Revista Arte Sesc - nº 11 - Primeiro semestre/ 2012

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PRIMEIRO SEMESTRE

2012 ISSN 1984-056X

15 anos de palco giratório Também nesta edição

caderno de teatro: a relação entre odin teatret e a capital gaúcha A música como instrumento de inclusão social



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


08

48

26

artes cênicas

CADERNO DE TEATRO

música

08 15 anos de Palco Giratório

26 Artigo de Patricia Furtado de Mendonça,

48 A música como instrumento de inclusão

atriz, professora, tradutora e consultora

social. Projetos desenvolvidos no Rio Grande

de projetos teatrais, aborda os inúmeros

do Sul impulsionam transformações na vida

do circuito nacional do Palco Giratório

encontros do Odin Teatret com artistas

de centenas de jovens

consideram o projeto um divisor de águas

de Porto Alegre ao longo de 25 anos, com

em suas trajetórias

destaque para a passagem do grupo

12 Grupos gaúchos que já participaram

dinamarquês pelo 7º Festival Palco Giratório 16 Daniel Colin analisa alguns espetáculos que se destacaram no 7º Festival Palco Giratório 24 Festival abre espaço para jovens grupos gaúchos 46 2ª Mostra de Teatro de Passo Fundo marca os cinco anos da unidade

DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Zildo De Marchi

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Everton Dalla Vecchia

Diretor Regional Sesc/RS

www.sesc-rs.com.br

GERÊNCIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA Silvio Alves Bento

Gerente de Educação e Cultura

Jane Schöninger

Coordenadora de Cultura

UNIDADES SESC NO RIO GRANDE DO SUL SESC Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 SESC Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 SESC Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 SESC Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 SESC Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 SESC Camaquã  R. General Zeca Neto, 1085  51 3671.6492 SESC Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 SESC Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 SESC Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 SESC Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 SESC Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 SESC Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 SESC Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 SESC Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 SESC Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 SESC Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 SESC Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 SESC Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403 SESC Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 SESC Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 SESC Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973

SESC Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 SESC Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 SESC Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 SESC Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 SESC Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 SESC Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 SESC Santana do Livramento  R. Brigadeiro Canabarro, 650  55 3242.3210 SESC Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 SESC São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 SESC São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 SESC Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 SESC Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 SESC Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684-3736 SESC Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 SESC Vale do Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 SESC Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Hotel SESC Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel SESC Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel SESC Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


54

58

66

ARTES VISUAIS

CINEMA

literatura

54 Ícone dos quadrinhos alternativos no Brasil,

58 Artigo A Representação Fantástica de Vincent

66 Carlos Drummond de Andrade, que

Fabio Zimbres, quadrinista, ilustrador, editor,

Price, de Marco Aurélio Lopes Fialho, disseca

completaria 110 anos em 2012, é tema do

artista visual e designer gráfico, está com

a obra do mestre do Terror B. Oito filmes

texto do escritor Pedro Gonzaga

duas exposições em circulação no Rio Grande

estrelados pelo ator americano fazem parte

do Sul pelo Sesc: Mahavidyas e Na Tábua

de uma mostra de cinema do Sesc

68 Artigo do diretor de teatro Caco Coelho defende a necessidade de uma releitura da

volume 1

obra de Nelson Rodrigues dentro de seu real contexto, no ano em que se comemora o centenário do dramaturgo mais encenado do país 73 Leitura

BALCÕES SESC/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7750 Cachoeirinha  Av. Flores da Cunha, 1320 Sala 805  51 3438.3249 Caçapava do Sul  Av. XV de Novembro, 267  55 3281.3684 Frederico Westphalen  R. do Comércio, 1013  55 3744.8193 Gravataí  R. Álvares Cabral, 880  51 3043.7916 Guaíba  R. São José, 433 Sala 01  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. XV de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Jorge Dariva, 941  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 8º andar  55 3423.1664 Santiago  R. Pinheiro Machado, 2232  55 3251.5528 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos  Rua Don João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Marechal Floriano, 488 Sala 17  54 3231.5883 Viamão  R. Marechal Deodoro, 175 Loja 102  51 3434.0391

NÚCLEO DE ATENDIMENTO SESC São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1297  55 3352.7398

Coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Design Editorial

Rua Mariante, 200  Sala 02  51 3013.1330 90430-180  Porto Alegre/RS

Andréa Costa

Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  clarissa@pubblicato.com.br Edição e Reportagem

Grace Prado

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.000 exemplares

CAPA

Foto de Claudio Etges do espetáculo Breves Entrevistas com Homens Hediondos, durante o 7º Festival Palco Giratório realizado em maio, em Porto Alegre


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mais ARTE E cultura O desenvolvimento do aspecto social e humano da comunidade está na essência das atividades promovidas pelo Arte Sesc – Cultura por toda parte. E um resumo dessas ações é o que pode ser conferido nas páginas a seguir. Matérias relacionadas aos 15 anos do Palco Giratório e à participação de grupos gaúchos nesse que é o maior circuito teatral da América Latina estão entre os destaques dessa edição da Revista Arte Sesc. A publicação também traz o relato de alguns dos participantes do 7º Festival Palco Giratório Sesc/POA. Já no Caderno de Teatro poderá ser conferida a relação dos dinamarqueses do Odin Teatret com a capital gaúcha. Ainda nas artes cênicas, será apresentado um panorama sobre a 2ª Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo e um artigo sobre os 100 anos de Nelson Rodrigues. A música também está presente nessa edição da Revista Arte Sesc, com matéria sobre projetos de inclusão nessa área no Rio Grande do Sul. Nas artes visuais, a obra do ilustrador Fábio Zimbres é o destaque. Artigos relacionados ao cinema, sobre Vincent Price, e à literatura, tendo como tema Carlos Drummond de Andrade, poderão ser conferidos nas próximas páginas. Além de promover uma intensa troca de experiências e ampliar o acesso à produção artística, o Arte Sesc busca ser reconhecido como promotor de ações culturais no Estado, sendo elas não só apresentações artísticas, mas também ações de caráter formativo e educacional, orientadas por três eixos: transversalidade, diversidade e acessibilidade. Com a Revista Arte Sesc, procuramos fazer um apanhado semestral das ações culturais propostas pelo Sistema Fecomércio-RS e contamos com o olhar criterioso de articuladores da área em que expressam seus posicionamentos nos artigos a seguir.

Boa leitura!

Crédito: Fábio Zimbres

Zildo De Marchi

Everton Dalla Vecchia

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Diretor Regional Sesc/RS


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o verdadeiro projeto nacional Único circuito de grande

Criado em 1998 com o intuito de estimular o

Para contar esta história, a Arte Sesc en-

porte que percorre

exercício de uma cidadania cultural, incenti-

trevistou o idealizador e coordenador do projeto

vando o acesso ao desenvolvimento de conhe-

por muitos anos, o diretor teatral e dramaturgo

cimentos e aptidões artísticas e, como conse-

Sidnei Cruz, que descreve como tudo começou,

país inclui circuitos,

quência, fomentando as produções locais, o

analisa a importância da gestão cultural compar-

festivais, aldeias,

projeto Palco Giratório completa 15 anos de

tilhada e a contribuição do Palco Giratório para o

existência. De lá para cá, mais de 170 grupos

desenvolvimento das artes cênicas no Brasil. Sid-

teatrais já passaram com seus espetáculos de

nei Cruz é Assessor de Cultura da Escola Sesc de

todo o tipo de linguagem pelos teatros, centro

Ensino Médio, Mestre em Bens Culturais e Projeto

culturais, escolas e praças de todas as capitais,

Social e MBA em Gestão Cultural.

todos os estados do

oficinas, intercâmbios e bate-papo entre artistas e comunidade

além de cidades do interior, de menor porte, que dificilmente teriam acesso a apresentações de

Como o projeto Palco Giratório iniciou?

qualidade não fosse a iniciativa do Sesc. Foram

No primeiro momento, o projeto surgiu a partir

mais de 5 mil apresentações com um públi-

de conversas com vários técnicos de teatro dos

co superior a 2,5 milhões de expectadores. O

Departamentos Regionais durante as ações de

Palco Giratório, entretanto, não busca apenas

capacitação (Encontros, Treinamentos, Acom-

fazer circular peças, grupos e linguagens, mas

panhamento de programação, Orientações

sim ampliar e aperfeiçoar as ações a cada ano

específicas e Estágios) coordenadas por mim,

formando e fortalecendo uma rede de bens

como técnico do Departamento Nacional; no

culturais que inclui mostras de arte e cultura,

segundo momento, a ideia foi materializada

espaços e equipamentos, acervos de memória,

na forma de projeto, apresentado à Direção do

núcleos literários, coletivos de criação e parce-

Departamento Nacional, aprovado e oferecido

rias institucionais.

aos Departamentos Regionais na forma de um


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Curadoria com representantes de todos os estados como pilar estruturante é um fato inédito que contribui para diversidade dos espetáculos e atividades formativas Fotos: Claudio Etges

A base do projeto foi o Mambembão, projeto que trabalhava com o conceito da descentralização (e que inclusive foi “ressuscitado” neste ano). Qual a importância da descentralização? Exatamente. O modelo até então que tínhamos de circulação de grupos e espetáculos cênicos era o Mambembão, que consistia em mostrar a produção cênica das regiões norte, nordeste e centro-oeste para o eixo Rio–São Paulo–Brasília, ou seja, uma distribuição da periferia para o centro. Com o Palco Giratório, ousamos experimentar uma metodologia diferente, a difusão caleidoscópica, ou seja, uma distribuição vertiginosa cobrindo todo território nacional, onde referências como margem e centro tornam-se diluídas ou reorganizadas a todo momento. Mas o mais importante elemento colocado em jogo pelo Palco Giratório foi o planejamento estratégico do projeto, superando a prática de realizações eventuais e implantando a regularização e

pré-programa a ser desenvolvido em parceria.

sistematização da ação cultural, numa abran-

Uma parceria que previa a divisão dos cus-

gência até hoje não igualada por nenhuma

tos na ordem de 50%. Entre os anos 60 e 80,

instituição pública ou privada.

ocorreu o fenômeno da crescente massificação da produção, distribuição e consumo de bens

Além de idealizador, você esteve à frente

culturais no Brasil. Período de repressão polí-

do projeto Palco Giratório por muito

tica e ideológica e também de concentração

tempo. Como ocorre a escolha dos grupos

populacional nos grandes centros urbanos,

e espetáculos participantes para garantir

crescimento da classe média e surgimento da

a diversidade que o caracteriza?

sociedade de consumo. Nos anos 90, as ofertas

Esse foi outro elemento inovador, um pilar

culturais estavam concentradas no eixo sul-

estruturante do projeto: a curadoria. O Palco

-sudeste. Foi apostando na contramão desse

Giratório possui uma curadoria com o maior

panorama que o SESC entrou no jogo da di-

número de participantes do país, quer dizer,

fusibilidade nas artes cênicas. O conceito ini-

é uma curadoria que possui representante

cialmente foi ancorado na ideia de circulação

de todos os estados do Brasil. Isso é um fato

de espetáculos, objetivando superar a concen-

inédito! É uma assembleia nacional, horizon-

tração de ofertas no eixo sul-sudeste. Paula-

tal, democrática e composta por olhares di-

tinamente, o conceito foi construído, trans-

versos. É uma verdadeira escola do olhar es-

formado e desenvolvido por meio de diversos

tético e social. Cada Departamento Regional

diálogos travados entre os técnicos de cultura

é representado por um técnico de cultura,

da instituição (dos Departamentos Regionais

formando um círculo de debates composto

e do Departamento Nacional) e da sociedade

por 27 estados da federação, coordenados

(gestores, artistas, espectadores).

pelos técnicos do Departamento Nacional.


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Durante o ano, são apresentados por esses representantes uma quantidade expressiva de propostas num sistema de avaliação

Projeto estimula nas comunidades o exercício de uma cidadania cultural Fotos: Claudio Etges

partilhamento quando existir sensibilidade argumentativa, generosidade republicana, atitude cidadã, espírito democrático. A rigor

prévia, as melhores propostas vão para uma

não deveria haver privilégio para nenhum

final no Encontro Nacional da Curadoria do

eixo territorial. Deve prevalecer, sempre, a

Projeto Palco Giratório.

configuração com o maior espectro possível da diversidade (de linguagem, de região, de

A ideia é mostrar a cena atual das artes

gênero, de estado, de cultura).

cênicas produzidas no Brasil como um todo, suas diversas linguagens, ou só o

Como entram as Aldeias dentro do

que tem de melhor?

projeto Palco Giratório?

Existem variantes metodológicas. Hoje, não

As aldeias são ocupações territoriais – desen-

sei qual é a que está sendo aplicada. De qual-

volvimento cultural local – capazes de propor-

quer maneira, me parece que os critérios bási-

cionar ambientes de trocas simbólicas entre

cos permanecem. O projeto surgiu embasado

grupos artísticos visitantes, grupos artísticos

pelo conceito de oportunidade, de capital so-

locais e plateias diversas da sociedade. É um

cial, de desenvolvimento cultural local. Criar

agir local que articula pontos de contato dire-

oportunidades para que grupos e artistas pos-

to com a comunidade e com o seu cotidiano.

sam entrar em contato com públicos diversos

O gestor cultural interage e realiza mediações

em âmbito nacional e, por meio de conversas,

que envolvem pessoas, memória, espaços,

trocas e consciência de pertencimento. Ou-

equipamentos e outros recursos, colaboran-

tro viés do projeto prima pela educação dos

do para a formação da vida coletiva, ou seja,

sentidos, proporcionando aos espectadores

criando atmosferas para o desenvolvimento

a vivência de linguagens variadas como te-

cultural local. Quando o grupo artístico circu-

atro de rua, teatro de animação, circo, dança,

la o Brasil pelo projeto Palco Giratório, ganha

performance, proximidade entre espectador e

qualidade nômade ou de “território flutuan-

ator, espaço cênico não convencional e outros

te” e, ao pousar em uma aldeia, encontra um

relacionamentos não tradicionais. Então, para

lugar demandado, sedimentado por fluxos de

além da escolha do que é bom ou do que é

bens culturais.

melhor, que de resto é uma questão relativa, o interessante é criar oportunidades para que

De que forma as Aldeias afetam a

público e artista possam construir seus olha-

população do local onde são realizadas?

res na diversidade. Técnica, estética e sociabi-

Imagino que em primeiro lugar afetam o

lidade são processos mediados por contextos

imaginário da comunidade, a vida cotidiana,

em permanente mutação. O encontro entre

determinadas particularidades do universo

as diferenças é o mais importante.

dos hábitos, no compartilhamento de rituais, sonhos, jogos e experiências imemoriais.

Qual a relevância da gestão cultural

Em segundo lugar, pode se constituir num

compartilhada em geral e dentro do

embrião de mercado cultural, pois os bens

projeto Palco Giratório? Este modelo abre

são as partes materiais e visíveis da cultura.

mais possibilidades para grupos fora do

Nesse sentido, é possível afirmar que a ação

eixo Rio-São Paulo?

cultural organizada, regularizada e sistemá-

A gestão compartilhada não é uma fórmula.

tica desenvolvida pelo SESC em todo territó-

Não se trata de uma racionalidade buro-

rio nacional produz diferenças nas comuni-

crática ou quantitativa. Haverá mais com-

dades em que atua.


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Em seu trabalho desenvolvido nas comunidades do Rio, o conceito do Palco Giratório serve de base para instigar as pessoas atendidas?

A aquisição de uma consciência de territorialidade nacional alcançada pelos participantes é o maior impacto do projeto Fotos: Claudio Etges

Claro. O Projeto Palco Giratório é uma experiência profunda de gestão e política cultural. Sempre volto às suas premissas básicas para continuar trabalhando com invenção e criatividade. Por fim, ao promover a diversidade, possibilitando intercâmbios, abordando diversas linguagens e dando espaço para o teatro experimental, nesses 15 anos, o projeto Palco Giratório, apontado por muitos como fundamental para o desenvolvimento do teatro no país, interferiu na produção nacional? Qual a contribuição do projeto neste percurso? Não resta a menor dúvida quanto a isso.

transformar ética e esteticamente os envol-

Quem pode e deve confirmar ou não essa

vidos com o projeto. Não se pode deixar de

questão são os grupos que participaram e os

considerar que o projeto não pratica apenas

que estão à espera dessa participação. Mui-

a circulação de espetáculos, vai mais além,

tos grupos foram consolidados a partir da

envolve repertórios, residências cênicas, ofi-

experiência do Palco Giratório, os relatos são

cinas, debates, trocas de metodologias de

vários. Basta consultar os diários de bordo,

trabalho, relatos e registros de experiências,

as monografias realizadas em diversas uni-

experimentação de novos relacionamentos

versidades do país, volta e meia os artistas

entre palco e plateia.

dão seus depoimentos nos jornais. Alguns

O projeto Palco Giratório é um fato históri-

grupos, estimulados pela experiência com

co. Nesses 15 anos, muito foi consolidado,

o projeto, reformularam seus espetáculos,

outros tantos foram transformados e segue

criaram novos espetáculos tomando como

exigindo uma mutação contínua para não

temas as culturas locais, adquiriram equi-

virar um produto ou uma fórmula replicável

pamentos e sede, desenvolveram parcerias

em qualquer circunstância. O Palco Giratório

com grupos locais, ampliaram suas redes de

é um fenômeno genuinamente institucional,

relacionamentos profissionais. O impacto,

um engenho só possível numa instituição

sobretudo, se deve à aquisição de uma cons-

como o Sesc. Torcemos para que outros

ciência de territorialidade nacional que os

Palcos Giratórios apareçam no país, mas

participantes alcançam. Um sentimento de

para isso é necessário aglutinar uma ampla

pertencimento que certamente não é con-

rede de espaços cênicos, interlocução social,

quistado quando se faz uma temporada tra-

um programa de cultura ousado, quadros

dicional em teatros. A possibilidade de tran-

técnicos especializados em todo território

sitar e entrar em contato com a diversidade

nacional, vontade política e investimentos.

cultural brasileira é emocionante e capaz de


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Um caleidoscópio de culturas Profissionais gaúchos

Uma sala de espetáculos em miniatura com mi-

em sete pessoas, chegávamos a ter um público de

que circularam

niarquibancada para sete pessoas, minissistema de

200 a 300 pessoas por noite”, conta. Para Paulo

som, mini-iluminação e quase toda a população

Fontes, o projeto dá aos artistas a possibilidade de

reunida na praça de Bodocó, no sertão pernam-

lidar com outro tipo de público, de trocar experi-

enaltecem o

bucano, para assistir a Circo Minimal, da Cia. Gente

ências, de intercâmbio, de ter acesso à arte gestada

significado e a

Falante. Ao ligar o ar-condicionado para iniciar as

em outras regiões. “É uma oportunidade de ama-

minissessões de quatro minutos, a luz da praça,

durecimento, de se conhecer como brasileiro. O

com uma fiação muito antiga, não resistiu. O espe-

artista que é contemplado com esta oportunidade

táculo foi apresentado assim mesmo e se estendeu

pode se considerar um felizardo”, diz.

pelo Palco Giratório

abrangência do mais amplo projeto voltado para as artes cênicas

pela noite toda. “Chegamos a um ponto de esgo-

Paulo Fontes diz ainda que a Cia. Gente Fa-

no país

tamento muscular. Foi fantástico!”, descreve Paulo

lante tem participado de festivais em outros paí-

Fontes, diretor e ator-manipulador de bonecos do

ses e há uma unanimidade, inclusive entre artistas

espetáculo. Para ele, a circulação nacional pelo Pal-

estrangeiros, em dizer que não existe nada igual

co Giratório, em 2008, foi um marco na história do

ao que o Festival Palco Giratório proporciona em

grupo, em vias de completar 20 anos de atividade.

termos de intercâmbio. “Se tem, é inconsistente.”

Já com o respaldo de ser considerado um es-

Atualmente, o coletivo que vem participando de

petáculo que se utilizou de uma linguagem nova,

Aldeias Sesc pelo país está em circulação pelo

contemporânea, o projeto do Sesc permitiu que a

Palco REC-POA, que promove o intercâmbio en-

Cia. circulasse por regiões que jamais teria acesso,

tre as unidades de Recife e Porto Alegre, com o

o que o diretor considera um deleite. “Fizemos todo

espetáculo Louça Cinderella. Por meio do teatro

o sertão de Pernambuco, onde o público via com

de objetos, linguagem que tira leite de pedra, se-

estranheza aquele circo tão pequeninho. De sete

gundo o artista, por conferir uma ilusão de vida a


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um objeto industrial sem ligação nenhuma. “Toda

pesquisa de linguagens – é aí que entra o Larvá-

esta pesquisa de resgate da humanidade que se

rias, que surgiu do projeto Comunicações Possí-

perdeu durante a revolução industrial foi conse-

veis, quando foi apresentado em fragmentos para

quência do processo pós Palco Giratório, um pro-

públicos de penitenciária, instituição psiquiátrica,

cesso que leva a uma reação em cadeia – ou as

asilo, moradores de rua, clube de tênis, a fim de

pessoas ficam plenas ou surtadas. É muita infor-

avaliar a reação dos espectadores de diferentes

mação, muita responsabilidade, é maravilhoso, é

segmentos da sociedade.

uma rica experiência participar deste projeto tão qualificador das artes”, analisa.

Para Daniela, levar esse experimento de linguagem em que as máscaras do carnaval de Basel, na Suíça, são exclusividade no espetácu-

ÊNFASE NA PESQUISA EM TEATRO

lo para diversas regiões brasileiras, com outros

Embora tenha participado de outras edições, tam-

universos, outras culturas, foi como realizar uma

bém foi em 2008 o grande momento da Cia. do

extensão do projeto inicial. Se o feedback obtido

Giro no Palco Giratório, quando Larvárias inte-

entre os idosos foi uma relação das máscaras com

grou a programação nacional. A diretora e atriz

a morte, entre os agricultores, com as fases da

da companhia Daniela Carmona, fã do projeto do

lua, no Nordeste, a associação foi com o folclore

Sesc , destaca a diversidade em termos de lingua-

deles, com elementos do épico que sempre apa-

gens e a elevada qualidade técnica como fatores

recem nos seus espetáculos, enquanto no Panta-

primordiais para que seja um dos mais bem-suce-

nal foi ainda outra coisa. “Isto, juntamente com

didos do Brasil, com um olhar generoso e amplo

o contato com atores diferentes de grupos dife-

sobre as artes cênicas. Outro diferencial apontado

rentes que até então só tínhamos ouvido falar, é

pela artista é a ênfase no teatro de grupo e em

muito rico”, analisa.

Cia. Gente Falante está em circulação pelo Palco REC-POA com o espetáculo de teatro de objetos Louça Cinderella Foto: Claudio Etges


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O Festival em Porto Alegre, por sua vez, é

Festival Palco Giratório para a formação de pla-

Foto: Fernando Pires

uma grande conquista e apesar de saber que é

teia. “Nas primeiras edições, lamentava que es-

Deborah Finocchiaro em Pois é, vizinha..., da Cia. de Solos e Bem Acompanhados

fruto de uma curadoria coletiva, Daniela desta-

petáculos tão lindos eram vistos por tão pouca

ca o olhar muito atento da coordenadora local,

gente, o que não vem acontecendo nos últimos

Foto: Fabrício Simões

Jane Schöninger, para a questão da diversidade.

anos – o crescimento de público tem sido gra-

Cia. do Giro circulou pelo Palco Giratória com Larvárias

“Ao trazer grupos de teatro experimental con-

dativo, mas na última edição houve um boom”,

sagrados ou não, o que é um diferencial, o Sesc

observa. Para ela, é muito interessante ver grupos

proporciona aos artistas gaúchos o contato com

das escolas da cidade, público que não está acos-

novas técnicas e linguagens que estão sendo fo-

tumado a ir ao teatro, na plateia.

A Escrita de Borges, do Falos & Stercus

Foto: Claudio Etges

mentadas no Brasil, o que nos orienta sobre o que

Débora Finocchiaro, atriz, diretora, roteiris-

está acontecendo”, afirma. Daniela participou de

ta e produtora da Cia. de Solos e Bem Acompa-

quatro oficinas e assistiu a cerca de 80% da pro-

nhados, considera o Placo Giratório fundamen-

gramação da edição de 2012 junto com o parcei-

tal para o desenvolvimento do teatro no país,

ro de Cia. do Giro Adriano Basegio. Segundo ela, o

principalmente pela manutenção da circulação,

Festival já está com seu lugar na agenda cultural

sem a qual não existe profissionalismo na área.

de Porto Alegre, e os artistas procuram estar mais

“O projeto proporciona contato constante com a

livres no mês de maio para também ter contato

diversidade e pesquisa e, para os artistas que via-

com grupos que normalmente só veem em ma-

jam com seus espetáculos, possibilita uma nova

nuais – entre eles o Odin Teatret.

descoberta de um país e toda sua multiplicida-

A artista que também participou com sua

de de culturas”, salienta a artista, que já circu-

companhia da Aldeia Salvador, em 2011, como

lou com Pois é, vizinha... pelo Rio Grande do Sul,

grupo residente, salienta ainda a importância do

Pernambuco, Ceará e Mato Grosso do Sul e com


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

15

os espetáculos Histórias de um canto do mundo,

pesquisa mais aguda pode gerar uma confluên-

um festival com tantos dias de duração, de fácil

Sobre anjos e grilos e O urso – A história da guerra

cia de inquietudes advindas do universo cultural

acesso ao público e com um repertório de tan-

dos sexos no Festival gaúcho. Outro ponto forte

do teatro brasileiro. “Portanto, o Festival Palco

ta qualidade na nossa cidade nos tocando, nos

apontado por Deborah é a formação de público

Giratório pode chegar no seu momento alto de

emocionando e nos fazendo repensar e repensar

e qualificação dos artistas das cidades afetadas

ser um rico caleidoscópio de culturas que pode

nossa arte a cada instante.”

pelo projeto. “No momento que se proporciona o

transformar a criatividade brasileira.” Segun-

acesso a bons espetáculos, como consequência,

do ele, o festival é ainda uma estratégia para o

os grupos locais acabam se desenvolvendo.”

crescimento e para a regeneração de riquezas humanas na cidade de Porto Alegre, pois redefine o

ALÉM DO ESPETÁCULO

espaço de sociabilidade.

Fundador e integrante até 2011 do coletivo Fa-

Em sua primeira circulação nacional pelo

los & Stercus, o escritor, ator e diretor Alexandre

Palco Giratório, com Dia Desmanchado, Tatiana

Vargas diz que para algo ter uma história é ne-

Cardoso e Marcelo Bulgarelli do grupo Teatro

cessário uma certa continuidade entre seu passa-

Torto destacam que tudo que os artistas de teatro

do e seu presente. Então, “a questão nuclear dos

querem é que o maior número de pessoas conhe-

festivais é não perder a revolta e redescobrir a

çam e compartilhem os ideais que os movem e

curiosidade intelectual e o desejo de diálogo pro-

que uma circulação dessa amplitude promove

fissional sem esquecer que os grandes defensores

esse objetivo com maestria. “O Sesc representa

dos festivais são os habitantes das cidades”. Ele

um porto seguro para quem faz teatro no país

destaca o repertório amplo e potente de ações

e está cumprindo um papel importante na for-

culturais do Sesc, que tem no Palco Giratório um

mação de plateia e na valorização dos artistas”,

dos principais projetos no processo de nova so-

garante a dupla. Mais que isso, os artistas con-

ciabilidade brasileira, com a descentralização do

sideram uma organização que se interessa em

repertório cênico de um país de extensão conti-

aprender sobre teatro, em afinar um olhar sen-

nental efetivada por meio de intercâmbios e das

sível e atual que corrobore com o que pode ser

trocas humanas.

interessante para o Brasil inteiro também ver.

Sobre o Festival, Alexandre Vargas salienta a

Além da apresentação dos espetáculos, Mar-

escuta sensível e atenta da sua gestão para as ne-

celo e Tatiana valorizam as oficinas que permitem

cessidades objetivas do teatro feito no Rio Grande

uma troca mais efetiva com a comunidade de

Sul e considera a compreensão de que teatro não

cada cidade, abrindo portas mais concretas so-

é só espetáculo o maior mérito do evento. “Perce-

bre a diversidade de técnicas e linguagens, num

bendo este conceito, como coordenador do Cen-

permanente intercâmbio entre artistas. O mesmo

tro de Pesquisa Teatral do Ator, que contou com o

acontece, segundo eles, com os debates e o Pen-

apoio do Sesc, propus em 2010 que a programação

samento Giratório, que propiciam um olhar crítico,

do festival absorvesse a demonstração cênica da

distanciado e reflexivo sobre a obra e o processo

atriz Julia Varley e a conferência com um dos prin-

criativo de cada grupo. “Estas atividades estão

cipais nomes do teatro mundial, o diretor Eugenio

sendo muito especiais, sobretudo, pelos vínculos

Barba”, conta. No ano seguinte, o Palco Giratório

humanos que estamos estabelecendo. Sentimos

proporcionou a experiência de residência artística

que estamos deixando sementes pelo Brasil afora

entre Falos & Stercus e o grupo Vertigem, de São

e, de outro lado, carregamos outras com a gente,

Paulo. Para o artista, foi um momento revelador e

na nossa mala, a cada volta para casa”, revelam.

de contrastes, pois é necessário generosidade para reconhecer a cultura do outro.

“Quanto ao festival local, o Sesc permite que alguns de nossos mestres visitem nossa casa,

Alexandre Vargas acredita que a elaboração

nossa cidade, nossos conterrâneos, trazendo o

de uma inquietação cultural e de uma agenda de

mundo para nosso quintal. É um privilégio ter

Circo Minimal, da Cia. Gente Falante

Fotos: Cristine Rochol e Luiz Ventura


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

POR DANIEL COLIN

16

encenador, ator, dramaturgo e integrante-fundador do grupo Teatro Sarcáustico Fotos: Claudio Etges

PALCO GIRATÓRIO 2012: experiências diversas evidenciam o foco

do Festival sobre o trabalho continuado de grupos de teatro

Adeus à Carne, de Michel Melamed, Faladores, da Cia. Mario Nascimento (SP), e Luis Antonio-Grabiela, da Cia. Mungunzá (SP)

Quando Jane Schöninger, coordenadora do Palco

A ideia deste texto aqui apresentado foi da

Giratório RS, me convidou para assistir a alguns

própria Jane: escrever sobre as impressões que

dos espetáculos da 7ª edição do Festival e mediar

esses espetáculos deixaram em mim, fossem elas

os bate-papos com o público, eu já sabia que seria

positivas ou não. E é o que farei a seguir. Porém,

uma experiência muito particular: ter a chance de

atrevo-me a ampliar um pouco a proposta da

trocar ideias com artistas provindos de outras ci-

Jane e ir além. Como tive a oportunidade de ter

dades, estados e mesmo regiões deste país imenso,

participado do Festival de três formas diferentes,

um Brasil que poucas vezes tem a chance de reali-

pretendo fazer uma breve reflexão sobre estas

zar esse tipo de intercâmbio artístico-cultural. Com

experiências. Além de ter atuado como mediador,

o início do Festival, minhas expectativas foram su-

participei desta edição do Festival como diretor-

peradas e realmente pude conferir o trabalho de

-ouvinte na Residência Artística com o mítico Odin

grupos que, em sua maioria, desconhecia, mas

Teatret durante quatro dias e como ator/diretor/

cujas obras me encantaram e me fizeram refletir

dramaturgo do espetáculo Breves Entrevistas com

sobre o meu próprio fazer artístico.

Homens Hediondos (Teatro Sarcáustico), o qual


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

17

1  O grupo TEATRO SARCÁUSTICO surgiu em janeiro de 2004, do Trabalho de Conclusão do Curso de Artes Cênicas (UFRGS), de Andressa de Oliveira, Daniel Colin e Tatiana Mielczarski, intitulado GORDOS ou somewhere beyond the sea. Nestes 8 anos de trabalho continuado, foram produzidos outros sete espetáculos profissionais, além de performances, oficinas, workshops e cursos de formação de atores. O TEATRO SARCÁUSTICO recebeu importantes prêmios do estado (Açorianos de Teatro, Tibicuera de Teatro Infantil, RBS Cultura e Braskem em Cena) e é considerado uma das mais significativas companhias da cena teatral gaúcha contemporânea. Atualmente, o TEATRO SARCÁUSTICO é um dos grupos que integram o Projeto Usina das Artes, que prevê a ocupação do Centro Cultural Usina do Gasômetro em Porto Alegre, e é constituído pelos artistas Daniel Colin, Guadalupe Casal, Ricardo Zigomático e Rossendo Rodrigues.

mentos técnicos”. Sob direção-geral de Eugenio Barba, o Odin produziu 78 espetáculos, que já foram apresentados em mais de 60 países. Tamanha experiência foi, de certo modo, revista e compartilhada nesses dias da Residência Artística. O fato de poder trocar informações e experiências, de assimilar memórias de um grupo tão importante para o teatro mundial foi um privilégio sem precedentes. O Odin Teatret tem sido uma influência muito forte para o modo como o Sarcáustico pensa o fazer teatral, mesmo que o nosso grupo não seja um fiel seguidor dos princípios da Antropologia Teatral ou dos preceitos do Odin. “Eugenio Barba é um ícone vivo do teatro; se fazemos este teatro que a gente faz hoje é muito por causa dele. Nosso jeito de fazer teatro está obviamente ligado à pesquisa que eles criaram”, afirma Guadalupe Casal, uma das integrantes do Sarcáustico. Barba, durante as manhãs, expunha o que entendia por cumplicidade entre ele e seus atores e pedia para que suas atrizes – Julia Varley, Iben Nagel Rasmussen e Roberta Carreri realizou uma temporada de 12 apresentações no

cumplicidade artística entre ator e diretor, além

–, uma por dia, dividissem conosco suas próprias

Teatro de Arena. Portanto, este texto relata estas

de presenciar demonstrações de trabalho destas

percepções sobre essa cumplicidade. A partir da

três experiências – como artista, como mediador

atrizes e de participar de uma oficina prática so-

lembrança e da execução de exercícios de impro-

e como diretor-ouvinte –, pois acredito que esses

bre a dança dos Orixás com o brasileiro Augusto

visação feitos há pelo menos 40 anos, cada uma

três pontos de vista juntos podem ilustrar a ma-

Omolu. Foram turnos intensivos de informações e

delas foi apresentando modos particulares de

neira com que o Palco Giratório RS vem pensando

técnicas que nos fizeram compreender um traba-

construção dos trabalhos do Odin. E assistir, ao

uma política de festival que prioriza o trabalho de

lho de 48 anos continuados de pesquisa.

vivo, a demonstração dos processos artísticos de

grupos de teatro.

Como informa o site do Palco Giratório RS,

atrizes como Iben ou Roberta foi especialíssimo!

“O Odin Teatret foi fundado em 1964 em Oslo, na

Nesses depoimentos matinais, notei que, mais do

EXPERIÊNCIA 1: EUGENIO BARBA, A CUMPLICIDADE COM OS ATORES DO ODIN TEATRET E A DIMENSÃO DE TEMPO

Noruega. Em 1966, transferiu-se para Holstebro,

que cumplicidade, aquelas atrizes demonstravam

na Dinamarca, e transformou-se em Nordisk Tea-

uma imensa confiança em Barba; confiança, de

terlaboratorium. Atualmente, os 25 membros que

certo modo, submissa às ideias dele, pois ainda

O Teatro Sarcáustico , grupo que ajudei a fundar

compõem o staff artístico e administrativo do Odin

hoje, a relação do diretor com elas parece quase

em 2004 e do qual faço parte há oito anos, foi

são provenientes de 10 países e três continentes.

de comando absoluto, como se elas estivessem

um dos selecionados para a Residência Artística

Desde a sua origem, o Odin Teatret concentrou-se

à sua disposição todo o tempo. Talvez, seja uma

que o Odin Teatret coordenou nos primeiros dias

no treinamento dos atores, em sua capacidade de

análise bastante superficial da relação entre eles,

do Palco Giratório. Além do Sarcáustico, outros

estabelecer novas relações com os espectadores

mas foi a impressão que ficou desses momentos

vários grupos brasileiros fizeram parte dessa Re-

e nas diferentes dramaturgias que compõem um

com o grupo... A bem da verdade, o próprio Barba

sidência, como os porto-alegrenses Santa Esta-

espetáculo. O autodidatismo dos atores do Odin,

afirmou que sua cumplicidade era diferente com

ção, Circo Girassol e U.T.A. Durante quatro dias

com a consequente elaboração de um treinamen-

cada uma de suas atrizes: se com Julia, havia uma

consecutivos, os grupos selecionados tiveram a

to individual e o ensino aos membros mais jovens

relação de amor, ódio e dependência, com Iben,

oportunidade de assimilar depoimentos de Euge-

do grupo, determinou o constante interesse pela

por exemplo, sempre existiu um enfrentamento

nio Barba e de algumas de suas atrizes sobre a

aprendizagem e pela transmissão dos conheci-

de vontades e de respeitos. Mas com todas elas,

[1]


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

18

Barba foi – e ainda é! – extremamente exigente

Como eles conseguiram manter-se unidos e traba-

mesmos problemas de espaço e de público pelo

na evolução dos processos do ator.

lhando depois de tanto tempo juntos? Como man-

qual passam os outros grupos, o que torna a nos-

Além da cumplicidade, o tempo foi um tema

ter o mesmo interesse? O mesmo frescor? Como é

sa situação um pouco mais confortável, mas não

constante e um dos fatores mais notáveis nesses

possível se renovar? Foram algumas das perguntas

conformada. Ou seja, foi bom para nos confortar,

dias com o Odin para o ponto de vista do Teatro

que nos surgiram quando pensávamos sobre o

mas nunca para nos conformar!”, afirma Ricardo

Sarcáustico. Rossendo Rodrigues e Guadalupe

tempo de trabalho continuado. Ao que tudo indica,

Zigomático, ator e diretor do Sarcáustico.

falam exatamente sobre a diferença entre a pers-

as respostas virão com o tempo... Mas, definitiva-

Apesar de todas essas reflexões e intercâm-

pectiva de tempo para o Odin e para o nosso gru-

mente, a cumplicidade entre diretor e atores, para

bios, particularmente, ao relembrar a Residência

po. Nos depoimentos da Julia ou da Roberta, por

o Odin, está intrinsecamente ligada ao tempo de

com o Odin como um todo, acredito que Barba

exemplo, ouvimos relatos de ensaios que diziam

trabalho, de convívio, de vida.

poderia ter sido um pouco mais profundo so-

respeito a três, quatro ou cinco anos de processo

Outra característica essencial desses dias

bre a ideia da cumplicidade entre ator e diretor,

para um único trabalho ou mesmo sobre o fato de

com o Odin foi constatar que alguns dos pro-

talvez dando mais atenção aos grupos brasilei-

eles trabalharem com espetáculos que têm mais de

blemas que encontramos aqui em Porto Alegre

ros que estavam ali presentes ou propondo um

20 anos de existência. O próprio Eugenio Barba co-

em nossa profissão, como insuficiência finan-

workshop prático que dissesse respeito ao tema

mentou sobre obras que levaram cerca de 10 anos

ceira para projetos de pesquisa cênica, escassez

da discussão por ele proposta. Eu gostaria muito

para serem concluídas. “Foi bacana estar exposto

de público e espaços qualificados, por exemplo,

de saber como esses grupos, vindos do RS, RJ, DF

a uma perspectiva de tempo de trabalho bem dis-

são também dificuldades enfrentadas tanto pelos

e SP, pensam, discutem e executam essa cum-

tante da nossa”, comentou Rossendo, que também

outros grupos que participaram dessa Residência,

plicidade... De qualquer modo, foi um espaço

atua e dirige os trabalhos recentes do Sarcáustico.

quanto pelo próprio Odin. “O que mais me tocou

de valor incalculável para a reflexão dos nossos

Para nós, o impacto do tempo sobre o trabalho

na Residência com o Odin foi poder dividir nos-

processos de criação artística feitos no Brasil,

de grupo foi imenso, já que o Odin é mais velho

sos problemas, dividir ‘a dor e a delícia de fazer

utilizando um dos maiores grupos de teatro do

que qualquer um dos integrantes do nosso grupo.

teatro’; no fim das contas, percebo que são os

mundo como referência.


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

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EXPERIÊNCIA 2: BREVES REFLEXÕES SOBRE AS BREVES ENTREVISTAS

fez constatar detalhes que antes haviam passado despercebidos.

Depois de um trabalho tão bem-sucedido quanto

O trabalho do Teatro Sarcáustico já fez parte

Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá

da história do Palco Giratório, quando, em 2009,

(vencedor dos Troféus Açorianos de Teatro 2010

integramos sua programação com o premiado A

e Braskem em Cena 2011 de Melhor Espetáculo

Vida Sexual dos Macacos, bem como com parte da

e Direção, dentre outros), o Teatro Sarcáustico

Mostra 5 Anos Teatro Sarcáustico, através de apre-

arriscou alto ao adaptar para a cena os contos

sentações gratuitas de algumas peças do grupo,

do norte-americano David Foster Wallace, Breves

as quais foram assistidas por mais de mil pessoas

Entrevistas com Homens Hediondos. O espetá-

somente no Festival. Àquela época, já constatamos

culo homônimo estreou no Teatro de Arena em

o quanto o Palco ampliou o nosso público e aju-

2011 e apostou em elenco e espaço cênico redu-

dou a divulgar nosso trabalho para outros olhares,

zidos, cuja intensidade do trabalho centrava-se

não tão habituados à “estética sarcáustica”. Acredi-

muito mais nas palavras de Wallace do que na

tamos, tanto eu quanto os outros integrantes do

ação propriamente dita, proposta de concep-

Sarcáustico, que a maior contribuição que o Fes-

ção diametralmente oposta à de Wonderland...

tival trouxe ao Breves Entrevistas... foi novamente

Após uma temporada muito benquista pela crí-

esta rotatividade de público, pois apesar de termos

tica e profissionais da área, Breves Entrevistas...

realizado uma primeira temporada com teatro

foi convidado a realizar sua segunda temporada

quase lotado em todas as apresentações, nossa

inserido na programação do Palco Giratório: fo-

plateia era composta, sobretudo, por artistas ou

ram 12 apresentações com público constante e

espectadores que vêm acompanhando o trabalho

repercussão sempre muito positiva – o que nos

do grupo há alguns anos, sendo fiéis assíduos dos

A Barca, do Grupo Grial de Dança (PE), e Vila Tarsila, da Cia. Druw (SP)


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

20

espetáculos do Sarcáustico. Durante o Palco Gira-

que assistiu ao nosso trabalho e mediou o bate-

tório, pelo contrário, esse público foi muito mais

-papo com o público. Pudemos, por meio das opi-

heterogêneo, com pessoas que vieram assistir à

niões do Valmir e do público presente na conversa

peça graças ao Festival, pelo simples fato de te-

pós-espetáculo, expor nosso processo de trabalho

rem visto nossa sinopse na programação e terem

para, assim, reavaliá-lo. Perguntas como “De que

se interessado pelo trabalho. “Algumas pessoas

modo se deu o processo de voltar a um texto pré-

nem mesmo conheciam o Teatro de Arena, mas

-escrito, mesmo que em forma de conto, já que o

vieram ver o espetáculo, curtiram e aconselharam

grupo se dedica à dramaturgia original há alguns

amigos a assistir também”, comentaram Guada-

anos?”, “Como foi mudar da ‘água para o vinho’

lupe e Rossendo em conversa sobre essa experi-

se pensarmos na transição de Wonderland... para

ência. Posso afirmar, como espectador que vem

o Breves Entrevistas...?” ou “Por que inserir ‘argu-

acompanhando a programação de todos os Pal-

mentos superficiais’ e de escolha do público em

cos Giratórios RS e como artista que participou

obra tão densa quanto o Breves...?” nos obrigaram

desta e de outras edições do Festival, que o públi-

a analisar detalhadamente nossa pesquisa de gru-

co do Palco Giratório vem aumentando ano após

po, para termos bem claro quais são os nossos ob-

ano, principalmente por pessoas que não tem o

jetivos como artistas contemporâneos. Reflexões

costume de ir ao teatro, o que eleva este Festival,

mais do que necessárias para um grupo que pre-

mesmo sendo “jovem”, ao patamar de outros bas-

tende se renovar a cada trabalho, sem perder seus

tante influentes na cidade, como o Porto Verão

princípios e seus ideais. E, por isso, é extremamente

Alegre e o importantíssimo Porto Alegre em Cena.

satisfatório ler a afirmação do Valmir, que declara

Outro grande benefício que o Festival trouxe ao

que “o Teatro Sarcáustico (...) toma para si a auspi-

espetáculo foi a oportunidade de ele ser visto por

ciosa tarefa dos artistas que não fogem ao ques-

pessoas de outros estados, num intercâmbio entre

tionamento permanente, embaralhando crítica e

o nosso grupo e outros artistas brasileiros. Com

autocrítica já desde a sua juventude transviada”.

isso, tivemos um retorno bastante criterioso do

Parece com isso, que estamos seguindo o caminho

Valmir Santos, jornalista e pesquisador de teatro,

que nos propusemos desde algum tempo...


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

21

EXPERIÊNCIA 3: TROCANDO EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS DE OUTROS ESTADOS DO BRASIL

maioria, a necessidade de uma dramaturgia criada

Uma das características do Palco Giratório RS vem

de cada grupo. Inserido nessa característica, posso

sendo a priorização ao que chamamos de “teatro

citar um trabalho que, com certeza, foi o que mais

de grupo”, ou seja, ao trabalho de grupos de teatro

comoveu os gaúchos nessa edição do Palco Girató-

com pesquisa continuada. Vimos nesses sete anos

rio: Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá (SP),

de Festival desde coletivos artísticos absolutamen-

com direção de Nelson Baskerville. Por meio de vá-

te consolidados, como o Teatro da Vertigem (SP), o

rios posts e comentários de colegas no Facebook,

XIX de Teatro (SP) ou o já citado Odin Teatret, por

por exemplo, pude constatar os modos diversos – e

exemplo, até grupos menos conhecidos, mas nem

positivos! – com que este “documentário cênico”

por isso menos competentes. Agora, em 2012, pu-

tocou, sobretudo, os artistas locais. Particularmen-

demos conferir trabalhos extremamente poéticos

te, já havia tido a oportunidade de assisti-lo em

e impactantes de grupos que nunca ou pouquís-

São Paulo e, desde lá, a obra tinha “devastado meu

simas vezes tiveram a chance de se apresentar na

coração”, como costumo comentar com amigos.

capital gaúcha. E, assim, o público de Porto Alegre

Partindo de um pressuposto absolutamente im-

pôde conhecer o que outros artistas brasileiros

pactante – e corajoso! –, Baskerville consegue, não

vêm pensando – e produzindo – sobre o teatro

somente (re)contar sua trajetória familiar de modo

contemporâneo. E, mais do que isso: os porto-ale-

sensível e tocantemente sincero, como também o

grenses puderam compreender que processos e

faz de maneira incrivelmente criativa. Cenas ines-

resultados mais “alternativos” ou “artesanais” não

quecíveis vão surgindo em minha memória: a briga

são características apenas das produções locais...

dos pais na Rural (minha preferida!), os “balões-

especificamente para o espetáculo, na busca de um discurso original que condiga com os ideais

Neste quase um mês de programação inin-

-com-palavras” de Nelsinho, a dublagem grotesca

terrupta, consegui desfrutar de 13 espetáculos

de Gabriela, o discurso Mickey/Minnie de Bolinho,

convidados, além de alguns gaúchos que já havia

o espancamento de Luis Antonio pelo pai (“Nelsi-

visto anteriormente. Noto nestes trabalhos, em sua

nho, meu filho, coloca uma música para o pai...”), dentre tantas outras. As cenas em sua maioria são surpreendentes, emocionais, performáticas, singelas. Invejavelmente maravilhosas! A dramaturgia do espetáculo tem a árdua tarefa de construir uma obra-relato de modo interessante e o faz extremamente bem, recheada de frases e discursos que nos fizeram refletir e nos emocionaram. Se há um comentário desfavorável a ser feito ao espetáculo é a disparidade do elenco: de um lado temos a entrega absoluta de Marcos Felipe e a sinceridade da performance de Verônica Gentilin, enquanto de outro temos atores que por várias vezes parecem teatrais demais, declamados demais, nos distanciando da proposta cênico-performática estabelecida por Baskerville. Mas é um detalhe insignificante diante da potência política que Luis Antonio-Gabriela re-

Petróleo, de Alexandre dal Farra, e Breves Entrevistas com Homens Hediondos, do Teatro Sarcáustico (RS)

presenta para o teatro brasileiro contemporâneo. Outra peça que gerou vários comentários, mas desta vez um tanto quanto polêmicos, foi o


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

22

maravilhosamente prepotente Adeus à carne, de Michel Melamed (RJ). Eu mesmo participei de, pelo menos, umas quatro discussões sobre esta obra, com defensores e detratores dialogando com afinco. Particularmente, são esses os trabalhos que mais me empolgam discutir: aqueles popularmente conhecidos como “ame-o ou deixe-o”, cujo resultado suscita paixões acaloradas. A meu ver, o espetáculo é impactante. E previsível. Questionador. Profundo e superficial. Irônico. Vanguardista e démodé ao mesmo tempo. Déjà vu de Bob Wilson. Despótico e inquietante. São tantos os adjetivos que posso associar a Adeus à carne... Um desfile “despirocado” de uma escola de samba desgovernada, (pre)disposta a atropelar quem estiver passando pela sua frente durante aqueles 80 minutos de passarela. Esta é a sensação alarmante que o espetáculo traz ao público, que assiste atônito à obra. Extremamente pedante, Adeus à carne não pede licença e vai tirando sarro do que puder para criticar o que considera violência no Brasil nos dias de hoje. E o faz muito bem! Os pontos altos são, sem dúvida, a cena em que as mulheres sambam sob cera quente das velas; a brincadeira com as emissoras de TV; o concurso de lágrimas; o samba-feliz permeado pelo tiroteio; a cena do “amor inviável” (casal separado pelas cordas); a narração sussurrada e sarcástica; elenco feminino, que se destaca; e a iluminação maravilhosa! Pontos baixos: o elenco masculino como um todo; o discurso que quer parecer inovador e vanguarda, mas peca por antiquado em vários momentos; a cena-musical da mesa de jantar, a qual parte de uma proposta interessante e pertinente, mas não é muito bem-sucedida em sua execução. Adeus à carne me fez sair do teatro com a sensação de ter visto um bravo espetáculo, feroz e profundamente impressionante – e que me agradou muito!!! – mas que,

Adeus à Carne


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

23

ao mesmo tempo, era “frio e calculista”, com todo o

curso calórico de Jane, totalmente ensanguentada

Além destes, conferimos outras obras incrí-

clichê que esta expressão pode abarcar. De qualquer

– este o momento mais contundente da concepção

veis, como o interessantíssimo Faladores, da Cia.

modo, um espetáculo a ser analisado e discutido por

cênica irônica e descontrolada do diretor Clayton

Mário Nascimento (MG), em sua mistura deliciosa

mais e mais vezes.

Mariano. Não foi à toa que o grupo comentou ser

de dança e teatro, perfeitamente traduzida sobre-

Vila Tarsila e Petróleo foram trabalhos encan-

a cena em que várias pessoas do público começam

tudo no trabalho da atriz-bailarina Rosa Antuña

tadores também, ambos paulistas, cada um por suas

a se retirar do teatro: se alguém até então não ha-

(algumas pessoas da plateia se perguntavam:

qualidades específicas: de um lado, temos um dos

via compreendido a proposta “desconfortável” de

“Meu deus, mas o que essa mulher não faz? Ela

espetáculos infantis mais inventivos e intrigantes

Petróleo, nesta cena entende aonde o diretor e o

canta, dança, interpreta, toca pandeiro...”); e Este

que tive a oportunidade de assistir em muitos anos;

dramaturgo pretendem chegar com sua obra. Em

lado para cima, da Brava Cia. (SP), com seu dis-

de outro, uma das gratas surpresas do Festival, um

suma, um daqueles espetáculos em que se tem

curso por vezes datado e seu elenco vigoroso a

espetáculo que se propõe a ser desagradável e, com

vontade de estar em cena com o elenco, compac-

ocupar a rua de maneira contundente. E, eviden-

isso, agrada em cheio às expectativas da plateia dis-

tuando com uma proposta cênico-dramatúrgica

temente, A Barca, do Grupo Grial de Dança (PE),

posta a uma experiência diferenciada.

absolutamente interessante.

que rendeu um dos momentos mais bonitos e

Cristiane Paoli Quito, diretora de Vila Tarsila,

Outro detalhe bastante interessante de Petró-

inusitados de todo o Festival: em meio a um frio-

é muito bem-sucedida, não somente na propos-

leo é que ele é o resultado de um coletivo formado

zinho tipicamente gaúcho no mês de maio, em

ta educativa do espetáculo, mas também na obra

por artistas de diversos grupos, intitulado Coletivo

pleno turbilhão do centro de Porto Alegre, a pla-

propriamente dita: a cada cena que o trabalho

BLA3M. Segundo eles mesmos se apresentam, “a

teia porto-alegrense se percebeu envolvida pela

propõe aos espectadores, somos surpreendidos

trajetória de cada um desses grupos reflete seus

música, pelas cores, pelos tecidos e pelos corpos

por transposições extremamente interessantes da

artistas. Os grupos citados são de renome inter-

do Cavalo Marinho, aterrissado diretamente de

obra de Tarsila do Amaral para os palcos, com es-

nacional e, dentro do teatro brasileiro, dispensam

Pernambuco. O choque de culturas era tão sur-

pecial destaque para os “Abaporus”, que simples-

apresentações, como Grupo XIX de Teatro, Cia. do

preendentemente emocionante que é impossível

mente mereciam aplausos em cena aberta. A trilha

Latão, Coletivo Estalo, Tablado de Arruar, além do

esquecer os olhos dos transeuntes do centro da

sonora do espetáculo e os bailarinos são eficientes

renomado artista plástico e compositor Eduardo

nossa cidade embevecidos com o que estavam

e contribuem para a ótima evolução do trabalho. A

Climachauska. É justamente na mistura desses ar-

presenciando. Arte pura, singela, engrandece-

belíssima cena dos balões verdes representa o que

tistas que reside uma das riquezas do espetáculo.

dora. Daquelas que se tornam referência e nos

o espetáculo tem de mais singular: ele consegue

Faz parte do próprio conteúdo da peça um certo au-

fazem lembrar o porquê levamos adiante esse

extrair efeitos incríveis de detalhes simples e sutis.

toquestionamento desses coletivos teatrais que se

ofício. Obrigado, Palco Giratório, sinceramente,

Tal e qual a obra de Tarsila.

estabeleceram nas últimas duas décadas na cidade

por esta(s) experiência(s)!

Já Petróleo tem como um de seus grandes

de São Paulo”. Concordo profundamente com este

méritos a dramaturgia mordaz de Alexandre dal

questionamento levantado pelo BLA3M e acredito

Infelizmente, não pude conferir dois espe-

Farra, recheada de humor negro e de uma profun-

que devamos repensar as estruturas de grupos aos

táculos que queria muito ver – Oxigênio, da Cia.

didade salutar aos espetáculos contemporâneos.

quais estamos acostumados nas últimas décadas...

Brasileira de Teatro (PR) e Bait Man, da Cia. dos

Como o petróleo que fervilha sob a terra, os textos

Por que não apostar em trabalhos de coletivos gera-

Atores (RJ), com direção do controverso Gerald

de dal Farra pulsam latentes por trás das atuações

dos por artistas diversos? A ser pensado...

Thomas. Ouvi falar muita coisa sobre eles, críticas

maravilhosas do trio formado por Janaína Leite,

Ode ao progresso, do Odin Teatret, foi uma

Ligia Oliveira e Marina Henrique. Todas demons-

surpresa para mim, já que nunca tinha visto ne-

tram facetas estapafúrdias e, ao mesmo tempo,

nhum espetáculo do grupo ao vivo (e confesso:

totalmente reais de mulheres à beira de um ataque

todos os que já havia assistido em vídeo não me

de nervos (com perdão da comparação infame ao

agradaram nem um pouco...). De estrutura cênica

cultuado filme de Almodóvar). Janaína, sobretudo,

simples, a obra dirigida por Eugenio Barba me con-

destaca-se ao encarnar Loraine, a provável viúva

quistou com seu sarcasmo e humor, ora sutis, ora

de um moribundo que reluta em morrer. Cenas

óbvios. Apesar de diversas reações indignadas na

antológicas transitam pelo palco, como o texto de

saída do teatro, foi um espetáculo que me tocou

Loraine proferido com a melancia, o tiroteio em

pela simplicidade e pelo inesperado humor sendo

que duas das personagens são baleadas e o dis-

utilizado em tema tão clichê.

positivas e negativas de amigos em quem confio muito, mas não posso opinar...

DANIEL COLIN Mestre em Artes Cênicas (PPGAC-UFRGS) e Bacharel em Interpretação Teatral (DAD-UFRGS), com larga experiência no teatro profissional porto-alegrense. Dentre seus espetáculos mais importantes estão “Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá”, “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, “Jogo da Memória”, “IntenCIDADE 1ª: VOAR” e “GORDOS ou somewhere beyond the sea”. Daniel Colin atualmente é um dos artistas mais premiados em Porto Alegre, tendo recebido vários Troféus Tibicuera de Teatro Infantil, Açorianos de Teatro, Braskem em Cena e RBS Cultura.


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

24

ESPAÇO PARA CONSOLIDAR grupos jovens Teatro de rua do

Com a proposta de abordar a diversidade e apre-

lhaço, pelo seu caráter transgressivo, e o espaço

Rio Grande do Sul é

sentar o que é produzido nas diversas regiões do

da rua como possibilidade de desestabilização da

Brasil, demonstrar processos de trabalho de gran-

relação ator-público e dos padrões de compor-

representado no

des expoentes do teatro mundial, diferentes lin-

tamento da cidade, considera a participação no

7º Festival Palco

guagens, enfim, absorver e refletir sobre as artes

festival, um coroamento do seu trabalho.

Giratório por coletivos

cênicas, o Festival Palco Giratório promove uma

Para o ator Daniel Lucas, a experiência de

ruptura com o lugar-comum de que o bom sempre

participar de um festival do porte do Palco Gi-

vem de fora e abre espaço para coletivos gaúchos,

ratório é extremamente enriquecedora. “Pela

consagrados ou não, da capital ou do interior. Na

visibilidade, uma oportunidade de termos novos

7ª edição, pelo menos três grupos – Teatro do Clã,

olhares sobre nosso fazer artístico, e contatos

Teatro VagaMundo e Grupo Mototóti – que já cir-

realizados com outros grupos e artistas do país,

cularam com seus espetáculos de rua por todo o

acaba se tornando um detonador de novas pos-

Estado pelos projetos Rio Grande no Palco ou Tea-

sibilidades para o VagaMundo”, afirma. O grupo

tro a Mil, tiveram a oportunidade de participar des-

acredita que a mescla de linguagens, espaços

te grande evento, com apresentações em tradicio-

distintos, países e estados diferentes e atividades

nais parques e praças, além de escolas da cidade.

complementares, tudo desenhado para promover

que já se apresentam por projetos do Sesc em cidades do interior

O Teatro VagaMundo, criado em 2008 por

trocas culturais, é muito acertada. “Ao convidar

Gabriela Amado e Daniel Lucas como um centro

grupos consagrados, grandes nomes do teatro, ao

de investigação da arte do ator, desde a monta-

lado de grupos jovens, de muitas regiões do país,

gem de seu primeiro espetáculo, La Perseguida,

tornando-se um panorama do que está sendo re-

contou com o apoio do Sesc, por meio da Unidade

alizado em teatro hoje, o Sesc mostra que está

Operacional de Santa Maria, que cedeu o espaço

interessado no todo, na diversidade, e cada um

para os ensaios. O grupo que busca agregar ao

de nós se sente uma peça-chave deste processo”,

entendimento do trabalho do ator a figura do pa-

explica Daniel Lucas. Segundo ele, com todas as


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

25

ações de fomento às artes, a instituição está mu-

espetáculos em cartaz no Rio Grande do Sul e no

Sul, além de Mato Grosso do Sul, a atriz Fernan-

dando a cara da cultura no Brasil.

país, além de expoentes mundiais das artes cêni-

da Bepler, do Grupo Mototóti, conta que as duas

O grupo Teatro do Clã, da cidade de Mon-

cas como Eugênio Barba e demais integrantes do

apresentações de I-Mundo realizadas no Parque da

tenegro, mais do que uma oportunidade de de-

Odin Teatret, que nos brindaram com duas belís-

Redenção durante o Festival Palco Giratório fica-

senvolvimento do coletivo, vislumbrou no festival

simas apresentações que dificilmente teríamos a

rão na memória do grupo pela interação com um

uma possibilidade de enriquecimento cultural de

chance de assistir. O Palco Giratório nos propiciou

grande e heterogêneo público. Para ela, com apre-

seus alunos do projeto Teatro Educação, trazidos

ainda diversas formas de intercâmbios, oficinas,

sentações de teatro de rua durante todos os fins

para assistir a alguns espetáculos. “A experiência

debates e palestras.”

de semana do festival, o Sesc dá exemplo a muitos

do Palco Giratório proporcionou a eles momentos

Quanto às quatro apresentações de O Rei

eventos que não têm essa prática de comprome-

de comoção, encantamento e motivação”, ressal-

Cego, o diretor admite que ainda reverberam dis-

timento com a acessibilidade aos bens culturais e

ta o diretor Cassiano de Azeredo. Mas não foram

cussões dentro do grupo. “A apresentação no Par-

com a formação de plateia.

apenas os alunos que aproveitaram a chance de

que da Redenção, num domingo, foi a realização

Fernanda salienta também a oportunidade

acompanhar o festival, como revela Cassiano:

de um sonho. Pode parecer pequeno, mas muitas

que os artistas têm de assistir à diversidade de tra-

“Estivemos em contato com alguns dos melhores

foram as vezes em que fomos lá assistir a espetá-

balhos, além das atividades formativas de elevado

culos e pela primeira vez fomos nós que apresen-

nível com profissionais de extrema relevância no

tamos um trabalho neste lugar tão democrático –

cenário das artes cênicas. “Para nós, que desfruta-

foi um momento muito bacana que deixou todo o

mos deste universo de possibilidades, é como um

grupo emocionado”, reconhece Cassiano. O artista

cardápio em que nos alimentamos e com o qual

também destaca as duas apresentações na Escola

nutrimos nossa musculatura criativa, a da imagi-

Grande Oriente, na periferia de Porto Alegre, pelo

nação. Assim, quando o festival ‘vai embora’, não

fato de os alunos não terem a oportunidade de as-

deixa a cidade, mas se mantém vivo em cada um, e

sistir teatro com frequência.

em cada nova obra que encontra o público, cum-

Grupos Mototóti, Teatro VagaMundo e Teatro do Clã exibiram seus espetáculos em parques e escolas da Capital Fotos: Claudio Etges

Apesar de já ter circulado por projetos do Sesc nos últimos cinco anos pelos estados da Região

pre com os ciclos de vida durante o ano todo.”



PRIMEIRO SEMESTRE

2012

27

#08

O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc – Cultura por toda parte. Sua edição desempenha um papel fundamental na difusão de conhecimento. Nas páginas que seguem, apresentamos um artigo repleto de depoimentos sobre os inúmeros encontros do Odin Teatret com artistas de Porto Alegre ao longo de 25 anos, além de um quadro completo sobre a passagem do grupo pelo 7º Festival Palco Giratório, realizado em maio.

Por Patricia Furtado de Mendonça atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais

Odin Teatret e Porto Alegre histórias, influências e reflexões sobre o fazer teatral 1987-2012

Fotos: Claudio Etges


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

28

1  As entrevistas filmadas foram feitas por mim com Irion Nolasco e Alexandre Vargas em maio de 2012, durante o 7º Palco Giratório. Os outros depoimentos me foram enviados por email por todos os outros artistas e estudiosos acima citados, entre maio e junho de 2012.

Premissa

sentido do teatro (e do “teatro de grupo”) hoje, em

Primeiros contatos

É possível narrar uma história sem ser parcial?

Porto Alegre e no mundo.

O Odin Teatret, grupo dinamarquês fundado por

Acho que não. Por isso, na tentativa de ser o mais

Insisto: meu objetivo aqui não é fazer análises

Eugenio Barba em 1964, após ter percorrido

imparcial possível, tento aqui dar voz a diferentes

ou críticas, mas simplesmente costurar memórias.

diversos países europeus e latino-americanos,

estudiosos e artistas do Rio Grande do Sul, mais

São apenas os tijolos de base.

chega ao Brasil pela primeira vez em 1978, quando

especificamente de Porto Alegre, que ao longo

Agradeço profundamente a disponibilidade e

os atores Roberta Carreri e Francis Pardeilhan

desses 25 anos encontram o Odin Teatret em

a generosidade de todos os que estão aqui comigo

passam dois meses em Salvador estudando

diferentes geografias, no Brasil e no exterior.

para “contar essa história”, escondidos ou revelados

capoeira e dança dos orixás: preparam-se para o espetáculo O Milhão.

Os territórios, por si só, não determinam a

nestas entrelaçadas linhas: Irion Nolasco, Maria

História, nem as histórias. Digo isso porque a relação

Lúcia Raymundo (in memorian), Nair D’Agostini,

Em 1987, Barba vem duas vezes ao Brasil em

entre o Odin Teatret e Porto Alegre é toda feita de

Jezebel de Carli, Tatiana Cardoso, Gilberto Icle,

turnê. Da primeira vez, entre maio e junho, passa

atravessamentos, de viagens. É puro movimento.

Alexandre Vargas, Jane Schöninger, Lucas Sampaio

por Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Profes-

Uma história que vai se construindo sobretudo

e Álvaro Rosa Costa. Ao fim deste artigo, também

sores e artistas do Rio Grande do Sul partem para

fora dos próprios confins: uma professora que vai

encontraremos uma carta-depoimento de Priscila

o Sudeste para seguir as atividades do Nordisk

encontrar o grupo em São Paulo, outros professores

Duarte, que não é de Porto Alegre, mas participou

Teaterlaboratorium. Nair D’Agostini, que na época

e alunos que os seguem no Rio, artistas que partem

da residência artística com o Odin no último Palco

era professora da Universidade Federal de San-

para Londrina ou Holstebro. Muita gente foi ao

Giratório da cidade. Um destaque especial vai para

ta Maria (UFSM), participa das atividades de São

encontro do Odin fora de casa, mas para depois

a contribuição da atriz do Odin Julia Varley, que nos

Paulo e Campinas: segue um workshop com o ator

voltar e compartilhar conhecimentos, saber. Para

presenteia com uma lúcida reflexão sobre os desafios

Richard Fowler e um curso sobre a Antropologia

transmitir. E é assim que tem início a história entre

encontrados pelo jovem de hoje para adquirir as

Teatral conduzido por Barba, além de assistir aos

o Odin e Porto Alegre – “fora de casa” – até que

ferramentas necessárias ao ofício do ator, para fazer

espetáculos Matrimônio com Deus, com César Brie

fossem criadas as condições para receber o grupo

teatro e para manter-se em um grupo.

e Iben Nagel Rasmussen, e Esperando o Amanhe-

na cidade e assim multiplicar a possibilidade dos

Participei, a convite do Odin Teatret e do

encontros. Afinal, “encontros” e “reencontros” não

Sesc/RS, deste 7º Palco Giratório de Porto Alegre.

estão entre as maiores alegrias que o mundo do

Foi ali que tive a oportunidade de conhecer pes-

teatro pode nos proporcionar?

soalmente quase todas as pessoas citadas acima.

Tentarei aqui alinhavar vivências, opiniões,

As informações contidas neste texto foram-me

influências e sentimentos plurais com relação ao

fornecidas, em sua maioria, através de entrevistas

Odin, buscando restituir, a quem lerá o texto até

filmadas e inúmeras trocas de e-mails[1].

o fim, um pouco do que me foi contado até agora.

Fica aberto o espaço para futuras contribui-

E, o que é mais importante, considerando que a

ções e discussões. Para novos encontros, e reen-

junção destes vários fatos e lembranças tem o

contros. Para novas histórias, influências e refle-

poder de despertar como reflexão sobre o valor e o

xões sobre o fazer teatral.

cer, com R. Fowler.


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

29

2 Richard Fowler, Ulrik Skeel, Lena Bjerregård e César Brie (Iben Nagel Rasmussen não pôde participar das atividades do Rio de Janeiro, pois estava com hepatite).

trabalho do ator, a qual era orientada

que conduziria, no Rio, um seminário para direto-

pelos professores Irion Nolasco e Maria

res, em outubro de 1987 ele faz as malas e volta

Lúcia Raymundo. Barba estava desem-

à cidade, buscando uma maior aproximação com

barcando no Brasil e, segundo Irion, era

o criador da Antropologia Teatral. De Porto Alegre

preciso que fôssemos ao seu encontro,

também parte Maria Helena Lopes, fundadora do

pois sua pedagogia seria fundamental.

grupo TEAR e que também foi professora do DAD

Naquela época, eu havia estabelecido

da UFGRS. Os dois participam deste seminário

com Irion e Maria Lúcia uma relação

histórico, frequentado não só por diretores, mas

de mestre e discípulo e, como um bom

também por atores e críticos teatrais de vários

aprendiz, aceitei a indicação sem ques-

estados do Brasil. O seminário desperta opiniões

tionar, pois acreditava que um mestre

muito contraditórias, como nos conta Irion:

vem a você com um barco e lhe diz,

Logo em seguida, outros estudiosos e artis-

“Vem! Se deseja ir para a Costa Doura-

Sim, foi um momento muito crítico. [...]

tas de Porto Alegre partem para o Rio de Janeiro

da, eu o levarei. Além disto, uma vez no

Eu me comovo com o Barba. Ele proce-

com vontade de saber mais sobre o Odin. A inicia-

meu barco, você poderá cantar, dançar

deu de uma maneira que só poderia ser

tiva foi de Irion Nolasco e Maria Lúcia Raymundo,

e até dormir, mas eu o levarei à meta

de um mestre, só poderia ser dele. Lá

sua esposa, ambos professores do Departamento

em segurança”. Bárbaro!!!! Vamos nos

estavam vários astros de TV, artistas do

de Arte Dramática (DAD) da Universidade Federal

inscrever nas oficinas. É claro que não

Rio que já trabalhavam há anos dentro

do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eles estimulam

fomos selecionados, pois éramos, tal-

daquele mesmo “esquemão” e com uma

seus alunos a partirem com eles para o Rio. Lá,

vez muito jovens, inexperientes e ainda

modéstia mínima. Eles chegavam, abriam

assistem ao espetáculo Esperando o Amanhecer

imaturos. Mas, mesmo assim, fomos, de

a porta e iam entrando. Então, um dia,

e seguem a Parada de Rua com alguns dos atores

ônibus, rumo ao Rio de Janeiro, em busca

o Barba disse: “Não, não é assim. Vocês

do Nordisk Teaterlaboratorium[2]. Jezebel de Carli

de algo. Sim, encontramos algo, muito

não podem ir chegando. Sabem que exis-

– atriz, professora e diretora da Santa Estação Cia.

maior do que a nossa expectativa pudes-

te um horário de chegada. Então vocês

de Teatro –, que faz parte da caravana, em um

se supor. O encontro com a tradição do

têm que obedecer a este horário”. Foi uma

texto intitulado Contaminação Sorrateira: Encon-

Odin foi como um presente que como-

revolta geral. [...] Criticavam a firmeza, a

tros com o Odin, nos conta:

veu a alma e provocou um pensamento.

exigência e a disciplina. Muitas daquelas

Assim, pensei: é dessa forma que quero

pessoas não se davam bem com isso, não

Era o ano de 1987. Eu era uma jovem es-

fazer teatro!!!! Com ética, treinamento,

sabiam como fazer. Porque no teatro bra-

tudante de teatro. Tinha vinte e poucos

coragem, entrega, disciplina, pelo corpo,

sileiro, você sabe, parece que você nasceu

anos e uma vontade imensa de mudar,

com continuidade, curiosidade, perseve-

ungido por alguma entidade, e aí isso te

mover. Acreditava no teatro como uma

rança e apaixonamento.

dá o dom do teatro. E não é isso. É um

possibilidade de transformação. Estava

trabalho como outro qualquer, um traba-

nesse ano envolvida com uma pesquisa

Para Irion, essa ida ao Rio não basta. Saben-

sobre as energias corporais e vocais do

do que Barba voltaria ao Brasil meses depois e

lho de anos e anos. Você pode constatar isso vendo os atores do Odin.


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

30

3 Barba, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes, Ed. Hucitec, São Paulo, 1991. Tradução: Luis Otávio Burnier.

Mas para mim foi uma coisa espetacu-

ambiente propício para a pesquisa da

Holstebro e ali permanecem em imersão durante

lar, foi maravilhoso. [...] Esse workshop

linguagem e a formação do ator. Assim,

cerca de 10 dias, assistindo a todos os espetácu-

no Rio de Janeiro foi a experiência mais

alguns grupos e artistas da cena gaúcha

los do grupo e participando de várias outras ati-

marcante da minha vida.

se interessaram pelo trabalho do Odin

vidades. Irion recorda:

a partir da sua primeira visita ao Bra-

Podemos afirmar que é a partir desses en-

sil, em 1987. Mas foi a década de 1990

Fiquei maravilhado, com tão pouco fa-

contros de 1987 que os princípios da Antropo-

que tornou a influência uma parceria.

zer tanto. Era mais que uma ousadia.

logia Teatral de Barba começam a entranhar re-

Nesses anos, alguns de nós trabalhamos

(...) Quando vi Casamento com Deus, me

almente nos departamentos de teatro da UFRGS

intensamente com o grupo dinamarquês

emocionei demais. (...) E claro, o trabalho

e da UFSM, assim como em núcleos de pesqui-

e assistimos a muitos de seus trabalhos.

deles, extraordinário, inesquecível. Ainda

sa locais sobre o trabalho do ator. Um dos mais

Escreveu-se e trabalhou-se a partir das

mais ao vivo e a cores. Porque se você vir

representativos é o núcleo dirigido pelo próprio

ideias da Antropologia Teatral. Eu diria

no vídeo, não causa este impacto. Há um

Irion e por Maria Lúcia: As Energias Corporais no

que a principal influência tenha sido uma

distanciamento. E ali não, eles vinham

Treinamento do Ator – citado por Jezebel ante-

certa ética do trabalho grupal que tem na

perto de você. Também vi a Roberta com

riormente – que além de trazer os ensinamentos

palavra "pesquisa" um catalisador. O tea-

Judith, outro arraso. Era tudo um arraso,

de Arthur Lessac, também trata dos princípios da

tro em Porto Alegre notadamente mudou

eu dizia: meu deus do céu, o que é isso?

Antropologia Teatral. Deste núcleo, também vem

de cara nos últimos 20 anos e aquilo que

a fazer parte a atriz Tatiana Cardoso, hoje tam-

era exótico e estranho – o treinamento, a

No mesmo ano, Tatiana Cardoso segue para

bém professora da UERGS.

investigação – passou a ser moeda cor-

Londrina – cidade para onde o Odin retorna inú-

Quem nos oferece uma leitura específica so-

rente e sinônimo de qualidade artística.

meras vezes – e participa da Mostra Odin Teatret,

bre o interesse pelo Odin e pela Antropologia Tea-

Essa forma de organização do trabalho,

organizada por Nitis Jacon por meio do FILO (Fes-

tral em Porto Alegre, no meio acadêmico e artístico

com ênfase no processo e na formação

tival Internacional de Teatro de Londrina). Ainda

daqueles anos, é Gilberto Icle, criador da UTA (Usi-

do ator, tem, sem dúvida, um atravessa-

em 1991, é publicado o primeiro livro de Barba

na do Trabalho do Ator) e hoje professor da UFRGS:

mento do trabalho pedagógico do Odin,

no Brasil, Além das Ilhas Flutuantes [3], com tra-

seja pelo trabalho direto com o grupo,

dução de Luis Otávio Burnier (1956-1995), ator e

O teatro de Porto Alegre foi bastante

seja via o trabalho de Luiz Otávio Burnier

fundador do LUME, grupo teatral que há alguns

sensível ao trabalho de Eugenio Barba,

e do LUME de Campinas.

anos mantinha uma relação muito estreita com o Odin e que, por sua vez, sempre teve uma for-

pois a cidade tem uma tradição de teatro de grupo que remonta à década de

Início dos Anos 90

te proximidade com inúmeros grupos teatrais de

1950. Além disso, as universidades que

Nos anos 1990, de fato, diferentes artistas e es-

Porto Alegre, sobretudo através de seminários e

ofereciam formação teatral no Estado

tudiosos do Rio Grande do Sul têm a oportunida-

oficinas – como já nos disse Gilberto Icle.

do RS sempre potencializaram a ideia

de de se aproximar ainda mais do Odin Teatret.

Em maio de 1993, Gilberto assiste ao espe-

de teatro laboratório, ou seja, há um

Em 1991, incansáveis, Irion e Maria Lúcia vão até

táculo Kaosmos e a outras demonstrações de tra-


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

31

balho do Odin em Córdoba, na Argentina. Alguns

físico pela manhã. Foi uma experiência

ção da ISTA de Londrina. Com isso, montam um

meses antes, em janeiro, Tatiana Cardoso e Maria

riquíssima, profunda, radical. Sempre que

seminário “pós-ISTA” que tem desdobramentos

Helena Lopes participam de um seminário de três

tenho que escrever ou refletir sobre esse

na UFRGS e na UFSM. Chama-se Seminário In-

semanas conduzido por Iben Nagel Rasmussen

tipo de processo, me vem em mente que

ternacional Teatro em Fim de Milênio e conta

em Londrina, que culmina com a apresentação do

é através do teatro que a vida me coloca

com a presença de alguns artistas e intelectuais,

espetáculo Pontes sobre o Vento. Tatiana nos conta:

melhor diante de mim mesma. É nestas

inclusive aqueles do staff científico da ISTA: Pa-

ocasiões, quando treino, mergulho e pra-

trice Pavis, Jean Marie Pradier, Nicola Savarese,

Coreografia para atores e bailarinos in-

tico a arte que amo, que minha integri-

Franco Ruffini, Ian Watson e Rafael Mandressi,

teressados em trabalho de voz. Este era

dade física, psicológica, mental, crítica

além da dançarina indiana Sanjukta Panigrahi

o título do seminário que Iben realizou

diante do mundo e dos outros é exerci-

(1944-1997) e sua orquestra. Eles conduzem

através do FILO, em 1993. Um seminário

tada, lapidada, transformada. Naquele

palestras e espetáculos em Porto Alegre, lo-

em regime de imersão na chácara São

seminário, me sentia viva como nunca,

tando o teatro com cerca de 300 pessoas. Para

José com muito verde, silêncio e uma pis-

desperta, consciente que minha tarefa

Santa Maria, seguem Jean Marie Pradier, Franco

cina bem oportuna. Eu havia conhecido o

era um tesouro, algo sagrado.

Ruffini e Sanjukta Panigrahi, que ali apresenta

trabalho do Odin em 1991 e tinha ficado

dois espetáculos. Vários alunos da UFSM acom-

particularmente tocada pelo trabalho de

No ano seguinte, em 1994, sempre em Lon-

panham as apresentações nas duas cidades.

Iben. Era um período em que estava bus-

drina, Nitis Jacon organiza a 8ª sessão da ISTA

Com relação ao impacto daquelas palestras e da

cando cursos de aperfeiçoamento, e esta

(International School of Theatre Anthropology),

apresentação de Sanjukta em Santa Maria, Nair

proposta, naquela época, já apresentava

“aldeia teatral” fundada em 1979, onde atores e

D’Agostini comenta:

um atravessamento de técnicas que acre-

dançarinos de diversas culturas – Oriente e Oci-

ditava serem fundamentais para o artista:

dente– encontram estudiosos para investigar,

No Curso de Artes Cênicas da UFSM,

um ator que dança, um bailarino que can-

confrontar e aprimorar os fundamentos técnicos

alguns professores já trabalhavam em

ta, ou seja, artistas empenhados em olhar

de sua presença cênica. Dela participam diversos

aula os princípios e algumas técnicas

para si mesmos, em treinar seu ofício além

artistas e estudiosos de Porto Alegre: Tatiana Car-

da Antropologia Teatral, tanto na in-

do que previamente já está estabelecido.

doso, Irion Nolasco, Maria Lúcia Raymundo, Nair

vestigação prática quanto na teoria.

Tive certeza de que seria uma ótima ex-

D’Agostini, Paulo Maurício Guzinski e Alice Padi-

Havia projetos de investigação científica

periência para mim e foi muito mais que

lha Guimarães, que hoje faz parte do grupo Teatro

e artística a partir da cultura gaúcha –

isso. Me inscrevi no seminário a convite

de los Andes, sediado em Sucre, na Bolívia, e fun-

financiados pelo CNPQ, pela FAPERGS

de Carlos Simioni, que já trabalhava com a

dado em 1991 por César Brie, ator que integrou

e outros órgãos financiadores da uni-

Iben na época. Fui selecionada através de

o Nordisk Teaterlaboratorium entre 1980 e 1990.

versidade – em que eram utilizados os

Irion Nolasco e Nair D’Agostini conseguem,

conceitos e princípios da Antropologia

Eram mais ou menos 10 horas diárias de

por meio de suas universidades e da Secretaria

Teatral. Os conteúdos sobre o Odin, Bar-

trabalho, com um intenso treinamento

do Estado, um apoio econômico para a realiza-

ba e a Antropologia Teatral eram desen-

carta de intenção e currículo. [...]


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

32

volvidos na disciplina “Ética e Estética”,

projeto, sobretudo porque o espectador

era só teórico. Depois dos encontros de

em que, além de material bibliográfico,

gaúcho não conhecia os espetáculos do

1994 e 1995, a tradição do Odin ficou

os alunos tinham acesso a vídeos de de-

Odin, e considerávamos que, além da

bem mais conhecida aqui. As pessoas já

monstrações técnicas de atores do Odin

oportunidade de poder fruir de sua ino-

usavam termos do Odin, falavam em sats,

e espetáculos. O curso também tinha um

vadora estética, também o espetáculo, as

coisas assim.

intercâmbio intenso com o LUME e pro-

demonstrações técnicas, a oficina e as

movia oficinas e espetáculos. Portanto, já

conferências trariam um aporte impor-

Em relação ao impacto causado pela presen-

havia uma certa familiaridade com esse

tante aos profissionais de teatro, como

ça e pelas atividades de Barba e Julia Varley, as-

conhecimento e tradição.

também para a pedagogia teatral. Essa

sim como em relação à influência dos estudos da

Quanto ao impacto produzido pelos es-

parceria nos levou a organizar e concre-

Antropologia Teatral sobre grupos gaúchos, Nair

petáculos de Sanjukta, foi algo inimagi-

tizar outros importantes projetos, que, de

D’Agostini afirma:

nável, sobretudo no Caixa Preta, Teatro

certa forma, estavam interligados e fo-

do Centro de Artes e Letras da UFSM. Ali,

ram frutos do contato com a Antropolo-

É bastante difícil ter uma ideia precisa

alunos e professores puderam vivenciar,

gia Teatral, como o curso "Poética e Gra-

sobre uma experiência estética, já que

além da magia da dança Odissi, a eficá-

mática do Mimo Corpóreo", ministrado

é muito subjetiva. Mas pelo que pude

cia expressiva de seus princípios para a

por Thomas Leabhart, do Pomona College

perceber, foi despertado interesse pela

arte do ator. Um espectador não ligado às

University of Califórnia – USA, realizado

Antropologia Teatral nos profissionais de

artes cênicas fez o seguinte comentário:

na UFSM e na UFRGS, ainda em 1995.

teatro mais inquietos e sempre ávidos de novos conhecimentos e aquisições técni-

“Saíam raios luminosos de seus pés, tão intensa era a energia que ela emanava”.

Foram apenas três dias de evento em Porto

cas e artísticas. Muitos grupos iniciaram

Alegre: 6, 7 e 8 de dezembro. Mas a programação

uma investigação prática, no sentido de

1995: Eugenio Barba e Julia Varley chegam a Porto Alegre

foi intensa e, mais uma vez, lotou todos os espaços

se aproximarem dessa tendência estética.

que acolheram as atividades do Odin Teatret: Casa

Quanto aos meus alunos, foi uma experi-

As sementes lançadas no seminário Teatro em

de Cultura Mario Quintana, Teatro Carlos Carvalho

ência forte em que os mais afoitos e im-

Fim de Milênio começam a criar raízes. É preciso

e Salão de Atos, onde Julia Varley apresentou seu

buídos de força de vontade foram leva-

adubar a terra. Irion, Maria Lúcia e Nair reúnem

espetáculo solo O Castelo de Holstebro e suas de-

dos a organizar e realizar treinos intensos

forças mais uma vez e conseguem organizar

monstrações de trabalho O Irmão Morto e O Eco do

e sistemáticos sobre o corpo e, também,

outro encontro: em 1995, Eugenio Barba e Julia

Silêncio. Eugenio Barba conduziu uma palestra e,

pesquisas de ações e aprimoramento de

Varley chegam pela primeira vez a Porto Alegre.

junto de Julia Varley, um seminário para estudan-

partituras de ações que os tornassem efi-

Sobre este projeto, nos conta Nair D’Agostini:

tes e artistas. Lembra Irion Nolasco:

cazes na pré-expressividade exigida por essa forma de linguagem expressiva. Na

Irion e Maria Lúcia tinham sido professo-

A palestra de Barba aqui, em 1995, des-

minha avaliação, houve, nessa nova ten-

res do Curso de Artes Cênicas da UFSM,

pertou uma tremenda curiosidade da-

dência estética (se assim podemos nos

e o projeto Teatro em Fim de Milênio

queles que falavam sem conhecer. Eles

referir), produções artísticas inovadoras

foi uma continuidade da parceria entre

encheram o plenário da universidade,

e com qualidade técnica, mas também

UFSM e UFRGS para a vinda do Potlach,

o “Plenarinho”. Veio gente que nunca

muitas produções que não alcançaram

da Itália, para Porto Alegre e Santa Maria,

imaginei que viria. Estavam todos lá,

o nível artístico e técnico desejável, pró-

com espetáculos, parada de rua, oficinas,

impactados. O seminário foi histórico.

prio da imaturidade artística e da falta de

apresentações técnicas e conferência.

Era aberto para todos os que quisessem

aprimoramento técnico.

Dessa forma, Teatro em Fim de Milênio

participar. Havia não só alunos e gen-

(...)

foi uma produção, coordenação e orga-

te de teatro, mas, inclusive, professores

Sei de grupos que tiveram uma for-

nização conjunta, sendo que o sucesso

de Letras. E a abertura foi tal que até

te influência e se orientaram em suas

e o resultado desse evento, assim como

as pessoas que falavam mal estavam lá

experimentações teatrais a partir dos

dos precedentes, nos levou a dar con-

também. Isso foi muito legal. Devia haver

princípios da Antropologia Teatral. Pos-

tinuidade e unir forças para esse novo

umas 200 pessoas no seminário, já que

so citar, em Porto Alegre, o grupo Usi-


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

4 Barba, Eugenio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Publicado pela primeira vez em 1994 pela Ed. Hucitec, de São Paulo, com tradução de Patricia Braga Alves. O livro foi reeditado em 2009, com a mesma tradução, pelo Teatro CaleidoscópioEditora Dulcina, de Brasília. 5 Barba, Eugenio e Savarese, Nicola, A Arte Secreta do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral, publicado em 1995, pela Editora Hucitec, São Paulo, com Tradução dos integrantes do LUME Teatro. Uma nova edição sairá em dezembro de 2012, pela Editora É Realizações, São Paulo, com tradução de Patricia Furtado de Mendonça.

33

na do Trabalho do Ator (UTA). Também

impressionou bastante. E também me

que haja um distanciamento ou uma falta de

cito o trabalho de Tatiana Cardoso, de

estimulava na minha preparação. Então,

comunicação entre o grupo dinamarquês e os

Jezebel de Carli e a pesquisa sobre o ator

eu passava a ter uma referência que eu

artistas e estudiosos da capital do Rio Grande

de Irion Nolasco. Cito também a tese de

não tinha. (...)

do Sul. Isso pode ser constatado pelas inúmeras

Inês Marocco sobre a espetacularidade

Na época, já existia muito fortemente a

viagens de gente de teatro local para outros

da cultura gaúcha. (...)

antropologia aqui em Porto Alegre atra-

estados ou países. Além disso, a busca de contato

No curso de Artes Cênicas da UFSM, fo-

vés dos discursos e das práticas. Duas

com a tradição do Odin também é facilitada pela

ram geradas inúmeras pesquisas práti-

pessoas fundamentais, Irion Nolasco e

publicação dos livros de Barba em português,

cas e teóricas a partir dos princípios da

Maria Lúcia Raymundo, faziam um traba-

pois eles se tornam referência fundamental para

Antropologia Teatral. Hoje, acredito ser

lho sensacional e nos passavam bastante

inúmeras teses nacionais de graduação e pós-

difícil ignorar, quer nas investigações

coisa do trabalho da Antropologia Tea-

graduação em Dança e em Artes Cênicas.

teóricas quer nas práticas, os princípios

tral. Mas, por outro lado, chegava uma

Em 1995, é publicado o livro A Arte Secreta

da Antropologia Teatral revelados por

disciplina, quase que uma onda de dis-

do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral

Barba. Seu aporte teórico e artístico já se

ciplina extremamente grande que você

, de Barba e Savarese. Este livro, junto de A Ca-

constitui uma tradição das mais signifi-

tinha que ter com o trabalho, que era

noa de Papel e Além das Ilhas Flutuantes, vai

cativas de nossos tempos e tornou-se um

muito dura. E isso gerava trabalhos mui-

nutrindo o estudo de vários artistas e estudan-

referencial de suma importância para as

to frios, mecânicos. Então tinha aquele

tes de Porto Alegre, muitos dos quais alunos de

investigações teóricas, práticas, artísticas

viés de um trabalho que era demandado

Irion, Maria Lúcia e Nair D’Agostini, e também

e pedagógicas atuais.

dessa forma, e quando você via o resul-

de outros professores que, apesar de não terem

tado artístico era de uma frieza que, e eu

tido um contato mais estreito com o Odin, são

É em 1995, durante estes encontros, que

intuía que... mas não pode ser isso, não

igualmente influenciados pelo pensamento e

Alexandre Vargas – ator, diretor, fundador do

deve ser isso. O grande impacto que fica

pela cultura de Barba e seu grupo.

Falos & Stercus e organizador do Festival de

é o desmoronamento de quem já traba-

Entre 7 e 18 de agosto de 1995, a convite

Teatro de Rua de Porto Alegre – também entra

lhava com isso, tem o contato com o Eu-

da EITALC (Escuela Internacional de Teatro de

em contato direto com o Odin, grupo do qual

genio e percebe que não era aquilo que

América Latina y el Caribe), Gilberto Icle per-

ouve falar pela primeira vez em 1992, quando

ele vinha fazendo. E quando você ouve o

manece na sede do Odin, em Holstebro, e par-

Luis Otávio Burnier e Carlos Simioni fazem uma

Eugenio dizer: “Não é nada disso”... Isso

ticipa do encontro Trabalhando e Convivendo

turnê em Porto Alegre. Curioso e interessado

foi importante demais.

com o Odin Teatret. Ali, ele tem a possibilidade

pelo que lhe contam, Alexandre vai buscar mais informações sobre a cultura do Odin nos livros de Barba, no Além das Ilhas Flutuantes e no Canoa

de assistir a uma série de espetáculos, demonsTatiana Cardoso também nos fala sobre este encontro de 1995:

de Papel[4]. Mas o impacto de estar frente a frente com Barba é ainda maior. Ele lembra:

trações e vídeos do grupo. Com relação aos reflexos da cultura do Odin e da Antropologia Teatral[5] sobre seu grupo, a Usina do Trabalho

Recordo que, para mim e meus colegas

do Ator (UTA), e sobre sua visão relativa ao fa-

da área, na época, era um acontecimen-

zer teatral, Icle afirma:

Eu gostava demais da postura do Barba,

to poder estar ouvindo os ensinamentos

de alguém que tem um espaço no teatro.

de Barba. E lembro especialmente a de-

São tantos reflexos que eu não saberia

Ele chegava aqui falando, e tinha uma

dicação do Irion para que a organização

enumerá-los. A UTA trabalhava, nos pri-

postura de defender este espaço. Não es-

ocorresse de forma impecável, sempre a

meiros anos, a partir de boa parte dos

tava pedindo licença. E isso contrastava

contento de Eugenio e Julia.

exercícios do Odin, seja aprendidos dos

com o comportamento de pedir licença

próprios atores, seja legados via LUME.

Entre 1995 e 2010: amadurecendo o aprendizado

A organização e a forma de trabalho,

do. É uma convicção na postura, no dizer, e ao mesmo tempo um cara muito bem

Um hiato de 15 anos vem a separar fisicamente

montagens, eram bastante inspiradas

preparado para falar de seu argumento,

o Odin de Porto Alegre, já que, depois de 1995, só

nos procedimentos tomados do grupo.

na construção de seu discurso. Isso me

voltarão à cidade em 2010. Mas isso não significa

Só muitos anos depois que conseguimos

no meio teatral que eu estava acostuma-

tanto no treinamento diário quanto nas


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

34

6 Exercício no qual se praticava a “resistência”, mas assim chamado porque era feito com o auxílio de faixas que, casualmente, tinham a cor verde.

transformar esses exercícios e criarmos,

participei de todos os encontros do grupo,

No meio tempo, Alexandre Vargas também

a partir deles, coisas novas e completa-

que aconteceram até agora na Dinamarca,

busca uma maior aproximação com a tradição do

mente nossas. Como professor universi-

na Itália, no Brasil e na Colômbia.

Odin. Em outubro de 1996, durante uma turnê do

tário, tomei o tema da "presença" como

A Iben e o grupo Ponte dos Ventos são

Falos & Stercus no Rio de Janeiro, aproveita para

um grande tema de pesquisa, e todo meu

meu porto seguro, são como a casa da

ver o espetáculo Kaosmos, que naquele período

trabalho tem girado em torno dele. Esse

família para onde sei que sempre poderei

estava em cartaz na cidade:

tema, primeiro, encontrei desenvolvido

voltar. É um lugar de irmãos, de pessoas

no trabalho do Barba e, a partir dele, se

que sabem que nossos encontros vão mais

Vi Kaosmos no Rio, no Teatro Carlos Go-

criou pra mim toda uma forma de enten-

além de nós mesmos, que estar com Iben e

mes. Isso era importante para mim, por-

der, falar e fazer teatro. (...)

continuar junto é como um pacto de hon-

que aí pude ver os atores, ver a presença

A Antropologia Teatral permite um olhar

ra com uma espécie de desejo original de

cênica. Isso dava todo um outro valor ao

sobre o espetáculo, uma interferência

manter nossa arte, aproximando o mundo

que tinha lido, e aquilo me interessava.

na formação e um pensar sobre as po-

dos deuses e dos homens pra sempre.

Eu mirava coisas, queria objetivamente

éticas teatrais. Ela oferece ferramentas

coisas no meu trabalho de ator. Queria

concretas para fazer isso. Ela organiza,

Os encontros anuais do Ponte dos Ventos

a questão da presença cênica e aqueles

sistematiza um raciocínio sobre o fazer

(Vindenes Bro, em dinamarquês) costumam durar

atores tinham uma presença cênica tre-

teatral só equiparado ao que fizeram

três semanas e são em regime de imersão. Deles

menda, que não se dava pelo viés psico-

Stanislavski, Zeami, Grotowski, Decroux

participam artistas de diferentes países. Nessas

lógico, e isso me interessava muito.

e muito poucos outros. Ela faz uma pas-

ocasiões, Tatiana pratica várias técnicas usadas

sagem, embora não tenha pretensões

pelos atores do Odin, além de entrar em profundo

Quem também não perde o contato com o

científicas, entre a teoria e a prática, de

contato com exercícios desenvolvidos particular-

Odin no final dos anos 1990 é Nair D’Agostini

forma harmoniosa e bela.

mente por Iben, como: samurai, fora de equilíbrio,

que, em junho de 1998, parte para Belo Horizon-

verde[6], dança do vento, entre outros. Por sua vez,

te e segue as atividades do Odin na 1ª edição do

através de suas próprias aulas, segue transmitin-

ECUM (Encontro Mundial das Artes Cênicas). Ali,

do os ensinamentos recebidos pela mestra:

pode assistir ao espetáculo Ode ao Progresso e a

Em dezembro de 1995, em Salvador, Tatiana Cardoso reencontra Iben e o grupo A Ponte dos Ventos. É a oportunidade para se confrontar

algumas outras apresentações do grupo.

novamente com os ensinamentos de sua mestra.

Sou professora da Universidade Estadual

Ainda em 1998, em Porto Alegre, Alexan-

Ela nos conta:

do Rio Grande do Sul e eventualmente

dre Vargas participa de uma oficina com o ator

dou oficinas para atores dentro ou fora

e diretor paraibano Luiz Carlos Vasconcelos e,

Depois do seminário de 1993, segui trei-

do Brasil. Os princípios da Antropologia

também, passa a trabalhar com Tatiana Cardo-

nando sozinha, convencida de que tinha

Teatral são a base da minha técnica de

so. Ele nos conta:

encontrado uma base sólida para mim.

atriz e fazem parte do vocabulário do

Em 1995, participei de outro seminário

conteúdo que ensino. Como dediquei

(...) E aí tive contato com o Luiz Carlos,

de Iben, desta vez, em Salvador, Bahia.

minha formação ao treinamento físico,

que veio pra cá para ministrar uma ofi-

Mesma coisa, carta de intenção e cur-

toda essa experiência embasa minhas

cina. Ele trabalhava muito sobre os prin-

rículo. Fui selecionada. Quando comecei

aulas, independente do foco da aula.

cípios da Antropologia Teatral. (...) Nessa

a trabalhar com o grupo, parecia que eu

Esses princípios são extremamente úteis

oficina, fiz um trabalho grande de parti-

nunca tinha me separado de Iben, pois

justamente porque perpassam qualquer

turas, e isso me despertava mais ainda

havia continuado o trabalho. Ao final

tema, qualquer nível, qualquer gênero ou

para o trabalho da antropologia. Depois

daquela experiência, na festa de encer-

estilo teatral. Eles são universais e dizem

fui trabalhar com a Tatiana Cardoso. Ela

ramento, Iben me chamou para um can-

respeito ao corpo, à dinâmica da ação, à

vinha do trabalho da Iben, etc. Mas eu

to e me convidou para integrar o grupo

presença, à vida geral da cena. Conhecê-

não queria só trabalhar tecnicamente os

oficial, o Ponte dos Ventos, cujo próxi-

-los e saber como manipulá-los é como

fundamentos, eu queria me aproximar

mo encontro seria naquele mesmo ano,

um segredo que traz uma base muito só-

também da ousadia, da arrogância ne-

em Scilla, no sul da Itália. Desde então,

lida pra qualquer tipo de ator.

cessária que eu percebia ali no Eugenio,


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

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7 “O paradoxo pedagógico: aprender a aprender”, em “Laboratório: teatro-escola”, segundo capítulo do livro de Eugenio Barba Teatro. Solidão, Ofício, Revolta, publicado em 2009 pelo Teatro Caleidoscópio/Editora Dulcina, Brasília, com tradução de Patricia Furtado de Mendonça.

no discurso dele. Eu gostava daquele

algum festival fora de Porto Alegre. Em 2008,

As sementes haviam sido plantadas. As raí-

pensamento bélico, estrategista, para

por exemplo, ele assiste ao espetáculo O Sonho

zes cresciam subterraneamente. A terra tinha sido

compor a minha estratégia também:

de Andersen em São José do Rio Preto, por estar

adubada e as árvores já davam seus frutos, uma

“como é que eu me acho nesse campo,

em turnê no mesmo festival. Ele acrescenta:

estação após a outra. A influência do Odin sobre a cultura de estudiosos, artistas e grupos de teatro do

como é que me coloco nesse campo?”. Fora isso, entre 1996 e 2010, o contato

Não me encontrei com eles muitas ve-

Rio Grande do Sul vai se firmando cada vez mais

foi mais através dos livros. Sempre que

zes, mas o trabalho continuou sendo

no arco destes 15 anos, motivada, principalmente,

meu grupo passava por alguma crise,

uma referência para mim tanto no que

pela necessidade que eles têm de se confrontar e

por exemplo, eu buscava na biblioteca

diz respeito à poética teatral quanto à

de dialogar com uma tradição teatral sólida – e de

um livro do Eugenio para tentar per-

ética grupal. Certamente, os escritos de

valor – que lhes ajude a construir a própria identida-

ceber se isso estava ali também, se ele

Barba me influenciaram, em certa me-

de profissional. Isso vai acontecendo, como foi vis-

mencionava algo no Canoa, no Arte

dida, muito mais que seus espetáculos.

to, através de viagens para fora de Porto Alegre, da

Secreta, no Teatro Pobre do Grotowski,

Li toda a produção trazida no Brasil e

leitura dos livros de Barba e também por meio das

em artigos.

estudei nos originais em italiano textos

diversas trocas acadêmicas e artísticas. Para muitos,

que passaram a ser objeto de meus se-

o Odin vira de fato uma referência fundamental, até

Com Gilberto Icle não é diferente. Entre

minários na pós-graduação. Utilizei-os

mesmo um modelo a seguir. Mas o afastamento, por

1995 e 2010, sua relação com o Odin Teatret se

desde meus próprios estudos de mes-

um período, também é necessário.

dá principalmente através dos livros, ainda que

trado e doutorado até minhas pesquisas

ele tenha sempre tentado alcançar o grupo em

mais recentes.

No livro Teatro. Solidão, Ofício, Revolta[7], de Eugenio Barba, há um capítulo composto de


PRIMEIRO SEMESTRE

2012

36

CADERNO DE TEATRO


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

37

uma série de entrevistas em que ele responde à

sua cidade novamente, para estreitar relações e

seguinte pergunta, feita por Maria Grazia Grego-

se aproximar de suas técnicas de trabalho. Mas o

ri: “Então não deve haver modelos? No entanto,

festival ainda é muito pequeno e não dispõe das

o Odin é um modelo para muita gente”. E assim

condições necessárias para isso. Ele não desiste.

Barba responde:

Então procura Jane Schöninger e Silvio Bento, do Sesc/RS e já parceiros de seu festival, para propor

Hoje há um estranho mito de autismo,

alguma atividade com o Odin para 2010. É aí que

que cada um pode se autogerar. É es-

se confirma esta possibilidade: Eugenio Barba e

sencial ter um ponto de referência com o

Julia Varley são convidados pelo Sesc/RS para

qual se confrontar e sobre o qual voltar a

participar do 5º Festival Palco Giratório de POA.

refletir. Tem realmente muita sorte a pes-

Falando sobre sua motivação para articular esta

soa que é obrigada a se definir diante de

turnê com o Sesc, Alexandre diz:

outra que tem uma personalidade fora do comum. Por um período, a sombra dessa

Nessa época, me interessava demais con-

pessoa mais madura e mais experien-

versar com o Eugenio, pois era o momen-

te cobrirá suas ações. Foi assim quando

to em que eu estava sofrendo bastante

Meyerhold começou sua relação com

com a questão do grupo. Já não encon-

Stanislavski, ou quando Grotowski come-

trava as respostas nos livros para buscar

çou a se relacionar com a sombra de Sta-

uma solução, aí eu pensava: tenho que

nislavski, e também quando comecei mi-

conversar com alguém e não pode ser

nha relação com Grotowski. Essa relação

qualquer pessoa.

pode durar muito ou pouco tempo. A duração depende do tempo necessário para

E Jane Schöninger, por sua vez, nos fala do

despertar as próprias energias. Depois, é

interesse do Sesc/RS em estabelecer esta parceria:

preciso se afastar. Então é a ausência que te acompanha. É o momento em que a

O projeto Palco Giratório existe pratica-

pessoa que ficou sozinha, personalizando

mente há 10 anos, com o desenvolvimen-

a herança recebida, deve inventar o pró-

to de circuitos pelo interior do Estado. E,

prio caminho. Tanto na tradição oriental

há sete anos, o Festival acontece em Porto

como naquela ocidental, é assim que se

Alegre, com uma característica bastante

descreve essa descoberta das próprias

forte que é apresentar grupos, coletivos,

forças: superar o mestre subindo por

profissionais que possuam um trabalho

suas costas. E fazendo isso, manifestar

contínuo. O Festival é um “território de

ou negar o ethos que aprendeu.

pouso”, um espaço onde esses coletivos possam fortalecer o intercâmbio, o fluxo

2010: Eugenio Barba e Julia Varley voltam a Porto Alegre 15 anos depois

das trocas e dos usos, da produção e do

Mas era chegada a hora de organizar um novo

mos que o Odin vem para celebrar e le-

encontro, para que os percursos artísticos de

gitimar esse objetivo do projeto, sendo

cada um, amadurecidos e transformados, pudes-

a referência mundial que é. É o exemplo

sem ser confrontados sob novas perspectivas.

maior de generosidade, de possibilidades

consumo dos bens culturais. E entende-

de intercâmbio, de trocas, de arte.

Em 2009, Alexandre Vargas começa a organizar o Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre. Bus-

Sendo assim, em maio de 2010, Eugenio

ca uma maneira de trazer Barba e o Odin para

Barba e Julia Varley voltam a Porto Alegre com


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

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algumas atividades: Julia Varley apresenta uma nova demonstração de trabalho, O Tapete Voador, e Barba conduz a palestra “Princípios da Antropologia Teatral”, ao mesmo tempo que apresenta a nova edição de seu livro A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Nair D’Agostini está presente nesses encontros. No relato abaixo, ela nos conta sua impressão sobre as diferenças que encontrou em Barba e Julia Varley e, também, sobre a diferença do impacto causado pela presença dos dois artistas em Porto Alegre, sempre comparando os anos de 1995 e 2010. É bem difícil falar dessas diferenças, sobretudo em Julia. No que diz respeito à qualidade técnica, ela apresentou maior nível e me pareceu que, metodológica e pedagogicamente, está mais madura, generosa e segura em sua apresentação. Em Barba, senti mais abertura, uma disponibilidade integradora e generosa. Impressionou-me em Barba, nesta ocasião, a transparência, o despojamento e, porque não dizer, a humildade com que generosamente falou de sua arte, de seu grupo e de sua vida. Parecia que já não possuía mais pretensões, mas só queria estar ali para uma missão: compartilhar um saber ao qual dedicou uma vida. Com certeza, a recepção do público de 1995 e de 2010 foi muito diferente, pois hoje o Odin e o Barba já não são mais “desconhecidos” da classe teatral, e isso faz uma grande diferença na recepção. Os novos que o viam pela primeira vez tiveram, penso eu, o contato com um ícone, quase um Deus, pois estudam suas teorias, trabalham na prática a partir de seus princípios (acredito que a maioria das escolas teatrais conhece as teorias e práticas do Odin), e isso gera muitas expectativas. Para os que já o conheciam, acredito que também deve produzir sentimentos e impressões diversas, umas


CADERNO DE TEATRO

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8 Estiveram em Porto Alegre: Eugenio Barba, Roberta Carreri, Julia Varley, Iben Nagel Rasmussen, Elena Flores, Jan Ferslev, Kai Bredholt, Tage Larsen, Augusto Omolú, Donald Kitt, Fausto Pro e Anne Savage, a tour manager do grupo.

muito valoradas e outras decepcionan-

mo teatral, se perdeu aqui. E a sensação,

e aí o Eugenio está aqui e eles não pergun-

tes. No meu caso, Barba me comoveu

às vezes, é de o que fazer, como fazer. Aí,

tam, não falam, não trocam?

profundamente. Para mim, ele se revelou

quando esse homem chega aqui, relatan-

Talvez fosse timidez deles mesmos por

naquilo que há de mais valioso, na sua

do essa experiência de uma forma mais

estarem diante de alguém que eles tam-

humanidade. Ele alcançou a simplicidade,

clara, eu acho que isso desperta outros

bém consideravam um mito, mais do que

a sabedoria.

horizontes. Esse é o meu ponto de vista

a falta de interesse ou curiosidade. Isso é

sobre o impacto que o Odin teve dentro

extremamente incoerente, já que usam a

Alexandre Vargas também traz algumas

da cidade. Outro, sem dúvida, é a presen-

antropologia teatral, o discurso do Euge-

reflexões próximas às de Nair com relação às

ça física dele e um monte de jovens que

nio, da Julia, da Roberta. E num momento

mudanças nas atitudes de Barba, causadas, em

está na plateia vendo-o falar. Há um con-

em que você pode estar ali presencialmen-

sua opinião, pelo amadurecimento e pelo saber

traste entre o que o Eugenio fala e o que

te com eles, você não troca? Então, o uso

acumulado na experiência do grupo. Ele também

o jovem está idealizando através de um

da antropologia, o uso da teoria, é muitas

nos fala do impacto causado pelo Odin nos jovens

livro ou do que chegou a ele através de

vezes uma bengala. Isso gera uma segu-

e nos professores presentes, ao se defrontarem

um professor que não teve uma aproxi-

rança nesses professores, uma segurança

com um grupo de tamanha importância no cená-

mação tão direta com o Eugenio ou com

teórica, mas que distorce uma prática.

rio internacional do teatro. Ele analisa:

o trabalho do Odin.

Foi um impacto monstruoso, porque o

Odin a imagem de um mito, e isso con-

Eugenio vem com toda essa mudança

trasta com o modo tão simples em que

2012: Chegada de todos os integrantes do Odin Teatret a Porto Alegre

de vida, mas uma pessoa ainda bastante

eles se colocam. Mas a construção desse

Desta vez, o intervalo de tempo é breve: em vez

convicta no que faz. Só que chega entre-

mito também pode ser um argumento

de 15, só dois anos. A pequena turnê de 2010 dei-

gando sua fala de outra maneira. Então

forte de um professor, pode ser a seguran-

xa aquele gostinho de quero mais, e o Sesc/RS

a recepção também foi muito diferente.

ça de um professor que distorce uma prá-

consegue novamente criar as condições – sempre

Me impressionou demais e acho que im-

tica. Então, foi comum, eu recebi alguns

através de Jane Schöninger e do Festival Palco Gi-

pressionou muita gente também a sua

relatos de alunos que se diziam surpresos

ratório – para trazer, agora, todos os artistas do

transparência em revelar coisas que ge-

com aquilo que viam e ouviam, compa-

Odin Teatret[8] para Porto Alegre.

ralmente não são reveladas. Por exemplo,

rando com o que tinham aprendido com

Foi um grande esforço, mas os resultados

dizer que somos um grupo de indivíduos,

algum professor. E esse atrito era muito

provam que valeu a pena, basta lembrar os tea-

de individualistas. Isso é muito forte, por-

importante. Em 2010, havia muitos estu-

tros lotados durante as várias apresentações do

que tem uma luta muito grande para se

dantes seguindo, sempre há. A classe ar-

Odin em Porto Alegre. Uma plateia marcada pela

construir grupos de teatro no Brasil. (...)

tística também participou bastante: indo,

mistura de gerações: desde os velhos seguidores

Existe um arco de convivência muito

assistindo. Sempre me impressiona a falta

do Odin até centenas de jovens estudantes e te-

grande entre o Odin e o Eugenio, 48 anos

de perguntas. (...) Eu fico pensando, puxa,

atrantes que encontram o grupo pessoalmente

trabalhando juntos. E quando ele volta

esses professores falam tanto, usam tanto,

pela primeira vez.

Às vezes, os jovens têm no Eugenio e no

pra cá, com esse hiato de tempo de 15 anos, a gente vê nele uma pessoa mais velha, mais conhecedora do que está fazendo e sem tantas barreiras para falar, sem tantos muros. A simplicidade chega de uma forma mais direta, a clareza de que o que ele faz é um ofício, que tem que trabalhar. A história chega menos romântica em um momento que é oportuno que chegue menos romântica. Porque o romantismo da existência, o romantis-


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

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9 Grupos selecionados que participaram da residência: Teatro Sarcáustico (RS); Cooperativa Alegretense de Teatro (RS); Usina do Trabalho do Ator (RS), Santa Estação Companhia de Teatro (RS); Grupo Ritornelo (RS); Circo Girassol (RS); Companhia Bananeira (RJ); Teatro Diadokai (MG); Tao Filmes (DF); Teatro del Arca (Uruguai). Não estiveram presentes todos os integrantes de cada grupo, mas apenas alguns artistas para representá-los, já que o número de participantes era limitado.

A programação é farta e bastante articulada.

os vários níveis de dramaturgia que compõem um

Mas o que acontece exatamente naqueles dias?

espetáculo; a cumplicidade entre ator e diretor; os

Uma residência artística para atores e diretores ,

desafios do ofício do ator nos dias atuais; a so-

espetáculos, demonstrações de trabalho, pales-

brevivência dos grupos de teatro no Brasil e no

tras, sessões de vídeo, lançamento e venda de

mundo; a perseverança do Odin através do teatro

livros, oficinas, etc[10]. Há longas listas de espera

e a transmissão da experiência.

[9]

para assistir aos espetáculos, filas para ver as de-

Neste festival, estão presentes Irion Nolasco,

monstrações de trabalho, alguns livros do Odin

Jane Schöninger, Gilberto Icle, Alexandre Vargas,

esgotam-se já no primeiro dia, e uma multidão de

Tatiana Cardoso, Jezebel de Carli, entre tantos ou-

jovens luta por um ingresso para ouvir Eugenio

tros. Nada mais justo do que dar-lhes novamente

Barba e seus atores durante as palestras e os en-

voz para que nos falem de mais este contato com

contros. Chegam pessoas não só de várias cida-

o grupo dinamarquês em Porto Alegre. Nesses

des do Rio Grande do Sul, mas também de outros

novos depoimentos, eles nos contam sobre o im-

estados do Brasil, inclusive do Uruguai.

pacto que a presença integral do Odin causa nos

Após cada palestra ou demonstração de tra-

espectadores que seguem suas atividades neste 7º

balho, incansavelmente, Barba e seus atores per-

Palco Giratório, sobretudo em relação ao ano de

manecem nos teatros para responder a todas as

2010. Ainda que os vários textos tenham – inevi-

perguntas dos espectadores, abrindo espaço para

tavelmente – algumas informações ou impressões

o diálogo e a troca de experiências, em coerência

repetidas, decidi deixá-los aqui na íntegra, pelas

com a tradição do Odin. Reflete-se sobre: o arte-

reflexões que podem despertar, inclusive a partir

sanato do ator, suas técnicas e seu treinamento;

dessas repetições.

organização de encontros internacionais de grupos de teatro; hospitalidade para companhias e grupos de teatro e dança; Odin Week Festival anual; publicação de revistas e livros (Odin Teatret Forlag e Icarus Publishing Enterprise); produção de filmes e vídeos didáticos; pesquisas no campo da Antropologia Teatral durante as sessões da ISTA (International School of Theatre Anthropology), que desde 1979 se tornou uma aldeia teatral onde atores e dançarinos de diversas culturas encontram estudiosos para investigar, confrontar e aprimorar os fundamentos técnicos de sua presença cênica; Universidade do Teatro Eurasiano; espetáculos do Theatrum Mundi; colaboração com o CTLS (Centre for Theatre Laboratory Studies) da Universidade de Arhus, que regularmente organiza a The Midsummer Dream School; Festuge (Semana de Festa) de Holstebro; Festival trienal Transit, dedicado às mulheres que trabalham no teatro; OTA (Odin Teatret Archives), arquivos vivos da memória do Odin; WIN, Prática para Navegantes Interculturais; espetáculos para crianças; exposições; concertos; mesas-redondas; ações culturais e projetos especiais para a comunidade de Holstebro e de seu entorno, etc.

O Odin Teatret criou 74 espetáculos que viajaram por 63 países em contextos sociais diferentes. Durante essas experiências, desenvolveu-se uma cultura específica do Odin, baseada na diversidade e na prática da “troca”: os atores do grupo se apresentam à comunidade que os recebe com o seu trabalho artístico e, em troca, ela responde com cantos, músicas e danças que pertencem a sua própria tradição. A “troca” é uma espécie de permuta, ou escambo, de manifestações culturais, e não só oferece uma compreensão das formas expressivas alheias como também dá início a uma interação social que desafia preconceitos, dificuldades linguísticas e divergências de pensamento, juízo e comportamento. Nenhum outro grupo de teatro no mundo, até os dias de hoje, desenvolveu um leque de atividades tão diversificado quanto o Odin Teatret, criando e transmitindo incansavelmente sua própria tradição entre Ocidente e Oriente, alcançando um raio de milhares de artistas, estudantes e estudiosos – de diferentes campos do saber – que encontram nele matéria de inspiração e referência para suas próprias buscas.

ODIN TEATRET NORDISK TEATERLABORATORIUM O Odin Teatret foi fundado em 1964 em Oslo, na Noruega. Em 1966, transferiu-se para Holstebro, na Dinamarca, e se transformou em Nordisk Teaterlaboratorium. Atualmente, os 25 membros que compõem o staff artístico e administrativo do Odin são provenientes de 10 países e três continentes. Desde a sua origem, o Odin Teatret se concentrou no treinamento dos atores, em sua capacidade de estabelecer novas relações com os espectadores e nas diferentes dramaturgias que compõem um espetáculo. O autodidatismo dos atores do Odin, com a consequente elaboração de um treinamento individual e o ensino aos membros mais jovens do grupo, determinou o constante interesse pela aprendizagem e pela transmissão dos conhecimentos técnicos. Os 48 anos do Odin Teatret como laboratório favoreceram o crescimento de um ambiente profissional e de estudo, caracterizado por diversas atividades interdisciplinares e colaborações internacionais. Hoje, as principais atividades do Laboratório incluem: espetáculos, demonstrações de trabalho e workshops para atores e diretores; “trocas” feitas em diversos contextos, na Dinamarca e no exterior;


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

41

10 A programação completa compreendeu: Teatro de Câmara Júlio Piva: a residência artística A Cumplicidade Artística entre o Ator e o Diretor (3 dias), conduzida por Barba e alguns de seus atores, incluindo uma oficina de Dança dos Orixás com Augusto Omolú; as demonstrações de trabalho O Irmão Morto e O Eco do Silêncio, com Julia Varley, e Branca como o Jasmin, com Iben Nagel Rasmussen; Teatro SESC Centro: os espetáculos coletivos As Grandes Cidades sob a Lua e Ode ao Progresso; a palestra de Eugenio Barba 50 anos de trabalho: a luta contra a natureza do teatro; a demonstração de trabalho Antropologia Teatral; o encontro público dedicado à finalização da residência artística, do qual participaram todos os membros do Odin Teatret; lançamento e venda de vários livros de Barba e das atrizes do Odin; Casa do Teatro: sessões dos vídeos A Conquista da Diferença, Nas Duas Margens do Rio, O Teatro encontra o Ritual, Em Princípio era a Ideia; Teatro do Museu: o encontro A Ponte dos Ventos com Iben Nagel Rasmussen, Elena Floris e Tatiana Cardoso; a palestra A Organização e a Cultura do Odin Teatret com Base em Experiências desde 2004, com a tour manager do grupo Anne Savage. Espaço Circo Teatro Girassol: oficina de perna de pau com o ator Donald Kitt.

Depois dos depoimentos de alguns dos ami-

Naquela plateia tem essa mistura: você vê

da minha relação com o grupo fora do Brasil,

gos gaúchos mais antigos do Odin, seguem tam-

um Irion, que inicia um movimento forte,

através do Ponte dos Ventos.

bém os de dois amigos gaúchos mais novos: Lu-

que traz o Eugenio, vê alunos que o Irion

Me senti honrada, feliz, orgulhosa de fazer

cas Sampaio e Álvaro Rosa Costa. Lucas é ator do

formou, tendo como base muito desse tra-

parte de um trabalho tão profundo, tão re-

Grupo Geográfico e professor do Teatro Escola de

balho, e aí tem a Tatiana Cardoso, o Gilberto

volucionário para a história do teatro como

Porto Alegre (TEPA); além disso, também deu um

Icle, o UTA. O UTA, Usina do Trabalho do Ator,

é o do Odin. Há 15 anos, a vinda de Eugenio

grande suporte ao Odin Teatret neste Palco Girató-

é gerado tendo como base esse movimento

tinha um ar de novidade, de curiosidade por

rio de 2012. Álvaro, que hoje integra a Cia. Incomo-

do Odin e do Burnier. Aí você pega também

parte dos jovens estudantes de teatro da épo-

de-te, participou da residência artística com o Odin

grupos mais jovens que tem um preconceito

ca. E é surpreendente constatar que agora,

como ator convidado do Circo Girassol.

em relação a esse trabalho. Pode ser até um

em 2012, ainda tem! Eu não conhecia muitos

Compõem este artigo mais dois importan-

preconceito juvenil, como dizer “não que-

daqueles jovens atores ou estudantes de tea-

tes depoimentos: o de Priscila Duarte e o de Julia

ro fazer isso, não me interessa”. São coisas

tro da plateia aqui de Porto Alegre, mas podia

Varley. Priscila é uma atriz do Teatro Diadokai que

que eu já ouvi, tem gente que acha que os

ver o impacto que causava naquela plateia,

conheceu o Odin em 1986, tendo dialogado com o

espetáculos são sisudos demais. Mas aí se

aquele grupo longevo, experiente e maduro.

grupo em diferentes países e em diversos contex-

surpreendem quando percebem o humor

Antes, eles nos chocavam com sua precisão,

tos desde então. Aqui, através de seu depoimento

dos espetáculos. Uma coisa que eu também

com suas habilidades corpóreas, com suas

sobre a residência de Porto Alegre, ela nos traz

achava legal desses dois espetáculos é o for-

imagens herméticas e cheias de profundida-

um olhar “cruelmente sincero” sobre o sentido de

malismo de um [As Grandes Cidades sob a

de, com seu trabalho vocal primoroso. Hoje,

continuar fazendo teatro nos dias de hoje. Fecha o

Lua] e o não formalismo do outro [Ode ao

eles nos chocam pelos mesmos motivos, mas

artigo o texto de Julia Varley já citado na Premissa.

Progresso]. Achava que isso podia dar um

com um sabor a mais: jovens velhos homens

insight no público que podia ser bacana.

e mulheres gigantes, profundos, monstruosa-

Alexandre Vargas

Eu também me percebi em algumas per-

mente humanos, inspirando profissionalismo,

Tem uma diferença entre 2010 e 2012 até

guntas que foram feitas, como: “E a questão

ética, coragem, disciplina e inquietude. Eles

pelo formato de trabalho. O que mais me

do amor, como é que fica, com os atores, e

nos inspiram, diria até dolorosamente por ser

chama atenção, como espectador disso tudo,

tal?”. E na pergunta, estava a sombra de seu

tão difícil, que vale a pena manter-se unido.

é perceber uma aproximação que foi se dando

grupo, ou seja, a sombra de seus problemas.

Quando se considera as diferenças e se colo-

gradualmente. Com isso, não estou mirando o

O André Carreira fala que o Odin seria uma

ca o teatro como um ideal, “manter-se unido”

meio cênico, pois os artistas, os atores, foram

experiência, uma nova célula de sociabilida-

– mesmo parecendo impossível – porta um

chegando aos poucos. Eles não vieram todos

de possível para a América Latina. Então, a

significado que vai além do próprio ofício, da

de uma vez só, foram se aproximando. Acho

América Latina se encanta com essa ideia e

própria arte. (...) Mas o que fica depois que

que o Eugenio também fala dessa questão da

vai buscar isso. Eu acho que ainda tem esse

eles partiram é, sobretudo, essa vontade de

“comunidade”. É difícil chegar numa comuni-

referencial nos grupos. Quando perguntam,

fazer igual, de apostar em parcerias fecundas,

dade: tem lutas, tem territórios, tem espaços

perguntam coisas que não são só “como o

de olhar o teatro como algo que vai além de

aí. Muitas vezes, é difícil para os grupos locais

diretor faz”. E acho que o Eugenio é muito

uma produção eventual ou comercial.

se defrontarem com certas coisas, sobretudo

coerente quando diz “essa é a minha ma-

com certas coisas que o Eugenio fala, por

neira de fazer, funciona para mim, pode não

Gilberto Icle

exemplo: coerência, trabalho diário, a ques-

ser eficaz para você”. Ele não está dando re-

Este encontro foi fundamental, pois as no-

tão do ofício. Basta lembrar o que ele falou

ceitas. Mas o que as pessoas querem saber,

vas gerações não conhecem o trabalho do

ontem, como ir contra as leis do teatro, lutar

às vezes não pode ser respondido, pois não

Odin, senão pela narrativa dos mais velhos

contra um teatro rentável, não só na ques-

há respostas, tipo “como eu dirijo? como eu

e pelos livros. Ainda que os espetáculos que

tão financeira, mas na questão da ideologia.

mantenho um ator?".

estiveram em POA não sejam os espetáculos

Sendo que às vezes você é obrigado a ter um

exemplares do grupo, a presença do Odin aju-

trabalho dentro do sistema em que vivemos,

Tatiana Cardoso

da a dar conhecimento sobre sua produção

onde você cede a isso. Hoje, acho que tem

Olha, foi muito interessante ver o Odin na

e mobiliza a discussão sobre a cena contem-

uma mistura de gerações também.

minha cidade, depois de já passados 18 anos

porânea, tão desestabilizada nas discussões


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

42

entre pós-dramático, performance, presença,

po da Iben, ouvir que uma atriz entregou sua

magia. Para mim, ele é um mestre. E mestre,

etc. Certamente há desdobramentos no que

vida ao teatro, ver Roberta pela primeira vez

para mim, não é só a pessoa que sabe as coi-

tange à curiosidade de saber mais sobre o

e seu corpo impregnado de trabalho, ouvir da

sas, é uma pessoa que ama o que faz, que tem

grupo, mas, sobretudo, em relação à forma-

Julia dizer “mas você tem um grupo...” e após

paixão pelo que faz, que se incendeia pelo que

ção de novos atores, pois boa parte da peda-

receber um sorriso, chorar muitas vezes pela

faz. E assim é ele, o dia inteiro. Você vê ele

gogia desenvolvida no RS tem relação com o

beleza, generosidade, devoção e respeito pelo

assim, aqui, o tempo todo, rondando, vagan-

trabalho do grupo.

teatro que esses homens e mulheres nos de-

do, preocupado com os detalhes. (...) Eu acho

monstram me fez, mais uma vez, ter vontade

que o que atrai e toca todas as pessoas é que

Jezebel de Carli

de seguir adiante, força para criar terremotos,

eles são verdadeiros. São de verdade, não são

Correram os anos e em todos os momen-

querer que os que se foram retornem, tratar

fake. Você pode ver o passar dos anos. Fiquei

tos em que me foi possível procurei estar

o outro com ternura e gratidão e, crer nova-

muito comovido com o primeiro trabalho que

novamente entre o Odin, mesmo sem eles

mente que o teatro pode mudar o humano.

eles mostraram aqui, As Grandes Cidades sob

saberem. Estar sorrateiramente em 94, 95,

a Lua. Você pode ver, eles envelheceram, mas

2010 e, finalmente, em 2012 na residência

Irion Nolasco

com dignidade e verdade. É uma maravilha

entre grupos. Já não sou jovem nem conse-

Agora também está sendo um feedback de

poder ver isso. Nem dá para falar muito. Eu

gui manter-me ao lado dos meus primeiros

coisas, é emocionante. Eu me emociono sem-

fico tão emocionado que... Eu amo o Odin,

pares, àqueles que “se levantaram na ponta

pre com o Barba. Ele não precisa fazer nada,

sou suspeito para entrevistas.

dos pés para que um dia pudessem voar”

ele simplesmente existe e espero que ele dure

(referência ao texto de Eugenio Barba). Hoje,

120 anos. (...) O grande lance do Barba é a efi-

Jane Schöninger

em 2012, estou ao lado de outros, tentando

cácia. Aqui no sul dizemos: mata a cobra e

Foi uma overdose de ações, em tão pouco

desesperadamente guiar um grupo. Ouvir as

mostra o pau. Ele fala e ele mostra, aí você

tempo. Queríamos mais tempo e mais e mais.

palavras de Barba, perceber as marcas no cor-

fica olhando pra ele como se fosse mágica,

A cidade, o Estado, o país esteve “em movi-


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

43

mento” com essa passagem por aqui. O movi-

progresso artístico. É como se a existência

não interessa. Aquela massa submersa do

mento de pessoas, o movimento das cabeças,

deles se refletisse, em sua constância, na

iceberg, chamado Odin, é que me desafia. O

o movimento dos sentimentos. Penso que,

frase: “Acredite, acredite, acredite”.

que mais me pergunto: “E agora!?”. Só sei que

com esse movimento, há uma possibilidade

vou "encontrar" várias possibilidades. E como

de novas articulações entre grupos, entre

Álvaro Rosa Costa

disse Roberta Carreri: "Há uma vontade que

profissionais. Podemos arriscar a colocar em

Esta experiência, residência, reverência ou

me habita". Simples, sem fórmulas... trabalho,

poucas palavras o retorno que tivemos sobre

seja lá o que for, com o Odin Teatret, explodiu

cumplicidade... possibilidades.

esses dias: um “novo” oxigênio para o teatro.

na minha cabeça, conectou muitos, muitos pontos. Me colocou em estado de alerta, Mar-

PRISCILA DUARTE

Lucas Sampaio

co Zero, Espiral, em movimento. Trabalho há

Teatro Diadokai

Tive o primeiro contato com o Odin Teatret

muito tempo com música, apesar de ser Ba-

Belo Horizonte, 4 de junho de 2012.

em Holstebro, durante o Odin Week Festi-

charel em Gravura. Muitas das questões que

Dinossauros em Porto Alegre

val 2011. Lá, entendi o significado do ator

me instigavam no Instituto de Artes da UFGRS

A residência artística com o Odin Teatret

profissional, possuidor de ferramentas, vir-

estão presentes nas palavras e nas ações dos

Conheci o Odin Teatret como espectadora,

tudes, treinamento. Trata-se de uma união

integrantes do Odin. Após 24 anos, consigo

durante um festival de teatro em Montevi-

de artistas que prova a todos os colegas

entender a magia que estes jovens senhores,

déu (Uruguai) em 1986, quando eu ainda era

de profissão espalhados pelo mundo que

alquimistas, exercem sobre os artistas. Não

uma estudante da graduação em teatro da

o trabalho em conjunto alça voos inimagi-

só atores, mas vários artistas de vários seg-

UniRio. Lembro-me bem da minha impres-

náveis. Neste momento, em Porto Alegre, o

mentos. Eles dialogam com os princípios da

são: foi como se eu visse a materialização de

Odin faz-se necessário justamente na tro-

criação, encontram ecos em Fayga Ostrower,

minhas aspirações juvenis, tão indefiníveis e,

ca, mostrando que o teatro de grupo ain-

Jung, no marceneiro da esquina. Eles "fazem".

subitamente, tão reconhecíveis naquele gru-

da é um caminho de forte identidade e de

Se o resultado é brilhante, bom, ruim, a mim

po de artistas. Foi avassalador.


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

44

Minha crescente inquietação em torno do fazer

sidência, me perguntei: por que estou indo

sistiram a demonstrações de trabalho, filmes,

teatral, alimentada pelo contato com o Odin

para esse encontro? Que sentido tem, a es-

espetáculos e conferências. Apesar das opiniões

Teatret, me levou ao encontro de outro grupo

tas alturas do campeonato (tenho 46 anos),

elogiosas sobre o que viram naqueles dias, não

identificado com o Terceiro Teatro: o Teatro Tas-

participar de uma oficina de apenas quatro

percebi neles um impacto tão devastador quan-

cabile di Bergamo. Em 1987, um mesmo evento

dias de trabalho? Por um lado, a expectativa

to aquele que me atingiu durante o festival no

trouxe ao Rio de Janeiro o Nordisk Teaterlabora-

obviamente confirmou-se: não se aprende

Uruguai. Será que há algo que possa puxar o

torium e o grupo italiano Tascabile, que me pro-

nada em quatro dias de oficina. Mas, o que

tapete das novas gerações? O que mudou? Os

porcionaram outras experiências impactantes,

estava em jogo ali era uma outra coisa. Não

jovens? O tapete?

com suas oficinas, conferências e espetáculos.

se tratava de aprender nada. No final das

Não creio mais em grupos de teatro. Não sei

Em 1989, eu e Ricardo Gomes (companheiro

contas, tratou-se de questionar tudo: para

nem se creio mais no teatro. Estranhamente,

de trabalho desde então) partimos para a Itália.

onde mesmo estamos indo? Que teatro é este

estes dias em Porto Alegre reascenderam uma

Foi o início de uma longa relação profissional

que queremos fazer? Por quê? Como? Para

chama tênue. Será o fim do período de latên-

com o Tascabile. Com eles, trabalhamos como

quem? Com quem?

cia do Teatro Diadokai? Só há uma forma de

atores estáveis de 1989 à 1994 e, depois, como

A residência em Porto Alegre poderia ser re-

saber: encontrando forças para alimentar a

colaboradores em projetos específicos, de 2003

dimensionada a um retorno fantasioso ao

chama. E perseverar.

à 2007. Foi durante este período que a relação

período cretáceo (ou seria jurássico, como

com o Odin se deu de forma mais estreita. Ren-

naquele filme?). Seja como for, serve como

JULIA VARLEY – ODIN TEATRET

zo Vescovi, diretor do Tascabile, considerava

metáfora: Barba e seus atores como dinos-

Holstebro, 13 de junho de 2012

Barba como um de seus mestres. Diversas fo-

sauros, que, contrariando todas as certezas

Existem dois temas que me interessam quan-

ram as ocasiões de encontro de trabalho entre

da ciência, não estão extintos. Muito pelo

do penso na relação entre o Odin Teatret e as

os dois grupos, durante aqueles anos na Europa.

contrário, esbanjam uma vitalidade destila-

gerações mais jovens que, como nós, fazem

A experiência europeia foi decisiva na criação

da pelos anos, pela maturidade. Estes estra-

teatro hoje: o significado do grupo em relação

de nosso grupo no Brasil – o Teatro Diadokai

nhos seres mantêm sua força contrariando a

à produção artística e cultural, e a capacida-

– fundado em 1996, em parceria com o diretor

ameaça de extinção. Ora, mas todos sabemos

de de suportar uma carga de trabalho que vai

Ricardo Gomes. Desde então, o Teatro Diadokai

que não existem mais grupos de teatro: este

além do normal. Voltamos a Porto Alegre pela

desenvolveu diversos projetos, envolvendo tam-

movimento já passou. E no entanto, do ou-

terceira vez: isso nos permite continuar encon-

bém outros artistas e grupos. Há quatro anos,

tro lado do oceano, na fria Dinamarca, ain-

trando espectadores e gente de teatro do lugar.

nos transferimos do Rio de Janeiro para Minas

da existe um grupo de artistas que acredita

A continuidade e a residência que o Eugenio e

Gerais onde somos professores (eu, substituta e

na ética e na dignidade do trabalho. Como

eu conduzimos para grupos de teatro durante

Ricardo, efetivo) no Curso de Artes Cênicas da

eles, existem alguns poucos no mundo. Eu

a última visita também me deram a chance de

Universidade Federal de Ouro Preto. A partir daí,

também me vejo como uma espécie de di-

refletir novamente sobre temas que me interes-

o Teatro Diadokai entrou em um período de la-

nossauro, que insiste em trabalhar em uma

sam. Um dos aspectos fundamentais do Odin

tência, enquanto buscamos um equilíbrio entre

profissão em extinção, que não interessa

Teatret, como grupo e como teatro laboratório,

vida acadêmica e artística.

mais a quase ninguém. Além de sua experi-

é a cotidianidade ao compartilhar atividades

Foi então que surgiu a oportunidade da residên-

ência artística, os dinossauros da Dinamarca

que não estão diretamente ligadas ao resultado

cia artística com o Odin Teatret, em Porto Alegre.

dividiram conosco, em Porto Alegre, suas in-

(espetáculo), como, por exemplo, fazer o trei-

O reencontro com aqueles que considero como

quietações quanto à efemeridade e à finitu-

namento todo dia. Acho que hoje ficou muito

uma das mais fortes referências em minha for-

de das coisas, preocupações naturais em sua

mais difícil manter essa cotidianidade. A impa-

mação artística, mestres dos meus mestres (os

surpreendente longevidade.

ciência para alcançar resultados, a instabilidade

artistas do Tascabile), foi, de novo, provocador.

Da residência, participamos eu e Ricardo – o

econômica e o profundo desenraizamento geo-

A maturidade (minha e deles) temperou este en-

Teatro Diadokai –, além de representantes de

gráfico fazem com que muita gente se contente

contro com novos sabores. Não foi uma reedição

grupos do sul e de outros estados brasileiros.

em colaborar com projetos e, dessa maneira, o

do Uruguai nem de outras ocasiões que tivemos

Na viagem, nos acompanharam um grupo de

“senso de pertencimento” acaba sendo encon-

na Europa. As questões hoje (para mim e para

jovens alunos do curso de Artes Cênicas da

trado mais dentro das “redes”, e não dos grupos.

eles) são outras. Nos dias que antecederam a re-

Universidade Federal de Ouro Preto que as-

O Odin soube conquistar o tempo para deixar


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

45

que os resultados brotassem do trabalho, sem

Conclusão

o que é diferente. Isso não significa impor

ter em mãos, desde o início, um texto ou uma

Para concluir, volto ao início da Premissa, como

o próprio horizonte e o próprio modo de

história a seguir e sem saber em qual porto se

um uróboro que morde o próprio rabo: “É possível

ver, mas permitir um deslocamento e vis-

desejava chegar. E foi assim que aprendemos

narrar uma história sem ser parcial?”. Este texto se

lumbrar um novo território que fique além

como proceder. Concentrar-se nos impulsos fí-

encerra cheio de frestas, por mais que eu e meus

do universo conhecido.

sicos e vocais, em sua simultaneidade, inclusi-

“companheiros de viagem” tenhamos tentado resti-

(...)

ve em oposição à narração, é uma técnica que

tuir alguns pontos de vista desta história que ainda

A meta a ser alcançada não é se identi-

se baseia na capacidade de reconhecer os si-

se move dentro de cada um, que ainda se faz a cada

ficar numa tradição, mas construir para

nais que o próprio trabalho indica, e cuja qua-

instante, sobretudo quando a memória traz à tona

si mesmo um núcleo de valores, uma

lidade pode ser identificada depois de muitas

um fato inesperadamente relembrado ou quando

identidade pessoal, seja ela rebelde ou leal

representações. Todos os atores do Odin Tea-

um mesmo fato é reinterpretado sob nova luz.

com as próprias raízes. O único caminho

tret passaram por um longo período de apren-

Se dentro deste grande caleidoscópio de pa-

para alcançar essa meta é uma prática

dizagem durante o qual colocaram à prova

lavras e histórias faltam ainda tantas outras pala-

minuciosa que constitui a nossa identida-

sua própria capacidade de resistência, e assim

vras e histórias, significa que há espaço para muito

de profissional. É a competência no ofí-

descobriram energias que ultrapassam o limiar

mais: mais lembranças, mais relatos e, o que é mais

cio que transforma uma condição numa

do cansaço. Como é que um jovem encontra

importante, mais encontros.

vocação pessoal e, aos olhos dos outros,

hoje um mestre, uma mestra ou uma situação

Aqui, todavia, a parcialidade não está apenas

num destino que é, ao mesmo tempo,

qualquer que o obrigue a ultrapassar os limites

na história contada. Está também em um arco de

herança e tradição. Somos nós que deci-

conhecidos para que ele dê o máximo de si?

tempo que ainda não se encerrou. Com certeza,

dimos, profissionalmente, a qual história

A técnica teatral é incorporada, é um pensa-

não foi a última vez que gente de teatro de Porto

pertencemos, quem são nossos antepas-

mento que é ação, é a inteligência dos pés, é

Alegre foi ao encontro do Odin, assim como tam-

sados, aqueles valores nos quais nos re-

algo que não pode ser aprendido nos livros.

bém não foi a última vez que o Odin pôs os pés em

conhecemos. Eles podem ser de épocas e

É uma técnica que deve ser assimilada e defen-

Porto Alegre. Certamente Barba e seus atores ainda

culturas distantes, mas o sentido de seu

dida dia após dia, praticando o ofício durante

voltarão, até mesmo porque – como disse antes

trabalho é a herança que deve ser tutelada

anos. Em uma era tecnológica, talvez o teatro

Gilberto Icle – “os espetáculos que estiveram em

e transmitida. Cada um de nós é filho do

seja anacrônico, mas eu quero defendê-lo exa-

POA não foram os espetáculos exemplares do gru-

trabalho de alguém. Cada um de nós se

tamente porque ele mantém a necessidade de

po...”. É verdade, Porto Alegre ainda não recebeu os

orienta afastando-se de um passado que

um conhecimento incorporado. Em Porto Ale-

“grandes” espetáculos do Odin. Quem sabe eles não

escolheu para si.

gre, tive a confirmação que muitos grupos de

voltam nos próximos anos com seu novo e último

teatro ainda compartilham essa necessidade e

espetáculo A Vida Crônica?

a vivenciam através de sua prática.

Teremos mais histórias para contar. E para finalmente fechar este artigo falando de “influências e reflexões sobre o fazer teatral”, deixo ecoando em vocês mais algumas palavras de

... A história do Odin Teatret em Porto Alegre atravessa fronteiras e gerações, e continuará atravessando. ...

Eugenio Barba: É através da troca, e não no isolamento, que uma cultura pode crescer e se transformar organicamente. O que vale para os indivíduos também vale para quem trabalha no teatro. Mas para que a troca aconteça, é preciso oferecer algo de volta. Nesse sentido, a identidade histórico-biográfica é fundamental para se confrontar com o polo oposto, o encontro com a “alteridade”, com

Patricia Furtado de Mendonça É atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais. É também mestre em Teatro pela UNIRIO e graduada em “Disciplinas das Artes, da Música e do Espetáculo” pela Universidade de Bolonha (Itália). Em 1998, a convite de Eugenio Barba, passa a traduzir seus livros do italiano ao português. Atualmente, conduz uma pesquisa sistemática sobre a relação do Odin Teatret com o Brasil, colaborando com as investigações do Centre of Theatre Laboratory Studies (CTLS) e do Odin Teatret Archives (OTA), Dinamarca.


ARTES CÊNICAS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

46

Diversidade na A 2 Mostra de Teatro de Passo Fundo Com um exemplo concreto de que a promoção de

Com quatro dias de intensa programação,

Quatro dias de

ações culturais sistemáticas provocam mudanças

a mostra teve entre os destaques o espetáculo

programação

significativas na sociedade – com mais de 30 anos

A Construção, com ator Caco Ciocler interpretan-

de atividades ininterruptas relacionadas à Jornada

do Franz Kafka em uma produção adaptada do

Nacional de Literatura, Passo Fundo orgulha-se de

texto do escritor austríaco e dirigida por Roberto

ter um índice de leitura semelhante ao da França,

Alvim. Um dos últimos trabalhos de Kafka, a obra

de 6,5 livros por pessoa ao ano – o Sesc desenvolve

foi escrita quando o autor já sofria de tubercu-

um trabalho permanente de formação de plateia

lose, o que aproxima a relação com a morte. O

no município há cinco anos. Para marcar o aniver-

resultado é uma metáfora sobre o modo como

sário da inauguração da Unidade Operacional que

nos fechamos um para o outro a fim de evitar

abriga o Teatro Sesc, foi realizada no fim de junho a

uma ameaça a nossa segurança psíquica, física e

2ª Mostra de Teatro de Passo Fundo, consolidando

emocional, característica que evidencia o caráter

a maratona de espetáculos iniciada em 2011.

universalista da montagem.

intensa marcaram o aniversário de cinco anos do Sesc NA CIDADE

“Nosso palco é um divisor de águas na área

A programação evidenciou o trabalho de

de formação de plateia, trazemos espetáculos que

grupos e levou ao palco do Sesc os coletivos gaú-

incomodam, instigam o público, provocando uma

chos Santa Estação Cia. de Teatro, de Porto Alegre,

transformação”, explica a agente de Cultura e La-

com sua adaptação para a obra A Tempestade de

zer do Sesc Passo Fundo, Andressa Pagnussat de

Shakespeare, A Tempestade e os Mistérios da Ilha; e

Quadros. Segundo ela, em decorrência de todo o

o De Pernas pro Ar movimentou a Praça Antonino

trabalho realizado, o público vai se tornando mais

Xavier com o espetáculo MIRA – Extraordinárias

crítico, o que aumenta a responsabilidade da ins-

diferenças, sutis igualdades. O grupo Foguetes

tituição como promotora de cultura. Com esta

Maravilha, do Rio de Janeiro, apresentou Ninguém

preocupação, a organização da Mostra de Teatro,

Falou que Seria Fácil, enquanto o Lume Teatro, de

prezando a diversidade cultural, busca explorar as

São Paulo, encenou O Não-Lugar de Agada Tchai-

vertentes do teatro, abrindo espaço às interven-

nik. O Grupo Timbre de Galo, de Passo Fundo, reali-

ções urbanas e ao teatro de rua, além de espetácu-

zou intervenções no comércio para divulgação, nos

los de palco nos gêneros comédia, drama e infantil.

dias que antecederam a Mostra, e seus integrantes ministraram uma oficina de iniciação teatral para crianças. Já o ator gaúcho Guto Pasini coordenou uma atividade de formação para adultos. A mo-

Espetáculo A Construção, com Caco Ciocler, foi um dos destaques do evento que vem contribuindo para a formação de plateia Foto: Divulgação

vimentação também tomou as ruas do centro da cidade com a passagem do cortejo Asas de um Sonho, da Cia. Sorriso com Arte.



PRIMEIRO SEMESTRE

2012

48

A música como instrumento de inclusão social Projetos desenvolvidos no Rio Grande do Sul impulsionam transformações na vida de centenas de jovens

MÚSICA


MÚSICA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

49

Vida com Arte, projeto social da Unisinos e do Colégio Anchieta, atende 240 crianças e adolescentes

Enquanto grande parte da população se limita a

Um desses exemplos é Keliézy Severo, 26

criticar a qualidade do ensino público no Brasil ou

anos, professora de música e musicista cuja tra-

debater o sistema de cotas para ingresso na uni-

jetória de vida tem inspirado muitos jovens da Vila

Foto: Arquivo Vida com Arte

versidade como mecanismo de compensação pela

Mapa, onde se localiza a Orquestra Villa-Lobos.

Orquestra Villa-Lobos foi criada a partir das aulas de música em escola do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre

desigualdade, projetos focados na inclusão social

Aos 10 anos, devido ao interesse demonstrado nas

pela música estão proporcionando a centenas de

aulas regulares de música da Escola Municipal de

crianças e adolescentes gaúchos uma nova visão

Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos, Keliézy foi

de mundo e abrindo possibilidades profissionais.

convidada, junto com outros colegas, para apren-

Vida com Arte, projeto social da Unisinos e do Co-

der a tocar flauta doce, vislumbrando o ingresso na

légio Anchieta, Orquestra Villa-Lobos, desenvolvido

orquestra. Em uma comunidade economicamente

na comunidade do bairro Lomba do Pinheiro em

carente e desprovida de opções de esporte, cultura

Porto Alegre, Cuica – Cultura, Inclusão, Cidadania

e lazer, tratava-se de uma oportunidade rara que a

e Artes, de Santa Maria, Fábrica de Gaiteiros, par-

jovem, com o apoio da família, não deixou escapar.

ceria da Fundação Renato Borghetti e Sesc/RS, e

“Com as aulas de iniciação à flauta doce, a

Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul, mantida

música passou a fazer parte da minha vida de uma

pelo governo estadual, com patrocínio do Banrisul,

forma expressiva e a cada nota, sonoridade, gesto,

estão entre as iniciativas que colecionam exemplos

conteúdo aprendido aumentava minha vontade

bem-sucedidos de transformação a partir da edu-

e ansiedade de aprender. Quando entrei para o

cação musical.

grupo de flautas, as apresentações realizadas nas

Foto: Caludio Etges


MÚSICA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

50

Jovens da Cuica, de Santa Maria, fizeram apresentação memorável nas comemorações de 90 anos do Palácio Piratini Foto: Arquivo Cuica

me envolviam cada vez mais”, conta. Em 2006, o

CONTRIBUIÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

aprendizado de um novo instrumento, o violon-

O projeto da Lomba do Pinheiro, que completou

celo, e as vivências como monitora nas aulas de

20 anos em abril, surgiu da sensibilidade de Cecí-

iniciação musical deram a Keliézy a certeza de que

lia Silveira, professora de música da Escola Villa-

sua profissão seria professora de música.

-Lobos, para perceber o interesse das crianças

escolas, creches e comunidades me motivavam e

Keliézy cursou faculdade de música e atual-

em aprofundar os estudos na área. “Mesmo com

mente trabalha em dois projetos sociais de educa-

poucos recursos, proporcionar uma educação

ção musical, com 230 alunos. Nas Oficinas de Mú-

musical de qualidade poderia ser uma fantásti-

sica da Escola Villa-Lobos, atua como professora

ca forma de inclusão social para aquela comu-

de iniciação à flauta doce e de musicalização e no

nidade”, afirma. Numa parceria da escola com a

projeto Vida com Arte da Unisinos é professora de

ONG Instituto Cultural São Francisco de Assis, a

violoncelo e de musicalização. “Não imagino como

Orquestra Villa-Lobos atende desde a musicaliza-

teria sido minha vida sem o projeto da Orquestra

ção em três escolas infantis da rede municipal,

Villa-Lobos. Interferiu nas minhas relações, amiza-

oferece aulas de música às crianças atendidas

des, na escolha da minha profissão, me tornei líder

pela ONG parceira, todas alunas de escolas pú-

comunitária, conheci meu marido...”

blicas, e garante a formação musical em variadas


MÚSICA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

51

oficinas, da iniciação musical até a capacitação de

grupos de música de câmara proporciona melhor

que tinha, na música de percussão, o instrumento

monitores e o ingresso na faculdade de música.

concentração e é um exercício de convivência. Al-

para integrar à sociedade meninos e meninas do

Atualmente, o programa presta mais de 850 aten-

guns jovens certamente serão músicos no futuro,

bairro Camobi, proporcionando à eles uma opor-

dimentos semanais gratuitos à comunidade. Além

mas o mais importante são as ações positivas que

tunidade de pensar um futuro diferente, uma vez

disso, 40 jovens oriundos das oficinas integram a

o projeto proporciona”, salienta o maestro.

que uma significativa parcela dos participantes

orquestra que cumpre uma intensa agenda artís-

Matté diz que relatos de mães e professores

vinham de comunidades desprovidas de neces-

tica em Porto Alegre, interior e em outros estados.

atestam a melhora do desempenho escolar de

sidades vitais para o desenvolvimento humano

“A música transformou a vida de todos os

crianças que participam do Vida com Arte. Além

saudável, pelo contrário, estigmatizadas pelo seu

jovens do projeto. Deu significado, empode-

disso, ao promover o convício permanente destes

alto grau de pobreza, violência, consumo e tráfico

ramento, dignidade e autonomia, despertou a

jovens e professores, acaba-se formando um grupo

de drogas ”, conta.

sensibilidade, além de colocá-los num patamar

de amigos vinculados à música, o que leva, teorica-

Oficina de Percussão de Camobi era o nome

diferenciado, por se apropriarem de um conhe-

mente, a uma rotina saudável de vida. “É uma rea-

do primeiro projeto, que logo foi ampliado, pois Zé

cimento que tem oportunizado a construção de

lização contribuir para que estas crianças tenham

Everton percebeu, com a convivência, que só a mú-

projetos de vida reveladores na comunidade”,

contato com a música e com profissionais qualifi-

sica não daria conta dos problemas enfrentados

destaca Cecília. A professora, que também é re-

cados e saber que podemos melhorar a qualidade

pelos alunos. Voluntários de outras áreas foram

gente, arranjadora, produtora artística e executiva

de vida delas; por isso, todos os dias trabalho para

entrando no grupo e uma associação jurídica, esta

e coordenadora das oficinas, diz que no âmbito da

viabilizar o projeto e buscar sua ampliação.”

denominada Cuica, foi criada. “Abrimos as portas,

escola os participantes são destacados em suas

divulgamos e vem quem quer, sem critério de se-

turmas curriculares: percebem os conteúdos de

UMA HISTÓRIA COLETIVA

leção. Mais de 300 jovens já passaram pelo projeto

uma forma mais abrangente, completa, fazem as

De Santa Maria, o projeto da Associação CUICA

e 60 desenvolvem seus estudos diariamente nas

inter-relações dos fatos com agilidade, são líderes

– Cultura, Inclusão, Cidadania e Artes surgiu da

escolas públicas do bairro e nas oficinas aqui na

e desenvolveram uma capacidade de organiza-

dificuldade encontrada pelo seu fundador e coor-

sede”, afirma o músico, que concluiu sua tese de

ção. “Como dados concretos da transformação de

denador José Everton Rozzini em se tornar músico.

mestrado sobre a inclusão pela música em junho.

vida, temos dois professores de música formados

Zé Everton, como é conhecido, teve seu primeiro

Por meio de parcerias e patrocínios, os ins-

que iniciaram comigo há mais de 15 anos (uma

contato com a música de percussão aos 13 anos na

trumentos foram sendo adquiridos, outros cons-

é Keliézy), uma monitora cursando a faculdade

escola em que estudava – o músico era o profes-

truídos pelos alunos com materiais alternativos,

de música na UFRGS, outra no curso técnico de

sor Ney Rosauro, da Universidade Federal de Santa

músicos profissionais de diversas vertentes foram

música da UFRGS e quatro se preparando para

Maria na época, acompanhado de um aluno seu

apresentados aos jovens e hoje a Cuica funciona

ingressar no curso de música no próximo ano”,

de percussão Gilmar Goularte, hoje professor da

como um catalisador de uma nova realidade. O

comemora Cecília.

mesma universidade. O contato despertou o desejo

grupo de percussão já realizou diversas apresen-

Iniciativa conjunta da Unisinos e do Colégio

de ser músico, tocar bateria. Nos anos seguintes,

tações em Santa Maria e em outros municípios,

Anchieta, o projeto Vida com Arte atende a 240

ao trabalhar no posto bancário da Base Aérea, o

participou de um evento na Assembleia Legislativa

crianças e adolescentes da rede pública de ensino

menino conheceu os músicos da banda e passou

do RS, foi a principal atração artística no aniversá-

que têm a oportunidade de acesso ao aprendizado

a acompanhar os ensaios sempre que podia. Aos

rio de 90 anos do Palácio Piratini, sede do governo

da música como forma de convívio social. Além de

16 anos, assim que teve condições de pagar um

gaúcho, e chegou a se apresentar em Brasília.

três classes semanais de música, o projeto oferece

professor com seu próprio salário, iniciou as aulas

atendimento psicológico, acompanhamento de

e, aos 21, comprou a primeira bateria.

Segundo o idealizador, as atividades na Cuica são pensadas como proposta pedagógico-musical

assistente social e também os instrumentos. Se-

Zé Everton dividia seu tempo entre o tra-

na dimensão viva da experiência, em que os jovens

gundo o maestro da Orquestra Unisinos e coorde-

balho, ensaios e bailes/shows até que assistiu ao

estejam se mobilizando, continuamente, tendo o

nador do projeto, Evandro Matté, a música pode

Grupo de Percussão da UFSM e decidiu fazer fa-

aprendizado musical permeando todas as ações.

contribuir imensamente no desenvolvimento

culdade de música. “Nesta época, conheci muita

“Não há uma imposição de cima para baixo, há,

cognitivo de crianças e jovens. “É comprovado

gente e percebi que existiam projetos sociais que

sim, uma situação de diálogo, que se constrói em

que o contato com a música melhora o desempe-

proporcionavam uma vida diferente, que reper-

parceria, calcada numa música forte, que exige

nho escolar, principalmente em disciplinas como

cutiam na vida das pessoas. Sem nunca ter cogi-

dedicação, que tem objetivos comuns, e que os

matemática e física, e trabalhar em pequenos

tado ser professor, resolvi, então, criar um projeto

identificam com o grupo”, explica. O que move


MÚSICA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

52

os participantes da Cuica, diz, é a possibilidade de

proporcionando uma oportunidade de vida – está

construir uma história que é coletiva, possui uma

entre os principais objetivos. “Ao atingi-lo, inú-

dimensão social que ultrapassa as fronteiras da

meros outros em etapas anteriores já terão sido

comunidade onde se desenvolve, mas, ao mesmo

conquistados”, analisa o maestro Telmo Jaconi,

tempo, é uma experiência local, que se constitui

diretor musical do projeto.

em um patrimônio cultural daquele lugar. Situação

Jaconi explica que a educação musical na

na qual o saber musical, que dá sentido ao grupo,

orquestra, composta por 44 integrantes, pro-

constrói-se por meio do diálogo e da integração de

porciona um aprendizado bastante completo e

conhecimentos. A Cuica realiza atividades voltadas

abrangente. Além das disciplinas musicais prá-

para a música erudita, popular, regional gaúcha,

ticas e teóricas, com seu funcionamento, a or-

samba, rock, pop, eletrônica, entre outras.

questra apresenta uma forma muito completa de

Keliézy Severo (de costas, regendo) foi aluna do projeto do bairro Lomba do Pinheiro e hoje é professora da Orquestra Villa-Lobos e do Vida com Arte Foto: Arquivo pessoal

vida em sociedade, trabalho em equipe, respeito

UMA PROFISSÃO NO HORIZONTE

mútuo e colaboração em grupo. “Aprende-se a

disponível para estudos diários do instrumen-

Criado em 2008 a partir de uma iniciativa da

respeitar os espaços de cada um e a convivência,

to, obrigatórios. “Os jovens percebem que para

Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social

mesmo que com diferenças naturais existentes

conquistar espaço, reconhecimento e respeito é

do Rio Grande do Sul, a Orquestra Jovem do Rio

entre os seres humanos”, afirma. Para o maes-

preciso investir em si mesmo e abrir mão de al-

Grande do Sul tem uma dinâmica diferente. Os

tro, a mudança mais perceptível observada no

gumas horas de diversão, e eu agradeço sempre

integrantes são selecionados entre alunos de 10 a

grupo é a de atitude. Identificando a si próprios

por ter tido a oportunidade de transmitir meus

14 anos das redes públicas estadual e municipal

como integrantes do grupo Orquestra Jovem do

conhecimentos a quem tanto precisa de orien-

de Porto Alegre, por edital, e a formação de mú-

Rio Grande do Sul, buscam na disciplina e na

tação positiva e construtiva em suas vidas.”

sicos profissionais – inclusão social pela música

organização uma maneira de aproveitar o tempo


MÚSICA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

53

Por Paulliny Gualberto, jornalista

que, com certeza, exige horas de estudo. A dedicação que resultou num concerto único, marcado pela força da percussão, pelo ânimo da juventude e notas de uma charmosa identidade gauchesca. Era música de primeira linha, fruto de uma iniciativa como poucas no Brasil. Algo que nos faz lembrar que nenhum projeto social deve se pautar pelo assistencialismo, mas pela real distribuição de oportunidades. Pelos resultados, estou certa de que o Cuica não é filantropia. É, sim, o trabalho de uma equipe incansável, que batalha para botar seu bloco na rua.

UMA TARDE COM CUICA

O nome do grupo é uma sigla que significa Cultura, Inclusão, Cidadania e Artes. Caiu como uma luva. Num país onde o acesso à cultura é tão

brincadeiras, estavam concentrados, no aguardo

limitado e as chances de se obter educação musi-

da ordem do professor que havia se posicionado

cal são remotas, Zé Everton, idealizador e coorde-

de frente para eles, de costas para o público, como

nador do projeto, traz uma proposta transforma-

um regente deve fazer. De repente, a mão destra se

dora. Quando ouvimos os solos nos tambores e

ergueu e a pulsão tomou o ar: o batuque, guiado

pandeiros, quando percebemos o vigor das mãos

pela gaita melodiosa, encheu a sala de vida. Era só

e vemos os sorrisos desse pessoal, entendemos o

o início do concerto e foi difícil segurar o nó na

quão poderosa é a arte e ficamos admirados com

garganta; bonito demais ver aquela moçada arre-

as virtudes do ser humano. Triste é pensar nos

bentar, deixar a gente boquiaberto. E é sem exage-

talentos que estão minguando, neste exato mo-

ro que afirmo que eles tocaram a mais encantado-

mento, por não terem encontrado um Cuica pelo

ra execução do Hino Nacional que ouvi até hoje.

caminho, por serem reféns da exclusão e do pre-

Eu sabia que aqueles meninos e meninas fa-

conceito. Fica o desejo de que o Cuica tenha con-

Quatro da tarde, hora da pausa num evento qual-

ziam parte de um projeto chamado Cuica, de Santa

dições de abraçar e formar muitos outros jovens

quer de Brasília. Meninos e meninas entraram no

Maria, no Rio Grande do Sul. Que eram todos es-

artistas. Só é uma pena que na sigla do projeto

palco, aos poucos, ajeitando-se com seus instru-

tudantes de escolas públicas, que enfrentaram 40

não caiba uma letra "pê", de paixão. Da paixão

mentos. Alguns eram já rapazes e moças de apa-

horas de ônibus até Brasília, para que nós, a plateia,

que toma essa gurizada pela música, da paixão,

relho nos dentes, outros, quase desapareciam por

pudéssemos conhecê-los. Mas a dureza da jornada

inevitável, que nos arrebata ao vê-los no palco:

detrás dos tambores robustos. Um grupo hetero-

não me comoveu. Nem o fato de nenhum deles vir

lindos, poderosos, rítmicos. Nossos pequenos or-

gêneo, diversificado, em que a gurizada de várias

de família rica. O que me tirou o fôlego foi a quali-

feus. Vida longa à cultura! Vida longa ao Cuica!

idades, de várias etnias se somava. Não se viam

dade da música daquela gurizada. O apuro técnico


PRIMEIRO SEMESTRE

2012

54

ARTES VISUAIS


ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

55

Duas vezes Fabio Zimbres O quadrinista, ilustrador, editor, artista visual e de-

Ao mesmo tempo em que editava a Animal,

signer gráfico está com duas exposições em circu-

Zimbres publicava na Chiclete com Banana e, já

lação no Rio Grande do Sul pelo Sesc: Mahavidyas,

morando em Porto Alegre, entre 1999 e 2001,

mostra criada a partir das ilustrações do livreto do

assinava a tira Vida Boa na Folha de São Pau-

CD com as músicas do balé homônimo composto

lo, que virou livro em 2009. Pela sua editora, a

por Vagner Cunha, e Na Tábua volume 1, que inte-

Tonto, lançou a coleção miniTonto, que publicou

gra o projeto de literatura + desenho desenvolvido

livros de Allan Sieber, Guazelli, Jaca, entre ou-

em parceria com o escritor Paulo Scott.

tros, e também o seu livro Apocalipse segundo

O ano era 1986 quando o estudante de ar-

Dr. Zeug, em 1997. O artista publicou ainda o

quitetura da USP Fabio Zimbres, colecionador

livro Feliz, pela Pequeño Editor, de Buenos Aires,

inveterado de HQs, editou uma revista em qua-

e a graphic novel Música para Antropomorfos,

drinhos, Brigitte, com Newton Foot. Foi a primeira

lançada em parceria com a banda de Goiânia

experiência profissional desta lenda das histórias

Mecanics, numa espécie de combo livro+CD, pela

em quadrinhos alternativas, que passou a pu-

Livros Voodoo.

blicar em outras revistas até se envolver com a

Zimbres produz, paralelamente, ilustrações

equipe da revista Animal, que circulou entre 1988

para veículos como Zero Hora e Le Monde Diplo-

e 1991 com o subtítulo de Feio Forte Formal, e

matique Brasil, e também ilustração para livros.

apresentou Milo Manara, Charles Burns, Jano e

A partir de 1996, amplia o foco do seu trabalho

a dupla Liberatore e Tamburini aos leitores bra-

e começa a mostrar suas obras em exposições

sileiros, além de ter lançado muitos autores que

coletivas e individuais em espaços com Centro

viriam a se tornar grandes nomes desse universo

Cultural Recoleta, em Buenos Aires, Museu do

como Lourenço Mutarelli, Guazelli, Jaca, Adão

Trabalho, Margs, Sesc e galerias de arte de Porto

Iturrasgarai, entre outros. A essa altura, Zimbres,

Alegre, São Paulo, Estados Unidos, Portugal e até

sabendo que arquitetura não era a sua, já havia

do Japão. Zimbres coordena com Paulo Scott o

deixado a faculdade em São Paulo para mais tar-

projeto Na Tábua, que mistura literatura e artes

de cursar Artes Visuais no Instituto de Artes da

nas ruas, e participa dos coletivos A Casa do De-

UFRGS, onde se formou.

senho, Charivari e NOH.


ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

56

Embora o artista tenha admiração pelos tra-

25 anos da Orquestra de Câmara do Teatro São Pe-

e Garopaba, em Santa Catarina. Como curadores,

balhos do desenhista impressionista alemão Georg

dro, que executou o balé coreografado por Carlota

Scott e Zimbres convidaram amigos, pessoas cujo

Grosz (1893-1959), pelo quadrinista e arquiteto

Albuquerque e apresentado pela companhia Terpsi

trabalho acompanhavam de longa data, e agrupa-

italiano Francesco Altan e por autores de HQs ame-

Teatro de Dança.

ram grande parte dos escritores e desenhistas que

ricanas do começo do século – de quem copiava os

As imagens do folheto representam a leitura

têm inovado nestas manifestações artísticas no país.

desenhos desde criança – são outras manifestações

de Zimbres para a música de Vagner. “Desde o co-

Participaram desta primeira fase, 60 escritores e 30

artísticas que mais o inspiram, com destaque para

meço do projeto, já existia a possibilidade de uti-

desenhistas, além dos organizadores. Zimbres conta

o cinema e a literatura. “O que eu assisto ou estou

lizar ilustrações relativas aos movimentos da peça

que, como muita gente ficou de fora, a dupla tem

lendo no momento acaba saindo, tudo faz parte de

em formato maior”, conta o artista. No tamanho

planos de realizar o Volume 2.

um universo que faz parte de mim”, reflete.

40x80, porém, as ilustrações não são simples am-

O ilustrador diz que a parceria neste projeto

pliações das que estão no CD. “Quando surgiu a

surgiu em consequência dos saraus promovidos

MAHAVIDYAS e na tábua

oportunidade de expor, realizei um retrabalho em

por Scott. “Ele sempre fez literatura ligada à mú-

Os oito desenhos que fazem parte da exposição

cima dos desenhos, fazendo uma adaptação e in-

sica e eu fazia os cartazes de divulgação, até que

Mahavidyas, em circulação pelo Sesc/RS desde o

serindo novos elementos que o formato anterior

surgiu a ideia destes cartazes como peças autô-

começo do ano, foram originalmente criados a con-

não permitia”, descreve.

nomas, com vida própria. Então criamos o projeto

vite do compositor Vagner Cunha para integrar o

O projeto Na Tábua foi idealizado pelo artista

com um poema e uma ilustração em cada cartaz”,

encarte do CD duplo com as músicas do balé livre-

visual Fabio Zimbres e pelo escritor Paulo Scott com

explica. Hoje, o trabalho está circulando como ex-

mente inspirado nas deusas do hinduísmo. O CD foi

o objetivo de levar a arte – literatura + ilustração – a

posição e, em breve, deverá ser editado um livro.

lançado durante as comemorações de aniversário de

espaços públicos. A exposição intitulada Na Tábua Volume 1 reúne as 30 edições com três cartazes cada afixados em bares, cafés e livrarias e outros espaços de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba


ARTES VISUAIS

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

57

A exposição Mahavidyas surgiu a partir dos desenhos criados para ilustrar o encarte do CD de Vagner Cunha com as músicas do balé Projeto Na Tábua reúne principais nomes da literatura e do desenho no Brasil


PRIMEIRO SEMESTRE

CINEMA

2012

58

Por Marco Aurélio Lopes Fialho assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do SESC


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

59

1 Trecho da canção Velha roupa colorida, de Belchior

A representação fantástica de Vincent Price "Como Poe

mas o maior volume dessa produção se encami-

Poeta louco americano

nha para a literatura. O desafio, entretanto, não

Eu pergunto ao passarinho:

pode esmorecer os interessados no misterioso e

Black bird o que se faz?

escasso assunto.

Black bird me responde:

A nossa escolha pelos trabalhos de Vincent

Tudo já ficou para trás

Price caracteristicamente voltados para o terror

Assum preto me responde:

B nos vislumbra como o caminho mais coerente

O passado nunca mais" [1]

a ser seguido, já que o ator pode ser considerado o seu maior ícone. O seu nome está de tal jeito

O Sesc, com enorme satisfação, traz ao público brasileiro oito filmes em homenagem ao

engendrado na forma terror B que fica até difícil

atmosfera funesta a partir desses elementos, sem

não associá-los.

dúvida, os aproximaria desse universo.

centenário do ator estadunidense Vincent Price.

Portanto, ao centrarmos uma mostra nos

A própria nomenclatura terror B já a relaciona

Ícone do chamado terror B, o ator trabalhou em

filmes atuados por Price, nossa intenção maior é

com os baixos recursos financeiros envolvidos nes-

outros gêneros, mas foi no cinema fantástico que

desvendar, por meio dessas obras, as principais

se tipo de produção, que por um lado estimulava

deixou sua marca inconfundível.

características estéticas que compõe os filmes do

soluções criativas na mise-en-scène e, por outro,

Vincent Price até atuou em superproduções,

chamado terror B. A ambição principal é estudar

revelava algumas precariedades, como o uso de

entre elas podemos citar Os Dez Mandamentos,

esse tipo de cinematografia, que se aproximou do

efeitos especiais rudimentares, que com o passar

porém, nelas sempre foi inserido como coadju-

fantástico para se distinguir de outras formas de

das décadas selaram nesses filmes a marca de cult.

vante, tendo se destacado como protagonista so-

se realizar cinema.

Oito filmes foram escolhidos para a mostra

mente nos filmes de horror de baixo orçamento.

Para essa ideia ficar mais evidente, citamos,

A Representação Fantástica de Vincent Price, to-

Mas o que nos salta aos olhos é a intrínseca rela-

por exemplo, a artesania dos filmes de terror B, o

dos realizados na época áurea do chamado terror

ção entre o ator e o gênero fantástico, sobretudo

quanto os diretores desse gênero demonstraram

B, produzidos entre 1958 e 1974. Os anos 60 e

as suas participações em filmes na década de 60,

sua admiração por aspectos da estética expres-

70 podem ser compreendidos como o período de

época áurea do gênero, que deram projeção tanto

sionista, principalmente no uso das sombras, do

ápice dessa estética, quando a maioria dos filmes

ao ator quanto ao gênero.

décor insinuante e do uso da maquiagem como

referenciais foi rodada.

Há muito poucos estudos sobre o tema do

artifício cênico, mesmo admitindo que a forma do

Os oito filmes que compõem a mostra são:

fantástico no cinema, principalmente no Brasil,

uso não é a mesma, mas o desejo de criar uma

A Casa dos Maus Espíritos (1958), O Corvo (1963),


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

2 Trecho do conto O Poço e o Pendulo, de Edgar Allan Poe.

60

A Queda da Casa de Usher (1960), Muralhas do Pavor (1962), As Sete Máscaras da Morte (1973), No Domínio do Terror (1963), Dr. Morte (1974) e O Abominável Dr. Phibes (1971).

O Fantástico e o Expressionismo “O odor do aço afiado introduzia-se nas minhas narinas. Roguei aos céus, fatiguei-o com a minha prece – para que fizesse o aço descer mais rapidamente. Estava louco, frenético, esforcei-me por me erguer e ir ao encontro da terrível

do gênero fantástico como roteirista de filmes.

sem profundidade; as interpretações exageradas

cimitarra balouçante. E depois, subita-

Somente no início dos anos 20 que o fantástico

cheias de movimentos de corpo marcantes; temas

mente, caí numa grande calma e fiquei

atinge no cinema uma força incontestável, com

mórbidos; fotografia acentuando os contrastes

sorrindo para aquela morte resplande-

o sucesso do filme de Robert Wiene, O Gabinete

entre as partes muito claras e as muito escuras;

cente, como uma criança para algum

do Dr. Caligari.

o medievalismo, incluindo a aproximação com

brinquedo precioso.”[2]

Em Caligari, vem à tona todo o potencial expressionista ao revelar uma Alemanha góti-

o gótico; personagens visualmente perturbados com nítidos conflitos emocionais.

De acordo com o crítico literário Tzvetan

ca, demoníaca, com seus pesadelos mais obs-

Todorov, o fantástico pode ser entendido como

curos. O mais incrível no filme de Wiene é a

tal quando se põe em dúvida a noção de real de

sua capacidade de tornar o gênero fantástico,

O Terror B e o Expressionismo Alemão

um determinado fenômeno, isto é, quando não

até então essencialmente literário, totalmente

Conforme já afirmamos, não se trata de criar

se consegue explicá-lo pela lógica, mas somente

palpável para o gênero cinematográfico.

transferências da forma estética do expressionis-

sob a regência de outras leis que desconhecemos.

Não por acaso, comumente se relaciona o

mo alemão para os filmes de terror B, mas vê-los

Para Todorov, normalmente um fenômeno “se

expressionismo com o fantástico. Sobretudo o

como referência inspiradora traz uma luz especial

pode explicar de duas maneiras, por meio de cau-

fazemos aqui com o propósito de criar vínculos

para a abordagem estética desse cinema, consi-

sas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade

com o nosso objeto, os filmes de terror B, inclu-

derado por muitos como menor, um mero sub-

de se hesitar entre os dois criou o efeito fantás-

ídos aí os atuados por Vincent Price. É evidente

produto da indústria.

tico.” (Introdução à literatura fantástica, Tzvetan

que existem diferenças marcantes entre os dois

Mesmo desprezado e alijado das análises

TODOROV, 1968, p. 31).

objetos, mas as distâncias não devem suprimir ou

mais pungentes, porque não dizer as mais cultas

evitar aproximações bastante interessantes.

da crítica contemporânea, os filmes de terror B

O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como seu autor-

De forma corrente, o período considera-

constituem uma cinematografia realizada com

-ícone, mas a sua concepção é muito bem assi-

do pela crítica como o áureo do expressionismo

baixos custos, mas com resultados esteticamente

milada pelo cinema ainda em seus primórdios.

como movimento, aqui entendido em sua versão

expressivos e dotada de um humor muito típico,

O ilusionista e cineasta francês Georges Méliès

cinematográfica, está situado entre os anos de

quase sempre sarcástico, debochado, às vezes

é considerado um dos precursores do cinema

1920 e 1924. Após 1924, os críticos salientam um

com toques mesmo de humor negro autorrefe-

fantástico, com o seu célebre filme Viagem à Lua

declínio do expressionismo, ele ecoará ora como

rencial. Rir do próprio gênero terror dá um matiz

(1902), quando o cinematógrafo ainda era mais

inspiração, ora como influência residual em al-

diferenciado, provoca no espectador um afasta-

uma curiosidade do que um aparelho apto a criar

guns filmes alemães produzidos posteriormente.

mento estético interessante, por mais que não

uma linguagem autônoma.

Dentre as principais características do pe-

fosse esse um claro objetivo dos diretores no ato da filmagem e edição dos filmes.

Mas é no cinema alemão que o fantástico

ríodo do expressionismo no cinema podemos

surge com maior vigor, antes mesmo da eclo-

enumerar: o uso da maquiagem e figurinos es-

Já que citamos as principais características

são do expressionismo alemão, já nos anos 10

tilizados; artificialismo, principalmente provo-

do Expressionismo Alemão e propomos, a seguir,

do século XX, com a incorporação de escritores

cado pelos cenários acachapantes e tortuosos,

criar um diálogo entre elas e o nosso objeto, seria


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

61

o segundo, o da presença do humor como elemento de desestruturação da própria narrativa fantástica. O chamado terror B utilizou-se de alguns traços expressionistas, sim, mas o fez sempre o temperando com o viés cômico, marcando assim uma profunda clivagem em relação ao Expressionismo. O terror B assumia um sentido farsesco que era inconcebível à estética expressionista. O toque de humor dado fundamentalmente pela narração atribui ainda à obra a certeza de que o que está se assistindo é uma fábula. Isto oportuno então retornarmos agora a essa ideia já

Como bem assinala a professora e pesqui-

fica bem evidenciado quando pensamos no fil-

anunciada. É fundamental esclarecer de imediato

sadora Laura Cánepa – e essa observação é de

me O Corvo, dirigido por Roger Corman, diretor-

que o uso dos elementos ou de características es-

grande valia para a nossa análise sobre o terror

-ícone do terror B.

téticas ocorre em momentos históricos diversos,

B – o grande êxodo de artistas, atores e técnicos

Da mesma forma que no Expressionismo

assim como servem para motivações artísticas

alemães dessa época difundiram consideráveis

Alemão, a concepção visual (cenários e maquia-

nada similares. Mas, como muito acontece nas

influências “expressionistas” pelo mundo, sobre-

gem) nos remete a um artificialismo, também no

artes em geral, o que importa é a subtração de

tudo nos Estados Unidos, e mais especificamente

terror B ele se faz presente, mas seu tipo de ar-

uma forma estética para sua reutilização em ou-

em Hollywood.

tificialismo é acentuado não só pela concepção

tro contexto tanto artístico quanto político.

Muito discorremos até aqui sobre o tal terror

visual dos cenários, mas também pela escolha de

O período histórico do nascimento do Ex-

B, o que suscita uma pergunta pertinente: se exis-

efeitos especiais rudimentares. Novamente, um

pressionismo o localiza imediatamente após

te o terror B, existiria então o terror A, ou antes, o

exemplo contundente é o do O Corvo, onde esses

a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial

terror por excelência? A nosso ver, essa pergunta

efeitos adicionam uma faceta cômica ao filme.

(1914-1919) – O Gabinete do Dr. Caligari foi

mais que justificável é realmente oportuna e pede

produzido em 1919/20. Muitos críticos relacio-

mais esclarecimentos.

A opção pelo cômico, sem dúvida, acrescenta um diferencial estético ao terror B, já que o

nam o Expressionismo como uma resposta da

Se analisarmos a incorporação do terror ao

orçamento e a tecnologia de ponta da época não

vanguarda alemã à atmosfera de decadência e

gênero cinematográfico, veremos que um ponto

permitiam grandes efeitos especiais, inclusive, es-

crise moral do período compreendido como a

de partida onde o encontramos de maneira mais

ses só seriam realmente incorporados à indústria

República de Weimar (1919-33) e prenuncia-

sistematizada é a do próprio Expressionismo

do cinema em meados dos anos 80.

dor do surgimento do nazismo. Hoje, essa ideia

Alemão.

Até os anos 70, os efeitos especiais ain-

não deve ser tomada de forma absoluta, outras

No Expressionismo, encontramos, conforme

da estavam sendo testados em filmes que mais

questões são também apontadas como influen-

já analisado, uma exacerbação dos elementos

adiante modificariam o próprio conceito de filme

tes, tal como o gosto pelo medievalismo (gótico)

imagéticos, mas eles representavam uma exte-

de entretenimento. Guerra nas Estrelas (Star

e a tradição romântica alemã.

riorização de um estado interior, uma materia-

Wars/1977), de George Lucas, foi o filme-refe-

Desde os primórdios do cinema, tem-se

lização espiritual, e sua potência estética vinha

rência dessa época. Importante frisar que os oito

registro de filmes de terror. No primeiro ano do

dessa confrontação do externo com o interno.

filmes selecionados para a Mostra Vincent Price

cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou

Isso caracterizaria então o terror expressionista

são anteriores a essa data.

um pequeno curta-metragem com a temática. As

como a assimilação expressiva de um elemento

histórias de terror foram sendo filmadas nas dé-

psicológico, coisa que não encontraremos como

Vincent Price e o terror B

cadas posteriores, mas somente no Expressionis-

ponto de partida do terror B.

Neste momento, seria de bom tom um breve

mo Alemão o terror adquiriu uma maior presença

Dois elementos têm que ser considerados no

esclarecimento. Não se pode conceber o ator

e vigor. O Gölem, O Gabinete do Dr. Caligari, Nos-

terror B e que o diferencia de forma substancial

Vincent Price como o único expressivo do terror

feratu, Fantasma, entre outros, serviram de fonte

da estética Expressionista. O primeiro seria o da

B, seria inclusive injusto com outros astros que

para diversos filmes a partir dos anos 30.

primazia da camada plástica sobre a psicológica,

também marcaram o gênero. Nomes como os de


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

62

Boris Karloff, Bela Lugosi, Peter Cushing, Peter

a um tipo de educação já extinta, de uma nobreza

medievalista ao cenário, inteiramente sintonizado

Lörre e Christopher Lee devem ser sempre respei-

não adquirida pelo dinheiro, e sim pela estirpe.

com a proposta estética do terror B, de trabalhar

tados e lembrados por suas ótimas presenças e contribuições artísticas. Mas falar de Vincent Price é antes de tudo reconhecer sua presença deveras carismática.

Price foi talhado para os papéis excêntricos, ele mesmo era uma dessas figuras. É sabido de seu gosto pela gastronomia e sua fama de colecionador de obras de artes e antiguidades.

com a permanência, extremamente contraditória, de traços nobres em pleno século XX. Na parte sonora dos filmes de terror B aqui apresentados, as trilhas musicais ocupam um lugar

Sua aparição diante de uma câmera tem o po-

Em sua carreira percebe-se, principalmente

especial. A trilha participa de forma a suscitar ora

der de atrair o nosso olhar, e isso não é pouco

a partir dos anos 50, uma proliferação de atua-

uma sensação de instabilidade à trama, ora para

em se tratando de cinema, é um dom; portanto é

ções em filmes fantásticos, e em especial os de

imperar o humor e sobrepujá-lo ao terror. Essa

intransferível. Assim nasce um ícone, ou melhor,

terror e suspense, o que fez com que sua imagem

oscilação provocada pela trilha musical enriquece

um ator-ícone de um gênero.

ficasse definitivamente vinculada ao gênero.

a narrativa e facilita a manipulação exercida pelo

Vincent representava essencialmente pelo

diretor da obra nos sentidos do espectador.

olhar, com a força demolidora que conseguia ex-

Uma análise dos filmes da Mostra

pressar por meio desse artifício. Artifício, talvez

Não faremos uma análise individual das obras de

reção de arte desses oito filmes. Por meio dela

seja uma das chaves para desvendar os segredos

Price, mas apontaremos elementos estéticos to-

são sempre destacados os pesados lustres e mó-

de sua atuação. Incrível como a câmera sugava

mados como relevantes para um melhor entendi-

veis, os tapetes, quase sempre cor de vinho, que

seu olhar tal como um imã. Vincent se encaixava

mento acerca delas.

contrastam com as paredes em cor neutra. Tudo

Um relevante papel pode ser atribuído à di-

muito em personagens que possuíam caracterís-

O aspecto macabro nos parece o dado mais

isso junto nos remete inevitavelmente a uma at-

ticas excêntricas. Para acentuá-las, seu rosto era

unificante e presente nas oito obras. Mas soma-

mosfera sinistra, predominantemente kitsch. As

especialmente maquiado e seu cabelo arruma-

do a isso existe também um traço de decadência

roupas e os cabelos também compactuam para

do com poderosos topetes que o conferiam um

(que explicitaremos melhor adiante) que vale a

sublinhar a ambiência cafona. Mais uma vez,

semblante realmente ímpar, de grande impacto e

pena registrar, e esse segundo traço acentua de

a sensação de deslocamento temporal é aqui

personalidade.

forma considerável o primeiro.

sentida pelos espectadores.

Evidente que esse uso da maquiagem é ex-

A utilização das locações, sempre deslocadas

Um fato recorrente nos filmes de terror B

cessivo, mas ele funciona fundamentalmente por-

no tempo, agrega também um valor descomunal

são as portas, que aparecem de forma abun-

que o terror B permite em sua constituição esse

aos filmes e servem para criar uma desconexão

dante. Em A Queda da Casa de Usher, tem uma

exagero. Vincent Price preservou na construção

temporal às histórias, um desencontro descon-

sequência em que um personagem abre várias,

de seus personagens certo ar de mistério advin-

certante entre espaço e tempo.

uma atrás da outra, em busca de sua amada. E as

do, sobretudo, de movimentos faciais, inclusive os

A escolha de mansões e castelos como lo-

portas representam muito nos filmes de terror,

privilegiando aos movimentos corporais, que em

cações colaborou muito para criar uma estreita

uma dualidade de sentimentos, primeiro o do

demasia destruiriam sua imagem elegante.

relação entre passado e presente, uma tensão

pânico de não se saber o que está ali escondido,

Price é capaz de atuar misturando um tom

permanente em que o primeiro assombrava o

e segundo, a esperança de que o terror acabe

macabro com um refinado humor, esse traço traz

segundo e alimentava um toque de revanchismo

logo, que algo seja revelado e resolvido, nem que

uma riqueza à cena e atiça no espectador um de-

aristocrático aos enredos, como se a burguesia vi-

seja a morte.

sejo de continuar compactuando com ele aquele

vesse com a sombra dos resquícios da ostentação

A maquiagem na maioria das vezes foi

momento de representação. Em A Casa dos Maus

da nobreza, e esta, por sua vez, como vingança, se

utilizada como um elemento de deformidade,

Espíritos, isso é salientado permanentemente.

faria presente em forma de fantasmas. Nota-se

como em O Abominável Dr. Phibes, cuja más-

marcadamente essa ocorrência em quase todos

cara imprime uma imagem não realista e ex-

os oito filmes incluídos na mostra.

tremamente falsa. No primeiro conto do filme,

A figura de Vincent Price nos remete sem dúvida a uma postura aristocrática, a sua imagem definitivamente não pertence a do mundo

O aspecto arquitetônico das locações e de

No Domínio do Terror, há ainda uma cena cujo

burguês, daí que o humor empregado em sua in-

alguns objetos de cena faz referência ao esti-

personagem envelhece 50 anos em poucos se-

terpretação acresce valor ao seu trabalho de ator,

lo gótico, principalmente na verticalização das

gundos, exemplo de uma deformidade franca-

justamente por não ser um humor rasgado, mas

construções que possuem um pé direito conside-

mente satírica.

de uma sutileza refinada. Seu trabalho como ator

ravelmente alto, o que ajuda a criar um ambien-

O Abominável Dr. Phibes é um belo exemplo

nos remete a algo que historicamente se perdeu,

te antiquado, já que o gótico agrega um toque

da pretensão estética do terror B. Os excessos


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

63

são caracterizados logo na primeira sequência do

uma atenção especial, principalmente pelo uso

Price e Boris Karloff; em O Abominável Dr. Phibes,

filme, que alcança momentos que beiram o bar-

e abuso dos sobretudos, capas, luvas e ternos

os closes de morcegos, ratos e gafanhotos assas-

roquismo. Price aparece de costas com uma capa

bem cortados. Acrescenta-se a seu visual o seu

sinos aparecem sistematicamente.

preta brilhosa tocando um órgão, logo depois se

inseparável bigode, sempre muito bem aparado,

levanta e começa a comandar no mesmo espaço

conferindo-lhe um estilo muito próprio.

As imagens que vêm do terror B são possíveis graças ao trabalho dos fotógrafos dos fil-

uma orquestra de brinquedos, enquanto assisti-

No entanto, a grande estrela do terror B são

mes que usaram e abusaram das sombras, dos

mos a uma mulher adentrando na mesma sala

seus inusitados e precários efeitos especiais. Cada

momentos de contraste de luz com espaços mal-

com uma roupa que mais parece uma fantasia de

filme tem seu momento sublime. Em A Casa dos

-iluminados. Os raios de temporais também são

carnaval, e juntos, iniciam uma dança. A câmera

Maus Espíritos, uma grossa corda se movimenta

constantes e reforçam as imagens contrastadas,

assume uma posição zenital (de cima) em que se

sozinha e um esqueleto humano animado anda

sobretudo, quando eles ajudam a iluminar a pou-

destaca o piso todo em mármore rosa-bebê.

atrás de uma das personagens; em O Corvo, enor-

ca luz existente em algumas cenas e ajudam na

Ainda em O Abominável Dr. Phibes, a pró-

mes cadeiras são suspensas no ar e raios colori-

construção de uma atmosfera sinistra e aterrori-

pria composição do figurino de Price merece

dos saem das mãos dos personagens de Vincent

zante. A conclusão que se pode extrair é simples:


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

3 Trecho do conto A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe

64

o raio é inerente ao terror B, sem raio sequer

necessário sublinhar algum elemento cênico em

existiria o terror B.

especial ou alguma reação de um rosto.

O filme A Queda da Casa de Usher merece uma análise em especial por ser uma obra que

O terror aparece muitas vezes também no

A presença de um ator carismático é um

formato de vingança. As motivações dessa vin-

traço marcante do terror B, o que traz para a

incorpora importantes aspectos de estilo que aju-

gança são variadas, como a perda da esposa (Dr.

discussão aqui proposta um expressivo signifi-

Várias são as razões que fazem seu dife-

Phibes), o fracasso na profissão (Dr. Morte e As

cado, já que está centrada na participação de

rencial. Uma pelo fato de ser uma adaptação de

Sete Máscaras da Morte) ou as traições (A Casa

Vincent Price no gênero.

uma história clássica de Edgar Allan Poe, mestre

dam a traduzir o escopo estético do terror B.

dos Maus Espíritos). O terror não surge pelo

Mais que um mero realce no protagonismo

da literatura fantástica de horror; outra, a direção

acaso, ou por um dom da natureza, ele vem em

em si, há uma necessidade nos filmes de terror

de Roger Corman, diretor-ícone do terror B, assi-

desagrado a situações essencialmente sociais.

B de adequar o ator a um perfil específico de

nando essa versão cinematográfica. O conteúdo

Se nos filmes do terror B o aspecto mais ater-

protagonista, o vilão essencialmente fúnebre, ou

da obra em si precisa ser destacado, pelo sentido

rorizante não assume força desmedida, muito

melhor, existe um determinado papel de vilania

histórico atribuído à casa, especialmente como

podemos atribuir isso à faceta cômica que pos-

que é condição sine qua non à existência do pró-

síntese de uma era que necessita morrer, ser ex-

sibilita uma situação mais próxima do ridículo

prio terror B, daí a consagração de uma gama de

tinta do ponto de vista social.

do que do real, e esse mérito precisa ser sempre

atores (além de Price, Bela Lugosi, Christopher

Apesar de ser um filme no qual o terror e

mencionado, o da capacidade do homem de rir

Lee, Boris Karloff, Peter Cushing e Peter Lorre)

o suspense sejam visivelmente predominantes na

de si mesmo e das coisas mais apavorantes in-

que acabaram por incorporar em suas carreiras

trama, há uma sutil ironia que percorre todo o

trínsecas à vida e à morte.

a pecha de serem atores de filmes B.

desenvolvimento dramático do filme e que deve

Os filmes de terror B levam o fantástico a níveis antes não experimentados por serem capazes de rir da morte, ao ressuscitar cadáveres,

ser observada com atenção.

Uma análise em especial – A Queda da Casa de Usher

de rir da crença do amor eterno e, por fim, ao

A história do filme é simples. Um rapaz chega a uma casa afastada procurando uma jovem para pedi-la em casamento ao seu irmão mais

absurdo de transformar pessoas em corvo, den-

“Eu tinha exaltado a imaginação de for-

velho. Ao adentrar na casa percebe que o irmão

tre outras bizarrices.

ma a realmente acreditar que em torno

não está disposto a facilitar seu pedido e o ater-

A montagem dos filmes segue o estilo clás-

de toda a casa e do terreno flutuava

roriza dizendo que a moça está prestes a morrer.

sico, é redonda, não cria ambiguidades tempo-

uma atmosfera peculiar a ambos e a

O mistério se estabelece quando não fica claro o

rais e busca estabelecer uma linha narrativa

sua vizinhança imediata – uma atmos-

que está envolvido por trás dessa suposta morte

clara para o espectador. Não difere muito das

fera que não tinha afinidade com o ar

prematura anunciada.

montagens dos filmes de suspense, em que no

do céu, mas que se havia evolado das

O irmão da moça, interpretado de forma

final todas as dúvidas colocadas no decorrer

árvores senis, das paredes cinzentas, do

magnificamente sinistra por Vincent Price é quem

da história são esclarecidas. Os planos e en-

pântano silente – um vapor pestilento e

dá o tom macabro à história. Anuncia que a tal

quadramentos privilegiados são os médios, os

místico, pesado, inerte, mal perceptível,

paixão não poderá ser concretizada, pois a família

americanos (até o joelho), e os closes quando

cor de chumbo.”

deles estava fadada ao extermínio. Aos poucos,

[3]


CINEMA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

65

a casa vai se tornando um enorme mausoléu e

nicas expressionistas que salientam os aspectos

e Usher tira da manga uma frase de impacto, re-

a própria excentricidade mórbida de Price ganha

macabros dos personagens retratados, isto é, a

pleta de sarcasmo: “para quem, para as futuras

muita força e fica evidente um domínio que seu

linhagem dos Usher.

gerações dos Usher?”, o que dá um tom de finitu-

personagem exerce sobre a irmã.

Os Usher são descritos pelo seu único rema-

de à família, de que a geração deles encerraria a

A determinação do amor do pretendente a

nescente masculino como agiotas, mercadores

noivo leva o personagem de Price para uma ir-

ordinários, vigaristas, falsários, ladrões de joias,

Mas há diferenças profundas entre a história

ritação crescente, pois a cada sequência o noivo

viciados em drogas, assassinos profissionais,

original de Poe e a versão cinematográfica de Cor-

aperta o cerco para levar consigo a bela moça ao

chantagistas, meretrizes, contrabandistas, mer-

man. Na literatura de Poe, o narrador é um amigo

sentir que o ambiente da casa é um impedimento

cadores de escravos. A conclusão de sua fala é

de infância que atende a um apelo desesperado

a sua felicidade.

mais incisiva ainda: “a história dos Usher é de

de Usher para consolá-lo, isto é, ele não está no

degradações selvagens. Primeiro na Inglaterra,

filme como um personagem hostil, mas sim como

depois na Nova Inglaterra”.

alguém que amistosamente vai narrando a triste

Os mistérios começam a ser desvelados quando a amada leva o rapaz para o subsolo da

sua execrável trajetória.

casa para lhe mostrar as tumbas de seus antepas-

A concretização do casamento então daria

história dos Usher. No filme, não há um narrador

sados, o clima sinistro se instala no rapaz e nos

continuidade a essa linhagem historicamente

em off como no livro, mas os espectadores assu-

espectadores. Quando ficamos sabendo acerca da

devastadora, decadente e aterradora. Esse peso

mem o ponto de vista do noivo, personagem não

casa-cemitério, de quebra, ainda nos é revelada a

emocional atribuído à casa é central para o en-

existente no livro, e por meio dele vão adentrando

existência de um caixão para cada um dos irmãos,

tendimento do próprio terror B, o quanto po-

na história e nos mistérios da casa e da família.

últimos remanescentes da tradicional e decaden-

demos relacionar a sua estética macabra com a

Outra grande diferença a ser assinalada en-

te família Usher.

própria história norte-americana, e o quanto de

tre as duas obras, a literária e a cinematográfica,

A história vai surpreendendo e aos poucos

crítica social está contido no seu humor fúnebre

é de como os Usher são retratados. No conto de

nos encaminhando para temas imbricados com a

e na sua forma cinematográfica aparentemente

Poe, há apenas uma vaga referência ao passado

filosofia e a história. Esse momento acontece exa-

rudimentar.

dos Usher; no filme, eles são não só citados, mas

tamente na metade do filme, quando o persona-

Todos os elementos aqui trabalhados como

também nomeados e julgados pelo seu único

gem de Price explica para o pretendente a noivo

características técnicas e estéticas do terror B são

remanescente masculino como uma corja im-

de sua irmã que aquela terra já foi fértil, o imenso

adequados à análise da construção fílmica de A

prestável que devia ser extirpada do mundo. Em

lago, oa animais e a flora eram belos, até que uma

Queda da Casa dos Usher, um filme sem dúvida

suma, o conto de Poe enfatiza a decadência da

praga assolou o lugar tornando-o irreconhecível,

exemplar. O décor antiquado, os figurinos e per-

casa e da família, enquanto o filme de Corman

árido, sem vida e fez do lago feio e cheio de lodo.

sonagens excêntricos, a decadência prenunciada

propõe uma análise dessa decadência ao criar uma hipótese sobre ela.

Essa sequência explicativa é a mais impor-

e sublinhada no enredo, a música marcando o

tante do filme e o ponto de virada da história. Ela

clima de terror. O humor é muito sutil, às vezes

se inicia na esfumaçada parte externa da casa e

quase imperceptível, uma cena que bem expres-

continua na parte interna numa sala onde estão

sa esse humor acontece quando o pretendente a

expostos nas paredes retratos pintados com téc-

noivo sugere o conserto das rachaduras da casa,


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

66

Por PEDRO GONZAGA ESCRITOR

Uma coleção de trilhos O amor amargo de Drummond Permitam-me, caros leitores, começar esta con-

Muito já foi comentado sobre as sete faces

versa sobre Drummond com uma recordação

do poeta, seguindo a sugestão por ele oferecida

e com se amarem tanto não se vêem.

pessoal. Era eu então um jovem escritor, ou ten-

no poema que abre Alguma poesia (1930). Trata-

Um se beija no outro, refletido.

tativa de, rebelde e polemista, disposto a escan-

-se daqueles famosos versos em que o eu-lírico

Dois amantes que são? Dois inimigos.

dalizar mais do que propor, satirizar mais do que

se declara um anjo torto, um gauche, um indiví-

construir. Lembro de ter uns vinte anos e soltar

duo ao mesmo tempo em desacordo com o mun-

Amantes são meninos estragados

esta sentença para meu pai, eminente professor

do e consigo mesmo. Como bem aponta Antônio

pelo mimo de amar: e não percebem

de Literatura Brasileira da Universidade Federal,

Cândido, a poesia de Drummond descreverá um

quanto se pulverizam no enlaçar-se,

como provocação: Drummond é supervalorizado.

movimento pendular, do coletivo para o individu-

e como o que era mundo volve a nada.

O pior é que talvez eu acreditasse nisso.

al, da transformação social para a desilusão com

Sabiamente, ciente de quão longe eu estava de

as ideias políticas, da tentativa de comunicação

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma

descobrir o real significado do poeta de Tarde de

ao fracasso da solidão. A única saída parece ser

que os passeia de leve, assim a cobra

maio, E agora, José e Caso do vestido, meu pai

o humor, a ironia, a capacidade de rir da própria

se imprime na lembrança de seu trilho.

conteve o que ia dizer (por certo uma carras-

condição humana.

Os amantes se amam cruelmente

pana), respirou fundo e falou, (aquilo que eu só

Entre as tantas temáticas (poesia existen-

entenderia dez, quinze anos depois): Drummond

cial, social, cotidiana, amorosa, sobre o passado

Deixaram de existir mas o existido

tem um poema para cada sentimento, para cada

familiar, as homenagens aos amigos), escolherei

continua a doer eternamente.

experiência de vida, que tenhamos tido, ou que

aqui apenas uma, assim como me deterei com

venhamos a ter.

mais afinco em um poema a fim de revelar com

Poeta múltiplo sendo um só, num processo

maior detalhamento os prismas de uma dessas

avesso ao do único poeta de sua dimensão em lín-

temáticas, acreditando que diante deste gigante

gua portuguesa desde Camões, Fernando Pessoa,

da língua portuguesa, o melhor a fazer é ler com

Drummond segue desafiando qualquer tentativa de

modéstia, tentando revelar (ou decifrar) o que

visualizá-lo como um todo, independente da exten-

está diante de nossos olhos: não uma obra, mas

são de que se disponha para escrever sobre sua obra.

um poema. A seguir temos o soneto Destruição:

E eles quedam mordidos para sempre.


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

67

Dispensável dizer que estamos diante da

vivência), o estar juntos, eliminando a distância, faz

visão do amor como uma experiência amarga, o

ressurgir a frialdade do mundo ordinário, não mais

amor-amaro, tão presente na lírica amorosa de

o idílio do encontro que ressignificaria tudo, mas

Drummond. Inegável lembrar também o diálogo

somente o mundo em que os dois não são mais do

com Camões, a influência de uma visão dilacera-

que duas pessoas, tão elas mesmas, nada do que

da da experiência sentimental, como naquele fogo

viram brilhar no olhar e no desejo contaminado

que arde sem se ver e a voluntária prisão da cria-

pelo olhar do outro.

tura amadora. Opera ainda e, por fim, para come-

O que seria o amor senão um fantasma, como

çarmos a falar do soneto, a distância inicial entre

afirma o poeta no verso ao início dos tercetos?

os amantes que faz, platonicamente, que cada qual

Uma assombração, uma sensação perfeitamente

crie uma projeção ideal do outro, que haverá sem-

comparável ao movimento de uma cobra que já

pre de competir com a pessoa real e falível, feita só

não se vê. Ao se darem conta do que sentem, o

de desejo físico, o mesmo desejo que os atrairá um

que se verifica é apenas o rastro, sombra do movi-

ao outro, desfazendo a ilusão necessária do amor.

mento, uma percepção de fim gravado como uma

Começamos a análise pelo primeiro quarteto,

tatuagem, no chão, na alma. Tudo isso, no entanto,

em que o eu-lírico fala da crueldade dos amantes

é sempre vago, é sempre leve impressão, e por isso

e da cegueira provocada pela idealização. Por que

ainda mais grave. Mais uma vez, o eco de Camões

seria este amor cruel, afinal? Em busca da resposta

se faz ouvir, é dor que desatina sem doer. É por ser

devemos atentar para o último verso: trata-se de

contraditório que o amor não pode ser rejeitado.

um encontro de inimigos. Mas em que sentido? Ou,

É por ser ao mesmo tempo suprema felicidade e

quem são os inimigos? Não é o amor a mais su-

suprema desolação que ele não é rejeitado, que

prema forma de aproximação? Novamente, é pela

segue sendo amarga armadilha.

disjunção de corpo e alma, ou ideal e real, que che-

Mordidos. Os amantes (e aqui, ao final, justi-

garemos à resposta. Os amantes são cada qual um

fica-se a imagem do réptil) sentem em suas veias o

duplo. Um tem ao outro, inventado, dentro de si

amor como um veneno, que termina por extinguir

(são os espelhos que cada um beija), frutos das ex-

aqueles outros idealizados, sem que possa haver

pectativas e da criação do primeiro tempo do amor.

qualquer antídoto para isso. Resta a dor, que não

Eis os inimigos, o outro ideal contra o outro real, descoberto a cada aproximação, física e espiritual. O verso que abre o segundo quarteto é de

cede. O existido (remissão clara ao trilho do terceto Este o nosso destino: amor sem conta,

anterior) seguirá visível na memória dos dois, e as-

distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,

sim se encerra o poema.

uma beleza (e talvez verdade) quase intolerável:

doação ilimitada a uma completa

os amantes foram estragados pelo mimo, pelos

ingratidão,

rançada, a visão amorosa em Drummond sugere

cuidados do início do amor. Já não serão capazes

e na concha vazia do amor à procura

que o amor continuará a se recriar, a se reinventar,

de sustentar os parâmetros estabelecidos por eles

medrosa,

apesar dos trilhos, ou mesmo por que contemplar

mesmos, no afã de impressionar e de estabelecer a

paciente, de mais e mais amor.

os trilhos será melhor que nada sentir. É o que en-

conquista, quererão ambos sentir o sabor da novi-

Amar a nossa falta mesma de amor,

contramos em Amar, quiçá o mais celebre de seus

dade, tão perecível aos afazeres e às corriqueiras

e na secura nossa, amar a água implícita,

poemas de amor.

atividades cotidianas. Daí que o enlaçar-se (a con-

e o beijo tácito, e a sede infinita.

Ainda que pareça profundamente desespe-


PRIMEIRO SEMESTRE

literatura

2012

68

Por Caco Coelho diretor de teatro

No ano em que se comemora o centenário do maior dramaturgo brasileiro, é chegada a hora de fazer uma releitura de sua obra dentro de seu real contexto

Nelson Rodrigues e o país do presente


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

69

de seu pai, Mário Rodrigues, chamado A Manhã,

Espetáculo A Mulher Sem Pecado, com direção de Caco Coelho

em dezembro de 1927, então com 15 anos. Seu

Foto: Luciane Pires Ferreira

pai se tornara o maior jornalista de seu tempo por

Cia. Teatro Mosaico (MT) apresentou Anjo Negro no 7º Festival Palco Giratório

causa da extrema força de identificação que produzia. Seus textos eram verdadeiras labaredas, que

Foto: Claudio Etges

não poupavam nem o presidente da República. Era um apaixonado pela ideia de um país diversificado, amplo, com audácia internacional. Percebia a ânsia popular e traduzia em comunicação. O modernismo determinava as novas linhas, e o irmão de Nelson, Roberto Rodrigues, fazia chegar Estamos no decorrer do ano do centenário

até o jornal nas ilustrações que celebravam a mor-

do escritor Nelson Rodrigues. Nelson é conside-

te como uma superação da vida. A união das mar-

rado, por unanimidade – aquela mesma que ele

gens que se tornava possível com a libertação dos

chamava de burra –, o maior dramaturgo brasi-

personagens proposta por Dostoievski e colocados

leiro. Mas ele também é o que mais textos teve

em cena por Pirandello, no aparecimento do Ab-

adaptados para o cinema. É o jornalista esportivo

surdo como uma chave de entendimento da vida.

mais citado até hoje. Sua coluna “A vida como ela

Seu outro irmão é que começa a tratar da faúlha

é...” talvez tenha sido a mais lida e comentada,

sensualista, em contos transbordados de beijos

e isto passados mais de 30 anos de sua morte.

selvagens. Nelson vai se formar nas redações dos

Suas 17 peças seguem sendo as mais encenadas,

jornais de seu pai, A Manhã e Crítica, na reporta-

chegando a ser 10 vezes mais encenado que qual-

gem policial. Ao mesmo tempo, já encontra espaço

quer outro autor. Seus 10 romances continuam

para arriscar seus primeiros escritos policromáti-

gerando interesse, servindo para novas adapta-

Sua maior contribuição às artes é justamente

ções teatrais ou televisivas. Tudo isso leva a crer

a criação de uma linguagem genuína. Não se de-

É em Crítica que Mário Rodrigues Filho vai

que Nelson Rodrigues pode ser considerado um

senvolve linguagem sozinho, nem de modo even-

inventar o jornalismo dedicado ao futebol. Até

dos maiores, senão o maior, escritor brasileiro de

tual. Ao retirar Nelson Rodrigues do seu contexto,

então, os esportes que predominavam eram o

todos os tempos.

ao atribuir a feitura de sua obra um cunho perso-

boxe, o vôlei, o remo. É fácil de entender quando

Entretanto, o fato é que ele, como boa parte

nalista, fruto de vicissitudes da vida, não se permi-

se lembra que tanto o Flamengo quanto o Vasco

de sua geração, teve por muito tempo um en-

tiu que fosse entendida que nas motivações ances-

da Gama são clubes de regatas. O futebol somente

foque distorcido do seu real sentido, ou melhor,

trais de sua obra estivesse presente tão somente

vai ganhar prestígio e se tornar uma profissão após

da sua mais concreta procedência, as raízes mais

como princípio estético a revelação do desejo de

a promoção realizada por Mário Rodrigues Filho,

profundas de onde sua obra surgiu, o contexto

uma brasilidade latente, do desejo de autonomia

primeiro em Crítica, depois no O Globo – Mário

de onde ela é fruto. Esta força de comunicação

de uma cultura que se formava. O Brasil acabava

começou no jornal no mesmo período que Rober-

está a evidenciar a potência contida na obra. En-

de ser refundado, na expressão de Lima Barreto,

to Marinho tinha herdado o jornal do pai, Irineu

tendendo-se por potência aquela capacidade de

após o fim da escravidão e a criação da nossa Re-

Marinho – e, mais tarde, no Jornal dos Sports. Má-

atingir o cerne do ser, estabelecendo uma ponte,

pública Federativa.

rio foi responsável pelas campanhas de profissio-

cos que lhe saltam da pena iluminada.

por meio do processo que se denomina identida-

Somente a partir daí é que foi possível o sur-

nalização do esporte, promoveu concursos entre as

de. É através da identidade que a sociedade pode

gimento de um tipo. A literatura regionalizada co-

torcidas, deu nome àquele que se tornaria um dos

se tornar mais humana. Não reconhecer aquele

meçava a ocupar espaço. É decisivo lembrar que até

maiores clássicos do futebol brasileiro, o Fla-Flu.

que está ao seu lado, preferindo um ser distan-

este momento o Brasil não possuía universidade,

Sua influência é tamanha, que o maior estádio do

te e frio, torna o país dependente. É por isso que

os jornais eram impressos fora do país, tratava-se

mundo, o Maracanã, recebeu o seu nome, com ele

Nelson Rodrigues falava que se sentia indo para

realmente do princípio da nossa formação cultu-

ainda vivo.

o estrangeiro quando ia até São Paulo ou quando

ral. As mulheres não tinham ainda direito ao voto.

Em Crítica, Nelson comenta sobre a disputa

cruzava a baía da Guanabara para visitar Niterói.

Nelson Rodrigues começa sua trajetória no jornal

que existe entre Leopoldo Fróes e Procópio Ferreira.


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

70

É sua primeira referência explícita ao teatro, nos

formação, A Mulher Sem Pecado. Estes artistas for-

idos de 1930. O teatro no Brasil a esta época era

mavam o grupo Os Comediantes.

feito, todo ele, por companhias, que ocupavam os

O português que se envolve com a cria-

teatros tanto públicos quanto privados. Era o que

dagem, a mulher fogosa, a volta por cima dos

ficou conhecido por teatro de repertório. De terça

negros como uma supremacia da nossa capaci-

a domingo, algo em torno de nove récitas manti-

dade, negada, o que viria a ser identificado mais

nham numerosas companhias profissionais.

tarde pelo mesmo Nelson, como o complexo de

Toda Nudez Será Castigada em montagem da Armazém Cia. de Teatro Foto: Claudio Etges

Começava a surgir um desejo de uma lingua-

vira-latas. Quando Os Comediantes procuram

gem própria ao mesmo tempo que brotava a aten-

Nelson para escrever uma peça na qual o que

son e outros que desejavam fazer do teatro um

ção com aspectos voltados à estética do espetácu-

estivesse em cena fosse possível de ser reconhe-

instrumento da potência implícita a uma nação

lo. Não mais apenas textos jogados fora na escuta

cido, a começar pela linguagem expressa, pela

que se identifica, o sentido coletivizante que isto

rápida do Ponto, aquele profissional que vinha a

localização, estava sendo rompida uma tradição

representa, não era o que as elites queriam. Veio

ser um dos mais disputados num mercado que era

de estar de acordo, era a proposta de uma revo-

a ditadura militar e esvaziou os teatros de suas

concreto. Foi então que jovens artistas que não

lução no seu sentido mais humano e transfor-

companhias. Onde antes havia o desejo coletivo,

queriam a pecha de serem chamados de atores,

mador. Foi quando Vestido de Noiva, um furor

foi substituído pelo personalismo descarado, che-

tamanho era o descontentamento com o teatro

cênico, foi referenciado como o marco fundador

gando à efeméride da celebridade. Antes, não ha-

que era feito, revelaram um jovem autor que aca-

do moderno teatro brasileiro.

via um grande ator que não fizesse parte de uma

bara de escrever um texto que pode ser tomado,

Mas não foi esse o caminho que foi vitorioso.

companhia, hoje não existe nenhum grande ator,

didaticamente, como uma exemplaridade da nossa

O teatro proposto pelos Comediantes, por Nel-

no modo de entender do sistema, aqueles que fa-

Cronologia Da Vida e da Obra 1912  Agosto, 23. Nasce, no Recife, filho de Mário Rodrigues e Maria Esther Falcão, quinto filho num total de irmãos que chegaria a 14. 1915  Seu pai, deputado e jornalista, vem ao Rio de Janeiro, tentando transferir-se com a família para a Capital Federal, incompatibilizado com a situação política em Recife. 1916  Junho. A família se transfere para o Rio de Janeiro e é recebida pelo poeta Olegario Mariano. Mario Rodrigues vai trabalhar como repórter político no jornal de Edmundo Bitencourt, Correio da Manhã, o mais importante da época. Agosto. Mudam-se para a Rua Alegre, nº 135, na Aldeia Campista. 1919  Frequenta a escola pública Prudente de Morais. 1922  Muda-se com a família para Rua Antônio dos Santos, atual Clóvis Beviláqua, na Tijuca. 1924  Muda-se para a Rua Inhangá, em Copacabana. Assume a direção do jornal Correio da Manhã poucos meses antes da promulgação da nova Lei de Imprensa. Agosto. Por levantar suspeitas sobre o presidente da República,

é condenado e preso por um ano. Durante este período, seu salário foi reduzido ao valor do aluguel onde a família morava. 1925  Agosto, seu pai deixa a prisão e, logo a seguir, abandona o jornal. Dezembro, 29. Entra em circulação A Manhã, primeiro jornal de Mário Rodrigues. 1926  É expulso do Colégio Batista, na Tijuca. Publica, com seu primo Augusto Rodrigues, o tabloide Alma Infantil, do qual saem cinco números. 1927  Abandona o Curso Normal de Preparatórios. Dezembro, começa a trabalhar como repórter policial no jornal de seu pai, A Manhã, quando a sede do jornal se transfere da Rua 13 de Maio para a Avenida, em frente à Galeria Cruzeiro. 1928  Publica 16 colunas assinadas no jornal A Manhã. Outubro, 3. Seu pai perde o controle acionário de A Manhã, abandonando o jornal. Novembro, 21. É lançado Crítica, novo jornal de Mário Rodrigues. Em seis meses, se transforma no matutino de maior circulação do

Brasil, atingindo a marca de 130 mil exemplares. Faz parte da equipe de reportagem policial conhecida como Caravana de Crítica. 1929  Publica oito colunas assinadas em Crítica. Maio. Passa o mês no Recife. Dezembro, 26. Seu irmão Roberto é alvejado por Sylvia Seraphim, senhora de sociedade, dentro da redação de Crítica, em represália à reportagem publicada no jornal. Roberto morre três dias depois. 1930  Março, 15. Morre Mário Rodrigues, em consequência de hemorragia cerebral. Outubro, 24. A redação de Crítica é empastelada e incendiada. Com o triunfo da Revolução, o jornal não volta a circular. Inicia-se um período de grandes dificuldades financeiras para a família. 1931  Trabalha em O Tempo, O Globo, Mundo Esportivo e na firma Ponce & Irmão. Junho, o irmão Mario Filho assume a parte esportiva de O Globo. Outubro, 12, dia da inauguração do Cristo Redentor, publica sua primeira crítica literária na seção O Globo nas Letras. Em dois anos, publica outras

12 críticas, duas delas falando do irmão assassinado. 1935  Abril. Tuberculoso, internase em um sanatório em Campos do Jordão. Junho. Retorna ao Rio de Janeiro, terminado o tratamento. Novembro, 18, publica um capítulo do livro Cidade, no jornal O Globo. 1936  Março, 30, escreve sua primeira coluna sobre ópera, na seção O Globo nas Artes Líricas. Em dois anos, assina 25 colunas sobre ópera. Abril. Acompanha seu irmão Joffre, internado em um sanatório de tuberculosos em Correias. Dezembro, 16, morre o irmão Joffre. 1937  Fevereiro. Reaparecem os sintomas da tuberculose. Retorna a Campos do Jordão. É redator de O Globo Infantil. 1939  Abril. Nova internação em Campos do Jordão. Passa a trabalhar também na revista Gibi, encarte de O Globo. 1940  Abril, 29. Casa-se civilmente com Elza Bretanha, casando-se no religioso em 17 de maio. 1941  Escreve sua primeira peça, A Mulher Sem Pecado. Agosto, 11. Nasce seu filho Joffre.


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

71

zem parte de alguma rede de televisão, nenhum ator consagrado neste meio está à frente de uma companhia de teatro. Para que pudesse permanecer agindo a favor da transformação, Nelson cria, somente então, depois de o Brasil perder a Copa do Mundo no estádio batizado com o nome do seu irmão, uma personagem que era ele próprio e se coloca na defesa da obra. O nascimento desta personagem contraditória está amplamente vinculado ao começo de suas crônicas esportivas. Ele mesmo se chama de reacionário, numa antevisão do que ocorria atrás da tão afamada cortina de ferro, ainda impossível de ser vista. F azia do seu canto uma proclamação brasileira. Seus textos, lidos hoje, com a clareza do tempo, permitem ver que ele era uma das únicas vozes que se expressava durante os anos de silêncio impostos pelos militares. Não existe uma só linha sua em defesa da

1942  Dezembro, 9. Estreia de A Mulher Sem Pecado, pela Comédia Brasileira, no Teatro Carlos Gomes. 1943  Janeiro. Escreve Vestido de Noiva. Dezembro, 28. Estreia de Vestido de Noiva, no Theatro Municipal, com Os Comediantes. 1944  Passa a trabalhar nos Diários Associados, em diversas publicações do grupo. Março. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim Meu Destino É Pecar, sob o heterônimo de Suzana Flag. Publicação, em livro, de Meu Destino É Pecar pela Editora O Cruzeiro. Junho. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim Escravas do Amor, sob o mesmo heterônimo. Julho. Publicação de Vestido de Noiva. 1945  Março. Nova internação em Campos do Jordão. Junho. Retorna ao Rio de Janeiro. Junho, 23. Nascimento de seu filho Nelson. Novembro, 23. Reestreia de Vestido de Noiva no Teatro Phoenix, com Os Comediantes.

1946  Janeiro, 18. Remontagem de A Mulher Sem Pecado pelo mesmo grupo. Fevereiro. Proibição, pela Censura Federal, de Álbum de Família, sob a alegação de preconizar o incesto e incitar ao crime. Inicia-se uma grande polêmica a respeito da peça. Publicação do livro Escravas do Amor pela editora O Cruzeiro. Junho. Publicação de Álbum de Família pelas Edições do Povo. Julho. Escreve, para a revista A Cigarra, o romance publicado na forma de folhetim Minha Vida, autobiografia de Suzana Flag. Escreve Anjo Negro. Setembro. Publicação do livro Minha Vida pela Editora O Cruzeiro. 1947 Escreve Senhora dos Afogados. 1948  Janeiro. Interdição de Anjo Negro pela Censura Federal e de Senhora dos Afogados. Abril, 2. Estreia de Anjo Negro, já liberada, no Teatro Phoenix. Julho. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim, Núpcias de Fogo, como Suzana Flag. Publicado em livro em 2001.

Compra uma casa no Andaraí para onde se muda com a família. 1949  Março. Escreve, para o Diário da Noite, a coluna Myrna Escreve. Durante o ano, publica 144 colunas respondendo a cartas de leitoras. Publicado em livro em 2002. Escreve Dorotéia. Julho. Escreve, para o Diário da Noite, o romance publicado na forma de folhetim, A Mulher que Amou Demais, sob o heterônimo de Myrna. Publicado em livro em 2003. 1950  Março, 7. Estreia de Dorotéia no Teatro Phoenix. Abril. Demite-se dos Diários Associados. 1951  Junho. Publica a reportagem No cemitério das mulheres vivas, na primeira edição do jornal Última Hora, de Samuel Weiner. Julho. Escreve, também para Última Hora, o romance publicado na forma de folhetim O Homem Proibido, como Suzana Flag. Publicado em livro em 1980. Agosto, 6. Estreia de Valsa nº 6, monólogo estrelado por sua irmã Dulce, no Teatro Serrador. Setembro. Escreve, para o jornal Última Hora, a coluna poético-

dramática Atirem a Primeira Pedra. Novembro. A coluna passa a se chamar A Vida como Ela É... Escreve, ao longo de 10 anos, em torno de duas mil colunas A Vida como Ela É..., transformando-se na coluna mais lida de todo o Brasil. 1953  Junho, 8. Estreia A Falecida no Theatro Municipal. Maio. Escreve, para o semanário Flan, edição dominical de Última Hora, o romance publicado na forma de folhetim A Mentira, primeiro assinado como Nelson Rodrigues. Publicado em livro em 2002. A Censura Federal libera Senhora dos Afogados. Agosto. Escreve, para o semanário Flan, a coluna Pouco Amor Não É Amor. 1954  Junho, 1. Estreia de Senhora dos Afogados no Theatro Municipal. 1955  Março. Vitória dos herdeiros de Mário Rodrigues no processo contra a União pela destituição de Crítica em 1930. Torna-se redator da Manchete Esportiva, continuando na Última Hora. 1957  Junho, 19. Estreia Perdoa-me por me Traíres no Theatro Municipal, com Nelson Rodrigues interpretando


literatura

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

72

opressão, ao contrário, o que dizia é que era um

Espetáculo Toda Nudez Será Castigada no Palco Giratório 2010

reacionário porque defendia a liberdade.

Foto: Claudio Etges

O Brasil vive, talvez, o momento mais próximo do tão sonhado país do futuro. Pela primeira vez na história, nossas posições influem. O mundo quer saber da boa-nova. E agora, passado todo este

potência de país tropical pudesse finalmente, após

período de dominação, o que temos a oferecer?

tanto descaminho, transbordar, colocar-se num

Que país pode ser identificado, qual a nossa cultura

rumo próprio. Seria necessário promover Comissões

dominante, no que nos transformamos? É, portan-

da Verdade por todos os lados, sobretudo, no campo

to, chegado o momento mais precioso em que a

cultural, educacional, onde foram feitas verdadeiras

nossa cultura, aqueles aspectos que realmente são

atrocidades, que permanecem sem qualquer que

relevantes para revelação dos nossos instintos mais

seja o reparo.

cravados na alma, seja revelada. Assim, será neces-

Nelson falava que a grande arte, a única exis-

sária a releitura da obra deste gênio de brasilidade,

tente, é a da releitura. Que neste ano o foco nas suas

em que os fatores fundantes da nossa nação são

motivações primordiais possa contribuir na valori-

proclamados de modo peremptório. Nelson era

zação da nossa autonomia. A eternidade de Nelson

parcial, sim, mas parcial a favor de um país onde

Rodrigues se afirma nessa permanente escavação

fossem consideradas as diferenças, onde a liberdade

do chão do ser humano, sua fragilidade e sua força.

fosse uma força querida da sociedade, onde a nossa

Cronologia Da Vida e da Obra o personagem principal, Tio Raul. Setembro, 13. Estreia de Viúva, porém Honesta no Teatro São Jorge. 1958  Remontagem de Dorotéia, em São Paulo, com Dercy Gonçalves no papel-título. Outubro, 17. Estreia de Os Sete Gatinhos no Teatro Carlos Gomes. É operado da vesícula, sofrendo graves complicações pós-operatórias. 1959  Escreve Boca de Ouro. Agosto. Inicia, na Última Hora, a publicação do romance em forma de folhetim Asfalto Selvagem, que se estenderá até fevereiro do ano seguinte. 1960  Publicação, em livro, de Asfalto Selvagem em dois volumes. Abril, 21. Assiste à inauguração de Brasília como correspondente da Última Hora. Outubro, 13. Estreia de Boca de Ouro no Teatro Federação de São Paulo com Ziembinski no papel-título. Escreve O Beijo no Asfalto. Começa a participar de mesasredondas esportivas na televisão. 1961  Julho, 7. Estreia de O Beijo no Asfalto no Teatro Ginástico. 1962  Novembro, 28. Estreia de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas

Ordinária no Teatro Maison de France. 1963  Separa-se de Elza, indo morar com Lúcia Cruz Lima em Ipanema. Junho, 20. Nascimento de Daniela, sua filha com Lúcia. Escreve a novela de televisão A Morta sem Espelho para a TV Rio. 1964  Escreve as novelas Sonho de Amor e O Desconhecido para a TV Rio. 1965  Junho, 21. Estreia de Toda Nudez Será Castigada no Teatro Serrador. 1966  Trabalha na TV Globo com o quadro de entrevistas A Cabra Vadia. Publica o romance O Casamento pela livraria Eldorado Editora. Setembro, 16. Morre seu irmão Mário Filho. Outubro. O Casamento é proibido por ordem do ministro da Justiça. 1967  Publica as Memórias de Nelson Rodrigues pelo Correio da Manhã. Fevereiro, 19. Morte de seu irmão Paulo, com a mulher e os filhos, no desabamento do prédio onde morava, em Laranjeiras, durante a grande enchente. Julho, 28. Estreia de Álbum de Família no Teatro Jovem. Dezembro, 4. Inicia a coluna Confissões em O Globo.

1968  Publica o livro de crônicas O Óbvio Ululante pela Editora Eldorado. 1969  Vai morar na casa de sua mãe, terminando seu relacionamento com Lúcia. Muda-se para o Leblon, indo morar com Helena Maria, sua secretária em O Globo. 1970  Muda-se para Cosme Velho. Tem hemorragia interna, provocada por duas úlceras perfuradas. É operado, sofre parada respiratória, tem enfarto e volta para o quarto com pneumonia. Publica A Cabra Vadia pela Editora Eldorado. Seu filho Nelson, militante do MR8, entra na clandestinidade. 1972  Março, 30. Prisão de seu filho, no Méier, pelos agentes de repressão política. Novembro, 9. Morre Milton, o irmão mais velho. 1973  Morte de sua mãe, Maria Esther, aos 84 anos. 1974  Fevereiro, 28. Estreia de AntiNelson Rodrigues no Teatro do SNT. Julho. É operado de um aneurisma da aorta abdominal em São Paulo. 1977  Abril. É internado às pressas com grave desidratação, provocada por colite ulcerativa.

Julho. Publica O Reacionário pela Editora Record. Dezembro. Reata seu casamento com Elza. 1978 Escreve A Serpente. 1979  Outubro, 16. Seu filho Nelson recebe a liberdade condicional. 1980  Março, 6. Estreia de A Serpente no Teatro do BNH, hoje Teatro Nelson Rodrigues. Dezembro, 21. Morre, às oito horas da manhã, de insuficiência cardiorrespiratória, no Rio de Janeiro.

Esta cronologia é baseada na que está presente na edição do Teatro Completo, organizado pelo professor Sábato Magaldi e acrescida de informações da pesquisa O Baú de Nelson Rodrigues, realizada pelo diretor Caco Coelho.


LEITURA

PRIMEIRO SEMESTRE

2012

73

PEDRO PÁRAMO

As Vidas dos Artistas Calvin Tomkins

a filosofia de andy warhol de a a z e de volta a a

EIS ANTONIN ARTAUD

Juan Rulfo Editora Paz e Terra, RecordeBestBolso

Editora BEI

Andy Warhol

Editora Perspectiva

Florence Mèredieu

Editora Cobogó

Um livro pequeno, fundamental

Biógrafo de Marcel Duchamp, o

Depois de Andy Warhol, a arte nunca

Com a edição de Eis Antonin

e prazeroso, ainda não

jornalista Calvin Tomkins reuniu no

mais foi a mesma. O filósofo Arthur

Artaud (C’était Antonin Artaud),

suficientemente lido em nosso país.

seu As Vidas dos Artistas - título,

Danto atribui a ele o marco da “arte

de Florence Méredieu, a França

Juan Rulfo nos leva para dentro da

aliás, que confessa ter surrupiado

pós-histórica”, um tipo de arte

resgata uma espécie de dívida

realidade mexicana em sucessivas

despudoradamente, da obra Le vite

liberta das amarras históricas e da

com o escritor, poeta, missivista,

camadas, nas quais se articulam

de’ più eccelenti pittori, scultori

perseguição da pureza modernista.

dramaturgo, roteirista, encenador,

a vida passada e presente. Em

e architettori de Giorgio Vasari,

Nos 1960, Warhol foi o maior

ator de teatro e cinema,

dado momento, o leitor se dá

escrito em 1550 - os perfis de dez

expoente da Pop Arte, que fundia

figurinista, cenógrafo, desenhista,

conta que personagens vivos

grandes artistas contemporâneos

alta e baixa cultura, retornava ao

pensador e criador do “Teatro da

e mortos convivem no mesmo

internacionais que, ao longo de

figurativo e encarava a obra de arte

Crueldade”. Escapando do mero

espaço, com naturalidade e sem

uma década, publicou na pulsante

como mais um produto da sociedade

relato biográfico e, sem cair na

qualquer horror.Tão de acordo com

revista The New Yorker. Ao escrever

de consumo. Experimentando

armadilha do “historicismo”,

o modo de sentir dos mexicanos,

estas emergentes biografias de

em diversos meios como pintura,

consegue contextualizar o processo

para quem o Dia de Finados é a

Damien Hirst, Cindy Sherman,

fotografia, cinema e música, Warhol

socioartístico em que Artaud

grande festa nacional, em que se

Julian Schnabel, Richard Serra,

também se aventurou pelo campo

transitou, desde seu nascimento,

dá caveiras de açúcar às crianças.

James Turrell, Matthew Barney,

editorial, publicando livros e revistas.

no final do século XIX, até a

Desde o início, o narrador Juan

Maurizio Cattelan, Jasper Johns,

Este livro foi lançado originalmente

primeira metade do século XX.

Preciado atiça nossa vontade de

Jeff Koons e John Currin, o autor

em 1975 e compila o pensamento

Para além da crueldade, como um

ler: “Vim a Comala porque disseram

lança um olhar bem próximo sobre

irônico do artista na forma de

capítulo inserido em “O teatro e

que aqui vivia meu pai, um tal de

estes artistas e como adentraram

pequenos verbetes que discorrem

seu duplo”, a autora enfatiza a

Pedro Páramo. Minha mãe que me

ao complexo e utópico mundo da

sobre temas como vida, arte, sexo,

“crueldade” que está impregnada

disse. E eu prometi que viria vê-lo

arte contemporânea.

dinheiro e, claro, fama. De certa

no itinerário de toda a sua

quando ela morresse”. Um clássico

forma, o livro antecipa a cultura

existência.

mundial que antecipa o melhor da

contemporânea de instantaneidade

literatura contemporânea.

e confusão entre público e privado típica das redes sociais.

Sidnei Schneider

andré venzon

leo felipe

Poeta, contista e tradutor

artista visual e diretor do museu de arte contemporânea do Rs

jornalista e dj, coordenador da galeria de arte da fundação ecarta

WILSON COÊLHO Dramaturgo e Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


Inscrições de 21/07 a 21/09 Categorias: Comerciário e Usuário

Confira o regulamento em www.sesc-rs.com.br/concursodefotografia

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