11
PRIMEIRO SEMESTRE
2012 ISSN 1984-056X
15 anos de palco giratório Também nesta edição
caderno de teatro: a relação entre odin teatret e a capital gaúcha A música como instrumento de inclusão social
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
08
48
26
artes cênicas
CADERNO DE TEATRO
música
08 15 anos de Palco Giratório
26 Artigo de Patricia Furtado de Mendonça,
48 A música como instrumento de inclusão
atriz, professora, tradutora e consultora
social. Projetos desenvolvidos no Rio Grande
de projetos teatrais, aborda os inúmeros
do Sul impulsionam transformações na vida
do circuito nacional do Palco Giratório
encontros do Odin Teatret com artistas
de centenas de jovens
consideram o projeto um divisor de águas
de Porto Alegre ao longo de 25 anos, com
em suas trajetórias
destaque para a passagem do grupo
12 Grupos gaúchos que já participaram
dinamarquês pelo 7º Festival Palco Giratório 16 Daniel Colin analisa alguns espetáculos que se destacaram no 7º Festival Palco Giratório 24 Festival abre espaço para jovens grupos gaúchos 46 2ª Mostra de Teatro de Passo Fundo marca os cinco anos da unidade
DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Zildo De Marchi
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Everton Dalla Vecchia
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br
GERÊNCIA DE EDUCAÇÃO E CULTURA Silvio Alves Bento
Gerente de Educação e Cultura
Jane Schöninger
Coordenadora de Cultura
UNIDADES SESC NO RIO GRANDE DO SUL SESC Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 SESC Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 SESC Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 SESC Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 SESC Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 SESC Camaquã R. General Zeca Neto, 1085 51 3671.6492 SESC Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 SESC Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 SESC Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 SESC Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 SESC Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 SESC Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 SESC Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 SESC Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 SESC Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 SESC Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 SESC Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 SESC Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403 SESC Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 SESC Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 SESC Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973
SESC Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 SESC Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 SESC Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 SESC Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 SESC Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 SESC Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 SESC Santana do Livramento R. Brigadeiro Canabarro, 650 55 3242.3210 SESC Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 SESC São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 SESC São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 SESC Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 SESC Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 SESC Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684-3736 SESC Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 SESC Vale do Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 SESC Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Hotel SESC Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel SESC Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel SESC Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
54
58
66
ARTES VISUAIS
CINEMA
literatura
54 Ícone dos quadrinhos alternativos no Brasil,
58 Artigo A Representação Fantástica de Vincent
66 Carlos Drummond de Andrade, que
Fabio Zimbres, quadrinista, ilustrador, editor,
Price, de Marco Aurélio Lopes Fialho, disseca
completaria 110 anos em 2012, é tema do
artista visual e designer gráfico, está com
a obra do mestre do Terror B. Oito filmes
texto do escritor Pedro Gonzaga
duas exposições em circulação no Rio Grande
estrelados pelo ator americano fazem parte
do Sul pelo Sesc: Mahavidyas e Na Tábua
de uma mostra de cinema do Sesc
68 Artigo do diretor de teatro Caco Coelho defende a necessidade de uma releitura da
volume 1
obra de Nelson Rodrigues dentro de seu real contexto, no ano em que se comemora o centenário do dramaturgo mais encenado do país 73 Leitura
BALCÕES SESC/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7750 Cachoeirinha Av. Flores da Cunha, 1320 Sala 805 51 3438.3249 Caçapava do Sul Av. XV de Novembro, 267 55 3281.3684 Frederico Westphalen R. do Comércio, 1013 55 3744.8193 Gravataí R. Álvares Cabral, 880 51 3043.7916 Guaíba R. São José, 433 Sala 01 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. XV de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Jorge Dariva, 941 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 8º andar 55 3423.1664 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Don João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Marechal Floriano, 488 Sala 17 54 3231.5883 Viamão R. Marechal Deodoro, 175 Loja 102 51 3434.0391
NÚCLEO DE ATENDIMENTO SESC São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1297 55 3352.7398
Coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Design Editorial
Rua Mariante, 200 Sala 02 51 3013.1330 90430-180 Porto Alegre/RS
Andréa Costa
Diretora de Criação e Atendimento
Vitor Mesquita
Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte
Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) clarissa@pubblicato.com.br Edição e Reportagem
Grace Prado
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.000 exemplares
CAPA
Foto de Claudio Etges do espetáculo Breves Entrevistas com Homens Hediondos, durante o 7º Festival Palco Giratório realizado em maio, em Porto Alegre
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
6
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
7
mais ARTE E cultura O desenvolvimento do aspecto social e humano da comunidade está na essência das atividades promovidas pelo Arte Sesc – Cultura por toda parte. E um resumo dessas ações é o que pode ser conferido nas páginas a seguir. Matérias relacionadas aos 15 anos do Palco Giratório e à participação de grupos gaúchos nesse que é o maior circuito teatral da América Latina estão entre os destaques dessa edição da Revista Arte Sesc. A publicação também traz o relato de alguns dos participantes do 7º Festival Palco Giratório Sesc/POA. Já no Caderno de Teatro poderá ser conferida a relação dos dinamarqueses do Odin Teatret com a capital gaúcha. Ainda nas artes cênicas, será apresentado um panorama sobre a 2ª Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo e um artigo sobre os 100 anos de Nelson Rodrigues. A música também está presente nessa edição da Revista Arte Sesc, com matéria sobre projetos de inclusão nessa área no Rio Grande do Sul. Nas artes visuais, a obra do ilustrador Fábio Zimbres é o destaque. Artigos relacionados ao cinema, sobre Vincent Price, e à literatura, tendo como tema Carlos Drummond de Andrade, poderão ser conferidos nas próximas páginas. Além de promover uma intensa troca de experiências e ampliar o acesso à produção artística, o Arte Sesc busca ser reconhecido como promotor de ações culturais no Estado, sendo elas não só apresentações artísticas, mas também ações de caráter formativo e educacional, orientadas por três eixos: transversalidade, diversidade e acessibilidade. Com a Revista Arte Sesc, procuramos fazer um apanhado semestral das ações culturais propostas pelo Sistema Fecomércio-RS e contamos com o olhar criterioso de articuladores da área em que expressam seus posicionamentos nos artigos a seguir.
Boa leitura!
Crédito: Fábio Zimbres
Zildo De Marchi
Everton Dalla Vecchia
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Diretor Regional Sesc/RS
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
8
o verdadeiro projeto nacional Único circuito de grande
Criado em 1998 com o intuito de estimular o
Para contar esta história, a Arte Sesc en-
porte que percorre
exercício de uma cidadania cultural, incenti-
trevistou o idealizador e coordenador do projeto
vando o acesso ao desenvolvimento de conhe-
por muitos anos, o diretor teatral e dramaturgo
cimentos e aptidões artísticas e, como conse-
Sidnei Cruz, que descreve como tudo começou,
país inclui circuitos,
quência, fomentando as produções locais, o
analisa a importância da gestão cultural compar-
festivais, aldeias,
projeto Palco Giratório completa 15 anos de
tilhada e a contribuição do Palco Giratório para o
existência. De lá para cá, mais de 170 grupos
desenvolvimento das artes cênicas no Brasil. Sid-
teatrais já passaram com seus espetáculos de
nei Cruz é Assessor de Cultura da Escola Sesc de
todo o tipo de linguagem pelos teatros, centro
Ensino Médio, Mestre em Bens Culturais e Projeto
culturais, escolas e praças de todas as capitais,
Social e MBA em Gestão Cultural.
todos os estados do
oficinas, intercâmbios e bate-papo entre artistas e comunidade
além de cidades do interior, de menor porte, que dificilmente teriam acesso a apresentações de
Como o projeto Palco Giratório iniciou?
qualidade não fosse a iniciativa do Sesc. Foram
No primeiro momento, o projeto surgiu a partir
mais de 5 mil apresentações com um públi-
de conversas com vários técnicos de teatro dos
co superior a 2,5 milhões de expectadores. O
Departamentos Regionais durante as ações de
Palco Giratório, entretanto, não busca apenas
capacitação (Encontros, Treinamentos, Acom-
fazer circular peças, grupos e linguagens, mas
panhamento de programação, Orientações
sim ampliar e aperfeiçoar as ações a cada ano
específicas e Estágios) coordenadas por mim,
formando e fortalecendo uma rede de bens
como técnico do Departamento Nacional; no
culturais que inclui mostras de arte e cultura,
segundo momento, a ideia foi materializada
espaços e equipamentos, acervos de memória,
na forma de projeto, apresentado à Direção do
núcleos literários, coletivos de criação e parce-
Departamento Nacional, aprovado e oferecido
rias institucionais.
aos Departamentos Regionais na forma de um
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
9
Curadoria com representantes de todos os estados como pilar estruturante é um fato inédito que contribui para diversidade dos espetáculos e atividades formativas Fotos: Claudio Etges
A base do projeto foi o Mambembão, projeto que trabalhava com o conceito da descentralização (e que inclusive foi “ressuscitado” neste ano). Qual a importância da descentralização? Exatamente. O modelo até então que tínhamos de circulação de grupos e espetáculos cênicos era o Mambembão, que consistia em mostrar a produção cênica das regiões norte, nordeste e centro-oeste para o eixo Rio–São Paulo–Brasília, ou seja, uma distribuição da periferia para o centro. Com o Palco Giratório, ousamos experimentar uma metodologia diferente, a difusão caleidoscópica, ou seja, uma distribuição vertiginosa cobrindo todo território nacional, onde referências como margem e centro tornam-se diluídas ou reorganizadas a todo momento. Mas o mais importante elemento colocado em jogo pelo Palco Giratório foi o planejamento estratégico do projeto, superando a prática de realizações eventuais e implantando a regularização e
pré-programa a ser desenvolvido em parceria.
sistematização da ação cultural, numa abran-
Uma parceria que previa a divisão dos cus-
gência até hoje não igualada por nenhuma
tos na ordem de 50%. Entre os anos 60 e 80,
instituição pública ou privada.
ocorreu o fenômeno da crescente massificação da produção, distribuição e consumo de bens
Além de idealizador, você esteve à frente
culturais no Brasil. Período de repressão polí-
do projeto Palco Giratório por muito
tica e ideológica e também de concentração
tempo. Como ocorre a escolha dos grupos
populacional nos grandes centros urbanos,
e espetáculos participantes para garantir
crescimento da classe média e surgimento da
a diversidade que o caracteriza?
sociedade de consumo. Nos anos 90, as ofertas
Esse foi outro elemento inovador, um pilar
culturais estavam concentradas no eixo sul-
estruturante do projeto: a curadoria. O Palco
-sudeste. Foi apostando na contramão desse
Giratório possui uma curadoria com o maior
panorama que o SESC entrou no jogo da di-
número de participantes do país, quer dizer,
fusibilidade nas artes cênicas. O conceito ini-
é uma curadoria que possui representante
cialmente foi ancorado na ideia de circulação
de todos os estados do Brasil. Isso é um fato
de espetáculos, objetivando superar a concen-
inédito! É uma assembleia nacional, horizon-
tração de ofertas no eixo sul-sudeste. Paula-
tal, democrática e composta por olhares di-
tinamente, o conceito foi construído, trans-
versos. É uma verdadeira escola do olhar es-
formado e desenvolvido por meio de diversos
tético e social. Cada Departamento Regional
diálogos travados entre os técnicos de cultura
é representado por um técnico de cultura,
da instituição (dos Departamentos Regionais
formando um círculo de debates composto
e do Departamento Nacional) e da sociedade
por 27 estados da federação, coordenados
(gestores, artistas, espectadores).
pelos técnicos do Departamento Nacional.
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
10
Durante o ano, são apresentados por esses representantes uma quantidade expressiva de propostas num sistema de avaliação
Projeto estimula nas comunidades o exercício de uma cidadania cultural Fotos: Claudio Etges
partilhamento quando existir sensibilidade argumentativa, generosidade republicana, atitude cidadã, espírito democrático. A rigor
prévia, as melhores propostas vão para uma
não deveria haver privilégio para nenhum
final no Encontro Nacional da Curadoria do
eixo territorial. Deve prevalecer, sempre, a
Projeto Palco Giratório.
configuração com o maior espectro possível da diversidade (de linguagem, de região, de
A ideia é mostrar a cena atual das artes
gênero, de estado, de cultura).
cênicas produzidas no Brasil como um todo, suas diversas linguagens, ou só o
Como entram as Aldeias dentro do
que tem de melhor?
projeto Palco Giratório?
Existem variantes metodológicas. Hoje, não
As aldeias são ocupações territoriais – desen-
sei qual é a que está sendo aplicada. De qual-
volvimento cultural local – capazes de propor-
quer maneira, me parece que os critérios bási-
cionar ambientes de trocas simbólicas entre
cos permanecem. O projeto surgiu embasado
grupos artísticos visitantes, grupos artísticos
pelo conceito de oportunidade, de capital so-
locais e plateias diversas da sociedade. É um
cial, de desenvolvimento cultural local. Criar
agir local que articula pontos de contato dire-
oportunidades para que grupos e artistas pos-
to com a comunidade e com o seu cotidiano.
sam entrar em contato com públicos diversos
O gestor cultural interage e realiza mediações
em âmbito nacional e, por meio de conversas,
que envolvem pessoas, memória, espaços,
trocas e consciência de pertencimento. Ou-
equipamentos e outros recursos, colaboran-
tro viés do projeto prima pela educação dos
do para a formação da vida coletiva, ou seja,
sentidos, proporcionando aos espectadores
criando atmosferas para o desenvolvimento
a vivência de linguagens variadas como te-
cultural local. Quando o grupo artístico circu-
atro de rua, teatro de animação, circo, dança,
la o Brasil pelo projeto Palco Giratório, ganha
performance, proximidade entre espectador e
qualidade nômade ou de “território flutuan-
ator, espaço cênico não convencional e outros
te” e, ao pousar em uma aldeia, encontra um
relacionamentos não tradicionais. Então, para
lugar demandado, sedimentado por fluxos de
além da escolha do que é bom ou do que é
bens culturais.
melhor, que de resto é uma questão relativa, o interessante é criar oportunidades para que
De que forma as Aldeias afetam a
público e artista possam construir seus olha-
população do local onde são realizadas?
res na diversidade. Técnica, estética e sociabi-
Imagino que em primeiro lugar afetam o
lidade são processos mediados por contextos
imaginário da comunidade, a vida cotidiana,
em permanente mutação. O encontro entre
determinadas particularidades do universo
as diferenças é o mais importante.
dos hábitos, no compartilhamento de rituais, sonhos, jogos e experiências imemoriais.
Qual a relevância da gestão cultural
Em segundo lugar, pode se constituir num
compartilhada em geral e dentro do
embrião de mercado cultural, pois os bens
projeto Palco Giratório? Este modelo abre
são as partes materiais e visíveis da cultura.
mais possibilidades para grupos fora do
Nesse sentido, é possível afirmar que a ação
eixo Rio-São Paulo?
cultural organizada, regularizada e sistemá-
A gestão compartilhada não é uma fórmula.
tica desenvolvida pelo SESC em todo territó-
Não se trata de uma racionalidade buro-
rio nacional produz diferenças nas comuni-
crática ou quantitativa. Haverá mais com-
dades em que atua.
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
11
Em seu trabalho desenvolvido nas comunidades do Rio, o conceito do Palco Giratório serve de base para instigar as pessoas atendidas?
A aquisição de uma consciência de territorialidade nacional alcançada pelos participantes é o maior impacto do projeto Fotos: Claudio Etges
Claro. O Projeto Palco Giratório é uma experiência profunda de gestão e política cultural. Sempre volto às suas premissas básicas para continuar trabalhando com invenção e criatividade. Por fim, ao promover a diversidade, possibilitando intercâmbios, abordando diversas linguagens e dando espaço para o teatro experimental, nesses 15 anos, o projeto Palco Giratório, apontado por muitos como fundamental para o desenvolvimento do teatro no país, interferiu na produção nacional? Qual a contribuição do projeto neste percurso? Não resta a menor dúvida quanto a isso.
transformar ética e esteticamente os envol-
Quem pode e deve confirmar ou não essa
vidos com o projeto. Não se pode deixar de
questão são os grupos que participaram e os
considerar que o projeto não pratica apenas
que estão à espera dessa participação. Mui-
a circulação de espetáculos, vai mais além,
tos grupos foram consolidados a partir da
envolve repertórios, residências cênicas, ofi-
experiência do Palco Giratório, os relatos são
cinas, debates, trocas de metodologias de
vários. Basta consultar os diários de bordo,
trabalho, relatos e registros de experiências,
as monografias realizadas em diversas uni-
experimentação de novos relacionamentos
versidades do país, volta e meia os artistas
entre palco e plateia.
dão seus depoimentos nos jornais. Alguns
O projeto Palco Giratório é um fato históri-
grupos, estimulados pela experiência com
co. Nesses 15 anos, muito foi consolidado,
o projeto, reformularam seus espetáculos,
outros tantos foram transformados e segue
criaram novos espetáculos tomando como
exigindo uma mutação contínua para não
temas as culturas locais, adquiriram equi-
virar um produto ou uma fórmula replicável
pamentos e sede, desenvolveram parcerias
em qualquer circunstância. O Palco Giratório
com grupos locais, ampliaram suas redes de
é um fenômeno genuinamente institucional,
relacionamentos profissionais. O impacto,
um engenho só possível numa instituição
sobretudo, se deve à aquisição de uma cons-
como o Sesc. Torcemos para que outros
ciência de territorialidade nacional que os
Palcos Giratórios apareçam no país, mas
participantes alcançam. Um sentimento de
para isso é necessário aglutinar uma ampla
pertencimento que certamente não é con-
rede de espaços cênicos, interlocução social,
quistado quando se faz uma temporada tra-
um programa de cultura ousado, quadros
dicional em teatros. A possibilidade de tran-
técnicos especializados em todo território
sitar e entrar em contato com a diversidade
nacional, vontade política e investimentos.
cultural brasileira é emocionante e capaz de
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
12
Um caleidoscópio de culturas Profissionais gaúchos
Uma sala de espetáculos em miniatura com mi-
em sete pessoas, chegávamos a ter um público de
que circularam
niarquibancada para sete pessoas, minissistema de
200 a 300 pessoas por noite”, conta. Para Paulo
som, mini-iluminação e quase toda a população
Fontes, o projeto dá aos artistas a possibilidade de
reunida na praça de Bodocó, no sertão pernam-
lidar com outro tipo de público, de trocar experi-
enaltecem o
bucano, para assistir a Circo Minimal, da Cia. Gente
ências, de intercâmbio, de ter acesso à arte gestada
significado e a
Falante. Ao ligar o ar-condicionado para iniciar as
em outras regiões. “É uma oportunidade de ama-
minissessões de quatro minutos, a luz da praça,
durecimento, de se conhecer como brasileiro. O
com uma fiação muito antiga, não resistiu. O espe-
artista que é contemplado com esta oportunidade
táculo foi apresentado assim mesmo e se estendeu
pode se considerar um felizardo”, diz.
pelo Palco Giratório
abrangência do mais amplo projeto voltado para as artes cênicas
pela noite toda. “Chegamos a um ponto de esgo-
Paulo Fontes diz ainda que a Cia. Gente Fa-
no país
tamento muscular. Foi fantástico!”, descreve Paulo
lante tem participado de festivais em outros paí-
Fontes, diretor e ator-manipulador de bonecos do
ses e há uma unanimidade, inclusive entre artistas
espetáculo. Para ele, a circulação nacional pelo Pal-
estrangeiros, em dizer que não existe nada igual
co Giratório, em 2008, foi um marco na história do
ao que o Festival Palco Giratório proporciona em
grupo, em vias de completar 20 anos de atividade.
termos de intercâmbio. “Se tem, é inconsistente.”
Já com o respaldo de ser considerado um es-
Atualmente, o coletivo que vem participando de
petáculo que se utilizou de uma linguagem nova,
Aldeias Sesc pelo país está em circulação pelo
contemporânea, o projeto do Sesc permitiu que a
Palco REC-POA, que promove o intercâmbio en-
Cia. circulasse por regiões que jamais teria acesso,
tre as unidades de Recife e Porto Alegre, com o
o que o diretor considera um deleite. “Fizemos todo
espetáculo Louça Cinderella. Por meio do teatro
o sertão de Pernambuco, onde o público via com
de objetos, linguagem que tira leite de pedra, se-
estranheza aquele circo tão pequeninho. De sete
gundo o artista, por conferir uma ilusão de vida a
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
13
um objeto industrial sem ligação nenhuma. “Toda
pesquisa de linguagens – é aí que entra o Larvá-
esta pesquisa de resgate da humanidade que se
rias, que surgiu do projeto Comunicações Possí-
perdeu durante a revolução industrial foi conse-
veis, quando foi apresentado em fragmentos para
quência do processo pós Palco Giratório, um pro-
públicos de penitenciária, instituição psiquiátrica,
cesso que leva a uma reação em cadeia – ou as
asilo, moradores de rua, clube de tênis, a fim de
pessoas ficam plenas ou surtadas. É muita infor-
avaliar a reação dos espectadores de diferentes
mação, muita responsabilidade, é maravilhoso, é
segmentos da sociedade.
uma rica experiência participar deste projeto tão qualificador das artes”, analisa.
Para Daniela, levar esse experimento de linguagem em que as máscaras do carnaval de Basel, na Suíça, são exclusividade no espetácu-
ÊNFASE NA PESQUISA EM TEATRO
lo para diversas regiões brasileiras, com outros
Embora tenha participado de outras edições, tam-
universos, outras culturas, foi como realizar uma
bém foi em 2008 o grande momento da Cia. do
extensão do projeto inicial. Se o feedback obtido
Giro no Palco Giratório, quando Larvárias inte-
entre os idosos foi uma relação das máscaras com
grou a programação nacional. A diretora e atriz
a morte, entre os agricultores, com as fases da
da companhia Daniela Carmona, fã do projeto do
lua, no Nordeste, a associação foi com o folclore
Sesc , destaca a diversidade em termos de lingua-
deles, com elementos do épico que sempre apa-
gens e a elevada qualidade técnica como fatores
recem nos seus espetáculos, enquanto no Panta-
primordiais para que seja um dos mais bem-suce-
nal foi ainda outra coisa. “Isto, juntamente com
didos do Brasil, com um olhar generoso e amplo
o contato com atores diferentes de grupos dife-
sobre as artes cênicas. Outro diferencial apontado
rentes que até então só tínhamos ouvido falar, é
pela artista é a ênfase no teatro de grupo e em
muito rico”, analisa.
Cia. Gente Falante está em circulação pelo Palco REC-POA com o espetáculo de teatro de objetos Louça Cinderella Foto: Claudio Etges
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
14
O Festival em Porto Alegre, por sua vez, é
Festival Palco Giratório para a formação de pla-
Foto: Fernando Pires
uma grande conquista e apesar de saber que é
teia. “Nas primeiras edições, lamentava que es-
Deborah Finocchiaro em Pois é, vizinha..., da Cia. de Solos e Bem Acompanhados
fruto de uma curadoria coletiva, Daniela desta-
petáculos tão lindos eram vistos por tão pouca
ca o olhar muito atento da coordenadora local,
gente, o que não vem acontecendo nos últimos
Foto: Fabrício Simões
Jane Schöninger, para a questão da diversidade.
anos – o crescimento de público tem sido gra-
Cia. do Giro circulou pelo Palco Giratória com Larvárias
“Ao trazer grupos de teatro experimental con-
dativo, mas na última edição houve um boom”,
sagrados ou não, o que é um diferencial, o Sesc
observa. Para ela, é muito interessante ver grupos
proporciona aos artistas gaúchos o contato com
das escolas da cidade, público que não está acos-
novas técnicas e linguagens que estão sendo fo-
tumado a ir ao teatro, na plateia.
A Escrita de Borges, do Falos & Stercus
Foto: Claudio Etges
mentadas no Brasil, o que nos orienta sobre o que
Débora Finocchiaro, atriz, diretora, roteiris-
está acontecendo”, afirma. Daniela participou de
ta e produtora da Cia. de Solos e Bem Acompa-
quatro oficinas e assistiu a cerca de 80% da pro-
nhados, considera o Placo Giratório fundamen-
gramação da edição de 2012 junto com o parcei-
tal para o desenvolvimento do teatro no país,
ro de Cia. do Giro Adriano Basegio. Segundo ela, o
principalmente pela manutenção da circulação,
Festival já está com seu lugar na agenda cultural
sem a qual não existe profissionalismo na área.
de Porto Alegre, e os artistas procuram estar mais
“O projeto proporciona contato constante com a
livres no mês de maio para também ter contato
diversidade e pesquisa e, para os artistas que via-
com grupos que normalmente só veem em ma-
jam com seus espetáculos, possibilita uma nova
nuais – entre eles o Odin Teatret.
descoberta de um país e toda sua multiplicida-
A artista que também participou com sua
de de culturas”, salienta a artista, que já circu-
companhia da Aldeia Salvador, em 2011, como
lou com Pois é, vizinha... pelo Rio Grande do Sul,
grupo residente, salienta ainda a importância do
Pernambuco, Ceará e Mato Grosso do Sul e com
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
15
os espetáculos Histórias de um canto do mundo,
pesquisa mais aguda pode gerar uma confluên-
um festival com tantos dias de duração, de fácil
Sobre anjos e grilos e O urso – A história da guerra
cia de inquietudes advindas do universo cultural
acesso ao público e com um repertório de tan-
dos sexos no Festival gaúcho. Outro ponto forte
do teatro brasileiro. “Portanto, o Festival Palco
ta qualidade na nossa cidade nos tocando, nos
apontado por Deborah é a formação de público
Giratório pode chegar no seu momento alto de
emocionando e nos fazendo repensar e repensar
e qualificação dos artistas das cidades afetadas
ser um rico caleidoscópio de culturas que pode
nossa arte a cada instante.”
pelo projeto. “No momento que se proporciona o
transformar a criatividade brasileira.” Segun-
acesso a bons espetáculos, como consequência,
do ele, o festival é ainda uma estratégia para o
os grupos locais acabam se desenvolvendo.”
crescimento e para a regeneração de riquezas humanas na cidade de Porto Alegre, pois redefine o
ALÉM DO ESPETÁCULO
espaço de sociabilidade.
Fundador e integrante até 2011 do coletivo Fa-
Em sua primeira circulação nacional pelo
los & Stercus, o escritor, ator e diretor Alexandre
Palco Giratório, com Dia Desmanchado, Tatiana
Vargas diz que para algo ter uma história é ne-
Cardoso e Marcelo Bulgarelli do grupo Teatro
cessário uma certa continuidade entre seu passa-
Torto destacam que tudo que os artistas de teatro
do e seu presente. Então, “a questão nuclear dos
querem é que o maior número de pessoas conhe-
festivais é não perder a revolta e redescobrir a
çam e compartilhem os ideais que os movem e
curiosidade intelectual e o desejo de diálogo pro-
que uma circulação dessa amplitude promove
fissional sem esquecer que os grandes defensores
esse objetivo com maestria. “O Sesc representa
dos festivais são os habitantes das cidades”. Ele
um porto seguro para quem faz teatro no país
destaca o repertório amplo e potente de ações
e está cumprindo um papel importante na for-
culturais do Sesc, que tem no Palco Giratório um
mação de plateia e na valorização dos artistas”,
dos principais projetos no processo de nova so-
garante a dupla. Mais que isso, os artistas con-
ciabilidade brasileira, com a descentralização do
sideram uma organização que se interessa em
repertório cênico de um país de extensão conti-
aprender sobre teatro, em afinar um olhar sen-
nental efetivada por meio de intercâmbios e das
sível e atual que corrobore com o que pode ser
trocas humanas.
interessante para o Brasil inteiro também ver.
Sobre o Festival, Alexandre Vargas salienta a
Além da apresentação dos espetáculos, Mar-
escuta sensível e atenta da sua gestão para as ne-
celo e Tatiana valorizam as oficinas que permitem
cessidades objetivas do teatro feito no Rio Grande
uma troca mais efetiva com a comunidade de
Sul e considera a compreensão de que teatro não
cada cidade, abrindo portas mais concretas so-
é só espetáculo o maior mérito do evento. “Perce-
bre a diversidade de técnicas e linguagens, num
bendo este conceito, como coordenador do Cen-
permanente intercâmbio entre artistas. O mesmo
tro de Pesquisa Teatral do Ator, que contou com o
acontece, segundo eles, com os debates e o Pen-
apoio do Sesc, propus em 2010 que a programação
samento Giratório, que propiciam um olhar crítico,
do festival absorvesse a demonstração cênica da
distanciado e reflexivo sobre a obra e o processo
atriz Julia Varley e a conferência com um dos prin-
criativo de cada grupo. “Estas atividades estão
cipais nomes do teatro mundial, o diretor Eugenio
sendo muito especiais, sobretudo, pelos vínculos
Barba”, conta. No ano seguinte, o Palco Giratório
humanos que estamos estabelecendo. Sentimos
proporcionou a experiência de residência artística
que estamos deixando sementes pelo Brasil afora
entre Falos & Stercus e o grupo Vertigem, de São
e, de outro lado, carregamos outras com a gente,
Paulo. Para o artista, foi um momento revelador e
na nossa mala, a cada volta para casa”, revelam.
de contrastes, pois é necessário generosidade para reconhecer a cultura do outro.
“Quanto ao festival local, o Sesc permite que alguns de nossos mestres visitem nossa casa,
Alexandre Vargas acredita que a elaboração
nossa cidade, nossos conterrâneos, trazendo o
de uma inquietação cultural e de uma agenda de
mundo para nosso quintal. É um privilégio ter
Circo Minimal, da Cia. Gente Falante
Fotos: Cristine Rochol e Luiz Ventura
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
POR DANIEL COLIN
16
encenador, ator, dramaturgo e integrante-fundador do grupo Teatro Sarcáustico Fotos: Claudio Etges
PALCO GIRATÓRIO 2012: experiências diversas evidenciam o foco
do Festival sobre o trabalho continuado de grupos de teatro
Adeus à Carne, de Michel Melamed, Faladores, da Cia. Mario Nascimento (SP), e Luis Antonio-Grabiela, da Cia. Mungunzá (SP)
Quando Jane Schöninger, coordenadora do Palco
A ideia deste texto aqui apresentado foi da
Giratório RS, me convidou para assistir a alguns
própria Jane: escrever sobre as impressões que
dos espetáculos da 7ª edição do Festival e mediar
esses espetáculos deixaram em mim, fossem elas
os bate-papos com o público, eu já sabia que seria
positivas ou não. E é o que farei a seguir. Porém,
uma experiência muito particular: ter a chance de
atrevo-me a ampliar um pouco a proposta da
trocar ideias com artistas provindos de outras ci-
Jane e ir além. Como tive a oportunidade de ter
dades, estados e mesmo regiões deste país imenso,
participado do Festival de três formas diferentes,
um Brasil que poucas vezes tem a chance de reali-
pretendo fazer uma breve reflexão sobre estas
zar esse tipo de intercâmbio artístico-cultural. Com
experiências. Além de ter atuado como mediador,
o início do Festival, minhas expectativas foram su-
participei desta edição do Festival como diretor-
peradas e realmente pude conferir o trabalho de
-ouvinte na Residência Artística com o mítico Odin
grupos que, em sua maioria, desconhecia, mas
Teatret durante quatro dias e como ator/diretor/
cujas obras me encantaram e me fizeram refletir
dramaturgo do espetáculo Breves Entrevistas com
sobre o meu próprio fazer artístico.
Homens Hediondos (Teatro Sarcáustico), o qual
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
17
1 O grupo TEATRO SARCÁUSTICO surgiu em janeiro de 2004, do Trabalho de Conclusão do Curso de Artes Cênicas (UFRGS), de Andressa de Oliveira, Daniel Colin e Tatiana Mielczarski, intitulado GORDOS ou somewhere beyond the sea. Nestes 8 anos de trabalho continuado, foram produzidos outros sete espetáculos profissionais, além de performances, oficinas, workshops e cursos de formação de atores. O TEATRO SARCÁUSTICO recebeu importantes prêmios do estado (Açorianos de Teatro, Tibicuera de Teatro Infantil, RBS Cultura e Braskem em Cena) e é considerado uma das mais significativas companhias da cena teatral gaúcha contemporânea. Atualmente, o TEATRO SARCÁUSTICO é um dos grupos que integram o Projeto Usina das Artes, que prevê a ocupação do Centro Cultural Usina do Gasômetro em Porto Alegre, e é constituído pelos artistas Daniel Colin, Guadalupe Casal, Ricardo Zigomático e Rossendo Rodrigues.
mentos técnicos”. Sob direção-geral de Eugenio Barba, o Odin produziu 78 espetáculos, que já foram apresentados em mais de 60 países. Tamanha experiência foi, de certo modo, revista e compartilhada nesses dias da Residência Artística. O fato de poder trocar informações e experiências, de assimilar memórias de um grupo tão importante para o teatro mundial foi um privilégio sem precedentes. O Odin Teatret tem sido uma influência muito forte para o modo como o Sarcáustico pensa o fazer teatral, mesmo que o nosso grupo não seja um fiel seguidor dos princípios da Antropologia Teatral ou dos preceitos do Odin. “Eugenio Barba é um ícone vivo do teatro; se fazemos este teatro que a gente faz hoje é muito por causa dele. Nosso jeito de fazer teatro está obviamente ligado à pesquisa que eles criaram”, afirma Guadalupe Casal, uma das integrantes do Sarcáustico. Barba, durante as manhãs, expunha o que entendia por cumplicidade entre ele e seus atores e pedia para que suas atrizes – Julia Varley, Iben Nagel Rasmussen e Roberta Carreri realizou uma temporada de 12 apresentações no
cumplicidade artística entre ator e diretor, além
–, uma por dia, dividissem conosco suas próprias
Teatro de Arena. Portanto, este texto relata estas
de presenciar demonstrações de trabalho destas
percepções sobre essa cumplicidade. A partir da
três experiências – como artista, como mediador
atrizes e de participar de uma oficina prática so-
lembrança e da execução de exercícios de impro-
e como diretor-ouvinte –, pois acredito que esses
bre a dança dos Orixás com o brasileiro Augusto
visação feitos há pelo menos 40 anos, cada uma
três pontos de vista juntos podem ilustrar a ma-
Omolu. Foram turnos intensivos de informações e
delas foi apresentando modos particulares de
neira com que o Palco Giratório RS vem pensando
técnicas que nos fizeram compreender um traba-
construção dos trabalhos do Odin. E assistir, ao
uma política de festival que prioriza o trabalho de
lho de 48 anos continuados de pesquisa.
vivo, a demonstração dos processos artísticos de
grupos de teatro.
Como informa o site do Palco Giratório RS,
atrizes como Iben ou Roberta foi especialíssimo!
“O Odin Teatret foi fundado em 1964 em Oslo, na
Nesses depoimentos matinais, notei que, mais do
EXPERIÊNCIA 1: EUGENIO BARBA, A CUMPLICIDADE COM OS ATORES DO ODIN TEATRET E A DIMENSÃO DE TEMPO
Noruega. Em 1966, transferiu-se para Holstebro,
que cumplicidade, aquelas atrizes demonstravam
na Dinamarca, e transformou-se em Nordisk Tea-
uma imensa confiança em Barba; confiança, de
terlaboratorium. Atualmente, os 25 membros que
certo modo, submissa às ideias dele, pois ainda
O Teatro Sarcáustico , grupo que ajudei a fundar
compõem o staff artístico e administrativo do Odin
hoje, a relação do diretor com elas parece quase
em 2004 e do qual faço parte há oito anos, foi
são provenientes de 10 países e três continentes.
de comando absoluto, como se elas estivessem
um dos selecionados para a Residência Artística
Desde a sua origem, o Odin Teatret concentrou-se
à sua disposição todo o tempo. Talvez, seja uma
que o Odin Teatret coordenou nos primeiros dias
no treinamento dos atores, em sua capacidade de
análise bastante superficial da relação entre eles,
do Palco Giratório. Além do Sarcáustico, outros
estabelecer novas relações com os espectadores
mas foi a impressão que ficou desses momentos
vários grupos brasileiros fizeram parte dessa Re-
e nas diferentes dramaturgias que compõem um
com o grupo... A bem da verdade, o próprio Barba
sidência, como os porto-alegrenses Santa Esta-
espetáculo. O autodidatismo dos atores do Odin,
afirmou que sua cumplicidade era diferente com
ção, Circo Girassol e U.T.A. Durante quatro dias
com a consequente elaboração de um treinamen-
cada uma de suas atrizes: se com Julia, havia uma
consecutivos, os grupos selecionados tiveram a
to individual e o ensino aos membros mais jovens
relação de amor, ódio e dependência, com Iben,
oportunidade de assimilar depoimentos de Euge-
do grupo, determinou o constante interesse pela
por exemplo, sempre existiu um enfrentamento
nio Barba e de algumas de suas atrizes sobre a
aprendizagem e pela transmissão dos conheci-
de vontades e de respeitos. Mas com todas elas,
[1]
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
18
Barba foi – e ainda é! – extremamente exigente
Como eles conseguiram manter-se unidos e traba-
mesmos problemas de espaço e de público pelo
na evolução dos processos do ator.
lhando depois de tanto tempo juntos? Como man-
qual passam os outros grupos, o que torna a nos-
Além da cumplicidade, o tempo foi um tema
ter o mesmo interesse? O mesmo frescor? Como é
sa situação um pouco mais confortável, mas não
constante e um dos fatores mais notáveis nesses
possível se renovar? Foram algumas das perguntas
conformada. Ou seja, foi bom para nos confortar,
dias com o Odin para o ponto de vista do Teatro
que nos surgiram quando pensávamos sobre o
mas nunca para nos conformar!”, afirma Ricardo
Sarcáustico. Rossendo Rodrigues e Guadalupe
tempo de trabalho continuado. Ao que tudo indica,
Zigomático, ator e diretor do Sarcáustico.
falam exatamente sobre a diferença entre a pers-
as respostas virão com o tempo... Mas, definitiva-
Apesar de todas essas reflexões e intercâm-
pectiva de tempo para o Odin e para o nosso gru-
mente, a cumplicidade entre diretor e atores, para
bios, particularmente, ao relembrar a Residência
po. Nos depoimentos da Julia ou da Roberta, por
o Odin, está intrinsecamente ligada ao tempo de
com o Odin como um todo, acredito que Barba
exemplo, ouvimos relatos de ensaios que diziam
trabalho, de convívio, de vida.
poderia ter sido um pouco mais profundo so-
respeito a três, quatro ou cinco anos de processo
Outra característica essencial desses dias
bre a ideia da cumplicidade entre ator e diretor,
para um único trabalho ou mesmo sobre o fato de
com o Odin foi constatar que alguns dos pro-
talvez dando mais atenção aos grupos brasilei-
eles trabalharem com espetáculos que têm mais de
blemas que encontramos aqui em Porto Alegre
ros que estavam ali presentes ou propondo um
20 anos de existência. O próprio Eugenio Barba co-
em nossa profissão, como insuficiência finan-
workshop prático que dissesse respeito ao tema
mentou sobre obras que levaram cerca de 10 anos
ceira para projetos de pesquisa cênica, escassez
da discussão por ele proposta. Eu gostaria muito
para serem concluídas. “Foi bacana estar exposto
de público e espaços qualificados, por exemplo,
de saber como esses grupos, vindos do RS, RJ, DF
a uma perspectiva de tempo de trabalho bem dis-
são também dificuldades enfrentadas tanto pelos
e SP, pensam, discutem e executam essa cum-
tante da nossa”, comentou Rossendo, que também
outros grupos que participaram dessa Residência,
plicidade... De qualquer modo, foi um espaço
atua e dirige os trabalhos recentes do Sarcáustico.
quanto pelo próprio Odin. “O que mais me tocou
de valor incalculável para a reflexão dos nossos
Para nós, o impacto do tempo sobre o trabalho
na Residência com o Odin foi poder dividir nos-
processos de criação artística feitos no Brasil,
de grupo foi imenso, já que o Odin é mais velho
sos problemas, dividir ‘a dor e a delícia de fazer
utilizando um dos maiores grupos de teatro do
que qualquer um dos integrantes do nosso grupo.
teatro’; no fim das contas, percebo que são os
mundo como referência.
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
19
EXPERIÊNCIA 2: BREVES REFLEXÕES SOBRE AS BREVES ENTREVISTAS
fez constatar detalhes que antes haviam passado despercebidos.
Depois de um trabalho tão bem-sucedido quanto
O trabalho do Teatro Sarcáustico já fez parte
Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá
da história do Palco Giratório, quando, em 2009,
(vencedor dos Troféus Açorianos de Teatro 2010
integramos sua programação com o premiado A
e Braskem em Cena 2011 de Melhor Espetáculo
Vida Sexual dos Macacos, bem como com parte da
e Direção, dentre outros), o Teatro Sarcáustico
Mostra 5 Anos Teatro Sarcáustico, através de apre-
arriscou alto ao adaptar para a cena os contos
sentações gratuitas de algumas peças do grupo,
do norte-americano David Foster Wallace, Breves
as quais foram assistidas por mais de mil pessoas
Entrevistas com Homens Hediondos. O espetá-
somente no Festival. Àquela época, já constatamos
culo homônimo estreou no Teatro de Arena em
o quanto o Palco ampliou o nosso público e aju-
2011 e apostou em elenco e espaço cênico redu-
dou a divulgar nosso trabalho para outros olhares,
zidos, cuja intensidade do trabalho centrava-se
não tão habituados à “estética sarcáustica”. Acredi-
muito mais nas palavras de Wallace do que na
tamos, tanto eu quanto os outros integrantes do
ação propriamente dita, proposta de concep-
Sarcáustico, que a maior contribuição que o Fes-
ção diametralmente oposta à de Wonderland...
tival trouxe ao Breves Entrevistas... foi novamente
Após uma temporada muito benquista pela crí-
esta rotatividade de público, pois apesar de termos
tica e profissionais da área, Breves Entrevistas...
realizado uma primeira temporada com teatro
foi convidado a realizar sua segunda temporada
quase lotado em todas as apresentações, nossa
inserido na programação do Palco Giratório: fo-
plateia era composta, sobretudo, por artistas ou
ram 12 apresentações com público constante e
espectadores que vêm acompanhando o trabalho
repercussão sempre muito positiva – o que nos
do grupo há alguns anos, sendo fiéis assíduos dos
A Barca, do Grupo Grial de Dança (PE), e Vila Tarsila, da Cia. Druw (SP)
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
20
espetáculos do Sarcáustico. Durante o Palco Gira-
que assistiu ao nosso trabalho e mediou o bate-
tório, pelo contrário, esse público foi muito mais
-papo com o público. Pudemos, por meio das opi-
heterogêneo, com pessoas que vieram assistir à
niões do Valmir e do público presente na conversa
peça graças ao Festival, pelo simples fato de te-
pós-espetáculo, expor nosso processo de trabalho
rem visto nossa sinopse na programação e terem
para, assim, reavaliá-lo. Perguntas como “De que
se interessado pelo trabalho. “Algumas pessoas
modo se deu o processo de voltar a um texto pré-
nem mesmo conheciam o Teatro de Arena, mas
-escrito, mesmo que em forma de conto, já que o
vieram ver o espetáculo, curtiram e aconselharam
grupo se dedica à dramaturgia original há alguns
amigos a assistir também”, comentaram Guada-
anos?”, “Como foi mudar da ‘água para o vinho’
lupe e Rossendo em conversa sobre essa experi-
se pensarmos na transição de Wonderland... para
ência. Posso afirmar, como espectador que vem
o Breves Entrevistas...?” ou “Por que inserir ‘argu-
acompanhando a programação de todos os Pal-
mentos superficiais’ e de escolha do público em
cos Giratórios RS e como artista que participou
obra tão densa quanto o Breves...?” nos obrigaram
desta e de outras edições do Festival, que o públi-
a analisar detalhadamente nossa pesquisa de gru-
co do Palco Giratório vem aumentando ano após
po, para termos bem claro quais são os nossos ob-
ano, principalmente por pessoas que não tem o
jetivos como artistas contemporâneos. Reflexões
costume de ir ao teatro, o que eleva este Festival,
mais do que necessárias para um grupo que pre-
mesmo sendo “jovem”, ao patamar de outros bas-
tende se renovar a cada trabalho, sem perder seus
tante influentes na cidade, como o Porto Verão
princípios e seus ideais. E, por isso, é extremamente
Alegre e o importantíssimo Porto Alegre em Cena.
satisfatório ler a afirmação do Valmir, que declara
Outro grande benefício que o Festival trouxe ao
que “o Teatro Sarcáustico (...) toma para si a auspi-
espetáculo foi a oportunidade de ele ser visto por
ciosa tarefa dos artistas que não fogem ao ques-
pessoas de outros estados, num intercâmbio entre
tionamento permanente, embaralhando crítica e
o nosso grupo e outros artistas brasileiros. Com
autocrítica já desde a sua juventude transviada”.
isso, tivemos um retorno bastante criterioso do
Parece com isso, que estamos seguindo o caminho
Valmir Santos, jornalista e pesquisador de teatro,
que nos propusemos desde algum tempo...
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
21
EXPERIÊNCIA 3: TROCANDO EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS DE OUTROS ESTADOS DO BRASIL
maioria, a necessidade de uma dramaturgia criada
Uma das características do Palco Giratório RS vem
de cada grupo. Inserido nessa característica, posso
sendo a priorização ao que chamamos de “teatro
citar um trabalho que, com certeza, foi o que mais
de grupo”, ou seja, ao trabalho de grupos de teatro
comoveu os gaúchos nessa edição do Palco Girató-
com pesquisa continuada. Vimos nesses sete anos
rio: Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá (SP),
de Festival desde coletivos artísticos absolutamen-
com direção de Nelson Baskerville. Por meio de vá-
te consolidados, como o Teatro da Vertigem (SP), o
rios posts e comentários de colegas no Facebook,
XIX de Teatro (SP) ou o já citado Odin Teatret, por
por exemplo, pude constatar os modos diversos – e
exemplo, até grupos menos conhecidos, mas nem
positivos! – com que este “documentário cênico”
por isso menos competentes. Agora, em 2012, pu-
tocou, sobretudo, os artistas locais. Particularmen-
demos conferir trabalhos extremamente poéticos
te, já havia tido a oportunidade de assisti-lo em
e impactantes de grupos que nunca ou pouquís-
São Paulo e, desde lá, a obra tinha “devastado meu
simas vezes tiveram a chance de se apresentar na
coração”, como costumo comentar com amigos.
capital gaúcha. E, assim, o público de Porto Alegre
Partindo de um pressuposto absolutamente im-
pôde conhecer o que outros artistas brasileiros
pactante – e corajoso! –, Baskerville consegue, não
vêm pensando – e produzindo – sobre o teatro
somente (re)contar sua trajetória familiar de modo
contemporâneo. E, mais do que isso: os porto-ale-
sensível e tocantemente sincero, como também o
grenses puderam compreender que processos e
faz de maneira incrivelmente criativa. Cenas ines-
resultados mais “alternativos” ou “artesanais” não
quecíveis vão surgindo em minha memória: a briga
são características apenas das produções locais...
dos pais na Rural (minha preferida!), os “balões-
especificamente para o espetáculo, na busca de um discurso original que condiga com os ideais
Neste quase um mês de programação inin-
-com-palavras” de Nelsinho, a dublagem grotesca
terrupta, consegui desfrutar de 13 espetáculos
de Gabriela, o discurso Mickey/Minnie de Bolinho,
convidados, além de alguns gaúchos que já havia
o espancamento de Luis Antonio pelo pai (“Nelsi-
visto anteriormente. Noto nestes trabalhos, em sua
nho, meu filho, coloca uma música para o pai...”), dentre tantas outras. As cenas em sua maioria são surpreendentes, emocionais, performáticas, singelas. Invejavelmente maravilhosas! A dramaturgia do espetáculo tem a árdua tarefa de construir uma obra-relato de modo interessante e o faz extremamente bem, recheada de frases e discursos que nos fizeram refletir e nos emocionaram. Se há um comentário desfavorável a ser feito ao espetáculo é a disparidade do elenco: de um lado temos a entrega absoluta de Marcos Felipe e a sinceridade da performance de Verônica Gentilin, enquanto de outro temos atores que por várias vezes parecem teatrais demais, declamados demais, nos distanciando da proposta cênico-performática estabelecida por Baskerville. Mas é um detalhe insignificante diante da potência política que Luis Antonio-Gabriela re-
Petróleo, de Alexandre dal Farra, e Breves Entrevistas com Homens Hediondos, do Teatro Sarcáustico (RS)
presenta para o teatro brasileiro contemporâneo. Outra peça que gerou vários comentários, mas desta vez um tanto quanto polêmicos, foi o
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
22
maravilhosamente prepotente Adeus à carne, de Michel Melamed (RJ). Eu mesmo participei de, pelo menos, umas quatro discussões sobre esta obra, com defensores e detratores dialogando com afinco. Particularmente, são esses os trabalhos que mais me empolgam discutir: aqueles popularmente conhecidos como “ame-o ou deixe-o”, cujo resultado suscita paixões acaloradas. A meu ver, o espetáculo é impactante. E previsível. Questionador. Profundo e superficial. Irônico. Vanguardista e démodé ao mesmo tempo. Déjà vu de Bob Wilson. Despótico e inquietante. São tantos os adjetivos que posso associar a Adeus à carne... Um desfile “despirocado” de uma escola de samba desgovernada, (pre)disposta a atropelar quem estiver passando pela sua frente durante aqueles 80 minutos de passarela. Esta é a sensação alarmante que o espetáculo traz ao público, que assiste atônito à obra. Extremamente pedante, Adeus à carne não pede licença e vai tirando sarro do que puder para criticar o que considera violência no Brasil nos dias de hoje. E o faz muito bem! Os pontos altos são, sem dúvida, a cena em que as mulheres sambam sob cera quente das velas; a brincadeira com as emissoras de TV; o concurso de lágrimas; o samba-feliz permeado pelo tiroteio; a cena do “amor inviável” (casal separado pelas cordas); a narração sussurrada e sarcástica; elenco feminino, que se destaca; e a iluminação maravilhosa! Pontos baixos: o elenco masculino como um todo; o discurso que quer parecer inovador e vanguarda, mas peca por antiquado em vários momentos; a cena-musical da mesa de jantar, a qual parte de uma proposta interessante e pertinente, mas não é muito bem-sucedida em sua execução. Adeus à carne me fez sair do teatro com a sensação de ter visto um bravo espetáculo, feroz e profundamente impressionante – e que me agradou muito!!! – mas que,
Adeus à Carne
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
23
ao mesmo tempo, era “frio e calculista”, com todo o
curso calórico de Jane, totalmente ensanguentada
Além destes, conferimos outras obras incrí-
clichê que esta expressão pode abarcar. De qualquer
– este o momento mais contundente da concepção
veis, como o interessantíssimo Faladores, da Cia.
modo, um espetáculo a ser analisado e discutido por
cênica irônica e descontrolada do diretor Clayton
Mário Nascimento (MG), em sua mistura deliciosa
mais e mais vezes.
Mariano. Não foi à toa que o grupo comentou ser
de dança e teatro, perfeitamente traduzida sobre-
Vila Tarsila e Petróleo foram trabalhos encan-
a cena em que várias pessoas do público começam
tudo no trabalho da atriz-bailarina Rosa Antuña
tadores também, ambos paulistas, cada um por suas
a se retirar do teatro: se alguém até então não ha-
(algumas pessoas da plateia se perguntavam:
qualidades específicas: de um lado, temos um dos
via compreendido a proposta “desconfortável” de
“Meu deus, mas o que essa mulher não faz? Ela
espetáculos infantis mais inventivos e intrigantes
Petróleo, nesta cena entende aonde o diretor e o
canta, dança, interpreta, toca pandeiro...”); e Este
que tive a oportunidade de assistir em muitos anos;
dramaturgo pretendem chegar com sua obra. Em
lado para cima, da Brava Cia. (SP), com seu dis-
de outro, uma das gratas surpresas do Festival, um
suma, um daqueles espetáculos em que se tem
curso por vezes datado e seu elenco vigoroso a
espetáculo que se propõe a ser desagradável e, com
vontade de estar em cena com o elenco, compac-
ocupar a rua de maneira contundente. E, eviden-
isso, agrada em cheio às expectativas da plateia dis-
tuando com uma proposta cênico-dramatúrgica
temente, A Barca, do Grupo Grial de Dança (PE),
posta a uma experiência diferenciada.
absolutamente interessante.
que rendeu um dos momentos mais bonitos e
Cristiane Paoli Quito, diretora de Vila Tarsila,
Outro detalhe bastante interessante de Petró-
inusitados de todo o Festival: em meio a um frio-
é muito bem-sucedida, não somente na propos-
leo é que ele é o resultado de um coletivo formado
zinho tipicamente gaúcho no mês de maio, em
ta educativa do espetáculo, mas também na obra
por artistas de diversos grupos, intitulado Coletivo
pleno turbilhão do centro de Porto Alegre, a pla-
propriamente dita: a cada cena que o trabalho
BLA3M. Segundo eles mesmos se apresentam, “a
teia porto-alegrense se percebeu envolvida pela
propõe aos espectadores, somos surpreendidos
trajetória de cada um desses grupos reflete seus
música, pelas cores, pelos tecidos e pelos corpos
por transposições extremamente interessantes da
artistas. Os grupos citados são de renome inter-
do Cavalo Marinho, aterrissado diretamente de
obra de Tarsila do Amaral para os palcos, com es-
nacional e, dentro do teatro brasileiro, dispensam
Pernambuco. O choque de culturas era tão sur-
pecial destaque para os “Abaporus”, que simples-
apresentações, como Grupo XIX de Teatro, Cia. do
preendentemente emocionante que é impossível
mente mereciam aplausos em cena aberta. A trilha
Latão, Coletivo Estalo, Tablado de Arruar, além do
esquecer os olhos dos transeuntes do centro da
sonora do espetáculo e os bailarinos são eficientes
renomado artista plástico e compositor Eduardo
nossa cidade embevecidos com o que estavam
e contribuem para a ótima evolução do trabalho. A
Climachauska. É justamente na mistura desses ar-
presenciando. Arte pura, singela, engrandece-
belíssima cena dos balões verdes representa o que
tistas que reside uma das riquezas do espetáculo.
dora. Daquelas que se tornam referência e nos
o espetáculo tem de mais singular: ele consegue
Faz parte do próprio conteúdo da peça um certo au-
fazem lembrar o porquê levamos adiante esse
extrair efeitos incríveis de detalhes simples e sutis.
toquestionamento desses coletivos teatrais que se
ofício. Obrigado, Palco Giratório, sinceramente,
Tal e qual a obra de Tarsila.
estabeleceram nas últimas duas décadas na cidade
por esta(s) experiência(s)!
Já Petróleo tem como um de seus grandes
de São Paulo”. Concordo profundamente com este
méritos a dramaturgia mordaz de Alexandre dal
questionamento levantado pelo BLA3M e acredito
Infelizmente, não pude conferir dois espe-
Farra, recheada de humor negro e de uma profun-
que devamos repensar as estruturas de grupos aos
táculos que queria muito ver – Oxigênio, da Cia.
didade salutar aos espetáculos contemporâneos.
quais estamos acostumados nas últimas décadas...
Brasileira de Teatro (PR) e Bait Man, da Cia. dos
Como o petróleo que fervilha sob a terra, os textos
Por que não apostar em trabalhos de coletivos gera-
Atores (RJ), com direção do controverso Gerald
de dal Farra pulsam latentes por trás das atuações
dos por artistas diversos? A ser pensado...
Thomas. Ouvi falar muita coisa sobre eles, críticas
maravilhosas do trio formado por Janaína Leite,
Ode ao progresso, do Odin Teatret, foi uma
Ligia Oliveira e Marina Henrique. Todas demons-
surpresa para mim, já que nunca tinha visto ne-
tram facetas estapafúrdias e, ao mesmo tempo,
nhum espetáculo do grupo ao vivo (e confesso:
totalmente reais de mulheres à beira de um ataque
todos os que já havia assistido em vídeo não me
de nervos (com perdão da comparação infame ao
agradaram nem um pouco...). De estrutura cênica
cultuado filme de Almodóvar). Janaína, sobretudo,
simples, a obra dirigida por Eugenio Barba me con-
destaca-se ao encarnar Loraine, a provável viúva
quistou com seu sarcasmo e humor, ora sutis, ora
de um moribundo que reluta em morrer. Cenas
óbvios. Apesar de diversas reações indignadas na
antológicas transitam pelo palco, como o texto de
saída do teatro, foi um espetáculo que me tocou
Loraine proferido com a melancia, o tiroteio em
pela simplicidade e pelo inesperado humor sendo
que duas das personagens são baleadas e o dis-
utilizado em tema tão clichê.
positivas e negativas de amigos em quem confio muito, mas não posso opinar...
DANIEL COLIN Mestre em Artes Cênicas (PPGAC-UFRGS) e Bacharel em Interpretação Teatral (DAD-UFRGS), com larga experiência no teatro profissional porto-alegrense. Dentre seus espetáculos mais importantes estão “Wonderland e o que M. Jackson encontrou por lá”, “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, “Jogo da Memória”, “IntenCIDADE 1ª: VOAR” e “GORDOS ou somewhere beyond the sea”. Daniel Colin atualmente é um dos artistas mais premiados em Porto Alegre, tendo recebido vários Troféus Tibicuera de Teatro Infantil, Açorianos de Teatro, Braskem em Cena e RBS Cultura.
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
24
ESPAÇO PARA CONSOLIDAR grupos jovens Teatro de rua do
Com a proposta de abordar a diversidade e apre-
lhaço, pelo seu caráter transgressivo, e o espaço
Rio Grande do Sul é
sentar o que é produzido nas diversas regiões do
da rua como possibilidade de desestabilização da
Brasil, demonstrar processos de trabalho de gran-
relação ator-público e dos padrões de compor-
representado no
des expoentes do teatro mundial, diferentes lin-
tamento da cidade, considera a participação no
7º Festival Palco
guagens, enfim, absorver e refletir sobre as artes
festival, um coroamento do seu trabalho.
Giratório por coletivos
cênicas, o Festival Palco Giratório promove uma
Para o ator Daniel Lucas, a experiência de
ruptura com o lugar-comum de que o bom sempre
participar de um festival do porte do Palco Gi-
vem de fora e abre espaço para coletivos gaúchos,
ratório é extremamente enriquecedora. “Pela
consagrados ou não, da capital ou do interior. Na
visibilidade, uma oportunidade de termos novos
7ª edição, pelo menos três grupos – Teatro do Clã,
olhares sobre nosso fazer artístico, e contatos
Teatro VagaMundo e Grupo Mototóti – que já cir-
realizados com outros grupos e artistas do país,
cularam com seus espetáculos de rua por todo o
acaba se tornando um detonador de novas pos-
Estado pelos projetos Rio Grande no Palco ou Tea-
sibilidades para o VagaMundo”, afirma. O grupo
tro a Mil, tiveram a oportunidade de participar des-
acredita que a mescla de linguagens, espaços
te grande evento, com apresentações em tradicio-
distintos, países e estados diferentes e atividades
nais parques e praças, além de escolas da cidade.
complementares, tudo desenhado para promover
que já se apresentam por projetos do Sesc em cidades do interior
O Teatro VagaMundo, criado em 2008 por
trocas culturais, é muito acertada. “Ao convidar
Gabriela Amado e Daniel Lucas como um centro
grupos consagrados, grandes nomes do teatro, ao
de investigação da arte do ator, desde a monta-
lado de grupos jovens, de muitas regiões do país,
gem de seu primeiro espetáculo, La Perseguida,
tornando-se um panorama do que está sendo re-
contou com o apoio do Sesc, por meio da Unidade
alizado em teatro hoje, o Sesc mostra que está
Operacional de Santa Maria, que cedeu o espaço
interessado no todo, na diversidade, e cada um
para os ensaios. O grupo que busca agregar ao
de nós se sente uma peça-chave deste processo”,
entendimento do trabalho do ator a figura do pa-
explica Daniel Lucas. Segundo ele, com todas as
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
25
ações de fomento às artes, a instituição está mu-
espetáculos em cartaz no Rio Grande do Sul e no
Sul, além de Mato Grosso do Sul, a atriz Fernan-
dando a cara da cultura no Brasil.
país, além de expoentes mundiais das artes cêni-
da Bepler, do Grupo Mototóti, conta que as duas
O grupo Teatro do Clã, da cidade de Mon-
cas como Eugênio Barba e demais integrantes do
apresentações de I-Mundo realizadas no Parque da
tenegro, mais do que uma oportunidade de de-
Odin Teatret, que nos brindaram com duas belís-
Redenção durante o Festival Palco Giratório fica-
senvolvimento do coletivo, vislumbrou no festival
simas apresentações que dificilmente teríamos a
rão na memória do grupo pela interação com um
uma possibilidade de enriquecimento cultural de
chance de assistir. O Palco Giratório nos propiciou
grande e heterogêneo público. Para ela, com apre-
seus alunos do projeto Teatro Educação, trazidos
ainda diversas formas de intercâmbios, oficinas,
sentações de teatro de rua durante todos os fins
para assistir a alguns espetáculos. “A experiência
debates e palestras.”
de semana do festival, o Sesc dá exemplo a muitos
do Palco Giratório proporcionou a eles momentos
Quanto às quatro apresentações de O Rei
eventos que não têm essa prática de comprome-
de comoção, encantamento e motivação”, ressal-
Cego, o diretor admite que ainda reverberam dis-
timento com a acessibilidade aos bens culturais e
ta o diretor Cassiano de Azeredo. Mas não foram
cussões dentro do grupo. “A apresentação no Par-
com a formação de plateia.
apenas os alunos que aproveitaram a chance de
que da Redenção, num domingo, foi a realização
Fernanda salienta também a oportunidade
acompanhar o festival, como revela Cassiano:
de um sonho. Pode parecer pequeno, mas muitas
que os artistas têm de assistir à diversidade de tra-
“Estivemos em contato com alguns dos melhores
foram as vezes em que fomos lá assistir a espetá-
balhos, além das atividades formativas de elevado
culos e pela primeira vez fomos nós que apresen-
nível com profissionais de extrema relevância no
tamos um trabalho neste lugar tão democrático –
cenário das artes cênicas. “Para nós, que desfruta-
foi um momento muito bacana que deixou todo o
mos deste universo de possibilidades, é como um
grupo emocionado”, reconhece Cassiano. O artista
cardápio em que nos alimentamos e com o qual
também destaca as duas apresentações na Escola
nutrimos nossa musculatura criativa, a da imagi-
Grande Oriente, na periferia de Porto Alegre, pelo
nação. Assim, quando o festival ‘vai embora’, não
fato de os alunos não terem a oportunidade de as-
deixa a cidade, mas se mantém vivo em cada um, e
sistir teatro com frequência.
em cada nova obra que encontra o público, cum-
Grupos Mototóti, Teatro VagaMundo e Teatro do Clã exibiram seus espetáculos em parques e escolas da Capital Fotos: Claudio Etges
Apesar de já ter circulado por projetos do Sesc nos últimos cinco anos pelos estados da Região
pre com os ciclos de vida durante o ano todo.”
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
27
#08
O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc – Cultura por toda parte. Sua edição desempenha um papel fundamental na difusão de conhecimento. Nas páginas que seguem, apresentamos um artigo repleto de depoimentos sobre os inúmeros encontros do Odin Teatret com artistas de Porto Alegre ao longo de 25 anos, além de um quadro completo sobre a passagem do grupo pelo 7º Festival Palco Giratório, realizado em maio.
Por Patricia Furtado de Mendonça atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais
Odin Teatret e Porto Alegre histórias, influências e reflexões sobre o fazer teatral 1987-2012
Fotos: Claudio Etges
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
28
1 As entrevistas filmadas foram feitas por mim com Irion Nolasco e Alexandre Vargas em maio de 2012, durante o 7º Palco Giratório. Os outros depoimentos me foram enviados por email por todos os outros artistas e estudiosos acima citados, entre maio e junho de 2012.
Premissa
sentido do teatro (e do “teatro de grupo”) hoje, em
Primeiros contatos
É possível narrar uma história sem ser parcial?
Porto Alegre e no mundo.
O Odin Teatret, grupo dinamarquês fundado por
Acho que não. Por isso, na tentativa de ser o mais
Insisto: meu objetivo aqui não é fazer análises
Eugenio Barba em 1964, após ter percorrido
imparcial possível, tento aqui dar voz a diferentes
ou críticas, mas simplesmente costurar memórias.
diversos países europeus e latino-americanos,
estudiosos e artistas do Rio Grande do Sul, mais
São apenas os tijolos de base.
chega ao Brasil pela primeira vez em 1978, quando
especificamente de Porto Alegre, que ao longo
Agradeço profundamente a disponibilidade e
os atores Roberta Carreri e Francis Pardeilhan
desses 25 anos encontram o Odin Teatret em
a generosidade de todos os que estão aqui comigo
passam dois meses em Salvador estudando
diferentes geografias, no Brasil e no exterior.
para “contar essa história”, escondidos ou revelados
capoeira e dança dos orixás: preparam-se para o espetáculo O Milhão.
Os territórios, por si só, não determinam a
nestas entrelaçadas linhas: Irion Nolasco, Maria
História, nem as histórias. Digo isso porque a relação
Lúcia Raymundo (in memorian), Nair D’Agostini,
Em 1987, Barba vem duas vezes ao Brasil em
entre o Odin Teatret e Porto Alegre é toda feita de
Jezebel de Carli, Tatiana Cardoso, Gilberto Icle,
turnê. Da primeira vez, entre maio e junho, passa
atravessamentos, de viagens. É puro movimento.
Alexandre Vargas, Jane Schöninger, Lucas Sampaio
por Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Profes-
Uma história que vai se construindo sobretudo
e Álvaro Rosa Costa. Ao fim deste artigo, também
sores e artistas do Rio Grande do Sul partem para
fora dos próprios confins: uma professora que vai
encontraremos uma carta-depoimento de Priscila
o Sudeste para seguir as atividades do Nordisk
encontrar o grupo em São Paulo, outros professores
Duarte, que não é de Porto Alegre, mas participou
Teaterlaboratorium. Nair D’Agostini, que na época
e alunos que os seguem no Rio, artistas que partem
da residência artística com o Odin no último Palco
era professora da Universidade Federal de San-
para Londrina ou Holstebro. Muita gente foi ao
Giratório da cidade. Um destaque especial vai para
ta Maria (UFSM), participa das atividades de São
encontro do Odin fora de casa, mas para depois
a contribuição da atriz do Odin Julia Varley, que nos
Paulo e Campinas: segue um workshop com o ator
voltar e compartilhar conhecimentos, saber. Para
presenteia com uma lúcida reflexão sobre os desafios
Richard Fowler e um curso sobre a Antropologia
transmitir. E é assim que tem início a história entre
encontrados pelo jovem de hoje para adquirir as
Teatral conduzido por Barba, além de assistir aos
o Odin e Porto Alegre – “fora de casa” – até que
ferramentas necessárias ao ofício do ator, para fazer
espetáculos Matrimônio com Deus, com César Brie
fossem criadas as condições para receber o grupo
teatro e para manter-se em um grupo.
e Iben Nagel Rasmussen, e Esperando o Amanhe-
na cidade e assim multiplicar a possibilidade dos
Participei, a convite do Odin Teatret e do
encontros. Afinal, “encontros” e “reencontros” não
Sesc/RS, deste 7º Palco Giratório de Porto Alegre.
estão entre as maiores alegrias que o mundo do
Foi ali que tive a oportunidade de conhecer pes-
teatro pode nos proporcionar?
soalmente quase todas as pessoas citadas acima.
Tentarei aqui alinhavar vivências, opiniões,
As informações contidas neste texto foram-me
influências e sentimentos plurais com relação ao
fornecidas, em sua maioria, através de entrevistas
Odin, buscando restituir, a quem lerá o texto até
filmadas e inúmeras trocas de e-mails[1].
o fim, um pouco do que me foi contado até agora.
Fica aberto o espaço para futuras contribui-
E, o que é mais importante, considerando que a
ções e discussões. Para novos encontros, e reen-
junção destes vários fatos e lembranças tem o
contros. Para novas histórias, influências e refle-
poder de despertar como reflexão sobre o valor e o
xões sobre o fazer teatral.
cer, com R. Fowler.
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
29
2 Richard Fowler, Ulrik Skeel, Lena Bjerregård e César Brie (Iben Nagel Rasmussen não pôde participar das atividades do Rio de Janeiro, pois estava com hepatite).
trabalho do ator, a qual era orientada
que conduziria, no Rio, um seminário para direto-
pelos professores Irion Nolasco e Maria
res, em outubro de 1987 ele faz as malas e volta
Lúcia Raymundo. Barba estava desem-
à cidade, buscando uma maior aproximação com
barcando no Brasil e, segundo Irion, era
o criador da Antropologia Teatral. De Porto Alegre
preciso que fôssemos ao seu encontro,
também parte Maria Helena Lopes, fundadora do
pois sua pedagogia seria fundamental.
grupo TEAR e que também foi professora do DAD
Naquela época, eu havia estabelecido
da UFGRS. Os dois participam deste seminário
com Irion e Maria Lúcia uma relação
histórico, frequentado não só por diretores, mas
de mestre e discípulo e, como um bom
também por atores e críticos teatrais de vários
aprendiz, aceitei a indicação sem ques-
estados do Brasil. O seminário desperta opiniões
tionar, pois acreditava que um mestre
muito contraditórias, como nos conta Irion:
vem a você com um barco e lhe diz,
Logo em seguida, outros estudiosos e artis-
“Vem! Se deseja ir para a Costa Doura-
Sim, foi um momento muito crítico. [...]
tas de Porto Alegre partem para o Rio de Janeiro
da, eu o levarei. Além disto, uma vez no
Eu me comovo com o Barba. Ele proce-
com vontade de saber mais sobre o Odin. A inicia-
meu barco, você poderá cantar, dançar
deu de uma maneira que só poderia ser
tiva foi de Irion Nolasco e Maria Lúcia Raymundo,
e até dormir, mas eu o levarei à meta
de um mestre, só poderia ser dele. Lá
sua esposa, ambos professores do Departamento
em segurança”. Bárbaro!!!! Vamos nos
estavam vários astros de TV, artistas do
de Arte Dramática (DAD) da Universidade Federal
inscrever nas oficinas. É claro que não
Rio que já trabalhavam há anos dentro
do Rio Grande do Sul (UFRGS). Eles estimulam
fomos selecionados, pois éramos, tal-
daquele mesmo “esquemão” e com uma
seus alunos a partirem com eles para o Rio. Lá,
vez muito jovens, inexperientes e ainda
modéstia mínima. Eles chegavam, abriam
assistem ao espetáculo Esperando o Amanhecer
imaturos. Mas, mesmo assim, fomos, de
a porta e iam entrando. Então, um dia,
e seguem a Parada de Rua com alguns dos atores
ônibus, rumo ao Rio de Janeiro, em busca
o Barba disse: “Não, não é assim. Vocês
do Nordisk Teaterlaboratorium[2]. Jezebel de Carli
de algo. Sim, encontramos algo, muito
não podem ir chegando. Sabem que exis-
– atriz, professora e diretora da Santa Estação Cia.
maior do que a nossa expectativa pudes-
te um horário de chegada. Então vocês
de Teatro –, que faz parte da caravana, em um
se supor. O encontro com a tradição do
têm que obedecer a este horário”. Foi uma
texto intitulado Contaminação Sorrateira: Encon-
Odin foi como um presente que como-
revolta geral. [...] Criticavam a firmeza, a
tros com o Odin, nos conta:
veu a alma e provocou um pensamento.
exigência e a disciplina. Muitas daquelas
Assim, pensei: é dessa forma que quero
pessoas não se davam bem com isso, não
Era o ano de 1987. Eu era uma jovem es-
fazer teatro!!!! Com ética, treinamento,
sabiam como fazer. Porque no teatro bra-
tudante de teatro. Tinha vinte e poucos
coragem, entrega, disciplina, pelo corpo,
sileiro, você sabe, parece que você nasceu
anos e uma vontade imensa de mudar,
com continuidade, curiosidade, perseve-
ungido por alguma entidade, e aí isso te
mover. Acreditava no teatro como uma
rança e apaixonamento.
dá o dom do teatro. E não é isso. É um
possibilidade de transformação. Estava
trabalho como outro qualquer, um traba-
nesse ano envolvida com uma pesquisa
Para Irion, essa ida ao Rio não basta. Saben-
sobre as energias corporais e vocais do
do que Barba voltaria ao Brasil meses depois e
lho de anos e anos. Você pode constatar isso vendo os atores do Odin.
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
30
3 Barba, Eugenio. Além das Ilhas Flutuantes, Ed. Hucitec, São Paulo, 1991. Tradução: Luis Otávio Burnier.
Mas para mim foi uma coisa espetacu-
ambiente propício para a pesquisa da
Holstebro e ali permanecem em imersão durante
lar, foi maravilhoso. [...] Esse workshop
linguagem e a formação do ator. Assim,
cerca de 10 dias, assistindo a todos os espetácu-
no Rio de Janeiro foi a experiência mais
alguns grupos e artistas da cena gaúcha
los do grupo e participando de várias outras ati-
marcante da minha vida.
se interessaram pelo trabalho do Odin
vidades. Irion recorda:
a partir da sua primeira visita ao Bra-
Podemos afirmar que é a partir desses en-
sil, em 1987. Mas foi a década de 1990
Fiquei maravilhado, com tão pouco fa-
contros de 1987 que os princípios da Antropo-
que tornou a influência uma parceria.
zer tanto. Era mais que uma ousadia.
logia Teatral de Barba começam a entranhar re-
Nesses anos, alguns de nós trabalhamos
(...) Quando vi Casamento com Deus, me
almente nos departamentos de teatro da UFRGS
intensamente com o grupo dinamarquês
emocionei demais. (...) E claro, o trabalho
e da UFSM, assim como em núcleos de pesqui-
e assistimos a muitos de seus trabalhos.
deles, extraordinário, inesquecível. Ainda
sa locais sobre o trabalho do ator. Um dos mais
Escreveu-se e trabalhou-se a partir das
mais ao vivo e a cores. Porque se você vir
representativos é o núcleo dirigido pelo próprio
ideias da Antropologia Teatral. Eu diria
no vídeo, não causa este impacto. Há um
Irion e por Maria Lúcia: As Energias Corporais no
que a principal influência tenha sido uma
distanciamento. E ali não, eles vinham
Treinamento do Ator – citado por Jezebel ante-
certa ética do trabalho grupal que tem na
perto de você. Também vi a Roberta com
riormente – que além de trazer os ensinamentos
palavra "pesquisa" um catalisador. O tea-
Judith, outro arraso. Era tudo um arraso,
de Arthur Lessac, também trata dos princípios da
tro em Porto Alegre notadamente mudou
eu dizia: meu deus do céu, o que é isso?
Antropologia Teatral. Deste núcleo, também vem
de cara nos últimos 20 anos e aquilo que
a fazer parte a atriz Tatiana Cardoso, hoje tam-
era exótico e estranho – o treinamento, a
No mesmo ano, Tatiana Cardoso segue para
bém professora da UERGS.
investigação – passou a ser moeda cor-
Londrina – cidade para onde o Odin retorna inú-
Quem nos oferece uma leitura específica so-
rente e sinônimo de qualidade artística.
meras vezes – e participa da Mostra Odin Teatret,
bre o interesse pelo Odin e pela Antropologia Tea-
Essa forma de organização do trabalho,
organizada por Nitis Jacon por meio do FILO (Fes-
tral em Porto Alegre, no meio acadêmico e artístico
com ênfase no processo e na formação
tival Internacional de Teatro de Londrina). Ainda
daqueles anos, é Gilberto Icle, criador da UTA (Usi-
do ator, tem, sem dúvida, um atravessa-
em 1991, é publicado o primeiro livro de Barba
na do Trabalho do Ator) e hoje professor da UFRGS:
mento do trabalho pedagógico do Odin,
no Brasil, Além das Ilhas Flutuantes [3], com tra-
seja pelo trabalho direto com o grupo,
dução de Luis Otávio Burnier (1956-1995), ator e
O teatro de Porto Alegre foi bastante
seja via o trabalho de Luiz Otávio Burnier
fundador do LUME, grupo teatral que há alguns
sensível ao trabalho de Eugenio Barba,
e do LUME de Campinas.
anos mantinha uma relação muito estreita com o Odin e que, por sua vez, sempre teve uma for-
pois a cidade tem uma tradição de teatro de grupo que remonta à década de
Início dos Anos 90
te proximidade com inúmeros grupos teatrais de
1950. Além disso, as universidades que
Nos anos 1990, de fato, diferentes artistas e es-
Porto Alegre, sobretudo através de seminários e
ofereciam formação teatral no Estado
tudiosos do Rio Grande do Sul têm a oportunida-
oficinas – como já nos disse Gilberto Icle.
do RS sempre potencializaram a ideia
de de se aproximar ainda mais do Odin Teatret.
Em maio de 1993, Gilberto assiste ao espe-
de teatro laboratório, ou seja, há um
Em 1991, incansáveis, Irion e Maria Lúcia vão até
táculo Kaosmos e a outras demonstrações de tra-
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
31
balho do Odin em Córdoba, na Argentina. Alguns
físico pela manhã. Foi uma experiência
ção da ISTA de Londrina. Com isso, montam um
meses antes, em janeiro, Tatiana Cardoso e Maria
riquíssima, profunda, radical. Sempre que
seminário “pós-ISTA” que tem desdobramentos
Helena Lopes participam de um seminário de três
tenho que escrever ou refletir sobre esse
na UFRGS e na UFSM. Chama-se Seminário In-
semanas conduzido por Iben Nagel Rasmussen
tipo de processo, me vem em mente que
ternacional Teatro em Fim de Milênio e conta
em Londrina, que culmina com a apresentação do
é através do teatro que a vida me coloca
com a presença de alguns artistas e intelectuais,
espetáculo Pontes sobre o Vento. Tatiana nos conta:
melhor diante de mim mesma. É nestas
inclusive aqueles do staff científico da ISTA: Pa-
ocasiões, quando treino, mergulho e pra-
trice Pavis, Jean Marie Pradier, Nicola Savarese,
Coreografia para atores e bailarinos in-
tico a arte que amo, que minha integri-
Franco Ruffini, Ian Watson e Rafael Mandressi,
teressados em trabalho de voz. Este era
dade física, psicológica, mental, crítica
além da dançarina indiana Sanjukta Panigrahi
o título do seminário que Iben realizou
diante do mundo e dos outros é exerci-
(1944-1997) e sua orquestra. Eles conduzem
através do FILO, em 1993. Um seminário
tada, lapidada, transformada. Naquele
palestras e espetáculos em Porto Alegre, lo-
em regime de imersão na chácara São
seminário, me sentia viva como nunca,
tando o teatro com cerca de 300 pessoas. Para
José com muito verde, silêncio e uma pis-
desperta, consciente que minha tarefa
Santa Maria, seguem Jean Marie Pradier, Franco
cina bem oportuna. Eu havia conhecido o
era um tesouro, algo sagrado.
Ruffini e Sanjukta Panigrahi, que ali apresenta
trabalho do Odin em 1991 e tinha ficado
dois espetáculos. Vários alunos da UFSM acom-
particularmente tocada pelo trabalho de
No ano seguinte, em 1994, sempre em Lon-
panham as apresentações nas duas cidades.
Iben. Era um período em que estava bus-
drina, Nitis Jacon organiza a 8ª sessão da ISTA
Com relação ao impacto daquelas palestras e da
cando cursos de aperfeiçoamento, e esta
(International School of Theatre Anthropology),
apresentação de Sanjukta em Santa Maria, Nair
proposta, naquela época, já apresentava
“aldeia teatral” fundada em 1979, onde atores e
D’Agostini comenta:
um atravessamento de técnicas que acre-
dançarinos de diversas culturas – Oriente e Oci-
ditava serem fundamentais para o artista:
dente– encontram estudiosos para investigar,
No Curso de Artes Cênicas da UFSM,
um ator que dança, um bailarino que can-
confrontar e aprimorar os fundamentos técnicos
alguns professores já trabalhavam em
ta, ou seja, artistas empenhados em olhar
de sua presença cênica. Dela participam diversos
aula os princípios e algumas técnicas
para si mesmos, em treinar seu ofício além
artistas e estudiosos de Porto Alegre: Tatiana Car-
da Antropologia Teatral, tanto na in-
do que previamente já está estabelecido.
doso, Irion Nolasco, Maria Lúcia Raymundo, Nair
vestigação prática quanto na teoria.
Tive certeza de que seria uma ótima ex-
D’Agostini, Paulo Maurício Guzinski e Alice Padi-
Havia projetos de investigação científica
periência para mim e foi muito mais que
lha Guimarães, que hoje faz parte do grupo Teatro
e artística a partir da cultura gaúcha –
isso. Me inscrevi no seminário a convite
de los Andes, sediado em Sucre, na Bolívia, e fun-
financiados pelo CNPQ, pela FAPERGS
de Carlos Simioni, que já trabalhava com a
dado em 1991 por César Brie, ator que integrou
e outros órgãos financiadores da uni-
Iben na época. Fui selecionada através de
o Nordisk Teaterlaboratorium entre 1980 e 1990.
versidade – em que eram utilizados os
Irion Nolasco e Nair D’Agostini conseguem,
conceitos e princípios da Antropologia
Eram mais ou menos 10 horas diárias de
por meio de suas universidades e da Secretaria
Teatral. Os conteúdos sobre o Odin, Bar-
trabalho, com um intenso treinamento
do Estado, um apoio econômico para a realiza-
ba e a Antropologia Teatral eram desen-
carta de intenção e currículo. [...]
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
32
volvidos na disciplina “Ética e Estética”,
projeto, sobretudo porque o espectador
era só teórico. Depois dos encontros de
em que, além de material bibliográfico,
gaúcho não conhecia os espetáculos do
1994 e 1995, a tradição do Odin ficou
os alunos tinham acesso a vídeos de de-
Odin, e considerávamos que, além da
bem mais conhecida aqui. As pessoas já
monstrações técnicas de atores do Odin
oportunidade de poder fruir de sua ino-
usavam termos do Odin, falavam em sats,
e espetáculos. O curso também tinha um
vadora estética, também o espetáculo, as
coisas assim.
intercâmbio intenso com o LUME e pro-
demonstrações técnicas, a oficina e as
movia oficinas e espetáculos. Portanto, já
conferências trariam um aporte impor-
Em relação ao impacto causado pela presen-
havia uma certa familiaridade com esse
tante aos profissionais de teatro, como
ça e pelas atividades de Barba e Julia Varley, as-
conhecimento e tradição.
também para a pedagogia teatral. Essa
sim como em relação à influência dos estudos da
Quanto ao impacto produzido pelos es-
parceria nos levou a organizar e concre-
Antropologia Teatral sobre grupos gaúchos, Nair
petáculos de Sanjukta, foi algo inimagi-
tizar outros importantes projetos, que, de
D’Agostini afirma:
nável, sobretudo no Caixa Preta, Teatro
certa forma, estavam interligados e fo-
do Centro de Artes e Letras da UFSM. Ali,
ram frutos do contato com a Antropolo-
É bastante difícil ter uma ideia precisa
alunos e professores puderam vivenciar,
gia Teatral, como o curso "Poética e Gra-
sobre uma experiência estética, já que
além da magia da dança Odissi, a eficá-
mática do Mimo Corpóreo", ministrado
é muito subjetiva. Mas pelo que pude
cia expressiva de seus princípios para a
por Thomas Leabhart, do Pomona College
perceber, foi despertado interesse pela
arte do ator. Um espectador não ligado às
University of Califórnia – USA, realizado
Antropologia Teatral nos profissionais de
artes cênicas fez o seguinte comentário:
na UFSM e na UFRGS, ainda em 1995.
teatro mais inquietos e sempre ávidos de novos conhecimentos e aquisições técni-
“Saíam raios luminosos de seus pés, tão intensa era a energia que ela emanava”.
Foram apenas três dias de evento em Porto
cas e artísticas. Muitos grupos iniciaram
Alegre: 6, 7 e 8 de dezembro. Mas a programação
uma investigação prática, no sentido de
1995: Eugenio Barba e Julia Varley chegam a Porto Alegre
foi intensa e, mais uma vez, lotou todos os espaços
se aproximarem dessa tendência estética.
que acolheram as atividades do Odin Teatret: Casa
Quanto aos meus alunos, foi uma experi-
As sementes lançadas no seminário Teatro em
de Cultura Mario Quintana, Teatro Carlos Carvalho
ência forte em que os mais afoitos e im-
Fim de Milênio começam a criar raízes. É preciso
e Salão de Atos, onde Julia Varley apresentou seu
buídos de força de vontade foram leva-
adubar a terra. Irion, Maria Lúcia e Nair reúnem
espetáculo solo O Castelo de Holstebro e suas de-
dos a organizar e realizar treinos intensos
forças mais uma vez e conseguem organizar
monstrações de trabalho O Irmão Morto e O Eco do
e sistemáticos sobre o corpo e, também,
outro encontro: em 1995, Eugenio Barba e Julia
Silêncio. Eugenio Barba conduziu uma palestra e,
pesquisas de ações e aprimoramento de
Varley chegam pela primeira vez a Porto Alegre.
junto de Julia Varley, um seminário para estudan-
partituras de ações que os tornassem efi-
Sobre este projeto, nos conta Nair D’Agostini:
tes e artistas. Lembra Irion Nolasco:
cazes na pré-expressividade exigida por essa forma de linguagem expressiva. Na
Irion e Maria Lúcia tinham sido professo-
A palestra de Barba aqui, em 1995, des-
minha avaliação, houve, nessa nova ten-
res do Curso de Artes Cênicas da UFSM,
pertou uma tremenda curiosidade da-
dência estética (se assim podemos nos
e o projeto Teatro em Fim de Milênio
queles que falavam sem conhecer. Eles
referir), produções artísticas inovadoras
foi uma continuidade da parceria entre
encheram o plenário da universidade,
e com qualidade técnica, mas também
UFSM e UFRGS para a vinda do Potlach,
o “Plenarinho”. Veio gente que nunca
muitas produções que não alcançaram
da Itália, para Porto Alegre e Santa Maria,
imaginei que viria. Estavam todos lá,
o nível artístico e técnico desejável, pró-
com espetáculos, parada de rua, oficinas,
impactados. O seminário foi histórico.
prio da imaturidade artística e da falta de
apresentações técnicas e conferência.
Era aberto para todos os que quisessem
aprimoramento técnico.
Dessa forma, Teatro em Fim de Milênio
participar. Havia não só alunos e gen-
(...)
foi uma produção, coordenação e orga-
te de teatro, mas, inclusive, professores
Sei de grupos que tiveram uma for-
nização conjunta, sendo que o sucesso
de Letras. E a abertura foi tal que até
te influência e se orientaram em suas
e o resultado desse evento, assim como
as pessoas que falavam mal estavam lá
experimentações teatrais a partir dos
dos precedentes, nos levou a dar con-
também. Isso foi muito legal. Devia haver
princípios da Antropologia Teatral. Pos-
tinuidade e unir forças para esse novo
umas 200 pessoas no seminário, já que
so citar, em Porto Alegre, o grupo Usi-
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
4 Barba, Eugenio. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Publicado pela primeira vez em 1994 pela Ed. Hucitec, de São Paulo, com tradução de Patricia Braga Alves. O livro foi reeditado em 2009, com a mesma tradução, pelo Teatro CaleidoscópioEditora Dulcina, de Brasília. 5 Barba, Eugenio e Savarese, Nicola, A Arte Secreta do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral, publicado em 1995, pela Editora Hucitec, São Paulo, com Tradução dos integrantes do LUME Teatro. Uma nova edição sairá em dezembro de 2012, pela Editora É Realizações, São Paulo, com tradução de Patricia Furtado de Mendonça.
33
na do Trabalho do Ator (UTA). Também
impressionou bastante. E também me
que haja um distanciamento ou uma falta de
cito o trabalho de Tatiana Cardoso, de
estimulava na minha preparação. Então,
comunicação entre o grupo dinamarquês e os
Jezebel de Carli e a pesquisa sobre o ator
eu passava a ter uma referência que eu
artistas e estudiosos da capital do Rio Grande
de Irion Nolasco. Cito também a tese de
não tinha. (...)
do Sul. Isso pode ser constatado pelas inúmeras
Inês Marocco sobre a espetacularidade
Na época, já existia muito fortemente a
viagens de gente de teatro local para outros
da cultura gaúcha. (...)
antropologia aqui em Porto Alegre atra-
estados ou países. Além disso, a busca de contato
No curso de Artes Cênicas da UFSM, fo-
vés dos discursos e das práticas. Duas
com a tradição do Odin também é facilitada pela
ram geradas inúmeras pesquisas práti-
pessoas fundamentais, Irion Nolasco e
publicação dos livros de Barba em português,
cas e teóricas a partir dos princípios da
Maria Lúcia Raymundo, faziam um traba-
pois eles se tornam referência fundamental para
Antropologia Teatral. Hoje, acredito ser
lho sensacional e nos passavam bastante
inúmeras teses nacionais de graduação e pós-
difícil ignorar, quer nas investigações
coisa do trabalho da Antropologia Tea-
graduação em Dança e em Artes Cênicas.
teóricas quer nas práticas, os princípios
tral. Mas, por outro lado, chegava uma
Em 1995, é publicado o livro A Arte Secreta
da Antropologia Teatral revelados por
disciplina, quase que uma onda de dis-
do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral
Barba. Seu aporte teórico e artístico já se
ciplina extremamente grande que você
, de Barba e Savarese. Este livro, junto de A Ca-
constitui uma tradição das mais signifi-
tinha que ter com o trabalho, que era
noa de Papel e Além das Ilhas Flutuantes, vai
cativas de nossos tempos e tornou-se um
muito dura. E isso gerava trabalhos mui-
nutrindo o estudo de vários artistas e estudan-
referencial de suma importância para as
to frios, mecânicos. Então tinha aquele
tes de Porto Alegre, muitos dos quais alunos de
investigações teóricas, práticas, artísticas
viés de um trabalho que era demandado
Irion, Maria Lúcia e Nair D’Agostini, e também
e pedagógicas atuais.
dessa forma, e quando você via o resul-
de outros professores que, apesar de não terem
tado artístico era de uma frieza que, e eu
tido um contato mais estreito com o Odin, são
É em 1995, durante estes encontros, que
intuía que... mas não pode ser isso, não
igualmente influenciados pelo pensamento e
Alexandre Vargas – ator, diretor, fundador do
deve ser isso. O grande impacto que fica
pela cultura de Barba e seu grupo.
Falos & Stercus e organizador do Festival de
é o desmoronamento de quem já traba-
Entre 7 e 18 de agosto de 1995, a convite
Teatro de Rua de Porto Alegre – também entra
lhava com isso, tem o contato com o Eu-
da EITALC (Escuela Internacional de Teatro de
em contato direto com o Odin, grupo do qual
genio e percebe que não era aquilo que
América Latina y el Caribe), Gilberto Icle per-
ouve falar pela primeira vez em 1992, quando
ele vinha fazendo. E quando você ouve o
manece na sede do Odin, em Holstebro, e par-
Luis Otávio Burnier e Carlos Simioni fazem uma
Eugenio dizer: “Não é nada disso”... Isso
ticipa do encontro Trabalhando e Convivendo
turnê em Porto Alegre. Curioso e interessado
foi importante demais.
com o Odin Teatret. Ali, ele tem a possibilidade
pelo que lhe contam, Alexandre vai buscar mais informações sobre a cultura do Odin nos livros de Barba, no Além das Ilhas Flutuantes e no Canoa
de assistir a uma série de espetáculos, demonsTatiana Cardoso também nos fala sobre este encontro de 1995:
de Papel[4]. Mas o impacto de estar frente a frente com Barba é ainda maior. Ele lembra:
trações e vídeos do grupo. Com relação aos reflexos da cultura do Odin e da Antropologia Teatral[5] sobre seu grupo, a Usina do Trabalho
Recordo que, para mim e meus colegas
do Ator (UTA), e sobre sua visão relativa ao fa-
da área, na época, era um acontecimen-
zer teatral, Icle afirma:
Eu gostava demais da postura do Barba,
to poder estar ouvindo os ensinamentos
de alguém que tem um espaço no teatro.
de Barba. E lembro especialmente a de-
São tantos reflexos que eu não saberia
Ele chegava aqui falando, e tinha uma
dicação do Irion para que a organização
enumerá-los. A UTA trabalhava, nos pri-
postura de defender este espaço. Não es-
ocorresse de forma impecável, sempre a
meiros anos, a partir de boa parte dos
tava pedindo licença. E isso contrastava
contento de Eugenio e Julia.
exercícios do Odin, seja aprendidos dos
com o comportamento de pedir licença
próprios atores, seja legados via LUME.
Entre 1995 e 2010: amadurecendo o aprendizado
A organização e a forma de trabalho,
do. É uma convicção na postura, no dizer, e ao mesmo tempo um cara muito bem
Um hiato de 15 anos vem a separar fisicamente
montagens, eram bastante inspiradas
preparado para falar de seu argumento,
o Odin de Porto Alegre, já que, depois de 1995, só
nos procedimentos tomados do grupo.
na construção de seu discurso. Isso me
voltarão à cidade em 2010. Mas isso não significa
Só muitos anos depois que conseguimos
no meio teatral que eu estava acostuma-
tanto no treinamento diário quanto nas
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
34
6 Exercício no qual se praticava a “resistência”, mas assim chamado porque era feito com o auxílio de faixas que, casualmente, tinham a cor verde.
transformar esses exercícios e criarmos,
participei de todos os encontros do grupo,
No meio tempo, Alexandre Vargas também
a partir deles, coisas novas e completa-
que aconteceram até agora na Dinamarca,
busca uma maior aproximação com a tradição do
mente nossas. Como professor universi-
na Itália, no Brasil e na Colômbia.
Odin. Em outubro de 1996, durante uma turnê do
tário, tomei o tema da "presença" como
A Iben e o grupo Ponte dos Ventos são
Falos & Stercus no Rio de Janeiro, aproveita para
um grande tema de pesquisa, e todo meu
meu porto seguro, são como a casa da
ver o espetáculo Kaosmos, que naquele período
trabalho tem girado em torno dele. Esse
família para onde sei que sempre poderei
estava em cartaz na cidade:
tema, primeiro, encontrei desenvolvido
voltar. É um lugar de irmãos, de pessoas
no trabalho do Barba e, a partir dele, se
que sabem que nossos encontros vão mais
Vi Kaosmos no Rio, no Teatro Carlos Go-
criou pra mim toda uma forma de enten-
além de nós mesmos, que estar com Iben e
mes. Isso era importante para mim, por-
der, falar e fazer teatro. (...)
continuar junto é como um pacto de hon-
que aí pude ver os atores, ver a presença
A Antropologia Teatral permite um olhar
ra com uma espécie de desejo original de
cênica. Isso dava todo um outro valor ao
sobre o espetáculo, uma interferência
manter nossa arte, aproximando o mundo
que tinha lido, e aquilo me interessava.
na formação e um pensar sobre as po-
dos deuses e dos homens pra sempre.
Eu mirava coisas, queria objetivamente
éticas teatrais. Ela oferece ferramentas
coisas no meu trabalho de ator. Queria
concretas para fazer isso. Ela organiza,
Os encontros anuais do Ponte dos Ventos
a questão da presença cênica e aqueles
sistematiza um raciocínio sobre o fazer
(Vindenes Bro, em dinamarquês) costumam durar
atores tinham uma presença cênica tre-
teatral só equiparado ao que fizeram
três semanas e são em regime de imersão. Deles
menda, que não se dava pelo viés psico-
Stanislavski, Zeami, Grotowski, Decroux
participam artistas de diferentes países. Nessas
lógico, e isso me interessava muito.
e muito poucos outros. Ela faz uma pas-
ocasiões, Tatiana pratica várias técnicas usadas
sagem, embora não tenha pretensões
pelos atores do Odin, além de entrar em profundo
Quem também não perde o contato com o
científicas, entre a teoria e a prática, de
contato com exercícios desenvolvidos particular-
Odin no final dos anos 1990 é Nair D’Agostini
forma harmoniosa e bela.
mente por Iben, como: samurai, fora de equilíbrio,
que, em junho de 1998, parte para Belo Horizon-
verde[6], dança do vento, entre outros. Por sua vez,
te e segue as atividades do Odin na 1ª edição do
através de suas próprias aulas, segue transmitin-
ECUM (Encontro Mundial das Artes Cênicas). Ali,
do os ensinamentos recebidos pela mestra:
pode assistir ao espetáculo Ode ao Progresso e a
Em dezembro de 1995, em Salvador, Tatiana Cardoso reencontra Iben e o grupo A Ponte dos Ventos. É a oportunidade para se confrontar
algumas outras apresentações do grupo.
novamente com os ensinamentos de sua mestra.
Sou professora da Universidade Estadual
Ainda em 1998, em Porto Alegre, Alexan-
Ela nos conta:
do Rio Grande do Sul e eventualmente
dre Vargas participa de uma oficina com o ator
dou oficinas para atores dentro ou fora
e diretor paraibano Luiz Carlos Vasconcelos e,
Depois do seminário de 1993, segui trei-
do Brasil. Os princípios da Antropologia
também, passa a trabalhar com Tatiana Cardo-
nando sozinha, convencida de que tinha
Teatral são a base da minha técnica de
so. Ele nos conta:
encontrado uma base sólida para mim.
atriz e fazem parte do vocabulário do
Em 1995, participei de outro seminário
conteúdo que ensino. Como dediquei
(...) E aí tive contato com o Luiz Carlos,
de Iben, desta vez, em Salvador, Bahia.
minha formação ao treinamento físico,
que veio pra cá para ministrar uma ofi-
Mesma coisa, carta de intenção e cur-
toda essa experiência embasa minhas
cina. Ele trabalhava muito sobre os prin-
rículo. Fui selecionada. Quando comecei
aulas, independente do foco da aula.
cípios da Antropologia Teatral. (...) Nessa
a trabalhar com o grupo, parecia que eu
Esses princípios são extremamente úteis
oficina, fiz um trabalho grande de parti-
nunca tinha me separado de Iben, pois
justamente porque perpassam qualquer
turas, e isso me despertava mais ainda
havia continuado o trabalho. Ao final
tema, qualquer nível, qualquer gênero ou
para o trabalho da antropologia. Depois
daquela experiência, na festa de encer-
estilo teatral. Eles são universais e dizem
fui trabalhar com a Tatiana Cardoso. Ela
ramento, Iben me chamou para um can-
respeito ao corpo, à dinâmica da ação, à
vinha do trabalho da Iben, etc. Mas eu
to e me convidou para integrar o grupo
presença, à vida geral da cena. Conhecê-
não queria só trabalhar tecnicamente os
oficial, o Ponte dos Ventos, cujo próxi-
-los e saber como manipulá-los é como
fundamentos, eu queria me aproximar
mo encontro seria naquele mesmo ano,
um segredo que traz uma base muito só-
também da ousadia, da arrogância ne-
em Scilla, no sul da Itália. Desde então,
lida pra qualquer tipo de ator.
cessária que eu percebia ali no Eugenio,
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
35
7 “O paradoxo pedagógico: aprender a aprender”, em “Laboratório: teatro-escola”, segundo capítulo do livro de Eugenio Barba Teatro. Solidão, Ofício, Revolta, publicado em 2009 pelo Teatro Caleidoscópio/Editora Dulcina, Brasília, com tradução de Patricia Furtado de Mendonça.
no discurso dele. Eu gostava daquele
algum festival fora de Porto Alegre. Em 2008,
As sementes haviam sido plantadas. As raí-
pensamento bélico, estrategista, para
por exemplo, ele assiste ao espetáculo O Sonho
zes cresciam subterraneamente. A terra tinha sido
compor a minha estratégia também:
de Andersen em São José do Rio Preto, por estar
adubada e as árvores já davam seus frutos, uma
“como é que eu me acho nesse campo,
em turnê no mesmo festival. Ele acrescenta:
estação após a outra. A influência do Odin sobre a cultura de estudiosos, artistas e grupos de teatro do
como é que me coloco nesse campo?”. Fora isso, entre 1996 e 2010, o contato
Não me encontrei com eles muitas ve-
Rio Grande do Sul vai se firmando cada vez mais
foi mais através dos livros. Sempre que
zes, mas o trabalho continuou sendo
no arco destes 15 anos, motivada, principalmente,
meu grupo passava por alguma crise,
uma referência para mim tanto no que
pela necessidade que eles têm de se confrontar e
por exemplo, eu buscava na biblioteca
diz respeito à poética teatral quanto à
de dialogar com uma tradição teatral sólida – e de
um livro do Eugenio para tentar per-
ética grupal. Certamente, os escritos de
valor – que lhes ajude a construir a própria identida-
ceber se isso estava ali também, se ele
Barba me influenciaram, em certa me-
de profissional. Isso vai acontecendo, como foi vis-
mencionava algo no Canoa, no Arte
dida, muito mais que seus espetáculos.
to, através de viagens para fora de Porto Alegre, da
Secreta, no Teatro Pobre do Grotowski,
Li toda a produção trazida no Brasil e
leitura dos livros de Barba e também por meio das
em artigos.
estudei nos originais em italiano textos
diversas trocas acadêmicas e artísticas. Para muitos,
que passaram a ser objeto de meus se-
o Odin vira de fato uma referência fundamental, até
Com Gilberto Icle não é diferente. Entre
minários na pós-graduação. Utilizei-os
mesmo um modelo a seguir. Mas o afastamento, por
1995 e 2010, sua relação com o Odin Teatret se
desde meus próprios estudos de mes-
um período, também é necessário.
dá principalmente através dos livros, ainda que
trado e doutorado até minhas pesquisas
ele tenha sempre tentado alcançar o grupo em
mais recentes.
No livro Teatro. Solidão, Ofício, Revolta[7], de Eugenio Barba, há um capítulo composto de
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
36
CADERNO DE TEATRO
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
37
uma série de entrevistas em que ele responde à
sua cidade novamente, para estreitar relações e
seguinte pergunta, feita por Maria Grazia Grego-
se aproximar de suas técnicas de trabalho. Mas o
ri: “Então não deve haver modelos? No entanto,
festival ainda é muito pequeno e não dispõe das
o Odin é um modelo para muita gente”. E assim
condições necessárias para isso. Ele não desiste.
Barba responde:
Então procura Jane Schöninger e Silvio Bento, do Sesc/RS e já parceiros de seu festival, para propor
Hoje há um estranho mito de autismo,
alguma atividade com o Odin para 2010. É aí que
que cada um pode se autogerar. É es-
se confirma esta possibilidade: Eugenio Barba e
sencial ter um ponto de referência com o
Julia Varley são convidados pelo Sesc/RS para
qual se confrontar e sobre o qual voltar a
participar do 5º Festival Palco Giratório de POA.
refletir. Tem realmente muita sorte a pes-
Falando sobre sua motivação para articular esta
soa que é obrigada a se definir diante de
turnê com o Sesc, Alexandre diz:
outra que tem uma personalidade fora do comum. Por um período, a sombra dessa
Nessa época, me interessava demais con-
pessoa mais madura e mais experien-
versar com o Eugenio, pois era o momen-
te cobrirá suas ações. Foi assim quando
to em que eu estava sofrendo bastante
Meyerhold começou sua relação com
com a questão do grupo. Já não encon-
Stanislavski, ou quando Grotowski come-
trava as respostas nos livros para buscar
çou a se relacionar com a sombra de Sta-
uma solução, aí eu pensava: tenho que
nislavski, e também quando comecei mi-
conversar com alguém e não pode ser
nha relação com Grotowski. Essa relação
qualquer pessoa.
pode durar muito ou pouco tempo. A duração depende do tempo necessário para
E Jane Schöninger, por sua vez, nos fala do
despertar as próprias energias. Depois, é
interesse do Sesc/RS em estabelecer esta parceria:
preciso se afastar. Então é a ausência que te acompanha. É o momento em que a
O projeto Palco Giratório existe pratica-
pessoa que ficou sozinha, personalizando
mente há 10 anos, com o desenvolvimen-
a herança recebida, deve inventar o pró-
to de circuitos pelo interior do Estado. E,
prio caminho. Tanto na tradição oriental
há sete anos, o Festival acontece em Porto
como naquela ocidental, é assim que se
Alegre, com uma característica bastante
descreve essa descoberta das próprias
forte que é apresentar grupos, coletivos,
forças: superar o mestre subindo por
profissionais que possuam um trabalho
suas costas. E fazendo isso, manifestar
contínuo. O Festival é um “território de
ou negar o ethos que aprendeu.
pouso”, um espaço onde esses coletivos possam fortalecer o intercâmbio, o fluxo
2010: Eugenio Barba e Julia Varley voltam a Porto Alegre 15 anos depois
das trocas e dos usos, da produção e do
Mas era chegada a hora de organizar um novo
mos que o Odin vem para celebrar e le-
encontro, para que os percursos artísticos de
gitimar esse objetivo do projeto, sendo
cada um, amadurecidos e transformados, pudes-
a referência mundial que é. É o exemplo
sem ser confrontados sob novas perspectivas.
maior de generosidade, de possibilidades
consumo dos bens culturais. E entende-
de intercâmbio, de trocas, de arte.
Em 2009, Alexandre Vargas começa a organizar o Festival de Teatro de Rua de Porto Alegre. Bus-
Sendo assim, em maio de 2010, Eugenio
ca uma maneira de trazer Barba e o Odin para
Barba e Julia Varley voltam a Porto Alegre com
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
38
algumas atividades: Julia Varley apresenta uma nova demonstração de trabalho, O Tapete Voador, e Barba conduz a palestra “Princípios da Antropologia Teatral”, ao mesmo tempo que apresenta a nova edição de seu livro A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. Nair D’Agostini está presente nesses encontros. No relato abaixo, ela nos conta sua impressão sobre as diferenças que encontrou em Barba e Julia Varley e, também, sobre a diferença do impacto causado pela presença dos dois artistas em Porto Alegre, sempre comparando os anos de 1995 e 2010. É bem difícil falar dessas diferenças, sobretudo em Julia. No que diz respeito à qualidade técnica, ela apresentou maior nível e me pareceu que, metodológica e pedagogicamente, está mais madura, generosa e segura em sua apresentação. Em Barba, senti mais abertura, uma disponibilidade integradora e generosa. Impressionou-me em Barba, nesta ocasião, a transparência, o despojamento e, porque não dizer, a humildade com que generosamente falou de sua arte, de seu grupo e de sua vida. Parecia que já não possuía mais pretensões, mas só queria estar ali para uma missão: compartilhar um saber ao qual dedicou uma vida. Com certeza, a recepção do público de 1995 e de 2010 foi muito diferente, pois hoje o Odin e o Barba já não são mais “desconhecidos” da classe teatral, e isso faz uma grande diferença na recepção. Os novos que o viam pela primeira vez tiveram, penso eu, o contato com um ícone, quase um Deus, pois estudam suas teorias, trabalham na prática a partir de seus princípios (acredito que a maioria das escolas teatrais conhece as teorias e práticas do Odin), e isso gera muitas expectativas. Para os que já o conheciam, acredito que também deve produzir sentimentos e impressões diversas, umas
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
39
8 Estiveram em Porto Alegre: Eugenio Barba, Roberta Carreri, Julia Varley, Iben Nagel Rasmussen, Elena Flores, Jan Ferslev, Kai Bredholt, Tage Larsen, Augusto Omolú, Donald Kitt, Fausto Pro e Anne Savage, a tour manager do grupo.
muito valoradas e outras decepcionan-
mo teatral, se perdeu aqui. E a sensação,
e aí o Eugenio está aqui e eles não pergun-
tes. No meu caso, Barba me comoveu
às vezes, é de o que fazer, como fazer. Aí,
tam, não falam, não trocam?
profundamente. Para mim, ele se revelou
quando esse homem chega aqui, relatan-
Talvez fosse timidez deles mesmos por
naquilo que há de mais valioso, na sua
do essa experiência de uma forma mais
estarem diante de alguém que eles tam-
humanidade. Ele alcançou a simplicidade,
clara, eu acho que isso desperta outros
bém consideravam um mito, mais do que
a sabedoria.
horizontes. Esse é o meu ponto de vista
a falta de interesse ou curiosidade. Isso é
sobre o impacto que o Odin teve dentro
extremamente incoerente, já que usam a
Alexandre Vargas também traz algumas
da cidade. Outro, sem dúvida, é a presen-
antropologia teatral, o discurso do Euge-
reflexões próximas às de Nair com relação às
ça física dele e um monte de jovens que
nio, da Julia, da Roberta. E num momento
mudanças nas atitudes de Barba, causadas, em
está na plateia vendo-o falar. Há um con-
em que você pode estar ali presencialmen-
sua opinião, pelo amadurecimento e pelo saber
traste entre o que o Eugenio fala e o que
te com eles, você não troca? Então, o uso
acumulado na experiência do grupo. Ele também
o jovem está idealizando através de um
da antropologia, o uso da teoria, é muitas
nos fala do impacto causado pelo Odin nos jovens
livro ou do que chegou a ele através de
vezes uma bengala. Isso gera uma segu-
e nos professores presentes, ao se defrontarem
um professor que não teve uma aproxi-
rança nesses professores, uma segurança
com um grupo de tamanha importância no cená-
mação tão direta com o Eugenio ou com
teórica, mas que distorce uma prática.
rio internacional do teatro. Ele analisa:
o trabalho do Odin.
Foi um impacto monstruoso, porque o
Odin a imagem de um mito, e isso con-
Eugenio vem com toda essa mudança
trasta com o modo tão simples em que
2012: Chegada de todos os integrantes do Odin Teatret a Porto Alegre
de vida, mas uma pessoa ainda bastante
eles se colocam. Mas a construção desse
Desta vez, o intervalo de tempo é breve: em vez
convicta no que faz. Só que chega entre-
mito também pode ser um argumento
de 15, só dois anos. A pequena turnê de 2010 dei-
gando sua fala de outra maneira. Então
forte de um professor, pode ser a seguran-
xa aquele gostinho de quero mais, e o Sesc/RS
a recepção também foi muito diferente.
ça de um professor que distorce uma prá-
consegue novamente criar as condições – sempre
Me impressionou demais e acho que im-
tica. Então, foi comum, eu recebi alguns
através de Jane Schöninger e do Festival Palco Gi-
pressionou muita gente também a sua
relatos de alunos que se diziam surpresos
ratório – para trazer, agora, todos os artistas do
transparência em revelar coisas que ge-
com aquilo que viam e ouviam, compa-
Odin Teatret[8] para Porto Alegre.
ralmente não são reveladas. Por exemplo,
rando com o que tinham aprendido com
Foi um grande esforço, mas os resultados
dizer que somos um grupo de indivíduos,
algum professor. E esse atrito era muito
provam que valeu a pena, basta lembrar os tea-
de individualistas. Isso é muito forte, por-
importante. Em 2010, havia muitos estu-
tros lotados durante as várias apresentações do
que tem uma luta muito grande para se
dantes seguindo, sempre há. A classe ar-
Odin em Porto Alegre. Uma plateia marcada pela
construir grupos de teatro no Brasil. (...)
tística também participou bastante: indo,
mistura de gerações: desde os velhos seguidores
Existe um arco de convivência muito
assistindo. Sempre me impressiona a falta
do Odin até centenas de jovens estudantes e te-
grande entre o Odin e o Eugenio, 48 anos
de perguntas. (...) Eu fico pensando, puxa,
atrantes que encontram o grupo pessoalmente
trabalhando juntos. E quando ele volta
esses professores falam tanto, usam tanto,
pela primeira vez.
Às vezes, os jovens têm no Eugenio e no
pra cá, com esse hiato de tempo de 15 anos, a gente vê nele uma pessoa mais velha, mais conhecedora do que está fazendo e sem tantas barreiras para falar, sem tantos muros. A simplicidade chega de uma forma mais direta, a clareza de que o que ele faz é um ofício, que tem que trabalhar. A história chega menos romântica em um momento que é oportuno que chegue menos romântica. Porque o romantismo da existência, o romantis-
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
40
9 Grupos selecionados que participaram da residência: Teatro Sarcáustico (RS); Cooperativa Alegretense de Teatro (RS); Usina do Trabalho do Ator (RS), Santa Estação Companhia de Teatro (RS); Grupo Ritornelo (RS); Circo Girassol (RS); Companhia Bananeira (RJ); Teatro Diadokai (MG); Tao Filmes (DF); Teatro del Arca (Uruguai). Não estiveram presentes todos os integrantes de cada grupo, mas apenas alguns artistas para representá-los, já que o número de participantes era limitado.
A programação é farta e bastante articulada.
os vários níveis de dramaturgia que compõem um
Mas o que acontece exatamente naqueles dias?
espetáculo; a cumplicidade entre ator e diretor; os
Uma residência artística para atores e diretores ,
desafios do ofício do ator nos dias atuais; a so-
espetáculos, demonstrações de trabalho, pales-
brevivência dos grupos de teatro no Brasil e no
tras, sessões de vídeo, lançamento e venda de
mundo; a perseverança do Odin através do teatro
livros, oficinas, etc[10]. Há longas listas de espera
e a transmissão da experiência.
[9]
para assistir aos espetáculos, filas para ver as de-
Neste festival, estão presentes Irion Nolasco,
monstrações de trabalho, alguns livros do Odin
Jane Schöninger, Gilberto Icle, Alexandre Vargas,
esgotam-se já no primeiro dia, e uma multidão de
Tatiana Cardoso, Jezebel de Carli, entre tantos ou-
jovens luta por um ingresso para ouvir Eugenio
tros. Nada mais justo do que dar-lhes novamente
Barba e seus atores durante as palestras e os en-
voz para que nos falem de mais este contato com
contros. Chegam pessoas não só de várias cida-
o grupo dinamarquês em Porto Alegre. Nesses
des do Rio Grande do Sul, mas também de outros
novos depoimentos, eles nos contam sobre o im-
estados do Brasil, inclusive do Uruguai.
pacto que a presença integral do Odin causa nos
Após cada palestra ou demonstração de tra-
espectadores que seguem suas atividades neste 7º
balho, incansavelmente, Barba e seus atores per-
Palco Giratório, sobretudo em relação ao ano de
manecem nos teatros para responder a todas as
2010. Ainda que os vários textos tenham – inevi-
perguntas dos espectadores, abrindo espaço para
tavelmente – algumas informações ou impressões
o diálogo e a troca de experiências, em coerência
repetidas, decidi deixá-los aqui na íntegra, pelas
com a tradição do Odin. Reflete-se sobre: o arte-
reflexões que podem despertar, inclusive a partir
sanato do ator, suas técnicas e seu treinamento;
dessas repetições.
organização de encontros internacionais de grupos de teatro; hospitalidade para companhias e grupos de teatro e dança; Odin Week Festival anual; publicação de revistas e livros (Odin Teatret Forlag e Icarus Publishing Enterprise); produção de filmes e vídeos didáticos; pesquisas no campo da Antropologia Teatral durante as sessões da ISTA (International School of Theatre Anthropology), que desde 1979 se tornou uma aldeia teatral onde atores e dançarinos de diversas culturas encontram estudiosos para investigar, confrontar e aprimorar os fundamentos técnicos de sua presença cênica; Universidade do Teatro Eurasiano; espetáculos do Theatrum Mundi; colaboração com o CTLS (Centre for Theatre Laboratory Studies) da Universidade de Arhus, que regularmente organiza a The Midsummer Dream School; Festuge (Semana de Festa) de Holstebro; Festival trienal Transit, dedicado às mulheres que trabalham no teatro; OTA (Odin Teatret Archives), arquivos vivos da memória do Odin; WIN, Prática para Navegantes Interculturais; espetáculos para crianças; exposições; concertos; mesas-redondas; ações culturais e projetos especiais para a comunidade de Holstebro e de seu entorno, etc.
O Odin Teatret criou 74 espetáculos que viajaram por 63 países em contextos sociais diferentes. Durante essas experiências, desenvolveu-se uma cultura específica do Odin, baseada na diversidade e na prática da “troca”: os atores do grupo se apresentam à comunidade que os recebe com o seu trabalho artístico e, em troca, ela responde com cantos, músicas e danças que pertencem a sua própria tradição. A “troca” é uma espécie de permuta, ou escambo, de manifestações culturais, e não só oferece uma compreensão das formas expressivas alheias como também dá início a uma interação social que desafia preconceitos, dificuldades linguísticas e divergências de pensamento, juízo e comportamento. Nenhum outro grupo de teatro no mundo, até os dias de hoje, desenvolveu um leque de atividades tão diversificado quanto o Odin Teatret, criando e transmitindo incansavelmente sua própria tradição entre Ocidente e Oriente, alcançando um raio de milhares de artistas, estudantes e estudiosos – de diferentes campos do saber – que encontram nele matéria de inspiração e referência para suas próprias buscas.
ODIN TEATRET NORDISK TEATERLABORATORIUM O Odin Teatret foi fundado em 1964 em Oslo, na Noruega. Em 1966, transferiu-se para Holstebro, na Dinamarca, e se transformou em Nordisk Teaterlaboratorium. Atualmente, os 25 membros que compõem o staff artístico e administrativo do Odin são provenientes de 10 países e três continentes. Desde a sua origem, o Odin Teatret se concentrou no treinamento dos atores, em sua capacidade de estabelecer novas relações com os espectadores e nas diferentes dramaturgias que compõem um espetáculo. O autodidatismo dos atores do Odin, com a consequente elaboração de um treinamento individual e o ensino aos membros mais jovens do grupo, determinou o constante interesse pela aprendizagem e pela transmissão dos conhecimentos técnicos. Os 48 anos do Odin Teatret como laboratório favoreceram o crescimento de um ambiente profissional e de estudo, caracterizado por diversas atividades interdisciplinares e colaborações internacionais. Hoje, as principais atividades do Laboratório incluem: espetáculos, demonstrações de trabalho e workshops para atores e diretores; “trocas” feitas em diversos contextos, na Dinamarca e no exterior;
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
41
10 A programação completa compreendeu: Teatro de Câmara Júlio Piva: a residência artística A Cumplicidade Artística entre o Ator e o Diretor (3 dias), conduzida por Barba e alguns de seus atores, incluindo uma oficina de Dança dos Orixás com Augusto Omolú; as demonstrações de trabalho O Irmão Morto e O Eco do Silêncio, com Julia Varley, e Branca como o Jasmin, com Iben Nagel Rasmussen; Teatro SESC Centro: os espetáculos coletivos As Grandes Cidades sob a Lua e Ode ao Progresso; a palestra de Eugenio Barba 50 anos de trabalho: a luta contra a natureza do teatro; a demonstração de trabalho Antropologia Teatral; o encontro público dedicado à finalização da residência artística, do qual participaram todos os membros do Odin Teatret; lançamento e venda de vários livros de Barba e das atrizes do Odin; Casa do Teatro: sessões dos vídeos A Conquista da Diferença, Nas Duas Margens do Rio, O Teatro encontra o Ritual, Em Princípio era a Ideia; Teatro do Museu: o encontro A Ponte dos Ventos com Iben Nagel Rasmussen, Elena Floris e Tatiana Cardoso; a palestra A Organização e a Cultura do Odin Teatret com Base em Experiências desde 2004, com a tour manager do grupo Anne Savage. Espaço Circo Teatro Girassol: oficina de perna de pau com o ator Donald Kitt.
Depois dos depoimentos de alguns dos ami-
Naquela plateia tem essa mistura: você vê
da minha relação com o grupo fora do Brasil,
gos gaúchos mais antigos do Odin, seguem tam-
um Irion, que inicia um movimento forte,
através do Ponte dos Ventos.
bém os de dois amigos gaúchos mais novos: Lu-
que traz o Eugenio, vê alunos que o Irion
Me senti honrada, feliz, orgulhosa de fazer
cas Sampaio e Álvaro Rosa Costa. Lucas é ator do
formou, tendo como base muito desse tra-
parte de um trabalho tão profundo, tão re-
Grupo Geográfico e professor do Teatro Escola de
balho, e aí tem a Tatiana Cardoso, o Gilberto
volucionário para a história do teatro como
Porto Alegre (TEPA); além disso, também deu um
Icle, o UTA. O UTA, Usina do Trabalho do Ator,
é o do Odin. Há 15 anos, a vinda de Eugenio
grande suporte ao Odin Teatret neste Palco Girató-
é gerado tendo como base esse movimento
tinha um ar de novidade, de curiosidade por
rio de 2012. Álvaro, que hoje integra a Cia. Incomo-
do Odin e do Burnier. Aí você pega também
parte dos jovens estudantes de teatro da épo-
de-te, participou da residência artística com o Odin
grupos mais jovens que tem um preconceito
ca. E é surpreendente constatar que agora,
como ator convidado do Circo Girassol.
em relação a esse trabalho. Pode ser até um
em 2012, ainda tem! Eu não conhecia muitos
Compõem este artigo mais dois importan-
preconceito juvenil, como dizer “não que-
daqueles jovens atores ou estudantes de tea-
tes depoimentos: o de Priscila Duarte e o de Julia
ro fazer isso, não me interessa”. São coisas
tro da plateia aqui de Porto Alegre, mas podia
Varley. Priscila é uma atriz do Teatro Diadokai que
que eu já ouvi, tem gente que acha que os
ver o impacto que causava naquela plateia,
conheceu o Odin em 1986, tendo dialogado com o
espetáculos são sisudos demais. Mas aí se
aquele grupo longevo, experiente e maduro.
grupo em diferentes países e em diversos contex-
surpreendem quando percebem o humor
Antes, eles nos chocavam com sua precisão,
tos desde então. Aqui, através de seu depoimento
dos espetáculos. Uma coisa que eu também
com suas habilidades corpóreas, com suas
sobre a residência de Porto Alegre, ela nos traz
achava legal desses dois espetáculos é o for-
imagens herméticas e cheias de profundida-
um olhar “cruelmente sincero” sobre o sentido de
malismo de um [As Grandes Cidades sob a
de, com seu trabalho vocal primoroso. Hoje,
continuar fazendo teatro nos dias de hoje. Fecha o
Lua] e o não formalismo do outro [Ode ao
eles nos chocam pelos mesmos motivos, mas
artigo o texto de Julia Varley já citado na Premissa.
Progresso]. Achava que isso podia dar um
com um sabor a mais: jovens velhos homens
insight no público que podia ser bacana.
e mulheres gigantes, profundos, monstruosa-
Alexandre Vargas
Eu também me percebi em algumas per-
mente humanos, inspirando profissionalismo,
Tem uma diferença entre 2010 e 2012 até
guntas que foram feitas, como: “E a questão
ética, coragem, disciplina e inquietude. Eles
pelo formato de trabalho. O que mais me
do amor, como é que fica, com os atores, e
nos inspiram, diria até dolorosamente por ser
chama atenção, como espectador disso tudo,
tal?”. E na pergunta, estava a sombra de seu
tão difícil, que vale a pena manter-se unido.
é perceber uma aproximação que foi se dando
grupo, ou seja, a sombra de seus problemas.
Quando se considera as diferenças e se colo-
gradualmente. Com isso, não estou mirando o
O André Carreira fala que o Odin seria uma
ca o teatro como um ideal, “manter-se unido”
meio cênico, pois os artistas, os atores, foram
experiência, uma nova célula de sociabilida-
– mesmo parecendo impossível – porta um
chegando aos poucos. Eles não vieram todos
de possível para a América Latina. Então, a
significado que vai além do próprio ofício, da
de uma vez só, foram se aproximando. Acho
América Latina se encanta com essa ideia e
própria arte. (...) Mas o que fica depois que
que o Eugenio também fala dessa questão da
vai buscar isso. Eu acho que ainda tem esse
eles partiram é, sobretudo, essa vontade de
“comunidade”. É difícil chegar numa comuni-
referencial nos grupos. Quando perguntam,
fazer igual, de apostar em parcerias fecundas,
dade: tem lutas, tem territórios, tem espaços
perguntam coisas que não são só “como o
de olhar o teatro como algo que vai além de
aí. Muitas vezes, é difícil para os grupos locais
diretor faz”. E acho que o Eugenio é muito
uma produção eventual ou comercial.
se defrontarem com certas coisas, sobretudo
coerente quando diz “essa é a minha ma-
com certas coisas que o Eugenio fala, por
neira de fazer, funciona para mim, pode não
Gilberto Icle
exemplo: coerência, trabalho diário, a ques-
ser eficaz para você”. Ele não está dando re-
Este encontro foi fundamental, pois as no-
tão do ofício. Basta lembrar o que ele falou
ceitas. Mas o que as pessoas querem saber,
vas gerações não conhecem o trabalho do
ontem, como ir contra as leis do teatro, lutar
às vezes não pode ser respondido, pois não
Odin, senão pela narrativa dos mais velhos
contra um teatro rentável, não só na ques-
há respostas, tipo “como eu dirijo? como eu
e pelos livros. Ainda que os espetáculos que
tão financeira, mas na questão da ideologia.
mantenho um ator?".
estiveram em POA não sejam os espetáculos
Sendo que às vezes você é obrigado a ter um
exemplares do grupo, a presença do Odin aju-
trabalho dentro do sistema em que vivemos,
Tatiana Cardoso
da a dar conhecimento sobre sua produção
onde você cede a isso. Hoje, acho que tem
Olha, foi muito interessante ver o Odin na
e mobiliza a discussão sobre a cena contem-
uma mistura de gerações também.
minha cidade, depois de já passados 18 anos
porânea, tão desestabilizada nas discussões
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
42
entre pós-dramático, performance, presença,
po da Iben, ouvir que uma atriz entregou sua
magia. Para mim, ele é um mestre. E mestre,
etc. Certamente há desdobramentos no que
vida ao teatro, ver Roberta pela primeira vez
para mim, não é só a pessoa que sabe as coi-
tange à curiosidade de saber mais sobre o
e seu corpo impregnado de trabalho, ouvir da
sas, é uma pessoa que ama o que faz, que tem
grupo, mas, sobretudo, em relação à forma-
Julia dizer “mas você tem um grupo...” e após
paixão pelo que faz, que se incendeia pelo que
ção de novos atores, pois boa parte da peda-
receber um sorriso, chorar muitas vezes pela
faz. E assim é ele, o dia inteiro. Você vê ele
gogia desenvolvida no RS tem relação com o
beleza, generosidade, devoção e respeito pelo
assim, aqui, o tempo todo, rondando, vagan-
trabalho do grupo.
teatro que esses homens e mulheres nos de-
do, preocupado com os detalhes. (...) Eu acho
monstram me fez, mais uma vez, ter vontade
que o que atrai e toca todas as pessoas é que
Jezebel de Carli
de seguir adiante, força para criar terremotos,
eles são verdadeiros. São de verdade, não são
Correram os anos e em todos os momen-
querer que os que se foram retornem, tratar
fake. Você pode ver o passar dos anos. Fiquei
tos em que me foi possível procurei estar
o outro com ternura e gratidão e, crer nova-
muito comovido com o primeiro trabalho que
novamente entre o Odin, mesmo sem eles
mente que o teatro pode mudar o humano.
eles mostraram aqui, As Grandes Cidades sob
saberem. Estar sorrateiramente em 94, 95,
a Lua. Você pode ver, eles envelheceram, mas
2010 e, finalmente, em 2012 na residência
Irion Nolasco
com dignidade e verdade. É uma maravilha
entre grupos. Já não sou jovem nem conse-
Agora também está sendo um feedback de
poder ver isso. Nem dá para falar muito. Eu
gui manter-me ao lado dos meus primeiros
coisas, é emocionante. Eu me emociono sem-
fico tão emocionado que... Eu amo o Odin,
pares, àqueles que “se levantaram na ponta
pre com o Barba. Ele não precisa fazer nada,
sou suspeito para entrevistas.
dos pés para que um dia pudessem voar”
ele simplesmente existe e espero que ele dure
(referência ao texto de Eugenio Barba). Hoje,
120 anos. (...) O grande lance do Barba é a efi-
Jane Schöninger
em 2012, estou ao lado de outros, tentando
cácia. Aqui no sul dizemos: mata a cobra e
Foi uma overdose de ações, em tão pouco
desesperadamente guiar um grupo. Ouvir as
mostra o pau. Ele fala e ele mostra, aí você
tempo. Queríamos mais tempo e mais e mais.
palavras de Barba, perceber as marcas no cor-
fica olhando pra ele como se fosse mágica,
A cidade, o Estado, o país esteve “em movi-
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
43
mento” com essa passagem por aqui. O movi-
progresso artístico. É como se a existência
não interessa. Aquela massa submersa do
mento de pessoas, o movimento das cabeças,
deles se refletisse, em sua constância, na
iceberg, chamado Odin, é que me desafia. O
o movimento dos sentimentos. Penso que,
frase: “Acredite, acredite, acredite”.
que mais me pergunto: “E agora!?”. Só sei que
com esse movimento, há uma possibilidade
vou "encontrar" várias possibilidades. E como
de novas articulações entre grupos, entre
Álvaro Rosa Costa
disse Roberta Carreri: "Há uma vontade que
profissionais. Podemos arriscar a colocar em
Esta experiência, residência, reverência ou
me habita". Simples, sem fórmulas... trabalho,
poucas palavras o retorno que tivemos sobre
seja lá o que for, com o Odin Teatret, explodiu
cumplicidade... possibilidades.
esses dias: um “novo” oxigênio para o teatro.
na minha cabeça, conectou muitos, muitos pontos. Me colocou em estado de alerta, Mar-
PRISCILA DUARTE
Lucas Sampaio
co Zero, Espiral, em movimento. Trabalho há
Teatro Diadokai
Tive o primeiro contato com o Odin Teatret
muito tempo com música, apesar de ser Ba-
Belo Horizonte, 4 de junho de 2012.
em Holstebro, durante o Odin Week Festi-
charel em Gravura. Muitas das questões que
Dinossauros em Porto Alegre
val 2011. Lá, entendi o significado do ator
me instigavam no Instituto de Artes da UFGRS
A residência artística com o Odin Teatret
profissional, possuidor de ferramentas, vir-
estão presentes nas palavras e nas ações dos
Conheci o Odin Teatret como espectadora,
tudes, treinamento. Trata-se de uma união
integrantes do Odin. Após 24 anos, consigo
durante um festival de teatro em Montevi-
de artistas que prova a todos os colegas
entender a magia que estes jovens senhores,
déu (Uruguai) em 1986, quando eu ainda era
de profissão espalhados pelo mundo que
alquimistas, exercem sobre os artistas. Não
uma estudante da graduação em teatro da
o trabalho em conjunto alça voos inimagi-
só atores, mas vários artistas de vários seg-
UniRio. Lembro-me bem da minha impres-
náveis. Neste momento, em Porto Alegre, o
mentos. Eles dialogam com os princípios da
são: foi como se eu visse a materialização de
Odin faz-se necessário justamente na tro-
criação, encontram ecos em Fayga Ostrower,
minhas aspirações juvenis, tão indefiníveis e,
ca, mostrando que o teatro de grupo ain-
Jung, no marceneiro da esquina. Eles "fazem".
subitamente, tão reconhecíveis naquele gru-
da é um caminho de forte identidade e de
Se o resultado é brilhante, bom, ruim, a mim
po de artistas. Foi avassalador.
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
44
Minha crescente inquietação em torno do fazer
sidência, me perguntei: por que estou indo
sistiram a demonstrações de trabalho, filmes,
teatral, alimentada pelo contato com o Odin
para esse encontro? Que sentido tem, a es-
espetáculos e conferências. Apesar das opiniões
Teatret, me levou ao encontro de outro grupo
tas alturas do campeonato (tenho 46 anos),
elogiosas sobre o que viram naqueles dias, não
identificado com o Terceiro Teatro: o Teatro Tas-
participar de uma oficina de apenas quatro
percebi neles um impacto tão devastador quan-
cabile di Bergamo. Em 1987, um mesmo evento
dias de trabalho? Por um lado, a expectativa
to aquele que me atingiu durante o festival no
trouxe ao Rio de Janeiro o Nordisk Teaterlabora-
obviamente confirmou-se: não se aprende
Uruguai. Será que há algo que possa puxar o
torium e o grupo italiano Tascabile, que me pro-
nada em quatro dias de oficina. Mas, o que
tapete das novas gerações? O que mudou? Os
porcionaram outras experiências impactantes,
estava em jogo ali era uma outra coisa. Não
jovens? O tapete?
com suas oficinas, conferências e espetáculos.
se tratava de aprender nada. No final das
Não creio mais em grupos de teatro. Não sei
Em 1989, eu e Ricardo Gomes (companheiro
contas, tratou-se de questionar tudo: para
nem se creio mais no teatro. Estranhamente,
de trabalho desde então) partimos para a Itália.
onde mesmo estamos indo? Que teatro é este
estes dias em Porto Alegre reascenderam uma
Foi o início de uma longa relação profissional
que queremos fazer? Por quê? Como? Para
chama tênue. Será o fim do período de latên-
com o Tascabile. Com eles, trabalhamos como
quem? Com quem?
cia do Teatro Diadokai? Só há uma forma de
atores estáveis de 1989 à 1994 e, depois, como
A residência em Porto Alegre poderia ser re-
saber: encontrando forças para alimentar a
colaboradores em projetos específicos, de 2003
dimensionada a um retorno fantasioso ao
chama. E perseverar.
à 2007. Foi durante este período que a relação
período cretáceo (ou seria jurássico, como
com o Odin se deu de forma mais estreita. Ren-
naquele filme?). Seja como for, serve como
JULIA VARLEY – ODIN TEATRET
zo Vescovi, diretor do Tascabile, considerava
metáfora: Barba e seus atores como dinos-
Holstebro, 13 de junho de 2012
Barba como um de seus mestres. Diversas fo-
sauros, que, contrariando todas as certezas
Existem dois temas que me interessam quan-
ram as ocasiões de encontro de trabalho entre
da ciência, não estão extintos. Muito pelo
do penso na relação entre o Odin Teatret e as
os dois grupos, durante aqueles anos na Europa.
contrário, esbanjam uma vitalidade destila-
gerações mais jovens que, como nós, fazem
A experiência europeia foi decisiva na criação
da pelos anos, pela maturidade. Estes estra-
teatro hoje: o significado do grupo em relação
de nosso grupo no Brasil – o Teatro Diadokai
nhos seres mantêm sua força contrariando a
à produção artística e cultural, e a capacida-
– fundado em 1996, em parceria com o diretor
ameaça de extinção. Ora, mas todos sabemos
de de suportar uma carga de trabalho que vai
Ricardo Gomes. Desde então, o Teatro Diadokai
que não existem mais grupos de teatro: este
além do normal. Voltamos a Porto Alegre pela
desenvolveu diversos projetos, envolvendo tam-
movimento já passou. E no entanto, do ou-
terceira vez: isso nos permite continuar encon-
bém outros artistas e grupos. Há quatro anos,
tro lado do oceano, na fria Dinamarca, ain-
trando espectadores e gente de teatro do lugar.
nos transferimos do Rio de Janeiro para Minas
da existe um grupo de artistas que acredita
A continuidade e a residência que o Eugenio e
Gerais onde somos professores (eu, substituta e
na ética e na dignidade do trabalho. Como
eu conduzimos para grupos de teatro durante
Ricardo, efetivo) no Curso de Artes Cênicas da
eles, existem alguns poucos no mundo. Eu
a última visita também me deram a chance de
Universidade Federal de Ouro Preto. A partir daí,
também me vejo como uma espécie de di-
refletir novamente sobre temas que me interes-
o Teatro Diadokai entrou em um período de la-
nossauro, que insiste em trabalhar em uma
sam. Um dos aspectos fundamentais do Odin
tência, enquanto buscamos um equilíbrio entre
profissão em extinção, que não interessa
Teatret, como grupo e como teatro laboratório,
vida acadêmica e artística.
mais a quase ninguém. Além de sua experi-
é a cotidianidade ao compartilhar atividades
Foi então que surgiu a oportunidade da residên-
ência artística, os dinossauros da Dinamarca
que não estão diretamente ligadas ao resultado
cia artística com o Odin Teatret, em Porto Alegre.
dividiram conosco, em Porto Alegre, suas in-
(espetáculo), como, por exemplo, fazer o trei-
O reencontro com aqueles que considero como
quietações quanto à efemeridade e à finitu-
namento todo dia. Acho que hoje ficou muito
uma das mais fortes referências em minha for-
de das coisas, preocupações naturais em sua
mais difícil manter essa cotidianidade. A impa-
mação artística, mestres dos meus mestres (os
surpreendente longevidade.
ciência para alcançar resultados, a instabilidade
artistas do Tascabile), foi, de novo, provocador.
Da residência, participamos eu e Ricardo – o
econômica e o profundo desenraizamento geo-
A maturidade (minha e deles) temperou este en-
Teatro Diadokai –, além de representantes de
gráfico fazem com que muita gente se contente
contro com novos sabores. Não foi uma reedição
grupos do sul e de outros estados brasileiros.
em colaborar com projetos e, dessa maneira, o
do Uruguai nem de outras ocasiões que tivemos
Na viagem, nos acompanharam um grupo de
“senso de pertencimento” acaba sendo encon-
na Europa. As questões hoje (para mim e para
jovens alunos do curso de Artes Cênicas da
trado mais dentro das “redes”, e não dos grupos.
eles) são outras. Nos dias que antecederam a re-
Universidade Federal de Ouro Preto que as-
O Odin soube conquistar o tempo para deixar
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
45
que os resultados brotassem do trabalho, sem
Conclusão
o que é diferente. Isso não significa impor
ter em mãos, desde o início, um texto ou uma
Para concluir, volto ao início da Premissa, como
o próprio horizonte e o próprio modo de
história a seguir e sem saber em qual porto se
um uróboro que morde o próprio rabo: “É possível
ver, mas permitir um deslocamento e vis-
desejava chegar. E foi assim que aprendemos
narrar uma história sem ser parcial?”. Este texto se
lumbrar um novo território que fique além
como proceder. Concentrar-se nos impulsos fí-
encerra cheio de frestas, por mais que eu e meus
do universo conhecido.
sicos e vocais, em sua simultaneidade, inclusi-
“companheiros de viagem” tenhamos tentado resti-
(...)
ve em oposição à narração, é uma técnica que
tuir alguns pontos de vista desta história que ainda
A meta a ser alcançada não é se identi-
se baseia na capacidade de reconhecer os si-
se move dentro de cada um, que ainda se faz a cada
ficar numa tradição, mas construir para
nais que o próprio trabalho indica, e cuja qua-
instante, sobretudo quando a memória traz à tona
si mesmo um núcleo de valores, uma
lidade pode ser identificada depois de muitas
um fato inesperadamente relembrado ou quando
identidade pessoal, seja ela rebelde ou leal
representações. Todos os atores do Odin Tea-
um mesmo fato é reinterpretado sob nova luz.
com as próprias raízes. O único caminho
tret passaram por um longo período de apren-
Se dentro deste grande caleidoscópio de pa-
para alcançar essa meta é uma prática
dizagem durante o qual colocaram à prova
lavras e histórias faltam ainda tantas outras pala-
minuciosa que constitui a nossa identida-
sua própria capacidade de resistência, e assim
vras e histórias, significa que há espaço para muito
de profissional. É a competência no ofí-
descobriram energias que ultrapassam o limiar
mais: mais lembranças, mais relatos e, o que é mais
cio que transforma uma condição numa
do cansaço. Como é que um jovem encontra
importante, mais encontros.
vocação pessoal e, aos olhos dos outros,
hoje um mestre, uma mestra ou uma situação
Aqui, todavia, a parcialidade não está apenas
num destino que é, ao mesmo tempo,
qualquer que o obrigue a ultrapassar os limites
na história contada. Está também em um arco de
herança e tradição. Somos nós que deci-
conhecidos para que ele dê o máximo de si?
tempo que ainda não se encerrou. Com certeza,
dimos, profissionalmente, a qual história
A técnica teatral é incorporada, é um pensa-
não foi a última vez que gente de teatro de Porto
pertencemos, quem são nossos antepas-
mento que é ação, é a inteligência dos pés, é
Alegre foi ao encontro do Odin, assim como tam-
sados, aqueles valores nos quais nos re-
algo que não pode ser aprendido nos livros.
bém não foi a última vez que o Odin pôs os pés em
conhecemos. Eles podem ser de épocas e
É uma técnica que deve ser assimilada e defen-
Porto Alegre. Certamente Barba e seus atores ainda
culturas distantes, mas o sentido de seu
dida dia após dia, praticando o ofício durante
voltarão, até mesmo porque – como disse antes
trabalho é a herança que deve ser tutelada
anos. Em uma era tecnológica, talvez o teatro
Gilberto Icle – “os espetáculos que estiveram em
e transmitida. Cada um de nós é filho do
seja anacrônico, mas eu quero defendê-lo exa-
POA não foram os espetáculos exemplares do gru-
trabalho de alguém. Cada um de nós se
tamente porque ele mantém a necessidade de
po...”. É verdade, Porto Alegre ainda não recebeu os
orienta afastando-se de um passado que
um conhecimento incorporado. Em Porto Ale-
“grandes” espetáculos do Odin. Quem sabe eles não
escolheu para si.
gre, tive a confirmação que muitos grupos de
voltam nos próximos anos com seu novo e último
teatro ainda compartilham essa necessidade e
espetáculo A Vida Crônica?
a vivenciam através de sua prática.
Teremos mais histórias para contar. E para finalmente fechar este artigo falando de “influências e reflexões sobre o fazer teatral”, deixo ecoando em vocês mais algumas palavras de
... A história do Odin Teatret em Porto Alegre atravessa fronteiras e gerações, e continuará atravessando. ...
Eugenio Barba: É através da troca, e não no isolamento, que uma cultura pode crescer e se transformar organicamente. O que vale para os indivíduos também vale para quem trabalha no teatro. Mas para que a troca aconteça, é preciso oferecer algo de volta. Nesse sentido, a identidade histórico-biográfica é fundamental para se confrontar com o polo oposto, o encontro com a “alteridade”, com
Patricia Furtado de Mendonça É atriz, professora, tradutora e consultora de projetos teatrais. É também mestre em Teatro pela UNIRIO e graduada em “Disciplinas das Artes, da Música e do Espetáculo” pela Universidade de Bolonha (Itália). Em 1998, a convite de Eugenio Barba, passa a traduzir seus livros do italiano ao português. Atualmente, conduz uma pesquisa sistemática sobre a relação do Odin Teatret com o Brasil, colaborando com as investigações do Centre of Theatre Laboratory Studies (CTLS) e do Odin Teatret Archives (OTA), Dinamarca.
ARTES CÊNICAS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
46
Diversidade na A 2 Mostra de Teatro de Passo Fundo Com um exemplo concreto de que a promoção de
Com quatro dias de intensa programação,
Quatro dias de
ações culturais sistemáticas provocam mudanças
a mostra teve entre os destaques o espetáculo
programação
significativas na sociedade – com mais de 30 anos
A Construção, com ator Caco Ciocler interpretan-
de atividades ininterruptas relacionadas à Jornada
do Franz Kafka em uma produção adaptada do
Nacional de Literatura, Passo Fundo orgulha-se de
texto do escritor austríaco e dirigida por Roberto
ter um índice de leitura semelhante ao da França,
Alvim. Um dos últimos trabalhos de Kafka, a obra
de 6,5 livros por pessoa ao ano – o Sesc desenvolve
foi escrita quando o autor já sofria de tubercu-
um trabalho permanente de formação de plateia
lose, o que aproxima a relação com a morte. O
no município há cinco anos. Para marcar o aniver-
resultado é uma metáfora sobre o modo como
sário da inauguração da Unidade Operacional que
nos fechamos um para o outro a fim de evitar
abriga o Teatro Sesc, foi realizada no fim de junho a
uma ameaça a nossa segurança psíquica, física e
2ª Mostra de Teatro de Passo Fundo, consolidando
emocional, característica que evidencia o caráter
a maratona de espetáculos iniciada em 2011.
universalista da montagem.
intensa marcaram o aniversário de cinco anos do Sesc NA CIDADE
“Nosso palco é um divisor de águas na área
A programação evidenciou o trabalho de
de formação de plateia, trazemos espetáculos que
grupos e levou ao palco do Sesc os coletivos gaú-
incomodam, instigam o público, provocando uma
chos Santa Estação Cia. de Teatro, de Porto Alegre,
transformação”, explica a agente de Cultura e La-
com sua adaptação para a obra A Tempestade de
zer do Sesc Passo Fundo, Andressa Pagnussat de
Shakespeare, A Tempestade e os Mistérios da Ilha; e
Quadros. Segundo ela, em decorrência de todo o
o De Pernas pro Ar movimentou a Praça Antonino
trabalho realizado, o público vai se tornando mais
Xavier com o espetáculo MIRA – Extraordinárias
crítico, o que aumenta a responsabilidade da ins-
diferenças, sutis igualdades. O grupo Foguetes
tituição como promotora de cultura. Com esta
Maravilha, do Rio de Janeiro, apresentou Ninguém
preocupação, a organização da Mostra de Teatro,
Falou que Seria Fácil, enquanto o Lume Teatro, de
prezando a diversidade cultural, busca explorar as
São Paulo, encenou O Não-Lugar de Agada Tchai-
vertentes do teatro, abrindo espaço às interven-
nik. O Grupo Timbre de Galo, de Passo Fundo, reali-
ções urbanas e ao teatro de rua, além de espetácu-
zou intervenções no comércio para divulgação, nos
los de palco nos gêneros comédia, drama e infantil.
dias que antecederam a Mostra, e seus integrantes ministraram uma oficina de iniciação teatral para crianças. Já o ator gaúcho Guto Pasini coordenou uma atividade de formação para adultos. A mo-
Espetáculo A Construção, com Caco Ciocler, foi um dos destaques do evento que vem contribuindo para a formação de plateia Foto: Divulgação
vimentação também tomou as ruas do centro da cidade com a passagem do cortejo Asas de um Sonho, da Cia. Sorriso com Arte.
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
48
A música como instrumento de inclusão social Projetos desenvolvidos no Rio Grande do Sul impulsionam transformações na vida de centenas de jovens
MÚSICA
MÚSICA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
49
Vida com Arte, projeto social da Unisinos e do Colégio Anchieta, atende 240 crianças e adolescentes
Enquanto grande parte da população se limita a
Um desses exemplos é Keliézy Severo, 26
criticar a qualidade do ensino público no Brasil ou
anos, professora de música e musicista cuja tra-
debater o sistema de cotas para ingresso na uni-
jetória de vida tem inspirado muitos jovens da Vila
Foto: Arquivo Vida com Arte
versidade como mecanismo de compensação pela
Mapa, onde se localiza a Orquestra Villa-Lobos.
Orquestra Villa-Lobos foi criada a partir das aulas de música em escola do bairro Lomba do Pinheiro, em Porto Alegre
desigualdade, projetos focados na inclusão social
Aos 10 anos, devido ao interesse demonstrado nas
pela música estão proporcionando a centenas de
aulas regulares de música da Escola Municipal de
crianças e adolescentes gaúchos uma nova visão
Ensino Fundamental Heitor Villa-Lobos, Keliézy foi
de mundo e abrindo possibilidades profissionais.
convidada, junto com outros colegas, para apren-
Vida com Arte, projeto social da Unisinos e do Co-
der a tocar flauta doce, vislumbrando o ingresso na
légio Anchieta, Orquestra Villa-Lobos, desenvolvido
orquestra. Em uma comunidade economicamente
na comunidade do bairro Lomba do Pinheiro em
carente e desprovida de opções de esporte, cultura
Porto Alegre, Cuica – Cultura, Inclusão, Cidadania
e lazer, tratava-se de uma oportunidade rara que a
e Artes, de Santa Maria, Fábrica de Gaiteiros, par-
jovem, com o apoio da família, não deixou escapar.
ceria da Fundação Renato Borghetti e Sesc/RS, e
“Com as aulas de iniciação à flauta doce, a
Orquestra Jovem do Rio Grande do Sul, mantida
música passou a fazer parte da minha vida de uma
pelo governo estadual, com patrocínio do Banrisul,
forma expressiva e a cada nota, sonoridade, gesto,
estão entre as iniciativas que colecionam exemplos
conteúdo aprendido aumentava minha vontade
bem-sucedidos de transformação a partir da edu-
e ansiedade de aprender. Quando entrei para o
cação musical.
grupo de flautas, as apresentações realizadas nas
Foto: Caludio Etges
MÚSICA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
50
Jovens da Cuica, de Santa Maria, fizeram apresentação memorável nas comemorações de 90 anos do Palácio Piratini Foto: Arquivo Cuica
me envolviam cada vez mais”, conta. Em 2006, o
CONTRIBUIÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
aprendizado de um novo instrumento, o violon-
O projeto da Lomba do Pinheiro, que completou
celo, e as vivências como monitora nas aulas de
20 anos em abril, surgiu da sensibilidade de Cecí-
iniciação musical deram a Keliézy a certeza de que
lia Silveira, professora de música da Escola Villa-
sua profissão seria professora de música.
-Lobos, para perceber o interesse das crianças
escolas, creches e comunidades me motivavam e
Keliézy cursou faculdade de música e atual-
em aprofundar os estudos na área. “Mesmo com
mente trabalha em dois projetos sociais de educa-
poucos recursos, proporcionar uma educação
ção musical, com 230 alunos. Nas Oficinas de Mú-
musical de qualidade poderia ser uma fantásti-
sica da Escola Villa-Lobos, atua como professora
ca forma de inclusão social para aquela comu-
de iniciação à flauta doce e de musicalização e no
nidade”, afirma. Numa parceria da escola com a
projeto Vida com Arte da Unisinos é professora de
ONG Instituto Cultural São Francisco de Assis, a
violoncelo e de musicalização. “Não imagino como
Orquestra Villa-Lobos atende desde a musicaliza-
teria sido minha vida sem o projeto da Orquestra
ção em três escolas infantis da rede municipal,
Villa-Lobos. Interferiu nas minhas relações, amiza-
oferece aulas de música às crianças atendidas
des, na escolha da minha profissão, me tornei líder
pela ONG parceira, todas alunas de escolas pú-
comunitária, conheci meu marido...”
blicas, e garante a formação musical em variadas
MÚSICA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
51
oficinas, da iniciação musical até a capacitação de
grupos de música de câmara proporciona melhor
que tinha, na música de percussão, o instrumento
monitores e o ingresso na faculdade de música.
concentração e é um exercício de convivência. Al-
para integrar à sociedade meninos e meninas do
Atualmente, o programa presta mais de 850 aten-
guns jovens certamente serão músicos no futuro,
bairro Camobi, proporcionando à eles uma opor-
dimentos semanais gratuitos à comunidade. Além
mas o mais importante são as ações positivas que
tunidade de pensar um futuro diferente, uma vez
disso, 40 jovens oriundos das oficinas integram a
o projeto proporciona”, salienta o maestro.
que uma significativa parcela dos participantes
orquestra que cumpre uma intensa agenda artís-
Matté diz que relatos de mães e professores
vinham de comunidades desprovidas de neces-
tica em Porto Alegre, interior e em outros estados.
atestam a melhora do desempenho escolar de
sidades vitais para o desenvolvimento humano
“A música transformou a vida de todos os
crianças que participam do Vida com Arte. Além
saudável, pelo contrário, estigmatizadas pelo seu
jovens do projeto. Deu significado, empode-
disso, ao promover o convício permanente destes
alto grau de pobreza, violência, consumo e tráfico
ramento, dignidade e autonomia, despertou a
jovens e professores, acaba-se formando um grupo
de drogas ”, conta.
sensibilidade, além de colocá-los num patamar
de amigos vinculados à música, o que leva, teorica-
Oficina de Percussão de Camobi era o nome
diferenciado, por se apropriarem de um conhe-
mente, a uma rotina saudável de vida. “É uma rea-
do primeiro projeto, que logo foi ampliado, pois Zé
cimento que tem oportunizado a construção de
lização contribuir para que estas crianças tenham
Everton percebeu, com a convivência, que só a mú-
projetos de vida reveladores na comunidade”,
contato com a música e com profissionais qualifi-
sica não daria conta dos problemas enfrentados
destaca Cecília. A professora, que também é re-
cados e saber que podemos melhorar a qualidade
pelos alunos. Voluntários de outras áreas foram
gente, arranjadora, produtora artística e executiva
de vida delas; por isso, todos os dias trabalho para
entrando no grupo e uma associação jurídica, esta
e coordenadora das oficinas, diz que no âmbito da
viabilizar o projeto e buscar sua ampliação.”
denominada Cuica, foi criada. “Abrimos as portas,
escola os participantes são destacados em suas
divulgamos e vem quem quer, sem critério de se-
turmas curriculares: percebem os conteúdos de
UMA HISTÓRIA COLETIVA
leção. Mais de 300 jovens já passaram pelo projeto
uma forma mais abrangente, completa, fazem as
De Santa Maria, o projeto da Associação CUICA
e 60 desenvolvem seus estudos diariamente nas
inter-relações dos fatos com agilidade, são líderes
– Cultura, Inclusão, Cidadania e Artes surgiu da
escolas públicas do bairro e nas oficinas aqui na
e desenvolveram uma capacidade de organiza-
dificuldade encontrada pelo seu fundador e coor-
sede”, afirma o músico, que concluiu sua tese de
ção. “Como dados concretos da transformação de
denador José Everton Rozzini em se tornar músico.
mestrado sobre a inclusão pela música em junho.
vida, temos dois professores de música formados
Zé Everton, como é conhecido, teve seu primeiro
Por meio de parcerias e patrocínios, os ins-
que iniciaram comigo há mais de 15 anos (uma
contato com a música de percussão aos 13 anos na
trumentos foram sendo adquiridos, outros cons-
é Keliézy), uma monitora cursando a faculdade
escola em que estudava – o músico era o profes-
truídos pelos alunos com materiais alternativos,
de música na UFRGS, outra no curso técnico de
sor Ney Rosauro, da Universidade Federal de Santa
músicos profissionais de diversas vertentes foram
música da UFRGS e quatro se preparando para
Maria na época, acompanhado de um aluno seu
apresentados aos jovens e hoje a Cuica funciona
ingressar no curso de música no próximo ano”,
de percussão Gilmar Goularte, hoje professor da
como um catalisador de uma nova realidade. O
comemora Cecília.
mesma universidade. O contato despertou o desejo
grupo de percussão já realizou diversas apresen-
Iniciativa conjunta da Unisinos e do Colégio
de ser músico, tocar bateria. Nos anos seguintes,
tações em Santa Maria e em outros municípios,
Anchieta, o projeto Vida com Arte atende a 240
ao trabalhar no posto bancário da Base Aérea, o
participou de um evento na Assembleia Legislativa
crianças e adolescentes da rede pública de ensino
menino conheceu os músicos da banda e passou
do RS, foi a principal atração artística no aniversá-
que têm a oportunidade de acesso ao aprendizado
a acompanhar os ensaios sempre que podia. Aos
rio de 90 anos do Palácio Piratini, sede do governo
da música como forma de convívio social. Além de
16 anos, assim que teve condições de pagar um
gaúcho, e chegou a se apresentar em Brasília.
três classes semanais de música, o projeto oferece
professor com seu próprio salário, iniciou as aulas
atendimento psicológico, acompanhamento de
e, aos 21, comprou a primeira bateria.
Segundo o idealizador, as atividades na Cuica são pensadas como proposta pedagógico-musical
assistente social e também os instrumentos. Se-
Zé Everton dividia seu tempo entre o tra-
na dimensão viva da experiência, em que os jovens
gundo o maestro da Orquestra Unisinos e coorde-
balho, ensaios e bailes/shows até que assistiu ao
estejam se mobilizando, continuamente, tendo o
nador do projeto, Evandro Matté, a música pode
Grupo de Percussão da UFSM e decidiu fazer fa-
aprendizado musical permeando todas as ações.
contribuir imensamente no desenvolvimento
culdade de música. “Nesta época, conheci muita
“Não há uma imposição de cima para baixo, há,
cognitivo de crianças e jovens. “É comprovado
gente e percebi que existiam projetos sociais que
sim, uma situação de diálogo, que se constrói em
que o contato com a música melhora o desempe-
proporcionavam uma vida diferente, que reper-
parceria, calcada numa música forte, que exige
nho escolar, principalmente em disciplinas como
cutiam na vida das pessoas. Sem nunca ter cogi-
dedicação, que tem objetivos comuns, e que os
matemática e física, e trabalhar em pequenos
tado ser professor, resolvi, então, criar um projeto
identificam com o grupo”, explica. O que move
MÚSICA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
52
os participantes da Cuica, diz, é a possibilidade de
proporcionando uma oportunidade de vida – está
construir uma história que é coletiva, possui uma
entre os principais objetivos. “Ao atingi-lo, inú-
dimensão social que ultrapassa as fronteiras da
meros outros em etapas anteriores já terão sido
comunidade onde se desenvolve, mas, ao mesmo
conquistados”, analisa o maestro Telmo Jaconi,
tempo, é uma experiência local, que se constitui
diretor musical do projeto.
em um patrimônio cultural daquele lugar. Situação
Jaconi explica que a educação musical na
na qual o saber musical, que dá sentido ao grupo,
orquestra, composta por 44 integrantes, pro-
constrói-se por meio do diálogo e da integração de
porciona um aprendizado bastante completo e
conhecimentos. A Cuica realiza atividades voltadas
abrangente. Além das disciplinas musicais prá-
para a música erudita, popular, regional gaúcha,
ticas e teóricas, com seu funcionamento, a or-
samba, rock, pop, eletrônica, entre outras.
questra apresenta uma forma muito completa de
Keliézy Severo (de costas, regendo) foi aluna do projeto do bairro Lomba do Pinheiro e hoje é professora da Orquestra Villa-Lobos e do Vida com Arte Foto: Arquivo pessoal
vida em sociedade, trabalho em equipe, respeito
UMA PROFISSÃO NO HORIZONTE
mútuo e colaboração em grupo. “Aprende-se a
disponível para estudos diários do instrumen-
Criado em 2008 a partir de uma iniciativa da
respeitar os espaços de cada um e a convivência,
to, obrigatórios. “Os jovens percebem que para
Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social
mesmo que com diferenças naturais existentes
conquistar espaço, reconhecimento e respeito é
do Rio Grande do Sul, a Orquestra Jovem do Rio
entre os seres humanos”, afirma. Para o maes-
preciso investir em si mesmo e abrir mão de al-
Grande do Sul tem uma dinâmica diferente. Os
tro, a mudança mais perceptível observada no
gumas horas de diversão, e eu agradeço sempre
integrantes são selecionados entre alunos de 10 a
grupo é a de atitude. Identificando a si próprios
por ter tido a oportunidade de transmitir meus
14 anos das redes públicas estadual e municipal
como integrantes do grupo Orquestra Jovem do
conhecimentos a quem tanto precisa de orien-
de Porto Alegre, por edital, e a formação de mú-
Rio Grande do Sul, buscam na disciplina e na
tação positiva e construtiva em suas vidas.”
sicos profissionais – inclusão social pela música
organização uma maneira de aproveitar o tempo
MÚSICA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
53
Por Paulliny Gualberto, jornalista
que, com certeza, exige horas de estudo. A dedicação que resultou num concerto único, marcado pela força da percussão, pelo ânimo da juventude e notas de uma charmosa identidade gauchesca. Era música de primeira linha, fruto de uma iniciativa como poucas no Brasil. Algo que nos faz lembrar que nenhum projeto social deve se pautar pelo assistencialismo, mas pela real distribuição de oportunidades. Pelos resultados, estou certa de que o Cuica não é filantropia. É, sim, o trabalho de uma equipe incansável, que batalha para botar seu bloco na rua.
UMA TARDE COM CUICA
O nome do grupo é uma sigla que significa Cultura, Inclusão, Cidadania e Artes. Caiu como uma luva. Num país onde o acesso à cultura é tão
brincadeiras, estavam concentrados, no aguardo
limitado e as chances de se obter educação musi-
da ordem do professor que havia se posicionado
cal são remotas, Zé Everton, idealizador e coorde-
de frente para eles, de costas para o público, como
nador do projeto, traz uma proposta transforma-
um regente deve fazer. De repente, a mão destra se
dora. Quando ouvimos os solos nos tambores e
ergueu e a pulsão tomou o ar: o batuque, guiado
pandeiros, quando percebemos o vigor das mãos
pela gaita melodiosa, encheu a sala de vida. Era só
e vemos os sorrisos desse pessoal, entendemos o
o início do concerto e foi difícil segurar o nó na
quão poderosa é a arte e ficamos admirados com
garganta; bonito demais ver aquela moçada arre-
as virtudes do ser humano. Triste é pensar nos
bentar, deixar a gente boquiaberto. E é sem exage-
talentos que estão minguando, neste exato mo-
ro que afirmo que eles tocaram a mais encantado-
mento, por não terem encontrado um Cuica pelo
ra execução do Hino Nacional que ouvi até hoje.
caminho, por serem reféns da exclusão e do pre-
Eu sabia que aqueles meninos e meninas fa-
conceito. Fica o desejo de que o Cuica tenha con-
Quatro da tarde, hora da pausa num evento qual-
ziam parte de um projeto chamado Cuica, de Santa
dições de abraçar e formar muitos outros jovens
quer de Brasília. Meninos e meninas entraram no
Maria, no Rio Grande do Sul. Que eram todos es-
artistas. Só é uma pena que na sigla do projeto
palco, aos poucos, ajeitando-se com seus instru-
tudantes de escolas públicas, que enfrentaram 40
não caiba uma letra "pê", de paixão. Da paixão
mentos. Alguns eram já rapazes e moças de apa-
horas de ônibus até Brasília, para que nós, a plateia,
que toma essa gurizada pela música, da paixão,
relho nos dentes, outros, quase desapareciam por
pudéssemos conhecê-los. Mas a dureza da jornada
inevitável, que nos arrebata ao vê-los no palco:
detrás dos tambores robustos. Um grupo hetero-
não me comoveu. Nem o fato de nenhum deles vir
lindos, poderosos, rítmicos. Nossos pequenos or-
gêneo, diversificado, em que a gurizada de várias
de família rica. O que me tirou o fôlego foi a quali-
feus. Vida longa à cultura! Vida longa ao Cuica!
idades, de várias etnias se somava. Não se viam
dade da música daquela gurizada. O apuro técnico
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
54
ARTES VISUAIS
ARTES VISUAIS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
55
Duas vezes Fabio Zimbres O quadrinista, ilustrador, editor, artista visual e de-
Ao mesmo tempo em que editava a Animal,
signer gráfico está com duas exposições em circu-
Zimbres publicava na Chiclete com Banana e, já
lação no Rio Grande do Sul pelo Sesc: Mahavidyas,
morando em Porto Alegre, entre 1999 e 2001,
mostra criada a partir das ilustrações do livreto do
assinava a tira Vida Boa na Folha de São Pau-
CD com as músicas do balé homônimo composto
lo, que virou livro em 2009. Pela sua editora, a
por Vagner Cunha, e Na Tábua volume 1, que inte-
Tonto, lançou a coleção miniTonto, que publicou
gra o projeto de literatura + desenho desenvolvido
livros de Allan Sieber, Guazelli, Jaca, entre ou-
em parceria com o escritor Paulo Scott.
tros, e também o seu livro Apocalipse segundo
O ano era 1986 quando o estudante de ar-
Dr. Zeug, em 1997. O artista publicou ainda o
quitetura da USP Fabio Zimbres, colecionador
livro Feliz, pela Pequeño Editor, de Buenos Aires,
inveterado de HQs, editou uma revista em qua-
e a graphic novel Música para Antropomorfos,
drinhos, Brigitte, com Newton Foot. Foi a primeira
lançada em parceria com a banda de Goiânia
experiência profissional desta lenda das histórias
Mecanics, numa espécie de combo livro+CD, pela
em quadrinhos alternativas, que passou a pu-
Livros Voodoo.
blicar em outras revistas até se envolver com a
Zimbres produz, paralelamente, ilustrações
equipe da revista Animal, que circulou entre 1988
para veículos como Zero Hora e Le Monde Diplo-
e 1991 com o subtítulo de Feio Forte Formal, e
matique Brasil, e também ilustração para livros.
apresentou Milo Manara, Charles Burns, Jano e
A partir de 1996, amplia o foco do seu trabalho
a dupla Liberatore e Tamburini aos leitores bra-
e começa a mostrar suas obras em exposições
sileiros, além de ter lançado muitos autores que
coletivas e individuais em espaços com Centro
viriam a se tornar grandes nomes desse universo
Cultural Recoleta, em Buenos Aires, Museu do
como Lourenço Mutarelli, Guazelli, Jaca, Adão
Trabalho, Margs, Sesc e galerias de arte de Porto
Iturrasgarai, entre outros. A essa altura, Zimbres,
Alegre, São Paulo, Estados Unidos, Portugal e até
sabendo que arquitetura não era a sua, já havia
do Japão. Zimbres coordena com Paulo Scott o
deixado a faculdade em São Paulo para mais tar-
projeto Na Tábua, que mistura literatura e artes
de cursar Artes Visuais no Instituto de Artes da
nas ruas, e participa dos coletivos A Casa do De-
UFRGS, onde se formou.
senho, Charivari e NOH.
ARTES VISUAIS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
56
Embora o artista tenha admiração pelos tra-
25 anos da Orquestra de Câmara do Teatro São Pe-
e Garopaba, em Santa Catarina. Como curadores,
balhos do desenhista impressionista alemão Georg
dro, que executou o balé coreografado por Carlota
Scott e Zimbres convidaram amigos, pessoas cujo
Grosz (1893-1959), pelo quadrinista e arquiteto
Albuquerque e apresentado pela companhia Terpsi
trabalho acompanhavam de longa data, e agrupa-
italiano Francesco Altan e por autores de HQs ame-
Teatro de Dança.
ram grande parte dos escritores e desenhistas que
ricanas do começo do século – de quem copiava os
As imagens do folheto representam a leitura
têm inovado nestas manifestações artísticas no país.
desenhos desde criança – são outras manifestações
de Zimbres para a música de Vagner. “Desde o co-
Participaram desta primeira fase, 60 escritores e 30
artísticas que mais o inspiram, com destaque para
meço do projeto, já existia a possibilidade de uti-
desenhistas, além dos organizadores. Zimbres conta
o cinema e a literatura. “O que eu assisto ou estou
lizar ilustrações relativas aos movimentos da peça
que, como muita gente ficou de fora, a dupla tem
lendo no momento acaba saindo, tudo faz parte de
em formato maior”, conta o artista. No tamanho
planos de realizar o Volume 2.
um universo que faz parte de mim”, reflete.
40x80, porém, as ilustrações não são simples am-
O ilustrador diz que a parceria neste projeto
pliações das que estão no CD. “Quando surgiu a
surgiu em consequência dos saraus promovidos
MAHAVIDYAS e na tábua
oportunidade de expor, realizei um retrabalho em
por Scott. “Ele sempre fez literatura ligada à mú-
Os oito desenhos que fazem parte da exposição
cima dos desenhos, fazendo uma adaptação e in-
sica e eu fazia os cartazes de divulgação, até que
Mahavidyas, em circulação pelo Sesc/RS desde o
serindo novos elementos que o formato anterior
surgiu a ideia destes cartazes como peças autô-
começo do ano, foram originalmente criados a con-
não permitia”, descreve.
nomas, com vida própria. Então criamos o projeto
vite do compositor Vagner Cunha para integrar o
O projeto Na Tábua foi idealizado pelo artista
com um poema e uma ilustração em cada cartaz”,
encarte do CD duplo com as músicas do balé livre-
visual Fabio Zimbres e pelo escritor Paulo Scott com
explica. Hoje, o trabalho está circulando como ex-
mente inspirado nas deusas do hinduísmo. O CD foi
o objetivo de levar a arte – literatura + ilustração – a
posição e, em breve, deverá ser editado um livro.
lançado durante as comemorações de aniversário de
espaços públicos. A exposição intitulada Na Tábua Volume 1 reúne as 30 edições com três cartazes cada afixados em bares, cafés e livrarias e outros espaços de Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba
ARTES VISUAIS
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
57
A exposição Mahavidyas surgiu a partir dos desenhos criados para ilustrar o encarte do CD de Vagner Cunha com as músicas do balé Projeto Na Tábua reúne principais nomes da literatura e do desenho no Brasil
PRIMEIRO SEMESTRE
CINEMA
2012
58
Por Marco Aurélio Lopes Fialho assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do SESC
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
59
1 Trecho da canção Velha roupa colorida, de Belchior
A representação fantástica de Vincent Price "Como Poe
mas o maior volume dessa produção se encami-
Poeta louco americano
nha para a literatura. O desafio, entretanto, não
Eu pergunto ao passarinho:
pode esmorecer os interessados no misterioso e
Black bird o que se faz?
escasso assunto.
Black bird me responde:
A nossa escolha pelos trabalhos de Vincent
Tudo já ficou para trás
Price caracteristicamente voltados para o terror
Assum preto me responde:
B nos vislumbra como o caminho mais coerente
O passado nunca mais" [1]
a ser seguido, já que o ator pode ser considerado o seu maior ícone. O seu nome está de tal jeito
O Sesc, com enorme satisfação, traz ao público brasileiro oito filmes em homenagem ao
engendrado na forma terror B que fica até difícil
atmosfera funesta a partir desses elementos, sem
não associá-los.
dúvida, os aproximaria desse universo.
centenário do ator estadunidense Vincent Price.
Portanto, ao centrarmos uma mostra nos
A própria nomenclatura terror B já a relaciona
Ícone do chamado terror B, o ator trabalhou em
filmes atuados por Price, nossa intenção maior é
com os baixos recursos financeiros envolvidos nes-
outros gêneros, mas foi no cinema fantástico que
desvendar, por meio dessas obras, as principais
se tipo de produção, que por um lado estimulava
deixou sua marca inconfundível.
características estéticas que compõe os filmes do
soluções criativas na mise-en-scène e, por outro,
Vincent Price até atuou em superproduções,
chamado terror B. A ambição principal é estudar
revelava algumas precariedades, como o uso de
entre elas podemos citar Os Dez Mandamentos,
esse tipo de cinematografia, que se aproximou do
efeitos especiais rudimentares, que com o passar
porém, nelas sempre foi inserido como coadju-
fantástico para se distinguir de outras formas de
das décadas selaram nesses filmes a marca de cult.
vante, tendo se destacado como protagonista so-
se realizar cinema.
Oito filmes foram escolhidos para a mostra
mente nos filmes de horror de baixo orçamento.
Para essa ideia ficar mais evidente, citamos,
A Representação Fantástica de Vincent Price, to-
Mas o que nos salta aos olhos é a intrínseca rela-
por exemplo, a artesania dos filmes de terror B, o
dos realizados na época áurea do chamado terror
ção entre o ator e o gênero fantástico, sobretudo
quanto os diretores desse gênero demonstraram
B, produzidos entre 1958 e 1974. Os anos 60 e
as suas participações em filmes na década de 60,
sua admiração por aspectos da estética expres-
70 podem ser compreendidos como o período de
época áurea do gênero, que deram projeção tanto
sionista, principalmente no uso das sombras, do
ápice dessa estética, quando a maioria dos filmes
ao ator quanto ao gênero.
décor insinuante e do uso da maquiagem como
referenciais foi rodada.
Há muito poucos estudos sobre o tema do
artifício cênico, mesmo admitindo que a forma do
Os oito filmes que compõem a mostra são:
fantástico no cinema, principalmente no Brasil,
uso não é a mesma, mas o desejo de criar uma
A Casa dos Maus Espíritos (1958), O Corvo (1963),
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
2 Trecho do conto O Poço e o Pendulo, de Edgar Allan Poe.
60
A Queda da Casa de Usher (1960), Muralhas do Pavor (1962), As Sete Máscaras da Morte (1973), No Domínio do Terror (1963), Dr. Morte (1974) e O Abominável Dr. Phibes (1971).
O Fantástico e o Expressionismo “O odor do aço afiado introduzia-se nas minhas narinas. Roguei aos céus, fatiguei-o com a minha prece – para que fizesse o aço descer mais rapidamente. Estava louco, frenético, esforcei-me por me erguer e ir ao encontro da terrível
do gênero fantástico como roteirista de filmes.
sem profundidade; as interpretações exageradas
cimitarra balouçante. E depois, subita-
Somente no início dos anos 20 que o fantástico
cheias de movimentos de corpo marcantes; temas
mente, caí numa grande calma e fiquei
atinge no cinema uma força incontestável, com
mórbidos; fotografia acentuando os contrastes
sorrindo para aquela morte resplande-
o sucesso do filme de Robert Wiene, O Gabinete
entre as partes muito claras e as muito escuras;
cente, como uma criança para algum
do Dr. Caligari.
o medievalismo, incluindo a aproximação com
brinquedo precioso.”[2]
Em Caligari, vem à tona todo o potencial expressionista ao revelar uma Alemanha góti-
o gótico; personagens visualmente perturbados com nítidos conflitos emocionais.
De acordo com o crítico literário Tzvetan
ca, demoníaca, com seus pesadelos mais obs-
Todorov, o fantástico pode ser entendido como
curos. O mais incrível no filme de Wiene é a
tal quando se põe em dúvida a noção de real de
sua capacidade de tornar o gênero fantástico,
O Terror B e o Expressionismo Alemão
um determinado fenômeno, isto é, quando não
até então essencialmente literário, totalmente
Conforme já afirmamos, não se trata de criar
se consegue explicá-lo pela lógica, mas somente
palpável para o gênero cinematográfico.
transferências da forma estética do expressionis-
sob a regência de outras leis que desconhecemos.
Não por acaso, comumente se relaciona o
mo alemão para os filmes de terror B, mas vê-los
Para Todorov, normalmente um fenômeno “se
expressionismo com o fantástico. Sobretudo o
como referência inspiradora traz uma luz especial
pode explicar de duas maneiras, por meio de cau-
fazemos aqui com o propósito de criar vínculos
para a abordagem estética desse cinema, consi-
sas de tipo natural e sobrenatural. A possibilidade
com o nosso objeto, os filmes de terror B, inclu-
derado por muitos como menor, um mero sub-
de se hesitar entre os dois criou o efeito fantás-
ídos aí os atuados por Vincent Price. É evidente
produto da indústria.
tico.” (Introdução à literatura fantástica, Tzvetan
que existem diferenças marcantes entre os dois
Mesmo desprezado e alijado das análises
TODOROV, 1968, p. 31).
objetos, mas as distâncias não devem suprimir ou
mais pungentes, porque não dizer as mais cultas
evitar aproximações bastante interessantes.
da crítica contemporânea, os filmes de terror B
O fantástico nasce na literatura e tem o cultuado escritor Edgar Allan Poe como seu autor-
De forma corrente, o período considera-
constituem uma cinematografia realizada com
-ícone, mas a sua concepção é muito bem assi-
do pela crítica como o áureo do expressionismo
baixos custos, mas com resultados esteticamente
milada pelo cinema ainda em seus primórdios.
como movimento, aqui entendido em sua versão
expressivos e dotada de um humor muito típico,
O ilusionista e cineasta francês Georges Méliès
cinematográfica, está situado entre os anos de
quase sempre sarcástico, debochado, às vezes
é considerado um dos precursores do cinema
1920 e 1924. Após 1924, os críticos salientam um
com toques mesmo de humor negro autorrefe-
fantástico, com o seu célebre filme Viagem à Lua
declínio do expressionismo, ele ecoará ora como
rencial. Rir do próprio gênero terror dá um matiz
(1902), quando o cinematógrafo ainda era mais
inspiração, ora como influência residual em al-
diferenciado, provoca no espectador um afasta-
uma curiosidade do que um aparelho apto a criar
guns filmes alemães produzidos posteriormente.
mento estético interessante, por mais que não
uma linguagem autônoma.
Dentre as principais características do pe-
fosse esse um claro objetivo dos diretores no ato da filmagem e edição dos filmes.
Mas é no cinema alemão que o fantástico
ríodo do expressionismo no cinema podemos
surge com maior vigor, antes mesmo da eclo-
enumerar: o uso da maquiagem e figurinos es-
Já que citamos as principais características
são do expressionismo alemão, já nos anos 10
tilizados; artificialismo, principalmente provo-
do Expressionismo Alemão e propomos, a seguir,
do século XX, com a incorporação de escritores
cado pelos cenários acachapantes e tortuosos,
criar um diálogo entre elas e o nosso objeto, seria
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
61
o segundo, o da presença do humor como elemento de desestruturação da própria narrativa fantástica. O chamado terror B utilizou-se de alguns traços expressionistas, sim, mas o fez sempre o temperando com o viés cômico, marcando assim uma profunda clivagem em relação ao Expressionismo. O terror B assumia um sentido farsesco que era inconcebível à estética expressionista. O toque de humor dado fundamentalmente pela narração atribui ainda à obra a certeza de que o que está se assistindo é uma fábula. Isto oportuno então retornarmos agora a essa ideia já
Como bem assinala a professora e pesqui-
fica bem evidenciado quando pensamos no fil-
anunciada. É fundamental esclarecer de imediato
sadora Laura Cánepa – e essa observação é de
me O Corvo, dirigido por Roger Corman, diretor-
que o uso dos elementos ou de características es-
grande valia para a nossa análise sobre o terror
-ícone do terror B.
téticas ocorre em momentos históricos diversos,
B – o grande êxodo de artistas, atores e técnicos
Da mesma forma que no Expressionismo
assim como servem para motivações artísticas
alemães dessa época difundiram consideráveis
Alemão, a concepção visual (cenários e maquia-
nada similares. Mas, como muito acontece nas
influências “expressionistas” pelo mundo, sobre-
gem) nos remete a um artificialismo, também no
artes em geral, o que importa é a subtração de
tudo nos Estados Unidos, e mais especificamente
terror B ele se faz presente, mas seu tipo de ar-
uma forma estética para sua reutilização em ou-
em Hollywood.
tificialismo é acentuado não só pela concepção
tro contexto tanto artístico quanto político.
Muito discorremos até aqui sobre o tal terror
visual dos cenários, mas também pela escolha de
O período histórico do nascimento do Ex-
B, o que suscita uma pergunta pertinente: se exis-
efeitos especiais rudimentares. Novamente, um
pressionismo o localiza imediatamente após
te o terror B, existiria então o terror A, ou antes, o
exemplo contundente é o do O Corvo, onde esses
a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial
terror por excelência? A nosso ver, essa pergunta
efeitos adicionam uma faceta cômica ao filme.
(1914-1919) – O Gabinete do Dr. Caligari foi
mais que justificável é realmente oportuna e pede
produzido em 1919/20. Muitos críticos relacio-
mais esclarecimentos.
A opção pelo cômico, sem dúvida, acrescenta um diferencial estético ao terror B, já que o
nam o Expressionismo como uma resposta da
Se analisarmos a incorporação do terror ao
orçamento e a tecnologia de ponta da época não
vanguarda alemã à atmosfera de decadência e
gênero cinematográfico, veremos que um ponto
permitiam grandes efeitos especiais, inclusive, es-
crise moral do período compreendido como a
de partida onde o encontramos de maneira mais
ses só seriam realmente incorporados à indústria
República de Weimar (1919-33) e prenuncia-
sistematizada é a do próprio Expressionismo
do cinema em meados dos anos 80.
dor do surgimento do nazismo. Hoje, essa ideia
Alemão.
Até os anos 70, os efeitos especiais ain-
não deve ser tomada de forma absoluta, outras
No Expressionismo, encontramos, conforme
da estavam sendo testados em filmes que mais
questões são também apontadas como influen-
já analisado, uma exacerbação dos elementos
adiante modificariam o próprio conceito de filme
tes, tal como o gosto pelo medievalismo (gótico)
imagéticos, mas eles representavam uma exte-
de entretenimento. Guerra nas Estrelas (Star
e a tradição romântica alemã.
riorização de um estado interior, uma materia-
Wars/1977), de George Lucas, foi o filme-refe-
Desde os primórdios do cinema, tem-se
lização espiritual, e sua potência estética vinha
rência dessa época. Importante frisar que os oito
registro de filmes de terror. No primeiro ano do
dessa confrontação do externo com o interno.
filmes selecionados para a Mostra Vincent Price
cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou
Isso caracterizaria então o terror expressionista
são anteriores a essa data.
um pequeno curta-metragem com a temática. As
como a assimilação expressiva de um elemento
histórias de terror foram sendo filmadas nas dé-
psicológico, coisa que não encontraremos como
Vincent Price e o terror B
cadas posteriores, mas somente no Expressionis-
ponto de partida do terror B.
Neste momento, seria de bom tom um breve
mo Alemão o terror adquiriu uma maior presença
Dois elementos têm que ser considerados no
esclarecimento. Não se pode conceber o ator
e vigor. O Gölem, O Gabinete do Dr. Caligari, Nos-
terror B e que o diferencia de forma substancial
Vincent Price como o único expressivo do terror
feratu, Fantasma, entre outros, serviram de fonte
da estética Expressionista. O primeiro seria o da
B, seria inclusive injusto com outros astros que
para diversos filmes a partir dos anos 30.
primazia da camada plástica sobre a psicológica,
também marcaram o gênero. Nomes como os de
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
62
Boris Karloff, Bela Lugosi, Peter Cushing, Peter
a um tipo de educação já extinta, de uma nobreza
medievalista ao cenário, inteiramente sintonizado
Lörre e Christopher Lee devem ser sempre respei-
não adquirida pelo dinheiro, e sim pela estirpe.
com a proposta estética do terror B, de trabalhar
tados e lembrados por suas ótimas presenças e contribuições artísticas. Mas falar de Vincent Price é antes de tudo reconhecer sua presença deveras carismática.
Price foi talhado para os papéis excêntricos, ele mesmo era uma dessas figuras. É sabido de seu gosto pela gastronomia e sua fama de colecionador de obras de artes e antiguidades.
com a permanência, extremamente contraditória, de traços nobres em pleno século XX. Na parte sonora dos filmes de terror B aqui apresentados, as trilhas musicais ocupam um lugar
Sua aparição diante de uma câmera tem o po-
Em sua carreira percebe-se, principalmente
especial. A trilha participa de forma a suscitar ora
der de atrair o nosso olhar, e isso não é pouco
a partir dos anos 50, uma proliferação de atua-
uma sensação de instabilidade à trama, ora para
em se tratando de cinema, é um dom; portanto é
ções em filmes fantásticos, e em especial os de
imperar o humor e sobrepujá-lo ao terror. Essa
intransferível. Assim nasce um ícone, ou melhor,
terror e suspense, o que fez com que sua imagem
oscilação provocada pela trilha musical enriquece
um ator-ícone de um gênero.
ficasse definitivamente vinculada ao gênero.
a narrativa e facilita a manipulação exercida pelo
Vincent representava essencialmente pelo
diretor da obra nos sentidos do espectador.
olhar, com a força demolidora que conseguia ex-
Uma análise dos filmes da Mostra
pressar por meio desse artifício. Artifício, talvez
Não faremos uma análise individual das obras de
reção de arte desses oito filmes. Por meio dela
seja uma das chaves para desvendar os segredos
Price, mas apontaremos elementos estéticos to-
são sempre destacados os pesados lustres e mó-
de sua atuação. Incrível como a câmera sugava
mados como relevantes para um melhor entendi-
veis, os tapetes, quase sempre cor de vinho, que
seu olhar tal como um imã. Vincent se encaixava
mento acerca delas.
contrastam com as paredes em cor neutra. Tudo
Um relevante papel pode ser atribuído à di-
muito em personagens que possuíam caracterís-
O aspecto macabro nos parece o dado mais
isso junto nos remete inevitavelmente a uma at-
ticas excêntricas. Para acentuá-las, seu rosto era
unificante e presente nas oito obras. Mas soma-
mosfera sinistra, predominantemente kitsch. As
especialmente maquiado e seu cabelo arruma-
do a isso existe também um traço de decadência
roupas e os cabelos também compactuam para
do com poderosos topetes que o conferiam um
(que explicitaremos melhor adiante) que vale a
sublinhar a ambiência cafona. Mais uma vez,
semblante realmente ímpar, de grande impacto e
pena registrar, e esse segundo traço acentua de
a sensação de deslocamento temporal é aqui
personalidade.
forma considerável o primeiro.
sentida pelos espectadores.
Evidente que esse uso da maquiagem é ex-
A utilização das locações, sempre deslocadas
Um fato recorrente nos filmes de terror B
cessivo, mas ele funciona fundamentalmente por-
no tempo, agrega também um valor descomunal
são as portas, que aparecem de forma abun-
que o terror B permite em sua constituição esse
aos filmes e servem para criar uma desconexão
dante. Em A Queda da Casa de Usher, tem uma
exagero. Vincent Price preservou na construção
temporal às histórias, um desencontro descon-
sequência em que um personagem abre várias,
de seus personagens certo ar de mistério advin-
certante entre espaço e tempo.
uma atrás da outra, em busca de sua amada. E as
do, sobretudo, de movimentos faciais, inclusive os
A escolha de mansões e castelos como lo-
portas representam muito nos filmes de terror,
privilegiando aos movimentos corporais, que em
cações colaborou muito para criar uma estreita
uma dualidade de sentimentos, primeiro o do
demasia destruiriam sua imagem elegante.
relação entre passado e presente, uma tensão
pânico de não se saber o que está ali escondido,
Price é capaz de atuar misturando um tom
permanente em que o primeiro assombrava o
e segundo, a esperança de que o terror acabe
macabro com um refinado humor, esse traço traz
segundo e alimentava um toque de revanchismo
logo, que algo seja revelado e resolvido, nem que
uma riqueza à cena e atiça no espectador um de-
aristocrático aos enredos, como se a burguesia vi-
seja a morte.
sejo de continuar compactuando com ele aquele
vesse com a sombra dos resquícios da ostentação
A maquiagem na maioria das vezes foi
momento de representação. Em A Casa dos Maus
da nobreza, e esta, por sua vez, como vingança, se
utilizada como um elemento de deformidade,
Espíritos, isso é salientado permanentemente.
faria presente em forma de fantasmas. Nota-se
como em O Abominável Dr. Phibes, cuja más-
marcadamente essa ocorrência em quase todos
cara imprime uma imagem não realista e ex-
os oito filmes incluídos na mostra.
tremamente falsa. No primeiro conto do filme,
A figura de Vincent Price nos remete sem dúvida a uma postura aristocrática, a sua imagem definitivamente não pertence a do mundo
O aspecto arquitetônico das locações e de
No Domínio do Terror, há ainda uma cena cujo
burguês, daí que o humor empregado em sua in-
alguns objetos de cena faz referência ao esti-
personagem envelhece 50 anos em poucos se-
terpretação acresce valor ao seu trabalho de ator,
lo gótico, principalmente na verticalização das
gundos, exemplo de uma deformidade franca-
justamente por não ser um humor rasgado, mas
construções que possuem um pé direito conside-
mente satírica.
de uma sutileza refinada. Seu trabalho como ator
ravelmente alto, o que ajuda a criar um ambien-
O Abominável Dr. Phibes é um belo exemplo
nos remete a algo que historicamente se perdeu,
te antiquado, já que o gótico agrega um toque
da pretensão estética do terror B. Os excessos
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
63
são caracterizados logo na primeira sequência do
uma atenção especial, principalmente pelo uso
Price e Boris Karloff; em O Abominável Dr. Phibes,
filme, que alcança momentos que beiram o bar-
e abuso dos sobretudos, capas, luvas e ternos
os closes de morcegos, ratos e gafanhotos assas-
roquismo. Price aparece de costas com uma capa
bem cortados. Acrescenta-se a seu visual o seu
sinos aparecem sistematicamente.
preta brilhosa tocando um órgão, logo depois se
inseparável bigode, sempre muito bem aparado,
levanta e começa a comandar no mesmo espaço
conferindo-lhe um estilo muito próprio.
As imagens que vêm do terror B são possíveis graças ao trabalho dos fotógrafos dos fil-
uma orquestra de brinquedos, enquanto assisti-
No entanto, a grande estrela do terror B são
mes que usaram e abusaram das sombras, dos
mos a uma mulher adentrando na mesma sala
seus inusitados e precários efeitos especiais. Cada
momentos de contraste de luz com espaços mal-
com uma roupa que mais parece uma fantasia de
filme tem seu momento sublime. Em A Casa dos
-iluminados. Os raios de temporais também são
carnaval, e juntos, iniciam uma dança. A câmera
Maus Espíritos, uma grossa corda se movimenta
constantes e reforçam as imagens contrastadas,
assume uma posição zenital (de cima) em que se
sozinha e um esqueleto humano animado anda
sobretudo, quando eles ajudam a iluminar a pou-
destaca o piso todo em mármore rosa-bebê.
atrás de uma das personagens; em O Corvo, enor-
ca luz existente em algumas cenas e ajudam na
Ainda em O Abominável Dr. Phibes, a pró-
mes cadeiras são suspensas no ar e raios colori-
construção de uma atmosfera sinistra e aterrori-
pria composição do figurino de Price merece
dos saem das mãos dos personagens de Vincent
zante. A conclusão que se pode extrair é simples:
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
3 Trecho do conto A Queda da Casa de Usher de Edgar Allan Poe
64
o raio é inerente ao terror B, sem raio sequer
necessário sublinhar algum elemento cênico em
existiria o terror B.
especial ou alguma reação de um rosto.
O filme A Queda da Casa de Usher merece uma análise em especial por ser uma obra que
O terror aparece muitas vezes também no
A presença de um ator carismático é um
formato de vingança. As motivações dessa vin-
traço marcante do terror B, o que traz para a
incorpora importantes aspectos de estilo que aju-
gança são variadas, como a perda da esposa (Dr.
discussão aqui proposta um expressivo signifi-
Várias são as razões que fazem seu dife-
Phibes), o fracasso na profissão (Dr. Morte e As
cado, já que está centrada na participação de
rencial. Uma pelo fato de ser uma adaptação de
Sete Máscaras da Morte) ou as traições (A Casa
Vincent Price no gênero.
uma história clássica de Edgar Allan Poe, mestre
dam a traduzir o escopo estético do terror B.
dos Maus Espíritos). O terror não surge pelo
Mais que um mero realce no protagonismo
da literatura fantástica de horror; outra, a direção
acaso, ou por um dom da natureza, ele vem em
em si, há uma necessidade nos filmes de terror
de Roger Corman, diretor-ícone do terror B, assi-
desagrado a situações essencialmente sociais.
B de adequar o ator a um perfil específico de
nando essa versão cinematográfica. O conteúdo
Se nos filmes do terror B o aspecto mais ater-
protagonista, o vilão essencialmente fúnebre, ou
da obra em si precisa ser destacado, pelo sentido
rorizante não assume força desmedida, muito
melhor, existe um determinado papel de vilania
histórico atribuído à casa, especialmente como
podemos atribuir isso à faceta cômica que pos-
que é condição sine qua non à existência do pró-
síntese de uma era que necessita morrer, ser ex-
sibilita uma situação mais próxima do ridículo
prio terror B, daí a consagração de uma gama de
tinta do ponto de vista social.
do que do real, e esse mérito precisa ser sempre
atores (além de Price, Bela Lugosi, Christopher
Apesar de ser um filme no qual o terror e
mencionado, o da capacidade do homem de rir
Lee, Boris Karloff, Peter Cushing e Peter Lorre)
o suspense sejam visivelmente predominantes na
de si mesmo e das coisas mais apavorantes in-
que acabaram por incorporar em suas carreiras
trama, há uma sutil ironia que percorre todo o
trínsecas à vida e à morte.
a pecha de serem atores de filmes B.
desenvolvimento dramático do filme e que deve
Os filmes de terror B levam o fantástico a níveis antes não experimentados por serem capazes de rir da morte, ao ressuscitar cadáveres,
ser observada com atenção.
Uma análise em especial – A Queda da Casa de Usher
de rir da crença do amor eterno e, por fim, ao
A história do filme é simples. Um rapaz chega a uma casa afastada procurando uma jovem para pedi-la em casamento ao seu irmão mais
absurdo de transformar pessoas em corvo, den-
“Eu tinha exaltado a imaginação de for-
velho. Ao adentrar na casa percebe que o irmão
tre outras bizarrices.
ma a realmente acreditar que em torno
não está disposto a facilitar seu pedido e o ater-
A montagem dos filmes segue o estilo clás-
de toda a casa e do terreno flutuava
roriza dizendo que a moça está prestes a morrer.
sico, é redonda, não cria ambiguidades tempo-
uma atmosfera peculiar a ambos e a
O mistério se estabelece quando não fica claro o
rais e busca estabelecer uma linha narrativa
sua vizinhança imediata – uma atmos-
que está envolvido por trás dessa suposta morte
clara para o espectador. Não difere muito das
fera que não tinha afinidade com o ar
prematura anunciada.
montagens dos filmes de suspense, em que no
do céu, mas que se havia evolado das
O irmão da moça, interpretado de forma
final todas as dúvidas colocadas no decorrer
árvores senis, das paredes cinzentas, do
magnificamente sinistra por Vincent Price é quem
da história são esclarecidas. Os planos e en-
pântano silente – um vapor pestilento e
dá o tom macabro à história. Anuncia que a tal
quadramentos privilegiados são os médios, os
místico, pesado, inerte, mal perceptível,
paixão não poderá ser concretizada, pois a família
americanos (até o joelho), e os closes quando
cor de chumbo.”
deles estava fadada ao extermínio. Aos poucos,
[3]
CINEMA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
65
a casa vai se tornando um enorme mausoléu e
nicas expressionistas que salientam os aspectos
e Usher tira da manga uma frase de impacto, re-
a própria excentricidade mórbida de Price ganha
macabros dos personagens retratados, isto é, a
pleta de sarcasmo: “para quem, para as futuras
muita força e fica evidente um domínio que seu
linhagem dos Usher.
gerações dos Usher?”, o que dá um tom de finitu-
personagem exerce sobre a irmã.
Os Usher são descritos pelo seu único rema-
de à família, de que a geração deles encerraria a
A determinação do amor do pretendente a
nescente masculino como agiotas, mercadores
noivo leva o personagem de Price para uma ir-
ordinários, vigaristas, falsários, ladrões de joias,
Mas há diferenças profundas entre a história
ritação crescente, pois a cada sequência o noivo
viciados em drogas, assassinos profissionais,
original de Poe e a versão cinematográfica de Cor-
aperta o cerco para levar consigo a bela moça ao
chantagistas, meretrizes, contrabandistas, mer-
man. Na literatura de Poe, o narrador é um amigo
sentir que o ambiente da casa é um impedimento
cadores de escravos. A conclusão de sua fala é
de infância que atende a um apelo desesperado
a sua felicidade.
mais incisiva ainda: “a história dos Usher é de
de Usher para consolá-lo, isto é, ele não está no
degradações selvagens. Primeiro na Inglaterra,
filme como um personagem hostil, mas sim como
depois na Nova Inglaterra”.
alguém que amistosamente vai narrando a triste
Os mistérios começam a ser desvelados quando a amada leva o rapaz para o subsolo da
sua execrável trajetória.
casa para lhe mostrar as tumbas de seus antepas-
A concretização do casamento então daria
história dos Usher. No filme, não há um narrador
sados, o clima sinistro se instala no rapaz e nos
continuidade a essa linhagem historicamente
em off como no livro, mas os espectadores assu-
espectadores. Quando ficamos sabendo acerca da
devastadora, decadente e aterradora. Esse peso
mem o ponto de vista do noivo, personagem não
casa-cemitério, de quebra, ainda nos é revelada a
emocional atribuído à casa é central para o en-
existente no livro, e por meio dele vão adentrando
existência de um caixão para cada um dos irmãos,
tendimento do próprio terror B, o quanto po-
na história e nos mistérios da casa e da família.
últimos remanescentes da tradicional e decaden-
demos relacionar a sua estética macabra com a
Outra grande diferença a ser assinalada en-
te família Usher.
própria história norte-americana, e o quanto de
tre as duas obras, a literária e a cinematográfica,
A história vai surpreendendo e aos poucos
crítica social está contido no seu humor fúnebre
é de como os Usher são retratados. No conto de
nos encaminhando para temas imbricados com a
e na sua forma cinematográfica aparentemente
Poe, há apenas uma vaga referência ao passado
filosofia e a história. Esse momento acontece exa-
rudimentar.
dos Usher; no filme, eles são não só citados, mas
tamente na metade do filme, quando o persona-
Todos os elementos aqui trabalhados como
também nomeados e julgados pelo seu único
gem de Price explica para o pretendente a noivo
características técnicas e estéticas do terror B são
remanescente masculino como uma corja im-
de sua irmã que aquela terra já foi fértil, o imenso
adequados à análise da construção fílmica de A
prestável que devia ser extirpada do mundo. Em
lago, oa animais e a flora eram belos, até que uma
Queda da Casa dos Usher, um filme sem dúvida
suma, o conto de Poe enfatiza a decadência da
praga assolou o lugar tornando-o irreconhecível,
exemplar. O décor antiquado, os figurinos e per-
casa e da família, enquanto o filme de Corman
árido, sem vida e fez do lago feio e cheio de lodo.
sonagens excêntricos, a decadência prenunciada
propõe uma análise dessa decadência ao criar uma hipótese sobre ela.
Essa sequência explicativa é a mais impor-
e sublinhada no enredo, a música marcando o
tante do filme e o ponto de virada da história. Ela
clima de terror. O humor é muito sutil, às vezes
se inicia na esfumaçada parte externa da casa e
quase imperceptível, uma cena que bem expres-
continua na parte interna numa sala onde estão
sa esse humor acontece quando o pretendente a
expostos nas paredes retratos pintados com téc-
noivo sugere o conserto das rachaduras da casa,
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
66
Por PEDRO GONZAGA ESCRITOR
Uma coleção de trilhos O amor amargo de Drummond Permitam-me, caros leitores, começar esta con-
Muito já foi comentado sobre as sete faces
versa sobre Drummond com uma recordação
do poeta, seguindo a sugestão por ele oferecida
e com se amarem tanto não se vêem.
pessoal. Era eu então um jovem escritor, ou ten-
no poema que abre Alguma poesia (1930). Trata-
Um se beija no outro, refletido.
tativa de, rebelde e polemista, disposto a escan-
-se daqueles famosos versos em que o eu-lírico
Dois amantes que são? Dois inimigos.
dalizar mais do que propor, satirizar mais do que
se declara um anjo torto, um gauche, um indiví-
construir. Lembro de ter uns vinte anos e soltar
duo ao mesmo tempo em desacordo com o mun-
Amantes são meninos estragados
esta sentença para meu pai, eminente professor
do e consigo mesmo. Como bem aponta Antônio
pelo mimo de amar: e não percebem
de Literatura Brasileira da Universidade Federal,
Cândido, a poesia de Drummond descreverá um
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
como provocação: Drummond é supervalorizado.
movimento pendular, do coletivo para o individu-
e como o que era mundo volve a nada.
O pior é que talvez eu acreditasse nisso.
al, da transformação social para a desilusão com
Sabiamente, ciente de quão longe eu estava de
as ideias políticas, da tentativa de comunicação
Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
descobrir o real significado do poeta de Tarde de
ao fracasso da solidão. A única saída parece ser
que os passeia de leve, assim a cobra
maio, E agora, José e Caso do vestido, meu pai
o humor, a ironia, a capacidade de rir da própria
se imprime na lembrança de seu trilho.
conteve o que ia dizer (por certo uma carras-
condição humana.
Os amantes se amam cruelmente
pana), respirou fundo e falou, (aquilo que eu só
Entre as tantas temáticas (poesia existen-
entenderia dez, quinze anos depois): Drummond
cial, social, cotidiana, amorosa, sobre o passado
Deixaram de existir mas o existido
tem um poema para cada sentimento, para cada
familiar, as homenagens aos amigos), escolherei
continua a doer eternamente.
experiência de vida, que tenhamos tido, ou que
aqui apenas uma, assim como me deterei com
venhamos a ter.
mais afinco em um poema a fim de revelar com
Poeta múltiplo sendo um só, num processo
maior detalhamento os prismas de uma dessas
avesso ao do único poeta de sua dimensão em lín-
temáticas, acreditando que diante deste gigante
gua portuguesa desde Camões, Fernando Pessoa,
da língua portuguesa, o melhor a fazer é ler com
Drummond segue desafiando qualquer tentativa de
modéstia, tentando revelar (ou decifrar) o que
visualizá-lo como um todo, independente da exten-
está diante de nossos olhos: não uma obra, mas
são de que se disponha para escrever sobre sua obra.
um poema. A seguir temos o soneto Destruição:
E eles quedam mordidos para sempre.
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
67
Dispensável dizer que estamos diante da
vivência), o estar juntos, eliminando a distância, faz
visão do amor como uma experiência amarga, o
ressurgir a frialdade do mundo ordinário, não mais
amor-amaro, tão presente na lírica amorosa de
o idílio do encontro que ressignificaria tudo, mas
Drummond. Inegável lembrar também o diálogo
somente o mundo em que os dois não são mais do
com Camões, a influência de uma visão dilacera-
que duas pessoas, tão elas mesmas, nada do que
da da experiência sentimental, como naquele fogo
viram brilhar no olhar e no desejo contaminado
que arde sem se ver e a voluntária prisão da cria-
pelo olhar do outro.
tura amadora. Opera ainda e, por fim, para come-
O que seria o amor senão um fantasma, como
çarmos a falar do soneto, a distância inicial entre
afirma o poeta no verso ao início dos tercetos?
os amantes que faz, platonicamente, que cada qual
Uma assombração, uma sensação perfeitamente
crie uma projeção ideal do outro, que haverá sem-
comparável ao movimento de uma cobra que já
pre de competir com a pessoa real e falível, feita só
não se vê. Ao se darem conta do que sentem, o
de desejo físico, o mesmo desejo que os atrairá um
que se verifica é apenas o rastro, sombra do movi-
ao outro, desfazendo a ilusão necessária do amor.
mento, uma percepção de fim gravado como uma
Começamos a análise pelo primeiro quarteto,
tatuagem, no chão, na alma. Tudo isso, no entanto,
em que o eu-lírico fala da crueldade dos amantes
é sempre vago, é sempre leve impressão, e por isso
e da cegueira provocada pela idealização. Por que
ainda mais grave. Mais uma vez, o eco de Camões
seria este amor cruel, afinal? Em busca da resposta
se faz ouvir, é dor que desatina sem doer. É por ser
devemos atentar para o último verso: trata-se de
contraditório que o amor não pode ser rejeitado.
um encontro de inimigos. Mas em que sentido? Ou,
É por ser ao mesmo tempo suprema felicidade e
quem são os inimigos? Não é o amor a mais su-
suprema desolação que ele não é rejeitado, que
prema forma de aproximação? Novamente, é pela
segue sendo amarga armadilha.
disjunção de corpo e alma, ou ideal e real, que che-
Mordidos. Os amantes (e aqui, ao final, justi-
garemos à resposta. Os amantes são cada qual um
fica-se a imagem do réptil) sentem em suas veias o
duplo. Um tem ao outro, inventado, dentro de si
amor como um veneno, que termina por extinguir
(são os espelhos que cada um beija), frutos das ex-
aqueles outros idealizados, sem que possa haver
pectativas e da criação do primeiro tempo do amor.
qualquer antídoto para isso. Resta a dor, que não
Eis os inimigos, o outro ideal contra o outro real, descoberto a cada aproximação, física e espiritual. O verso que abre o segundo quarteto é de
cede. O existido (remissão clara ao trilho do terceto Este o nosso destino: amor sem conta,
anterior) seguirá visível na memória dos dois, e as-
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
sim se encerra o poema.
uma beleza (e talvez verdade) quase intolerável:
doação ilimitada a uma completa
os amantes foram estragados pelo mimo, pelos
ingratidão,
rançada, a visão amorosa em Drummond sugere
cuidados do início do amor. Já não serão capazes
e na concha vazia do amor à procura
que o amor continuará a se recriar, a se reinventar,
de sustentar os parâmetros estabelecidos por eles
medrosa,
apesar dos trilhos, ou mesmo por que contemplar
mesmos, no afã de impressionar e de estabelecer a
paciente, de mais e mais amor.
os trilhos será melhor que nada sentir. É o que en-
conquista, quererão ambos sentir o sabor da novi-
Amar a nossa falta mesma de amor,
contramos em Amar, quiçá o mais celebre de seus
dade, tão perecível aos afazeres e às corriqueiras
e na secura nossa, amar a água implícita,
poemas de amor.
atividades cotidianas. Daí que o enlaçar-se (a con-
e o beijo tácito, e a sede infinita.
Ainda que pareça profundamente desespe-
PRIMEIRO SEMESTRE
literatura
2012
68
Por Caco Coelho diretor de teatro
No ano em que se comemora o centenário do maior dramaturgo brasileiro, é chegada a hora de fazer uma releitura de sua obra dentro de seu real contexto
Nelson Rodrigues e o país do presente
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
69
de seu pai, Mário Rodrigues, chamado A Manhã,
Espetáculo A Mulher Sem Pecado, com direção de Caco Coelho
em dezembro de 1927, então com 15 anos. Seu
Foto: Luciane Pires Ferreira
pai se tornara o maior jornalista de seu tempo por
Cia. Teatro Mosaico (MT) apresentou Anjo Negro no 7º Festival Palco Giratório
causa da extrema força de identificação que produzia. Seus textos eram verdadeiras labaredas, que
Foto: Claudio Etges
não poupavam nem o presidente da República. Era um apaixonado pela ideia de um país diversificado, amplo, com audácia internacional. Percebia a ânsia popular e traduzia em comunicação. O modernismo determinava as novas linhas, e o irmão de Nelson, Roberto Rodrigues, fazia chegar Estamos no decorrer do ano do centenário
até o jornal nas ilustrações que celebravam a mor-
do escritor Nelson Rodrigues. Nelson é conside-
te como uma superação da vida. A união das mar-
rado, por unanimidade – aquela mesma que ele
gens que se tornava possível com a libertação dos
chamava de burra –, o maior dramaturgo brasi-
personagens proposta por Dostoievski e colocados
leiro. Mas ele também é o que mais textos teve
em cena por Pirandello, no aparecimento do Ab-
adaptados para o cinema. É o jornalista esportivo
surdo como uma chave de entendimento da vida.
mais citado até hoje. Sua coluna “A vida como ela
Seu outro irmão é que começa a tratar da faúlha
é...” talvez tenha sido a mais lida e comentada,
sensualista, em contos transbordados de beijos
e isto passados mais de 30 anos de sua morte.
selvagens. Nelson vai se formar nas redações dos
Suas 17 peças seguem sendo as mais encenadas,
jornais de seu pai, A Manhã e Crítica, na reporta-
chegando a ser 10 vezes mais encenado que qual-
gem policial. Ao mesmo tempo, já encontra espaço
quer outro autor. Seus 10 romances continuam
para arriscar seus primeiros escritos policromáti-
gerando interesse, servindo para novas adapta-
Sua maior contribuição às artes é justamente
ções teatrais ou televisivas. Tudo isso leva a crer
a criação de uma linguagem genuína. Não se de-
É em Crítica que Mário Rodrigues Filho vai
que Nelson Rodrigues pode ser considerado um
senvolve linguagem sozinho, nem de modo even-
inventar o jornalismo dedicado ao futebol. Até
dos maiores, senão o maior, escritor brasileiro de
tual. Ao retirar Nelson Rodrigues do seu contexto,
então, os esportes que predominavam eram o
todos os tempos.
ao atribuir a feitura de sua obra um cunho perso-
boxe, o vôlei, o remo. É fácil de entender quando
Entretanto, o fato é que ele, como boa parte
nalista, fruto de vicissitudes da vida, não se permi-
se lembra que tanto o Flamengo quanto o Vasco
de sua geração, teve por muito tempo um en-
tiu que fosse entendida que nas motivações ances-
da Gama são clubes de regatas. O futebol somente
foque distorcido do seu real sentido, ou melhor,
trais de sua obra estivesse presente tão somente
vai ganhar prestígio e se tornar uma profissão após
da sua mais concreta procedência, as raízes mais
como princípio estético a revelação do desejo de
a promoção realizada por Mário Rodrigues Filho,
profundas de onde sua obra surgiu, o contexto
uma brasilidade latente, do desejo de autonomia
primeiro em Crítica, depois no O Globo – Mário
de onde ela é fruto. Esta força de comunicação
de uma cultura que se formava. O Brasil acabava
começou no jornal no mesmo período que Rober-
está a evidenciar a potência contida na obra. En-
de ser refundado, na expressão de Lima Barreto,
to Marinho tinha herdado o jornal do pai, Irineu
tendendo-se por potência aquela capacidade de
após o fim da escravidão e a criação da nossa Re-
Marinho – e, mais tarde, no Jornal dos Sports. Má-
atingir o cerne do ser, estabelecendo uma ponte,
pública Federativa.
rio foi responsável pelas campanhas de profissio-
cos que lhe saltam da pena iluminada.
por meio do processo que se denomina identida-
Somente a partir daí é que foi possível o sur-
nalização do esporte, promoveu concursos entre as
de. É através da identidade que a sociedade pode
gimento de um tipo. A literatura regionalizada co-
torcidas, deu nome àquele que se tornaria um dos
se tornar mais humana. Não reconhecer aquele
meçava a ocupar espaço. É decisivo lembrar que até
maiores clássicos do futebol brasileiro, o Fla-Flu.
que está ao seu lado, preferindo um ser distan-
este momento o Brasil não possuía universidade,
Sua influência é tamanha, que o maior estádio do
te e frio, torna o país dependente. É por isso que
os jornais eram impressos fora do país, tratava-se
mundo, o Maracanã, recebeu o seu nome, com ele
Nelson Rodrigues falava que se sentia indo para
realmente do princípio da nossa formação cultu-
ainda vivo.
o estrangeiro quando ia até São Paulo ou quando
ral. As mulheres não tinham ainda direito ao voto.
Em Crítica, Nelson comenta sobre a disputa
cruzava a baía da Guanabara para visitar Niterói.
Nelson Rodrigues começa sua trajetória no jornal
que existe entre Leopoldo Fróes e Procópio Ferreira.
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
70
É sua primeira referência explícita ao teatro, nos
formação, A Mulher Sem Pecado. Estes artistas for-
idos de 1930. O teatro no Brasil a esta época era
mavam o grupo Os Comediantes.
feito, todo ele, por companhias, que ocupavam os
O português que se envolve com a cria-
teatros tanto públicos quanto privados. Era o que
dagem, a mulher fogosa, a volta por cima dos
ficou conhecido por teatro de repertório. De terça
negros como uma supremacia da nossa capaci-
a domingo, algo em torno de nove récitas manti-
dade, negada, o que viria a ser identificado mais
nham numerosas companhias profissionais.
tarde pelo mesmo Nelson, como o complexo de
Toda Nudez Será Castigada em montagem da Armazém Cia. de Teatro Foto: Claudio Etges
Começava a surgir um desejo de uma lingua-
vira-latas. Quando Os Comediantes procuram
gem própria ao mesmo tempo que brotava a aten-
Nelson para escrever uma peça na qual o que
son e outros que desejavam fazer do teatro um
ção com aspectos voltados à estética do espetácu-
estivesse em cena fosse possível de ser reconhe-
instrumento da potência implícita a uma nação
lo. Não mais apenas textos jogados fora na escuta
cido, a começar pela linguagem expressa, pela
que se identifica, o sentido coletivizante que isto
rápida do Ponto, aquele profissional que vinha a
localização, estava sendo rompida uma tradição
representa, não era o que as elites queriam. Veio
ser um dos mais disputados num mercado que era
de estar de acordo, era a proposta de uma revo-
a ditadura militar e esvaziou os teatros de suas
concreto. Foi então que jovens artistas que não
lução no seu sentido mais humano e transfor-
companhias. Onde antes havia o desejo coletivo,
queriam a pecha de serem chamados de atores,
mador. Foi quando Vestido de Noiva, um furor
foi substituído pelo personalismo descarado, che-
tamanho era o descontentamento com o teatro
cênico, foi referenciado como o marco fundador
gando à efeméride da celebridade. Antes, não ha-
que era feito, revelaram um jovem autor que aca-
do moderno teatro brasileiro.
via um grande ator que não fizesse parte de uma
bara de escrever um texto que pode ser tomado,
Mas não foi esse o caminho que foi vitorioso.
companhia, hoje não existe nenhum grande ator,
didaticamente, como uma exemplaridade da nossa
O teatro proposto pelos Comediantes, por Nel-
no modo de entender do sistema, aqueles que fa-
Cronologia Da Vida e da Obra 1912 Agosto, 23. Nasce, no Recife, filho de Mário Rodrigues e Maria Esther Falcão, quinto filho num total de irmãos que chegaria a 14. 1915 Seu pai, deputado e jornalista, vem ao Rio de Janeiro, tentando transferir-se com a família para a Capital Federal, incompatibilizado com a situação política em Recife. 1916 Junho. A família se transfere para o Rio de Janeiro e é recebida pelo poeta Olegario Mariano. Mario Rodrigues vai trabalhar como repórter político no jornal de Edmundo Bitencourt, Correio da Manhã, o mais importante da época. Agosto. Mudam-se para a Rua Alegre, nº 135, na Aldeia Campista. 1919 Frequenta a escola pública Prudente de Morais. 1922 Muda-se com a família para Rua Antônio dos Santos, atual Clóvis Beviláqua, na Tijuca. 1924 Muda-se para a Rua Inhangá, em Copacabana. Assume a direção do jornal Correio da Manhã poucos meses antes da promulgação da nova Lei de Imprensa. Agosto. Por levantar suspeitas sobre o presidente da República,
é condenado e preso por um ano. Durante este período, seu salário foi reduzido ao valor do aluguel onde a família morava. 1925 Agosto, seu pai deixa a prisão e, logo a seguir, abandona o jornal. Dezembro, 29. Entra em circulação A Manhã, primeiro jornal de Mário Rodrigues. 1926 É expulso do Colégio Batista, na Tijuca. Publica, com seu primo Augusto Rodrigues, o tabloide Alma Infantil, do qual saem cinco números. 1927 Abandona o Curso Normal de Preparatórios. Dezembro, começa a trabalhar como repórter policial no jornal de seu pai, A Manhã, quando a sede do jornal se transfere da Rua 13 de Maio para a Avenida, em frente à Galeria Cruzeiro. 1928 Publica 16 colunas assinadas no jornal A Manhã. Outubro, 3. Seu pai perde o controle acionário de A Manhã, abandonando o jornal. Novembro, 21. É lançado Crítica, novo jornal de Mário Rodrigues. Em seis meses, se transforma no matutino de maior circulação do
Brasil, atingindo a marca de 130 mil exemplares. Faz parte da equipe de reportagem policial conhecida como Caravana de Crítica. 1929 Publica oito colunas assinadas em Crítica. Maio. Passa o mês no Recife. Dezembro, 26. Seu irmão Roberto é alvejado por Sylvia Seraphim, senhora de sociedade, dentro da redação de Crítica, em represália à reportagem publicada no jornal. Roberto morre três dias depois. 1930 Março, 15. Morre Mário Rodrigues, em consequência de hemorragia cerebral. Outubro, 24. A redação de Crítica é empastelada e incendiada. Com o triunfo da Revolução, o jornal não volta a circular. Inicia-se um período de grandes dificuldades financeiras para a família. 1931 Trabalha em O Tempo, O Globo, Mundo Esportivo e na firma Ponce & Irmão. Junho, o irmão Mario Filho assume a parte esportiva de O Globo. Outubro, 12, dia da inauguração do Cristo Redentor, publica sua primeira crítica literária na seção O Globo nas Letras. Em dois anos, publica outras
12 críticas, duas delas falando do irmão assassinado. 1935 Abril. Tuberculoso, internase em um sanatório em Campos do Jordão. Junho. Retorna ao Rio de Janeiro, terminado o tratamento. Novembro, 18, publica um capítulo do livro Cidade, no jornal O Globo. 1936 Março, 30, escreve sua primeira coluna sobre ópera, na seção O Globo nas Artes Líricas. Em dois anos, assina 25 colunas sobre ópera. Abril. Acompanha seu irmão Joffre, internado em um sanatório de tuberculosos em Correias. Dezembro, 16, morre o irmão Joffre. 1937 Fevereiro. Reaparecem os sintomas da tuberculose. Retorna a Campos do Jordão. É redator de O Globo Infantil. 1939 Abril. Nova internação em Campos do Jordão. Passa a trabalhar também na revista Gibi, encarte de O Globo. 1940 Abril, 29. Casa-se civilmente com Elza Bretanha, casando-se no religioso em 17 de maio. 1941 Escreve sua primeira peça, A Mulher Sem Pecado. Agosto, 11. Nasce seu filho Joffre.
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
71
zem parte de alguma rede de televisão, nenhum ator consagrado neste meio está à frente de uma companhia de teatro. Para que pudesse permanecer agindo a favor da transformação, Nelson cria, somente então, depois de o Brasil perder a Copa do Mundo no estádio batizado com o nome do seu irmão, uma personagem que era ele próprio e se coloca na defesa da obra. O nascimento desta personagem contraditória está amplamente vinculado ao começo de suas crônicas esportivas. Ele mesmo se chama de reacionário, numa antevisão do que ocorria atrás da tão afamada cortina de ferro, ainda impossível de ser vista. F azia do seu canto uma proclamação brasileira. Seus textos, lidos hoje, com a clareza do tempo, permitem ver que ele era uma das únicas vozes que se expressava durante os anos de silêncio impostos pelos militares. Não existe uma só linha sua em defesa da
1942 Dezembro, 9. Estreia de A Mulher Sem Pecado, pela Comédia Brasileira, no Teatro Carlos Gomes. 1943 Janeiro. Escreve Vestido de Noiva. Dezembro, 28. Estreia de Vestido de Noiva, no Theatro Municipal, com Os Comediantes. 1944 Passa a trabalhar nos Diários Associados, em diversas publicações do grupo. Março. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim Meu Destino É Pecar, sob o heterônimo de Suzana Flag. Publicação, em livro, de Meu Destino É Pecar pela Editora O Cruzeiro. Junho. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim Escravas do Amor, sob o mesmo heterônimo. Julho. Publicação de Vestido de Noiva. 1945 Março. Nova internação em Campos do Jordão. Junho. Retorna ao Rio de Janeiro. Junho, 23. Nascimento de seu filho Nelson. Novembro, 23. Reestreia de Vestido de Noiva no Teatro Phoenix, com Os Comediantes.
1946 Janeiro, 18. Remontagem de A Mulher Sem Pecado pelo mesmo grupo. Fevereiro. Proibição, pela Censura Federal, de Álbum de Família, sob a alegação de preconizar o incesto e incitar ao crime. Inicia-se uma grande polêmica a respeito da peça. Publicação do livro Escravas do Amor pela editora O Cruzeiro. Junho. Publicação de Álbum de Família pelas Edições do Povo. Julho. Escreve, para a revista A Cigarra, o romance publicado na forma de folhetim Minha Vida, autobiografia de Suzana Flag. Escreve Anjo Negro. Setembro. Publicação do livro Minha Vida pela Editora O Cruzeiro. 1947 Escreve Senhora dos Afogados. 1948 Janeiro. Interdição de Anjo Negro pela Censura Federal e de Senhora dos Afogados. Abril, 2. Estreia de Anjo Negro, já liberada, no Teatro Phoenix. Julho. Escreve, para O Jornal, o romance publicado na forma de folhetim, Núpcias de Fogo, como Suzana Flag. Publicado em livro em 2001.
Compra uma casa no Andaraí para onde se muda com a família. 1949 Março. Escreve, para o Diário da Noite, a coluna Myrna Escreve. Durante o ano, publica 144 colunas respondendo a cartas de leitoras. Publicado em livro em 2002. Escreve Dorotéia. Julho. Escreve, para o Diário da Noite, o romance publicado na forma de folhetim, A Mulher que Amou Demais, sob o heterônimo de Myrna. Publicado em livro em 2003. 1950 Março, 7. Estreia de Dorotéia no Teatro Phoenix. Abril. Demite-se dos Diários Associados. 1951 Junho. Publica a reportagem No cemitério das mulheres vivas, na primeira edição do jornal Última Hora, de Samuel Weiner. Julho. Escreve, também para Última Hora, o romance publicado na forma de folhetim O Homem Proibido, como Suzana Flag. Publicado em livro em 1980. Agosto, 6. Estreia de Valsa nº 6, monólogo estrelado por sua irmã Dulce, no Teatro Serrador. Setembro. Escreve, para o jornal Última Hora, a coluna poético-
dramática Atirem a Primeira Pedra. Novembro. A coluna passa a se chamar A Vida como Ela É... Escreve, ao longo de 10 anos, em torno de duas mil colunas A Vida como Ela É..., transformando-se na coluna mais lida de todo o Brasil. 1953 Junho, 8. Estreia A Falecida no Theatro Municipal. Maio. Escreve, para o semanário Flan, edição dominical de Última Hora, o romance publicado na forma de folhetim A Mentira, primeiro assinado como Nelson Rodrigues. Publicado em livro em 2002. A Censura Federal libera Senhora dos Afogados. Agosto. Escreve, para o semanário Flan, a coluna Pouco Amor Não É Amor. 1954 Junho, 1. Estreia de Senhora dos Afogados no Theatro Municipal. 1955 Março. Vitória dos herdeiros de Mário Rodrigues no processo contra a União pela destituição de Crítica em 1930. Torna-se redator da Manchete Esportiva, continuando na Última Hora. 1957 Junho, 19. Estreia Perdoa-me por me Traíres no Theatro Municipal, com Nelson Rodrigues interpretando
literatura
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
72
opressão, ao contrário, o que dizia é que era um
Espetáculo Toda Nudez Será Castigada no Palco Giratório 2010
reacionário porque defendia a liberdade.
Foto: Claudio Etges
O Brasil vive, talvez, o momento mais próximo do tão sonhado país do futuro. Pela primeira vez na história, nossas posições influem. O mundo quer saber da boa-nova. E agora, passado todo este
potência de país tropical pudesse finalmente, após
período de dominação, o que temos a oferecer?
tanto descaminho, transbordar, colocar-se num
Que país pode ser identificado, qual a nossa cultura
rumo próprio. Seria necessário promover Comissões
dominante, no que nos transformamos? É, portan-
da Verdade por todos os lados, sobretudo, no campo
to, chegado o momento mais precioso em que a
cultural, educacional, onde foram feitas verdadeiras
nossa cultura, aqueles aspectos que realmente são
atrocidades, que permanecem sem qualquer que
relevantes para revelação dos nossos instintos mais
seja o reparo.
cravados na alma, seja revelada. Assim, será neces-
Nelson falava que a grande arte, a única exis-
sária a releitura da obra deste gênio de brasilidade,
tente, é a da releitura. Que neste ano o foco nas suas
em que os fatores fundantes da nossa nação são
motivações primordiais possa contribuir na valori-
proclamados de modo peremptório. Nelson era
zação da nossa autonomia. A eternidade de Nelson
parcial, sim, mas parcial a favor de um país onde
Rodrigues se afirma nessa permanente escavação
fossem consideradas as diferenças, onde a liberdade
do chão do ser humano, sua fragilidade e sua força.
fosse uma força querida da sociedade, onde a nossa
Cronologia Da Vida e da Obra o personagem principal, Tio Raul. Setembro, 13. Estreia de Viúva, porém Honesta no Teatro São Jorge. 1958 Remontagem de Dorotéia, em São Paulo, com Dercy Gonçalves no papel-título. Outubro, 17. Estreia de Os Sete Gatinhos no Teatro Carlos Gomes. É operado da vesícula, sofrendo graves complicações pós-operatórias. 1959 Escreve Boca de Ouro. Agosto. Inicia, na Última Hora, a publicação do romance em forma de folhetim Asfalto Selvagem, que se estenderá até fevereiro do ano seguinte. 1960 Publicação, em livro, de Asfalto Selvagem em dois volumes. Abril, 21. Assiste à inauguração de Brasília como correspondente da Última Hora. Outubro, 13. Estreia de Boca de Ouro no Teatro Federação de São Paulo com Ziembinski no papel-título. Escreve O Beijo no Asfalto. Começa a participar de mesasredondas esportivas na televisão. 1961 Julho, 7. Estreia de O Beijo no Asfalto no Teatro Ginástico. 1962 Novembro, 28. Estreia de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas
Ordinária no Teatro Maison de France. 1963 Separa-se de Elza, indo morar com Lúcia Cruz Lima em Ipanema. Junho, 20. Nascimento de Daniela, sua filha com Lúcia. Escreve a novela de televisão A Morta sem Espelho para a TV Rio. 1964 Escreve as novelas Sonho de Amor e O Desconhecido para a TV Rio. 1965 Junho, 21. Estreia de Toda Nudez Será Castigada no Teatro Serrador. 1966 Trabalha na TV Globo com o quadro de entrevistas A Cabra Vadia. Publica o romance O Casamento pela livraria Eldorado Editora. Setembro, 16. Morre seu irmão Mário Filho. Outubro. O Casamento é proibido por ordem do ministro da Justiça. 1967 Publica as Memórias de Nelson Rodrigues pelo Correio da Manhã. Fevereiro, 19. Morte de seu irmão Paulo, com a mulher e os filhos, no desabamento do prédio onde morava, em Laranjeiras, durante a grande enchente. Julho, 28. Estreia de Álbum de Família no Teatro Jovem. Dezembro, 4. Inicia a coluna Confissões em O Globo.
1968 Publica o livro de crônicas O Óbvio Ululante pela Editora Eldorado. 1969 Vai morar na casa de sua mãe, terminando seu relacionamento com Lúcia. Muda-se para o Leblon, indo morar com Helena Maria, sua secretária em O Globo. 1970 Muda-se para Cosme Velho. Tem hemorragia interna, provocada por duas úlceras perfuradas. É operado, sofre parada respiratória, tem enfarto e volta para o quarto com pneumonia. Publica A Cabra Vadia pela Editora Eldorado. Seu filho Nelson, militante do MR8, entra na clandestinidade. 1972 Março, 30. Prisão de seu filho, no Méier, pelos agentes de repressão política. Novembro, 9. Morre Milton, o irmão mais velho. 1973 Morte de sua mãe, Maria Esther, aos 84 anos. 1974 Fevereiro, 28. Estreia de AntiNelson Rodrigues no Teatro do SNT. Julho. É operado de um aneurisma da aorta abdominal em São Paulo. 1977 Abril. É internado às pressas com grave desidratação, provocada por colite ulcerativa.
Julho. Publica O Reacionário pela Editora Record. Dezembro. Reata seu casamento com Elza. 1978 Escreve A Serpente. 1979 Outubro, 16. Seu filho Nelson recebe a liberdade condicional. 1980 Março, 6. Estreia de A Serpente no Teatro do BNH, hoje Teatro Nelson Rodrigues. Dezembro, 21. Morre, às oito horas da manhã, de insuficiência cardiorrespiratória, no Rio de Janeiro.
Esta cronologia é baseada na que está presente na edição do Teatro Completo, organizado pelo professor Sábato Magaldi e acrescida de informações da pesquisa O Baú de Nelson Rodrigues, realizada pelo diretor Caco Coelho.
LEITURA
PRIMEIRO SEMESTRE
2012
73
PEDRO PÁRAMO
As Vidas dos Artistas Calvin Tomkins
a filosofia de andy warhol de a a z e de volta a a
EIS ANTONIN ARTAUD
Juan Rulfo Editora Paz e Terra, RecordeBestBolso
Editora BEI
Andy Warhol
Editora Perspectiva
Florence Mèredieu
Editora Cobogó
Um livro pequeno, fundamental
Biógrafo de Marcel Duchamp, o
Depois de Andy Warhol, a arte nunca
Com a edição de Eis Antonin
e prazeroso, ainda não
jornalista Calvin Tomkins reuniu no
mais foi a mesma. O filósofo Arthur
Artaud (C’était Antonin Artaud),
suficientemente lido em nosso país.
seu As Vidas dos Artistas - título,
Danto atribui a ele o marco da “arte
de Florence Méredieu, a França
Juan Rulfo nos leva para dentro da
aliás, que confessa ter surrupiado
pós-histórica”, um tipo de arte
resgata uma espécie de dívida
realidade mexicana em sucessivas
despudoradamente, da obra Le vite
liberta das amarras históricas e da
com o escritor, poeta, missivista,
camadas, nas quais se articulam
de’ più eccelenti pittori, scultori
perseguição da pureza modernista.
dramaturgo, roteirista, encenador,
a vida passada e presente. Em
e architettori de Giorgio Vasari,
Nos 1960, Warhol foi o maior
ator de teatro e cinema,
dado momento, o leitor se dá
escrito em 1550 - os perfis de dez
expoente da Pop Arte, que fundia
figurinista, cenógrafo, desenhista,
conta que personagens vivos
grandes artistas contemporâneos
alta e baixa cultura, retornava ao
pensador e criador do “Teatro da
e mortos convivem no mesmo
internacionais que, ao longo de
figurativo e encarava a obra de arte
Crueldade”. Escapando do mero
espaço, com naturalidade e sem
uma década, publicou na pulsante
como mais um produto da sociedade
relato biográfico e, sem cair na
qualquer horror.Tão de acordo com
revista The New Yorker. Ao escrever
de consumo. Experimentando
armadilha do “historicismo”,
o modo de sentir dos mexicanos,
estas emergentes biografias de
em diversos meios como pintura,
consegue contextualizar o processo
para quem o Dia de Finados é a
Damien Hirst, Cindy Sherman,
fotografia, cinema e música, Warhol
socioartístico em que Artaud
grande festa nacional, em que se
Julian Schnabel, Richard Serra,
também se aventurou pelo campo
transitou, desde seu nascimento,
dá caveiras de açúcar às crianças.
James Turrell, Matthew Barney,
editorial, publicando livros e revistas.
no final do século XIX, até a
Desde o início, o narrador Juan
Maurizio Cattelan, Jasper Johns,
Este livro foi lançado originalmente
primeira metade do século XX.
Preciado atiça nossa vontade de
Jeff Koons e John Currin, o autor
em 1975 e compila o pensamento
Para além da crueldade, como um
ler: “Vim a Comala porque disseram
lança um olhar bem próximo sobre
irônico do artista na forma de
capítulo inserido em “O teatro e
que aqui vivia meu pai, um tal de
estes artistas e como adentraram
pequenos verbetes que discorrem
seu duplo”, a autora enfatiza a
Pedro Páramo. Minha mãe que me
ao complexo e utópico mundo da
sobre temas como vida, arte, sexo,
“crueldade” que está impregnada
disse. E eu prometi que viria vê-lo
arte contemporânea.
dinheiro e, claro, fama. De certa
no itinerário de toda a sua
quando ela morresse”. Um clássico
forma, o livro antecipa a cultura
existência.
mundial que antecipa o melhor da
contemporânea de instantaneidade
literatura contemporânea.
e confusão entre público e privado típica das redes sociais.
Sidnei Schneider
andré venzon
leo felipe
Poeta, contista e tradutor
artista visual e diretor do museu de arte contemporânea do Rs
jornalista e dj, coordenador da galeria de arte da fundação ecarta
WILSON COÊLHO Dramaturgo e Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
Inscrições de 21/07 a 21/09 Categorias: Comerciário e Usuário
Confira o regulamento em www.sesc-rs.com.br/concursodefotografia
Realização