Luisa Geisler, escritora duas vezes vencedora do

obra circulará em uma mostra do Sesc/RS no

Prêmio Sesc de Literatura

segundo semestre de 2018, revela 20 anos de 82 Natália Polesso, autora de Amora (2015),

bastidores das produções da Walper Ruas

livro vencedor dos prêmios Ages – livro do 64 Filmes selecionados na etapa estadual da

ano, Jabuti e Açorianos, apresenta o conto inédito Amanda

2ª Mostra Sesc de Cinema representam a pluralidade da produção cinematográfica

84 dicas de Leirura

gaúcha

CAPA

Unidades sesc/senac alvorada av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal av. General osório, 1030 51 3682-3041 caçapava do sul av. 15 de novembro, 267 55 3281.3684 capão da canoa av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí morada do Vale r. Álvares cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba r. nestor de moura Jardim, 1250 51 3402.2106 itaqui r. dom Pedro ii, 1026 55 3433.1164 Jaguarão r. 15 de novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha rua nivio castelano, 926 54 3358.5729 nova Prata r. Luiz marafon, 328 54 3242.3437 osório av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das missões r. marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 quaraí av. sete de setembro, 1281 55 3423.5403 santiago av. Getúlio Vargas, 1079 55 3251.9373 são Gabriel r. João manuel, 508 55 3232.8422 são sebastião do caí r. 13 de maio, 935 sala 04 51 3635.2289 são sepé r. coronel chananeco, 790 55 3233.2726 sobradinho r. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 três de maio travessa da Praça Bandeira, 65 55 3535.2255 três Passos rua dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria r. Júlio de castilhos, 1874 54 3232.8075

FaLe conosco

eXecUção e ProdUção editoriaL

51 3284.2000 faleconosco@sesc-rs.com.br sescrs sesc_rs sescrs sescrs

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andréa costa (andrea@pubblicato.com.br) diretora de criação e atendimento Vitor mesquita

diretor editorial e de criação designer e editor de arte

clarissa eidelwein (mtb nº 8.396) edição e reportagem

Patrícia Lima

revisão de texto

o Filho, teatro da Vertigem Foto: Humberto araújo


PRIMEIRO SEMESTRE

2017

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PRIMEIRO SEMESTRE

2017

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Obra de Faig Ahmed, no Margs, por ocasião da 11ª Bienal do Mercosul Foto: Tuane Eggers

cultura para emocionar A arte está por toda a parte e presente em momentos extremamente relevantes de nossas vidas. E aqui no Sesc/RS temos clareza da grande importância de se promover o fazer artístico, mas principalmente de facilitar o acesso do público a essas manifestações. Trabalhamos diuturnamente para que, pelo fomento das ações culturais, façamos a formação de plateia em todo o nosso Estado. Exemplo disso é o que ocorre, há 13 anos, com o Festival Palco Giratório Sesc, em Porto Alegre. É uma iniciativa ainda jovem, mas com grau de amadurecimento que nos mostra o quanto é fundamental proporcionarmos eventos como este a milhares de espectadores. Esta edição da Revista Arte Sesc apresenta matéria especial sobre o Festival e artigos de grupos participantes, como o caderno especial sobre os 25 anos do Teatro da Vertigem. Também aborda conteúdos relacionados ao Sonora Brasil Sesc, à Bienal do Mercosul e ao Prêmio Sesc de Literatura, e muito mais. Notem que a diversidade de linguagens é uma das premissas do Arte Sesc – Cultura por toda parte e é evidenciada nesta publicação, ao apresentarmos temáticas das artes cênicas, da música, da literatura, do audiovisual e das artes visuais. Espalhando a cultura por todas as regiões do Rio Grande do Sul, seguimos com o propósito de cuidar, emocionar e fazer pessoas felizes. Que mais sorrisos possam ser vistos nos nossos teatros, galerias, cinemas, praças, ruas e palcos! Uma ótima leitura!

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

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O negro na cena Coletivo Negro, com o espetáculo Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens, coloca a questão racial no centro do debate


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

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Cinquenta espetáculos de 43 grupos oriundos de

no país em todos os níveis, em todos os campos

Para Jé Oliveira, nos últimos anos, do ponto

13 estados brasileiros, 100 sessões artísticas, além

com relação à questão racial. No teatro não se-

de vista das instituições, entre elas o Sesc, abriu-

de atividades de intercâmbio e conexões, estão

ria diferente, e nosso empenho é no sentido de

-se uma possibilidade de debate para provocar a

em cartaz no 13º Festival Palco Giratório Sesc em

tratar o tema do ponto de vista de negros e ne-

reflexão acerca do racismo e do extermínio, tan-

Porto Alegre, de 4 a 26 de maio. A programação,

gras, pelo viés poético e cênico”, afirma o diretor

to físico quanto simbólico, da juventude negra.

com o objetivo de instigar o pensar crítico, traz

e dramaturgo, que também atua nos espetáculos

As peças vêm tendo boa recepção do público e

trabalhos que caminham pelo limite do que é le-

da companhia.

da crítica. Em 2012, o Coletivo Negro, via edital

gitimado socialmente, nas fronteiras da dignida-

“Assim como Simone de Beauvoir fala que

público, foi o primeiro grupo de teatro que de-

de, em terrenos marginalizados e com difícil ou

não se nasce mulher, mas torna-se mulher, entre

senvolveu uma pesquisa racial a ocupar artisti-

quase nenhuma inserção. Muitas dessas histórias

os negros também é assim. Eu queria entender a

camente o Teatro da Universidade de São Paulo

contadas através do teatro, da dança, da música e

trajetória política de afirmação que uma pessoa

(TUSP). Revolver circulou pelo país e participou,

do circo carregam a marca da violência – simbó-

negra percorre até se identificar como tal”, expli-

inclusive, de um festival em Angola, na África,

lica, física, social e psicológica.

ca. Essa foi a investigação para a elaboração da

enquanto Farinha com Açúcar, há três anos em

Exemplo de dramaturgia política é a peça-

dramaturgia de Farinha com Açúcar, espetáculo

cartaz, esteve na programação de todos os gran-

-show Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de

que integra o circuito nacional do Palco Girató-

des festivais do Brasil.

Meninos e Homens, que tem a violência contra os

rio 2018. O artista entrevistou 12 homens negros

“Do ponto de vista social, mais amplo, o diá-

jovens negros como tema central. Nela, o Coletivo

de diversas idades e ocupações. Foi aplicado um

logo não evoluiu e a gente continua sendo assas-

Negro, de São Paulo, utiliza-se da presença cênica

questionário padrão, abrindo-se para temas mais

sinado. O que aconteceu com a Marielle Franco,

como construção poética, em busca de uma rela-

específicos a partir das respostas. “Um elemento

por exemplo, só teve tamanha repercussão por

ção íntima com o público, para contar, expor, cele-

de unidade para a maioria dos participantes é a

ela ser uma vereadora. Isso acontece todos os

brar, refletir e dialetizar o personagem do homem

relação precoce com a morte. Morte de parentes

dias na periferia, com homens e mulheres, sobre-

negro na urbanidade periférica. O grupo teve ori-

próximos, de amigos, sobretudo de modo violen-

tudo com homens.”

gem na pesquisa que Jé Oliveira iniciou no curso de

to e pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Direção da Escola Livre de Teatro de Santo André,

É o eixo norteador da obra. Começamos falando

sobre a invisibilidade social, com a colaboração dos

da morte para chegar na vida. Invertemos a tra-

estudantes de Atuação Jefferson Matias e Thaís

jetória da vida natural para tentar refletir sobre

Dias, e está completando 10 anos. “Para continuar

isso: precisamos de fato poder viver e há séculos

a debater e a fazer um teatro comprometido com

estamos sendo impedidos.”

questões étnico-raciais, convidei os atores Ra-

Um dos entrevistados mencionou a memória

phael Garcia, da Escola de Arte Dramática da USP,

afetiva de ver um tio, aos finais de semana, com

Flávio Rodrigues e Aysha Nascimento, também da

um toca-discos na calçada, limpando os vinis e co-

Escola Livre, que investigavam essa temática. Já

locando música para a vila inteira ouvir e dançar,

nos primeiros encontros, nos reconhecemos como

uma espécie de DJ. “Essa imagem, de alguma for-

coletivo”, conta o idealizador. Desde então, o gru-

ma, está contida no espetáculo porque o encontro

po encenou Movimento Número 1: O silêncio de

com a cultura ocorre mais pela via da música. Isso

depois... (2011), {ENTRE} (2014), Revolver (2015),

ecoa com a minha trajetória de afinidade com mú-

Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Me-

sica negra, o funk dos anos 70 e depois o rap dos

ninos e Homens e Ida (2016).

Racionais Mc’s como os principais disparadores e

A investigação levou à percepção de que a

fomentadores de uma capacidade de identificação

presença do negro na dramaturgia nacional era

racial e revide social”, diz o dramaturgo. Ele está

invisível, quando existia. “Havia uma carência

em cena acompanhado de uma banda formada

grande de ter nossas questões representadas

pelos músicos Cássio Martins, Dj Tano – Záfrica

em primeira pessoa, então nos movimentamos

Brasil, Fernando Alabê, Mauá Martins e Melvin

muito com esse aparato poético de linguagem

Santhana. Eventualmente Kl Jay, integrante dos

para tentar diminuir o hiato histórico que existe

Racionais Mc’s, participa como DJ do espetáculo.

Farinha com Açúcar ou Sobre a Sustança de Meninos e Homens integra o Circuito Nacional do Palco Giratório Foto: Evandro Macedo


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

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Por Viviane Juguero Dramaturga, brincante, professora e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS.

1 Ou vetorizado, conforme Patrice Pavis (2010). 2 Cronotopo, segundo Mikhail Bakhtin (2010). 3 O vídeo está disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=tItTvA4e6eo

Dramaturgias radicais no combate à violência contra a mulher Apesar das inúmeras medidas públicas, das severas

As dramaturgias estão imbricadas no con-

obras audiovisuais e videoclipes, além de determi-

leis e dos programas de conscientização adotados,

texto histórico/sociocultural do qual fazem parte e

nadas criações musicais, coreográficas e circenses,

a violência contra a mulher no Brasil só aumenta,

exercem funções basilares na estruturação social,

podem ser observadas do ponto de vista da criação

em crescente sucessão de crimes de feminicídio,

já que são essenciais às formas de subjetivação de-

dramatúrgica.

além de assustadores índices de agressão física,

senvolvidas em cada sociedade, aos valores éticos

No que diz respeito às construções de gê-

moral, psicológica e afetiva. A ineficácia das me-

e morais que as respaldam, às construções discur-

nero, pedagogias subliminares predominantes

didas de punição com vistas à redução dos crimes

sivas críticas, à consolidação de pedagogias subli-

em discursos artísticos da cultura brasileira con-

revela que o tema precisa de ações que gerem a

minares e ao direcionamento da estruturação de

tribuem de forma contundente na manutenção e

consciência de que essa violência está fundamen-

desejos, anseios e objetivos que predominam em

na geração do “emocionar”, que resulta em agres-

tada em aspectos culturais, que precisam ser mo-

determinados ambientes culturais. Evidentemen-

sões contra a mulher. Não é possível dissociar os

dificados desde a raiz.

te, essas dramaturgias participam dessas mesmas

altos índices de feminicídio no Brasil, os números

Segundo Humberto Maturana e Gerda Ver-

construções, vinculadas a outros fatores sociais

de estupro e as agressões físicas, verbais e morais

den-Zoller (2004), a configuração do “emocionar”

que, por sua vez, são influenciados por elas e as

sofridas pelas mulheres, das produções culturais

embasa a perpetuação da maneira de conviver

influenciam.

que constroem a imagem de mulher-objeto. São

em uma determinada cultura, durante seguidas

A definição de dramaturgia sofreu diversas

incontáveis realizações artísticas, oriundas de di-

gerações. Para os autores, a especificidade da co-

alterações no decorrer da história. Em meus estu-

versos setores da sociedade, que incentivam o

ordenação de coordenações de ações e emoções

dos, proponho concebê-la como a criação discur-

abuso sexual, moral e, até mesmo, as agressões

(2004, p.14) resulta na rede de conversações que

siva de um trabalho estético composto de ações

físicas contra as mulheres. Um exemplo bastan-

constitui o modo de convivência de uma dada

em desenvolvimento, num processo autoral axio-

te eloquente dessa realidade é o vídeo da música

cultura, gerando hábitos, valores e maneiras de

lógica e perceptivamente direcionado (BAKHTIN,

Fala Aqui Com a Minha Mão, de Wesley Safadão[3],

perceber o mundo.

2010)[1], que forma um conjunto complexo de

um cantor muito popular nas camadas menos

elementos organizados em tempo e espaço ficcio-

intelectualizadas da sociedade brasileira. A letra

nal[2] de maneira roteirizada, denotando, de forma

prega a irresponsabilidade masculina para com a

latente ou explícita, a possibilidade de materializa-

companheira (agregando status social a esse com-

ção em outra linguagem artística.

portamento, que é incentivado e louvado) e induz

A Mulher Arrastada, na programação do 13º Festival Palco Giratório em Porto Alegre, traz a história real de uma mulher, negra, trabalhadora, mãe, assassinada pela polícia do Rio de Janeiro em 2014 Foto: Regina Peduzzi Protskof

Entendo também que a dramaturgia pode ser

à agressão física, caso ela demonstre descontenta-

concretizada em sentido estrito, como texto literá-

mento com o desrespeito sofrido. Ele canta: “Fala

rio de caráter tabular (UBERSFELD, 2010), ou em

aqui com a minha mão, que eu não ‘tô’ com pa-

sentido amplo, como construção discursiva da en-

ciência para muita discussão”. Por que esse tipo

cenação (PAVIS, 2010). Dessa forma, peças teatrais,

de manifestação não é considerado crime em nos-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

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artes cênicas

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

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Quarto 19, na programação do Festival, é a história de uma mulher de classe média que espera o filho mais novo entrar na escola para ter algum tempo para si Foto: Cris Lyra

sa sociedade? As recentes conquistas nos campos

a percepção de um mundo constituído pelo res-

racial, religioso e da afetividade gay têm evitado

peito à diversidade e pela valorização das atitudes

manifestações culturais explícitas dessa natureza

de cooperação e de real interesse em aprender na

(embora, infelizmente, ainda existam as agressões

alteridade. desde a mais tenra idade, as meninas

estéticas implícitas em grande quantidade). Por

são submetidas a construções estéticas e compor-

que em relação à mulher essas violências são tole-

tamentais que as valorizam como objetos sexuais

radas? Mais assustadora ainda é a maneira como

ou, ao contrário, como seres maternais despro-

essas construções discursivas são justificadas e

vidos de sexualidade e desejo. Já os meninos são

banalizadas. Num dos vídeos que apresenta a can-

confrontados com modelos de masculinidade em

ção citada, as pessoas dançam abrindo e fechando

que a força física e o desfrute sexual de diversas

o polegar em oposição aos demais dedos unidos,

mulheres são considerados ideais. isso impede que

como se a mão estivesse falando, o que, para al-

ações de cumplicidade e respeito para com suas

guns, resulta na compreensão de que se trata de

companheiras gerem o prazer e a satisfação que

uma brincadeirinha inocente. No entanto, deixar

poderiam ser vivenciados com base em princípios

uma pessoa que foi desrespeitada falando sozinha

culturais diversos.

não seria, por si só, uma grande agressão? A ambi-

A cultura machista é composta por valo-

guidade do gesto e os valores exaltados na canção

res basilares e emoções que englobam homens

não deixam nenhuma dúvida sobre o incentivo à

e mulheres em um sistema complexo, no qual a

prática de desrespeitos de múltiplas ordens contra

polarização de gênero resulta em percepções sec-

a mulher. infelizmente, nossas produções culturais

tárias que não contribuem para a superação do

estão repletas de exemplos dessa natureza.

problema. dizer que determinadas mulheres se

À revelia de a legislação brasileira condenar

comportam de maneira tal, que provocam deter-

os crimes de abuso contra a mulher, inúmeros ob-

minadas atitudes por parte dos homens, tem sido

jetos estéticos, para adultos e crianças, continuam

argumento de justificativa do machismo em di-

incentivando os mais variados tipos de violência,

versos contextos. O comportamento de homens e

falsamente respaldados em discursos que defen-

mulheres resulta de pressões e valores sociais que

dem a “liberdade de expressão”. O enorme público

os respaldam. Qualquer tentativa de simplificação

que consome essas dramaturgias revela, de forma

e generalização resultaria em análises superficiais.

assustadora, o quanto a sociedade brasileira ainda

A violência contra a mulher (alicerçada no machis-

precisa evoluir nesse sentido e explicita os motivos

mo) não é uma questão de responsabilização de

emocionais e axiológicos que fazem com que as

gênero, mas sim um problema cultural que atinge

legislações tenham sido muito pouco eficazes na

toda a sociedade de forma complexa e induz com-

diminuição de agressões morais, físicas e afetivas

portamentos e visões de mundo. Enquanto esse

contra as mulheres.

tema não for abordado enfaticamente na raiz do

Mesmo em meio às inúmeras discussões atu-

problema, não acredito que alguma lei, por si só,

ais sobre o tema, ainda predominam construções

poderá evitar a crescente sucessão de agressões e

artísticas cujo discurso de gênero ou objetifica a

crimes existentes em nossa sociedade.

mulher ou idealiza sua capacidade de tolerância,

Cabe integrar a essa reflexão o quanto as

de luta e de realização de diversas tarefas ao mes-

emoções que geram essas ações têm resultado

mo tempo. Essas dramaturgias respaldam, sublimi-

em milhares de crianças sem pai e na sobrecar-

narmente, atitudes de exploração e abandono afe-

ga de mulheres, que muitas vezes ainda são res-

tivo e estrutural sofrido por milhões de mulheres.

ponsabilizadas por serem mães solteiras. Não há

No que diz respeito à infância, meninas e

uma cobrança moral e severa no que concerne ao

meninos são vítimas de um sistema que os rotula

abandono paterno, apesar do avanço ocorrido na

em estereótipos comportamentais que dificultam

legislação atinente em nosso país. A condescen-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

13

Narrativas de Cor e Cór (2015), com dramaturgia de Viviane Juguero, aborda a relação matrística cooperativa como alternativa ao sistema competitivo patriarcal Foto: Acervo do Programa FORPROF/UFRGS

dência social com a irresponsabilidade paterna é

Por certo, essa realidade é composta por

Desenvolvi o conceito de dramaturgia radi-

revelada, por exemplo, quando um homem é de-

inúmeros fatores vinculados a seus contextos es-

cal no decorrer do meu doutorado, realizado no

clarado um excelente pai porque visita os filhos

pecíficos. No entanto, o papel das manifestações

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da

nos finais de semana, os leva para passear e “aju-

discursivas artísticas da cultura machista é con-

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a

da” nas despesas. Quando uma mãe seria louvada

tundente nos processos que geram e respaldam

orientação de João Pedro Gil.

por tal comportamento?

as construções éticas, morais e afetivas que em-

A dramaturgia radical está fundamentada no

basam as emoções, das quais resultam ações de

envolvimento investigativo, afetivo, político e pe-

desrespeito e violência contra a mulher.

dagógico de quem cria composições artísticas, re-

Quantos dos adolescentes mortos diariamente no Brasil são oriundos de famílias desestruturadas e sofrem com a rejeição física, sentimental

Devido à complexidade das constituições

velado na assunção de sua responsabilidade, con-

e moral paterna? Quantas crianças são vítimas do

sociais, não é possível nem idealizar o papel

forme preconiza Mikhail Bakhtin (2010). A noção

abandono afetivo materno devido à desestrutura-

das construções discursivas do teatro, audiovi-

de radical que abordo é proposta por Paulo Freire

ção emocional de mães subjetiva e objetivamente

sual, música e artes plásticas, nem negligenciar

(2016 [1970]), para quem o posicionamento radical

sobrecarregadas, além de moralmente abusadas?

a força da sua influência na configuração de

pressupõe a permanente busca de consciência na

O oferecimento de estrutura física pode maquiar,

cada sociedade. Com base na convicção de que

percepção das ações em seus contextos sócio-his-

em muitos casos, a ausência de cumplicidade emo-

somente a alteração das emoções, geradas por

tóricos, reconhecendo a dialeticidade necessária a

cional sofrida por milhares de crianças e jovens.

valores éticos e morais subjetivados e objetiva-

toda a transformação, por meio de escolhas em-

O abandono afetivo na infância e na adolescência,

dos em ações, é capaz de transformar realidades,

basadas na práxis – ação e reflexão. Associo esse

que resulta da desestruturação emocional da cul-

defendo a fundamental relevância da criação de

embasamento à noção de pedagogia radical, que

tura machista, agride mulheres e homens e está

dramaturgias radicais no combate à violência

Henry Giroux (1988) propõe ao vincular os pensa-

presente em todas as classes sociais.

contra a mulher.

mentos de Freire e Bakhtin. Para Giroux, os textos


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

14

4 Com base no entendimento de que o pensamento filosófico é toda a construção heterocientífica que enfoca a complexidade da vida (BAKHTIN, 2010).

são construtos sociais concatenados aos interesses

gerados e geradores, constituindo complexas rela-

nem da consciência nem da afetividade, nem da

que os sustentam e legitimam e que podem tanto

ções dialéticas de coordenações interdependentes

objetividade, nem da subjetividade, as quais ope-

possibilitar quanto restringir determinadas repre-

de geração das condições de vida. Desse modo, o

ram em permanentes relações dialéticas.

sentações sociais e reflexões. Giroux entende que

sentido figurativo de origem, presente na palavra

A dramaturgia radical é gerada por reflexões,

todo o texto é gerado pelo contexto e gerador des-

raiz, é um aspecto fundamental no entendimento

afetamentos e instabilidades. A pessoa criadora

te mesmo contexto, em uma construção dialética

da dramaturgia radical como fator determinante

é convidada a refletir sobre si mesma e sobre os

que permite transformações, mas também pode

na construção moral, ética, estética e afetiva social.

grupos com os quais pretende dialogar. Ela precisa

ratificar e fortalecer valores constituídos.

Nesse sentido, encontro na brincadeira as raízes da

ainda reconhecer que as criações artísticas abar-

No conceito de dramaturgia radical, agrego

dramaturgia (SANTOS, 2004; JUGUERO, 2014) e os

cam escolhas conscientes e construções incons-

aos autores citados as ideias desenvolvidas por

fundamentos ontológicos da complexidade de seu

cientes, assim como fatores culturais e pessoais,

Maturana e Verden-Zoller (2004) sobre a origem

papel na constituição social como um todo.

subjetivos e objetivos, identificáveis ou não iden-

matrística da humanidade. A noção matrística de

Para Paulo Freire (2016 [1970]), o posiciona-

tificáveis (BAKHTIN, 2010). Nesse tipo de criação, a

radical é de que não há nem subordinação nem

mento radical é dialético e precisa ser desenvolvido

autora ou o autor aceita colocar-se em uma situa-

independência absoluta de nenhum campo do vi-

por meio da consciência colaborativa e do esforço

ção de “risco responsável” – uma posição que pode

ver e do saber. Assim, todas as ações, pensamen-

de pensar no modo de pensar da outra pessoa ou

ser comparada, metaforicamente, com o equilíbrio

tos, sentimentos e percepções humanos estão

grupo, respeitando as diferentes culturas e modos

precário que Barba (1995) sugere ao ator –, na qual

encadeados em um amplo sistema no qual são

de expressão. Nesse processo, o pensamento críti-

é possível ousar e assumir escolhas estéticas, éti-

co surge do diálogo que oportuniza a transforma-

cas, afetivas, políticas e pedagógicas, evidenciadas

ção e reflexão de todos os envolvidos, não havendo

na composição artística e nas formas de proposi-

uma via de mão única na qual os detentores da

ção dialógica.

Quarto 19 tem concepção e atuação de Amanda Lyra

sabedoria apresentam verdades absolutas a seres

O posicionamento filosófico[4] que embasa

considerados ignorantes e desprovidos de toda a

a dramaturgia radical está distante tanto da in-

Foto: Cris Lyra

consciência. Com base nessas premissas, a noção

tenção de transformar o mundo abruptamente

No 13º Festival Palco Giratório: As Mulheres do Aluá, do grupo O Imaginário (RO), coloca em foco as relações de gênero e o universo feminino em diferentes épocas, na Amazônia

de radical que proponho para o conceito de dra-

quanto da crença que é impossível transformá-

maturgia radical é constituída pela integração en-

-lo. Ao reconhecer que as elaborações artísticas

tre razão e emoção, não sendo possível prescindir

fazem parte de uma engrenagem social em per-

Foto: Leonardo Valério


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

15

manente construção, assim como todos os discur-

especificidades de linguagem em cada caso, reco-

sos e atos, percebe que as dramaturgias integram

nhecendo a lógica lúdica do pensamento infantil

a cultura cotidiana de forma intensa e significativa,

(JUGUERO, 2014) e os processos de constituição

exercendo papel eloquente nas constituições axio-

de valores, hábitos e afetos predominantes nes-

lógicas culturais que respaldam a coordenação de

ses momentos da vida. Dessa forma, as criações

ações e emoções que geram os modos de vida.

afetivas, envolventes e desafiadoras parecem ser

A dramaturgia radical não pretende apre-

caminhos que respeitem a autonomia das crian-

sentar discursos ortodoxos, mas possibilitar novas

ças na criação de sentidos e que instiguem as

percepções sobre os aspectos culturais que levam

múltiplas percepções, vetorizando (PAVIS, 2010)

à manutenção e à ampliação das agressões con-

construções éticas e morais que contribuam em

tra a mulher. Este tipo de criação pode explicitar

um posicionamento crítico, autocrítico e afetivo.

e questionar construções artísticas discursivas que

As dramaturgias para crianças podem colaborar

suscitam elaborações subjetivas e emocionais que

na percepção orgânica da diversidade, na des-

respaldam a violência contra a mulher. As drama-

construção de modelos de gênero hegemônicos

turgias radicais precisam desnudar a contradição

e na elaboração de distintas maneiras de agir e

da cultura brasileira que gera, por um lado, as ne-

emocionar, fundamentadas no amor e no respeito

cessárias e bem elaboradas leis que confrontam

à alteridade.

as agressões contra a mulher e, por outro, os pro-

Por fim, cabe salientar que este artigo in-

dutos que originam e sustentam essas agressões.

tegra meu trabalho como pesquisadora e artista

Elas podem ser uma maneira de lutar não somen-

criadora, tendo a práxis como base investigativa,

te contra o efeito da violência, mas, em especial,

fundamentada na metodologia dialética que João

contra suas causas. Como gerar novas emoções e

Pedro Gil (1999, 2004) propõe ao campo das Artes

desejos, que resultem em transformações efetivas

Cênicas, na qual teoria e prática são reconhecidas

dos modos de agir e de se relacionar?

como parte integrante de um mesmo processo

No que diz respeito às crianças e adolescentes, a dramaturgia radical compreende as

criativo, sem dissociação e em cooperação.

Referências BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec Ed. da Unicamp, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2016. GIL, João Pedro Alcantara. “A abordagem dialética na pesquisa de teatro e educação”. CENA: Revista do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Porto Alegre, n. 3, p. 59-66. Novembro de 2004. . Para além do jogo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1999. GIROUX, Henry. Escola Crítica e Política Cultural. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. JUGUERO, Viviane. Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças. Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Porto Alegre, 2014. MATURANA, Humberto; VERDE-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar. São Paulo: Palas Athena, 2004. PAVIS, Patrice. A Análise dos Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010. SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos. Brincadeira e conhecimento: Do faz-de-conta à representação teatral. Porto Alegre: Mediação, 2004. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.

Exploração sexual, violência e abandono estão em O Cavalo de Santo (2016), com dramaturgia de Viviane Juguero e direção de Jessé Oliveira Foto: Acervo de Jessé Oliveira

O Método Arbeuq (2016) tem dramaturgia radical de Viviane Juguero e direção de Jessé Oliveira Foto: Márcio Garcia


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

16

Por Patrícia Fagundes Diretora da Cia Rústica de Teatro, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC).

Vera Lúcia Bertoni dos Santos Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC).

PRÁTICAS DE EMERGÊNCIA CÊNICA: seminário em tempos de urgência ou para estender a conversa Celebrando sua intenção artístico-pedagógica ex-

zados em diferentes Mesas Temáticas, com inter-

riências vivenciadas nos diferentes encontros, de

pandida, o Festival Palco Giratório Sesc, nas três

venções artísticas incorporadas. São elas: Poéticas

modo a aprofundar temas relacionados a seus

mais recentes edições, promove um Seminário

Urbanas; Lugar de Mulher; Movimentos da Pala-

interesses de pesquisa na área de Artes Cênicas.

que, na articulação entre a programação cênica e o

vra; Colaborações e Horizontalidades: processos de

Os textos produzidos evidenciaram pontos de vis-

debate sobre questões fundamentais do contexto

criação; e Corpo Político.

ta diferenciados sobre os temas do Seminário e

social, histórico e cultural contemporâneo, propõe um espaço-tempo de encontro e reflexão.

A parceria entre o Festival Palco Giratório e

possibilitaram narrativas de experiências pessoais

o PPGAC da UFRGS concretiza-se a partir da con-

relacionadas à criação, à fruição, à produção e à

Desenvolvido em parceria com o Programa de

cepção e da organização compartilhadas entre nós,

formação artística, tudo articulado aos concei-

Pós-Graduação em Artes Cênicas do Instituto de

professoras do PPGAC, e a coordenação do Sesc

tos referenciais das pesquisas dos seus autores.

Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

no planejamento do Seminário, cujas atividades se

O compartilhamento das produções escritas dos

(PPGAC), e promovendo a interseção entre universi-

vinculam a uma disciplina (Tópico Especial II) ofe-

participantes entre si, e conosco, através de um

dade e produção artística, arte e outros saberes, po-

recida a estudantes regulares de cursos de mestra-

blog de acesso restrito, e de exposições orais para

lítica e criação cênica, o Seminário do Festival Palco

do e de doutorado da UFRGS. Também participam

o grande grupo, propiciou trocas frutíferas que re-

Giratório Sesc foi inaugurado no ano de 2016, sob a

das aulas alunos de outras universidades, além

sultaram na revisão e no aprimoramento do mate-

temática Práticas Políticas da Cena Contemporânea,

de artistas, professores e pesquisadores selecio-

rial, motivando esta publicação.

e teve sua segunda edição em 2017, com o título

nados e inscritos na condição de “aluno especial”.

Assim, pensamos em tornar os textos públi-

Práticas de Emergência Cênica.

Os temas do Seminário são abordados em Mesas

cos, para apresentar um panorama dos debates

Em 2018, o Seminário do Festival recebe a de-

Temáticas previamente definidas, compostas por

ocorridos no evento, demonstrando a pluralidade

nominação Práticas de Reinvenção em Tempos de

docentes do Programa e por convidados eventuais:

dos discursos e dos pontos de vista que compuse-

Urgência, pensada a partir da necessidade, e mes-

artistas, professores, pensadores. O formato dos

ram os encontros.

mo da urgência, de responder coletivamente aos

encontros prevê exposições individuais dos convi-

Além de dar visibilidade à rica e entusiasmada

desafios e golpes nos tempos turbulentos em que

dados, debates com o público presente e interven-

conversa iniciada no Seminário de 2017 e conti-

vivemos. Em diálogo com o mundo, no enfrenta-

ções artísticas. Além da presença nos encontros

nuada na sala de aula da disciplina do PPGAC, os

mento das provocações e nas limitações de diver-

do Seminário e em alguns encontros específicos

textos são aqui compartilhados com a intenção de

sas ordens, as artes tendem a reinventar, sob estí-

da disciplina, é solicitado aos alunos o compareci-

estender a nossa conversa a outras gentes, artis-

mulos diversos, modos de criação e de produção de

mento a dois espetáculos da programação do Fes-

tas ou não, dispostas a pensar coletivamente seus

formas alternativas de existência. O objetivo desta

tival Palco Giratório (indicados previamente com

fazeres artísticos, pedagógicos, críticos e reflexivos

edição é promover a reflexão e o debate acerca da

intenção de fomentar o debate e a reflexão crítica

como ações alternativas comprometidas com a

criação e da produção cênicas, compreendendo-as

em sala de aula). É essencial ainda a produção e o

transformação da sociedade frente a uma reali-

como respostas potenciais aos estímulos e dilemas

compartilhamento de textos que reflitam e apro-

dade adversa, na qual as práticas cênicas consti-

éticos, sociais, culturais e urbanos processados na

fundem aspectos enfocados nas Mesas Temáticas.

tuem-se como emergência.

contemporaneidade.

Aos alunos do PPGAC participantes do Semi-

Práticas de Reinvenção em Tempos de Ur-

nário na edição 2017, propusemos que a escrita

gência desenvolve-se em cinco encontros, organi-

dos textos refletisse assuntos abordados e expe-

Boa leitura!


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

17

1 DAVID GIORDANI Artista, coach, escritor e professor. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS giordanodavi@gmail.com / davigiordano.com.br

Seminário Práticas de Emergência Cênica, no 12º Festival Palco Giratório

quer uma dessas situações, estão criando um tra-

Heloisa Gravina, no Seminário

contemplados com nossos fazeres: espectadores,

balho de nível pedagógico com aqueles que são

Foto: Claudio Etges

alunos e sociedade em geral. Cada um dos convidados trouxe uma provocação interessante para confrontar com o título

Pedagogias indisciplinadas ou aprendizados disciplinados por desejo?[1]

do tema do encontro: “Pedagogias Indisciplinadas”. Isso abriu novos pontos de vista sobre aquilo que temos como noção de disciplina. O primeiro convidado, Airton Tomazoni, comentou que a dança, em sua história e forma-

A primeira conversa do Seminário Práticas de

dade, em momentos de crises políticas, econômi-

ção dentro da sociedade, sempre foi marcada por

Emergência Cênica, realizado no 12º Festival Palco

cas e sociais que afetaram diretamente o Brasil de

uma forte disciplina, como é possível perceber no

Giratório Sesc/POA, foi sobre o tema Pedagogias

2017. Nesse sentido, ter como abertura do Semi-

desenvolvimento do balé clássico e com o sur-

Indisciplinadas. Estiveram presentes a professo-

nário um diálogo direto com a Pedagogia é mais

gimento dos manuais de dança. Na tradição, es-

ra e pesquisadora Vera Lúcia Bertoni dos Santos

do que urgente. É também uma forma positiva

ses manuais se tornaram rigorosos instrumentos

(UFRGS), o coreógrafo, jornalista e gestor cultu-

de integrar a cultura e os aspectos formativos

pedagógicos, com registros de regras, notações e

ral Airton Tomazoni (Centro Municipal de Dança

sobre o que se faz e o que precisa ser feito para

formas de movimento que devem ser obedecidas.

da Prefeitura de Porto Alegre) e a professora e

pensar os reais sentido e lugar da arte em nossa

Com o passar dos séculos, a evolução da dança

educadora Fabiana Marcelo (UFRGS). Junto com

sociedade.

moderna até a atual dança contemporânea, hoje

o público, os convidados provocaram discussões

A relação entre pedagogia e fazer artístico

vemos um número grande de encenações que

em torno de práticas de aprendizagem em artes

trouxe como eixo mobilizante a questão da “in-

buscam colocar corpos em cena para romper as

cênicas envolvidas por um campo expandido de

disciplina”, ou seja, daquilo que pode vir a pro-

convenções e provocar formas de estranhamento

fazeres pedagógicos formais e não formais em

vocar, criar estranhamento, deslocar os sentidos

e descontrole no palco.

escolas, projetos sociais, oficinas, universidades e

comuns e propor novas formas de ver a vida e

Já a professora Fabiana Marcelo, cuja fala

escolas de arte, entre outros contextos.

o mundo. Assim, tanto aqueles que trabalham

é estimulada pelo campo da Educação, revela a

Primeiramente, é fundamental ressaltar que

diretamente em cena (atores, diretores, autores,

necessidade de refletir sobre os últimos aconteci-

o título “Práticas de Emergência Cênica” está di-

performers, cenógrafos, figurinistas) como tam-

mentos sociais como forma de encontrar que tipos

retamente vinculado à necessidade de pensar e

bém os professores de artes – sendo que muitos

de “pedagogias indisciplinadas” se dão hoje em

refletir sobre as artes cênicas na contemporanei-

profissionais estão em ambas funções – em qual-

nosso país. Em sua visão, a arte é vital para desper-


artes cênicas

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

18

2 PATRÍCIA RAGAZZON

tar o caráter político, resultando assim em outras

dologia científica das artes cênicas, com um viés

perspectivas mais afetivas, poéticas e sensíveis de

sensível de pessoalidade.

experienciar o mundo e aceitar as diferenças.

Em arte, nosso papel não é necessariamente ensinar um conteúdo específico, mas transmitir

Em todas as falas, vemos que os três profis-

desejo e interesse por aquilo que fazemos. dessa

A terceira convidada, Vera Lúcia Bertoni dos

sionais trafegam por múltiplos fazeres e atividades

forma, a disciplina parte sempre de dentro e não

Santos, refletiu sobre suas experiências no en-

nos campos da arte e da educação, provocando-

de fora. Mais do que regra, disciplina é cartogra-

sino do teatro e sobre sua trajetória no campo

-nos a compreender que a disciplina é um motor

fia subjetiva, que se estende em rizomas afetivos

da arte educação. Recentemente, completou 26

de condução afetiva-cognitiva-estética-intelectu-

numa comunidade sensível de pessoas interessa-

anos como professora do curso de Licenciatura

al-política. Todos necessitamos da disciplina para

das por compartilhar conhecimentos, experiências

em Teatro da uFRGS, tendo assim forte influên-

fazer nossos trabalhos afetarem e serem afetados

e saberes na relação entre arte e vida.

cia e importância na formação dos professores de

por aqueles que fazem parte de nossos círculos de

Artes Cênicas do Rio Grande do Sul. Sua fala está

convívios formativos.

atravessada por relatos e memórias que nos cons-

Percebe-se que a disciplina não vem de uma

cientizam do papel das narrativas como procedi-

visão tradicional, que pressupõe uma imposição

mentos pedagógicos, com o objetivo de estimular

externa ou um meio social específico. Ao invés dis-

a criação de depoimentos pessoais. O compartilha-

so, a pedagogia se baseia na disciplina como forma

mento de experiências é fundamental para artis-

de despertar um compromisso interno de desejo e

tas e professores em formação cuja sensibilidade

interesses de nossos alunos e espectadores em re-

A aprendizagem começa quando não

é necessária para a ideia de que a arte é sempre

lação à arte. Sendo assim, disciplina é envolvimen-

reconhecemos, mas ao contrário, estra-

um experimento coletivo em torno de memórias,

to, é afeto, é desejo, é a ética de querer estar junto.

nhamos, problematizamos.

de desvios, de atravessamentos e de trânsitos, que

isso traz uma nova perspectiva em relação à disci-

Virgínia Kastrup

trazem a metáfora do percurso autobiográfico do

plina, que é operar modos de funcionamento que

sujeito contemporâneo. A fala de Bertoni ressalta

façam sentido para as nossas escolhas e buscas de

Em meio ao caos e ao colapso social que refletem

cada vez mais a necessidade de aproximar a meto-

reinvenção no contexto da contemporaneidade.

a falta de perspectivas para as políticas públicas

peDagogias, inDisciplinas e a escuta Do silêncio[2]


artes cênicas

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

19

culturais, um espaço aberto se apresenta para tra-

A partir da metade do século 19, com o

belece novos critérios, que podem desencadear

zer inquietações e produção de conhecimento no

crescimento da população e dos centros urbanos,

outras formas de subjetivação. Ao perceber o

campo das Artes Cênicas. Trata-se do Seminário

dos avanços da Revolução industrial e do sistema

outro enquanto imagem múltipla, em suas va-

Práticas de Emergência Cênica, do 12º Palco Gira-

capitalista liberal, os conceitos de normatização

riações de perspectiva, para além de qualquer

tório. O encontro teve como temática inicial as Pe-

da sociedade trouxeram a ideia de adequar todos

classificação que viria a perpetuar a manuten-

dagogias Indisciplinadas, com a participação dos

os indivíduos a sua estrutura. Os que não esti-

ção da ordem predominante – sexista, de classe

professores: dra. Vera Lúcia Bertoni dos Santos, dr.

vessem aptos a fazer parte deste quadro social

média, racista – a ordem é subvertida pela estra-

Airton Tomazoni e dra. Fabiana Marcelo.

eram presos, exilados ou enviados a instituições

tégia do envolvimento da partilha.

As falas trazidas pelos debatedores e pelos

para incapazes. desde então, e mantendo os mes-

Para que seja possível intervir dessa forma

colegas que contribuíram com a discussão, bem

mos paradigmas históricos e sociais, a sociedade

no processo educativo, sem os rígidos manuais

como a participação da musicista Simone Rasslan,

predetermina o indivíduo “normal”, como forma

pedagógicos que disciplinam os corpos, a escu-

provocaram uma efervescência de pensamentos

subjetiva de dominar. “Pelo estabelecimento das

ta necessita estar presente. A escuta de si, do

que transbordam as dicotomias disciplina e indis-

práticas disciplinares o corpo dos indivíduos pas-

outro, do seu entorno, do grupo todo, deixando

ciplina, bastante mencionada. Também espalham-

sa a ser vigiado, educado, explicado e classificado

que se instaure um silêncio para a própria per-

-se pelo pensar as práticas educativas em sala de

de acordo com os saberes de cada época.” (LOPES;

cepção. O que é requisitado? O que existe como

aula e o próprio processo criativo do artista, pas-

FABRiS, 2013 p. 49)

potencial de troca? Qual narrativa o outro tem

sando pela delicada necessidade de escuta.

Essa prática ocorre com todas as minorias

para contar?

O texto que segue sintetiza alguns assuntos

vítimas de exclusão social: mulheres, velhos,

Não existem metodologias únicas, a não

que atravessaram meu pensar, a partir de dizeres

negros, índios, homossexuais, transgêneros,

ser que a formação exige ouvir o outro para que

que ainda ressoam em mim como uma autoria co-

deficientes, doentes mentais, indivíduos mar-

o espaço do ensino permita a experiência. Ora,

letiva das pessoas que partilharam do momento.

ginalizados, segregados por ordem de pobreza,

mas para que isso ocorra também é necessário

violência ou inabilidade para corresponder aos

certo rigor, alguns pressupostos éticos de com-

padrões estabelecidos.

prometimento e disciplina. A disciplina chega

As práticas educativas podem acontecer de duas maneiras: dentro de contextos formais, institucionalizados como as escolas e as universidades;

Em uma crise moral e ética, vivemos um

aqui sem a carga militarizada e massificadora,

ou de modo informal, em oficinas, laboratórios,

golpe político e uma opressão que pode parecer

mas com sentido diferenciado. Esta é uma dis-

vivências e na própria elaboração dos fazeres coti-

tácita e, por esse mesmo motivo, neutralizadora

ciplina que ainda se encontra em processo de

dianos repletos de sentidos pedagógicos e capazes

dentro de um sistema que não possibilita con-

ressignificação, sem caráter utilitário para for-

de produção de aprendizagem e de conhecimen-

dições de existência igualitárias. A indisciplina

matação dos indivíduos. é uma construção a se

to. A dissonância entre as palavras “Pedagogias” e

se faz necessária como forma de resistência, de

fazer e a se problematizar constantemente para

“indisciplinadas” poderia estar contextualizada nos

ato político, de busca por uma nova ordem a ser

uma real modificação social, na qual seja possí-

critérios de educação e criação artística?

proposta. A indisciplina, nessas circunstâncias,

vel que todos tenham as mesmas possibilidades

A terminologia da palavra “indisciplina” re-

pode ser vista como um meio de intervir nas re-

de inscrever suas histórias.

mete a algo descompromissado, sem regras, deso-

lações que reproduzem modos de pensar predo-

bediente. Tudo o que vai contra o sólido edifício da

minantes, de natureza conservadora.

Pensar a disciplina sob este aspecto seria como pensar a própria educação e o processo

ordem disciplinar, que está associado aos campos

No campo do ensino-aprendizagem, é pos-

científico e também pedagógico. A disciplina pres-

sível pensar em desarticular as lógicas estabele-

supõe um regramento, uma organização que pode

cidas que geram o pensamento binário, levando

estar relacionada a servir ao bem comum. No en-

a ressaltar as diferenças. Ao invés disso, as prá-

A experiência da abertura como expe-

tanto, cada vez mais tem se identificado a contex-

ticas de formação transformadoras, no contexto

riência fundante do ser inacabado que

tos sociais autoritários como modos de normatiza-

atual, tendem a propor caminhos para se pensar

terminou por se saber inacabado. Seria

ção da sociedade. O estudo inicial de meu projeto

a alteridade, de acordo com a fala da professo-

impossível saber-se inacabado e não se

de dissertação, que envolve a cena e a deficiência

ra Fabiana: “A indisciplina diz respeito à fala do

abrir ao mundo e aos outros à procura

relaciona os modos de disciplina dentro dos con-

outro e à potência de convocar ao pensamento.”

de explicação, de respostas a múltiplas

ceitos da deficiência, buscando uma perspectiva

Educar e criar a partir do compartilhamen-

histórico-social.

to e da construção na relação com o outro esta-

criativo, sempre inacabados como tudo o que é humano. Começa pela escuta, então se abre.

perguntas. Paulo Freire (1996)


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

20

3 Lindsay Gianoukas Atriz e bailarina. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A coreografia da ocupação: violência e reticência[3] Ao contrário do que pode aparentar em uma primeira impressão, a ocupação implica antes um movimento do que uma tomada de posição fixa. Assim, ocupar seria deslocar uma condição que diz respeito à variação de espaços, estados, noções, formas, etc. Seria mover-se em direções múltiplas, precipitar-se. As ideias aqui descritas ganharam corpo – um corpo também móvel, vivo, passível de adequações, movimentos, retomadas e indecisões – inspiradas pela reunião de quatro pessoas de notável reconhecimento no campo das artes cênicas, que expuseram suas experiências na tarde do dia 19 de maio de 2017, por ocasião do Seminário Práticas de Emergência Cênica, parte da programação do 12º Palco Giratório Sesc. Sob o título

pesquisa parecem resistir à estabilidade, ao con-

resgate da percepção e a pluralização de sensações

de Ocupações: Cena, Espaço e Cidade, congregava

forto e à ordem pré-concebida.

inaugurais, diante de fatos ou discursos dados.

Nesse sentido, sua ocupação, ou seja,

É possível dizer que as ações dos coletivos

Guilherme Bonfanti e o Prof. Dr. Fábio Salvatti, re-

seus movimentos, deflagram múltiplas proble-

estão impregnadas de violência quando provocam

presentando a Bahia, São Paulo e Santa Catarina,

máticas no interior de seus contextos, desfazem

efetivamente o deslocamento do que se supõe

respectivamente. Eles comentaram suas práticas

uma certa invisibilidade não somente de espaços

definido para a abertura de possibilidades inédi-

e, mais especificamente, seus modos diversos de

urbanos, mas também das condutas sociais, das

tas, jamais supostas. Seja porque o espaço cênico

movimento tanto nas referidas cidades, por meio

narrativas disseminadas, das relações impostas/

migrou para a igreja, o hospital, o rio Tietê, como

de suas manifestações artísticas, mas também em

dispostas no seio de seus microcosmos operacio-

no caso do Teatro da Vertigem, seja porque essas

seus questionamentos, visões, incertezas e movi-

nais. Dessa forma, antecipam o foco para o amor-

ações precisam de autonomia criativa e inventiva

mentos de pensamento.

fo, provocando novos movimentos a partir de suas

no coração de um bairro marginalizado, com pes-

os artistas Luiz Antonio Sena Jr, Eliana Monteiro,

Através da exposição das práticas e dos mo-

práticas. Essas mesmas práticas que teimam em

soas que a sociedade se esforça para invisibilizar,

dos de existências dos coletivos A Outra Compa-

tomar rumos inversos ou diversos no curso de uma

como no caso da A Outra Companhia de Teatro.

nhia de Teatro (BA) e do Teatro da Vertigem (SP),

corrente social, histórica, cultural, política e econô-

Ou, ainda, porque transformam o discurso visual

além do Estúdio de Arte Rebelde (SC), com o movi-

mica, que insiste em reproduzir conceitos e produ-

e narrativo dos corpos e dos cartazes que prolife-

mento específico intitulado Glitter Block, gostaria

zir distâncias erguidas pelo sistema das relações de

ram nas manifestações políticas que denunciam o

de destacar especialmente o caráter nômade das

poder convencionadas. Negligenciando o conforto

golpe (#ForaTemer), como no caso do Glitter Block.

experiências apresentadas. Refletindo sobre suas

(ao abrir mão de salas convencionais ou espaços

Essa violência, pré-requisito para a aprendizagem,

naturezas de descolamento de territórios, percebe-

equipados para inserir-se em locais “invisíveis” das

segundo Gilles Deleuze (2003), que força o pen-

-se que ao mesmo tempo em que contaminam o

cidades de São Paulo ou Salvador), a segurança

samento à reorganização dos signos (dis)expostos,

entorno, ressignificam espaços e provocam rup-

(pela necessidade de pôr-se em risco, destacada

pertence mesmo à dimensão da arte.

turas, rasgos geográficos ou redistribuição dos

em todos os relatos expostos) e a estabilidade (por

“A função do artista é violentar”, dizia Glau-

discursos. Desorganizando o senso comum, des-

uma urgência de desestabilizar comportamentos e

ber Rocha. E o que fazem essas ações que in-

fazendo conceitos impregnados sobre espaços

posturas normativas e normatizadas), acabam por

terferem nos signos dados para promover seus

urbanos ou mesmo desestabilizando narrativas

reiterar a função teatral. Fazem isso ao colocar a

deslocamentos espaço-temporais-discursivos, em

hegemônicas dentro de manifestações políticas, as

performatividade como recurso operativo, para in-

construções críticas que rasgam o entendimento,

experiências das duas companhias e do grupo de

tensificar um certo estranhamento que convoca o

senão promover a ruptura entre o antes e o de-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

21

dades, de causar transformações avassaladoras, portanto. Mas de promover deslocamentos que, por sua vez, têm o poder de propagar contaminações, de reverberar outras forças e conexões no seio de nossos precários contextos. Ocupar é mover, não se instalar em um território. E porque a nossa língua é vasta e produtora de proliferantes cacofonias, recorro à música que os “In-visíveis” entoavam no seio do seu marginal espetáculo, para promover, na linguagem textual, a possibilidade de abrir esse exercício intelectual para a sonoridade da palavra que, por sua vez, pluraliza os sentidos da emissão: Ocupa eu Ocupa tu Ocupa ele Ocupa ela pois da experiência? Direcionar o canhão de luz

noite, lugar pouco frequentado, protagonistas in-

para o lixo que se acumula nas margens ao invés

comuns. Também o trabalho Cidade Proibida que,

de iluminar o ator, conforme narrou Eliana Mon-

inclusive, teve um fragmento exposto na mesma

Que possamos ocupar o pensamento, a cida-

teiro sobre a encenação de BR-3; propor o glitter

tarde dentro do seminário, também convida a um

de, o teatro, a vida de novos movimentos parece

ou purpurina como arma de combate e reorganizar

deslocamento dos espaços e discursos da cidade

ser o desejo (palavra recorrente nos discursos dos

as palavras de ordem nas manifestações, segundo

e de sua população. Enfiar o céu sob um viaduto,

artistas neste seminário) dessa violência impres-

descrito por Fábio Salvatti; compor suas derivas,

obra da artista Zoé Degani, trabalho em que me

cindível. E, se a cena está ocupando novos espaços

“figuras que existem atravessadas pelo mar que

debrucei durante pesquisa prévia, também con-

e possibilidades expressivas, tem sido também ocu-

é a cidade”, de acordo com Luiz Antonio Sena Jr:

fere uma violência sensível-perceptiva ao próprio

pada de inaugurais corpos, estéticas e linguagens.

tudo isso violenta a percepção. O policial atingido

lugar em que se habita. O território implicado de

Mas essa temática ocupará um próximo texto.

com glitter, a moça de salto 15 que se desloca na

sua imprescindível desterritorialização, que con-

A ocupação, assim, é uma dança que coreografa as

embarcação que corta o fétido e feio rio que atra-

fere movimento ao estático: é estético, poético,

instâncias discursivas, poéticas, estéticas, sociais,

vessa São Paulo, por exemplo, são convocados a

performativo. Importante ressaltar a relevância

culturais, políticas, econômicas e históricas, na me-

novas sensações. Afinal, “a arte não pensa menos

atribuída à inexistência de premeditação de muitas

dida em que se move: não há roteiro a ser seguido,

que a filosofia, mas pensa por perceptos e afectos”

das ações mencionadas. Assim, o movimento seria

mas rotas por serem trilhadas. A ocupação é então

(DELEUZE, GUATTARI, 1992, p.88). Os exemplos de

o responsável por revelar a natureza violenta das

o movimento das reticências: abrindo...

ocupação de espaços e de contaminação das for-

ocupações expostas e não ao contrário.

ças de deslocamento expostos parecem lidar com

Por fim, gostaria de pontuar a molecularidade

tal dimensão de violência. Rasgar. Arrancar. Expor.

implícita nas ações descritas. Territórios micropo-

São os movimentos que definem as ocupações, o

líticos. “Meu papel é na minha aldeia”, dizia Zoé

pensamento manifesto da arte.

Degani (GIANUCA, 2013, p.114,201). Com outras

Inevitável remontar à própria cidade, às ativi-

palavras, os artistas aqui mencionados e também

dades de ocupação que me rodeiam e, assim, des-

a idealizadora e mediadora do seminário àquela

locam, violentam. Em Porto Alegre assisti ao tra-

tarde, Patrícia Fagundes, diretora de Cidade Proi-

balho intitulado In-visíveis, apresentado por atores

bida, reiteravam esse caráter molecular dos deslo-

e moradores de rua, em conjunto, que nos fazia

camentos experimentados. Não se trata do jovem

percorrer as ruas do Centro Histórico da cidade à

anseio clichê de “mudar o mundo”, de proferir ver-

Ocupa todo mundo. Ocupa todo mundo.

In-visíveis, da Trupe pé di Marmibó Foto: Divulgação

Cidade Proibida, da Cia Rústica de Teatro Foto: Adriana Marchiori

Cidade Proibida

Foto: Critiano Primm


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

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4 Diego Nardi

Ocupações: cena, espaço e cidade[4]

of Cards Brazil” que estamos vivendo, semana em

como o feminismo e o movimento LGBT. Um modo

que se completou um ano de “Ocupa MinC” em

cênico de ocupação, uma ocupação dentro de um

Santa Catarina. Os fatos que Salvatti traz ao semi-

movimento de manifestação de rua.

No dia 19 de maio de 2017, ocupamos o Teatro

nário nos levam a lembrar de maio de 2016, o ano

Luís Antônio Sena Jr, ator de A Outra Com-

de Arena de Porto Alegre, passados alguns minu-

que não acabou. Foi em maio de 2016 que o atual

panhia de Teatro, da Bahia, é o segundo convi-

tos das 14 horas, para discutir o tema Ocupações:

governo extinguiu o Ministério da Cultura e que,

dado-ator da tarde de quinta-feira. Sena Jr, que

cena, espaço e cidade. A cena teve como persona-

pressionado pela ocupação das sedes estaduais do

também atua como diretor de espetáculos da

gens principais: Fábio Salvatti, Luís Antônio Sena

órgão, voltou atrás em sua decisão. Essas ocupa-

companhia, abre nos falando sobre o nascimen-

Jr, Guilherme Bonfanti e Lili Monteiro (os nomes

ções são parte de uma série de atos de protesto

to d’A Outra, e como eles começaram a ocupar

aparecem em ordem de entrada). A cena faz parte

que aconteceram em nosso país e que tiveram

o bairro do Politeama, em Salvador. O relato

da peça episódica Práticas de Emergência Cênicas,

início em julho de 2013. De lá pra cá são recor-

traz uma reflexão sobre as “realidades” do fazer

que se desenvolve ao longo de duas semanas du-

rentes os protestos de rua no Brasil, sejam eles pró

teatral em Salvador e em Porto Alegre. Na fala

rante o 12º Festival Palco Giratório. A escolha “te-

ou contra o governo, de partidários da esquerda

de Sena Jr fica evidente uma vontade, um dese-

atral” de introduzir o tema e os participantes do

ou direita, “coxinha” ou “mortadela”. Foram nesses

jo de ter um espaço próprio para o trabalho de

evento surge a partir de uma relação que podemos

protestos que Salvatti realizou uma série de ações

grupo. Penso logo na situação da nossa cidade,

estabelecer com a palavra “ocupar”. Ocupar pode

chamadas Vulva – La Revolución, referência que

Porto Alegre. Diretamente no sucateamento dos

ser definido como encher um espaço de lugar e

dispensa apresentações. As ações eram realizadas

espaços públicos de arte, e obviamente na Usina

de tempo. Essa definição, ainda que muito sim-

pelo grupo de pesquisa formado por alunos da

do Gasômetro, espaço que possibilita, através do

ples, pode nos levar a pensar em teatro – já que

universidade e chamado “Glitter Block”, referência

projeto Usina das Artes, a ocupação dos espaços

tempo e espaço são as matérias do teatro e das

aos manifestantes mascarados presentes nos pro-

da Usina pelos artistas da cidade. Aqui os gru-

artes cênicas em geral. Assim, podemos enxergar

testos. O lema do grupo era o glamour contra o

pos estão ocupando juntos um espaço público

poeticamente as ocupações como um ato cênico, e

bom senso, buscando carnavalizar o movimentos

sucateado, e lá o grupo ocupa um espaço priva-

do mesmo modo o terceiro encontro do seminário.

de rua, realizando uma metacrítica aos próprios

do num bairro marginalizado da capital baiana.

Como dito anteriormente, o primeiro “ator”

movimentos. Com paródias e cartazes inspirados

O ator e diretor comentou as dificuldades que

da tarde foi o Prof. Dr. Fábio Salvatti, da Universi-

nos movimentos, o Glitter Block busca ampliar os

o grupo teve para se inserir dentro da comuni-

dade Federal de Santa Catarina. Ele também inicia

sentidos e abrir outros espaços dentro dos protes-

dade do Politeama. Falou ainda sobre a falta de

sua fala com uma alusão não ao teatro, mas à te-

tos. A proposta também é inspirada nos elemen-

público que tiveram no primeiro trabalho reali-

levisão. Comenta os eventos da semana do “House

tos visuais e nos discursos de outros movimentos,

zado no bairro, tanto da classe artística quanto dos próprios moradores do local. A ausência de espectadores não parecia ser uma questão para os membros da companhia, que surgiu no Teatro Vila Velha e durante anos teve o seu suporte. Essa relação de teatros municipais e tradicionais como incubadora de novos grupos, que parece ser mais viva em outras cidades do país, atualmente não existe em Porto Alegre. No entanto, há espaços como o curso de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos quais há muito têm surgido grupos que se destacam na cena cultural porto-alegrense. O grupo soteropolitano estabeleceu um diálogo com o Politeama com um projeto de shows chamado “Música de Quinta”. A partir do projeto, o grupo desenvolveu um espetáculo cujos personagens, (chamados por eles de “derivas”), representam figuras como a prostitu-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

23

ta, o traficante evangélico e o morador de rua.

os espaços, mas terminamos com o exercício da

a própria cidade, como os processos de gentri-

Desloca-se assim o olhar para o Politeama, com

imaginação de um mundo melhor. Como é cidade

ficação e museificação. Lili Monteiro ressalta

a arte e seu viés político e social em oposição aos

que você imagina?

a relação dos temas dos espetáculos com São

processos de gentrificação das grandes cidades.

Por fim, após uma breve intervenção de Ci-

Paulo, como em Paraíso Perdido, que surge num

Ocupar um local proibido – assim surgiu a

dade Proibida no nosso texto, retornamos com a

momento em que há uma efervescência do mo-

proposta de Cidade Proibida. Durante o seminá-

entrada do Teatro da Vertigem em cena. Guilher-

vimento de cristãos carismáticos. Ou em O Livro

rio, tivemos a apresentação/intervenção de tre-

me Bonfanti e Lili Monteiro nos trazem as expe-

de Jó, em que a ocupação cênica de um hospital

chos do espetáculo do qual faço parte como ator.

riências do Vertigem, um dos grupos que mais

fechado no centro da cidade suscita temas como

A proposta da diretora da Cia Rústica de Teatro,

levam o tema da ocupação para a cena. Bonfanti

o HIV. A diretora teatral encerra sua fala trazendo

Patrícia Fagundes, era fazer um encontro cênico

começa relembrando os primeiros trabalhos do

o foco para o momento presente, em que o atu-

festivo em locais tidos como “proibidos” à noite.

grupo, que completou 25 anos em novembro de

al prefeito promove um desbotamento da cidade,

Um dos motes desse trabalho, que surgiu no perí-

2017. A trilogia de estreia do grupo buscou outros

apagando os trabalhos de grafite e pichação, desa-

odo pós-julho de 2013, foi o iminente “cercamen-

espaços “alternativos” como meio de questionar

lojando moradores de rua e promovendo uma lim-

to” do Parque Farroupilha. Assim, a Redenção,

o teatro que era feito na época e, também, pelos

peza da área da Cracolândia no centro da cidade.

como é conhecido o Parque, foi o local de escolha

deslocamentos que esses outros lugares pode-

Durante os movimentos de ocupação das se-

para a estreia do espetáculo. Em um dos nossos

riam gerar. O grupo vai mais além na ocupação

des do MinC cantava-se uma música que resume o

encontros durante o processo de criação, fizemos

dos espaços, saindo da proteção de edifícios

nosso encontro e os desejos de futuro que surgem

um tour noturno pela Redenção. Não que nos fal-

como a igreja, o hospital interditado ou o presídio

a partir dele: Ocupa eu, ocupa tu, ocupa tudo!

tasse o conhecimento do parque, porém há outra

abandonado e indo para dentro do rio. Em BR-3,

vida no local quando o sol se põe. O que, de cara,

o Vertigem cria um espetáculo dentro do Rio Tie-

já nos questionamos: proibida para quem? Certa-

tê, em São Paulo, que atraiu o olhar para as rela-

mente não para aqueles que procuram por “diver-

ções políticas e intensas que se estabelecem nes-

são”. Os espaços da cidade têm uma memória que

se convívio íntimo com a cidade. O grupo possui

está presente no espetáculo, viva nos persona-

uma sede no bairro da Bela Vista, na capital pau-

gens que passam pela passarela do cenário. São

lista, e a cada espetáculo parte para outros locais

personagens locais e universais ao mesmo tem-

de diálogo com a cidade, como em Bom Retiro.

po, presentes em diversas das cidades pelas quais

O espetáculo trouxe questionamentos para o

passamos desde 2013. Cidade Proibida evoca a

grupo sobre os seus modos de produção e sobre

voz da cidade: seus acontecimentos, preconceitos e desejos de futuro, num convite a ocupar os espaços que nos são tirados pelo medo da violência, compartilhando de um acontecimento cênico ou de uma fruta. Tivemos a oportunidade de ocupar, mesmo que brevemente, espaços muito distintos, do alto de uma cidade a uma antiga estação ferroviária no interior do Ceará. Ocupamos também outros espaços de reinvindicação: por uma cidade com um cais sem shoppings, por uma usina aberta e cheia de arte e por uma escola melhor. As ocupações dos secundaristas brasileiros, ao que parece, se tornaram a maior ocupação mundial. Os jovens ocuparam as escolas, colocando seus corpos contra a violência policial e a favor de seus desejos de um futuro melhor. Com Cidade Proibida não ocupamos permanentemente

In-visíveis

Foto: Divulgação

Ator Heinz Limaverde em demonstração de Cidade Proibida, no Seminário, e Pedro Lunaris (plateia) Foto: Claudio Etges


ARTES CÊNICAS

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5 Lisandro Bellotto

Corpos Urgentes[5]

estão sendo mortos sistematicamente, violenta-

O corpo é ambíguo. Vivê-lo é afirmar sua potência

Um minuto de silêncio.

dos, sob tentativa constante de apagamento ou naturalização de sua morte, por isso urgentes.

e descobrir sua precariedade. Viver o prazer que o

2. A professora e artista Adriana Alcure (RJ),

acaricia, a dor que o destrói – revela toda a infini-

em leitura cheia de paixão, a partir de um peque-

dade dos corpos. Um corpo torturado é um objeto

no trecho do espetáculo Cidade Correria, do Co-

de tortura nas mãos malignas do torturador. Um

letivo Bonobando, denuncia a violência e a opres-

corpo amado é um corpo do desejo.

são histórica do Brasil colonial até os dias de hoje.

Esse breve texto sobre o corpo e seus movi-

Ela relaciona isso tudo com a perspectiva de vida

mentos, da antropóloga gaúcha Ivete Kiel (2004),

dos jovens de periferia (em 2012, segundo dados

inscreve o mesmo no lugar da experiência, da

da Anistia Internacional, 30 mil jovens entre 15 e

urgência transbordante de vida; corpo presente,

29 anos foram assassinados no Brasil, sendo 77%

concreto e delicado, que diz respeito ao espaço

negros). A partir de residência artística realizada

que habitamos, que nos conforma e delimita;

no Espaço Cultural Arena Carioca Dicró, na Penha,

nossa casa orgânica. E por outro movimento su-

o grupo praticou uma escrita coletiva e processu-

cinto, transcrevo através do gravador da memó-

al, alavancando o espetáculo em bairro periférico

ria, fragmentos de falas e imagens dos convida-

do Rio de Janeiro. Lugares considerados espaços

dos que impulsionaram essa escrita, a partir do

de vazio cultural, como se lá nada artístico pu-

encontro Corpos Urgentes, dentro do Seminário

desse aflorar, a partir da lógica de apagamento

Práticas de Emergência Cênica do Festival Palco

dos corpos que habitam determinados territórios.

Giratório Sesc 2017.

Material dramatúrgico nascido do atrito direto

1. A professora e artista Celina Alcântara

entre os artistas residentes, a comunidade e a

(RS) afirma o corpo negro como espaço de ur-

convivência nada pacífica com policiais da UPP

gência a ser discutido. Ela canta, (do refrão “eu

instalada na região. Com a residência, o espe-

vim de Aruanda”), convida todos os presentes a

táculo nasceu, se apresentou nas comunidades

cantarem juntos, em uníssono, transbordando a

e agora realiza temporadas nos bairros institu-

individualidade da sua voz, tão potente quanto

cionalizados, fazendo um desviante trajeto de

encantadora, para o coletivo, imbricando mo-

dentro do bairro para fora, e não o inverso, como

mentaneamente corpos e raças. Performance

ações artísticas de colonização na periferia. Como

reveladora do desejo de coletivizar o debate so-

se nesses territórios não houvesse nenhuma cul-

bre os sistemáticos massacres que os corpos ne-

tura viva e pulsante, como o funk e o hip hop.

gros sofrem, principalmente aqueles pobres de

O foco nos artistas de periferia, nos atores e atrizes

periferia, situação que lhe inquieta. Música que

negros, se torna urgente justamente pela tentativa

veio acompanhada de referências a autores que

de seu apagamento a partir da lógica racista. Se

pensam o tema, como parte do livro de Galeano

pensarmos nas artes presenciais, essa necessida-

(1999), Curso Básico de Racismo e Machismo, que

de é ainda maior, na medida em que o corpo é a

diz que o preconceito é um mal herdado geneti-

mais urgente das matérias cênicas. É preciso que

camente, endêmico na sociedade. Assim como o

o negro retome seu espaço de fala urgentemente,

livro de crônicas #Parem de nos Matar, de Cidinha

assim como os índios diariamente chacinados.

da Silva (2016), denunciando o genocídio de ne-

3. A professora e artista Caroline Teixei-

gros, a política de segurança pública que promo-

ra (RN) chama a atenção para a dificuldade de

ve o extermínio nas periferias brasileiras (tantos

inclusão dos corpos deficientes em todas as es-

Amarildos classificados como “cidadão suspeito

feras da sociedade – seja nas áreas educativa,

padrão”), até os massacres na Nigéria. Corpos que

profissional, afetiva ou artística. O corpo, na sua


ARTES CÊNICAS

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Cidade Proibida

Foto: Adriana Marchiori


ARTES CÊNICAS

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6 Davi Giordano

O eu, o outro e as múltiplas identidades em cena...[6]

integridade física perfeita, já consiste em tabu, do qual pouco se fala e para o qual se dá espaço para conhecê-lo, no corpo do deficiente essa questão se adensa. A “sociedade da eficiência” em que vivemos ainda não aceita o corpo deficiente, ou em instância maior, qualquer corpo que não

O último dia do Seminário Práticas de Emer-

corresponda à norma estabelecida. Mesmo com

gência Cênica, do Festival Palco Giratório Sesc/

os constantes e bem-vindos debates acerca do

POA, foi marcado pelo tema Fricções cênicas:

assunto, na opinião de Caroline, ainda existem di-

atravessamentos e alteridades. Para refletir sobre

versas estratégias que evitam debater a questão

a cena contemporânea diante das ações descolo-

para além das superficialidades e preconceitos.

nizadas, antropofágicas e políticas, foram convidados Dedy Ricardo (RS), Heloisa Gravina (RS) e

Nas três falas evidenciam-se diversificadas

Walmir Santos (SP).

estratégias de repressão e preconceito, (racial, sexual, de gênero e de aparência), mas que se di-

ao longo dos tempos pela facilidade de contro-

O perfil dos participantes trouxe uma diversi-

recionam a uma mesma matriz: o corpo – incluo

le dos meios de comunicação, agora colocada a

dade interessante de experiências e currículos para

aqui a transfobia como outro corpo urgente per-

descoberto pelo avanço tecnológico.

enriquecer os múltiplos pontos de vista sobre o de-

seguido e violado no Brasil e não abordado pelos

Para cada tipo de exclusão são necessárias

bate. A primeira convidada, Dedy Ricardo, abordou

convidados. Tudo isso me leva a mapear causas

ações para conscientização e resistência a tais

sua trajetória como artista e militante negra den-

da perpetuação e naturalização do preconceito.

preconceitos. As universidades, artes e mídias

tro do grupo de teatro Usina do Trabalho do Ator,

Um viés possível de compreensão passa pela ten-

precisam se configurar como espaços de reflexão

que neste ano comemora 25 anos de atividades ar-

dência perigosa do discurso único e totalizante.

contundentes e permanentes. E, em âmbito priva-

tísticas e formativas no Rio Grande do Sul. A partir

Seja do homem branco heterossexual – o “macho

do, é preciso ficar atento para o preconceito que

disso, ela refletiu sobre o papel de artistas negros

alfa”, seja daquele que tem suas capacidades fí-

nos habita, muitas vezes subterrâneo, velado, para

ao longo dos tempos em nosso país. A segunda

sicas perfeitas, não levando em conta o outro, o

que uma estética da experiência, da empatia e da

convidada, Heloisa Gravina, é bailarina, pesquisa-

diferente. A abertura e a consciência da multipli-

multiplicidade se sobreponha à outra, totalitária.

dora e professora do Curso de Dança da Univer-

cidade de realidades existentes deveria ser carac-

E para finalizar, cito trecho musical dos Titãs, can-

sidade Federal de Santa Maria. Com um trabalho

terística da pós-modernidade urgente. O mundo

tado no espetáculo Cabeça um documentário cê-

desenvolvido em dança no campo da antropologia,

explicado, analisado ou construído a partir de

nico (RJ), apresentado dentro da programação do

Gravina trouxe reflexões sobre as danças popula-

pontos de vista centralizadores exclui a realida-

Palco Giratório. Teatro urgente para tempos de

res e afrodescendentes. Já o terceiro convidado,

de do(s) outro(s), das diferentes culturas e modos

caos e desilusão:

Walmir Santos, editor da plataforma Teatrojornal, contribuiu com comentários sobre diversas formas

de vida, segundo o filósofo Vattimo (1987). Por conseguinte, o passado e o presente não podem

Sinto no meu corpo

de teatros colaborativos, grupos e coletivos artísti-

mais ser pensados sem prever a existência da di-

A dor que angustia

cos que fortaleceram as novas produções teatrais

ferença – não como uma ameaça –, mas como

A lei ao meu redor

a partir dos anos 1990.

parte integrante da realidade. A “história” da hu-

A lei que eu não queria

manidade não pode ser unívoca, excluindo inú-

Estado Violência

tão central o tema das identidades: das formas

meras pessoas e povos que se encontram fora do

Estado Hipocrisia

de constituição da arte negra em nosso país, da

“eixo”. O mundo é constituído de rede intrincada

A lei não é minha

legitimação de outros fazeres de dança advindos

de idiomas, corpos e culturas diversos. Logo, o

A lei que eu não queria

de memórias e práticas populares, assim como

pensamento, quando deixa de se preocupar com

Meu corpo não é meu

caminhos encontrados por diversos fazedores de

as questões de alteridade e não procura relações

Meu coração é teu

teatro no Brasil para a manutenção de princípios

com a multiplicidade de olhares que constituem

Atrás de portas frias

coletivos e políticos.

agora o real expandido e estilhaçado, não faz ou-

O homem está só

De forma ampla, o debate teve como ques-

A discussão refletiu sobre os modos como os

tra coisa senão fortalecer visões dominantes, uni-

campos da ética e da estética estão diretamente

laterais e ditatoriais. Percepção sempre ocultada

relacionados. Ao se pensar em modo de produção


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2018

27

artística, estamos diretamente abordando os meios

da visão marcada exclusivamente pela herança

de pensamento e de constituição política da cena

europeia – o que pode resultar em enfoques mais

contemporânea. A noção de fricção tem justamen-

nacionais e identitários daquilo que está ao nosso

te relação com isso: criar modos de atrito, de (re)

redor. Walmir Santos se aproxima dessas questões

existência e de força para fazer vigorar os sentidos

ao dizer que os teatros de grupo no Brasil precisam

de uma arte que expressa as múltiplas identidades

se legitimar como uma forma de defender projetos

culturais do país.

independentes e autorais que se diferenciam das

Somos todos atravessados pelos discursos

políticas de mercado direcionadas por lógicas pre-

que nos constituem em nossas experiências coti-

dominantemente capitalistas.

dianas. Em seu papel, a arte tem o poder de provo-

Essas falas trazem o anseio por novos pro-

car linguagens e ações de diálogo entre sociedade

cessos formativos, que tragam a produção de uma

e acontecimentos. Aproveitando a forma como o

arte nacional diante de um campo ético, poético,

grupo Usina do Trabalho do Ator vem contribuin-

estético e político. Essas atitudes mais direciona-

do para pensar o papel do artista negro no Sul do

das dos artistas evidenciam um empoderamento

Brasil, podemos também comentar que esse tipo

por aquilo que entendemos como cultura e modos

de trabalho, voltado para reivindicações sociais,

de fazer arte.

já foi desenvolvido por muitos artistas anteriores, como Abdias Nascimento, Carolina de Jesus, Mercedes Baptista, até artistas contemporâneos como Ayrson Heráclito, Sidney Santiago Kuanza, Liniker, Zezé Motta, entre outros. No campo das artes cênicas, o debate sobre

dança moderna brasileira ao trazer para os palcos

a presença de negros na arte foi decisivo em al-

os símbolos dos orixás e da cultura popular. Em

guns momentos centrais do século 20. Entre eles,

todos esses exemplos, vemos artistas e projetos

podemos citar a criação do Teatro Experimental do

culturais que marcaram a construção de memórias

Negro, em 1944, um coletivo de teatro formado

e de tributos sobre o patrimônio cultural produzido

exclusivamente por negros em todos os papéis e

por artistas e realizadores negras e negros, sendo

funções. Além disso, o T.E.N. teve um papel fun-

as suas iniciativas importantes marcos no campo

damental enquanto atitude política em sua época,

das artes cênicas.

por criar diversos canais de atuação social, como

Tais casos nos mostram que, quando nos co-

uma associação de empregadas domésticas, um

locamos artisticamente diante do mundo, expres-

jornal (Quilombo) e produção de debates e even-

samos aquilo que somos ao produzir nossos dis-

tos culturais. Outro momento fundamental foi a

cursos em diálogos de provocação aos contextos

montagem da dramaturgia Anjo Negro, do autor

de afirmação, de inclusão e de interação.

Nelson Rodrigues, emblemática na história do

No contexto atual, Dedy Ribeiro ressalta

teatro brasileiro. Em sua estreia, a peça provocou

como a Usina do Trabalho do Ator segue sua políti-

bastante polêmica, uma vez que ressaltou o tema

ca pedagógica em relação trabalho de formação do

do racismo e foi censurada em 1948, por ser uma

ator ao potencializar uma relação ética com ques-

tentativa de questionar a presença de negros nos

tionamentos políticos. Heloisa Gravina defende

palcos nacionais. O terceiro e último aspecto a ser

cada vez mais a importância de incluir temáticas

comentado é a importância do trabalho de Mer-

e experiências de danças populares e de matrizes

cedes Batista para a dança brasileira. Conhecida

africanas dentro dos currículos de formação nas

por ser a primeira bailarina negra a fazer parte do

graduações de Artes Cênicas. Isso nos traz a neces-

Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Ja-

sidade de, cada vez mais, encontrar novos modos

neiro, Mercedes concebeu o “Balé Folclórico” e a

de produção de conhecimento que se distanciem

Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Ed. Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2003. ______; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. FAGUNDES, Patrícia (Silvia Patrícia). Dramaturgia de Corpos e Espaço em Cidade Proibida. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://portalabrace.org/viiicongresso/resumos/ processos/FAGUNDES,%20Patricia.pdf FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GIANUCA, Lindsay. O Oceano Cênico de Zoé Degani: por uma cenografia plural. Dissertação de Mestrado: PPGAC, IA, UFRGS, 2013. KASTRUP, Virgínia. Aprendizagem, arte e invenção. In: Psicologia em Estudo: Educação & Sociedade. vol. 6, n. 1, p. 17 - 27, jan./jun. 2000. LOPES, Maura Corsini; FABRIS, Eli Henn. Inclusão e Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. ROCHA, Glauber. Documentário exibido no programa Diverso, pela TV Brasil em 03 de setembro de 2016. Dist.: versátil Espetáculos Mencionados In-visíveis. Trupe pé di Marmibó. Direção: Cristiane Bilhalva. Atuadores: Arlete Cunha, Anderson Rosa, Carolina Pommer, César Ramos, Ciçu, Cristiane Bilhalva, Deyvid Soares, Isaias Luz e convidados. Ano de estreia: 2014, em Porto Alegre, RS. Cidade Proibida. Cia Rústica de Teatro. Direção: Patrícia Fagundes. Elenco: Ander Belotto, Camila Falcão, Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Laura Backes, Lisandro Bellotto, Lucca Simas, Mirna Spritzer, Priscilla Colombi, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Suzi Weber. Ano de estreia: 2013, em Porto Alegre, RS. (https://projetocidadeproibida. wordpress.com)

Heinz Limaverde, da Cia Rústica de Teatro Foto: Claudio Etges


caderno artes decênicas teatro

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

28

o caderno de teatro é uma seleção de artigos, reportagens, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto alegre. sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa arte sesc – cultura por toda parte. as páginas a seguir apresentam o processo criativo de espetáculos do coletivo teatro da Vertigem, que completa 25 anos de uma trajetória marcada

#20

pela ocupação de espaços não convencionais, entre eles O Filho, Kastelo, BR-3 e os da trilogia Bíblica, a partir de relato da diretora eliana monteiro e de artigo do designer de luz Guilherme Bonfanti. o grupo participa da 13ª edição do Festival em Porto alegre, no mês de maio, com O Filho, espetáculo inspirado em Carta ao Pai, de Kafka, uma década depois de apresentar na capital gaúcha História de Amor (últimos capítulos).


artes cênicas caderno de teatro

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

O Livro de Jó

Foto: Edouard Fraipont

O Paraíso Perdido Foto: Claudia Calabi

BR-3

Foto: Edouard Fraipont

O Paraíso Perdido

Foto: Edouard Fraipont

Apocalipse 1, 11

Foto: Claudia Calabi

Kastelo

Foto: Nelson Kao

teatro Da vertigem: 25 anos De ocupação De espaços não convencionais

29


caderno de teatro

PRiMEiRO SEMESTRE

2017 2018

30

um breve histórico Do teatro Da vertigem: Da trilogia bíblica à aDaptação De carta ao pai, De KafKa

Tietê, e em 2011 foi reconhecido com a Triga de

realizou a ópera dido e Enéias, de henry Purcell,

Ouro na Quadrienal de Praga como Melhor Produ-

num dos galpões da central de produção de

ção Teatral do mundo em quatro anos.

cenários e figurinos do Teatro Municipal.

No ano seguinte, o grupo estreou História

A obra O Castelo, de Franz Kafka, serviu de

de Amor (últimos capítulos) de Jean-Luc Lagarce,

inspiração para Kastelo, espetáculo encenado no

espetáculo vinculado à exposição sobre a trajetória

prédio do Sesc da Avenida Paulista, em 2010. do lado

dos 15 anos do grupo, e adaptou o BR-3 para a

de dentro, o público assistiu, através das vidraças,

Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Em 2008,

às cenas realizadas no exterior do edifício com os

do intercâmbio artístico com os grupos LOT, de

atores suspensos por balancins de construção e

Lima, Peru, e zikzira, de Belo horizonte, foi criada a

cabos de segurança. Na sequência vieram: Cartas

intervenção cênica A Última Palavra é a Penúltima,

de Despejo, em sua sede; a intervenção Cidade

a partir do texto O Esgotado, de Gilles deleuze, na

Submersa, no terreno da antiga rodoviária do

passagem subterrânea interditada da Rua Xavier

bairro da Luz; e o espetáculo Bom Retiro 958

de Toledo, no centro de São Paulo. No mesmo ano

metros, em São Paulo, posteriormente adaptado

A companhia Teatro da Vertigem, que tem como proposta a realização de seus espetáculos em locais não convencionais, foi criada em 1991, com experimentos baseados na Mecânica Clássica aplicados ao movimento expressivo do ator. Sua primeira peça foi Paraíso Perdido, apresentada na igreja de Santa ifigênia, em São Paulo. Na sequência, encenou O Livro de Jó no hospital humberto Primo, circulando ainda por algumas capitais do Brasil, além de Bogotá, na Colômbia, e Ärhus, na dinamarca. Em Moscou, participou do 3º Festival internacional de Teatro Anton Tchekhov. Completando a trilogia bíblica e consolidando o processo colaborativo como modo de criação, em 1998 o grupo estreou Apocalipse 1,11 no antigo Presídio do hipódromo, na capital paulista. Além de participar dos principais festivais do país, o Vertigem viajou com a peça para Lisboa, em Portugal, e para os festivais nacionais de Caracas, na Venezuela, de Colônia, na Alemanha, e de Wroclaw, na Polônia. Em 2003, a partir de um projeto de residência artística na Casa Nº 1, desenvolveu estudos, treinamento e ensaios para o projeto BR-3, o mais ousado da companhia, com pesquisa de campo no bairro da Brasilândia, na periferia paulistana, e oficinas com moradores em trabalho de instrumentalização artística. Somou-se ao processo de criação uma viagem por terra à Brasília/dF e Brasileia, no Acre. O espetáculo teve estreia em 2006, no Rio

BR-3

Foto: Nelson Kao

Luciana Schwinden em Apocalipse 1,11 Foto: Lenise Pinheiro


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

31

1 Texto editado a partir da transcrição de relato falado.

para Patronato 999 metros, versão chilena que

direção. “Eu não tenho essa função de ouvinte,

a periferia, violenta inclusive; Brasília/DF, o centro

manteve os mesmos eixos de investigação, como

mas começa a me ajudar”, ele disse. Larguei meu

do poder; e Brasileia/AC, podemos dizer que é

a moda, a imigração, o consumo e as relações de

emprego e fui aprender teatro, primeiro cursando

periferia do Brasil, quase fronteira com Bolívia

trabalho.

a faculdade e agora estou iniciando o mestrado de

e muito longe do sudeste e do sul. Fomos até o

Em 2014, o diretor artístico do Teatro da Ver-

direção. Nestes 20 anos, eu já dirigi sozinha, codirigi

Acre por terra – 40 dias viajando – para descobrir

tigem, Antônio Araújo, a convite do Villes en Scè-

com o Tó, fui indicada ao Prêmio Shell com direção

se temos algum tipo de identidade, conhecendo

ne, estreou com a companhia o espetáculo Dizer o

de cena e pesquisa do BR-3. A pesquisa, realizada

realidades que não imaginávamos que existiam.

que Você Não Pensa em Línguas que Você Não Fala,

coletivamente, ganhou o prêmio, assim como me-

Em Mato Grosso, tem a Vila Bela da

produção do Teatro Nacional da Bélgica com o Fes-

lhor direção para Antonio Araújo e melhor ilumina-

Santíssima Trindade, com uma população 100%

tival de Avignon, na Bolsa de Valores de Bruxelas,

ção para Guilherme Bonfanti.

negra. Não teve mistura de raça. Era a primeira

e em Avignon, no Hôtel des Monnaies. O grupo

capital do Estado, que acabou sendo transferida para Cuiabá pela logística, e os senhores

de Arte de São Paulo, recriando a intervenção de

O percurso para dentro de BR-3 em busca de uma identidade nacional

2008, agora com o nome de A Última Palavra É a

Tó havia assistido a uma exposição de imagens

pouco tempo de escravidão, eles não têm o peso

Penúltima 2.0.

também foi convidado a participar da 31ª Bienal

migraram deixando os escravos. Por terem tido

sobre a construção de Brasília. Toda vez que acaba

do açoite. Já nasceram livres, com sobrenomes

De Paraíso Perdido a O Filho, que estreou em

uma peça, conversamos sobre o que faremos na

dados pelos padres. Assim como essa tem

2015 e tem inspiração no texto Carta ao Pai, de

próxima. “Fui a essa exposição e achei incrível,

milhares de outras. Já havíamos decidido que a

Franz Kafka, o Teatro da Vertigem criou 15 espe-

várias pessoas do país inteiro construíram e fiquei

peça seria no Rio Tietê porque foi por dali que

táculos. Seus processos costumam durar cerca de

pensando se existe identidade no Brasil”, disse ele.

os bandeirantes saíram para desbravar o Brasil,

dois anos até a estreia.

Decidimos pesquisar a partir de localidades que

e também porque, na viagem, tudo que víamos

começavam com ‘Bra’: um bairro de São Paulo bem

era em deslocamento. Outro motivo que ficou

periférico, Brasilândia, onde o tráfico é muito forte,

claro é que, se existe algum tipo de identidade,

Brasília e Brasileia, no Acre. Em São Paulo, apesar

é a devastação. Na Floresta Amazônica, vimos

de estarmos no centro financeiro do país, pegamos

o inconcebível: o equivalente a um campo de

....

Foi ao teatro e mudou de vida ou o impacto de O Livro de Jó[1] por Eliana Monteiro

diretora dos espetáculos A Última Palavra É a Penúltima, Kastelo, Mauísmo e O Filho

Entrei no Teatro da Vertigem em 1998, no começo do processo de criação do Apocalipse 11,1. O grupo já havia encenado O Paraíso Perdido e O Livro de Jó. Faz 21 anos. Eu era funcionária pública e não cogitava fazer teatro até assistir O Livro de Jó. Esse espetáculo me pegou de um jeito, foi tão visceral, a melhor peça da vida. De tão impactante, uma coisa do bem contra o mal, assisti 10 vezes e pensei: é isso que eu quero fazer. Quando o grupo foi fazer Apocalipse 11,1, eu já havia falado com o Tó (Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem) que eu queria fazer parte, mas não como atriz, queria aprender


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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Lucienne Guedes em O Paraíso Perdido Foto: Claudia Calabi Apocalipse 1,11 Foto: Edouard Fraipont

futebol para uma vaca pastando. Que lugar em

ção. Para que ficasse parado na cena, tínhamos

a afundar e isso saiu em todos os jornais. O es-

São Paulo é tão devastado quanto a floresta? O

que ter feito ao contrário, rio acima. Tivemos que

petáculo desafiava a gente o tempo todo, não ti-

Tietê.

escolher outros lugares. Foi muito difícil porque ti-

nha apresentação tranquila, era o Tietê querendo

Foi uma dificuldade tremenda porque a gente

vemos que lidar com a natureza. Por mais que seja

mostrar que ainda é um rio. Chovia em qualquer

não tinha a menor ideia de que iria ficar até 16

um esgoto, ainda é um rio. Na estreia, por exem-

lugar e mudava tudo.

horas dentro do rio. Ensaiávamos muito e alguns

plo, estava chovendo em Paraisópolis, mas não em

Teve um dia que chegamos às cinco da tar-

atores tiveram que tirar habilitação para pilotar os

São Paulo. O rio começou a subir muito e tive que

de para o espetáculo às oito, e o pessoal de uma

barquinhos. Tivemos que perder o medo de cair no

ligar para o DAEE (Departamento de Águas e Ener-

comunidade próxima a um dos cenários tinha

rio ao subir e descer do barco, já que a água é com-

gia Elétrica) para abrir as comportas para escoar

roubado os ferros, tipo trilho de trem. Quebraram

pletamente poluída, praticamente um esgoto. Eu

a água – eu era a responsável por isso – porque o

tudo e não conseguiram levar o material por causa

ficava num barco, o Tó noutro e algum estagiário

barco não podia mais navegar, estava muito peri-

do peso. Em duas horas refizemos o cenário em

noutro. O primeiro percurso tinha 11 quilômetros.

goso. Todos os lugares das cenas alagaram. Era um

madeira porque não dava para soldar. Tínhamos

Ficava todo mundo espalhado pela beira do rio

sufoco porque a gente não tinha noção do que era

que ter outras habilidades além das artísticas, tive

acompanhando. No primeiro “passadão”, diminu-

fazer um espetáculo no rio.

até que pilotar barco substituindo um marinheiro.

ímos para 4 quilômetros para diminuir o tempo de

Tinha um repórter do New York Times co-

Pensávamos: hoje vai dar tudo certo, mas só vía-

percurso e facilitar o entendimento da história, so-

brindo a estreia do BR-3 e tínhamos um pacto

mos o que ia acontecer na hora. Foram dois meses

bre uma mulher dos confins do Brasil, que depois

que ninguém podia cair no rio. Aconteceu de tudo

e meio. Era para ser um ano. O dono do barco di-

de perder o marido na construção de Brasília vai

naquele dia, cenas alagadas, aquela sujeira toda

zia que era nosso apoiador e, sem nunca ter nos

para São Paulo, onde se torna chefe do narcotráfi-

quando o barquinho parava. Ao final do percurso,

falado nada, triplicou o valor. Nossas peças levam

co da Vila Brasilândia.

o barcão atracou e pensamos – todo mundo des-

muito tempo de criação, normalmente de um ano

Quando a embarcação maior, que levaria o

ce e voltamos tranquilos. Mas na cena final, tem

e meio a dois anos. BR-3 teve um processo de pes-

público, chegou, percebemos que havíamos per-

um pedalinho, que ficou batendo em um muro

quisa de dois anos e meio. A gente queria ficar um

dido um mês porque o barco, por não ter break,

de concreto com a subida do nível da água e se

ano em cartaz e tivemos que parar. Ficou inviável.

era levado pela correnteza quando deveria ficar

encheu de furinhos. Quando os dois atores en-

Na sequência, criamos uma peça pequena e

parado nos lugares estabelecidos para a encena-

traram para iniciar a cena, o pedalinho começou

passamos a dar aula em vários lugares, pela pre-


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

33

feitura. A gente aprendeu muito sobre produção,

Exatamente depois que BR-3 deixou de ser apre-

juntos até pagar a dívida. Apesar de não ter sido

vimos que até então não éramos produtores. Éra-

sentado no Tietê, um adido cultural da França, no

feita em formato colaborativo, quando vem His-

mos um grupo que fazia peças. A partir daí vimos

ano Brasil-França, pediu para escolhermos um

tória de Amor e a discussão sobre a relação de um

como era importante ter conhecimento de produ-

texto para encenar. Optamos por História de Amor

grupo de teatro que havia acabado e volta 10 anos

ção e viramos produtores também. Analisar antes,

(últimos capítulos), de Jean-Luc Lagarce, e fizemos

depois, percebemos quanto amor ainda tinha. Foi

estruturar melhor.

uma peça muito pequena no palco. É a história de

incrível porque a gente falava, os atores choravam.

Quando fomos fazer BR-3 na Baía da Gua-

um dramaturgo, um diretor e uma atriz que têm

Fomos segurando e pagando a dívida e continuou

nabara, em 2007, acreditamos que já havíamos

um grupo de teatro. Eles se separam. Ela vai embo-

o grupo. Foi perfeito.

passado por tudo o que poderíamos ter passado

ra com o diretor. Era mulher do dramaturgo. Larga

BR-3, apesar de traumático, trouxe um re-

no Tietê. Chegando lá, vimos que existe um tal de

o diretor também e vai viver a vida dela. A peça

conhecimento enorme, com a medalha de melhor

vento noroeste que, quando bate, a maré baixa.

começa quando o dramaturgo chama os dois para

produção teatral do mundo na Quadrienal de

A área onde faríamos ficou na areia, o barco não

voltarem à sala de ensaio 10 anos depois para fazer

Praga. Foi bem importante. Se conseguíssemos

navegava. Todo o percurso estava definido, a peça

a peça que ele escreveu. Quando começam a ler é

fazer novamente, faríamos com o maior prazer.

praticamente pronta e, na semana da estreia, co-

a peça sobre a vida deles. A separação do ponto de

Com tudo mais planejado, não com a loucura que

meçou a bater esse noroeste. O Tó não estava lá,

vista do dramaturgo. Quando BR-3 acabou, quase

foi. Mas também sem um pouco de loucura não

eu dirigi, e tive que adequar todo o percurso. Você

que o Vertigem acaba também. Ficamos endivida-

se faz nada. O grupo foi antes e depois de fazer

não tem domínio da natureza.

dos, encenar no Tietê para os atores, mais expostos

a peça. Teve um amadurecimento muito grande

à água, era ainda pior do que para nós. E acabou

para todo mundo.

Por pouco o grupo não acabou

tão rápido, foi muito ruim. Combinamos de ficar

O espaço não convencional como parte da dramaturgia Em nosso processo, primeiro vem o que vamos pesquisar. Logo depois o local onde o espetáculo será encenado. Por exemplo, em O Livro de Jó, a temática da pesquisa foi a aids, que tinha acabado de entrar no Brasil e atingiu muitas pessoas, de forma rápida. Onde poderia ser encenada? No hospital. Em Apocalipse 1,11, a pesquisa da dramaturgia nos levou ao Carandiru, por conta do massacre. Logo, encenamos em um presídio. Os espaços estão intimamente ligados à pesquisa que vamos desenvolver. Porque a memória do espaço é muito importante. Se você tira O Livro de Jó do hospital é outra peça. O Paraíso Perdido foi na Igreja de Santa Ifigênia. Se você a coloca em qualquer outro lugar, perde completamente o sentido. A discussão é a queda do anjo do paraíso e ele querendo voltar, se religar. Não imagino fora da igreja. Seria outra peça, não teríamos a memória do espaço. Algumas pessoas desmaiavam em cenas de O Livro de Jó e tínhamos que colocá-las em um quartinho, dar água, sal. Em uma apresentação, sem dar indícios, um homem desmaiou e ficou muito nervoso, esbravejava “vocês colocam éter aqui, onde já se viu isso”. Explicamos que não, pois


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

34

ninguém ficaria em pé. Ele insistia: “e esse sangue?”.

mas ninguém entrava no castelo, que era o

sistema. Os atores praticaram rapel durante um

Tive que dar a fórmula: Karo, chá de nogueira e

grande olho que sabia da vida de todo mundo.

ano para poder encenar na parede envidraçada,

água. “Você jura?”. No final, ele veio conversar

Ninguém sabia o que acontecia de verdade lá

suspensos em balancins de construção estreitos

comigo e comentou que já tinha passado muito

dentro. A questão do pós-moderno é que as

e amarrados por cordas de segurança. Essa foi a

por hospital e provavelmente essa memória... Não

pessoas se sentem inseridas e nunca estão. E há

pesquisa. Infelizmente, não conseguimos viajar

era o cheiro daquele hospital, mas era o cheiro

um buraco gigantesco em você querer pertencer

com o espetáculo.

de todos os hospitais pelos quais ele já havia

a um lugar e nunca estar. Qual seria o castelo

passado. Essa memória do lugar, para nós, é uma

agora, em 2010? Em São Paulo temos prédios

Por que o Kafka não saiu de casa?

dramaturgia também.

envidraçados, as grandes corporações. Aí surgiu

A pesquisa para a criação de O Filho parte do fato

Eu já tinha dirigido A Última Palavra É a

a ideia de tentar com o Sesc da Paulista, que é

de eu gostar muito do Kafka e também de uma

Penúltima quando fizemos Kastelo, no Sesc da

um prédio envidraçado, sem ser uma grande

questão pessoal familiar. Meu pai é uma pessoa

Avenida Paulista. Pensamos sobre uma questão

corporação de negócios. A pesquisa é essa: eles

incrível, tem 84 anos e nunca foi uma pessoa

que se sobressaía na cidade de São Paulo naquele

trabalharem do lado de fora, como se estivessem

dura, ele ouve muito e tem dificuldade de assumir

momento. Eram as câmeras de segurança, mas

trabalhando dentro. É como se tivessem inseridos

liderança. Quando comecei a pensar na peça,

de que forma isso afetava a vida das pessoas

nessa corporação, mas na verdade estão do

tinha uma relação do meu avô com o pai dele.

na cidade? Comecei a estudar vários autores

lado de fora, nunca dentro. Esse era o mote do

Meu bisavô deveria ter hoje uns 125 anos. Muito

e n’O Castelo, do Kafka, autor de que eu gosto

Kastelo, esse excesso de trabalho. Na Paulista, o

patriarcal, dominava todo mundo. Meu avô casou

muito, tinha essa questão da sociedade do

centro financeiro, você trabalha muito achando

com uma índia, a mãe do meu pai, e meu bisavô

trabalho toda em volta, formando um vilarejo,

que é uma coisa e está completamente fora do

não suportava. Ele batia no meu avô, fazia tocaia,


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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o proibia de ver a mãe. Meu avô não suportou e

não era fácil, ele era pobre. Até 1848, no Império

uma família, seus filhos não passassem pelo que

acabou se matando. Meu pai tinha apenas sete

Austro-húngaro, o judeu podia ter quantos filhos

passou. A família da Julie era considerada de ju-

anos – ele viu meu bisavô fazer isso – e acabou

quisesse, mas só era permitido ao primeiro casar,

deus excêntricos, tinha músico, médico, um que

assumindo uma reponsabilidade muito grande,

era para controle da população. Neste ano, uma

era como um representante religioso que previa

apesar da idade. Fiquei pensando como uma

lei autorizou que todos casassem, e Jacó, que já

o futuro, o pai dela tinha cervejaria famosa. Eles

sociedade, nessa época, considera que alguém

tinha 33 anos, casou imediatamente com a vizinha

ligados ao belo, à arte. Franz foi o primeiro filho,

tem tal domínio sobre a vida de outro, mesmo

Francesca. Deste casamento nasceram seis filhos,

o segundo morreu muito pequeno com uma do-

que seja o filho? Comecei a investigar Carta

o terceiro é o Hermann, pai do (Franz) Kafka.

ença tipo febre amarela, depois vieram mais duas

ao Pai e a vida do Kafka. Seu pai, Hermann, era

O avô do Kafka era um açougueiro. Não importa-

filhas. Toda a carga ficou com o primogênito, de

extremamente poderoso, era ele que mandava, e

va se estivesse frio, os filhos tinham que entregar

me veio a pergunta: por que o Kafka não saiu de

as carnes mesmo assim. Hermann não suportava

casa? Ele tinha 42 anos quando morreu, por que

isso, era empreendedor. Com quase 14 anos, saiu

ele não casou? Por que não foi fazer a vida dele?

de casa e foi vender coisas para o império todo e

Fui estudar a vida do Hermann. Fomos eu e o

não voltou mais. Quando chegou em Praga, mui-

Guilherme Bonfanti para Praga e refizemos todo o

to trabalhador, com 30 anos, conheceu o pai de

caminho do Kafka, uma pesquisa muito profunda.

Julie (que viria a ser sua esposa). A princípio, foi

Fui ao castelo, fui à casa que ele morou dentro do

um casamento arranjado, mas me parece que se

castelo. Uma casinha. Ele tinha um emprego, era

apaixonaram depois. Ele, de uma família pobre,

como se fosse o INSS. A vida do Hermann também

trabalhou muito para que, no dia em que tivesse

Atriz Katia Bissoli em Bom Retiro 958 metros Foto: Jennifer Glass

O Filho

Foto: Flavio Portella


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

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quem se esperava que fosse empreendedor. Mas

um caminho – não sei se é uma resposta – da

ele puxou à mãe, era ligado ao belo e à escrita,

descartabilidade. Ficou todo mundo descartável.

além de ter um tipo físico franzino. Uma das fi-

Ninguém tem compromisso com nada. Ou muita

lhas dos Kafka, Ottla, foi quem puxou ao pai: alu-

gente tem pouco compromisso. Um pai forte que

gou uma casa no campo, saiu de casa e tornou-se

tinha o controle inibia sua vida. Pelo descontrole,

empreendedora. Também cuidava do irmão, que

agora, não chegamos a lugar nenhum. Só mudou.

era apaixonado por ela. A briga toda girava em

A primeira ideia foi fazer o espetáculo em

torno disso. A Ottla e a outra irmã casaram e fo-

uma fábrica ou em um grande galpão. Seria um

BR-3 (2006)

ram fazer suas vidas. Franz não conseguia sair de

lugar que funcionasse como um grande depósito

História de Amor (últimos capítulos) (2007)

perto do pai. O meu pai nunca conseguiu sair de

de móveis descartados por famílias que não de-

perto da lembrança do pai dele. Meu avô nunca

ram certo. Os móveis não podem ser novos, têm

conseguiu sair, ele podia ter casado e ido embora,

que ter a memória – aqui não é a história do es-

mas ele ficou perto do seu pai, no mesmo lugar,

paço, mas dos móveis que estão ali. O espetáculo

apanhando até se matar.

fala de uma família que vai se desenvolvendo ali

ESPETÁCULOS Paraíso Perdido (1992) O Livro de Jó (1995) Apocalipse 1,11 (2000)

A Última Palavra é a Penúltima (2008) Dido e Enéias (2008) Kastelo (2010)

A pergunta que fez com que todo o grupo

e o público vai vendo as gerações passando, o que

Mauismo (2010)

quisesse entrar nessa empreitada comigo, que era

aconteceu com essas pessoas. Ou o que aconte-

Cartas de Despejo (2011)

uma coisa pessoal e passou a ser uma questão

ce, agora, com a maioria das pessoas. Fica essa

de todo mundo é: se, na sociedade patriarcal, o

discussão: se em uma sociedade patriarcal havia

Kafka acreditava que todos os seus problemas

problemas, e Kafka achava que a mão do seu pai

estariam resolvidos não fosse a presença tão do-

era tão forte, se não fosse tão forte ele teria sido

minante de seu pai, hoje, em que a figura do pai

feliz, o que é a sociedade hoje? Meu pai achou a

está tão reduzida – não vivemos mais em uma

vida inteira que, se seu pai tivesse ficado a seu

Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on

sociedade patriarcal – melhorou? O problema

lado, teria sido feliz. O meu avô queria ficar perto

ne parle pas (Dizer o que pensamos em língua que

era a figura tão forte do pai dele, que domina-

do pai dele porque achava que seria feliz. E agora

não falamos, 2014)

va todo mundo. Se Kafka estivesse aqui, agora,

que é esse descontrole total, ninguém tem tanta

ele iria dizer: o que aconteceu? Chegamos em

responsabilidade. Esse é o lugar que fomos inves-

A Última Palavra é a Penúltima 2.0 (2014)

Cidade Submersa (2011) Bom Retiro 958 metros (2012) Orfeu e Euridice (2012)

tigar para fazer O Filho. Kafka dizia que passou a

Patronato 999 metros (2015)

vida inteira olhando pela janela, por incapacidade

O Filho (2015)

de se inserir na vida, e eu me identifico.

O Filho

Foto: Humberto Araujo

Patronato 999 metros Foto: Divulgação


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017 2018

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por Guilherme Bonfanti

Designer de luz; integra o Teatro da Vertigem desde sua fundação; colaborou com os principais diretores, cenógrafos, arquitetos e coreógrafos do Brasil; é coordenador do curso de Iluminação da SP Escola de Teatro.

Luz em processo, a experiência de BR-3

incorporassem à pesquisa sobre os três espaços a serem visitados pela encenação: Brasília, Brasilândia e Brasileia. Fomos a Brasilândia, onde trabalhamos por um ano. Ali ministrei uma oficina de iluminação, com o intuito de conhecer melhor o bairro e poder, em troca, circular tranquilamente, em diferentes horários, para perceber as atmosferas do local. Desse convívio veio a ideia de precariedade como conceito para Brasilândia. Nunca me interessou reproduzir uma cópia fotográfica, mas sim poder olhar para essa realidade e transformá-la em linguagem de luz – luz para teatro, feito na cidade, não em um palco.

Muito se fala sobre o papel e o momento da en-

ceituais: construção artesanal, experimentação e

Interrompemos os trabalhos para viajar a

trada da luz num espetáculo. É comum ouvirmos

testes, observação da luz natural e da luz artifi-

Brasileia, no Acre. Saímos de São Paulo na noite

que essa entrada deve acontecer sempre uma

cial, pesquisa teórica, de campo e de materiais.

de 29 de junho de 2004, por terra, e chegamos a

semana antes da estreia, ou até mesmo no dia.

Além destes, também destacaria a construção de

Brasília, nossa primeira parada, onde ficamos por

Primeiro vem o texto, que motiva o diretor a es-

uma dramaturgia lumínica, com a pretensão de

10 dias. Dali seguimos rumo ao Acre, passando

colher um elenco. Depois de definidos esses três

buscar a criação de linguagem autônoma a partir

por diversas cidades até chegarmos ao nosso des-

elementos, vêm os demais: cenografia, figurinos

da verossimilhança no uso dos artefatos lumino-

tino, Brasileia, onde nos fixamos por 15 dias. Éra-

e música. Ah, esqueci: e a luz! Mas nem sempre

técnicos: noção de risco, instabilidade, processo

mos 16 profissionais: autor, diretor, assistente de

foi assim, considerando a experiência que relato

de construção artesanal, condução do olhar, luz

direção, designer de luz, diretor de arte, figurinis-

a seguir, ocorrida em São Paulo, a partir de 1992.

como personagem, trabalho em equipe, ética nas

ta, fotógrafo e videomaker, músico, uma pessoa

Ela prova que esse processo vem se firmando

relações e, por fim, um dos maiores aprendizados

responsável pelos relatos, produtor e cinco atores.

como um procedimento, e não mais ao acaso.

nestes anos de pesquisa, ter generosidade com

Tínhamos feito uma pré-produção e os dias

Vamos à história.

todo o conhecimento adquirido.

eram repletos de encontros, nos quais tentáva-

Ao longo deste relato me deterei na ex-

mos entender as diferentes visões sobre Brasília

na Igreja de Santa Efigênia, iniciava-se a traje-

periência de BR-3, pois ela sintetiza tudo o que

e sua construção, a problemática das diversas

tória de mais um grupo paulistano, o Teatro da

vem sendo construído. Ao sairmos da experiência

fronteiras com o Acre e a fragilidade no contro-

Vertigem, e junto com ele a minha história como

da Trilogia bíblica, organizamos um fórum para

le desse ir e vir de países próximos, com nações

designer de luz. Três anos depois, em 1995,

discutir o que faríamos e, nesse momento, a luz

indígenas desaparecendo e identidades sendo

no segundo trabalho, O Livro de Jó, no Hospi-

já estava presente no processo. Após elegermos

perdidas, a problemática do desmatamento. Em

tal Humberto Primo, os procedimentos para se

um tema, como sempre fazemos, iniciou-se o

nenhum momento houve a intenção de apreen-

criar uma luz começaram a ficar mais claros. Em

processo para a encenação de BR-3, que foi um

der a luz de cada lugar. Meu foco e interesse es-

Apocalipse 1,11, no Presídio do Hipódromo, em

de nossos trabalhos mais complexos: do início

tavam voltados para conhecer esses lugares nos

1999, as experiências anteriores revelaram-se

até a estreia, em 2006, foram exatos três anos de

quais não habito. Desses fins de tarde, vendo o

um método e, finalmente, em 2006, com BR-3,

preparação, sempre tendo a luz como uma das

pôr do sol no eixo monumental em Brasília, da

no leito do Rio Tietê, elas se tornaram um pro-

preocupações.

ida ao Vale do Amanhecer, da visita ao Congresso,

Em 1992, com o espetáculo Paraíso Perdido,

cedimento, que consolidaria uma maneira de

Tema definido e escolhido o dramaturgo – o

do céu que nos dá uma visibilidade absurda, mui-

pensar e atuar nos processos de criação de luz

escritor Bernardo Carvalho –, abriu-se o ciclo de

to azul e branco, do caminhar sem destino certo,

da companhia.

pesquisa teórica e de seminários na Casa 1, uma

surgiu a luminosidade de Brasília.

A cada passo foram sendo descobertos os

antiga edificação no centro velho de São Paulo.

No Acre, tínhamos a floresta e o desmata-

elementos constitutivos deste processo, em cuja

Ali trabalhamos durante um ano e meio, perío-

mento como elementos mais fortes. Dessa con-

montagem foram se agregando princípios con-

do em que abri espaço a estagiários para que se

vivência surgiu o verde como símbolo do Acre.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

38

No meio disso tudo a fé, presente nos crentes

utilização de espelhos, uso de sombras: cada um

Nesse tempo de trabalho no Vertigem percebo

evangélicos da Brasilândia, nas comunidades

desses elementos foi trabalhado, pesquisado e

como tudo fica aberto quando nos deparamos com o

místicas de Brasília e no Santo Daime, no Acre.

experimentado. Partimos para a aplicação dos

espaço, como as áreas (direção, atores, texto, direção

Movimentar-se pelo Brasil e observar essas dife-

elementos escolhidos nas cenas ensaiadas, de-

de arte, música, figurinos) ficam permeáveis. Minhas

rentes realidades provocou em mim a consciên-

senhos técnicos do projeto de luz, montagem da

impressões/ideias poderiam influenciar (e devem ter

cia das dimensões e das diferenças de meu país,

iluminação e, por fim, a apresentação pública do

influenciado) os demais; confesso que isso nunca

muito mais do que me forneceu um projeto de

processo de construção da iluminação, para fina-

me preocupou, as ideias são sempre lançadas sem a

luz definido para o espetáculo. Ficamos um tem-

lizar com a temporada do espetáculo.

premissa da autoria. Estávamos todos entrando no

po absorvendo o impacto da destruição que pre-

Paralelo a esse período na Casa 1, começa-

rio pela primeira vez e, como num turbilhão de ima-

senciamos e partimos para a segunda etapa, que

mos a visitar o Tietê. No primeiro contato não

gens, minha cabeça passou a projetar possibilidades

era a construção dramatúrgica. Nessa nova fase

havia nenhuma preocupação com os aspectos de

para o trabalho da luz. Alguns devaneios e outras

incorporam-se os estagiários.

luz, mas apenas de promover uma aproximação,

ações mais factíveis. Procuro abrir meu sensorial e

Desenvolvemos um levantamento sobre

abrir os sentidos e tentar captar sensorialmente o

não apenas calcular o que conseguirei fazer. Trato

a luz nos espaços, a atmosfera e os elementos

que aquele lugar me dizia. Já na segunda ida ao

de ver/pensar todas as possibilidades.

que a compunham em cada lugar. Em Brasilân-

Tietê, meu olhar se aguçou e percebi que havia

Esse período na Casa 1 se desdobrou para

dia, houve uma pesquisa de campo; em Brasília

certo delírio de minha parte e um pensamen-

dar início ao levantamento das cenas e ao come-

e Brasileia, a pesquisa ficou restrita às imagens

to muito grandioso, que ia além, muito além de

ço de um desenho do que seria o espetáculo. Foi

captadas na viagem e a alguns relatos. O resulta-

nossas condições de produção. Mas não havia

novamente um período muito intenso e de muita

do foi apresentado em workshops. Materiais que

ainda uma preocupação com as reais condições

criatividade. Com o surgimento das cenas, algu-

seriam aplicados no projeto de luz do espetácu-

de execução. Era um momento de ideias, de abrir

mas ideias foram se consolidando e ganhando

lo; experiências com fogo, carbureto, leds, lasers;

possibilidades, não de defini-las.

forma, outras sendo abandonadas. Para esta eta-


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2017

39

pa, o grupo de estagiários sentiu necessidade de

a atmosfera necessária da cena. E, para isso, preciso

aprimorar alguns conhecimentos.

ter pelo menos duas ou três possibilidades de luz

Partimos para o período de levantamento

para cada cena.

das cenas. Passaram-se assim oito meses de tra-

Finalizamos uma primeira versão encenada do

balhos dentro da Casa 1. O que nos interessava

texto, ainda que fora do espaço definido, ainda que

eram questões mais conceituais, texturas, opção

sem todos os aparatos que compõem a cena. A pre-

de materiais a serem utilizados e a busca pela luz

cariedade nos acompanha em todos os sentidos e

de cada lugar. Consideravam-se perdas e ganhos, e

etapas da criação.

um certo desnorteamento, talvez pelo excesso de

A partir daqui começamos nossa saga de co-

ideias sendo jogadas nas cenas – trata-se de uma

locar o espetáculo no espaço, o Rio Tietê. A bordo

característica dos nossos processos: criamos muito

de uma embarcação aberta, com um frio de 10oC,

e jogamos muita coisa fora.

atores e demais criadores lançaram-se na aventura

Um processo de criação é construído com mui-

de dar vida a uma ideia que estava “levantada” em

tos reveses e poucos acertos, é exatamente o perí-

uma casa que tinha toda a estrutura para funcio-

odo do erro, do excesso de ideias, de pensar coisas

narmos. Agora nos víamos imersos em uma expe-

mirabolantes. Procuro ter um repertório grande de

riência para a qual não tínhamos respostas e nem

possibilidades, vou aos poucos olhando para tudo

mesmo perguntas, dada a novidade da ação. Isso é

aquilo e analisando o que é artificial, o que não cabe

parte do processo. Daqui em diante caberia um ou-

ou não dialoga com a direção de arte, com o tex-

tro relato, pois foram oito meses dentro do rio até

to. Trato de não me deixar levar pelo belo ou pelo

chegar à estreia.

efeito, penso sempre no que é essencial para criar

Roberto Audio e Sergio Pardal em BR-3 Foto: Edouard Fraipont

Encenação de BR-3 na Baía da Guanabara Foto: Divulgação


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

40

Por Gilberto Figueiredo, Sylvia Letícia Guida e Tiago Portella Otto equipe de Música do Departamento Nacional do Sesc.

SONORA BRASIL:

podem ser abordados períodos históricos (Sonora Brasil 500 Anos – 1999), referências regionais (Regiões – 2003; Na Pisada dos Cocos – 2017/2018), expressões culturais de comunidades tradicionais (Sagrados Mistérios: vozes do Brasil – 2011/2012; Tambores e Batuques – 2013/2014), formações

maior projeto de circulação de música do país completa 20 anos

instrumentais ou instrumentos (Bandas de Música: formações e repertórios – 2017/2018; Sotaques do Fole – 2011/2012; Violão Brasileiro – 2009), obras de relevância histórica (A obra de Claudio Santoro e Guerra-Peixe – 2010; Villa-Lobos – 2008), dentre outros. O desenvolvimento do conteúdo dos temas ocorre através do programa de concerto e de um roteiro de falas definidas pela curadoria, com a contribuição dos músicos. Essas ações são complementadas por um catálogo, distribuído gratuitamente às plateias, com informações sobre o proje-

O INÍCIO

nais, especialmente com relação ao aspecto con-

to, sobre os grupos e sobre os programas que cada

No dia 2 de maio de 1998, o grupo Quadro Cer-

ceitual. No mesmo ano, e com o mesmo objetivo,

um apresenta. O material contém ainda um artigo

vantes subiu ao palco do Teatro Jofre Soares, em

surgiu o Palco Giratório, também um projeto de

encomendado para a publicação, escrito por um

Maceió, para a realização do primeiro concerto

circulação, este na área das Artes Cênicas.

especialista no tema. Atualmente, para cada tema

do projeto Sonora Brasil. Integrado por Helder

Para o aprimoramento na gestão desses dois

são produzidos em torno de 45 mil exemplares do

Parente, Nicolas de Souza Barros, Mário Orlando

projetos foi necessária a organização de encon-

catálogo. As cidades recebem quatro grupos por

e Clarisse Szajbrum, o grupo era na época consi-

tros que reunissem os técnicos do Sesc, encarre-

ano, cada um representando um recorte do tema

derado um dos mais importantes intérpretes de

gados da programação das áreas nos Regionais.

proposto. A complementariedade desses recortes

música antiga no país.

Os encontros, com regularidade anual, se torna-

sugere que o público assista aos quatro concertos,

Naquele ano, cinco estados realizaram os

ram o principal espaço de discussão sobre pro-

de modo a obter uma visão geral do tema. Supõe-

quatro circuitos – Alagoas, Pernambuco, Ceará,

gramação, responsáveis pelo constante aprimo-

-se que a ausência de um grupo (recorte) possa

Rondônia e Paraná – totalizando 50 apresenta-

ramento dos profissionais e pela construção de

comprometer a plena compreensão da concepção

ções realizadas em 14 cidades. Das outras etapas

um alinhamento conceitual nas ações realizadas

de abordagem do tema central.

de circulação participaram o Quinteto Latino-

em todo o país. O Sonora Brasil, que a princípio

Essa lógica foi compreendida desde o início

-americano de Sopros da Paraíba (PB), o Quarteto

seria apenas um projeto de referência, sem dei-

pelos Departamentos Regionais, que são os res-

Romançal (PE) e a Camerata Contemporânea do

xar de sê-lo também ampliou as possibilidades de

ponsáveis pela definição de quais cidades, em seu

Rio de Janeiro (RJ).

atuação de um fórum que se tornou espaço de

Estado, acolherão o projeto, e de quantos con-

Nascia aí uma ação que em alguns anos se

curadoria, de formulação de novas ideias, de tro-

certos cada uma realizará. Com raras exceções,

tornaria o maior projeto de circulação musical

ca de experiências e, acima de tudo, de discussão

tornou-se uma constante a realização dos quatro

do país, alcançando o seu ápice no ano de 2015,

sobre assuntos relacionados a todos os campos

recortes, promovendo a circulação dos grupos por

quando realizou 482 concertos em 132 cidades,

de ação do Sesc na área da Música.

trajetos idênticos, assim como é recorrente o retorno do projeto às mesmas cidades no ano seguinte.

cobrindo todos os estados do país. A criação do Sonora Brasil – Formação de

AS TEMÁTICAS

Ouvintes Musicais ocorreu a partir da necessida-

As apresentações do Sonora são contextualizadas

A CURADORIA

de do Sesc ter um projeto que alcançasse todo o

a partir de temáticas específicas. Desde a primeira

A curadoria que define os parâmetros para a rea-

Brasil, sob gestão do Departamento Nacional, que

edição, os critérios que definem os grupos que fa-

lização do projeto é formada pelos técnicos res-

servisse de referência para o desenvolvimento de

rão a circulação se baseiam num tema central que

ponsáveis pela gestão da programação da área de

programações locais pelos Departamentos Regio-

trata de um assunto específico da música brasileira:

Música nos Departamentos Regionais e nos Polos


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

41

de referência do Departamento Nacional, e pelos

discussões, com vistas a uma deliberação asserti-

Analistas de Música do DN. Cabe a esse coletivo

va com relação aos temas e aos grupos.

a elaboração dos temas centrais apresentados a

Os critérios utilizados se baseiam: no caso

cada ano/biênio e a escolha dos grupos e mú-

dos temas, na relevância no contexto do desenvol-

sicos que serão convidados para apresentar os

vimento da música no país, na viabilidade de es-

recortes temáticos. Para alcançar o necessário

truturação dos conteúdos e no ineditismo, consi-

aprofundamento inerente à ação curatorial, faz

derando as temáticas já abordadas anteriormente;

parte das atribuições do técnico conhecer os di-

e no caso dos grupos, na relação com o tema, na

versos segmentos da cena musical de seu Esta-

qualificação técnica e/ou no domínio do conteúdo

do, tanto no âmbito das comunidades tradicio-

e na possibilidade real de cumprir, com qualidade,

nais quanto no âmbito profissional, nos campos

o compromisso de realização dos concertos e a

da música popular e de concerto. Os programas

jornada de viagens. Em alinhamento com a Política

apresentados no Sonora são construídos espe-

Cultural do Sesc, de descentralização, valorização

cialmente para o projeto, a partir de pesquisas

dos contextos regionais e incentivo aos artistas de

realizadas pela curadoria em conjunto com os

todo o país, procura-se dar espaço à diversidade

músicos participantes. A intenção é transgredir

de manifestações culturais.

o repertório canônico, dando espaço a músicas pouco conhecidas.

Com o objetivo de contribuir para a ampliação da experiência musical de suas plateias, a ten-

Essas definições acontecem nos Encontros

dência do projeto, com raras exceções, sempre foi

Nacionais da área de Música, que ocorrem com

abordar temas relacionados à música de concerto

regularidade anual. Nestes fóruns são tratadas

ou à produzida por comunidades tradicionais, seg-

todas as modalidades de ação em Música que

mentos pouco difundidos nos meios de comuni-

constam do rol de atuação do Sesc. Porém, em

cação. A música popular, especialmente a urbana,

anos elencados para a curadoria do Sonora Brasil,

cuja concepção, estrutura e forma dialogam mais

o projeto ganha ênfase, com uma carga horária

diretamente com objetivos de viés comercial, cos-

especial que permita a apreciação das propostas

tuma ser inserida em outras programações desen-

trazidas pelos técnicos e o amadurecimento das

volvidas pelo Sesc.

Catálogos temáticos do Sonora Brasil


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

42

Alguns temas trataram especificamente

temas, selecionando quatro grupos para cada um.

relação ao uso de espaços alternativos, o que ga-

da música de concerto, como Edino Krieger e

No primeiro ano do biênio, um tema circula pe-

rante a interiorização dos circuitos até cidades que

as Bienais de Música Brasileira Contemporânea

los estados das regiões Sul e Sudeste, enquanto o

não possuem equipamentos culturais. O formato

(2013/2014), Villa-Lobos (2008) e Sonora Brasil

outro circula pelo Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

também se adequa às formações, por exemplo, dos

Século XXI (2000); outros, especificamente da

No segundo ano ocorre a inversão, de modo que os

grupos de comunidades tradicionais, que podem

música produzida por comunidades tradicionais,

grupos completem o circuito nacional, passando

se apresentar em ambientes abertos.

como Na Pisada dos Cocos, (2017/2018) e Tam-

por todos os estados. Devido a alterações no nú-

Esta metodologia também cria uma aproxi-

bores e Batuques (2013/2014); mas a maioria

mero de concertos em alguns estados e com vistas

mação do público com o artista, facilitando inte-

dos temas possibilitou a interação entre os dois

a reequilibrar os circuitos, no biênio 2017/2018 a

rações pouco comuns nesta relação, que podem

segmentos e, em alguns casos, dialogou com a

região Centro-Oeste compôs a circulação com o

promover desdobramentos importantes no campo

música popular, como no caso de Sotaques do

Sul e o Sudeste.

do desenvolvimento da Música e na formação de

Fole (2011/2012) e Sonora Brasil Regiões (2003).

No segundo caso, a curadoria criou a Mos-

plateias. Faz parte da experiência de fruição um

A música antiga, que é enquadrada no campo da

tra Sonora Brasil, modelo que prevê a realização

momento de diálogo com a plateia, que ocorre

música de concerto, foi contemplada em várias

dos quatro concertos em dias consecutivos, com

logo após o concerto, no qual é possível aprofun-

das 10 primeiras edições, como nos temas Mundo

o objetivo de potencializar a comunicação do

dar assuntos abordados no roteiro, responder a

Novo (2004), Sonora Brasil Origens (2001) e So-

projeto e, consequentemente, a mobilização de

perguntas, enfim, potencializar essa aproximação

nora Brasil 500 Anos (1999) .

plateias. O modelo também possibilita ao público

com vistas à sensibilização do público para o con-

Com relação aos grupos/artistas, dentre os 85

a visão global do tema através do conjunto de

teúdo musical contido no tema.

que circularam nestes 20 anos, alguns reconheci-

apresentações. O ano inaugural foi 2012, com

damente de alto nível de performance se destaca-

a realização de Mostras em Brasília (DF) e Porto

AÇÕES COMPLEMENTARES

ram, como o duo formado por Toninho Ferragutti

Velho (RO). Em 2018, 52 cidades de 23 estados

Algumas atividades complementares de caráter

e Bebê Kramer (2011/2012), o Quarteto Brasília

aderem ao formato.

formativo são ou foram incorporadas à agenda do projeto, dialogando de forma direta com a reali-

(2010), o Quinteto Villa-Lobos (2002), o violonista Turíbio Santos (2000) e o Quadro Cervantes (1998

OS CONCERTOS ACÚSTICOS

zação dos concertos. Como ocorreu, por exemplo,

e 2005), entre outros.

Todas as apresentações do Sonora Brasil são acús-

ao longo da 8ª edição, em 2005, quando circulou

Também cabe à curadoria aprimorar a me-

ticas. Essa escolha pretende oferecer ao público

pelos Departamentos Regionais a exposição A His-

todologia do projeto, identificando problemas e

uma alternativa de escuta que hoje se restringe

tória do Violão – mostra de instrumentos musicais,

discutindo soluções. Foi esse fórum que deliberou

às salas de concerto, no âmbito da música erudita.

que apresentava instrumentos originais e réplicas

sobre duas das principais atualizações ocorridas no

Num tempo histórico no qual, de um modo geral,

fabricadas pelo luthier Joaquim Pinheiro. A expo-

Sonora: a passagem do cronograma anual para o

as apresentações musicais visam a atingir grandes

sição narrava de forma concisa o desenvolvimento

bianual e a realização das Mostras.

plateias, utilizando sistemas de sonorização que

do instrumento ao longo dos séculos. Uma outra

No primeiro caso, o problema foi o aumento

amplificam o som em patamares bastante ambi-

exposição, Corpo do Som, realizada em Vitória –

gradativo na abrangência do projeto, que atingiu

ciosos, ouvir música em salas de pequeno e mé-

ES, na 18ª edição, em 2015, apresentava a viola

seu ápice em 2010, quando cada uma das quatro

dio porte, com som natural, tornou-se algo raro.

machete. Organizada pelo luthier Rodrigo Veras,

etapas realizou, em média, 85 concertos, exigindo

Inevitavelmente essa experiência suscita um olhar

reunia peças, ferramentas, matérias-primas e ou-

dos músicos um período de aproximadamente 120

crítico sobre a questão, tanto para o ouvinte quan-

tros elementos relacionados à fabricação desta

dias de viagem. O volume de concertos tornava a

to para o músico, provocando reflexões acerca dos

viola que é utilizada no samba de roda do Recôn-

circulação extremamente desgastante, além de ser

modelos de apresentação e do significado de cada

cavo Baiano.

um impeditivo para muitos músicos, especialmen-

experiência de apreciação. Sem a intenção de jul-

A partir de 2013, foram incluídas na progra-

te os que também atuam como professores em

gar os formatos destinados a espaços que exigem

mação oficinas ministradas pelos músicos que

universidades e conservatórios. A solução para o

grandes estruturas de sonorização, entendemos

estão em circulação, de um modo geral relacio-

problema foi discutida no Encontro Nacional de

ser necessário atuar de forma crítica. Assumimos

nadas à técnica instrumental e ao canto. E, mais

2010 e implantada em 2011, quando começou a

esse papel considerando a vocação da instituição

recentemente, foram incorporadas às Mostras

funcionar o cronograma bianual (2011/2012). No

para desenvolver ações que se configurem como

a contratação de grupos locais e a realização

novo modelo, a curadoria passou a definir dois

novas alternativas para as plateias, inclusive com

de ações formativas, como oficinas, palestras e


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

43

debates, sempre considerando a relação com o

OS NÚMEROS

dades. Um resultado de grande relevância para

tema. Cabe salientar os intercâmbios ocorridos

De 1998 a 2017, o Sonora Brasil realizou 5.726

um projeto que tem como um de seus objetivos

entre os grupos de tradição, cujo contato seria

apresentações de 85 grupos, em mais de 150

oferecer acesso ao seu conteúdo de forma des-

improvável fora do âmbito do projeto.

cidades de todos os estados do Brasil. Já partici-

centralizada, contemplando públicos de todas

param do projeto 481 músicos.

as capitais do país e de dezenas de cidades do

Em 2016, na Mostra Sonora Brasil, realizada na cidade do Rio de Janeiro, foi incluída na pro-

Na primeira edição, foram realizados 50

gramação uma Roda de Conversa que reuniu os

concertos em 14 cidades de cinco estados, e

grupos que circularam pelo tema Sonoros Ofícios:

desde então, com a adesão crescente dos De-

cantos de trabalho. Foi a primeira vez na história

partamentos Regionais do Sesc, o projeto foi

do projeto que ocorreu um evento reunindo os

ampliando sua abrangência até atingir, em

Alguns estados realizam concertos apenas

quatro grupos. Em 2017, uma segunda Roda reu-

2015, a marca de 482 apresentações em 132 ci-

em suas capitais. Outros, a maioria, promovem a

interior. Desde 2012, todos os estados recebem o projeto. Em 2018 serão realizados 372 concertos em 97 cidades.

niu os músicos que circularam pelo tema Bandas de Música: formações e repertórios. Outras ações, voltadas para o registro e para

600

a difusão do projeto, possibilitam a ampliação de seu alcance e contribuem para a longevidade da

500

relação do público com os conteúdos temáticos. São elas: a gravação em áudio realizada no estú-

400

dio do Sesc Casa Amarela, em Recife – PE, a gravação em audiovisual realizada pelo Departamen-

300

to Nacional em parceria com o Sesc TV e as duas videoconferências anuais realizadas também pelo

200

DN. Esses registros contribuem para a memória da música brasileira, fixando repertórios e perfor-

100

mances únicas, incluindo os diversos mestres e mestras de tradição que circularam pelo projeto.

0

No primeiro caso, todos os grupos, durante a realização do circuito de Pernambuco, dedicam um dia à gravação do repertório do concerto. Além

1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Número de concertos realizados ano a ano

da composição do acervo histórico do projeto, é

16

produzido um CD de cada tema, reunindo uma

14

amostragem do repertório dos grupos. No segundo caso, são realizadas gravações do repertório e en-

12

trevistas cujo material também vai compor o acer-

10

vo histórico do Sonora, além de gerar uma série de

8

programas exibidos na emissora Sesc TV. Com relação às videoconferências, elas são

6

realizadas por especialistas convidados para falar

4

sobre os temas de cada biênio. São transmitidas

2

jetivo de subsidiar os profissionais responsáveis pela realização do projeto para que se apropriem dos conteúdos relacionados aos temas. São gravadas e podem ser utilizadas em outras atividades desenvolvidas com outros públicos.

0 RS SC PR ES MG RJ SP DN ESEM CCSP DF GO EESP MT MS TO AC AP AM PA RO RR AL BA CE MA PB PE PI RN SE OUTROS PAÍSES

para a rede Sesc de todo o Brasil e cumprem o ob-

Representatividade dos estados com relação à participação de grupos nos circuitos


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

44

interiorização. Pernambuco (15), Rio Grande do

de que essa escolha atenda plenamente os objeti-

Cinco músicos/grupos gaúchos circularam

Sul (12), Santa Catarina (9) e Bahia (8) se desta-

vos do projeto. Nas edições cujos temas abordam

pelo Sonora: Daniel Wolff, Gilberto Monteiro, o

cam como os que contemplam o maior número

a produção musical das comunidades tradicio-

grupo Alabê Ôni e dois músicos que integraram

de cidades em 2018.

nais já existe uma tendência à representação de

duos com artistas de outros estados: Bebê Kramer e Manuelai Camargo.

Outro aspecto importante relacionado à

estados que estão fora do eixo que concentra a

abrangência nacional do projeto diz respeito à

maioria das oportunidades de trabalho no campo

Daniel Wolff foi o primeiro representante

participação de grupos/artistas das diversas regi-

da música. Os estados que mais estiveram repre-

do Estado a participar do projeto. O violonista

ões do país. No processo de escolha, a curadoria

sentados nas edições do Sonora foram o Rio de

circulou em 2009 apresentando a obra de com-

considera, em primeiro lugar, a capacidade de o

Janeiro (15), Pernambuco (14), São Paulo (8), Pa-

positores nascidos nos estados da região Sul do

grupo cumprir com qualidade a apresentação do

raná (8) e Bahia (8).

Brasil. Pelo tema Violão Brasileiro, dividiu o pal-

recorte temático que lhe foi designado. No entanto, nos casos em que há opções de escolha, é dada prioridade aos representantes de estados pouco contemplados nas edições anteriores, des-

co com João Pedro Borges (MA), que apresenta-

Representatividade dos estados com relação à participação de grupos nos circuitos

va os compositores do Nordeste. O duo apresentou solos e duos compostos originalmente para o instrumento.

O Sesc Rio Grande do Sul participou do projeto

Bebê Kramer, acordeonista que participou

pela primeira vez em sua 9ª edição, no ano de

no biênio 2011/2012 formou duo com o também

2006, levando 24 concertos para 11 cidades, e

acordeonista Toninho Ferragutti (SP). No tema

desde então tem participado de todas as edições

Sotaques do Fole, o recorte temático apresenta-

Foto: Divulgação Sonora Brasil

e ampliado o número de cidades participantes.

do por eles tratava do repertório composto para

Gilberto Monteiro (RS)

Desde 2013, tem realizado a Mostra Sonora Bra-

o acordeão relacionado à música de concerto e

Foto: Divulgação Sonora Brasil

sil em Porto Alegre, mas mantém a circulação

a uma música popular urbana que exigia alto

Duo Ferragutti Kramer (SP/RS)

pelo interior em períodos independentes. Em

nível de performance, incluindo aí obras de Do-

2018, recebe o tema Na Pisada dos Cocos, reali-

minguinhos e dos próprios integrantes do Duo,

zando 48 apresentações em 12 cidades.

entre outras.

Daniel Wolff (RS)

Foto: Divulgação Sonora Brasil

Alabe Ôni (RS)

Foto: Divulgação Sonora Brasil

Duo Cancionâncias (RJ)

Foto: Divulgação Sonora Brasil


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

45

Também pelo tema Sotaques do Fole, o gaúcho Gilberto Monteiro apresentou repertório que

para a preservação e valorização da memória da música brasileira.

contou o desenvolvimento da gaita ponto no

Em 2018, uma programação especial come-

Estado do Rio Grande do Sul. Com roteiro bem

morativa dos 20 anos inclui duas ações que en-

elaborado que incluía alguns causos, Gilberto

tram para a história do projeto por seu signifi-

mostrou a trajetória do instrumento desde o iní-

cado, beleza e importância como marco de uma

cio do século passado até os dias de hoje, com re-

conquista que precisa ser reconhecida, valoriza-

pertório que percorria de Tio Bilia a composições

da e comemorada. A primeira é a realização da

de sua autoria.

exposição Experiência Sonora Brasil, inaugurada

Manuelai Camargo, cantora lírica gaúcha ra-

em abril na galeria do Sesc Casa Amarela, em

dicada no Rio de Janeiro, integrando o Duo Can-

Recife – PE, e que depois irá circular por outros

cionâncias com o violonista Cyro Delvízio (MS),

Departamentos Regionais. A exposição reúne

participou no biênio 2013/2014, apresentando re-

um amplo acervo áudiovisual interativo, con-

pertório composto para canto e violão inserido no

tendo registros do projeto desde sua primeira

tema Edino Krieger e as Bienais de Música Brasi-

edição. É um mergulho no universo infinito que

leira Contemporânea. Além de músicas de Edino,

conduz o público por uma imensa variedade de

o duo interpretou obras de outros compositores

sons e expressões musicais, que representam to-

que foram apresentadas nas bienais.

das as regiões do país.

No mesmo biênio, pelo tema Tambores e

A segunda é a realização do concerto co-

Batuques, o grupo Alabê Ôni apresentou o Tam-

memorativo dos 20 anos, com o grupo Quadro

bor de Sopapo, narrando sua história desde os

Cervantes, no dia 2 de maio, na cidade de Ma-

tempos das charqueadas, em Pelotas. O grupo foi

ceió – AL. Neste mesmo dia e na mesma cida-

formado para o projeto Sonora Brasil e contou

de, em 1998, aconteceu o primeiro concerto do

com a participação de Richard Serraria, Kako Xa-

projeto, realizado também pelo Quadro Cervan-

vier, Pingo Borel e Mimmo Ferreira, músicos pes-

tes. No dia seguinte ao concerto, será realizada

quisadores que atuam em prol da valorização e

uma Roda de Conversa com a participação de

revitalização da cultura de matriz africana no Rio

sete convidados que participaram da construção

Grande do Sul. Seu repertório apresentava ma-

dessa história.

çambiques, quicumbis, alujás e candombes.

Também nesse ano serão escolhidos os temas e grupos que circularão no biênio 2019/2020.

20 ANOS

O tempo não para e ainda há muito o que se des-

O Sonora Brasil é motivo de orgulho para o Sesc

cobrir sobre nossa música. O Sonora Brasil é um

e para todos os profissionais da área de Cultura

grande álbum que coleciona retratos do imenso

que atuam nos seus Departamentos Regionais de

painel sonoro da cultura musical brasileira. Ál-

todo o país. Não apenas por sua magnitude, mas

bum que, mesmo sendo ampliado a cada ano,

principalmente por sua importância no fomento

certamente nunca estará completo.

ao desenvolvimento da música e à formação de plateias, o Sonora é reconhecido por músicos, críticos e outros profissionais da área como o maior projeto de circulação de música do Brasil. O vasto conteúdo produzido nas pesquisas que orientam o desenvolvimento dos temas, disponibilizado ao público através dos concertos, dos catálogos, das ações formativas e dos vários outros produtos resultantes do projeto, colabora de forma incisiva

Caixeiras do Divino (MA)

Foto: Divulgação Sonora Brasil

Raízes do Samba de Tocos (BA) Foto: Divulgação Sonora Brasil

Grupo Ilumiara (MG)

Foto: Divulgação Sonora Brasil

Quinteto Brasília (DF)

Foto: Divulgação Sonora Brasil

Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

46

1 Texto compilado a partir de informações do catálogo Na Pisada dos Cocos : circuito 2017/2018. – Rio de Janeiro: Sesc, Departamento Nacional, 2017 (Sonora Brasil)

A cultura viva do Nordeste

[1]

Com o tema Na Pisada dos Cocos, quatro grupos

diversos músicos brasileiros passaram a incluir

mantém a tradição de dançar coco para aplainar

de diferentes localidades e variantes do gênero cir-

o gênero em seu repertório. Os emboladores de

o chão de barro das casas de taipa. É cantado por

culam pela região Sul, difundindo a tradição oral

coco, emboladores ou cantadores de embolada

mulheres e dançado por casais. Não utiliza instru-

perpetuada em pequenas comunidades

normalmente apresentam esse tipo de poesia

mentos e a base rítmica é marcada pela pisada dos

Na Pisada dos Cocos apresenta variantes de

improvisada tradicional em shows, festivais de

dançadores. A sonoridade que resulta do canto,

expressão cênica e musical típica da região Nor-

repentistas e outros eventos, ao som do pandeiro

somada ao ritmo da pisada, remete a um ritual in-

deste, mais especificamente dos estados de Ala-

e, mais raramente, de ganzás.

dígena. Também faz parte da memória do grupo a

goas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e

Para se tornar cantador de coco, dançador

Sergipe, a zona do coco. Trata-se de uma prática

ou tocador de bumbo, caixa e ganzá, reconheci-

coletiva que envolve, na maioria das vezes, grupos

do por aqueles que também participam da brin-

O grupo é formado pelas cantadeiras Maria

mistos, formados por homens e mulheres das áre-

cadeira ou do público tradicional, é necessário

do Carmo de Jesus, Nivalda Rosa Gomes do Nas-

as urbanas e da zona rural, de aldeias indígenas e

uma longa vivência comunitária, responsável

cimento e Maria Nazaré Nunes dos Santos, e pelos

comunidades quilombolas, nas quais a dança e a

pelo aprendizado, que tem na base a observação

dançadores José Lira dos Santos e Janaína Maria

música, integradas, estão presentes nos terreiros,

de como se canta, como se improvisa, como se

dos Santos, Edna Nivalda do Nascimento Silva e

nas festas populares e em ritos religiosos, do ca-

encaixa um verso para ser cantado em roda, de

Agnaldo José da Silva, Genivaldo Lira dos Santos e

tolicismo e de religiões afro-brasileiras. Coco, coco

modo a obter a resposta dos que estão na roda

Edilane dos Santos.

de roda, coco de tebei, coco de zambê, coco furado,

e o acompanhamento instrumental dos tocado-

samba de coco e sambada são denominações que

res. Para a brincadeira ser boa é necessário que os

identificam a comunidade a que pertence.

cantadores saibam improvisar, que tocadores sai-

A expressão poética musical faz parte da

bam imediatamente acompanhar a palavra can-

grande família do samba. Alia dança, canto, mú-

tada e que os participantes da roda cantem em

sica e poesia oral e se caracteriza como celebra-

coro a “resposta” ao verso improvisado do canta-

ção, festa comunitária, sendo também chamada

dor. Tudo repleto de situações da vida cotidiana.

de brincadeira e apreciada por pessoas de todas

Nos últimos 15 anos, tem crescido a produção

as idades. Os conhecimentos são de transmissão

de CDs e DVDs de grupos tradicionais de canto e

oral nas comunidades tradicionais, com singula-

dança que, por intermédio de músicos, de pesqui-

ridades nas diferentes localidades. Um exemplo é

sadores e de editais, têm conseguido ultrapassar

o coco dançado aos pares, isto é, em pareia e com

as fronteiras de suas comunidades, inserindo-se

trupé (tropel), referente ao som das pisadas fortes

algumas vezes no mercado cultural, ganhando vi-

com sapatos, tamancos ou chinelos, funcionando

sibilidade nas suas cidades e estados e até mesmo

como percussão.

no resto do país.

cantoria do rojão, associada ao uso da enxada na preparação da terra para o plantio.

https://vimeo.com/18675000 Documentário Tebei

Como gênero musical, o coco frequenta a século 20. Seu destaque no rádio, entretanto,

De pequenas comunidades para todo o Brasil

ampliou-se com artistas como o paraibano Jack-

O Coco de Tebei é praticado por um grupo de agri-

son do Pandeiro e o pernambucano Manezinho

cultores e tecelões da comunidade Olho D’Água do

Araújo, conhecido como Rei da Embolada nas

Bruno, na cidade de Tacaratu, sertão pernambu-

décadas de 1950 e 1960. A partir dos anos 1970,

cano, próximo à divisa com Bahia e Alagoas, que

indústria fonográfica brasileira desde o início do

Coco do Iguape Samba de Pareia da Mussuca Foto: Divulgação Sonora Brasil


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

47

Comunidade de remanescentes quilombolas que se empenha para manter as tradições herdadas de seus antepassados, o povoado de Mussuca, no município de Laranjeiras, próximo a Aracaju, Sergipe, tem a pesca e a cata de crustáceos, assim como a culinária, como suas principais atividades econômicas. É lá que se mantém viva a manifestação cultural do samba de pareia, cuja origem é estimada em 300 anos, relacionada a um ritual de nascimento, em que o grupo se apresenta, em pares – daí o nome –, para desejar as boas-vindas ao recém-nascido. Atualmente, é dançado por mulheres, enquanto os homens são os tocadores que sustentam o ritmo com dois tambores médio-graves e uma porca (cuíca). Completa a instrumentação um ganzá, tocado por uma das mulheres, e a pisada dos tamancos das dançadeiras como principal elemento rítmico. Embora não se caracterize como um folguedo, o samba apresenta dança coreografada e trajes padronizados. As letras das músicas fazem alusão a situações do dia a dia, normalmente com muita irreverência. O Samba de Pareia da Mussuca é liderado por uma mestra, dona Nadir, o que é raro nos grupos de tradição, e conta com a participação de Mangueira (Acrisio dos Santos), Carmélia dos Santos, Elenilde da Silva, Maria Edenia dos Santos, Maria Ednilde dos Santos, Cecé (Maria José dos

cionada com o mesmo tecido usado nas velas das

o gesto da umbigada. Apesar da prevalência de

Santos), Maria Lucia Santos, Maria Luiza dos San-

jangadas, tingida com a tinta retirada da casca do

homens, não há restrições à participação das

tos, Maria José dos Santos e Normália dos Santos.

cajueiro azedo.

mulheres. Os instrumentos são o caixão, feito de

Os integrantes do Coco do Iguape são pesca-

O Coco do Iguape tem o andamento mais

madeira e num formato que permite ao tocador

dores artesanais da praia homônima do litoral cea-

acelerado e uma dança mais pulada. A música

sentar sobre ele; o ganzá, espécie de chocalho fei-

rense, localizada no município de Aquiraz, primeira

mantém a estrutura de refrão fixo, apresentado

to com latas reutilizadas; e o triângulo, inserido a

capital do Estado, a 30 km de Fortaleza. Liderados

pelo mestre e cantado pelos brincantes, e estro-

partir de influências externas.

pelos mestres Raimundo da Costa, que desde os

fes emboladas pelos mestres, algumas criadas

Como a maioria dos integrantes são fami-

10 anos de idade pratica o coco de embolada, e

no calor da brincadeira. A dança acontece em

liares do mestre Raimundo, percebe-se o envolvi-

Chico Caçoeira, apresentam-se descalços, como os

pares, um de cada vez no meio da roda, com tro-

mento dos jovens com o coco e, em pelo menos

outros cocos do litoral, e com vestimenta confec-

cas constantes marcadas pelo convite feito com

um deles, já foi identificado o perfil de liderança


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

48

2 Show Lá Vai Maria, grupo Três Marias https://www.youtube.com/watch?v=HK9fx8aVHM8

para consolidar a continuidade do grupo por mui-

se expressar, celebrar e ao mesmo tempo questio-

referência no choro; Pâmela Amaro, mulher negra,

to tempo. Além dos mestres, participam Klévia do

nar conceitos e padrões culturais relacionados a

artivista, atriz, cantora, compositora e musicista

Iguape (Klévia Cardoso da Silva), Renato Cabral,

diversas formas de opressão. O grupo conta com

– toca pandeiro e cavaquinho; e a contrabaixista

Wellington Monteiro, Gatinho (João Anastácio de

a parceria e conselho de mestres e mestras como

e arranjadora Tamiris Duarte, que acompanha o

Carvalho), Caboquim (José Ailton da Costa Miran-

a Mestra Martinha do Coco (PE), Mestre Paraque-

mestre de cultura popular Tião Carvalho (Mara-

da), Altamiro da Costa e Adonai Ribeiro.

das (RS), Mestre Tião Carvalho (MA) e do babalaô

nhão), em São Paulo; todas porto-alegrenses.

É principalmente no município de Tibau do

Ìdòwú Akínrúlí (Nigéria). O repertório apresenta

A sonoridade do grupo é composta por vozes,

Sul, litoral do Rio Grande do Norte, que se pratica o

o trabalho autoral do grupo, visitando tradições

diversos instrumentos de percussão (alfaia, con-

coco de zambê, expressão cultural que teria chega-

como samba de coco, capoeira angola, jongo, forró

gas, ilu, matracas, ganzá, zabumba, djembe, agê,

do aos engenhos de cana-de-açúcar e às colônias

de rabeca, bumba meu boi, samba e afoxé.

agogô e pandeiro) e cordas (rabeca, contrabaixo e

pesqueiras da região por intermédio de africanos

Atualmente, o grupo é composto por cinco

cavaquinho). O projeto Três Marias nasce na estra-

escravizados. Como tantas manifestações da tra-

integrantes. Andressa Ferreira, percussionista, can-

da, entre passadas de chapéu nas ruas de Lisboa,

dição oral, correu o risco de desaparecer, até que

tora e compositora brasiliense, é filha de piauien-

Cavalcante, Galícia e no metrô do Rio de Janeiro, a

no fim do século 20, o mestre Geraldo Cosme, li-

ses e vivenciou em casa e nas festas de família a

festivais e salas de teatro internacionais com a Cia

derando um grupo familiar, retomou o zambê em

música nordestina como forró, xote e samba de

Mamulengo Presepada (DF).

sua forma original: com dois tambores, um deles o

coco. Rabequeira, violinista, cantora, percussio-

próprio zambê, também chamado de pau furado

nista, compositora e antropóloga, Gutcha Ramil é

ou oco de pau, maior e mais grave, e o chama, am-

natural de Pelotas/RS e em, uma família de músi-

bos construídos artesanalmente com troncos de

cos, desde sempre conviveu com a música dentro

árvores da região. Podem aparecer outros instru-

de casa. As duas coordenam o grupo Três Marias,

mentos de percussão, no caso do grupo do mestre

do qual fazem parte ainda a percussionista Thayan

Geraldo, até lata de tinta.

Martins, que já tocou com muitos músicos que são

O canto é puxado pelo mestre e respondido pelo coro de vozes, e a dança acontece em uma roda que mantém ao centro os tocadores. Os brincantes se revezam reverenciando o tambor e realizando passos livres que lembram movimentos da capoeira e do frevo. Somente homens praticam o coco de zambê. O grupo é formado por Didi (Djalma Cosme da Silva), Uzinho (Severino de Barros), Tonho (Antonio Cosme de Barros), Mestre Mião (Damião Cosme de Barros), Zé Cosme (José Cosme Neto), Kéké (Ckebesson da Silva), Pepé (Ederlan da Silva) e Beto (José Humberto Filho de Oliveira).

Três Marias bebe na fonte do coco[2] Engajadas na manutenção e reinvenção de expressões tradicionais, as Três Marias percorrem uma caminhada de valorização e empoderamento das mulheres na música, no toque dos tambores e no protagonismo nas brincadeiras e nas tradições populares. O grupo radicado em Porto Alegre mostra a expressão de mulheres musicistas que, por diversos caminhos, encontram na música e nas artes da cultura popular a possibilidade de se fortalecer,

Três Marias, grupo de mulheres musicistas radicado em Porto Alegre, conta com a parceria e o aconselhamento de mestres da cultura popular Foto: Ramon Moser


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

Por Alejandro Brittes Compositor e intérprete de música regional do litoral argentino, com 30 anos de trabalho pela difusão do chamamé. Cursou Música Clássica na Escola Juan Pedro Esnaola, tem sete álbuns gravados e está compondo a ópera Chamamé: Terra sem Males, com estreia prevista em São Miguel das Missões e na Arena de Verona, Itália.

1 Coleti, Giovanni Domenico (Vol. 2, pp. 280-281 e 330). 2 Tradução do Avá (Nossa Gente) denominação dos guaranis quando falam de si mesmos, (1974:2)

49

Magali de Rossi Produtora e gestora cultural licenciada em História, com especialização em Realidade Brasileira Sociocultural pela UFRGS. É criadora da Caravana Chamamecera e da primeira ópera sobre o chamamé, chamada Terra sem Males, com estreia prevista para 2018.

CHAMAMÉ: UMA HISTÓRIA PARA SER CONTADA O artigo propõe o debate em torno do imaginário

questionamento: de onde tudo isso surgiu? por

ses. Nos últimos anos, vem sendo cada vez mais

simbólico e da memória coletiva, passando por

que somos assim? que histórias esse ritmo tem

executado e utilizado por diversas instituições

aspectos da historiografia vigente, de vivências e

a nos contar?

para formação de plateia, tanto em seu país

registros orais sobre o chamamé. Um desafio para

O conceito da “terra sem males” foi atribuído

de origem como no Brasil e em outros países.

que o leitor amplie sua lupa e olhe desde cima

pelos guaranis ao seu vasto território, e é nele que

Definimos o chamamé como a “world music do

para o tema, para que possa pensar nas frontei-

solidificam as bases para a formação musical do

século 21”.

ras como tão somente traçados geopolíticos, es-

chamamé, esse patrimônio vivo, imaterial, irregu-

paços mutáveis no âmbito da memória. Também

lar, circular e cotidiano que temos aqui e que nos

perceberá a música como resultado de um longo

identifica e nos liga às gerações passadas e nos

A ritualidade do chamamé e seu berço originário

processo e verá de que forma ela cumpre uma

conecta com as futuras através de nosso “DNA

O chamamé é resultado de um processo de acul-

função no imaginário social e na memória cog-

musical” e de nossa memória coletiva.

turação com mais de 400 anos de construção

nitiva. Assim, poderá compreender um pouco o

O gênero musical foi gestado no território

rítmica. Para conhecer sua origem, entender seu

das “30 Reducciones Jesuíticas Guaraníes”, da

significado ritualístico e sua formação enquanto

Província do Guayrá[1], e nasceu no nordeste ar-

gênero, além de compreender sua eleição, dentro

A história de um povo e a essência da Terra Sem Males

gentino, na província de Corrientes, oriundo de

da memória coletiva, como parte da identidade

um processo típico de aculturação. Esse ritmo re-

de uma vasta região, é necessário remontar o

A música e a terra são indissociáveis. Ambas nu-

vela uma espécie de arquitetura emocional capaz

passado. Da cosmovisão da etnia Avá-guaranis[2]

trem-se, suas frequências dialogam, mesmo que

de edificar pontes imaginárias de latinidade, entre

aos processos históricos de ocupação territorial

de maneira imperceptível e, juntas, equilibram a

as distâncias cartográficas e fronteiras impostas,

europeia do final do século 17 até os últimos

humanidade e dão ao povo sua identidade. Talvez

unindo gerações em seu entorno.

anos do século 18, quando teve início, no sul da

chamamé e sua ritualidade.

por isso o chamamé seja um dos poucos ritmos

Consumido por aproximadamente 35 mi-

América, a intervenção jesuítica com o projeto

musicais que traz consigo o estranho fervor do

lhões pessoas, possui adeptos em muitos paí-

de evangelização missionária das populações


música

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

50

3 Violão na língua guarani. 4 A Guerra Guaranítica (1753-1756) foi o conflito armado envolvendo as tribos Guarani das missões jesuíticas contra as tropas espanholas e portuguesas, como consequência do Tratado de Madri (1750) que definiu uma linha de demarcação entre os territórios coloniais espanhol e português na América do Sul 5 Tau Golin – Cartografia da Guerra Guaranítica

Alejandro Brittes está compondo a ópera Chamamé: Terra Sem Males Foto: dyogo Amorin

Fiesta Nacional del Chamamé, em Corrientes, Argentina Foto: Turismo Corrientes

autóctones, mais conhecidas como Reducciones jesuíticas guaraníes, da região do Guayrá.

A música barroca possui inúmeras caracterís-

Tais características fizeram com que os

ticas, entre elas a substituição das escalas modais

guaranis aprendessem rapidamente a música

Essas reduções jesuíticas se estendiam da

gregas, com a utilização do moderno sistema tonal

barroca, pois possuíam aptidão natural e divi-

América Central até o sul da América do Sul e se

maior e menor, definindo a harmonia e as tona-

diam a mesma compreensão. O sedimento para

consolidaram em todas as esferas do conjunto

lidades acrescidas da criação do baixo contínuo.

a formação do chamamé está, então, nas bases

missionário, nos seguintes países: Brasil (nos Sete

Essa mudança enriqueceu os contrapontos entre

seculares guaraníticas e europeias presentes no

Povos das Missões, no Rio Grande do Sul); Argenti-

as melodias graves e agudas, a partir de uma orna-

ritmo como o conhecemos e que dão a esse gêne-

na (no litoral e na província de Corrientes, em parte

mentação muito própria: notas agudas simbolizam

ro musical a característica de sagrado.

das províncias de Entre Rios e de Misiones, circun-

a tentativa de alcançar a deus; já o baixo contínuo,

dado o Rio uruguai); e Paraguai, onde ocorreu a

com as notas graves, representa o mundano ou a

primeira redução.

vida terrena.

música Barroca e música GUarani na estrUtUra mUsicaL do cHamamé

A população guarani tem uma cosmovisão

Nota-se que nesse momento histórico exis-

A partir da metade do século 18 houve grandes

muito complexa e profunda, segundo a qual a mú-

te, em continentes diferentes, uma cosmovisão

mudanças na ocupação territorial onde reinavam

sica é algo natural, bem como a dança, e ambas

similar em relação à música. de um lado, e des-

os 30 povos jesuíticos. A primeira foi em 1750,

cumprem função ritualística como uma reza, ser-

de sempre, os indígenas guaranis cantando seus

quando da assinatura do Tratado de Madri, que

vindo como ferramentas para manter contato com

cantos tradicionais com voz aguda para alcançar

estabeleceu um acordo de troca de territórios

o universo. utilizam instrumentos musicais percus-

as suas divindades e tentando, através dos ins-

entre as coroas, definindo uma linha imaginária

sivos e de cordas como rabeca e o M’baracá , que,

trumentos percussivos e dança, falar com a terra.

de demarcação entre os territórios coloniais es-

juntamente com a dança, fazem o contato com a

de outro lado, na Europa, a música barroca feita

panhol e português na América do Sul[5]. Essa li-

terra, ou melhor, com a “terra sem males”, e seu

para deus, com suas notas agudas para alcançá-

nha passava sob as reduções orientais, ou seja, os

canto é elevado aos céus em busca das divindades.

-lo, e o baixo contínuo com suas notas graves, re-

Sete Povos ao leste do Rio uruguai. Em 1753, os

Ao chegarem, os padres jesuítas se depararam com

presentando a impureza humana. Fica claro aqui

impérios invadiram os Sete Povos com seus exér-

essa realidade. Logo trataram de adotar, em seus

que os músicos barrocos europeus e os guaranis

citos de mercenários bandeirantes portugueses e

projetos educativos em prol da evangelização, ins-

entendem e sentem a música como Rito Sagrado.

espanhóis, iniciando a Guerra Guaranítica[2]. Pra-

trumentos como música, arquitetura, pintura, dan-

Ambos estabelecem uma dualidade, um diálogo

ticamente toda a população indígena foi morta

ça, escultura e literatura, baseados no movimento

invisível entre as duas esferas, o mundano ou ter-

e casas, plantações e igrejas foram queimadas e

barroco, predominante na Europa naquele período.

reno e o divino.

destruídas. Os poucos sobreviventes foram bus-

[3]


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

51

6 Dominus ac Redemptor Texto apostólico promulgado no dia 21 de julho de 1773 pelo Papa Clemente XIV, pelo qual extinguia a Companhia de Jesus por completo. 7 Esteros del Iberá (junção do espanhol, esteros com o guarani ý berá, “água brilhante”) é uma mistura de pântanos, lagos, lamaçais e cursos d’água no centro e centro-norte da Argentina, na província de Corrientes. Os Esteros formam o segundo maior complexo de zonas úmidas do mundo, só não sendo maior que o Pantanal, no Brasil. São ecossistemas de origem pluvial, com uma área entre 15 000 e 20 000 km². https://pt.wikipedia.org/wiki/Esteros_del_Iber%C3%A1 8 Terminologia ou nomenclatura criada por Magali de Rossi para definir conceito sobre aspectos antropológicos, ritualísticos na escolha da divisão musical 6/8 no chamamé. Além disto, o conceito nos remete a uma matriz “universal”, segundo a qual diversas culturas o usam em suas músicas em uma única situação específica: Para se conectar com suas divindades.

tonal. Eixo este que representa o homem e que, a partir de sua humanidade, tenta alcançar a Deus. A segunda premissa é a herança da polifonia na estética do chamamé, ou seja, a presença de uma multiplicidade de sons harmoniosos. Um exemplo disso são as obras com participação dos conhecidos duos vocais, como Mis Amores (versão de Tránsito Cocomarola), na qual o duo vocal realiza a melodia principal, enquanto o fundo musical instrumental é levado a cabo pelo bandoneón e pelo acordeão, em uma polifonia melódica, dando sustento harmônico à melodia principal. Ao substituirmos as vozes do duo vocal pelo primeiro e segundo violino e o acompanhamento instrumental do acordeão e do bandoneón por uma viola e um violoncelo, temos um quarteto de cordas próprio do barroco, respeitando suas conjugações melódicas e harmônicas de contrapontos e variações. car refúgio do outro lado do Rio Uruguai, nas

do Sul, juntamente com os sobreviventes guaranis

Os duos vocais se caracterizam por terem vozes

reduções da Argentina.

do lado Argentino, espalharam-se pela província

agudas e separadas por intervalos de terceiras e

[7]

de Corrientes, ocupando os Esteros de Iberas

sextas, oitavas, quartas, quintas etc, o que é co-

através do Rei Carlos III, publicou a Pragmática

e assentando-se em aldeamentos pelo litoral ar-

mum na música barroca e que hoje utilizamos na

Sanción de 02 de abril 1767, cujo objetivo foi a

gentino, trabalhando como peões ou com práticas

estrutura musical e identidade do chamamé.

expulsão de todos os jesuítas que estavam nos

agrícolas. Outros ainda emigraram para os centros

A herança guarani, talvez a mais importante,

territórios de domínio espanhol. Em 1773, com

urbanos para trabalhar como comerciantes, lu-

é oriunda das práticas religiosas ritualísticas, exer-

a Dominus ac Redemptor , a Igreja dissolveu a

thiers, artesões etc.

cidas pelo pajé. Era ele quem tocava o M’baraká

Na década seguinte, o império espanhol,

[6]

Companhia de Jesus e as reduções argentinas re-

Apontamos, então, algumas premissas que

(violão) para entrar em um campo metafísico

ceberam outras congregações religiosas que não

comprovam que o chamamé se origina na influ-

através do “rasguear” do instrumento, criando um

tinham as mesmas práticas de ensinamento dos

ência do barroco europeu na música guaranítica.

vértice de frequência sonora, um mantra que, no

jesuítas, fragilizando a organização. Essa situação

A primeira delas é que todo chamamé é tonal e

decorrer da história, transforma-se e dá uma iden-

favoreceu a ação dos bandeirantes portugueses e

não modal. Ao analisar os registros fonográficos

tidade singular ao gênero.

dos conquistadores espanhóis que começaram a

encontrados nos princípios do século 20, ou os

Essas são algumas constatações que provam

invadir sistematicamente as reduções, de olho no

chamamés resgatados do folclore popular de au-

que o chamamé se formou nas bases de duas

gado e nas grandes extensões de terra. Com isso,

tores anônimos, como El Carau, recopilada pelo

grandes influências, a barroca e a guarani – sem o

os guaranis ficaram sem proteção e acabaram fu-

músico Emílio Chamorro, ou La llorona, resgatada

encontro dessas duas culturas, não existiria o rit-

gindo dos aldeamentos cristãos. De 1776 a 1810,

pelo bandoneonista argentino Maurício Venezue-

mo. Por ser algo presente, vivo e inerente à identi-

durante as guerras de independências hispânicas,

la, e da primeira gravação, intitulada Corrientes

dade cotidiana, não necessita ser resgatado.

findou-se por completo a experiência da Compa-

Poty (La Flor de Corrientes), registrada em 1930

nhia de Jesus.

por Samuel Aguayo, na Argentina, percebemos

O fim das reduções não foi o fim dos conhe-

que essas músicas e suas respectivas gravações

A divisão musical 6/8 – a matriz ancestral

cimentos musicais ensinados pelos padres em sua

são tonais, o que se repete nos demais registros do

Uma das perguntas instigantes em torno do cha-

jornada junto aos guaranis e nem o fim da tradi-

período até hoje. Essa é uma característica musical

mamé é: por que esse ritmo possui a divisão mu-

ção musical dos povos originários. Pelo contrário,

herdada do barroco ocidental, movimento artísti-

sical 6/8 – binário composto e não quaternário ou

os que sobreviveram à Guerra Guaranítica e ao

co em que se deixa de lado os modos gregos para

ternário? Esse questionamento aparentemente

massacre ocorrido nos Sete Povos do Rio Grande

basear a composição no desenvolvimento do eixo

sem importância na busca pelas origens musicais


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

52

9 p.ext. Lugar onde algo é gerado e/ou criado, fig. aquilo que é fonte ou origem, ETIM lat. matrix,īcis 'mãe, origem; útero'– Dicionário online: https://www.dicio.com.br/ 10 Ascendência; a reunião das gerações anteriores de alguém: os índios cultuam seus ancestrais: Dicionário online: https://www. dicio.com.br/ 11 https://www.youtube.com/watch?v=kD5Hrzqbx7Y 12 http://www.abcdogaucho.com.br/painel-debatera-a-influencia-do-chamame-na-formacao-da-identidade-musical-do-rs/ 13 O Sheng é um instrumento musical chinês composto por tubos verticais. Alguns acreditam que Johann Wildeepere Amiot viajou para a China e trouxe os primeiros shengs para a Europa em 1740 e 1777, respectivamente, embora haja evidências de que instrumentos de palheta livre musical semelhantes ao shengs fossem conhecidos na Europa um século antes.

do chamamé pode ser uma das provas pontuais da contribuição dos guaranis na eleição da divisão. Sobre isso, apresentamos um novo elemento para debate em torno da origem do chamamé, a matriz[9] ancestral[10][8]. O músico e investigador Pocho Roch, em 2005, documenta em seu artigo Chamamé: Expresión cultural musical correntina três formas distintas dos povos guarani-avá executarem canto, dança e música. A fim de comprovar a ritualidade do chamamé, ele denomina Porãhei os cantos autênticos e verdadeiros, Guau ai os pequenos cantos sagrados e koty hu os profanos. Para Roch, a diferença entre os cantos se refere aos instrumentos utilizados, a quem os executa e ao método. O pesquisador afirma ainda que o uso da divisão musical 6/8 deixou de ser uma reza-dança quando iniciou a

Ópera sobre o chamamé tem estreia prevista em São Miguel das Missões (RS), uma das 30 reduções jesuíticas onde se originou o ritmo, da fusão das culturas guarani e barroca Foto: arquivo de Magali de Rossi

presença dos jesuítas. Em conversa com o cacique Vherá Poty, em

cultura afro utiliza a divisão 6/8 em situação simi-

Feito esse breve aporte, destacamos que essa

2017, em Porto Alegre, durante a pré-produção

lar a dos guaranis. O povo negro, quando realiza

matriz ancestral, identificada na divisão rítmica, é

da ópera Terra Sem Males, a origem do Chamamé,

suas comemorações tradicionais e festejos, toca o

inerente à formação musical do chamamé. O gê-

perguntamos: “vocês possuem músicas em 6/8 que

tambor na divisão 4/4. Já quando quer que os seus

nero poderia ser 4/4, mas a base ritualística e an-

possam ser apresentadas durante o espetáculo?”

orixás desçam ao plano terreno, muda a batida do

cestral dos guaranis, reforçada a partir das peças

Ele responde: “sim, claro! Porém, não podemos

tambor para 6/8.

barrocas escritas e executadas nos 30 povos em

executar em um palco, por que essa divisão mu-

Ao analisar as culturas além-mar, como a cel-

6/8, deixou gravado no imaginário popular algo

sical somente pode ser feita na casa espiritual e

ta, que data de até 4 mil anos atrás, percebe-se que

que nunca foi esquecido: a sua matriz ancestral e

pelo pajé para falar com as nossas divindades.” Fica

as principais músicas cantadas e lembradas são

sagrada. Hoje, século 21, ao executar esse ritmo,

claro que o 6/8 nunca foi esquecido pela memória

aquelas relacionadas a lendas ou feitas para exal-

estamos nos conectando ao universo, através da

coletiva guaranítica e tampouco deixou de ter pa-

tar a natureza, considerada uma divindade na cos-

batida ou do “rasguear” do violão, herança guara-

pel simbólico, mesmo com o processo missionário

movisão dos celtas, e são executadas em espaços

nítica que nos condiciona a um transe emocional,

jesuítico.

fechados e religiosos. Culturas milenares, separa-

a uma espécie de frequência quântica.

Seguindo a análise da matriz ancestral, a mú-

das por continentes, utilizam a divisão 6/8 quando

sica barroca também utilizava a divisão musical 6/8

realizam seus rituais sagrados e o quaternário 4/4

e tinha como função simbólica alcançar a Deus.

para festividades. Os guaranis utilizam o compasso

A mais famosa do período foi a Jesus bleibet meine

quaternário para celebrações a céu aberto ou em

A importância do acordeão no chamamé e a relação com a dualidade: terra e divino

Freude BWV 147, de J.S.Bach[11], uma cantata em

seus rituais de colheita e de fatos do cotidiano.

Além do violão, outro instrumento de imensa

compasso binário composto muito executada em

A eleição do compasso composto como a di-

importância no chamamé é o acordeão. Existe

igrejas e salões na Europa. Muitas suítes cataloga-

visão musical do chamamé deve-se à existência de

uma identificação profunda com o som do ins-

das como giga ou sonatas de chiesas são músicas

uma memória de longa data sendo preservada nos

trumento e com a sua função simbólica. Com

em 6/8, executadas também nas missões jesuíticas.

costumes e cumpre um papel simbólico importan-

possível origem na China, a milenar existên-

Certamente a música barroca, com divisão binária

te. Guardada em nossa memória cognitiva, a 6/8

cia do acordeão data de 2 mil anos. Pesquisas

composta, não foi estranha para os guaranis.

pode ser considerada a divisão da alma, enquanto

apontam para uma derivação do instrumento

O historiador Luiz Cláudio Nunes Knierim,

a 4/4 representa o terreno e o corpo, também com

de tubo, chamado Sheng[13]. Segundo o padre

também em 2017, no Painel sobre Chamamé na

papel importante nas culturas ancestrais, pois ce-

Julian Zini, em sua pesquisa sobre as origens

Casa de Cultura Mario Quintana , afirmou que a

lebrar os feitos e as conquistas é celebrar a vida.

do chamamé, o povo chamamecero escolheu o

[12]


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2018

53

acordeão porque se identificou com o órgano

O acordeão logo foi adotado no folclore po-

no; a mão direita executa as notas agudas com o

misional, construído quando da chegada de An-

pular, especialmente no chamamé, possivelmente

objetivo de dialogar com o “divino”. Possivelmente,

tônio Sepp na Redução de Yapejú, na Argentina.

pela sua praticidade e por substituir outros tantos

esses elementos também tenham contribuído para

A intenção era reproduzir os órgãos de tubo eu-

instrumentos de uma orquestra. Existem grava-

que o acordeão e o bandoneón fossem os princi-

ropeus e garantir a aplicação do baixo contínuo,

ções originais que revelam chamamés magistral-

pais instrumentos do ritmo, acompanhados pelo

acompanhamento importante na música barro-

mente executados por orquestras. Entretanto, é

violão. É tão profundo, em nossa compreensão, o

ca. Ainda segundo o padre Zini, o órgano misio-

inviável uma orquestra ir para um fundo de campo

valor simbólico no imaginário do mencho ou do

nal feito nas reduções jesuíticas é responsável

tocar um baile, pelo custo e pelo transporte. Já o

peão, que quando o acordeonista, na execução

pela escolha e inclinação do “ouvido” do povo

acordeão e o violão, presentes no dia a dia do peão

de um chamamé, toca uma nota aguda e evoca

chamamecero para o acordeão moderno.

e do camponês, podiam tranquilamente substituir

um sapucay, há uma espécie de descarga elétrica

um quarteto de cordas.

produzida pelo corpo quando o cérebro resgata da

No chamamé, o acordeão tem sua entrada na América do Sul após a grande emigração eu-

Sem descartar as questões de praticidade

ropeia de alemães, poloneses e, principalmente,

e identificação com o órgano misional, acredita-

italianos, a partir 1860. Na Argentina, país de ori-

mos que o fator determinante para a adesão ao

Trata-se de um ritmo com profundo valor

gem do ritmo, existem registros de fontes orais,

instrumento está relacionado ao campo simbólico.

antropológico, simbólico e histórico que mantém

conforme documentadas por Pocho Roch, de que

O acordeão atende à dualidade mundano-divino

viva, através do imaginário coletivo, a função ri-

em 1865, durante a guerra da Tríplice Aliança

presente na cosmovisão guarani e na música bar-

tualística da música, que perdeu grande espaço na

contra o Paraguai, já se executavam chamamés

roca. Simbolicamente, os baixos do instrumento

cena cultural moderna.

com acordeão e violão.

conectam ao tempo musical, à terra, ao munda-

Rito guarani na Aldeia Tiaraju, na BR 280, em Araraqui (SC) Foto: Bárbara Elice

memória o simbolismo do divino, o “Universo” realizando a conexão.


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PRiMEiRO SEMESTRE

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POR MARCO AuRELiO LOPES FiALhO CRíTiCO dE CiNEMA NO BLOG CiNEFiALhO.BLOGSPOT.COM.BR E ANALiSTA EM AudiOViSuAL dO dEPARTAMENTO NACiONAL dO SESC.

o lobo à espreita: uma homenagem ao centenário De ingmar bergman


aUdioVisUaL

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

55

1 ORFALI, Kristina. Um modelo de transparência: a Suécia. In Ariès, Philippe e Duby, Georges (org.). História da Vida Privada, vol. 5. São Paulo: Companhia das Letras. 1992. P.609. 2 ARMANDO, Carlos. O Planeta Bergman. São Paulo: Oficina de livros. 1988. p.59.

Bergman foi definitivamente um artista sueco.

pelo centro (partido de concentração liberal), até a

vezes, participantes diretos de “pequenas” guer-

Suas maiores influências artísticas vêm do pró-

direita (partido progressista conservador).

ras pelo mundo afora.

prio teatro e do cinema sueco: ibsen, Strindberg

Pelo menos em dois importantes eventos a

Apesar de a Suécia manter a neutralidade no

e Victor Sjöström. No panorama do cinema mun-

Suécia pôde afirmar sua posição de neutralidade

período pós-guerra, os ecos da Guerra Fria resso-

dial, influenciou mais outros artistas do que foi

perante o continente e o mundo. Primeiro, duran-

am também na aparente frieza sueca, mesmo que

por eles influenciado. Seu estilo é inconfundível,

te a Primeira Guerra Mundial, quando os Estados

esta não seja vislumbrada de maneira exacerbada.

marcante. diálogos densos, câmera que penetra

unidos convidam a Suécia a engrossar as fileiras

Em 1952, Bergman filma Monika e o Desejo, filme

rostos e os revela, em especial os das mulheres.

da Entente, tendo como resposta uma categórica

no qual o conflito patrão/trabalhador é latente,

As atrizes foram suas grandes estrelas e para elas

recusa. Em um segundo momento, quando a Fin-

até mesmo em uma análise superficial. Mas, no

dedicou personagens extremamente sensíveis e

lândia convida a Suécia a juntar-se aos exércitos

todo, esses conflitos continuam muito escamo-

eloquentes. Teve relacionamentos amorosos com

brancos na luta contra os bolcheviques russos, a

teados. Aqui é pertinente lembrar a observação

algumas de suas musas. São musas de muitos fil-

resposta também foi uma recusa. Essa posição de

da historiadora Kristina Orfali, de que a Suécia

mes. difícil esquecer o silêncio enigmático e feroz

neutralidade será fundamental para um entendi-

da social democracia, do final dos anos 1940, é

de Liv ullmann em Persona e da sua angustiante

mento mais apurado acerca do cinema bergmania-

“poupada da Segunda Guerra Mundial, mantém

Jenny em Face a Face; do sofrimento da persona-

no, considerando que os impactos desta postura

intacto seu aparato produtivo e surge aos olhos

gem de harriet Andersson em Gritos e Sussurros

isenta e introspectiva que o país assume no seu

da Europa devastada como um país da utopia

e sua intempestiva Monika em Monika e o Dese-

fazer político, nos âmbitos interno e externo, tam-

materializada, ‘os americanos da Europa’”. Kristi-

jo; do carisma inebriante de Bibi Andersson em

bém se reflete em seu cotidiano e na forma com

na acrescenta ainda que “a imprensa, com suas

O Sétimo Selo e Persona; o olhar penetrante de

que os suecos encaram a própria vida.

manchetes, contribuiu para criar a imagem de

ingrid Thulin em Morangos Silvestres e sua desa-

Com a predominância do partido social de-

uma Suécia ideal: ‘A Suécia, Estado social moder-

vergonhada Vogler em A Hora do Lobo; da vaidosa

mocrata (de esquerda) a partir de 1920, a Suécia

no’; ‘Aqui não existe fome nem miséria’; ‘Gênese

e egocêntrica mãe vividamente interpretada por

inicia uma trajetória na qual as reformas sociais

da harmonia social’, enfim, modelo material que

ingrid Bergman em Sonata de Outono. dentre

serão as grandes protagonistas, aprofundadas

fascina os franceses do pós-guerra.”[1]

vários, esses são alguns exemplos de femininos

de 1936 em diante com o desenvolvimento das

Bergman não comungava dessa propensão à

expressivos na obra bergmaniana.

instituições de assistência e seguridade social. As

neutralidade política adotada por seu país. deixou

medidas propiciam, em paralelo, um progresso

isso claro em uma entrevista à época do lança-

sUécia, essa nossa desconHecida

industrial intenso, fundamental para que a Suécia

mento do filme Vergonha (1968): “este filme está

Apesar de situada na Europa, epicentro de impor-

consiga vencer a grande crise econômica mundial

ligado ao sentimento de culpa que envergonhava

tantes transformações históricas da humanidade,

desencadeada pela quebra da bolsa de Nova York

a Suécia inteira, neutra durante a Segunda Guerra

a Suécia manteve-se numa posição de neutrali-

em 1929. Ainda mais surpreendente foi a perma-

Mundial e testemunha do terror.[2]

dade perante os grandes acontecimentos políticos

nência da neutralidade bélica da Suécia durante

Mas o modelo de neutralidade sociopolítica

e sociais do século 20, o que fez com que o país

a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o que

adotado pela monarquia parlamentar não pode

desenvolvesse características muito singulares e

lhe garantiu a posição de ser modelo e pioneiro

tudo explicar. do ponto de vista cultural, há um

ficasse alheio do imaginário mundial. Pouco co-

na implantação de um Estado do bem-estar no

isolamento ocasionado também por outros fato-

nhecemos sobre a sua história e sua cultura. Por

mundo pós-1945.

res, um deles provenientes do clima. O clima sueco

isso mesmo falaremos um pouco sobre esse país

A partir do fim da Segunda Guerra, em 1945,

influencia muito na mentalidade do país: o inverno

tão enigmático e situado em uma região muito fria

desenha-se um novo mapa político mundial com

é rigoroso e esse frio excessivo agrega uma at-

do planeta.

a formação de dois blocos polarizados: de um

mosfera sombria. O grau de pobreza é ínfimo, mas

Em quase toda a primeira metade do século

lado o socialista (uRSS), de outro, o capitalista

o suicídio é um fato recorrente no país, causado

20, a Suécia foi governada por uma monarquia

(EuA). Nesse momento histórico, o acirramento

pela chamada ‘angústia da floresta’, um sentimen-

parlamentar, sob a égide do reinado de Gustavo

ideológico é um elemento norteador e causador

to comum que persegue os suecos, uma solidão

V (1907-1950). Esse modelo de gestão política foi

de conflitos, não mais situados na Europa, mas

mergulhada na natureza hostil. A religiosidade

responsável pelo fortalecimento dos partidos po-

agora localizados em países fora do eixo de po-

ascética dos luteranos, somada a um racionalismo

líticos, organizados em um amplo espectro que ia

larização. inaugura-se então a chamada Guerra

exacerbado, não supre a ausência do calor huma-

da esquerda (partido social democrata), passando

Fria, com EuA e uRSS como financiadores e, às

no. E Bergman, apesar de ter sido educado nesse


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3 4 5 6

BJÖKMAN, Stig. O Cinema Segundo Bergman. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 1977. p.12. BERGMAN, Ingmar. Lanterna Mágica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. 1988. 2ª Edição. p.13. BERGMAN, Daniel. Crianças de Domingo. Filme. Roteiro Ingmar Bergman. Suécia. 118’. 1992. BERGMAN. 1988. p.21.

contexto cultural, tentou em sua obra estabelecer um visível lastro crítico em relação a essa herança. impossível não recordar aqui das suas próprias palavras mordazes: “Fiquei à mercê de uma educação literalmente medieval, feita de maus tratos físicos e psicológicos que visavam destruir toda e qualquer manifestação natural de vitalidade”.[3] Bergman, nessa citação, expõe um dado fundamental e que alicerça a história da Suécia. desde o século 12, a questão religiosa possui um fator primordial de unidade do reino sueco, e, desde lá, demarcou uppsala – cidade onde Bergman nasceu – como a capital religiosa da Suécia.

BerGman, Um FUracão siLencioso ingmar Bergman nasceu em 14 de julho de 1918,

A primeira ligação de Bergman com o cine-

Aos 20 anos estreou no teatro como dire-

em uppsala, Suécia. Filho de um pastor luterano,

ma ocorreu aos nove anos de idade, no natal de

tor, função que nunca abandonou, e que exerceu

teve uma educação rigorosa e autoritária, calcada

1927, quando “não resistiu à tentação de ver o ir-

paralelamente ao cinema, primeiro como rotei-

em valores e costumes como os da confissão, cas-

mão presenteado com um projetor e sugeriu uma

rista, depois como diretor, em 1945, quando di-

tigo, pecado, perdão e indulgência, que marcaram

barganha que terminou sendo definitiva para o

rigiu Crise, seu primeiro filme. Mas a influência

significativamente sua trajetória como homem e

futuro de sua vida: trocou um exército de solda-

do teatro se fez marcante em toda sua obra ci-

como artista.

dinhos de chumbo pelo cinematógrafo”.[6]

nematográfica.

Em sua autobiografia, intitulada Lanterna

Aos 12 anos, Bergman adquiriu toda a obra

O ano de 1940 foi um divisor de águas para

Mágica, o diretor sueco descreve inusitadas pu-

de August Strindberg (1849-1912) contra a von-

a carreira artística de Bergman. Em 1940, assu-

nições que sofreu em sua infância: sempre que

tade do pai, que ameaçou jogá-la fora. Astuta-

miu a função de diretor-assistente no Teatro

contava uma mentira recebia castigos constran-

mente escondeu em seu armário e devorou aque-

dramaten, em Estocolmo, lugar que ocupou até

gedores, como desfilar vestido de menina ou ser

le que se tornaria para ele um grande mestre.

1942. Ainda em 1940, assinou um contrato que

trancafiado em um armário. é ainda nesse perío-

dele passou a admirar as críticas cruéis à família

durou quatro anos como roteirista na Svensk

do que vivencia sentimentos como vergonha ou

burguesa sueca. Mais à frente dirigiu diversas de

Filmindustri, empresa que, cinco anos depois,

humilhação, temas explorados sistematicamente

suas peças para o teatro.

apoiou sua estreia como diretor de cinema. Em

em suas obras. No filme Crianças de Domingo,

Ainda adolescente, deixou a família e foi viver

1944, assumiu o cargo de diretor do Teatro Mu-

dirigido pelo seu filho daniel Bergman, a partir de

em Ganula Stam, bairro de Estocolmo, tradicional

nicipal de helsingborg, no qual permaneceu até

um roteiro do próprio ingmar Bergman, assiste-

reduto de artistas. Lá, Bergman se envolveu com

1946. Nesse mesmo ano, tornou-se o primeiro

-se a vários momentos de humilhação, algumas

o teatro e com a literatura, sendo influenciado

diretor do Teatro Municipal de Göteborg, ficando

impostas pelo pai, outras por crianças mais ve-

principalmente pelo já citado dramaturgo August

lá até 1949. Em 1954, já usufruindo de sua fama

lhas. Nesse filme há uma sequência que vale ser

Strindberg, do qual herdou as personagens femi-

no cinema, assumiu a função de diretor no Teatro

mencionada. Já no auge dos seus 60 anos de

ninas destruidoras e as figuras masculinas destru-

Municipal de Malmö, até 1960.

idade, ingmar vai visitar o pai, bem idoso, ago-

ídas. desse ambiente também assimilou o tema

devido ao trabalho intenso no teatro, os pri-

ra entrevado e quase à morte. Em uma conversa

da dúvida sobre a existência de deus, resultado do

meiros filmes de Bergman sofreram uma signifi-

entre os dois, o filho dirige a ele, friamente, dura

contato com as ideias pessimistas do filósofo So-

cativa influência dessa sua formação. Ele próprio

palavras. diz que não o perdoava pelas humilha-

ren Kierkgaard, além de ter conhecido um dos pa-

reconheceu que os primeiros filmes eram teatrais

ções que sofreu, devolvendo ao pai a humilhação

triarcas do cinema sueco, o diretor Victor Sjostrom.

em demasia pelo fato de ainda não se sentir fa-

degradante que tanto experimentou na infância,

do autor do clássico O Vento, estrelado pela atriz

miliarizado com a técnica cinematográfica. Essa

sem levar em consideração que o velho dava os

Lilian Gish, absorveu a compreensão da natureza

intimidade só vai começar com o filme Juventude

últimos suspiros em seu leito.

como elemento de sustentação dramática.

(1951). “Pela primeira vez, eu tinha a impressão de

[4]

[5]


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PRiMEiRO SEMESTRE

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7 BJÖRKMAN. 1977. p.31. 8 COTA, Ricardo. http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm 9 TRUFFAUT, François. Os Filmes da Minha Vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1989. p.278.

trabalhar de uma maneira pessoal, com um estilo

obra foi, filme a filme, refletindo questões vitais

um cinema ao mesmo tempo humano e meta-

pessoal, era o meu filme, do começo ao fim. Su-

para o ser humano, visitando nosso íntimo, re-

físico, abre um profundo fosso entre a sua obra

bitamente, percebi que tinha colocado a câmera

virando tabus, indagando acerca do sentido da

e o cinema de massas. Ao aproximar-se de sua

no lugar certo, que tinha conseguido o resultado

existência e da morte. As relações humanas foram

obra é bom saber que o público não encontra-

procurado, que tudo funcionava muito bem.”[7]

exploradas em toda a sua complexidade, desde a

rá facilidades, nem na abordagem temática nem

Em mais de 58 anos como diretor, realizou

dimensão social até os conflitos interiores. é no

na forma cinematográfica. Mas quem encarar

53 trabalhos, incluindo os filmes feitos para te-

indivíduo que a obra bergmaniana se realiza e en-

corajosamente o desafio não se arrependerá.

levisão. Em 1982, aos 64 anos, anunciou a apo-

contra o seu habitat. Certa vez, no lançamento do

As recompensas serão imensas, pois o espectador

sentadoria ao realizar Fanny e Alexander, mas

filme Da Vida das Marionetes, em 1980, o cineas-

descobrirá a capacidade que a obra bergmaniana

retornou dois anos depois com Depois do Ensaio.

ta expôs com exatidão sua concepção estética e

tem de penetrar na alma humana, de desvendar

Fez ainda alguns filmes para TV, até enfim filmar

humana: “instintivamente as pessoas têm sempre

seus aspectos mais sombrios e inóspitos.

seu derradeiro trabalho, Saraband (2003), vindo a

medo das emoções. Na minha geração, no meu

é importante alertar ainda que existe, na obra

falecer quatro anos depois, em 2007, aos 89 anos.

meio, educar não era formar um ser humano, mas

bergmaniana, uma variedade estilística bem mais

Analisar Bergman considerando o volume de sua

criar uma pequena marionete, destinada a existir

complexa do que se supõe habitualmente. Como

obra é surpreendente. Mais impressionante, po-

e a andar numa sociedade autoritária. Para que

bem salienta Ricardo Cota, “embora Bergman

rém, é analisá-lo sob uma perspectiva qualitativa.

um menino não se comporte como uma menina

seja quase sempre lembrado por suas obsessões

Chega a ser assustador, se pensarmos pela ótica

é preciso ser duro com ele e, assim, muito cedo,

mais frequentes, como o passar do tempo,

da densidade e profundidade de seus trabalhos,

aprendemos a interpretar nossos papéis. Por isso,

a morte, a impossibilidade de comunicação,

sem contabilizar as inúmeras peças de teatro que

seriamente, creio que é, que seria maravilhoso

presentes em filmes como Luz de Inverno,

dirigiu no mesmo período. A constância produtiva

ensinar o ABC das emoções. Com esse ABC eu

e criativa de Bergman é explicada em seu próprio

tento trabalhar e atingir o d do abecedário, mas

depoimento: “sempre gostei da minha profissão,

nós somos todos analfabetos nesse campo.”[9]

e nossas relações são totalmente despojadas de

O compromisso de Bergman, então, está no estu-

neuroses. O processo de criação propriamente

do desses mecanismos que apodrecem o homem

dito, o fato de trabalhar, de fazer coisas, de fazer

desde o nascimento até a morte e que aprisionam

coisas novas e apagar as precedentes. A profis-

a existência.

são que exerço corresponde à minha natureza, ao meu lugar no mundo.”

[8]

Ao tratar de temas tão difíceis de serem abordados e penetrados, Bergman afasta-se ra-

No decorrer de sua longa carreira, Bergman

dicalmente do chamado cinema de entreteni-

foi adquirindo maturidade técnica e pessoal. Sua

mento, divertido e espetacularizado. Ao elaborar

Personna , 1966 Personna , 1966 Face a Face, 1976 Crise, 1946


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PRiMEiRO SEMESTRE

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10 COTA, Ricardo. http://www.terra.com.br/cinema/favoritos/bergman.htm 11 ARMANDO. 1988. p.336.

O Sétimo Selo, O Silêncio, Persona e tantos outros,

uma coisa interessante a esse respeito: ‘quan-

expressão ou reação. Ele não é descritivo, mas

o conhecimento mais aprofundado de sua obra

do você me fala, eu não compreendo nada do

sim analítico. O close em sua obra o define, por

revela um autor de talentos múltiplos. O Olho do

que você quer dizer, mas quando você não me

isso é pleno. Tem como função fazer com que

Diabo, Sorrisos de uma Noite de Amor e Para não

fala nada, compreendo tudo perfeitamente’”[11] ,

o espectador entre na intimidade de um perso-

Falar de Todas as Mulheres são filmes de um bom-

disse ingmar Bergman. Como diretor de cinema,

nagem, sinta a verdade dele como se fosse sua.

humor surpreendente, sobretudo quando se sabe

construiu a carreira em paralelo a de diretor te-

Não por acaso, Bergman foi o diretor que melhor

que são filmes do mesmo autor de Vergonha,

atral. Essa combinação é importante para uma

aproximou Freud do cinema. Não se contentou

Face a Face e Da Vida das Marionetes.”[10]

compreensão de sua arte. Nesse intercâmbio

em apenas mostrar a angústia de um persona-

O Sétimo Selo (1956) e Morangos Silvestres

entre teatro e cinema, a relação com os atores

gem. Foi além e fez dela a angústia de todos

(1957) foram dois filmes realizados em sequên-

foi a mais profícua e, ao assistirmos seus filmes,

nós, e por um motivo simples: os sentimentos

cia, na segunda metade da década de 1950, e fo-

isso salta aos olhos. Bergman tinha um profun-

dos personagens vêm da mesma sociedade que

ram cruciais para a consolidação da imagem de

do respeito e admiração pelos atores e atrizes.

nos gestou. Os filmes têm a capacidade de des-

Bergman no cenário cinematográfico mundial.

Não à toa os projetou constantemente, valori-

pertar no espectador essas verdades. Pergunta-

zando nas obras as suas atuações. Alguns deles

mos se não há um resquício altamente religioso

a reLação de BerGman com atrizes e atores

ficaram conhecidos como bergmanianos, tal a

nessas premissas bergmanianas? A ausência de

frequência dessa parceria e fidelidade artística

deus, aspecto tão presente em algumas de suas

“Pouco a pouco, consegui estabelecer uma téc-

entre o diretor e seu elenco. A câmera de Berg-

obras, provocou um humanismo extremado, um

nica pessoal de trabalho com os atores. Preparo

man parecia estar à mercê de seus personagens,

predomínio do corpóreo e um antiascetismo.

a filmagem nos mínimos detalhes em casa. é lá

o seu posicionamento sugeria isso. O humanis-

Subliminarmente, porém, o close em Bergman

que concebo as cenas, os cenários, a interpreta-

mo bergmaniano se consubstancia na primazia

resgata a confissão. A educação religiosa rígida

ção em geral. Quando chego ao local de filma-

do personagem sobre o cenário.

recebida na infância foi renegada, como é sabi-

gem com os atores, pode acontecer que, apesar

O rosto sempre foi o lugar por onde Berg-

do, na fase adulta. Todavia, um passado vivido é

de tudo preparado, o tom, uma nova inflexão de

man adentrou os mistérios da psiquê humana, e

difícil de ser apagado por inteiro. Essa “religio-

frase, um gesto, uma expressão, a reflexão de

o close o seu instrumento mais precioso e reve-

sidade”, conforme descrevemos anteriormente,

um ator me incitem a mudar totalmente a cena.

lador, a busca invasiva pelos recantos inimagi-

trouxe um vigor original e irrepreensível para a

Eu sinto interiormente que o resultado será me-

náveis. O rosto é o último reduto do humano e o

obra bergmaniana.

lhor, mas isso nunca tem a necessidade de ser

olhar a nossa masmorra, onde nos revelamos ou

dito entre nós. Acontece um montão de coisas

nos escondemos. Por isso, o close em Bergman

entre mim e os atores, e sobre um plano que é

difere do close em outros diretores – vai muito

impossível de analisar. ingrid Thulin me disse

além de mostrar mais de perto uma determinada

Morangos Silvestres, 1957 A Hora do Lobo, 1968 A Hora do Lobo, 1968 Vergonha, 1968 Vergonha, 1968


aUdioVisUaL

PRiMEiRO SEMESTRE

2018

59

12 ARMANDO. 1988. P.196 a 201.

BerGman Por BerGman[12] “A minha atitude em relação à minha

Pretender o contrário seria grotesco.

“é um dos sentimentos que marcaram

Mas não faço propaganda por uma

a minha infância: a humilhação. Ser

tendência ou por outra…”

humilhado fisicamente, em palavras ou em uma situação. Eu me pergunto se as

prática da arte é que eu fabrico objetos mais belos que a média. Faço artigos de

“depois da estreia de Persona, algumas

crianças não experimentam a todo ins-

consumo. Se, em seguida, um deles ad-

jovens mulheres da esquerda dinâmica

tante e de forma intensa este sentimen-

quire uma dimensão suplementar, isso

me declararam guerra e queriam a todo

to de humilhação nos contatos com os

dá sempre muito prazer. Mas não traba-

preço demonstrar que as personagens

adultos e com as outras crianças. Todo

lho para obter a imortalidade.”

femininas do filme eram a imagem de

o nosso sistema de educação é em re-

uma concepção reacionária da mu-

alidade uma humilhação, e, quando eu

“Os artistas não são praticamente

lher… Mas a moral puritana que me

era criança, isto era ainda mais eviden-

mais os visionários sociais. E eles não

persegue como um cão – eu convivi

te do que hoje. O pranto da humilha-

devem imaginar que ainda são. A re-

com ela durante toda minha infância

ção e o sentimento de ser humilhado

alidade anda sempre mais depressa

– me ensinou que, para ser educado,

causaram muitos problemas em minha

que o artista e suas visões políticas.”

eu não devia falar nunca de duas coi-

vida de adulto (…) A pessoa humilha-

sas: do sexo e do dinheiro. Meus filmes,

da se pergunta constantemente como

“dizem hoje que toda arte é ação po-

entretanto, são de preferência físicos, e

ela poderá humilhar uma outra pessoa,

lítica, mas eu diria também que toda

eles vão além não somente da sexua-

como ela poderá devolver a bala, esma-

arte tem afinidade com a ética. Na

lidade mas de todo o problema moral.

gar o adversário, paralisá-lo até elimi-

realidade, é a mesma coisa… é o que

Minha fascinação permanente pela

nar dele a ideia de uma reação.”

Eugene O’Neill queria exprimir, di-

raça feminina é uma das minhas prin-

zendo: ‘Toda obra dramática que não

cipais forças motrizes. é evidente tam-

“Não censuro certos críticos pelo fato

trata de relações humanas com deus

bém que um tal vínculo implica uma

de fazerem filmes nem certos cineastas

é sem valor’. Fico sempre surpreendido

ambivalência, encerra uma contradi-

por se dedicarem à crítica. Simplesmen-

quando dizem que sou arredio a tudo,

ção. Mas tenho para o bem do mal que

te, alguém que, como eu, está há quase

que me sinto à margem da sociedade,

aceitar a etiqueta anti-sexual. Tenho

trinta anos em contato com o teatro e

que isolo… declarei muito claramente

muito medo dos moralistas porque eu

com o cinema, conduz-se automatica-

que não sou um artista engajado po-

mesmo o sou. é verdadeiramente difícil

mente, como uma velha raposa muitas

liticamente, mas, naturalmente, sou a

descobrir um moralista mais moralista

vezes mordida no rabo, nas patas ou no

expressão da sociedade na qual vivo.

do que eu.”

focinho. é um reflexo bastante natural.


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PRiMEiRO SEMESTRE

2018

60

Quando encontro um crítico, mostro-

téria de meus filmes são experiências da

“Quando exibo um filme, sou culpado

-me muito cortês, mas algo em mim

vida, cujo suporte intelectual e lógico é

de fraude. uso um aparelho construído

fica alerta. Nada posso contra isso. No

frequentemente desagradável.”

para se aproveitar de uma certa fraque-

entanto, no momento em que a crítica

za humana, um aparelho com o qual eu

renunciar à sua função de crítica e em

“Fazer filmes é também mergulhar até

posso sacudir a plateia de uma maneira

que eu próprio deixar de fazer cinema,

as mais profundas raízes, até o mundo

altamente emocional – fazê-la rir, gritar

então poderemos verdadeiramente nos

da infância (...) Tomo consciência disso

de medo, sorrir, acreditar em histórias de

encontrar.”

quando entro no local de filmagens, ou

fadas, tornar-se indignada, sentir-se cho-

quando estou com uma câmera entre as

cada, encantada, profundamente tocada

“Os personagens de meus filmes são

mãos e os técnicos em torno de mim.

ou talvez, bocejar de tédio. Em qualquer

exatamente como eu, são animais con-

Então digo para mim mesmo: ‘venham,

dos casos eu sou um impostor ou, se a

duzidos pelos instintos e que, no melhor

nós vamos começar uma brincadeira.’

plateia está desejosa de ser guiada, um

dos casos, refletem quando eles falam.

Me lembro exatamente quando eu

feiticeiro. Apresento truques de feitiçarias

A capacidade intelectual dos meus per-

era pequeno, tirava, um por um, meus

com aparelhos tão caros e maravilhosos

sonagens é relativamente reduzida. Os

brinquedos do armário antes de brincar.

que qualquer artista do passado daria

corpos constituem a parte principal com

Tenho a mesma impressão num local de

tudo no mundo para possuí-los.”

um pequeno buraco para a alma. A ma-

filmagens. há uma certa analogia”.

O Sétimo Selo, 1957


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61

POR TABAJARA RuAS ESCRiTOR E CiNEASTA

Walper ruas: vinte anos fazenDo filmes

tros, solenes, hieráticos, lentamente, em grupos ou solitários. Foram chegando, descendo as lombas, tornando-se pouco a pouco uma multidão de gente a cavalo, de ponchos escuros e chapéu. Começamos a gritar. A equipe começou a gritar. Todos no comboio gritavam e acenavam lenços. E a gauchada também começou a acenar e gritar. Chegaram mais de 1.200 cavaleiros. E foi assim, numa festa espontânea e genuína, que começou a manhã da nossa grande cena, do nosso batismo de fogo. O destino do filme é bem conhecido. Brilhou nos festivais de Gramado (quatro Kikitos), Recife (quatro Passistas), Brasília (dois Candangos) e ainda em Trieste, huelva, Figueira da Foz... Mas ninguém faz filmes para festivais. Nada supera o prazer de contar uma história e ser entendido, ou pelo menos ouvido. de alguma maneira contamos a história do general Netto e seu sonho maluco de fundar um país. A crítica foi extremamente generosa. O grande hélio Nascimento escreveu “o melhor filme do gênero feito no país”. Permaneceu quatro anos em cartaz no Canal Brasil, o que significa milhões de espectadores. Nossa segunda incursão na ficção, o filme Netto e o Domador de Cavalos, partiu da ideia de contar a criação do Corpo de Lanceiros Negros.

A Cabeça de Gumercindo Saraiva Foto: divulgação Walter Ruas Produções

Em seu todo, o filme é uma releitura de antigos temas regionais, como a Guerra dos Farrapos e a

depois de quase 20 anos fazendo filmes,

quanto o longo comboio de ônibus e caminhões

lenda do Negrinho do Pastoreio. Entrecruzando

uma das lembranças que mais emociona a tur-

se arrastava na estrada de terra, eu remoía: e se

esses motivos, buscamos uma síntese das raízes

ma aqui da Walper Ruas Produções aconteceu

os figurantes não aparecerem? Tínhamos pas-

da formação do Rio Grande e seus mitos contem-

naquela manhã de setembro, fria e luminosa, em

sado a semana convocando o pessoal dos CTGs

porâneos, ao mesmo tempo em que procuramos

que fomos filmar a batalha do Seival para Netto

e afins para participar das filmagens. Fizemos

dar, a índios e negros, papel de protagonistas.

Perde sua Alma, nos vastos campos de uruguaia-

visitas, reuniões, preleções e chamamentos nas

Escrevo no plural porque todo filme tem um di-

na. éramos dois diretores, Beto Souza e eu, éra-

rádios, mas não tínhamos nenhuma segurança.

retor, mas ele é feito em equipe. Aprofundamos

mos ambos estreantes, tínhamos quase zero de

E agora estávamos ali, na manhã fria, levando

a premissa para colocar a questão da traição aos

experiência em filmagens e sem dúvida éramos

uma equipe de mais de cem técnicos com tonela-

escravizados que lutaram ao lado dos Farrapos,

suspeitos, perante a equipe, de que não tínhamos

das de equipamento, rumo ao local do encontro.

a crueldade do sistema escravista e o genocídio

Eram seis horas da manhã, um raio de sol

indígena, fantasmas do nosso passado que ainda

a menor ideia do que estávamos fazendo. isso não estava tão longe da realidade...

despontou atrás das coxilhas silenciosas, indife-

hoje nos assombram.

Queríamos, em nossa inocência ou orgu-

rentes e desertas em torno da estrada. Quero-

O crítico Luiz Carlos Merten escreveu que

lho, filmar algo jamais tentado antes no cinema

-queros gritavam e davam voltas no ar. Então,

“muita gente recebeu o filme em Gramado como

praticado no sul: encenar uma batalha, inteira e

apareceu o primeiro cavaleiro. Como num filme.

um épico, mas não é. Sua história, mais drama

completa, com milhares de figurantes a cavalo,

imponente, recortado no alto da coxilha. E logo

do que aventura, atravessa o épico ou o prece-

canhões disparando e cargas de cavalaria. En-

um segundo. E um terceiro. Foram surgindo ou-

de, de forma mais intimista, e só no final Netto e


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PRiMEiRO SEMESTRE

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seu parceiro, o domador de cavalos, estão prontos para a batalha. O fim de Netto e o Domador de Cavalos é o começo de Netto Perde sua Alma. O filme trata de injustiça, de desigualdade social e racial, aponta para uma utopia revolucionária.

Netto e o Domador de Cavalos Foto: dulce helfer

Werner Schüneman em Netto Perde Sua Alma

Pensamos então na infância dele: se você tem seis anos de idade e está brincando na frente de casa,

Foto: Marcus Jung

numa pequena gleba de agricultura familiar, e vê

Sirmar Antunes em Netto e o Domador de Cavalos

um cavalo se aproximando no alto da coxilha, seu

Foto: dulce helfer

coraçãozinho salta no peito. é seu pai que está

Pode ser que tudo isso seja clássico demais para

chegando! Mas o cavalo chega mais perto e há

certos gostos, mas também é uma resistência à

algo estranho com o cavaleiro. Ele está mal equi-

globalização.” O consagrado escritor Luiz Antonio

librado, tem o peito manchado de sangue e quan-

de Assis Brasil, em zero hora, assinalou: “O fil-

do ele chega diante da casa de madeira despenca

me é o retrato de um Rio Grande ‘real’, em que

no chão. Morto.

a luta pela sobrevivência e as guerras brutalizam

O pai de Leonel Brizola tinha lutado na revo-

as pessoas. As ações são praticadas por homens

lução federalista de 1923, e foi assassinado numa

ásperos, sujos da terra do pampa. Conhecemos

tocaia quando chegava em casa, após o fim do

também um Rio Grande multicultural: há escra-

conflito. Fizemos o documentário em codireção

vos muçulmanos, que rezam voltados a Meca e

com Rogério Ferrari, procurando mostrar como

recitam trechos do Corão; há índios endurecidos

o episódio influenciou as atitudes de Brizola em

no contato com o colonizador e que, melhor do

toda sua vida, nos anos em que esteve no poder

que este, são capazes de viver em harmonia com

ou quando amargou o exílio.

a natureza. Ao lado disso, há pérfidos oficiais do

Baseado no romance homônimo de José

império, bêbados e venais. Não é um quadro belo,

Antônio Severo, Os Senhores da Guerra foi, sem

mas fascinante por sua poderosa verdade. Só de-

dúvida, a produção mais tumultuada e difícil da

pois de ver Netto e o Domador de Cavalos pode

Walper Ruas. Pensado para ser um díptico, no

alguém dizer que conhece o Sul.”

meio das filmagens foi se tornando claro que isso

Nossa próxima experiência foi um documen-

seria, por motivos de orçamento e captação, qua-

tário de longa-metragem, Brizola Tempos de Luta,

se impossível. O filme tem duas enormes bata-

feito por encomenda para um grupo de admi-

lhas, com canhões, trens em movimento, marchas

radores do último caudilho gaúcho. A ideia era

de exércitos de cavalaria e locações em diversos

buscar uma fórmula capaz de contar a história de

pontos do Rio Grande. Então, enquanto avançá-

Leonel Brizola, fugindo dos clichês de louvação a

vamos com as filmagens, mexíamos sem parar no

figuras públicas que fizeram carreira na política.

roteiro, procurando adaptar e resolver as novas


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PRiMEiRO SEMESTRE

2018

63

questões que se apresentavam. Mesmo assim,

e também diretora, ela conduziu com firmeza os

Acreditamos que a coesão entre os trabalhos

chegamos ao final com um filme coeso e bem

complicados processos de realização. O crítico

aparece no resultado visto nas telas. A ideia de

resolvido tecnicamente, que teve boa acolhida da

Nei duclós escreveu, em seu blog: “Os filmes da

exibi-los todos no circuito do Cine Sesc 2018-

crítica. Recebeu dois Kikitos no Festival de Cine-

Walper Ruas são filmados em cenários espanto-

2019 é, para nós, muito honrosa. Ficamos felizes

ma de Gramado, um para a excelente atuação de

sos, de gaúchos montados a cavalo na areia e no

com a oportunidade porque vai permitir que mais

Andrea Buzato e, o outro, um Kikito Especial do

pampa infinito, de seres humanos cercados pelo

gaúchos possam assistir um pouco de sua histó-

júri, que dividimos com a lenda Fernanda Monte-

drama da paisagem. Reinventaram o conceito

ria, das suas raízes – e, por que não? – da sua cara

negro. O filme de certa maneira deu maioridade

de clássico ao cruzar a mitologia do faroeste e

no cinema. Bom espetáculo!

aos experimentos de linguagem praticados pela

dos romances de cavalaria com a ficção histórica

Walper Ruas desde o ano 2000.

gaúcha. Suas obras geraram novos rostos para a

Nosso quinto longa, que está em fase de fi-

tela, personagens magníficos nunca antes explo-

nalização, é A Cabeça de Gumercindo Saraiva cuja

rados, novas histórias, novos enfoques. devemos

Foto: divulgação Walper Ruas Produções

estreia será no segundo semestre de 2018. O filme

à mitologia cinematográfica de seus filmes uma

Os Senhores da Guerra

conta a estranha história da missão recebida pelo

solução audiovisual poderosa, uma legítima e

major Ramiro de Oliveira: levar a cabeça do caudi-

verdadeira nova estética.”

lho Gumercindo Saraiva para o governador Júlio de Castilhos, da região das Missões, onde foi morto e decapitado, até o palácio do governo em Porto Alegre. Essa filmagem foi uma aventura bem mais leve se comparada às outras. Agora tínhamos boa experiência acumulada, equipe engajada e orçamento compatível com as necessidades do filme. Estamos torcendo para que ele tenha uma carreira parecida com os que o antecederam, e acreditamos que ele confirmou os procedimentos estéticos que vínhamos perseguindo. Nesses anos todos, a dura tarefa da produção executiva desses filmes coube a Ligia Walper, sócia da Walper Ruas desde o começo. Profunda conhecedora dos segredos do cinema, roteirista

Os Senhores da Guerra

Foto: divulgação Walper Ruas Produções

A Cabeça de Gumercindo Saraiva Foto: divulgação Walper Ruas Produções


aUdioVisUaL música

PRiMEiRO SEMESTRE

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um recorte plural Da proDução cinematográfica gaúcha Fortalecer a produção audiovisual por meio da

cosme

difusão e da promoção da discussão e do inter-

Cosme é um documentário musical com Thiago

câmbio entre os realizadores. Esse foi o objetivo

Médici, um cantor e compositor de música folk,

da segunda edição da Mostra Sesc de Cinema, que

amigo íntimo do diretor do filme, Luciano Scherer.

para a eXibiÇão NaCioNal da

teve 55 filmes inscritos no Rio Grande do Sul, entre

“Após alguns anos sem ver o Thiago, fui até a itália

2ª mostra sesC de CiNema

curtas e longas metragens. Vinte foram seleciona-

encontrá-lo. Ele estava morando no país há dois

dos para exibição na mostra estadual, de 2 a 6 de

anos e, nesse tempo, começou a compor e tocar

abril, em Porto Alegre, quando foram conhecidos

músicas no violão, instrumento que havia apren-

os seis trabalhos que seguem na disputa para inte-

dido a tocar recentemente, sozinho, enquanto es-

grar a programação da mostra nacional. Os curtas-

perava por sua cidadania italiana em uma pequena

-metragens Cosme, Mãe dos Monstros, Secundas

vila no interior. Eram músicas profundas que me

e Sob Águas Claras e Inocentes, além dos longas

tocaram, e por isso resolvi filmar”, conta Scherer.

Foto: divulgação

Desvios e Redenção, são os filmes com chances de

No retorno ao Brasil, o diretor não conseguiu mon-

Cosme

circular por todos os estados do país, capitais e até

tar o filme. Aproveitou a estreia de Ruby, primeiro

Foto: divulgação

mesmo cidades em que a população não têm aces-

filme que dirigiu, com Guilherme Soster e Jorge

Secundas

so regular a sessões de cinema.

Loureiro, em Portugal, e visitou novamente o ami-

seis Filmes do rs, de FiCÇão e doCumeNtários, Curtas e loNgas, iNtegram a seleÇão

Redenção

Foto: divulgação

A Mãe dos Montros

Foto: divulgação


música aUdioVisUaL

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go, desta vez em Londres, para filmar esse outro

isso a Mostra Sesc tem um papel fundamental, de

secUndas

momento em sua vida.

fazer com que os trabalhos cheguem ao público.”

destaque nas categorias direção, para Cacá Nazá-

O filme foi feito de forma totalmente inde-

Ruby, selecionado na 1ª edição da Mostra,

rio, e Montagem, para Matheus Piccoli, na etapa

pendente, com a ajuda de pessoas próximas ao

está sendo exibido em 2018 pela SescTV. O apoio

gaúcha da Mostra Sesc de Cinema, o documentá-

diretor: o próprio Thiago, davi Rodrigues, encar-

que os diretores receberam da instituição con-

rio de curta-metragem Secundas registra o movi-

regado do som, diego Placeres, também músico, e

tribuiu com a produção do primeiro longa-me-

mento de estudantes que foram presos e agredi-

Maíra Flores na finalização, colorimetria do filme

tragem, Meu Caminho Para o Céu. “Vejo não só a

dos pela polícia ao ocupar o prédio da Secretaria

e design. Cosme estreou no Festival Luso Brasi-

Mostra Sesc como de extrema importância para

da Fazenda do RS, em junho de 2016, e ainda

leiro de Santa Maria da Feira, em Aveiro, Portu-

o meio cinematográfico nacional, mas também a

hoje enfrentam processo judicial. “Fui falar sobre

gal, e seguiu carreira em eventos como a Mostra

instituição Sesc, de forma geral, por ser um apoia-

cinema aos estudantes em uma escola ocupada e

CineBh, em Minas Gerais, Mostra do Filme Livre

dor e parceiro das diversas áreas artísticas em tem-

percebi, ao observar um grupo que liderava, que

e Festival Curta Cinema, no Rio de Janeiro, entre

pos de tantos retrocessos políticos nesse sentido”,

existia recorte para um curta. Ali eu vi que tinha

outros, incluindo o Mimo Festival, dedicado a fil-

destaca o realizador.

mes sobre música. Para Scherer, a Mostra Sesc de Cinema é atualmente um dos festivais mais significativos do país, por abranger um panorama da produção nacional de todos os estados, na primeira fase, em uma mostra estadual , para depois colocar os filmes em diálogo em uma mostra nacional. “Essa abordagem é muito interessante pelo fomento ao meio audiovisual, em diversos sentidos: divulgação e exibições dos filmes, proposições de discussão com os realizadores nas sessões, apoio financeiro para as produções selecionadas e oportunidade de fazer parte de um panorama nacional, que será exibido em cada Estado, sempre gratuitamente, em um papel de formação de público. O mais gratificante é que as pessoas podem ver o filme, e por


aUdioVisUaL música

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personagens”, conta Nazário. Segundo o diretor,

em um processo de criar outros espaços que não

pela cidade, em direção ao aeroporto, o sujeito

em um documentário para a juventude, a forma é

apenas o espaço padrão de exibição.

estabelece diálogos com outros, consigo mesmo e

muito importante, os jovens têm uma relação com

No currículo do cineasta estão Justiça Infi-

o corpo, é tudo coreografado, muito diferente de

nita (2002), ficção premiada no Festival de Gra-

uma manifestação tradicional com palanque e pa-

mado como melhor curta e como melhor monta-

O filme, que recebeu destaque de Roteiro e

lavras de ordem. E o filme mostra isso, é ágil, tem

gem no Festival de Brasília; upgrade do Macaco

direção de Atores na 2ª Mostra Sesc de Cinema,

um ritmo forte, faz com que o espectador entre na

(2005), documentário sobre o primeiro coletivo

vem percorrendo uma excelente carreira por fes-

narrativa, sofra junto com os estudantes.

de arte urbana de Porto Alegre; o road movie

tivais. Foi premiado no Festival AdF de Fotografía

com a nação, que repousa, apática, em seu leito de morte”, afirma o diretor.

“Eu não tinha estrutura para acompanhar o

poético Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes

Cinematográfica (Argentina), no 2º Festival inter-

dia a dia do movimento, fiz imagens nas esco-

(2013), que fala da vida e obra de Caio Fernando

nacional de Cine de Quito (Equador), na Mostra

las, mas as mais impactantes eu consegui com

Abreu, entre outros filmes.

Gaúcha do 45º Festival de Cinema de Gramado,

o Matheus Chaparini, jornalista do Jornal Já que

no Cineserra 2017 e no 14º Curta Santos. Tam-

estava na Secretaria da Fazenda e foi preso, e

soB ÁGUas cLaras e inocentes

bém foi selecionado para o festival 58º ziNEBi

com um estudante de São Paulo que fazia ima-

Realizado em quatro diárias, o curta de Emiliano

(Espanha), para a 10ª Mostra de Cinema de Belo

gens para um documentário, também detido”,

Cunha apresenta a passagem de um sujeito pela

horizonte, para o Cine Esquema Novo 2016 e para

relata o diretor. Secundas foi escolhido o melhor

cidade de Porto Alegre, à noite, em um processo

o 24º Festival MixBrasil de Cultura da diversidade,

filme da mostra de curtas gaúchos no 45º Festi-

de despedida daqueles que ama, pois há um forte

entre outros.

val de Cinema de Gramado e melhor curta pela

sentimento de insuportabilidade. O personagem

Emiliano, que já dirigiu e fez o roteiro de To-

Associação de Críticos de Cinema do RS, além de

é representado por diversos atores e não atores.

mou Café e Esperou (2013), dirigiu a série de quatro

ter participado de importantes festivais como a

“Trata-se de um filme de sensações, que vem da

episódios Horizonte B e co-dirigiu, com Lívia Pas-

Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Ge-

partilha pessoal e de muitas pessoas próximas de

qual e Thais Fernandes, Navegantes (2015), con-

rais, iV Fronteira – Festival internacional do Filme

uma percepção de como o ódio, a hipocrisia e a

sidera a Mostra Sesc imprescindível para a cine-

documentário e Experimental, em Goiás, e Fes-

decadência moral do país tornaram quase insupor-

matografia regional e nacional, pois proporciona

tival Cinélatino Rencontres de Toulouse, França,

tável a permanência. Ao mesmo tempo, há o sen-

visibilidade para uma gama de propostas estéticas

onde teve as sessões lotadas de estudantes. Sobre

timento contraditório de que esta é a cidade e este

que, usualmente, não chegariam aos espectadores.

a Mostra Sesc de Cinema, Nazário destaca a in-

é o país em que queremos estar, para ajudar na

“A mostra contempla filmes com desenhos narra-

teriorização da proposta, que leva os filmes para

construção de um horizonte mais solidário, equa-

tivos mais diretos e também mais experimentais,

lugares em que as pessoas têm pouco acesso,

litário e de justiça social. Então, nessa passagem

dando conta da diversidade expressiva existente


música aUdioVisUaL

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1 Trailer de MãE DOS MONSTROS, https://youtu.be/dtesNI-HdSA

em cada uma das regiões do país.” Atualmente, o

filmagem, uma em estúdio e duas em um circo, já

do o processo mais representativo da produção

diretor está em processo de pós-produção do pri-

que a protagonista é perseguida por uma trupe

nacional”, avalia o diretor do filme, destaque na

meiro longa-metragem, Raia 4, contemplado no

circense.

mostra em desenho de Som para Tiago Bello.

Edital Prodecine 5.

“O filme teve uma carreira de festivais muito

Formado em cinema, Marcel Kunzler atua

bacana nos Estados unidos. é um filme de gênero,

como diretor, roteirista e editor de imagens des-

mãe dos monstros[1]

de nicho e está rodando festivais de horror, princi-

de 2004. Fez dois curtas de gênero semelhantes

O filme, concebido para o trabalho de conclusão

palmente”, conta Julia, surpresa e feliz com a sele-

ao Redenção: Ar Rarefeito e Estrada. “Atualmen-

do curso de design por Julia zanin de Paula, é

ção de seu primeiro filme para a Mostra Sesc – jus-

te, tenho três projetos em desenvolvimento: Fim

um curta-metragem de terror, inspirado no con-

tamente por ser uma mostra mais geral, com um

da História, longa de ficção-científica do qual sou

to La Mère aux Monstres, de Guy de Maupassant.

público maior e mais diverso. “Muito mais gente

co-roteirista e codiretor, em fase final de roteiri-

“é uma crítica, uma exposição chocante, crua e

vai poder ver e entender a nossa mensagem, além

zação e projeto; Armas Silenciosas para Guerras

metafórica para algo que vemos muito: o hipe-

de se divertir assistindo.” O filme já ganhou alguns

Secretas é uma de série de espionagem que ven-

raproveitamento do corpo da mulher e a falta

prêmios e, na Mostra Sesc, recebeu destaque em

ceu o prêmio de Melhor Piloto no 2º Telas Festival

de limites para o entretenimento”, explica Julia,

direção de Arte para Sandro Merino dreher, e dire-

internacional de TV de SP; e o longa Rivotril, drama

roteirista e diretora do filme. Seu TCC foi sobre

ção de Fotografia para Bolivar Andrade Lauda.

contemporâneo em fase de roteirização.

como fazer o expectador sentir medo e tensão através da linguagem visual.

redenção

Na primeira etapa da concepção, Julia reali-

O longa-metragem de Marcel Kunzler, uma copro-

zou um estudo de mercado e estratégias de marke-

dução entre Primeiro Corte Produções e Velha Fil-

ting para lançar o filme, já idealizado sem diálogos

mes, conta a história de uma comunidade que vive

para poder participar de festivais pelo mundo, sem

isolada em uma cidade abandonada. Aborda temas

barreira linguística ou gastos com legendagem.

como amizade, união e vida em comunidade. Re-

Na segunda etapa, pesquisou o gênero terror e

denção é uma aventura fantástica com um pé na

como criar tensão e medo através de ritmo de

ficção-científica que estreou na TVE/RS em 2016 e

edição, paleta e cor, fotografia, enquadramentos,

atualmente está em cartaz no canal CineBrasilTV.

Foto: Edu Rabin/Ausgang

movimentos de câmera, arcos visuais etc. Somen-

“A Mostra Sesc tem grande importância por am-

Desvios

te depois disso partiu para o roteiro. dessa fase à

pliar o alcance das obras audiovisuais. A estrutura

entrega do filme, foram dois meses, três diárias de

de rodadas estaduais também é relevante, tornan-

Sobre Águas Claras e Inocentes

Foto: Felipe Rosa

Secundas

Foto: divulgação


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POR PEdRO GuiNdANi diRETOR dO LONGA DESVIOS, SELECiONAdO PARA A ETAPA NACiONAL dA 2ª MOSTRA SESC dE CiNEMA

um projeto, pouco Dinheiro e amigos fiÉis

Desvios

Foto: Felipe Rosa

Foi em 2013, era uma época em que havia poucas formas de viabilizar os filmes aqui no Rio Grande do Sul para quem ainda não tinha uma trajetória consolidada. Era, então, um período em que todo mundo dava jeito de fazer um curta com os amigos ou pra RBS, ou tentava de alguma forma emplacar um longa em algumas das poucas oportunidades

depois de escrever o roteiro, tratei de ir cha-

outro curta na RBS, chamado O Holandês Miste-

então disponíveis – isso, porém, acabava sendo

mando os amigos: o Rafael Mentges, que tinha

rioso, para o programa histórias Extraordinárias.

algo difícil de se conseguir, sem ser conhecido pela

feito meu curta anterior realizado nas mesmas

Nos anos seguintes, trabalhei como continuísta,

direção de curtas ou sem algum padrinho forte;

condições, O Que Ficou Pra Trás, veio para fazer o

assistente de produção e outras funções em co-

era difícil fazer o primeiro longa. A vontade, porém,

papel principal; o Felipe Rosa, diretor de foto, en-

merciais, curtas, longas e séries em Porto Alegre,

sempre esteve aí, e as tecnologias já permitiam fa-

trou meio assustado com a ideia de fazer um lon-

até dirigir outro curta, O Que Ficou Pra Trás, que

zer um filme com boa qualidade técnica sem uma

ga em nove diárias; o Beto Picasso, meu ex-sócio,

citei antes. depois veio o Desvios, seguido de um

grana imensa por trás. Eu e o davi de Oliveira Pi-

veio como diretor de produção; o Binho Lemes,

documentário, Para o Que Der e Vier, que passou

nheiro, produtor do filme e meu sócio na Ausgang

meu sócio na época, foi o diretor de arte; o Bunker

na TVE como média-metragem. Estou trabalhando

– que tinha feito seu primeiro longa anos antes,

Studio, parceiros de sempre do som, entrou junto.

para transformá-lo em um longa-metragem, deve

com recursos próprios – começamos a conversar

A partir desse núcleo, chamamos o resto do pes-

ficar pronto no ano que vem. Além disso, fui pro-

sobre a possibilidade de fazermos dois longas, um

soal e fizemos a coisa acontecer, da forma mais

dutor executivo de três projetos, entre eles o curta

dirigido por cada um.

enxuta possível. A etapa de produção custou 8

Sob Águas Claras e Inocentes, do Emiliano Cunha,

Essa conversa, que começou mais da boca

mil reais, do meu bolso, ainda cheio por conta de

o primeiro filme lançado pela nossa produtora,

pra fora, ganhou força quando a Secretaria de

trabalho numa campanha política no ano anterior.

a Ausgang, e que também foi selecionado na 2ª

Cultura do Estado anunciou que haveria um se-

depois, levantamos 100 mil pelo edital aquele de

Mostra Sesc de Cinema. Outros quatro projetos da

gundo edital de finalização, que permitiria a con-

finalização do Governo do Estado.

produtora estão em pós-produção.

clusão de mais dez filmes (como tinha acontecido

desvios teve circulação em alguns festivais:

A Mostra Sesc de Cinema é uma iniciativa bem

dois anos antes, num movimento que foi bem

estreou no Festival de Gramado em 2016, na

positiva, que permite que filmes nem tão conheci-

importante para o cinema local). isso impediria

Mostra Gaúcha de Longas (embora o Merten, crí-

dos pelo grande público consigam ter mais uma

que os filmes morressem na praia (ou melhor, na

tico do Estadão, tenha escrito que merecia estar

oportunidade de circular e serem vistos. é sempre

ilha), sempre um risco grande para filmes sem

na competitiva), depois passou no Bogocine, em

bom que o público possa ver mais filmes gaúchos e

grana. A restrição, obviamente, era fazer o filme

Bogotá, na Colômbia, e a seguir esteve em alguns

brasileiros, e também que os filmes possam ser exi-

mais barato possível: o mínimo de locações, equi-

outros festivais aqui no Brasil, nos Estados uni-

bidos em outras regiões do país, atingindo outros

pe pequena, quase nada de luz, elenco minúsculo.

dos e na índia.

públicos, além de trazer filmes de outros lugares

O projeto do davi acabou não saindo, mas segui

A minha trajetória iniciou no curso de Au-

para serem apreciados pelo público aqui. Agrade-

adiante e assim surgiu o Desvios, que não por

diovisual da PuCRS, onde me formei em 2006, na

ço ao Sesc pela escolha do filme, pela oportuni-

acaso é uma história sobre confinamento e auto-

primeira turma. Logo depois de sair da faculdade,

dade de exibir o longa dentro da programação da

privação de liberdade, a partir da trajetória de um

fiz direção de produção no 3 Efes, longa do Car-

mostra e pela iniciativa, que tem minha torcida e

sujeito que resolve se esconder num apartamento

los Gerbase. Em 2007, tive um projeto aprovado

apoio para que continue, floresça e se perpetue na

(o meu, na vida real) depois de aplicar um golpe

como diretor e roteirista no histórias Curtas, da

programação cultural das cidades onde acontece.

na sua empresa e enlouquece lá dentro.

RBS TV, chamado Os Olhos de Capitu; depois dirigi


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2018

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por Alfons Hug crítico de arte e curador da 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul

O triângulo atlântico Depois de dedicar-se no passado, em primeiro

são chamadas até hoje de West Indies (Índias

cia espanhola e portuguesa no Atlântico. Antes,

lugar, à América Latina, a 11ª edição da Bienal do

Ocidentais).

reflete um ato de húbris hegemônica sem par:

Mercosul lança agora um olhar mais abrangen-

O Oceano Atlântico testemunhou também

a audácia de reclamar para si, do Polo Norte ao

te para o Atlântico, mais especificamente para

os maiores movimentos migratórios da história

Polo Sul, a totalidade dos hemisférios ocidental

aquele triângulo mágico que liga os destinos da

do homem, entre voluntários e involuntários.

e oriental – o primeiro no caso da Espanha, o

América, África e Europa há mais de 500 anos.

À frente do chamado de Goethe: Amerika, du hast

segundo para Portugal, cujo foco de interesse

Todos os oceanos são imensos celeiros de

es besser (América: uma vida melhor!), mais de 60

estava menos na América do que nas suas pro-

história e cultura. Porém, nenhum deles supe-

milhões de europeus fugiram da pobreza em bus-

priedades lucrativas na Ásia Oriental, sobretudo

ra o Atlântico em sua acumulação de dramas e

ca de um futuro mais iluminado nas novas terras

nas Ilhas Molucas. Para poder alcançá-las com

cataclismos que mudariam o curso da história

ocidentais, enquanto pelo menos 12 milhões de

segurança pela via marítima, Portugal instalou

mundial para sempre.

africanos eram traficados como escravos para o

bases ao longo de toda a costa africana ocidental no fim do século 15, o que levou, por outro

O Atlântico sempre foi, desde a primeira

Brasil, para as Antilhas ou para os Estados Unidos.

travessia, em 1492, cenário para permanentes

E como se a fronteira entre o Velho e o

transposições de fronteiras, incluindo aque-

Novo Mundo não fosse suficiente, Espanha e

Pré-requisito para esses avanços foram duas

la entre o Novo e o Velho Mundo. A sua costa

Portugal traçaram mais uma linha divisória com

inovações técnicas de importância inestimável:

ocidental permaneceu desconhecida por muito

o Tratado de Tordesilhas (1494), o que viria a ter

o desenvolvimento de um novo tipo de navio no

tempo, e até mesmo sua descoberta deve-se a

consequências políticas e culturais abrangentes

século 15, a Caravela Latina, sob a regência de D.

um mal-entendido, já que os primeiros nave-

e isolaria o Brasil do resto da América do Sul.

Henrique; e como a criação do sistema de nave-

gadores europeus acreditavam ter encontrado

Porém, o Tratado de Tordesilhas não é só

a Índia. De fato, as ilhas anglófonas do Caribe

uma demarcação histórica das áreas de influên-

lado, à emersão da África no cenário atlântico.

gação astronômica, com o qual se pôde alcançar o Hemisfério Sul pela primeira vez.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

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Os retornados Em pleno centro de Lagos, na Nigéria, encontra-se o Brazilian Quarter, um bairro que lembra o centro histórico do Rio de Janeiro ou de Salvador da Bahia, construído pelos assim chamados “retornados”, ex-escravos regressos do Brasil que representavam mais de 10% da população em 1880. Lá eles formaram rapidamente a elite da cidade, guardando o sobrenome português até hoje. Ainda existe até mesmo uma escola de samba. Houve uma migração de regresso parecida para o Benim, o Togo e Gana, assim como um fluxo de ex-escravos norte-americanos retornando para a Libéria e a Serra Leoa. Para os retornados, chamados de amarôs ou agudás em iorubá, a África era sinônimo de uma promessa – a promessa de uma retomada da história e da dignidade. A sua origem não se encontrava atrás, mas diante deles. Construída por engenheiros brasileiros, a Water House, assim como a Ebun House, a Shitta Bey Mosque e alguns outros monumentos históricos da antiga Lagos, está corroída pelo tempo e funde-se a um passado que, agora, corre o risco de ser varrido pela megacidade com seus atuais 22 milhões de habitantes. Mas, por ora, a nostalgia ainda leva os mo-

Do outro lado do Atlântico, no Rio de Janei-

radores a resistir ao declínio no Bairro Brasileiro.

ro, os fundamentos do antigo mercado de escra-

Em Lagos, nunca se sabe se as pessoas cons-

vos no Cais do Valongo vieram à tona durante

Da perspectiva arejada e fresca do alto do

troem a sua cidade ou se são elas mesmas as

obras de escavação para as Olimpíadas. Ali foram

Corcovado, mal se pode imaginar os dramas so-

pedras da construção. Para cada problema que

vendidos mais de um milhão de escravos entre os

ciais anônimos, a luta diária pela sobrevivência

solucionam, Lagos cria um novo, numa sucessão

séculos 16 e 19.

em uma economia precária, a violência latente e

interminável de provações.

Nos últimos anos, uma Pequena África foi

forense, pois até um cemitério de escravos foi descoberto recentemente.

os desgastes emocionais dos que estão submeti-

Toda a costa da África Ocidental e Central

construída em torno do Cais do Valongo, com

está coberta de testemunhos arquitetônicos

galerias e centros culturais afro-brasileiros. Mais

Em uma de suas canções, Gilberto Gil de-

do tráfico de escravos, seja a Ilha de Gorée, no

da metade dos 11 milhões de cariocas são afro-

nominou essa imagem complexa de “O paraíso

Senegal, ou o Castelo de Elmina e a Colônia de

descendentes. Não é de se admirar, portanto, que

paradoxo”, referindo-se à intransponível ambiva-

Brandemburgo, também chamada Grande Frie-

o legado cultural africano seja o foco de tantas

lência entre beleza natural e exiguidade humana.

drichsburg, em Gana; Uidá, em Benim, as Ruínas

discussões nos dias de hoje.

Para Pablo Neruda, por sua vez, o Rio era uma

dos ao calor sufocante lá em baixo.

de Bimbia na República dos Camarões, a Fortaleza

Próximo ao Cais do Valongo, encontramos o

de São Miguel, em Luanda, ou o assim chamado

Morro da Providência, a primeira favela do Rio,

O Rio Grande do Sul, assim como todo o Sul

Point of no Return, em Badagri, na Nigéria. E o

onde havia, até o começo do século 20, um mer-

do Brasil em geral, é considerado comumente

Rio Escravos no Delta do Níger, que carrega no

cado clandestino para o tráfico de escravos. Ali,

como “terra de brancos” por conta da imigração

próprio nome a sua sombria sina.

a busca por vestígios ganha um caráter quase

em massa de europeus no século 19, sobretudo

“esmeralda extraída do sangue”.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

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italianos e alemães. O que se esquece é que, a

de Atlântico Negro, um complexo entrelaçamento

partir de 1737, já havia escravos no Rio Grande

de componentes políticos, econômicos e culturais

do Sul, usados como mão-de-obra no temido tra-

dos dois lados do oceano, indo do Rio da Prata,

balho nas charqueadas. Fato é que, no começo

no Uruguai, a Nova York, e de Dacar à Cidade do

do século 19, a parcela de escravos em relação

Cabo. Por outro lado, em rigor, teríamos que am-

ao total da população daquela área era de 30%

pliar esse espaço até a Europa, já que foi este o

– mais alta do que no Rio de Janeiro ou Salvador.

continente que criou o tráfico de escravos e que

Testemunhos dessa presença africana são, até hoje, os 130 quilombos no Rio Grande do Sul, cinco deles na capital.

mais se beneficiou do triângulo transatlântico. A partir de 1942, o Atlântico transforma-se em uma verdadeira plataforma de interdepen-

Porto Alegre é uma cidade tipicamente

dências para as economias da África, América,

atlântica, não só pelo fato de os primeiros colo-

Caribe e Europa. Enquanto fusão de regiões re-

nos virem dos Açores, mas também porque a sua

lativamente autônomas, essa constelação passa

história reflete todas as particularidades desse

a ser o motor de mudanças históricas sem pre-

oceano de forma exemplar.

cedentes. Os afrodescendentes formavam o nú-

Obra do artista venezuelano radicado em Berlim Marco Montiel-Soto, no Memorial do Rio Grande do Sul

O Bairro Brasileiro em Lagos, o antigo mer-

cleo dessa dinâmica, pois todo o complexo do

Foto: Tuanne Eggers

cado de escravos no Rio, assim como os quilom-

tráfico transatlântico de escravos, em cujo centro

bos, compõem um eixo que poderíamos chamar

estavam as plantações no Brasil, no Caribe e na

Obra de Mary Evans, artista nigeriana radicada em Londres, no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

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América do Norte, constituiu um elo importante

O Novo Mundo passa a ser a foz para a qual

Vale pensar nessa arbitrariedade colonialista

no surgimento do capitalismo moderno. Slavery

correm os mais diferentes afluentes culturais, a

ao se observar a recente onda de refugiados em di-

is capitalism with its clothes off [A escravidão é o

“terra vazia” onde pessoas de todas as partes

reção ao Norte, movimento que vem ganhando di-

capitalismo sem roupas] (Paul Gilroy).

do mundo se encontraram, depois de os colo-

mensões bíblicas e é alimentado pelo êxodo rural,

Com exceção do Alasca e da costa norte-

nizadores europeus terem dizimado a população

por mudanças climáticas, conflitos internos e, não

-americana do Pacífico, praticamente todos os

indígena. Ninguém, com exceção dos indígenas,

menos relevante, por uma dinâmica demográfica

portos americanos foram pontos de transbordo

pertencia originalmente a esse lugar, nem os

sem precedentes que levará a população do conti-

de escravos – até mesmo cidades como Buenos

europeus, nem os africanos, os asiáticos ou os

nente a se quadriplicar ao longo do século, passan-

Aires, Montevideo ou Valparaíso, o que geral-

árabes. Em rigor, até os nativos também foram

do de 1,2 bilhão a aproximadamente 5 bilhões de

mente não se supõe. Se o número de afrodescen-

imigrantes quando chegaram da Ásia pelo Es-

habitantes. Com isso, a África abrigará quase me-

dentes na Argentina hoje é relativamente baixo,

treito de Bering, há 20 mil anos.

tade da população mundial no ano 2100, segundo

isso se deve, basicamente, à Guerra do Paraguai

O Novo Mundo é o lugar no qual assimila-

estimativas da ONU. Até lá, a megacidade de Lagos

(1865), na qual batalhões de negros foram siste-

ções e justaposições culturais foram negociadas,

– atualmente uma das metrópoles com a mais alta

maticamente dizimados.

onde a diáspora instalou-se sobre uma terra in-

taxa de crescimento – será provavelmente a maior

A atual supremacia das metrópoles do Norte

cógnita. Ele tornou-se o símbolo da própria mi-

cidade do mundo. Em 1950, a cidade tinha quase

só é possível graças aos lucros obtidos no histó-

gração, do viajar, do estar permanentemente em

500 mil habitantes, hoje já são 22 milhões.

rico comércio triangular: armamentos da Europa

movimento e da incerteza do regresso.

para a África, escravos da África para a América, açúcar e algodão da América para a Europa.

Essa convulsão demográfica – que se anun-

Assim, o Atlântico não nos leva a um país

cia como um leve tremor e colocará o continente

com uma cultura nacional rígida, mas antes flu-

e o mundo diante de desafios insuspeitáveis – é

Embora no século 18 a escravidão já fosse

ída e híbrida. O caráter aberto do mar permite

ainda mais surpreendente quando consideramos

considerada a representação do mal, e a sua

tanto o entrelaçamento quanto a movimentação.

que a população da África esteve praticamente

antítese conceitual, a liberdade, fosse aprego-

E a irresistível força do oceano pode também agir

estagnada devido ao tráfico de escravos entre os

ada pelos pensadores do Iluminismo na Europa

como uma forma alternativa de poder que sus-

séculos 17 e 19.

como o bem maior, a escravização de milhões

pende a ideia tradicional de soberania territorial.

Se até o século 19, os grandes dramas tive-

de africanos continuou intensificando-se até

Sob essa perspectiva, os barcos dos refugia-

ram como cenário o Atlântico do Sul, eles agora

que, em meados do mesmo século, a totalidade

dos que hoje vêm da África do Norte para aportar

transferiram-se com todo o furor para o Atlân-

do sistema econômico ocidental era dependen-

em Lampedusa ou na Sicília talvez mereçam uma

tico do Norte.

te dela. E foi esse desenvolvimento que, pa-

nova interpretação. Ou seriam eles apenas uma

Lá, as catástrofes estão se acumulando em

radoxalmente, propagou os ideais iluministas

contestação a Heródoto, que mais de 400 anos

intervalos cada vez mais curtos, de modo que

pelo mundo. Os mesmos filósofos que exalta-

antes de Cristo escreveu o seguinte:

podemos chamar o século 20 de “século breve”:

vam a liberdade como condição natural do ser

Primeira Guerra Mundial, Revolução Russa, Se-

humano aceitaram a exploração do trabalho

Sem temer por nossas vidas nem pelo

gunda Guerra Mundial, Guerra Fria e Cortina de

escravo nas colônias como parte do inevitável

dinheiro, a cada ano enviamos um barco

Ferro, Pacto de Varsóvia e OTAN, etc.

curso da história.

à África em busca de respostas para as

É interessante como a formação de alianças

Da perspectiva cultural, a diáspora do

seguintes perguntas: Quem são vocês?

políticas – como, por exemplo, a OTAN – afeta

Atlântico Negro tornou-se espantosamente pro-

O que decretam as suas leis? Que língua

também as artes. A partir dos anos 60, desenvol-

dutiva, pois impulsionou um processo de criou-

falam? Eles, porém, nunca enviam um

veu-se uma estética hegemônica específica do

lização, levando a um intenso intercâmbio de re-

barco até nós.

Atlântico do Norte, primeiramente sobre o eixo

ligiões, idiomas, tecnologias e artes. Concepções

Nova York – Colônia, vindo depois a incluir Lon-

totalmente distintas de natureza, tempo e es-

O fluxo dos refugiados africanos é uma res-

dres e Berlim. Esta estética fez com que artis-

paço transformaram-se e reformaram-se, num

posta tardia à Conferência do Congo realizada

tas dos países da OTAN dominassem exposições

sistema extremamente dinâmico. A diversidade

em Berlim (1885), na qual a África foi partilhada

como a Documenta ou a Bienal de Veneza até o

cultural dos escravos africanos, composta de

entre as potências colonialistas europeias. O con-

início dos anos 90. Ou seja: o princípio de Alia-

centenas de idiomas e grupos étnicos, não ficava

tinente sofre as consequências dessa demarcação

dos e não Aliados foi transferido também para o

em nada atrás daquela da população indígena.

de fronteiras até hoje.

campo das artes.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2018

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Poderia a arte ocidental ser então considerada uma arte tribal?

Arte africana

Ao mesmo tempo, foram inauguradas várias bienais na própria África, entre outras em Dakar,

reação dos artistas à época que antecedeu a independência.

Joanesburgo, Marraquexe, Bamaco, Cairo, Cam-

Não surpreende que um continente do ta-

pala, Luanda, São Tomé e Príncipe, assim como

manho da África tenha fabricado uma profusão

em Lubumbashi, no Congo, além de vários espa-

de arquivos estéticos com raízes em pelo menos

A África moderna vive uma época densa como

ços para arte contemporânea e feiras de arte em

três legados: a cultura indígena, o cristianismo e

nenhum outro continente. Ela mal completou 50

quase todos os países importantes da região.

o islamismo, que coexistem num espaço estrei-

anos de idade e, com isso, é insignificantemente

Com isso, a arte africana contemporânea

tíssimo, como acontece na Nigéria. Os países do

mais velha do que a média de sua população

livrou-se de dois preconceitos de longa data: por

Golfo da Guiné não só abrigam cerca de mil gru-

atual. Ao mesmo tempo, ela ainda não se abriu de

um lado, o estigma do artesanato e da “arte de

pos étnicos diferentes, como ainda apresentam

todo à industrialização e, de fato, grande parte da

aeroporto”; por outro, de atribuições etnológicas.

elementos anglófonos, francófonos, lusófonos e

economia ainda consiste em escambo.

Como acontece em todo o mundo, a arte

até hispânicos e árabes.

Porém, nos últimos anos, pôde-se observar

contemporânea africana encontra-se num pro-

Entre o Senegal e a África do Sul, o Sudão e

um crescimento expressivo da produção artística

cesso permanente de renovação criativa. E, ainda

Angola, a identidade africana moderna é cunha-

nos centros urbanos. A África, como último

que sejam inegáveis as consequências do colo-

da por toda uma gama de encontros e interações

continente, torna-se enfim parte do panorama

nialismo, não se pode subestimar a importância

culturais, por intercâmbios e aculturações. E se,

artístico global, com todas as vantagens e

do intercâmbio artístico na passagem do período

no início, esses fenômenos tangiam basicamente

desvantagens que disso advêm.

colonial para o pós-colonial e, nesse contexto, a

a Europa e a América, no decurso da globalização

Obra do fotógrafo senegalês Omar Victor Diop, no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers


ARTES VISUAIS

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Maikon K em DNA de DAN Foto: Lauro Borges


ARTES VISUAIS

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Obra do artista brasileiro Maxim Malhado (BA), no Santander Cultural Foto: Tuane Eggers

Enquanto em São Tomé e Príncipe as la-

também dá à luz aquela crioulização a qual

vadeiras ainda estendem seus lençóis coloridos

Edouard Glissant refere-se ao falar do sincre-

para secar à beira do rio em meio a plantações

tismo das culturas sul-americanas e caribenhas,

seculares de cacau, como numa instalação ar-

fundamentalmente distintas das monoculturas

tística sobre o meio ambiente, o Moloque Lagos

atávicas que, seguindo a tradição, definem-se

devora, com sua bocarra insaciável, todos os que

pela exclusão.

atravessam seu caminho na labuta diária.

Os artistas centram seu interesse nesses

E se São Tomé, esse idílio na linha do Equa-

pontos de interseção das culturas indígena,

dor, continua sendo poupado pela guinada do

europeia e africana, de onde surge, consequen-

setor petroleiro no Golfo da Guiné, na Nigéria

temente, um novo amálgama americano. E essa

assomam todas as perversões de uma sociedade

fusão está ainda longe de concluir-se, mesmo

que, como um potlatch que tudo devora, apos-

porque influências de outras culturas continu-

ta no enriquecimento rápido e acaba perdendo

am sendo incorporadas.

todos os seus valores. Isso é comparável apenas com o que acontece atualmente na Venezuela. A Bienal exibe um antigo filme de propaganda de São Tomé, usado por Portugal há mais

Mas a arte contemporânea também põe o dedo na ferida do triângulo atlântico ao abordar os conflitos e transtornos causados pelo embate de civilizações e classes sociais diferentes.

de 100 anos para convencer uma Europa cética dos méritos de sua administração colonial.

A Bienal orienta-se nos cinco temas:

Quase ficamos com a impressão de que, naquela época, a ilha estava mais inserida no comércio

TRAVESSIAS DO ATLÂNTICO

internacional. Hoje, apenas um avião por dia

MATRIZES AFRICANAS

mantém o contato com o restante do mundo –

CULTURA INDÍGENA

eles agora se estendem também para a China, a

o que, dependendo da perspectiva, pode tanto

FLUXOS MIGRATÓRIOS E DIÁSPORA

Índia e o Golfo Pérsico. Ou seja, a arte africana mo-

ser uma bênção como um esconjuro.

INDIVÍDUO E SOCIEDADE

vimenta-se nas zonas de tensão entre diferentes arquivos: tradicionais e modernos, coloniais e pós-

A 11ª Bienal do Mercosul está concentrada

-coloniais, locais e globais, cosmopolitas e aqueles

A exposição

no Centro Histórico de Porto Alegre, utilizando

influenciados pela diáspora.

A 11ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul ofe-

os espaços do Museu de Arte do Rio Grande

Por outro lado, ao contrário da arte ocidental,

rece um panorama contemporâneo das dinâmi-

do Sul, do Memorial do Rio Grande do Sul e do

que é estruturada, ou melhor, confinada em uma

cas e interdependências culturais do triângulo

Santander Cultural, assim como o da Praça da

sequência rígida de estilos, a arte africana contem-

atlântico, sem perder de vista algumas referên-

Alfândega. A poucos passos de distância encon-

porânea tem a vantagem de não ser ditada por ne-

cias históricas.

tra-se a Igreja Nossa Senhora das Dores, na qual

nhum cânone e de poder orientar-se estritamente

Protagonistas dessa busca de vestígios

será apresentada uma grande instalação sonora

transatlânticos são os 70 artistas de três con-

com oito línguas nigerianas e outras tantas lín-

Para compreender a África atual em todos os

tinentes, cujas obras abordam as dialéticas cul-

guas indígenas.

seus contrastes extremos, é aconselhável comparar

no aqui e agora.

turais dentro do triângulo. No processo, eles

No âmbito da pesquisa para a Bienal, no

São Tomé e Príncipe com Lagos. O primeiro é um

devem investigar quais são as forças inovadoras

primeiro semestre de 2017, foram realizadas

dos menores e mais pacíficos países do continente;

que podem ser mobilizadas hoje na interação

exposições com 12 artistas no Bairro Brasileiro

o segundo, a apenas uma hora de voo de distância,

entre América, África e Europa.

de Lagos, assim como no Espaço Saracura, no

é a maior cidade da África. Com mais de 22 mi-

É desse triângulo pluricultural aberto para

Rio de Janeiro. Outros artistas fizeram pesquisas

lhões de habitantes, Lagos será a cidade mais den-

todos os lados e com enorme capacidade de ab-

de campo em quilombos no Rio Grande do Sul.

samente povoada do mundo em apenas uma gera-

sorção que brotam a tensão e a dinâmica cultu-

Desta vez, um dos focos da mostra é a arte afri-

ção, pois sua população ganha oitenta habitantes

rais já descritas por Oswald de Andrade no seu

cana e afro-brasileira, apresentada pela primeira

por hora – dois mil por dia ou 700 mil por ano.

“Manifesto Antropófago”, de 1928. O Atlântico

vez nessa completude na Bienal do Mercosul.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2018

76

Cartografia dos artistas

de pessoas, coexistem ao lado de dezenas de lín-

problemas da atualidade. É quase como se hou-

guas menores, seriamente ameaçadas de extin-

vesse um acordo secreto com os grandes mestres,

ção: 152 línguas têm menos de cinco mil falantes,

um eco cuja força atravessa os séculos e que se

Nos trabalhos dos artistas oriundos de três con-

o limite mínimo para a manutenção de uma lín-

apresenta como um leal companheiro de estrada,

tinentes, surge uma cartografia complexa do

gua. As línguas basa-kontagora, kiong, kudu-co-

para que não estejamos mais submetidos somen-

Atlântico. Abordagens históricas de súbito coli-

mo, lere e njerep são faladas por menos de 100

te ao nosso raciocínio.

dem com realidades atuais, os trópicos com cli-

pessoas e desaparecerão ainda nesta geração.

mas mais amenos e estratégias documentaristas com abordagens poéticas.

Ao mesmo tempo, a arte vem incorporando

Contudo, mesmo as grandes línguas como

procedimentos das Ciências Naturais como a co-

o iorubá e o igbo correm risco de desaparecer

leta, o registro e a classificação. Em sua época,

Esse processo possibilita surpreendentes

em longo prazo, pois a língua franca, o inglês,

Alexander von Humboldt já defendia a “análise

mudanças de perspectiva, por exemplo, quando

e o inglês pidjin, avançam inexoravelmente. Em

estética de objetos da História Natural”. Ele uti-

uma artista europeia trabalha com iconografia

muitas famílias não se cultiva mais nenhuma

lizou várias vezes a expressão “Quadro da Natu-

africana; ou quando, em contraponto, um artista

língua indígena.

reza”, estabelecendo o fundamento iconográfico

africano debruça-se sobre os fenômenos sociais

Esse empobrecimento vem acompanhado de

europeus. O intercâmbio torna-se especialmente

perda de identidade e desintegração social. Re-

produtivo quando artistas afro-brasileiros pes-

presentantes da classe intelectual nigeriana che-

quisam a África Ocidental ou africanos dedicam-

gam a falar de autoescravização.

-se ao trabalho com arquivos brasileiros.

sobre o qual os artistas de hoje podem alicerçar seu trabalho. A escolha das línguas para a exposição ocorreu não somente seguindo critérios como impor-

A população indígena latino-americana

tância histórica e cultural do respectivo idioma e

Nosso mapa Atlântico está repleto de posi-

soma aproximadamente 28 milhões de habitan-

seu grupo étnico, mas também pelo grau de risco

ções artísticas que vão do Mar do Norte à Antár-

tes, ou seja, 6% da população total do continente.

de extinção e por seu apelo estético. Além disso,

tida e da costa leste norte-americana ao sul da

Espalhadas pelos seus 20 Estados, com exceção

os artistas definiram os temas e os tipos de texto

África. A Bienal estende seu foco até aquele espaço

de Uruguai, Cuba, Haiti e República Dominicana,

(por exemplo, ficção, fábula, oração, peça de tea-

tão fervorosamente disputado, no qual a civiliza-

estão presentes línguas ameríndias numa totali-

tro, trabalho acadêmico).

ção atlântica se encontra com a antiga Rota da

dade de quase 600 idiomas, o que corresponde a

Seda, suas religiões e valores, no Oriente Próximo.

10% das línguas existentes no mundo.

Ao adentrar a igreja Nossa Senhora das Dores, o visitante ouve, num primeiro momento, o mur-

Apesar das urgentes questões políticas e so-

Cerca de um terço delas está ameaçada de

múrio indefinido e polifônico de várias vozes, uma

ciais que emergem deste tópico, a Bienal persiste

extinção, e mais um terço encontra-se numa

tessitura de sons que lembra uma oração coletiva.

enfatizando a singularidade dos processos estéti-

situação crítica. Enquanto as línguas quíchua

Mas, assim que ele se aproxima das caixas de som,

cos e poéticos que, exatamente por estarem des-

(Peru, Equador, Bolívia), guarani (Paraguai), ai-

os diversos idiomas impõem-se de forma clara.

prendidos da loquacidade do dia a dia, permitem

mará (Bolívia, Chile, Peru), e náuatle (México)

A redução radical da instalação ao elemen-

a construção de universos alternativos. Quanto

têm, cada uma, vários milhões de falantes, lín-

to do som exige do visitante uma concentração

mais dramáticos os acontecimentos, maior a re-

guas como arara (Brasil), boruga (Costa Rica),

intensa, que tanto mais lhe permitirá abdicar de

levância da forma na obra de arte.

pipil (Honduras) ou chorote (Argentina), somam

elementos visuais quanto mais ele se predispu-

menos de mil falantes.

ser a mergulhar no cosmo das línguas raras. Vale

Idiomas em extinção

Enquanto no Brasil são faladas mais de 160

sublinhar ainda que todos os artistas trabalham

línguas, há poucas restantes na América Central.

em uma obra coletiva sem hegemonias nem

Das línguas existentes originalmente no ano de

hierarquias.

Das 6 mil línguas do mundo, 2 mil são faladas

1500, 85% já foram extintas. A língua yámana, da

Com cada língua extinta, desaparece não só

na África e, dessas, 500 só na Nigéria. Com isso,

Terra do Fogo, está nesse caminho: tem apenas

um legado linguístico valioso, mas também uma

o país ocupa o terceiro lugar no ranking mundial

uma única falante restante: Cristina Calderón,

visão genuína de mundo e do meio ambiente.

de diversidade idiomática, vindo logo depois de

nascida em 1938, em Puerto Williams, Chile.

Papua Nova Guiné e Indonésia. A título de com-

Em verdade, todas as vidas humanas findas

É notável que a arte contemporânea tenha

não compensam a perda de uma língua, pois é

se voltado para o legado histórico nos últimos

preciso uma língua para anunciar a morte de um

As três grandes línguas africanas, hauçá, io-

anos. Tudo indica que os jovens artistas não acre-

ser humano.

rubá e igbo, cada uma delas faladas por milhões

ditam mais poder resolver sozinhos os prementes

paração: a Europa abriga somente 120 línguas.


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

77

Ronald Augusto Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot. com e é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/. Em 2018, circula no RS pelo projeto Sesc Mais Leitura.

Vozes negras na literatura:

além da recepção convencional Podemos distinguir, esquematicamente, dois ti-

na unidade entre vida e arte, cai em contradição,

resenha em que afirma não ter cabimento falar

pos de artistas. Imaginemos, de um lado, aquele

pois sua posição, que implica a recusa de um eu

de literatura negra, porque, em sua opinião, os

espécime cuja arte se mantém muito rente à vida

enunciador que se assume negro no próprio tex-

africanos que vieram para cá não tinham litera-

e ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte

to, o fará negar, em fim de contas, a concepção

tura e que isso não fazia parte de sua cultura.

como uma transfiguração da circunstância, isto é,

de que a arte mais genuína é aquela que confina

A polêmica foi grande e frutuosa, e Gullar o seu

sua obra nos leva a supor uma indisposição com

com a vida. Em outras palavras, um escritor que,

maior beneficiado, já que, depois do texto pre-

relação ao real ou uma inclinação para a invenção

além de não dissimular sua condição de negro,

conceituoso que escreveu, recebeu informações

de um mundo alternativo. O senso comum parece

resolve tratar em sua literatura de questões como

de todos os lados sobre as tradições orais e a

disposto a dar mais crédito ao artista do primei-

o preconceito racial ou as nem tão veladas ten-

riqueza dos discursos formados a partir de sig-

ro tipo, ou seja, aquele para quem não há senão

sões étnicas da sociedade brasileira não seria um

nos não verbais presentes tanto na arte antiga,

o interesse na realidade imediata. Ao contrário

espécime do primeiro tipo de artista? Sua arte, a

quanto nas diversas culturas do ocidente e do

do representante do segundo tipo, este artista,

bem dizer, não nos faz supor um mergulho radical

oriente. Ferreira Gullar, nesse episódio bizarro,

a princípio, não pode ser um fingidor. O fruidor

num aspecto concreto da existência? O impasse

não reconheceu a importância da cultura e do

admira o poeta que suja suas ferramentas inspe-

tem a ver com a recepção. E, às vezes, a recepção,

conhecimento orais seja para o africano, seja

cionando os transes do vivido. Assim, o objeto de

mais do que desinformada, se revela maledicente.

para a sua diáspora brasileira. A capacidade de

arte se transforma num sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência existencial.

A publicação Literatura e afrodescendência

produzir tanto formas de pensamento, como de

no Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), re-

discursos literários não pressupõe de maneira absoluta a tecnologia da escrita.

Precisei desse preâmbulo pela seguinte ra-

sultado da colaboração de 61 pesquisadores de

zão: há uma percepção de que a verdadeira arte

21 universidades brasileiras e estrangeiras, reúne

Contra tal pano de fundo é que julgo impor-

se confunde com a vida e isso, bem ou mal, ser-

em seus quatro volumes um conjunto de textos

tante discutir os limites e as virtudes da literatura

ve de critério para avaliarmos uma infinidade de

literários e análises voltados à vertente negra. Tal

negra. Mas, com relação ao tema, minha atitude

manifestações criativas. Porém, talvez, com uma

vertente ou produção se constitui numa forma

tem mais de metalinguagem do que de afirma-

exceção: a literatura negra. Explico-me. Muitos

de canto crítico e paralelo ao percurso canônico

ção concludente. Uns pensam a literatura negra

não aceitam que o qualificativo seja aplicado à

das obras estruturantes da literatura brasileira

desde a perspectiva de lances identitários através

noção de literatura, baseados na crença de que a

enquanto sistema. Pouco depois do lançamento

dos quais a prática literária se efetiva como tes-

arte não tem cor. Ora, mas ao não dar crédito à

deste livro, Ferreira Gullar (1930-2016), repre-

temunho de verdade racial. Do ponto de vista da

literatura negra, o objetor, que deposita confiança

sentando parte da recepção maledicente, escreve

criação e da reificação de uma literatura negra,


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

78

podemos afirmar que isso se limita com um es-

E porque ela não abarca apenas o real, nem lhe

ninguém desprezasse essa vírgula imiscuída

forço coletivo e extraliterário que tem em vista,

deve qualquer tipo de fidelidade, é que se pres-

entre os dois termos, forçando uma breve, po-

antes, redefinir um pertencimento etnopolítico,

ta, à maravilha, também como uma investigação

rém necessária disjunção. Para Oliveira Silveira,

do que propor uma forma específica de lingua-

do imaginário, das profundezas, do não dito, das

o qualificativo – seja qual for – que vem após

gem. É como se a vida, mais uma vez, tomasse a

proibições, e isso tudo operando via linguagem,

a vírgula não é, de modo nenhum, irrelevante,

dianteira, restando à arte um papel menor.

ou seja, por meio de abstrações sígnicas.

mas, apenas, secundário. Ou melhor, trata-se de

Assim, é fundamental não perder de vista

O que de fato interessa, entretanto, é o ne-

uma linha por meio da qual podemos arriscar

nessa discussão um dos termos do nosso con-

cessário comentário crítico a uma espécie de efei-

uma leitura precária, provável. Desgraçada-

ceito, a saber, a literatura – e aqui encareço a

to legitimador que – no respeitante a uma descri-

mente, as explicações inessenciais acerca da

acepção artística contida em sua área semântica.

ção-legitimação dessa literatura, negra – visa a

coisa acabam por substituí-la. Nesses debates

E sendo literatura, suas determinações se apresen-

transformar em paradigma aquelas obras em que

purgativos tendemos a ficar com a explicação

tam por meio da linguagem como um jogo equí-

se observa, em primeiro plano, à maneira de um

e descartamos o objeto artístico em si mesmo.

voco que nomeia e transfigura o real. Vale dizer,

pórtico, a afirmação da identidade, ou de um nós

Mas esses contratempos militantes, enervando

o mundo representado é, a um só tempo, emol-

excessivamente ideologizado e, de resto, difícil de

de quando em quando as discussões relativas

durado e sacudido pela linguagem. As imagens do

verificar, mas indispensável em termos de deman-

à impostura da função social da arte, estão aí

objeto literário são lacunares. O escritor antilhano

da de um grupo diante de uma situação político-

como um rumor de fundo, uma tensão; e dão,

Édouard Glissant entende a poesia como ultrapas-

-social conflituosa e/ou desfavorável. Um efeito

por assim dizer, certo charme retrô ao processo.

sagem da convenção; só com a perturbação das

observável nesse esforço de legitimação, de vez e

Um outro problema diz respeito ao seguinte:

regras públicas do discurso é que ela é capaz de

voz a serem conquistadas, talvez seja o seguinte:

quem fala, afinal de contas, no poema ou no tex-

cair em uma espécie de tormenta, de torneio, de

o escritor negro que se apresenta à discussão é

to? A busca programática de um eu enunciador

embriaguez, sem deixar de ser significante.

tolerado como útil depoente; seus escritos, ao fim

que se assume negro no tecido da linguagem, em

No que concerne às formas através das

e ao cabo, se revelam como meras provas, docu-

substituição a um conceito de literatura negra

quais esse traço constituinte de uma possível

mentos, literatura como testemunho, misto de

acoplada à cor da pele do escritor ou ao assun-

vertente negra é incorporado ao exercício poético

verismo e depoimento necessário. Não obstante o

to abordado por ele, só aparentemente indica

de cada escritor, ficamos propensos a acreditar

que quer que o escritor realize deva ser chamado

um passo à frente nessa discussão. A indagação

muito facilmente que a sua mera descrição – ou

em princípio de – pausa para a palavra a seguir

acerca de quem fala no poema resta ainda sem

a sua representação – poderia dar conta tanto

– arte, restam, ainda assim, aqui e ali, análises e

desfecho – aliás, a pergunta pode permanecer

dessa realidade, quanto justificaria a existência

intervenções que insistem em colocar sua criação

sem resposta. Digamos, entretanto, para todos os

de tal experiência expressiva no campo literário.

artística a serviço de “causas e compromissos his-

efeitos, que quanto mais valência poética um tex-

Isto equivale à certa tolerância com que tratamos

tóricos”. Pode-se argumentar que o que vem após

to contém, mais difícil se torna denunciar quem

a coisa desde o ponto de vista estético do artesa-

a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”,

ou o quê fala (ou emudece) através da máscara

nato, ou seja, quando tendemos a simpatizar, por

“feminina”, é que rende assunto a essa espécie de

do poema. Onde predomina a função poética da

exemplo, com os pintores que retratam sinceros

fogo amigo. O que parece ser fundamental admi-

linguagem, temos como resultado uma men-

quadros de costumes ou de gênero. Acreditamos,

tir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra

sagem mais ambígua. Roman Jakobson afirma:

dessa maneira, criadores e apreciadores, que tal

só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma

“a ambiguidade se constitui em característica

discurso pode dar conta da realidade de fundo,

de discurso que tem sua autonomia conectada

intrínseca, inalienável da poesia”. Portanto, con-

do contexto que molda o homem e sua experiên-

ao campo estético. Essa produção não pode fazer

tinua o linguista, não só o próprio poema, mas

cia. Mas isto é um equívoco ou uma simplificação,

uma aposta apenas no que é acidental.

igualmente seu destinatário e seu remetente se

porque esse suposto pertencimento “muito bem

A este propósito evoco uma passagem de

tornam ambíguos. O texto literário deve manter-

pintado” seja a um lugar, seja a um grupo social

minha convivência com o poeta Oliveira Sil-

-se simplesmente sob a pressuposição da existên-

e humano, é outra coisa que não essa aparência.

veira (1941-2009), intelectual negro e um dos

cia e da essência do homem-leitor. Pois quem é o

Ora, a poesia até os nossos dias já se consagrou,

proponentes do 20 de Novembro, Dia Nacional

leitor? Diz-se que procurar por este receptor ideal

e pode ser que até demasiadamente, como uma

da Consciência Negra. Uma vez, Oliveira me dis-

é como atirar em um peixe com um estilingue no

arte que consegue realmente ir além das apa-

se que não tinha trauma nenhum em se deixar

escuro. No poema, de maneira geral, o sujeito -

rências. Parece ser esta uma das suas vocações.

reconhecer como um “poeta, negro”, desde que

esse ego scriptor - vacila. A propósito, cabe lem-


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

79

respeito, o grupo Quilombhoje que há mais de três décadas tem servido de espaço de lançamento e de discussão da produção negra (em prosa e poesia) mais recente. Por outro lado, sempre que me pego refletindo mais uma vez sobre essa literatura – na perspectiva dos dilemas contemporâneos –, não deixo de mencionar alguns escritores. Não porque talvez representem, com suas criações, o sangue novo na corrente sanguínea e, portanto, reuniriam, digamos assim, as melhores condições para renovar a vertente negra; não. O que importa para mim é que quando me vejo diante dos textos destes autores, percebo outras questões criativas. Suas intervenções mais do que consagrar, mantêm o espaço em construção, aberto a investigações e revisões de linguagem de toda ordem. Assim, fazendo um corte drástico no agorabrar uma pergunta de Friedrich Nietzsche: “por

prio. Portanto, se for preciso, mesmo que provi-

-agora desta produção – pois reservo, à parte,

que não somos irônicos com o sujeito, como o

soriamente, encaixar nosso virtual escritor negro

uma série de autores que, no mínimo, enrique-

somos, por exemplo, com predicado e o objeto?”.

na moldura do artista participante, ele só o será,

cem o debate –, indico ao leitor, além do imenso

Ainda nos mantemos muito respeitosos com as

no meu entender, segundo a acepção que Mario

Oliveira Silveira (1941-2009), os nomes de Ar-

ficções ou com os dogmas da gramática.

Faustino (1930-1962) empresta ao qualificativo,

naldo Xavier (1948-2004) e Ricardo Aleixo, po-

Muito bem, para todos nós, esse debate, no

a saber, seu apetite de linguagem será “partici-

etas interessados na experimentação enquanto

que concerne às posições e contraposições dos

pante como a poesia deve ser participante, isto

conquista e na intersecção entre as linguagens;

implicados, envolve uma espécie de odi et amo.

é, em todos os sentidos: cultural, social, existen-

Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma

De minha parte, me defino mais por uma atitude

cial, político, estético. Participação nos destinos

vigorosa recriação da episteme afro-brasileira; e,

problematizadora do que por uma disposição de

do homem e nos destinos da poesia”. O percurso

finalmente, Cidinha da Silva, prosadora refinada

cerrar fileiras. A ideia de criação e de reiteração

literário de qualquer artista da palavra projeta o

que situa seu texto na nervura do presente, aten-

de uma vertente negra na literatura se limita com

texto como uma fatura sígnica cuja existência

ta aos ardis das representações e das afecções a

um esforço coletivo que objetiva antes redefinir

não pode se justificar apenas para servir às ne-

que são submetidos os negros contra um pano de

um pertencimento etnopolítico do que reivindicar

cessidades de certas interpretações, por mais bem

fundo multimídia. É importante referir também a

uma comunidade cuja identidade só se manteria

intencionadas que elas sejam.

atuação do coletivo de escritores negros Ogum’s

na forma de uma camisa-de-força. O tópico da

Finalmente, toda essa rica controvérsia tem

Toques, de Salvador, que vem aplicando energia

literatura negra é um debate que não deve ser

colaborado para que a literatura negra comece a

na divulgação dos escritores negros da tradição e

encerrado, assim, às pressas. Exceto, talvez, do

assumir um lugar de importância no cenário cul-

do presente e apostando no diálogo interessado

ponto de vista acadêmico ou do discurso militan-

tural brasileiro. Há registros de escritores negros

sobre as formas discursivas assumidas por essa

te, é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As

com obras publicadas já no século 18 e seus des-

literatura. Por fim, quem está mesmo disposto

tensões étnicas, sociais, antropológicas e políticas

dobramentos em termos de formas e ideias che-

a ampliar o apetite pela literatura para além do

às quais esses textos em algum momento fazem

gam até o presente. Em Literatura e afrodescen-

convencionalmente tolerável precisa ler este con-

alusão, essas, sim, podem e devem ser resolvidas.

dência no Brasil: antologia crítica, o interessado

junto de escritores negros.

Mas um poema de verdade não admite solução.

vai encontrar um mapeamento surpreendente de

Com efeito, a arte da literatura se constitui como

poetas e prosadores negros que permaneciam à

um tipo de linguagem que não é nem “verdade”

margem. A tradição segue a se atualizar critica-

nem “mentira”, senão que tem um estatuto pró-

mente no presente. É importante lembrar, a este

Ronald Augusto Foto: Divulgação


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

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Fe liz ani ver sá rio

As tias permanecem no carro, Sofia e a mãe só

a filha de recomendações. A caixa gelada pesa no

buscam o bolo, questão de minutos. Saem da

colo da garota.

confeitaria, a mãe carregando, com as duas mãos,

Sofia mexeria mais as pernas se pudesse,

a caixa. No banco do carona, Juliana, a prima,

se não tivesse um metro e oitenta. Um metro e

destrava as portas. Os óculos de sol, a janela aber-

oitenta que se tornaram um metro e oitenta só

ta e a camiseta de mangas longas da prima são

de pernas. O banco vibra enquanto a mãe liga o

incompatíveis. Juliana emagreceu muito desde a

carro e dirige-se à casa de Juliana e da tia. Juliana

última vez que ela e Sofia se viram.

permanece em silêncio, mexe nas mangas, puxa-

Enquanto Sofia planeja sua entrada no banco traseiro, Juliana – no banco da frente – ajeita as mangas longas.

-as para cima das mãos. As tias voltam à conversa em voz alta com a mãe de Sofia. Falam da festa. O calor deixa marcas

As duas tias, ambas com IMC de classificação

de suor nas roupas de tecido estampado, na região

de, no mínimo, obesidade mórbida, empurram-se

das axilas. Sofia concentra-se no bolo dentro da

para que Sofia entre no carro, no banco de trás, ao

caixa: o bolo da prima é bonito, sim. Confetes co-

lado delas. A mãe de Sofia insiste para que ela co-

loridos cobrem o bolo, o recheio tem camadas co-

loque o cinto de segurança. Sofia coloca-o, ajusta

loridas das cores coloridas do colorido do arco-íris.

a postura, sente o apertão no peito. Ajusta as per-

O bolo tem – conforme a atendente chama – uns

nas com dificuldade no banco de trás do carro, as

três andares de glacê magenta. O peso pressiona

tias grunhem a cada movimento. Apertam-se. A

as pernas de Sofia, machuca. As tias falam dos sal-

mãe coloca devagar a caixa de papelão no colo de

gadinhos, da festa, dos convites, da decoração da

Sofia. Mal a mãe se vira para o volante, ela enche

casa, telefonemas, de quem virá à festa, de quem não virá, xingam os ausentes com palavrões.

Conto inédito

– Mas nem por isso as pessoas tinham que

de Luisa Geisler

deixar de comparecer – diz uma tia. – A gente não

Escritora duas vezes

precisa se ver só em aniversários. Sofia imagina que a mãe se esforce para ou-

vencedora do Prêmio

vir as tias com os ruídos de carro, que entram pela

Sesc de Literatura

janela escancarada de Juliana. A mãe, dirigindo, olhando as ruas, os carros, diz: – É que muita gente se magoou. Acham que é coisa de gente mimada.


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

81

– E não vir quer dizer o quê?

Juliana voltou para casa há apenas uma se-

Quando eram pequenas, Sofia e Juliana

Juliana pede, sua voz baixa, pede que mu-

mana. A umidade do bolo atravessa a caixa e atra-

gostavam de dançar atrás da casa, perto da

dem de assunto, que falem de outra pessoa. A

vessa a regata de Sofia, gruda na barriga. Juliana

árvore. A tia derrubaria a laranjeira para au-

tia baixa a voz, volta a falar dos salgadinhos de

perdeu tantas aulas na universidade, talvez o se-

mentar a garagem. Juliana chorou trancada

festa, do bolo escolhido colorido com colorido

mestre inteiro, talvez reprovasse por faltas. Sofia

no quarto ao saber da laranjeira.

colorido colorido especialmente para a festa.

sentiu a falta da prima durante Antropologia IV,

Juliana sempre foi sensível demais.

Reclama de um farol onde pararam.

quis dormir durante todo o pós-estruturalismo.

O farol abre. Sofia sorri. O carro vibra

O carro se abafa com a espera sob o sol,

O celular tocara num dia de calor idêntico.

com o movimento do motor, movimento

calor, bolo úmido. As pernas da tia ao lado pren-

Sofia se lembrava de que naquele dia vestiu uma

das ruas. O cheiro de suor que vem das tias

dem, cada vez mais, Sofia entre a porta do carro

jaqueta de moletom sobre o pijama e passou calor

e dela mesma não a incomoda. O morma-

e contra a gordura da tia. Sofia sente suas per-

no hospital sem poder tirá-lo. Sofia não se recor-

ço do carro, a umidade que Sofia lança na

nas mergulharem no tecido adiposo, a gordura

dava se o calor pertencia àquele dia ou ao mole-

camiseta regata, em sua testa, em torno de

da tia abraça o raquitismo de Sofia. Sofia respira

tom. Mas o corpo inteiro suava. Parecia a Sofia que

seu cabelo loiro preso num curto rabo-de-

fundo, sentindo o cheiro do aromatizador de la-

tudo aquilo fazia anos, mas foram semanas. Sofia,

-cavalo, nada daquilo a incomoda. O bolo

vanda, o cheiro de rua entra pela janela. Náusea.

de férias, meio adormecida em casa, recebendo a

pesa no colo. Juliana acabou de perguntar

Falta-lhe ar, falta-lhe ar, todo o ar do carro, todo

ligação dos tios no meio da tarde.

se está tudo bem lá, com Sofia, com Sofia e

o ar das janelas escancaradas é supérfluo, falta-lhe ar dentro do pulmão, ela nunca encherá o pulmão de oxigênio por completo, falta-lhe silêncio.

Sofia se lembrava de que fazia brigadeiro de panela naquela tarde. Chamaram Sofia e a mãe ao hospital. Sofia sujou o pijama, vestiu a jaqueta de moletom.

Sofia inspirando e expirando, repetindo

Os tios deveriam estar em viagem, mas sentiram-

para si que tudo ficaria bem, a umidade do bolo

-se culpados de deixar Juliana sozinha. A família

atravessando a caixa atravessando a calça jeans

deveria viajar em conjunto, como sempre fizera.

até as coxas magras, até os ossos.

Voltaram. Na sala de espera, as lágrimas emoldura-

Juliana vira o pescoço para trás, o cinto de

vam os discursos de “e se…”, jogando as culpas em

segurança impedindo-a de virar-se inteira. Ju-

todos os lugares e pessoas. Sofia baixou a cabeça

liana olha para Sofia por trás dos óculos de sol.

quando os pais perguntavam a ela por que Felipe, o

Os óculos de sol cobrem metade do rosto e me-

namorado de Juliana, não atendia aos telefonemas

tade da expressão. Com um sorriso literalmente

deles. O médico acalmava-os, afastava as preocu-

amarelo, Juliana diz com a voz baixa:

pações, deixassem Felipe de lado, o pior já havia

– Tá tudo bem aí contigo?

passado, Juliana estava bem, estava ali.

Juliana, a sensível Juliana, sem Felipe, mas com Sofia e Juliana e Sofia sorri: – Tudo ótimo.


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

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POR Natalia Polesso Doutora em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Seu terceiro livro, Amora (2015), foi vencedor dos prêmios AGES – Livro do ano, Açorianos de Literatura na categoria contos 2016, 1º lugar no Prêmio Jabuti categoria contos e crônicas, além do prêmio Jabuti Escolha do Leitor.

Amanda Amanda ainda está sonolenta quando o quarto passa da escuridão completa a uma penumbra azulada e, três minutos depois, a uma claridade pálida. O painel mostra sua escala de trabalho para hoje: transferência no CIIGZO do Setor 303. Acordar com a escala era algo que a irritava profundamente logo que foi relocada para a Detenção Secundária, agora tanto faz, só quer cumprir sua pena o mais rápido. Com os dedos amplia o mapa, depois suspira e diminui a imagem para conferir o trajeto. Naquela localização terá que pegar transporte duplo para chegar. Não gosta. Pegar o transporte duplo significa mais tempo embaixo da terra, mais tempo sob aquela luz descorada, mais tempo de artificialidades, para ela, desnecessárias. Amanda ainda mantém velhos hábitos. Um deles é caminhar, o outro é tomar café. Caminhar à deriva, ao ar livre, não é algo que as pessoas façam hoje. Não existe caminhar sem rumo. Todas as pessoas têm trajetos a cumprir. E quando não têm, não podem ficar na rua, simplesmente. Quando a escala de Amanda indica um local mais próximo, ela evita o transporte


literatura

primeiro SEMESTRE

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las. Amanda não gosta de alimentar frustrações.

virtuais foram recolhidos e destruídos ou retidos

Prefere acreditar em pequenos gestos.

indefinidamente para análise. Amanda foi pega

O tempo de Amanda vale Trocados. Ali-

com material impróprio armazenado em um tele-

ás, o tempo de todos vale Trocados. O sistema

fone celular desconectado. Não havia muita coisa.

é simples. Os painéis contabilizam o tempo de

Eram fotos de quadrinhos: Gidalti Jr., Ana Luisa

serviços prestados e um percentual de Trocado

Koehler, Luli Penna. Material subversivo, alusivo

é investido nas CCorrentes diariamente. As pes-

à formação e à deterioração das cidades velhas e

soas são livres para fazer o que bem entendem,

antigas, além de questões sociais relativas a femi-

quando têm vontade. As vagas aparecem inin-

nismos. Apreenderam o celular e a levaram para

subterrâneo e todas as esteiras que consegue. São

terruptamente no painel de cada um, as pessoas

questionamento. Amanda não cooperou.

poucas as pessoas que ainda andam pelos anéis

selecionam a oferta e recebem uma proposta

Todos os tipos de comunicação do mundo

externos, é preciso ter estômago para encarar a

de local, trabalho, hora e Trocado. Há muita de-

velho e antigo estão banidos. Agora só há os

margem. A vida, sem os painéis, sem a luz arti-

manda. Há muito para fazer. Os serviços espe-

painéis, controlados pelo Governo. Informes,

ficial, sem o som ambiente e toda a falsificação

cializados valem entre 01-100 Trocados, nestes

notícias gerais e locais, tudo devidamente edi-

do prazer pode ser bem inóspita. Amanda ainda

setores – cifras maiores circulam em setores

tado, conforme a necessidade de cada Núcleo

assim a prefere. Ela acha que aquilo a faz lembrar

privados, não nos comuns. O valor depende da

de Setor. Também servem como meio de comu-

um pouco do que era a humanidade. O café ela

relação demanda/oferta, de maneira que você

nicação entre amigos e familiares. O controle

consegue numa loja de produtos sintéticos ainda

pode ser uma neurocirurgiã, uma doceira ou

dos painéis é absolutamente rigoroso e usá-lo

possíveis. Não é o melhor café do mundo, lembra

uma transmissora. Caso, por exemplo, a deman-

para comunicações pessoais não autorizadas sai

um pouco o café americano, mas cumpre a fun-

da da doceira estiver em alta, o valor da troca

sempre muito caro. Amanda cumpre paciente-

ção de animá-la.

de seu serviço é o que vale mais. A sensação de

mente sua pena. Quer se reintegrar à resistência

Hoje Amanda transfere informações no CII-

liberdade de escolha foi um determinante para o

assim que sair. Já sabe como.

GZO 303. Quando ela precisa ir até essa parte

crescimento dos níveis de felicidade. O índice de

Amanda calça as botas e veste o unifor-

do Condado, aproveita e compra o café. Compra

felicidade per capta é maior do que o da média

me azul, especial dos Transmissores. A função de

também algumas balas azedas, se possível, porque

ali. As pessoas têm marcado números altos ao

Amanda é receber os boletins do Centro de Infor-

gosta de interagir com a vendedora por mais um

fim de suas jornadas colaborativas, o que, para

mações Integrado do Governo e editá-los confor-

tempo. Amanda pergunta se chegaram as balas,

o Governo corresponde a uma ótima aceitação.

me o Setor para qual é enviada no dia. Ela recebe

ela responde. Amanda pergunta sobre os sabores,

A maior parte das pessoas é bombardeada com

as notícias no dia anterior, em casa, pelo painel, de

ela responde. Amanda pede uma quantidade de-

notícias positivas. Descobriram também que a

modo que trabalha nos centros dia sim, dia não. No

terminada, e ela sempre coloca uma bala a mais

sensação de satisfação é algo muito mais impor-

dia que recebe as notícias pelo painel, sua casa fica

e sorri. Uma vez Amanda comprou uma laranja,

tante do que a satisfação real, se é possível dizer

sitiada. Ela não pode transferir nenhuma informa-

gastou um minuto inteiro pedindo informações,

isso. Amanda não consegue entender. De qual-

ção, antes que sejam aprovadas pelo Conselho. Ela

quase se tocaram quando a laranja escorregou do

quer maneira, o tempo de Amanda vale menos

não tem escolha, seu serviço é sempre o mesmo.

balcão. Ao esticar o braço para alcançar o produ-

Trocados, porque uma porcentagem deles é sub-

O que a faz persistir é o azedume das balas, isso e

to no chão, por uma tensão mútua, tomaram um

traída como manutenção da pena que cumpre.

a doçura no ato singelo de adicionar uma a mais.

choque: eletricidade estática. No susto de ambas,

Oito ciclos inteiros é o que Amanda ainda

Enroladas naquele papelote extra, que promete um

a moça pode ver que o bracelete de Amanda era

tem que trabalhar naquele setor para cumprir sua

sabor de maçã verde ou amora, na verdade vão

um bracelete de Indivíduo Retido. Nesse mo-

pena. Caso seja aprovada por comportamento

instruções de fuga e localizações. Depois dos ciclos

mento, desviou o olhar e então, seus olhos e os

exemplar, o tempo diminui, mas não acontecerá,

restantes da pena, Amanda fugirá com a vendedo-

de Amanda se cruzaram. Amanda entendeu que

visto que Amanda apenas cumpre suas funções

ra, cujo nome ainda não sabe, mas cujo desejo de

aquilo era um flerte. E era. A moça quase sorriu.

sem mover um átimo a mais para nada que não

escapar daquela vida, compartilham. Micro ações

No fim, a fruta estava tão seca e com gosto de

seja estritamente oficial. Amanda cumpre pena

de camaradagem, nisso Amanda acredita por en-

passada, que nunca mais arriscou gastar tantos

por “Comunicação Não Autorizada de Natureza

quanto. E quando escaparem juntas, aí sim, poderá

Trocados por um desejo de vida que ela sabia que

Vil”. Resistiu quando proibiram as Comunicações

acreditar em grandes amores.

não seria cumprido. Agora prefere apenas as ba-

relacionadas à Arte. Todos os materiais físicos e


literatura

primeiro SEMESTRE

2018

84

MÚLTIPLA ESCOLHA

O TEMPLO Stephen Spender

OS SEGREDOS DA ARTE DA FUNDIÇÃO

MILES DAVIS – a AUTOBIOGRAFIA

Alejandro Zambra Tusquets Editores

Rocco

Julio Cesar da Silva Rivatto

Editora Campus

Os limites da ficção se alargam

“Vou para Berlim, deixo esse país

A publicação apresenta a

Comecei a ler a autobiografia desse

neste romance de Alejandro

onde a censura proíbe James Joyce

técnica da Fundição – dentro

gênio que esteve na vanguarda de

Zambra. Dispensando a

e a polícia invade a galeria em que

da linguagem da Escultura

quase todos os desenvolvimentos

formalidade, ele constrói a

os quadros de D.H. Lawrence estão

é uma das técnicas mais

do jazz dos anos 1940 até os 90 e

narrativa a partir da estrutura

sendo exibidos”. Paul, jovem poeta, vive

antigas e também uma das

não consegui mais sair de casa até

da Prova de Aptidão Verbal,

tempos difíceis na Inglaterra.

mais utilizadas. Além do que,

terminar o livro. Trata-se de uma

aplicada no Chile de 1966 a 2002

A Alemanha parecia um paraíso

procura dar visibilidade à pessoa

grande enciclopédia do gênero

aos candidatos a universidades.

eterno, sem censura, no qual a

e ao artista fundidor Vilmar

em que a retrospectiva da carreira

Com questões objetivas e textos

juventude e seus poetas tinham uma

Luiz dos Santos, que desde há

do trompetista e compositor é

de apoio, discute memória e

liberdade extraordinária para viver e se

muito vem emprestando seus

atravessada por histórias de sua

identidade, conduzido por uma

expressar. Mas o colapso econômico

conhecimentos a inúmeros

vida nem um pouco convencional.

voz que faz um acerto de contas

com a quebra da bolsa de Wall Street e

escultores gaúchos. Generoso -

Miles é considerado um dos mais

com o pai e com o filho e que

o consequente desemprego vai afetar

como em geral são os encontros

influentes músicos do século

reconhece, em si e nos outros, as

a todos. Para muitos, o verão de 1929

entre amigos - o livro vem

20. Enquanto os outros artistas

marcas deixadas pela história do

foi o último da República de Weimar,

repleto de imagens, mostrando

iam para um certo caminho, ele

país e pela ditadura. Uma reflexão

pois a Alemanha andava no rumo

os passos e os procedimentos

quebrava todos os paradigmas e,

sensível e indignada sobre as

da dominação pelos nazistas que, a

a todos aqueles que buscam

misturando muito, abria uma nova

escolhas que fazemos: legítimas,

partir de 1933, imporiam a mais rígida

desvendar os segredos da

frente. Mas o que me surpreendeu

forçadas, usuais, cruéis ou,

censura e perseguições sem fim.

fundição [fogo, água, terra e ar].

foi a sua vida pessoal, muito ativa

simplesmente, múltiplas.

O livro, único do poeta, crítico literário,

Boa leitura! Axé!

e rica em “loucuras”. Ele era de uma

Miles Davis e Quincy Troupe

professor, ensaísta, militante marxista

inteligência absurda e totalmente

e atuante na defesa civil durante

avesso a regras. Chegou a ficar seis

os bombardeios contra Londres,

meses trancado em casa, sendo

possibilita um mergulho na História

alimentado por uma pequena

que teima em ressurgir com novos

abertura. E na biografia, ele relaciona

formatos e, talvez, em cores mais

essas questões pessoais com o

espalhafatosas, mas com personagens

impacto em sua genialidade musical.

sempre reconhecíveis e perigosos. Luciana Thomé

Gilberto Perin

Leandro Machado

Evandro Matté

Jornalista

Fotógrafo, roteirista e diretor

Artista visual

Maestro


literatura

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literatura


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