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segundo SEMESTRE
2013 ISSN 1984-056X
OS TRAJETOS DO PALCO GIRATÓRIO Também nesta edição
caderno de teatro: Ney Piacentini, Sérgio de Carvalho, BRECHT e a Companhia do Latão IV FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA EM PELOTAS
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
08
50
12
difusão cultural
artes cênicas
música
08 Os números do programa
12 Palco Giratório 2013:
50 Para o violista da Osesp Horácio Schaefer
Arte Sesc – Cultura por toda parte
Daniel Colin analisa espetáculos do festival
no ano de 2013
Festival Internacional Sesc de Música representa uma oportunidade para
20 Os trajetos percorridos pela Cia. Mungunzá 10 Projeto Recrearte leva cultura
e Guido Campos Correa, com Luis-Antonio
para cidades que não têm
Gabriela e BOI, no Palco Giratório Nacional
unidade do Sesc
alunos e professores 52 Trompista português Abel Pereira, da Orquestra Filarmônica de Berlim, estará pela
26 Mostra Sesc de Teatro de Passo Fundo 29 25 anos da Companhia Teatro di Stravaganza 36 A trajetória da Companhia do Latão do ponto de vista do ator Ney Piacentini, que fala do
segunda vez no Festival de Pelotas 54 Iná Eloísa Grabin escreve sobre o Festival na Comunidade em Uma inesperada pausa na rotina
seu ativismo cultural à frente da Cooperativa Paulista de Teatro; e a dialética brechtiana pelo diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho
DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
Zildo De Marchi
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Everton Dalla Vecchia
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
Jane Schöninger
Coordenadora de Cultura
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. General Zeca Neto, 1085 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403 Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973
Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brigadeiro Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684-3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Vale do Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
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CINEMA
ARTES VISUAIS
literatura
56 No artigo O cinema repensa o real e o
60 Ilustrador e escritor André Neves apresenta
62 Nova fase do projeto Sesc Mais Leitura
ficcional na internet, o produtor, roteirista e
imagens, esculturas entalhadas em madeira
promove a interação entre a literatura e
diretor Willian Mayer analisa a passividade
e outros objetos criados a partir do livro
outras manifestações artísticas como cinema,
do espectador diante de tudo que assiste a
Tom, na exposição O Imaginário de Tom: da
história em quadrinhos, música e teatro
partir do filme Depois das Aulas
Paleta à Letra, que circulou no Rio Grande do
com o objetivo de dinamizar o acervo das
Sul, no segundo semestre de 2013, por meio
bibliotecas Sesc
de uma parceria com o Sesc 65 Leitura
BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7750 Cachoeirinha Av. Flores da Cunha, 1320 Sala 805 51 3438.3249 Caçapava do Sul Av. XV de Novembro, 267 55 3281.3684 Frederico Westphalen R. do Comércio, 1013 55 3744.8193 Gravataí R. Álvares Cabral, 880 51 3043.7916 Guaíba R. São José, 433 Sala 01 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. XV de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Jorge Dariva, 941 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 8º andar 55 3423.1664 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Don João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Marechal Floriano, 488 Sala 17 54 3231.5883 Viamão R. Marechal Deodoro, 175 Loja 102 51 3434.0391
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Grace Prado
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.000 exemplares
CAPA
Ilustração extraída do livro Malvina, de André Neves
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segundo SEMESTRE
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Ilustração: André Neves, do livro Uma Festa no Céu
lazer e cultura Desde a década de sessenta, quando o Sesc foi criado, temos a cultura entre os nossos pilares de atuação. Mas em 2007, quando sistematizamos todas as ações culturais em um único ‘guarda-chuva’, o Arte Sesc – Cultura por toda parte, traçamos como diretriz a diversidade, a acessibilidade e a transversalidade, assim como a descentralização e a circulação. O desafio é grande, mas os números indicam que estamos no caminho certo. Conforme apresentado nesta edição da Revista Arte Sesc, a promoção da cultura no Rio Grande do Sul está chegando a centenas de cidades, com as mais variadas atrações, em que todas as manifestações culturais se fazem presente. Em 2013, também inovamos com a implantação da Unidade Móvel de Cultura e Lazer – Recrearte. A cada semana, a carreta chega a uma cidade diferente, levando apresentações teatrais e musicais, sessões de cinema, oficinas artísticas e recreativas. É como um palco sobre rodas, circulando pelos arredores da Capital. Cada cidadão, cada adulto, cada criança traduz de uma forma bem particular a sua própria significação para a expressão qualidade de vida. Entendemos que mais tempo para o lazer significa mais tempo para a saúde, assim como mais tempo para família significa mais tempo para si mesmo. E tudo isso é qualidade de vida. Com esse novo projeto, a nossa expectativa é grande de que as comunidades tenham mais momentos juntas, de convivência e de harmonia. O lazer e a cultura podem sim fazer a diferença e é nisso que acreditamos. Ainda nesta edição da Revista Arte Sesc, é possível conferir relatos de profissionais como Daniel Colin, Guido Viana, Sérgio de Carvalho, André Neves, entre outros, sobre os projetos culturais que têm se destacado no cenário rio-grandense e nacional. Boa leitura!
Zildo De Marchi
Everton Dalla Vecchia
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Diretor Regional Sesc/RS
DIFUSÃO CULTURAL
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Nosso Estado é grande não só no nome. Para uma equipe de 14 pessoas (incluindo músicos e equipe) poder circular e mostrar sua produção artística, é de extrema importância, além de contar com bons espaços de apresentação. Os palcos e as plateias precisam de boas condições estruturais para que a relação artista-público se efetue. Seja na rua, no teatro ou nas telas, a arte, a expressão artística, está sempre disposta a alcançar outro ser humano. Para nós da Funkalister, as quatro apresentações realizadas dentro da programação do Arte Sesc nos oportunizou chegar a municípios que ainda não tínhamos ido com nosso trabalho. Percebemos nessas cidades uma cena musical consistente e uma ótima receptividade à música instrumental que fazemos. Vida longa a projetos assim. Mateus Mapa Funkalister
DIFUSテグ CULTURAL
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DIFUSテグ CULTURAL
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Um caminhテ」o de atividades culturais Projeto Recrearte leva arte e lazer para as cidades que nテ」o contam com unidades do Sesc
DIFUSÃO CULTURAL
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Um novo projeto está levando cultura para as
e voltaram com seus familiares”, diz Iná Eloísa
comunidades de pequenas cidades do Rio Gran-
Grabin, agente de Cultura do Sesc Navegantes.
Fotos: Iná Eloísa Grabin
de do Sul desde o mês de agosto: é o Recrearte.
“É como um circo chegando à cidade, onde
Um caminhão que se transforma em palco e em
o espetáculo não inicia quando se abrem as cor-
tela de cinema, equipado com uma biblioteca in-
tinas, mas, sim, com a chegada da grande unida-
fantil, e que permanece em cada local por duas
de”, descreve a agente de Cultura. Normalmente,
semanas com atrações de teatro e música, além
as pessoas que dão o suporte local e auxiliam
de sessões de cinema de rua e recreação. O obje-
na montagem da estrutura já estão aguardan-
tivo é promover o acesso a atividades culturais
do sua chegada. Neste momento, quem passa
através das linguagens culturais apresentadas”,
de qualidade que possibilitem o desenvolvimento
pergunta o que está acontecendo e já surge a
afirma Iná.
integral de comerciários e demais moradores de
expectativa. Para a logística local, como agen-
Gustavo Bayni de Abreu, auxiliar de Cultura
municípios de abrangência das unidades opera-
damentos com escolas, divulgação e permissão
e Lazer do Sesc Navegantes, relata que quando
cionais do Sesc.
para permanência da unidade, o Sesc conta com
o caminhão chega à cidade e se instala nas pra-
a parceria das prefeituras municipais.
ças e nos parques é nítida a alegria das pessoas
As primeiras cidades a receberem o Recrearte foram as da jurisdição do Sesc Navegantes,
A programação inclui espetáculos teatrais,
que se aproximam. “Em Mariana Pimentel, havia
de Porto Alegre. A estreia foi em Charqueadas.
musicais, de dança e sessões de cinema. As
uma criança chorando na hora da apresentação
Depois, o caminhão que já chama a atenção da
atrações sempre são para todas as idades, para
do cinema, cheguei perto para ver se estava
comunidade desde a chegada pelas suas dimen-
todos os públicos. Alguns espetáculos, porém
acontecendo alguma coisa, e ela me disse que
sões e cores passou por Butiá, Eldorado do Sul,
são mais infantis, outros mais circenses. Nas
estava chorando de alegria, pois nunca tinha
Guaíba, Mariana Pimentel, São Jerônimo e Sertão
sextas e nos sábados à noite, geralmente é re-
visto um filme em uma TV tão grande – o telão.
Santana. A animação ocorre de quarta a domin-
alizado algum espetáculo musical, e um filme
Temos inúmeras histórias emocionantes, desde
go, sendo que nos dias de semana a prioridade é
é exibido. “O gratificante deste projeto é que
criança até idosos.”
atender aos alunos da rede pública, por meio de
ele proporciona acessibilidade à cultura para o
Quem disse que crianças preferem televisão
agendamentos das escolas. “Nos finais de sema-
público que não está acostumado, estimula a
e videogames, em vez de teatro, música, cinema
na, o público é espontâneo, mas percebemos que
prática da apreciação e contribui para a forma-
e literatura?
grande parte são as crianças que já participaram
ção de plateia, transformando esses indivíduos
SEGUNDO SEMESTRE
ARTES CÊNICAS
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POR Daniel Colin Encenador, ator, dramaturgo e integrante-fundador do grupo Teatro Sarcáustico. Mestre em artes cênicas (PPGAC-UFRGS) e bacharel em interpretação teatral (DAD-UFRGS)
ARTES CÊNICAS
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1 O grupo Teatro Sarcáustico surgiu em janeiro de 2004, do Trabalho de Conclusão do Curso de Artes Cênicas (UFRGS), de Andressa de Oliveira, Daniel Colin e Tatiana Mielczarski, intitulado GORDOS ou Somewhere Beyond the Sea. Nesses quase 10 anos de trabalho continuado, foram produzidos outros nove espetáculos profissionais, além de performances, oficinas, workshops e cursos de formação de atores. O Teatro Sarcáustico recebeu importantes prêmios do Estado (Açorianos de Teatro, Tibicuera de Teatro Infantil, RBS Cultura e Braskem em Cena) e é considerado uma das mais significativas companhias da cena teatral gaúcha contemporânea. Atualmente, o Teatro Sarcáustico é um dos grupos que integram o Projeto Usina das Artes, que prevê a ocupação do Centro Cultural Usina do Gasômetro em Porto Alegre, e é constituído pelos artistas Daniel Colin, Guadalupe Casal e Ricardo Zigomático.
PALCO GIRATÓRIO 2013: fábulas originais e dramaturgias cênicas Mais uma vez fui convidado pela Jane Schöninger,
Randevú (RS), Objeto Gritante (SP) e As Leviani-
coordenadora do Palco Giratório RS, para mediar al-
nhas (PE). Acredito que a característica que mais
guns dos espetáculos que integraram a programa-
interliga estes trabalhos é que todos se utilizam
ção da 8ª edição do Festival. Ano passado também
de uma dramaturgia original, cujo texto foi cria-
assumi o mesmo compromisso e pude ter contato
do especificamente para a cena, o que muito me
com trabalhos e artistas vindos de outras cidades e
fez pensar nos processos de linguagem que venho
estados do Brasil. Em 2013, não foi diferente: tive a
pesquisando junto com meu grupo aqui em Porto
oportunidade de conhecer a pesquisa de vários ar-
Alegre, o Teatro Sarcáustico[1], bem como me fez
tistas, de dança e de teatro, e, de certa maneira, pude
refletir sobre as dramaturgias cênicas que temos
fazer uma breve reflexão sobre os meios através dos
visto no teatro contemporâneo de vários lugares
quais a arte brasileira vem se estabelecendo nos pal-
do mundo.
cos do Brasil e do resto do mundo.
Natália Fernandes, no espetáculo de dança Objeto Gritante Fotos: Claudio Etges
Ao que tudo indica, todos os seis espetáculos
Desta vez, fomos quatro mediadores diferen-
citados tiveram suas dramaturgias construídas em
tes, cada um responsável por debater com seis pe-
processos de ensaios, sempre com a participação
ças. No meu caso, os espetáculos para os quais fui
do(a) diretor(a) na elaboração desta estrutura dra-
escalado para ser mediador eram de cinco estados
matúrgica, algumas adaptadas de obras literárias
diferentes do país (um deles, inclusive, sendo uma
(como Coração Randevú, inspirado em poemas
produção franco-brasileira): Luis Antonio-Gabriela
de Fernando Pessoa, por exemplo), outras a partir
(SP), Insone (ES), Ausência (França-Brasil), Coração
de entrevistas com pessoas reais (Luis Antonio-
ARTES CÊNICAS
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2 Segundo FÉRAL (2008, p. 204), “a etimologia da palavra événement [evento, acontecimento] (...) remeteria àquilo que acontece e talvez daí venha a sua associação com a palavra avènement [advento]”.
-Gabriela, da Cia. Mungunzá), ou ainda usando
Esses processos de elaboração de drama-
drama, à estrutura narrativa, à ficção e
um artigo jornalístico como inspiração (Ausência).
turgias para a cena vêm se configurando como
à ilusão cênica que a distancia do real, a
Foram diversificadas estas opções dramatúrgicas,
uma das características mais pujantes do teatro
performatividade (e o teatro performa-
fragmentadas e performáticas, coreográficas e so-
contemporâneo. Segundo Josette Féral (2008),
tivo) insiste mais no aspecto lúdico do
noras, fato que concorda com as reflexões de Pa-
a escrita cênica do teatro atual não se estrutura
discurso sob suas múltiplas formas –
trice Pavis (2008), segundo o qual
mais de maneira hierárquica e ordenada, mas, sim,
(visuais ou verbais: as do performer, do
de modo desconstruído e caótico. Ao introduzir
texto, das imagens ou das coisas). Ela
não se procura mais (...) elaborar uma
o evento (événement [2]) e reconhecer o risco, o
os faz dialogar em conjunto, comple-
dramaturgia que agrupe artificialmen-
“teatro atual” coloca em cena o processo, ainda
tarem-se e se contradizerem ao mesmo
te uma ideologia coerente e uma for-
mais do que o produto, o que o aproxima mais
tempo (FÉRAL, 2008, p. 207).
ma adequada e, frequentemente, uma
da performance art do que do teatro dramático.
mesma representação recorre a diversas
Para a autora, este elemento ajudaria a inscrever
Portanto, quando faço esta breve análise
dramaturgias. Não se fundamenta mais
uma performatividade cênica e, por este motivo,
sobre as dramaturgias dos espetáculos aos quais
o espetáculo apenas na identificação ou
ela propõe que chamemos este teatro que se faz
assisti no 8º Festival Palco Giratório, em momento
no distanciamento(...) Portanto a no-
hoje de “teatro performativo”: a performatividade
algum estou pensando em articular minhas refle-
ção de opções dramatúrgicas está mais
estaria no centro de seu funcionamento.
xões apenas acerca dos “textos dramáticos” dos trabalhos, mas, sim, da totalidade das obras cêni-
adequada às tendências atuais do que aquela de uma dramaturgia considerada
O ato performativo se inscreveria assim
como conjunto global e estruturado de
contra a teatralidade que cria sistemas,
princípios estético-ideológicos homogê-
do sentido e que remete à memória. Lá
a dramaturgia abrange tanto o texto de
neos (PAVIS, 2008, p. 114-115).
onde a teatralidade está mais ligada ao
origem quanto os meios cênicos empre-
cas, já que
gados pela encenação. Estudar a dramaturgia de um espetáculo é, portanto, descrever a fábula ‘em relevo’, isto é, na sua representação concreta, especificar o modo teatral de mostrar e narrar um acontecimento (PAVIS, 2008, p. 113).
SARCASMO E DOCUMENTÁRIO EM LUIS ANTONIO-GABRIELA (SP) O primeiro dos espetáculos que acompanhei foi Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá (SP), sobre o qual já escrevi no texto publicado sobre o festival do ano passado (“a obra ‘devastou meu coração’”, foi o que escrevi, exagerado e passional que sou...). Fã absoluto e confesso deste trabalho dirigido por Nelson Baskerville, continuo impactado pela potência do discurso e da poética do espetáculo, mesmo assistindo-o pela terceira vez em apenas dois anos. Para os desavisados, a obra narra a história de Luis Antonio, irmão do diretor Nelson, que se transforma em Gabriela em determinado momento da vida, quando a família inteira abdica de sua presença e da convivência com ela. “Partindo de um pressuposto absolutamente im-
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
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pactante – e corajoso! –, Baskerville consegue, não
nico – quase como se ele fizesse piada do caso...
somente (re)contar sua trajetória familiar de modo
“Ele contava as histórias e ria logo em seguida.
sensível e tocantemente sincero, como também o
E isso nos deu a liberdade de rir também”, comen-
faz de maneira incrivelmente criativa”, escrevi na
tou um dos atores. E, pela primeira vez, consegui
revista Arte Sesc em 2012. Como no ano passa-
compreender um detalhe que me fez apaixonar
do, vi mais uma vez o Teatro Sesc absolutamente
pelo espetáculo: que esse deboche escancarado
lotado, com a plateia envolvidíssima e chorando
surge naturalmente na dramaturgia cênica de Luis
muito, comentando e indicando bastante aos ami-
Antonio-Gabriela, como na belíssima passagem em
gos, tanto no Facebook quanto presencialmente,
que Gabriela morre e logo em seguida, se levanta
completamente tocada que estava pelo trabalho
cantando debochadamente (mais ou menos assim)
da Mungunzá. Neste ano, contudo, com a opor-
“Eu morri... Me fudi... Eu morri...”. Irônico, triste, sar-
tunidade de conversar brevemente com o elenco,
dônico e profundo. Algo que eu almejo pros meus
por meio do bate-papo ao final da apresentação,
trabalhos e que venho pesquisando há anos: como
lembro-me de perguntar como foi para eles lida-
rir das nossas tragédias. Como utilizar o riso como
rem com um tema tão forte e tão traumático do
elemento crítico e sério também, por que não?
diretor e, mais ainda, como foi o processo de “in-
Como estrutura dramatúrgica, o grupo opta
vadir” as memórias de Nelson para, a partir delas,
por construir uma narrativa cronológica, inician-
criarem o espetáculo e as personagens. O elenco
do-se com o nascimento de Luis Antonio até a sua
pareceu-me convicto ao responder que, no fundo,
morte, agora Gabriela. Há, contudo, a inserção de
não foi tão pesado assim, já que o próprio diretor
cenas de flashbacks e o distanciamento da ence-
lida com esta história de modo debochado e irô-
nação, já que os performers narram o espetáculo
Luis-Antonio Gabriela, da Companhia Mungunzá, e Insone, do Grupo Z de Teatro Fotos: Claudio Etges
todo o tempo. Nelson leva à cabo a ideia de “teatro documentário” e não nos poupa de informações concretas nestas narrações, como datas, documen-
intérpretes, os quais performam sobre “os estados
tos e locais específicos. A utilização de imagens re-
de sono e vigília, os sonhos, pesadelos e a insô-
ais de Gabriela e de outras personas representadas
nia, mostrando o homem contemporâneo entre
pelos intérpretes (inclusive do próprio Nelson) tor-
a sua necessidade de repouso e as exigências
nam todo o espetáculo ainda mais magnetizante.
de um mundo cada vez mais veloz, vertiginoso”,
Mais uma vez, Luis Antonio-Gabriela foi o auge do
segundo a própria sinopse do espetáculo. É um
festival em Porto Alegre sem sombra de dúvida!
ponto de partida bastante vago, mas pertinente, que aguçou minha curiosidade assim que li so-
DESCONEXÃO E INCÔMODO EM INSONE (ES)
bre o espetáculo e vi imagens deste na internet.
Insone é um espetáculo que não sabe bem se é te-
Curiosidade ampliada quando me deparei com
atro ou se é dança. Ou se é ambos. E essa preocu-
os quatro performers deitados naquele enorme
pação parece não ser pertinente ao Grupo Z de Te-
colchão instalado sobre o palco do Teatro de
atro (apesar de seu próprio nome apontar pra uma
Arena. O público adentra o espaço e se depa-
direção...). Acho que um dos grandes méritos do
ra com quatro sujeitos incapazes de “pregar os
trabalho seja justamente esse: mesclar as duas for-
olhos”. Bela imagem! Contudo, preciso dizer que
mas artísticas até um ponto em que ficamos nos
a obra não conseguiu atingir-me em cheio: repe-
questionando “o que diabos é isso que estamos
titiva e linear, Insone conseguiu ser no máximo
vendo?” (pergunta que, para mim, cada vez mais se
cansativa e desconfortável, como se eu estivesse
torna fundamental para a arte contemporânea!).
sentado ali no teatro por cerca de quatro horas...
O espetáculo se constroi e se apresenta so-
em um trabalho de 40 minutos! Por um lado,
bre um grande colchão, único elemento cênico,
acredito que este seja mesmo o objetivo da obra:
literalmente impactante, que comporta os quatro
colocar-nos em estado de insônia, insuportável,
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
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no qual não conseguimos descansar nem ter o prazer do sono. Suas cenas são fragmentadas e
Objeto Gritante
Fotos: Claudio Etges
pretendem mesmo reproduzir os estados citados na descrição do espetáculo, mas tudo nos atinge mornamente, já que as coreografias parecem desconexas e sem propósito, nunca se definindo como um “sonho bom” ou um “terrível pesadelo”. Confesso porém que não sei dizer ao certo se o tédio que senti na – e “da” – plateia surgiu por causa da temática ou se pela execução do espetáculo, se é que me faço entender. Porque se, como escrevi anteriormente, a mistura entre linguagens é um ponto forte do espetáculo, por outro lado, este ponto se torna frágil porque nem o teatro nem a dança me parecem bem-sucedidos. Os textos são fracos e ditos sem potência e os movimentos não são bem executados por alguns dos intérpretes – a que melhor se sai dentro da proposta dos diretores é Alexsandra Bertoli, que capta nosso olhar com sua forte presença cênica. Saí do teatro com uma sensação de noite mal-
transformando conforme a necessidade das ence-
acrescentam vivacidade e ritmo às dramaturgias
-dormida, insone que sou. E, sinceramente, não
nações. Além disso, os espetáculos, apesar de não
sei se isso foi bom para o espetáculo... Porque
da Dos à Deux. Em Ausência, os sons dos ratos fa-
utilizarem o recurso da fala, elaboram uma narra-
mintos ou dos canos secos tornam-se personagens
mais do que incomodar, para mim a peça foi de-
tiva clara e linear, fiéis às histórias que pretendem
que contracenam com Melo em várias passagens
sinteressante por vários momentos.
contar. Foi assim em Saudade...; depois em Frag-
da peça, por exemplo.
mentos do Desejo; e agora em Ausência. Com uma
Detesto comparações entre um trabalho e
diferença bastante peculiar: neste último, nem Ri-
outro da mesma companhia, como se eles fos-
beiro nem Curti estão em cena. Luis Melo, um dos
sem interdependentes, mas, ao mesmo tempo, me
Acredito que Porto Alegre, como várias outras
melhores atores brasileiros, mergulha de cabeça
parece agora uma maneira eficaz de visualizar a
cidades do mundo, é realmente apaixonada pelo
no processo intenso da Dos à Deux para encar-
evolução do trabalho da Dos à Deux... Sem a po-
trabalho da companhia franco-brasileira Dos à
nar neste monólogo um homem solitário à espera
Deux graças sobretudo ao inesquecível espetácu-
tência dilacerante de Saudade em Terras D´Água,
do apocalipse. Mais uma vez sem a utilização de
lo Saudade em Terras D’Água, ao qual tivemos a
ou mesmo o desbunde visual de Fragmentos do
palavras, Ausência constrói um universo futurista
Desejo, ainda assim, Ausência se fez marcante
no qual um homem está isolado em seu terraço,
pela feliz parceria entre as experiências de Luis
gramação do Porto Alegre Em Cena. Lembro-me
acompanhado apenas de seu peixe-beta. Ambos
Melo e da Dos à Deux, ambos grandes nomes do
perfeitamente de sair do Teatro Renascença aos
dividem a mesma água, cada dia mais escassa.
teatro brasileiro.
prantos, inebriado com tamanha singeleza em um
Apesar de denso, o espetáculo nunca é tedioso,
espetáculo em nada simples. Muito pelo contrá-
graças à inventividade das cenas e ao trabalho de
rio: André Curti e Artur Ribeiro, responsáveis pelo
Melo, lindamente conduzido pelos diretores. Para
MEMÓRIA E POESIA EM CORAÇÃO RANDEVÚ (RS)
grupo, especializaram-se em trabalhos comple-
mim, é impressionante como o ator consegue ser
Zé Adão Barbosa é um dos mais importantes ato-
xos e engenhosos para tratar de assuntos muitas
emocionante mesmo inserido em uma técnica por
res do Rio Grande do Sul, tendo em seu currículo
vezes delicados. Somos sempre brindados com
muitas vezes severa e distante.
quase 30 anos de trabalho voltados para o teatro,
SONORIDADES E GESTOS EM AUSÊNCIA (FRANÇA-BRASIL)
oportunidade de assistir há alguns anos na pro-
um trabalho corporal hipnotizante (resultado de
Outra característica muito forte nos trabalhos
o cinema e a televisão, além de ser um dos mais
suas pesquisas sobre o teatro gestual) atrelado a
do grupo é que o silêncio existente em relação à
famosos professores de interpretação da cidade.
uma cenografia extremamente criativa, que vai se
fala é sempre confrontado com músicas e sons que
Em Coração Randevú, Zé celebra três décadas de
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
17
palco nos brindando com um monólogo delicado
de uma maneira tão passional e crível que, como
que misturam clássicos do cinema e imagens
e ao mesmo tempo rústico dirigido por Patricia
descrevi anteriormente, nunca sabemos quando
especialmente gravadas para a peça; cenogra-
Fagundes. O espetáculo se constrói a partir de
o espetáculo se debruça sobre histórias reais ou
fia formada por instrumentos musicais/equipa-
poemas de Fernando Pessoa, atrelados a memó-
sobre poemas. Em tempos de performatividades
mentos sonoros, além de caixas/malas; figurinos
rias do próprio ator, como quando ele apresenta
e teatro-danças (sem querer ser pejorativo e já
que são expostos e reaproveitados em cena;
a sua fantasia de palhaço de quando era crian-
sendo...), ainda é reconfortante ouvir um belo texto
narrações de casos e acontecimentos pessoais
ça, por exemplo. É tudo muito bem costurado e
ser proferido. E cantado também (que versão linda
dos intérpretes; utilização de espaços cênicos
acabamos nos perdendo entre quais palavras são
é aquele tango musicado pelo Francis Hime, hein?
reduzidos. Se são estas as principais caracterís-
memórias do ator e quais foram escritas pelo
“Beijo na boca todas as prostitutas / Beijo sobre
ticas dos espetáculos da Cia. Rústica, não há o
escritor português, o que torna o trabalho parti-
os olhos todos os souteneurs...”)!!! Foi gratificante
menor problema, mas acredito que sendo uma
cularmente excelente, propiciando um jogo cons-
ver uma peça tão boa ser apresentada por colegas
parceria entre o grupo e a Casa de Teatro, talvez
tante entre ficção e realidade.
de trabalho (apesar de nunca ter trabalhado com
o espetáculo pudesse sofrer um pouco mais as
nenhum dos dois, os admiro muito e os considero
influências das experiências do ator.
Confesso aqui que minha maior curiosidade era compreender como Zé Adão, ator stanis-
meus colegas...).
lavskiano experiente com textos clássicos, conse-
Gostaria, entretanto, de expressar que ado-
guiria mesclar sua técnica à direção de Patrícia,
raria ver o trabalho da Patricia Fagundes ser um
VAIDADE E MOVIMENTO EM OBJETO GRITANTE
que ultimamente tem se debruçado sobre espe-
pouco mais influenciado pela participação do
Preciso ser honesto e começar dizendo que sem-
táculos autobiográficos, como Clube do Fracasso
Zé: apesar de sentir que a diretora conseguiu
pre me sinto desconfortável quando escrevo
e O Fantástico Circo Teatro de um Homem Só.
delicadamente inserir o ator em sua linguagem
sobre espetáculos de dança, porque não é exata-
E preciso registrar que saí bem satisfeito: acredi-
e de resolver a estrutura dramatúrgica de ma-
mente uma linguagem que eu tenha aprofunda-
to que o ator conseguiu mesmo se entrosar bem
neira muito interessante, fiquei com a sensação
da compreensão para argumentar elementos que
aos processos da diretora. Zé Adão está excelen-
de déjà vu ao assistir a este trabalho, quando
constituem a obra. Por isso, sempre opto por ser
te, sobretudo por um motivo bastante específi-
constatei a utilização dos mesmos recursos
fiel ao meu olhar como espectador, ciente de que
co, que parece besteira mas, no fundo, não é: ele
que ela vem utilizando em seus últimos espe-
as percepções do público também são importan-
consegue dizer as palavras de Fernando Pessoa
táculos frente a seu grupo: projeções de vídeo
tíssimas para a análise do trabalho.
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
18
Objeto Gritante se inicia com uma coreografia interessante, muito bem executada por Natalia Fernandes, enredada em uma cenografia belíssima
As Levianinhas, da pernambucana Companhia Animée, traz ótimas canções com arranjos diferentes Fotos: Claudio Etges
HUMOR E ALEATORIEDADE EM AS LEVIANINHAS (PE) Foi uma deliciosa tarde com As Levianinhas, es-
de Mauricio de Oliveira e André Mello. Com movi-
petáculo infantil da Cia. Animée (PE). Depois de
mentos truncados, Natalia vai instituindo espaços
criarem As Levianas, uma banda composta por
com seu movimento, evoluindo em seu próprio
quatro palhaças e seu show homônimo, repleto
espaço, um corpo-lugar potente. Espaço do corpo
de canções bregas, o grupo decidiu então criar um
este compreendido por José Gil (2001) como
repertório especificamente voltado para as crianças e a ideia não poderia ser mais feliz. Na ses-
espaço a vários títulos paradoxal: dife-
são a que assisti, a gurizada estava absorta com
rente do espaço objetivo, não está se-
o show das palhaças, que arrebatou inclusive os
parado dele. Pelo contrário, imbrica-se
mais velhos. Como show, a obra funciona muito e
nele totalmente, a ponto de já não ser
cativa a todos, com arranjos diferentes e canções
possível distingui-lo desse espaço (...) o
ótimas, como Biquíni de Bolinha Amarelinho e The
espaço do corpo é a pele que se prolon-
Lion Sleeps Tonight, esta um dos pontos altos da
ga no espaço, a pele tornada espaço. De
peça. Eu, porém, acredito que o trabalho poderia
onde a extrema proximidade das coisas
ser muito mais aprofundado se tivesse um olhar
e do corpo (GIL, 2001, p. 57-58).
mais apurado de direção, já que algumas gags e cenas não funcionaram eficazmente, tornando as
As dramaturgias do espetáculo (assim eu cha-
transições entre as músicas o ponto fraco de As
mo... não sei bem se a dança assimila esta mesma
Levianinhas. Além disso, um repertório mais coe-
designação para os elementos da cena) se confi-
so poderia tornar o espetáculo mais “redondinho”:
guram destes espaços criados pelos bailarinos e
por mais que as músicas escolhidas sejam carismá-
mergulham no questionamento sobre os próprios
ticas e bem executadas pelas palhaças, a seleção
processos artísticos e as razões pelas quais os ar-
das canções parece deveras aleatória e confusa se
tistas defendem estes processos. Acho que é uma
pensarmos na obra como um todo. Aqui, mais uma
reflexão absolutamente pertinente e que encontra
vez, um diretor poderia ter auxiliado na elaboração
sua metáfora mais contundente na figura de Rino,
destas escolhas cênicas.
um artista-monstruoso-animalesco que insiste em
O trabalho das atrizes é excelente: Nara Me-
“mostrar-se” em sua performance ególatra e vai-
nezes (Aurhelia), Tâmara Floriano (Tan Tan) e Ju-
dosa, autocentrada e autoendeusada, como tantas
liana de Almeida (Baju) são engraçadíssimas, com
que vemos por aí, às vezes em nossos próprios espe-
timing cômico exemplar. A única figura que destoa
táculos... Inclusive, quantas vezes não fomos Rinos
deste contexto, impressionantemente, é Enne Marx
em nossos trabalhos?! Na apresentação em que eu
(Mary En), uma das idealizadoras do grupo e do
estava, Rino gritou, correu pela plateia, saiu da sala,
projeto. Enne pareceu-me deslocada e desatenta
tão empolgado que estava em “roubar o foco todo
na apresentação, prejudicando, inclusive, algumas
para si”. Tudo isso com a outra bailarina tentando
das cenas de transição.
acalmá-lo: “Não, Rino... Volta pra sala, Rino...”. Ao
Entretanto, de modo geral, o grupo funciona
final da cena, Rino é decapitado e tem sua cabeça
muito e tem o mérito de enganar bem a plateia, fa-
ostentada na parede até o fim do espetáculo. Torna-
zendo-se passar por musicistas e cantoras; confor-
-se onipresente. Aliás, os objetos de Duda Paiva e
me disse a elas, por vários momentos me perguntei
André Mello, como a cabeça do Rino e a máscara
se eram cantoras que decidiram virarem palhaças
feita de vários rostos, são impressionantes! Trazem
para fazer um show ou vice-versa. Afinadas, cati-
aos bailarinos possibilidades incríveis de movimen-
vantes, simpáticas e hilárias. Um espetáculo feito
tos, como na tocante cena dos dois velhos.
por atrizes – e que só por causa delas se sustenta.
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
19
3 A dramaturgia de CNPJ: uma comédia totalmente ficcional é assinada por mim e por Thais Fernandes, a partir das improvisações dos atores Guadalupe Casal, Juliana Kersting, Ricardo Zigomático e Daniel Colin.
EXORCISMO E MISCELÂNEA EM CNPJ: UMA COMÉDIA TOTALMENTE FICCIONAL (RS) Decidi criar um adendo neste texto para escrever um pouco sobre o novo espetáculo do Teatro Sarcáustico, no caso mordaz CNPJ: uma comédia totalmente ficcional. Se faço este epílogo ególatra (“Sai desse corpo, Rino...”), é porque acredito que este trabalho também faz as mesmas conexões dramatúrgicas que os outros seis aqui descritos. CNPJ... estreou oficialmente na programação do Palco Giratório com uma dramaturgia perversa que encarcera quatro funcionários em uma mesma sala e força-os a se combaterem até que a verdade surja à tona: qual deles roubou a empresa em que trabalham? Ao que tudo indica, todos têm o “rabo preso”, bem como possuem informações confidenciais sobre os outros funcionários. O texto dramático utiliza como referência improvisação
mentos cênicos: uma trilha sonora que mistura o
proponho que podemos ter uma noção do teatro
dos atores sobre fatos reais acontecidos com eles
rap sul-africano do Die Anterwood com clássicos
feito em outros estados com esses espetáculos a
em outros trabalhos ou relacionamentos profissio-
de musicais hollywoodianos; uma cenografia en-
que podemos assistir durante o festival, acredito
nais, em filmes com temáticas semelhantes (como
xuta e clean que vai sendo invadida por uma in-
que o Sarcáustico vem contribuindo para a exce-
Psicopata Americano, de Mary Harron, e O Método
finidade de objetos; uma fábula fragmentada que
lente participação do teatro gaúcho na mostra,
– O que você faria?, de Marcelo Piñeyro), em textos
se desloca no tempo e no espaço; atuações que
agregado ao trabalho de outros importantes gru-
jornalísticos e e-mails agressivos, além de outras
mesclam representação de personagens e jogos
pos como o In.Co.Mo.De-Te, a Cia. Stravaganza, o
várias fontes de inspiração. Este processo de utili-
performáticos; um reality show que elege, a cada
Depósito de Teatro, a Cia. Gente Falante, a Caixa do
zar referências diversas para criar um espetáculo-
apresentação, o melhor ator da apresentação; uma
Elefante, a Cia. Rústica e tantos outros. Assim, es-
-pastiche vem sendo, acredito, uma das maiores
narrativa que apresenta quatro finais possíveis e
tamos todos construindo este grande festival que
características dos trabalhos e performances do
diferenciados, o que muda completamente o des-
o Sesc propicia à comunidade e à cultura do Brasil!
Sarcáustico, cujo maior exemplo seja Wonderland
fecho da fábula. Tudo regado a sangue, vômito e
e o que M. Jackson Encontrou por Lá (Prêmio Aço-
veneno. Um espetáculo de exorcismo, produzido
rianos de Melhor Dramaturgia), uma obra cultuada
para livrar toda a equipe de processos desagradá-
por sua encenação que valoriza uma miscelânea de
veis pelos quais estávamos passando. Daí, a fúria e
informações, característica própria do mundo pop
o incômodo que pontuam a encenação.
contemporâneo.
Perdoem-me se abro este espaço aqui para
Eu, como diretor e um dos dramaturgos de
falar sobre o meu próprio trabalho, mas sincera-
CNPJ..., acabo por configurar e estruturar a en-
mente não acredito que ele seja só meu e, mais do
cenação pelo casamento destas funções, sempre
que isso, acho que, de uma forma ou de outra, o
elaborando a obra pelos dois vieses. Confesso que
Teatro Sarcáustico é um grupo que vem compac-
eu mesmo nunca sei quando estou sendo diretor
tuando com o Palco Giratório desde que o grupo
ou quando estou elaborando a dramaturgia do
completou cinco anos e participou do Festival em
espetáculo: para mim tudo se mistura e se com-
2009 com três espetáculos diferentes. De lá para
plementa. Desta forma, assimilo à cena elementos
cá, foram várias as participações, por meio das
que são fundamentais para a construção do texto
quais pudemos rever o nosso próprio trabalho,
e vice-versa. Se os processos de escrita são caóti-
com o retorno do público e de profissionais da área
cos e “miscelânicos”, assim também o são os ele-
envolvidos com o Palco Giratório. Por isso, quando
[3]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta – Revista de Artes Cênicas. São Paulo: PPG Artes Cênicas USP, 2008, nº 8, p. 197-210. GIL, José. Movimento total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2008.
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
POR Cia. Mungunzá de Teatro
20
circuito PALCO GIRATÓRIO
CULTURA DO PÓLEN PRA NUNCA MAIS SERMOS OS MESMOS
infundadas. E tivemos uma aula de percepções.
sério demais. Somos um estado que se leva a sério
No dia 31 de março de 2013, dez pares de pernas
Espaço escadaria em Arcoverde. Um rapaz fecha
demais. Quando nos vimos longe, vendo o mundo
saltaram do chão de São Paulo rumo a tudo. Para
os olhos e, intencionalmente, se deixa ninar por
pelos muitos olhos de cada povo, pudemos olhar
nunca mais serem as mesmas.
uma música da cena. Uma das maiores bênçãos
para nosso pequeno “estado de alerta” que é São
Nós, que nascemos há pouco e nem tínha-
de se fazer um espetáculo épico, é poder assistir à
Paulo e ter mais compaixão de como levamos nos-
mos os pés suficientemente plantados no chão,
plateia. Uma menina de quatro anos aplaudindo
sa vida. De como nossa cultura foi criada a partir
repentinamente nos vimos alçados da terra. Da
veementemente em cima do ombro do pai. Um
de um amálgama de culturas externas ao Brasil e
nossa ilusão de terra. Tínhamos um espetácu-
homem que quer sair no meio da peça pra ligar
internas dele. De como tivemos que suprir as ex-
lo e muitos braços cheios de querer fazer sem
pro irmão e dizer para este vir assistir porque a
pectativas das mais variadas regiões do mundo. De
saber por onde.
peça é boa. Um rapaz que se escandaliza com
como nossas ideias, vestimentas, gastronomia são
o fato da peça começar sem atrasos, e o teatro
um misto de tudo o que se vê em todos os lugares.
O EQUÍVOCO JESUÍTA
não dar essa informação. Gente saindo no meio
Talvez por isso a dificuldade de nos sentirmos em
Depois de dois anos sedimentados num palco
da peça indignada. Gente ficando até o final, não
“casa” numa cidade que é tantas casas ao mesmo
fixo, esse mesmo palco se pôs a girar. A gente sai
menos indignada. A naturalidade e a leveza que o
tempo. De entender nossa estima de vitrine, nossa
com uma ingênua visão missionária: vamos le-
ato teatral pode ter fora do rigor com que apren-
personalidade que se compõe como um camaleão
var cultura ao restante do país. E ao sair da nossa
demos a revesti-lo foi um grande aprendizado.
a cada dia que passamos sem que percebamos.
metrópole tão cultural para levar a “nossa cultura”, na próxima esquina nos deparamos com o
DAS REGIONALIDADES
significado real de cultura. Aquilo que se cultiva. Ponto. Quanto mais nos distanciamos de nossa
“Para se conhecer é preciso sair de si.”
pluralidade mais nos aproximamos das raízes
José Saramago – A Ilha Desconhecida
de culturas muito singulares. A cultura de cada nicho é tão arraigada que não precisa chamar a
Fomos a pretexto de nos levar aos outros e aca-
si mesma de “cultura”. É tão orgânica e está tão
bamos por nos recolher dos outros. Levar um es-
intrínseca na forma como as pessoas levam sua
petáculo de norte a sul do país é também colher
vida em seu cotidiano que contamina quem passa
espetáculos. Colhemos 41 espetáculos distintos
por perto. É essa a beleza das culturas regionais
girando pelo país. E cada sala desta casa-país nos
que conhecemos: elas não se pretendem. Elas são.
recebe com seu café a seu modo. Minas é o ce-
Nós saímos da casca paulista, do “fervor cultural”
leiro do riso gostoso. Percebemos que nossa peça
que se apercebe como tal, que se expressa como
também podia ser comédia e leve e simples assim
tal, mas que, celularmente falando, ainda somos
como os mineiros. Os mineiros nos deram de pre-
preocupados em mostrar que somos. Esse foi o
sente a simplicidade do gesto de apenas “espec-
primeiro de uma série de pré-conceitos que fo-
tar” do espectador. Dos mineiros, colhemos o riso
ram desabando a cada dia.
e a simplicidade do aconchego. No sul/sudeste
Luis Antonio-Gabriela no sertão de Pernam-
a cumplicidade de uma plateia que, como nós,
buco! Como será? Estarão preparados? Estaremos
se aprofunda na cadeira do começo ao fim de
preparados?
forma irrespirável e desaba ao final. O sul sofre.
Que ideia fazíamos do sertão de Pernambu-
Nós somos paulistas e sabemos disso. Sabemos
co e da Bahia que não fosse a distância do mapa?
o que é chegar ao teatro pronto para sofrer pelas
Nenhuma. Ou melhor, uma série de conjecturas
próximas duas horas. Sabemos o que é se levar a
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
21
Pelo Palco Giratório Nacional, espetáculo foi apresentado em 41 cidades do Nordeste ao Sul do país Fotos: Claudio Etges
Nossas padarias, farmácias, amor aos pedaços, de-
“Minha mãe estava grávida de mim quando se
livery 24 horas, nossa cidade que não dorme forma
queimou com café quente. Por isso eu nasci com
pessoas que também não dormem. Sair daqui, des-
essa mancha, é do café quente que caiu nela e
se contexto cultural, e percorrer a imensidão de um
vazou pra mim.” / “Eu sempre fui muito apegada
país que só vemos nos mapas do livro de geografia
com minha mãe.” / “Eu me queimei muito feio e
é, no mínimo, curioso.
minha vó jurou que cloro sarava.” / “Mastruz. Ju-
Não fomos apenas levar esta peça. Fomos
mento derrubando os baldes de água que eu penei
colher os pedaços do qual somos compostos e
pra pegar. Caí.” / “Quando eu tinha que ir pra es-
não sabíamos. Nossa cultura mosaico paulistana
cola, ela me acompanhava até o ponto de ônibus
não é apenas muito rica, mas também promís-
pra gente ficar conversando e depois voltava pra
cua. Nós nos misturamos demais sem saber exa-
casa.” / “Essa eu fiz com meu piercing, andando de
tamente aquilo que nos pertence. E, com muito
bike em Berlim.” / “Meus pais se separaram mas
amor, voltamos e constatamos que talvez seja
continuaram morando na mesma casa.” / “Tomei
isso mesmo, e cada um nasce no nicho no qual
remédio que deixava o xixi azul e fiquei achando
será mais útil à sociedade e à humanidade. Somos
que era menstruação masculina.” / “Um ano eu e
bichos de mistura. Conhecemos bichos de raiz. E
meus irmãos fomos viajar pra casa dos meus avós
é tão lindo ver a raiz das coisas. Ver como se bate
e minha mãe ficou em casa para procurar traba-
um chão de terra de uma casa e se transforma
lho.” / “Nadando em piscina com comfort, na chá-
isso em dança. Ver uma senhora de 92 anos subir
cara dos meus avós.” / “Ela e meu pai brigaram.” /
num palco e destilar sobre nós a riqueza de toda
“Fui me barbear porque queria ser homem.” / “Ele
uma vida plantada numa tradição que desconhe-
esfaqueou ela.” / “Meu pai me deu remédio de pas-
cíamos. Ver uma criança no meio de uma ciranda
sarinho pra sarar meu machucado. Sarou.” / “ Só
composta de todas as idades e culturas cantando
soube quando voltei de viagem e ela tinha morrido
apenas para o ato de girar em roda. Ver toda essa
já há alguns dias.”
energia indo para uma criança no centro olhando entorpecer com os mais diversos sabores do nos-
DA CRUEL BELEZA DO MOVIMENTO – “A companhia de vocês tem uma sede?”
so Brasil, do “excesso” de coentro baiano impreg-
Ouvimos muito esta pergunta ao longo de várias
nado nos mais lindos rastafáris, até o “amargo”
oficinas que fizemos, em meio a muita discussão
mate sulista revestido por bombachas. Do aroma
política de engajamento de grupo. E descobrimos
da moqueca capixaba sobrevoando suas belas
– depois de muito responder que não – que, sim,
praias ao doce de leite com queijo no camarim
temos uma sede.
com surpresa aquilo que acontece em volta. Se
do grande Palladim. Da universalidade da feira sem fim em Campina Grande ao minimalismo do mungunzá salgado de Triunfo (PE)...
E então percebemos o que é ter uma sede que está permanentemente em trânsito. Temos uma sede no vento. Nossa sede é o caminhão do Tico. Tico é nosso
DAS CICATRIZES (Conhecemos três minutos da vida de todas as pessoas que fizeram oficina conosco, por meio de um exercício chamado “Cicatriz”)
transportador, cenotécnico e dono do caminhão. Nossa sede é a “Ieiri Express”. Dentro desse caminhão, nosso cenário – e às vezes nós – vai para todos os lugares.
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
22
Os quartos de hotéis se transformaram em
O buscador planta sua felicidade fora. Ele
composição. Esse relatório intenta devolver à
nossos escritórios. Escrevemos muitos projetos e
coleciona os segundos dos outros. E se constrói
vida nosso olhar itinerante. Um olhar itineran-
nos organizamos nesses quartos. E viva o What-
e se despede. E conhece um outro onde emenda
te é um olhar que costura. É um olhar que une
sapp, a ferramenta pela qual nos organizamos em
novos segundos. Como se emenda as contas de
percepções distintas colhidas em diversos lu-
meio a tanto movimento.
um colar. E, ao final, ele tem um grande colar de
gares. Por onde passamos, colhemos situações,
Resolvemos construir uma perna de pau.
contas colhidas pelo mundo, mas que ao ador-
fotografias, vídeos, fizemos intervenções, inter-
Começamos a construir a perna de pau em
narem seu pescoço, falta-lhe qualquer coisa sua.
câmbios. Conhecemos pessoas das mais diversas
Palmas e finalizamos em Jequié. / Foi a perna de
A sua conta não existe. A sua conta precisava
áreas e contextos. Conhecemos companhias que
pau mais cheia de mundo da História. / Pegamos
de um espaço fixo para formar-se, como uma
admiramos, mais que o trabalho, as pessoas e
a madeira da casa de um primo meu que estava
pérola. Mas o espaço do buscador é a estrada.
sua lida diária dentro desse ofício.
em construção e que mora em Palmas. / Embala-
E a estrada leva, mas não planta. Ela dá a forma
Se o espetáculo Luis Antonio-Gabriela foi um
mos essas madeiras e despachamos no aeroporto.
redonda das pedras que rolam, mas não produz
pedido de desculpas do diretor Nelson Baskerville
/ Em Paulo Afonso (BA), compramos uma papete
a pérola na concha fechada e protegida. A perola
ao seu irmão, esse relatório constitui parte de um
e pregamos na madeira, para apoiarmos nossos
do vento é o rolar das pedras. Ele não pode cha-
intento maior da Cia. Mungunzá sobre a gratidão
pés. E pregos. / Em Salvador (BA), compramos
mar as pedras de suas nem saberá exatamente
pelas histórias que pudemos percorrer. Intento
aparatos de segurança para colocar na perna. /
quais pedras esculpiu. Sua arte é seu movimen-
esse de fazer um documentário sobre os bastido-
Em Surubim (PE), encontramos uma marcenaria
to. Para plantar é necessário terreno. O buscador
res desse processo tão bonito. Para que possamos
onde lixamos e pregamos. Compramos uma faixa
é um ser de ponte.
compartilhar com todas as pessoas a existência
de gaze para amarrar bem na perna. / Em Arco
Qual o prazer de ser colhido? O buscador
desse projeto e como ele atua em cada pequena
Verde (PE), estreamos a perna de pau. / E foi assim
mais colhe do que é colhido. Por isso sua sina é
instância. Vida longa a todas as iniciativas que
com tudo em nossa vida quase 70 dias. / Inspirar
se confundir e se “incompletar”, aos poucos. Até
prezam pelo compartilhamento – não apenas de
numa cidade e expirar em outra gera mundos. /
renascer pelo avesso e ser a própria linha que
trabalhos – mas de vidas.
Inspirar uma cultura e expirar na outra é alquí-
une as contas com seu eterno olhar estrangeiro.
mico. / De todas as lições sobre o movimento a
E acabamos de batizar esse ofício de cultura
mais forte é a alquimia que se faz dos fluxos. / Por
de pólen. Saímos – todo homem pela vida – para
algum motivo, não buscamos nossa raiz na terra,
polinizar, jogar sementes de nossas experiências.
mas no vento. / Nos plantamos no movimento
Um pouquinho em cada lugar. Cada lugar fará
das coisas. / Não temos perfil para sedimentar
seu uso e seu proveito desse pólen. E nós , subi-
nada por muito tempo. / Nosso maior sedimento
tamente espelhados e devolvidos a nós mesmos
é o que fica orgânico em nossas células ao passar
pelo olhar de tudo aquilo que não somos nós.
de cada experiência. / A geografia é uma experiência. A história é uma experiência. O ser humano
DA GRATIDÃO
é uma experiência disparada para todos os luga-
O Palco Giratório, mais do que divulgar nosso ofí-
res. Para brotar. A gente é para brotar.
cio, nos possibilitou uma percepção aguda acerca das tramas que compõem a vida como um todo.
DA COLEÇÃO DOS SEGUNDOS ALHEIOS
Passamos por tantos lugares distintos e pudemos
Viajar é colher pedaços de felicidade alheia para
perceber a presença de algo universal naquilo que
compor uma possível felicidade nossa. A nossa
parecia singular.
felicidade, a do curioso, do itinerante, do inde-
Portanto, esse relatório constitui um pe-
finido, é uma colcha de retalhos tecida a partir
queno relicário. Uma colcha de retalhos das
de momentos roubados de outros. E com o que
nossas percepções acerca de tudo o que viven-
tecemos a nossa própria colcha? A gente que é
ciamos nesse processo: as teias de relações que
“composto” pode compor?
consolidamos dentro da nossa companhia e ao
Tem o buscador e aquele que não sabe que é buscado.
mesmo tempo com outras culturas, outras geografias, outras histórias. Tudo isso urge uma
Obrigada!
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
POR Guido Campos Correa
23
Ator e produtor do espetáculo solo “BOI”, de Goiânia (GO)
Prazerosa, mas uma vida de teatro nunca foi e nunca será tão simples, mas nada simples. Refazer todos os dias um plano infalível de sobrevivência não é fácil, com tantas opções tecnológicas, mundo virtual aliado a uma preguicite e ainda dezenas de cervejas geladas nos inúmeros bares. Fica realmente difícil ter na plateia um público relativo que cubra o mínimo das despesas diárias de um espetáculo. Sem contar os shows das duplas sertanejas que por essas bandas de Goiás é uma epidemia. Bom, então fazemos um festival de teatro aqui e outro acolá e nesse entremeio torcemos
E não é que acontece o inesperado
circuito PALCO GIRATÓRIO
pela aprovação de um pequeno projeto de lei de incentivo. E assim avançamos no tempo. Contudo, efetivamente não podemos levar nossos espetáculos por aí e por ali, aliás “por aí e por ali” seria igual pequenas viagens, pequenas turnês, todas essas “pequenas” exigem custos orçamentários, ou mesmo uma aprovação dos famosos projetos de circulação, então mais uma vez contamos com a sorte, sorte danada, seletiva. Mas correr o risco de bilheteria, jamais. Pode ser e pode não ser. O que fazer? Acionar o plano número 2, 3, 4... de sobrevivência e não deixar de atuar, dar aula de teatro, gravar comerciais de TV, fazer uma convenção, quem sabe gravar uma participação na próxima novela das nove, trabalhar de garçom e na pior das hipóteses fazer um bico num escritório, loja, bar de um amigo ou parente. O fato é: não está fácil ser ator, produtor e viver de teatro. Sem contar que não podemos perder outros sonhos: ganhar o Prêmio Shell de Melhor Ator, protagonizar um longa-metragem e ganhar um Kikito em Gramado-RS, depois um Oscar em Hollywood, sair na capa da Revista Caras tomando champanhe no castelo de Angra dos Reis, recusar um contrato na TV Globo, ter uma casa de campo e uma cobertura na Vieira Souto, ser vip no camarote da Brahma ou da Revista Quem no carnaval do Rio, ser rainha de bateria de uma escola de samba (ops, essa categoria não existe para homens, que pena) e quem sabe fazer o arquivo
BOI representou a região Centro-oeste no projeto nacional Fotos: Layza Vasconcelos
confidencial do Domingão do Faustão. Nossa, quanta pretensão. Será? Tudo é possível....ou não.
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
24
Ainda assim ter a graça, o prazer e o sonho
lar, nem mesmo em órgãos federais, e merecida-
de viver dessa arte tão fascinante que é o teatro,
mente leva o nome de Palco Giratório Sesc – Cir-
sobretudo viver de um teatro de pesquisa, ex-
cuito Nacional. Na sua 16ª edição, já consolidado,
perimental (fora dos padrões comerciais), solo,
foi idealizado por Sidnei Cruz. Esse projeto tem
mais conhecido como monólogo. Não é fácil,
como maior objetivo a formação de plateia, sem
mas estamos firmes. Citei agora mesmo que não
distinção, reverenciando e respeitando o artista
podemos perder o sonho, mas que sonho? Qual
em seu teatro e criações, assim como o comerci-
seria meu verdadeiro sonho? Qual seria meu so-
ário porque facilita sua ida ao teatro (vimos mui-
nho teatral? Com muita saúde e proteção divina,
tos comerciários assistirem a um espetáculo pela
ter um espetáculo de sucesso de público, crítica,
primeira vez na vida). Isso mostra, mais uma vez,
e viajar por todo país? Apresentar em todas ca-
o respeito pelo público em geral.
pitais do Brasil e no interior dos estados? Par-
Palco Giratório, seu nome diz tudo, girató-
ticipar de festivais nacionais e internacionais?
rio, girar pelos palcos do Brasil, fazer teatro e
Sim, seria isso um dos meus sonhos, simples não
conhecer as produções locais, educar e ser edu-
é? Brasil continente,
cado através da arte no país continente, onde toda uma logística funciona com equipes quali-
“Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha essa grandeza.
ficadas amparando as produções viajantes. Repetindo: e não é que acontece o inesperado: BOI, texto de Miguel Jorge, concepção e direção de Hugo Rodas, é o escolhido para repre-
Terra adorada
sentar a região Centro-oeste circulando nacio-
Entre outras mil,
nalmente no ano de 2013. Obaaaaa! Bingooooo!
És tu, Brasil, Ó pátria amada!” [1]
De abril a outubro de 2013, viveríamos um sonho, girar por um continente chamado Brasil! De Porto Alegre-RS a Boa Vista-RR; de São
Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei.
A vida segue... e lá estamos na labuta artís-
Paulo-SP a Porto Velho-RO, um olhar sobre meu
tica fazendo mais um dia dos 33 anos de palco,
fazer teatral e do outro; prazeres e dificuldades
puro teatro. Ufa!
cênicas; o desejo e o sonho de expressar por
Chuva e sol
Mais um projeto, mais um edital, mais uma
meio da arte. Olhares e mais olhares, uns tristes
Poeira e carvão
inscrição... uma hora “cola”. E não é que acontece
outros mais alegres e aqueles sempre felizes... a
Longe de casa
o inesperado! Na verdade, não espero muito dos
informação e a falta dela. O teatro só é possível
Sigo o roteiro
órgãos competentes responsáveis pela cultura
através da relação do meu eu com o eu do ou-
Mais uma estação
em geral, mas existe uma instituição que levo
tro. Hoje em dia, até se estende pelo Facebook,
E alegria no coração.” [2]
a sério e venho realizando parcerias ao longo
Instagram e Twitter, tempos modernos, mas so-
dos anos, eu e toda uma classe artística, uma
mente com o contato humano é que o fenôme-
instituição idônea que de certa forma assumiu
no teatro acontece.
a fomentação cultural da cidade (um alívio para as secretarias de culturas dos municípios e es-
Verdade, minha vida é andar por este país, me reconhecer nele e ser ele:
Vida de viajante, artista mambembe, lembrando e cantando canções antigas:
tados), uma instituição que tem nome e sigla,
“Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro
CNPJ e endereço: Sesc – Serviço Social do Co-
“Minha vida é andar
Vou cantar-te nos meus versos
mércio!
Por esse país
O Brasil, samba que dá
Pra ver se um dia
Bamboleio, que faz gingar
cedidos, existe um que merece total relevância.
Descanso feliz
O Brasil, do meu amor
Tenho o costume de dizer que é o melhor projeto
Guardando as recordações
Terra de Nosso Senhor
de circulação do país, pois não existe nada simi-
Das terras por onde passei
Brasil! Pra mim! Pra mim, pra mim!” [3]
Dentre tantos projetos artísticos e bem-su-
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
1 Hino Nacional Brasileiro de Joaquim Osório Duque Estrada 2 Vida de Viajante de Luiz Gonzaga 3 Aquarela do Brasil de Ary Barroso
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Espetáculo percorreu o Brasil durante sete meses Fotos: Layza Vasconcelos
E o tempo vai passando formando meses, e
O teatro é umas das maiores forças de expres-
Brasil de meu Deus. Gira, gira arte, gira eu , gira
nós cruzando ares e terra, fazendo e vivendo de te-
sões do ser humano. Toda minha reverência para
tu, giratório oratório Teatro Baco Deus!
atro. Apresentações mais apresentações, aplausos
essa arte tão generosa e acolhedora, nela estão
mais aplausos, debates mais debates, workshops
todos, sem distinção. Já não sou mais o mesmo...
Obrigado Sesc, Goiás, obrigado Sesc, Nacional,
mais whorkshops, voos mais voos... Protegidos e
meu olhar sobre a vida e a mim mesmo tornou-
obrigado, unidades Sesc de todo Brasil, obriga-
cuidados pelo Sesc. Acalentado e aplaudido pelo
-se mais aguçado, interessado, crítico e nunca
do a cada pessoa que contribuiu para o êxito das
público! Puro prazer! Tempo... Graças a Deus!
julgador, nunca, mas, sim, um olhar afetuoso,
apresentações e o bem-estar do elenco e equi-
solidário. Um olhar de aproximação!
pe, obrigado a cada gerente e a cada coordenador
Mas uma hora teria que ser, pois está sendo agora, o final da turnê BOI Palco Giratório Sesc – Circuito Nacional 2013.
Foram sete meses (sendo dois meses e
cultural dos diversos Sesc, Obrigado, equipe “BOI”,
meio viajando direto), de aeroportos, aerona-
obrigado a cada técnico, bilheteiras, camareiras
Foram sete longos meses girando por este
ves, poltronas de aviões, vans, hotéis, check-in
do teatro, obrigado a cada sorriso encontrado e a
Brasilzão, desta gente misturada e culturas dife-
e check-out, restaurantes, mais vans, teatros,
alegria de nos ver, obrigado àqueles que riram e
rentes, culinárias diversas, mas todos brasileiros,
montagens e desmontagens, passagem de som
choraram comigo, obrigado a cada aluno talentoso
fazendo do nosso país um orgulho mundial de
e de luz, ensaios, apresentações, workshops, fes-
dos workshops, obrigado a cada pessoa interessa-
nação. Foram histórias vistas e vividas de norte
tivais, outros espetáculos, festas, bares, amores
da no debate final do espetáculo e muito obrigado
a sul (da caatinga e seus mandacarus aos arvo-
e desamores, estradas e rodovias, pessoas e mais
ao público. Agora, sou eu que aplaudo todos vocês:
redos e suas araucárias) e de leste a oeste (da
pessoas, animais e pássaros, paisagens verdes,
Bravo! Bravo! Bravo! Bis! Bis! Bis!
Amazônia úmida ao mar de corpos ardentes),
amarelas, vermelhas, azuis, cidades grandes, ci-
Um sonho!!!
palcos diversos, plateias multicores... Emoção
dades pequenas e pequeninas, sertão e mar, frio
Obrigado, Dionísio/Baco!!!
pura! Ficam a experiência e a saudade, ficam os
e calor, sete meses de solidão e silêncios, mas de
Obrigado, meu Deus!!!
velhos e novos amigos.
aplausos! Um giro cultural de 360 graus neste
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
POR Marina de Campos
26
JORNALISTA
Um presente feito em casa Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo Um presente dado a uma cidade que acolhe o teatro sempre de braços abertos: esse é o espírito da Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo, que em setembro chegou à sua terceira edição. Consolidada como uma referência regional e recentemente adotada como projeto corporativo do Sesc/RS, a mostra alcançou maturidade em 2013, quando realizou uma semana de espetáculos, oficinas e intervenções artísticas, atingindo diretamente mais de 6 mil pessoas e agraciando a cidade do norte gaúcho com uma verdadeira celebração a essa metamorfose que se dá não apenas no palco, mas também dentro de cada espectador depois do último aplauso. Ao contrário da programação que o município costuma receber ao longo do ano, integrante Apresentação de O Filho Eterno, drama da Cia. Atores de Laura, do Rio de Janeiro Interação com a plateia marcou o espetáculo ao ar livre Misto Quente, do Circo Teatro Girassol Fotos: Gledson Maffessoni
de circuitos estaduais e nacionais trazidos pelo projeto Arte Sesc – Cultura por toda parte, pode-se dizer que a Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo é “feita em casa” – e por isso mesmo dotada de uma dose especial de carinho e cuidado. Iniciativa
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
27
da equipe de cultura da unidade local, a maratona
ao teatro o ano inteiro. A função da mostra é um
momento, estávamos representando o público”,
teatral nasceu oficialmente em 2011, mas já vinha
coroamento desse trabalho cotidiano, é um mo-
explica Alcídio.
sendo idealizada desde 2007, quando Passo Fundo
mento de festa pra nós. É o nosso Natal!”, explicam
O momento a que ele se refere começou
ganhou outro grande presente: a construção do
os integrantes da equipe, satisfeitos com o sucesso
quando, após três ou quatro esquetes apresen-
novo prédio equipado com um amplo e moderno
desta edição.
tados pela companhia de teatro Timbre de Galo,
teatro de 346 lugares. “Com a criação da mostra,
os quatro adentraram o salão vestidos de preto e
conseguimos reforçar ainda mais esse direciona-
Artistas dos bastidores
com as caras pintadas, posicionando-se em cada
mento do Sesc Passo Fundo para a cultura, que
Eles podem até não ser artistas, mas protago-
extremo do espaço e pegando de surpresa o pú-
hoje é a nossa grande marca”, explica Aline Pas-
nizaram um dos momentos mais espetaculares
blico presente com uma intervenção artística que
quetti, gerente da unidade.
dessa mostra. Alcídio e Andressa, acompanhados
em nada perdia para as anteriores. “Ninguém,
Com o objetivo de valorizar esse espaço e
por Edegar Junior e Mônica Novello – que juntos
além da gente, sabia que isso estava programado,
destacar as ações promovidas pelo Sesc através
formam a equipe de cultura do Sesc Passo Fun-
foi mesmo uma surpresa. Como estávamos entre
de um grande evento, a mostra veio crescendo aos
do – decidiram inovar na cerimônia de lançamento
amigos e convidados, nos sentimos à vontade para
poucos até conquistar maturidade e consistência.
tornando-se artistas por uma noite. “Queríamos
nos expor de uma maneira diferente. Eu me senti
“No começo, ainda estávamos em uma fase de
passar uma mensagem para quem estivesse pre-
realizada, porque a gente não imaginava que fosse
experimentação e adaptação. Da segunda edição
sente, na entrada havia espelhos com a frase ‘con-
surtir tanto efeito”, conta Andressa. “Realmente foi
pra cá, evoluímos significativamente, e isso graças
vidado especial’ e organizamos o salão de forma
muito legal, não somos artistas, longe disso, mas
ao reconhecimento do Sesc em relação ao projeto,
que o público se sentisse em pleno palco. Nossa
o instinto nos guiou, tínhamos ensaiado apenas
pois a Gerência de Cultura estadual acreditou real-
intenção não era chamar a atenção para nós mes-
uma vez e na hora de fazer saiu tudo certo, fa-
mente no potencial da mostra”, afirma a agente de
mos, mas, sim, destacar que todos são importan-
lamos com vontade, acertamos o texto, a plateia
cultura Andressa Pagnussat de Quadros.
tes na mostra, todos são um pouco artistas. E se
ficou perplexa. Acredito que tenha sido um dos
Essa resposta positiva da instituição foi o di-
a nossa intenção era que as pessoas se sentissem
momentos mais gratificantes que passei no Sesc”,
visor de águas para a realização da terceira edi-
inseridas, por que não nos inserirmos? Naquele
completa Alcídio.
ção. “A mostra criou autonomia. E essa autonomia aparece inclusive na escolha dos espetáculos, desta vez a curadoria do evento foi inteiramente nossa, porém com o olhar técnico da Gerência de Cultura RS, o que se tornou um desafio muito grande. Mas nos esforçamos para nos superar, já que autonomia também quer dizer um peso maior de responsabilidade”, pondera Andressa. Para o agente Alcídio Schroeder Filho, um dos pontos mais gratificantes dessa iniciativa foi ver os frutos do trabalho diário. “A mostra nos ajuda a perceber a evolução do público local, dessa formação de plateias na qual batalhamos o ano todo. Faz cinco anos que a gente vem plantando o gosto pelo teatro e agora é hora de colher os frutos, você percebe que o público vai se habituando e compreendendo cada vez mais essa arte, e é então que nosso trabalho ganha sentido.” A recompensa – seja para aqueles que fazem acontecer, seja para quem prestigia frequentando o teatro – não poderia ser melhor. “A mostra acaba sendo um presente para a cidade, um presente para o público que vem
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
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Edegar lembra com alegria da reação do pú-
depois, ao alcançar a Praça da Cuia, o meio-fio já
dias, pois queremos que o público tenha esse cres-
blico. “Teve quem veio nos perguntar quanto tem-
estava tomado por olhares curiosos, o público que
cimento no seu olhar intelectual. São espetáculos
po ensaiamos, se nós já fazíamos teatro, se éra-
avistava de longe a movimentação ia se aproxi-
inéditos em Passo Fundo, de diferentes gêneros, e
mos mesmo atores, isso porque transmitimos uma
mando, até das sacadas e janelas começou a surgir
vindos de todo país”, lembra Andressa. Ela destaca
confiança muito grande naquela hora”. Já Mônica
plateia. Pensado justamente para inserir a popula-
como sinal de evolução o fato de este ano a equipe
resume com precisão o motivo de tanto suces-
ção de Passo Fundo no acontecimento ao mesmo
ter recebido muitas propostas de espetáculos de
so: “A gente fica tão empolgado com a mostra, é
tempo que fazia o convite para a mostra, o Cortejo
companhias nacionais, e não apenas buscá-las, o
algo tão nosso, tão intrínseco da equipe, que era
Musical Circense da companhia Circo Teatro Giras-
que demonstra o fortalecimento da mostra como
o momento de chegar lá e colocar tudo pra fora,
sol deu o tom desta terceira edição. Comerciantes,
referência dentro do cenário teatral.
mostrar o quanto a gente gosta do que faz. Foi
estudantes, familiares, crianças e até um conheci-
Todo esse empenho em oferecer uma gran-
isso que conseguimos transmitir, o quanto estáva-
do artista de rua que se apresenta nos semáforos,
diosa programação à população da cidade se
mos emocionados, de coração e alma entregues à
todos participaram de forma alegre e espontânea
refletiu claramente no palco. Uma sensível e co-
mostra”. O toque especial, ainda que arriscado, foi
do show de música, dança, equilíbrio, fogo e acro-
movente ode à amizade abriu a mostra com a
fundamental para a repercussão do lançamento e
bacia que lembrava a triunfal chegada do circo na
apresentação de Cravo, Lírio e Rosa, do grupo pau-
o posterior sucesso da mostra, já que desde o prin-
cidade dos tempos de antigamente.
lista Lume, que trouxe a pureza do teatro clown
cípio o público sentiu a dedicação desses “artistas
Com uma maratona de cinco espetáculos
em sua melhor forma. Na sequência, foi a vez do
entre os dias 26 e 29 de setembro, além de três
espetáculo infantil O Casamento do Grande Mági-
oficinas e inúmeras intervenções artísticas no co-
co Maycon Stallone, da companhia gaúcha Circo
Enfim, a terceira
mércio, a 3ª Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo fez
Teatro Girassol, que também realizou o cortejo e
Quando o cortejo começou a andar pela Rua Mo-
questão de ir além da simples diversão. “Prioriza-
apresentou o show circense Misto Quente para
rom naquela tarde de sábado nublada, não havia
mos espetáculos que tivessem um apelo reflexivo.
quase mil pessoas na Praça Antonino Xavier, numa
sinal de multidão na rua. Mas algumas quadras
Não apenas no drama como também nas comé-
tarde de domingo que fechou o mês de setembro
dos bastidores” e sua visível paixão pelo teatro.
com chave de ouro. O destaque da edição ficou por conta do drama O Filho Eterno, da carioca Cia. Atores de Laura, que trouxe à tona a coragem, crueza e honestidade que só o teatro é capaz de expressar com tamanha intensidade, conseguindo assim uma surpreendente identificação com o público. O encerramento contou com os atores Letícia Isnard e Érico Brás para a encenação da comédia Tarja Preta, uma divertida crítica à sociedade atual e sua constante bipolaridade entre a euforia e a depressão. Mas essa missão, enfim cumprida, está longe de ser sinônimo de sossego para a equipe de cultura do Sesc Passo Fundo. Orgulhosos, eles deixam bem claro: “já começamos a trabalhar na próxima mostra!”. E que 2014 seja ainda melhor.
Espetáculo clown Cravo, Lírio e Rosa, da companhia paulista Lume Espetáculo de comédia Tarja Preta, com os atores Érico Brás e Letícia Isnard Fotos: Gledson Maffessoni
ARTES CÊNICAS
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2013
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Fãs do humor sarcástico do grupo britânico Monty Python, já extinto na segunda metade da década de 1980, os amigos atores Adriane Mottola, Luiz Henrique Palese e Cacá Correa reuniam-se em Porto Alegre para jornadas de brainstorming que culminavam em textos para teatro. Nesse clima, foi criado o espetáculo infantil Shandar e o Feitiço de Mungo, que estreou em junho de 1988 e marcou o início da Companhia Teatro di Stravaganza, ba-
25 anos da Companhia Teatro di Stravaganza
tizada dois anos depois. Muito diferente do que se fazia na época, com uma pegada de cinema, em seu primeiro ano em cartaz, a peça enfileirou em torno de 10 prêmios. O sucesso empolgou o trio, que seguiu no caminho da dramaturgia própria durante o que hoje Adriane denomina de primeira fase da companhia. Com a morte de Palese (2003) e o afastamento de Cacá após cinco anos de atividades, Adriane é a única das fundadoras que está na companhia desde o começo, o que faz com que seja vista como ‘a cara’ da Stravaganza. “O protagonismo não me interessa, somos muitos e todos têm tamanho e
Pequenas Violências Silenciosas e Cotidianas Foto: Vilmar Carvalho
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
30
expressão no grupo”, comenta a atriz, diretora e
elas é de forma extremamente prazerosa, pois novas
produtora que comemorou a estreia em novem-
relações e trocas de experiências são vitais para o
bro do primeiro espetáculo do grupo em que não
crescimento do grupo. Até hoje não fechamos com
está diretamente envolvida: Pequenas Violências
a ideia de ter uma escola permanente, por ora in-
Silenciosas e Cotidianas, com texto e direção de
vestimos nas oficinas anuais”, comenta. Todos na
Fernando Kike Barbosa. Kike, um dos integrantes
companhia iniciaram como atores, mas há quem
da companhia, ganhou o Prêmio de Dramaturgia
tenha vocação também para produção, outros para
Ivo Bender, concedido pela Secretaria de Cultura
direção. Alguns têm grande prazer em ministrar
de Porto Alegre e pelo Instituto Goethe, que lhe
oficinas, outros já não tanto e, segundo Adriane, as
rendeu uma bolsa para escrever seu roteiro na
habilidades vão se definindo com o tempo.
Alemanha. Posteriormente, foi contemplado no
“Somos pessoas diferentes, alguns tendem
Edital de Incentivo à Pesquisa em Artes Cênicas
para determinado tipo de espetáculo, diferente
do Teatro de Arena, onde a peça está em cartaz
dos que eu dirigiria hoje. São pequenos grupos
a preços populares. O texto lança um olhar sobre
dentro do grupo, e isso é muito bom porque se
a banalização da violência no mundo contempo-
a pessoa não encontra seu meio de expressão no
râneo. “Este é o 26o espetáculo da companhia,
coletivo, não pode colocar suas ideias em prática,
e é com imenso prazer que vejo que os nossos
não tem porque permanecer.” Apesar de todos do
25 anos foram comemorados no mais alto nível:
grupo terem voz, existe um direcionamento artís-
Pequenas Violências é original, consistente e ino-
tico que é dado por Adriane. “Tem trabalhos que
vador. Estou muito feliz, principalmente por ser
não têm a ver com gente, então sugiro que não
dramaturgia própria”, afirma Adriane.
se assine como Stravaganza. Será um projeto pa-
Além de Adriane e Fernando Kike Barbosa, a Stravaganza hoje é formada por Duda Cardoso,
ralelo de um ou mais integrantes do grupo, mas não é da companhia”, explica.
Janaina Pelizzon, Rodrigo Mello, Sofia Salvatori e ticipam das reuniões que decidem os projetos que
A primeira fase: dramaturgia própria para crianças
serão encenados, Ricardo Vivian, que embora te-
Na época em que criaram Shandar e o Feitiço de
nha ficado oito anos em Roma estudando cinema
Mungo, Cacá, Palese e Adriane se organizaram
na Universidade La Sapienza, de onde está retor-
como núcleo artístico e convidaram alguns atores
nando, faz parte do grupo, e Gustavo Curti, que es-
para compor o elenco. Não havia intenção de for-
tuda teatro com o Théatre de L’Ange Fou em Lon-
mar um grupo. “O espetáculo foi tão bem-sucedido
dres. “Tem ainda os nossos amados colaboradores,
que seguimos trabalhando com dramaturgia pró-
atores incríveis que têm nos acompanhado já há
pria. O Monthy Pyton, com aquele humor corrosivo,
algum tempo, como a Fernanda Petit, que está em
satírico, non sense era muito forte para nós três.
três espetáculos, a Geórgia Reck, o Cassiano Ran-
Éramos loucos por eles – o grupo já havia acabado,
zolin e o Rafael Guerra que dividem a cena conos-
mas ainda passavam os filmes na TV – e escrevíamos
co em dois espetáculos. E ainda o Áquila Mattos, o
um pouco em cima do que eles faziam.” Ainda sem
Marcelo Crawshaw, o Vini Petry, o Marcelo Adams
se denominarem um grupo, encenaram três espetá-
e a Liane Venturella. E a Coca Serpa, figurinista e
culos infantis, que foram bem recebidos pelo públi-
amiga muito próxima.”
co e pela crítica. Por um Punhado de Jujubas (1990),
Lauro Ramalho, que moram em Porto Alegre e par-
A Stravaganza é uma companhia de teatro que
um espetáculo satírico, cômico, foi o segundo;
cria e produz espetáculos, intervenções urbanas e
A Lenda do Rei Arthur (1991), assim como Shandar,
projetos maiores com processos de criação que en-
uma aventura que enfoca mais a saga do herói, o
volvem pesquisa e oficinas. “Estas oficinas não são
terceiro. “Nesta época, muitos diziam: vocês são tão
o foco da companhia, mas quando nos dedicamos a
legais, queremos ver vocês sempre, então pensamos,
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
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nós já somos um grupo, trabalhamos sempre juntos,
rainha ou rei, que escolhe o tema da noite, por
então está na hora de oficializar.”
exemplo, as burlas que os homens cometem entre
Decameron
Foto: Claudio Etges
Decameron
Logo depois, a companhia decidiu realizar
si, mulheres que enganaram o marido e se deram
Foto: Castagnello
projetos maiores, cruzar fronteiras. Com a peça
bem ou os amores que tiveram um final infeliz. Es-
O Ovo de Colombo (1992), sobre Cristóvão Colom-
ses temas são os mais variados, mas o Decameron
Pequenas Violências Silenciosas e Cotidianas
bo, também satírica e infantil, foi para Montevidéu.
é sempre lembrado pelas histórias plenas de sen-
A apresentação foi no Teatro Solis, com capacida-
sualidade, como expressão dos fortes desejos hu-
de para mais de mil pessoas, o maior da capital
manos. Este espetáculo é muito importante para
uruguaia, e o grupo trabalhou muito na produção
nós, decidimos trabalhar com sete histórias, e que
e divulgação por lá para lotar o teatro (“ao lado
seriam as de amor e sexo porque a gente estava vi-
da nossa primeira e grande produtora, Daniela
vendo uma época que os amigos morriam de aids.
Cunha”). “Numa das inúmeras entrevistas, quem
Juntamos as histórias de sexo com – a gente não
falou conosco foi uma crítica de uns 90 anos que
falava que era aids – a peste. Num ambiente de
queria saber das nossas encenações. Até então só
dor, uma trupe mambembe celebrava os prazeres
havíamos trabalhado com dramaturgia própria.
da vida para superar o lado trágico da existência.”
Nossas referências, para quem não nos conhecia,
O processo de montagem de Decameron
éramos nós mesmos. Mas o que vocês fizeram? Ah,
(1993) durou um ano e meio. O grupo chamou
fizemos uma peça nossa, mais uma peça nossa...
pessoas para dar aulas sobre estilos de jogo, bu-
Mas nem um Becket? Nem um Shakespeare? E aí
fão, clown. O espetáculo foi totalmente falado em
percebemos: estava na hora de mudar.”
italiano, mas o conteúdo das narrativas tornava-se claro pelo uso de recursos gestuais e corporais,
A segunda fase: textos consagrados – Decameron
com foco na ação dos personagens. “A primeira
“Naquela época (1992), o Antunes Filho tinha feito
mais para o espectador acostumar o ouvido e as-
um espetáculo que era a história do Chapeuzinho
sim por diante. Ia crescendo, tudo pensado. Repetí-
Vermelho, Nova Velha História, todo em uma lín-
amos palavras que faziam parte de um vocabulário
gua imaginária, o que nos marcou profundamente.
básico usado na adaptação. O espectador na pri-
Nossa primeira ideia para um próximo trabalho era
meira história entendia que tal palavra significava
encenar contos medievais e fomos buscar algo na
tal coisa, e no curso da peça esta palavra era usada
Biblioteca Municipal. Já pensávamos em desenvol-
em contextos mais complexos. A última e sétima
ver uma linguagem mais corporal, não depender
cena já era bastante verbal.
história tinha pouca fala, a segunda um pouco
tanto da palavra. E tinha essa coisa do Antunes.
Decameron foi muito bem-sucedido. De iní-
Achamos incrível uma língua imaginária e ter que
cio, Porto Alegre não entendeu. Porto Alegre nun-
se fazer entender corporalmente.”
ca entende de início. ‘Por que estão fazendo um
“Por que não o Decameron do Bocaccio? Em
espetáculo em italiano?’ E era italiano arcaico,
italiano! Siiim. Todos tinham descendência italiana,
até os italianos não entendiam algumas palavras,
mas não sabiam o idioma. Ótimo desafio! O Pasoli-
mas compreendiam o todo, o tema, o espetáculo.
ni tinha feito um filme do Decameron, que contava
Viajamos para o Rio e a Bárbara Heliodora, muito
algumas histórias, são 100 novelas no total. A Eu-
temida e respeitada na época, fez uma boa críti-
ropa está vivendo a Peste Negra, em meados do sé-
ca do espetáculo. Como ela não gostava de nada,
culo 14. Dez jovens – sete mulheres e três homens
quando fazia uma crítica elogiosa, o espetáculo
– pra fugir da peste saem de Florença, vão pra um
tinha repercussão. Com a crítica da Bárbara, e de-
castelo no campo e pra passar o tempo, passam
pois com as outras dos críticos dos outros veículos,
as 10 noites contando histórias. ‘Decameron’ quer
conseguimos teatro, produtores locais, bons divul-
dizer 10 dias, ou jornadas. Cada noite se elege uma
gadores, viajamos muito.”
Foto: Vilmar Carvalho
Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos Foto: Vilmar Carvallho
Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos Foto: Vilmar Carvallho
Sacra Folia
Foto: Vilmar Carvalho
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
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Commedia dell’arte, máscara e outras referências
ência forte em nosso jogo cênico.” A Stravaganza,
Com um formato enxuto, quatro atores e dois
preparação corporal, ao jogar com a commedia,
técnicos, o grupo foi a Portugal, Buenos Aires,
passou a investir mais na improvisação, no traba-
Montevidéu, fez temporada no Rio de Janeiro,
lho físico. “É um estilo de jogo muito completo e
São Paulo, Brasília, Recife. Para Adriane, viajar
que desenvolve muitas habilidades para segurar a
com o espetáculo é fundamental porque aqueles
improvisação”, diz Adriane.
que já utilizava acrobacia como trabalho inicial de
que ainda não te conhecem te veem com olhos
Nessa fase, a companhia trabalhou muito
virgens e se consegue avaliar melhor o impacto
o jogo popular. Em Fellini by Stravaganza, os 12
do trabalho. “Na tua cidade, as pessoas te conhe-
atores jogavam com 35 máscaras expressivas
cem muito e é para bem ou para o mal.”
mudas, criadas especialmente para 12 apresen-
Como a peça era em italiano, muitos co-
tações em um shopping durante uma edição do
mentaram que se tratava de commedia dell’arte
Porto Alegre Em Cena. O Pastelão foi nosso pri-
devido à linguagem popular, apesar de sofisti-
meiro espetáculo de rua, com as máscaras da
cada. “Nunca tínhamos estudado o estilo e, du-
commedia. “Depois veio o Arlecchino, Servidor
rante temporada em São Paulo, chamamos um
de Dois Patrões, do Carlo Goldoni, em que apro-
amigo, o Joca Andreaza, que vinha do Fora do
fundamos o jogo com as máscaras da commedia
Sério, um grupo especializado em commedia
dell’arte. Foi o espetáculo mais elaborado dessa
dell’arte – para nos introduzir na sua prática.
fase, um ano inteiro de pesquisa e de trabalho até
E a partir dali começamos a trabalhar com o
encenarmos a peça, em 1997.”
jogo das máscaras.” Estremeço
Foto: Vilmar Carvalho
com o Donato Sartori, um dos maiores masca-
A terceira fase: o Studio Stravaganza e a retomada da dramaturgia própria
Por um Punhado de Jujubas
reiros do mundo, a criar máscaras em couro.
Essa terceira fase da Stravaganza, que inicia pela
“Viajamos muito pelo mundo das máscaras e da
conquista da sede própria – o Studio Stravaganza
commedia, e até hoje este trabalho é uma influ-
– é fundamental para o aprofundamento dos
Foto: Vilmar Carvalho
Estremeço
Fotos: Claudio Etges
Encontros Depois da Chuva Fotos: Claudio Etges
Artista plástico, Palese já confeccionava máscaras em papel e foi para Pádua aprender
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
33
A quarta fase: os temas contemporâneos
dramaturgia latino-americana. “Isso foi fazendo
grupo tem um espaço de experimentação. “Divertido hoje é lembrar que o estúdio era a garagem
Deixar de lado a tradição, os estilos europeus
turgia contemporânea e andar na contramão:
de um edifício, não tinha banheiro, e o Gustavo
e abordar mais o mundo atual e questões per-
enquanto grande parte dos grupos brasileiros
Curti me propôs ministrar uma oficina a partir do
tinentes ao Brasil foi o desafio da quarta fase
construía dramaturgia própria de forma colabo-
Encontros Depois da Chuva. Com o dinheiro da
da companhia. A morte de Palese, marido de
rativa, a Stravaganza, nesse momento, buscava o
inscrição, construímos o banheiro.”
caminhos cênicos da companhia, já que agora o
a gente se apaixonar cada vez mais pela drama-
Adriane, em 2003, uniu o grupo, e os integran-
encontro com dramaturgos que trouxessem com
É no Studio que, depois de jogar com as
tes resolveram, eles mesmos, reformar o estúdio
potência os temas que queríamos tratar. Desde o
máscaras expressivas e com as da commedia
adquirido em 1998 para poder receber os espec-
Encontros, não trabalhamos mais com dramatur-
dell’arte, o grupo enfrenta o desafio de inves-
tadores. “O Studio era um lindo espaço, grande,
gia própria criada de forma colaborativa. Mesmo
tigar o universo do clown e o jogo com a sua
mas com paredes mofadas e piso empoeirado
Pequenas Violências, do Fernando Kike, é um tex-
minúscula máscara, o nariz vermelho. Desse
onde só ensaiávamos e guardávamos cenários e
to elaborado 'na solidão do gabinete', que chega
mergulho, nasce o espetáculo infantil Bebê Bum
figurinos. Resolvemos recriar o lugar, tínhamos
ao grupo pronto, embora aberto às modificações
(1999), em que Adriane deixa a cena para fazer a
o Carlos no grupo que já havia trabalhado como
exigidas pelo processo de criação."
assistência de direção. “Além de atuar, até então
pedreiro, fizemos o piso de cimento queimado, o
A Comédia dos Erros (2008), um dos espetá-
era muito produtora e isso de produzir e estar
piso de ladrilhos, pintamos as paredes, um lugar
culos mais conhecidos do grupo, há cinco anos
em cena ao mesmo tempo, é muito cansativo,
enorme que se abriu para a rua, para receber.”
em cartaz, ainda retrata uma fase anterior, ainda
doloroso. Deixei a atriz de lado e me apaixonei
Com o Studio Stravaganza em funciona-
tem resquícios do jogo da commedia dell’arte.
pela direção”, admite. Depois de Bebê Bum, di-
mento, em 2004, a companhia iniciou o proje-
“O estilo sempre vai estar no que a gente faz,
rige Encontros Depois da Chuva (2000), um es-
to Diálogos Contemporâneos que tinha como
porque está no nosso corpo. A cada espetáculo a
petáculo de teatro físico, mudo, sobre o mundo
foco leituras dramáticas encenadas. Em um ano,
gente se propõe a trabalhar com a dificuldade, o
contemporâneo, e Sacra Folia (2002), com texto
Adriane, que selecionava o que seria trabalhado,
desafio, na tentativa de não repetir um formato.
de Luiz Alberto de Abreu, em montagem para a
leu mais de 100 textos, todos da dramaturgia
A cada projeto procuramos trocar experiências
rua. Luiz Henrique Palese cria e encena Como
contemporânea, universal, e os atores da Stra-
com diferentes artistas, que nos inspirem com
Vivem os Mortos?, monólogo de sua autoria, e
vaganza se revezavam em duas leituras ao mês,
novas ideias e técnicas para que a cada espetá-
excursiona por diversas cidades do país, além de
dirigidas por membros da companhia ou diretores
culo possamos chegar a um mundo diferente da-
cumprir temporada em Montevidéu.
convidados. No ano seguinte, trabalharam apenas
quele do espetáculo anterior. E o que se encontra
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2013
34
é transformado pelo grupo, pois não nos interes-
lógica consciente, nascidos nas profundezas
sa repetir o que já está posto. Tentamos fugir da
insondáveis do mundo moderno e dos mons-
fórmula pronta.”
tros da solidão que ele gerou. De acordo com
Ecos da Cidade
Foto: Vilmar Carvalho
A Comédia dos Erros
Foto: Vilmar Carvalho
Em 2013, além de Pequenas Violências Si-
Pommerat, essa fragmentação do real denuncia
lenciosas e Cotidianas, a Stravaganza estreou
que nós não temos a certeza de um futuro con-
Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos – His-
creto porque as relações humanas consistentes
tórias Modernas de Tempos Antigos, inspirado
não são possíveis em uma sociedade balizada
no texto de Flavio de Souza que foi montado
na ética caracteristicamente sob influência dos
pela Stravaganza à moda do romance-em-cena
fundamentos do mundo de trabalho capitalista.
desenvolvido por Aderbal Freire Filho. “A com-
Ainda em 2013, três integrantes da Stra-
panhia também manteve em temporada Estre-
vaganza criaram o Núcleo Stravaganza de Per-
meço, que estreou em 2012 e foi apresentado
formance e Intervenção, com a intenção de
no último Porto Alegre Em Cena. O texto de Joel
promover o debate em torno das questões das
Pommerat, dramaturgo e diretor francês reco-
cidades e reafirmar a arte como meio de poten-
nhecido no circuito europeu por seu trabalho
cializar estratégias simbólicas que reconfiguram
pessoas que são bem mais jovens e com outras
junto à Cie. Louis Brouillard, foi encenado pela
a relação das pessoas com os espaços públicos.
vivências (não necessariamente teatrais), nos
Stravaganza sob a direção de Camila Bauer, con-
Formado por Adriane, Janaina Pelizzon e Duda
transformamos e voltamos ao grupo renovados.”
quistando o Troféu Braskem de Melhor Direção
Cardoso, o núcleo reuniu jovens criadores de
Agora, a Stravaganza se prepara para levar a
2013. Estremeço promete a possibilidade do so-
formação multidisciplinar e com eles produziu
Recife seu repertório, representando o Rio Grande
nho, mas não do sonho formatado característico
diversas intervenções que, a partir da sua for-
do Sul no 20o Janeiro de Grandes Espetáculos –
da indústria do espetáculo, e sim de um “sonho
mação, foram apresentadas nas ruas de Porto
Festival Internacional de Artes Cênicas do Recife/
do futuro”, onde os acontecimentos são lista-
Alegre, inclusive durante o Festival Palco Girató-
Pernambuco, em janeiro do próximo ano.
dos em fragmentos e encadeados às vezes sem
rio. “Envolvidos numa troca de experiências com
ARTES CÊNICAS
segundo SEMESTRE
2013
35
A vida em grupo POR adriane mottola do mundo. É um casamento aberto, quem fica é
nossas coisinhas, faxinar a casa para dar espaço
porque quer.
ao pensamento. Temos ainda um repertório, te-
O que mantém um grupo unido são os ideais
mos que distribuir nossas peças. Todos os atores
artísticos e a sua realização em projetos. Há os
da Stravaganza só fazem teatro. Ninguém tem
que se afastam e acabam voltando quando surge
um trabalho fixo. Fazem oficinas, dão aula, criam
a oportunidade, seja uma boa ideia ou um projeto
projetos, trabalham em festivais de teatro, mas
interessante. Nem todos os espetáculos nascem
ninguém tem atividade que não é relacionada
do grande grupo. Somos muitos, portanto há
ao teatro. Somos um grupo, mas também somos
afinidades artísticas que se realizam em grupos
indivíduos que têm que correr todo dia atrás do
O grupo é uma família. Com suas delícias e hor-
menores, em espetáculos de pequeno porte. Mes-
ganha-pão. Isso une, desune, une.
rores. Tu escolheste aquelas pessoas para traba-
mo aí procuramos colocar aqueles que não estão
Estudiosos do teatro comentam que os gru-
lhar e setenta por cento da tua vida tu vais passar
diretamente envolvidos na equipe em outras fun-
pos estão em crise. Grupos de teatro com mais
com elas. É como um casamento, temos que lutar
ções, sejam artísticas ou técnicas. É com projetos
de 10 anos de trajetória se desfazem, diretores lí-
todo dia para preservar a união. Às vezes, porém,
que a gente se reúne. Outra coisa é a sede. É um
deres abandonam seus grupos para seguir outros
é inevitável a saída de alguém. As pessoas mu-
espaço onde se pode experimentar. Acho que a
caminhos e por aí vai. Estar em grupo é resistir.
dam, criam outras prioridades, têm vontade de
sede é tudo, sem ela não tem espaço para o apro-
Até quando dá. Por enquanto estamos aqui. Fir-
transitar por outros espaços. A fricção é constan-
fundamento de um trabalho. Espaço é um lugar
mes e fortes.
te (e necessária). É complicado, mas não é o fim
de união, temos que deixá-lo habitável, arrumar
PRIMEIRO SEMESTRE
2013
caderno de teatro
36
Por Clarissa Eidelwein Jornalista
Companhia do Latão investigações, pedagogia, música,
produção de espetáculos, cinema e vídeo
caderno de teatro
PRIMEIRO SEMESTRE
2013
37
Fotos: Lenise Pinheiro e Sérgio de Cavalho
#11 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc – Cultura por toda parte. Sua edição desempenha um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Sesc. Nas próximas páginas, o caderno apresenta a trajetória da Companhia do Latão a partir da visão do ator Ney Piacentini, que concedeu a entrevista à Arte Sesc, em outubro, e também fala de seu ativismo cultural, além de um texto do diretor do grupo, crítico e professor da Universidade de São Paulo, Sérgio de Carvalho, sobre a dialética brechtiana. A companhia participou, no Rio Grande do Sul, de duas edições do festival e, em 2014, retorna ao evento com cinco espetáculos, incluindo o mais recente, O Patrão
Cordial, uma comédia sobre a cordialidade brasileira, nos moldes da tradição clássica do patrão e do empregado, inspirada em textos de Brecht e de Sérgio Buarque de Holanda. O grupo, um dos mais politizados do Brasil e que apresenta em suas peças um trabalho de pesquisa que envolve a discussão dos problemas atuais da sociedade com inspiração em textos clássicos, também participará da atividade Residência Artística.
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2013
38
O início da parceria com Sérgio de Carvalho e a criação da Companhia do Latão
teatrais que não a relação convencional entre palco italiano e a plateia frontal, por assim dizer. É uma dramaturgia narrativa, na qual a encenação no aspecto convencional talvez não caiba. Sérgio tinha mestrado sobre o teórico Anatol Rosenfeld, cuja visão sobre teatro épico é bem particular e profícua. Não posso afirmar com certeza porque não estava presente, mas se observou a questão temática, posto que Danton trata da Revolução Francesa. Lembro que no início falávamos que além de sermos um grupo de teatro de pesquisa de linguagem, tínhamos interesse em assuntos liga-
Encontrei com Sérgio de Carvalho em uma mon-
dos à realidade social brasileira e também de fora do
tagem de parte da Companhia Cidade Muda, um
país, em apontar alguns nortes e ideais. No Arena,
projeto de uma versão de Alice no País das Ma-
começamos investigando A Compra do Latão, que é
ravilhas, de Lewis Carroll, para adultos. Logo de-
um texto teórico do Brecht, uma crítica ao idealis-
pois nos juntamos para fazer uma peça chamada
mo da arte. O livro, uma versão portuguesa, foi um
O Catálogo, do francês Jean-Claude Carrière, isso
presente de Fernando Peixoto, que disse que o tex-
de 1995 para 1996. Tivemos uma relação razo-
to poderia ser útil. Ele havia feito anotações à mão
ável nessa tentativa de realizarmos algo juntos,
no livro. Depois participamos de uma homenagem
e, logo em seguida, ele se inscreveu no edital de
a Peixoto em Porto Alegre, em 2012, a convite da
ocupação do Teatro de Arena, em que propôs a
velha guarda que conviveu com ele, da qual o crítico
ocupação com uma ideia sobre uma pesquisa em
gaúcho Antonio Hohlfeldt fazia parte.
teatro dialético.
O fato é que começamos a pesquisar o tea-
Acabamos sendo convidados para um evento
Entre a primeira experiência que tivemos jun-
tro dialético através desta obra. E foi ela que deu
do Sesc, que comemorou os 100 anos de nasci-
tos (ele como diretor e eu como ator) e a ocupa-
o nome ao grupo. Esse material proporcionou a
mento de Brecht, em 1998. Nós nos metemos a
ção do Teatro de Arena, Sérgio montou com um
abertura de algumas frentes: observações nas ruas
fazer o Santa Joana, mas foi também muito pro-
grupo de atores o espetáculo Ensaio para Danton,
do centro de São Paulo, o trabalho com Hamlet,
cessual porque encenamos cinco versões, por certa
a partir de A Morte de Danton de Georg Büchner,
que é utilizado por Brecht no livro, e a análise de
insatisfação com a repercussão de determinados
enquanto me envolvi em uma versão teatral do fil-
aspectos teóricos do texto, vertendo para um as-
aspectos da obra. Vou citar um: o cinismo do per-
me de Fernando Bonassi, Um Céu de Estrelas, e vol-
pecto ensaístico e experimental. Quando abrimos a
sonagem principal, Pedro Paulo Bocarra, tinha um
tamos a nos encontrar em 1997. Sérgio criou uma
cena ao público para mostrar alguma coisa quase
tremendo eco do público e aquilo passou a inco-
equipe e me chamou para fazer parte do grupo,
interna fomos surpreendidos com uma incipiente
modar os diretores e dramaturgos, Sérgio de Car-
já com a pretensão de criar um coletivo, batizado
repercussão. Paralelo a isso, estávamos fazendo
valho e Márcio Marciano. Fomos estudando, vendo
como Companhia do Latão. Então, estamos juntos
uma leitura de A Santa Joana dos Matadouros, es-
como modificar o olhar, nosso e do espectador,
praticamente desde o início, com o projeto Pesqui-
tudando um pouco mais a dramaturgia do Brecht.
para que aquilo não tivesse tanta força. Pesquisan-
sa em Teatro Dialético na ocupação do Teatro de
Era um processo no qual nos reuníamos nas sex-
do e fazendo ao mesmo tempo. Eles interferindo
Arena Eugênio Kusnet, no centro de São Paulo.
tas-feiras e íamos para levantar uma cena, o que
na dramaturgia, e nós acompanhando de perto
significa encená-la. A cada sexta uma nova cena
tudo isso. E o Ensaio Sobre o Latão já ganhando
A pesquisa
seria erguida, enquanto as outras permaneciam
algum público. Depois, fizemos e produzimos nos-
Do que eu sei, em Ensaio para Danton foi quan-
em caráter de leitura. Era praticamente um grupo
sa primeira incursão a uma dramaturgia própria,
do se percebeu uma aproximação a Brecht, pois
de estudos. Dá até pra fazer uma brincadeira, piada
que foi O Nome do Sujeito. Ensaio Sobre o Latão
o Büchner tem um aspecto pioneiro em alguns
interna: “E teatro vocês vão fazer quando?” O Latão
era um híbrido, Santa Joana tinha como referência
sentidos de uma dramaturgia não contínua e da
sempre foi e continua sendo mais de estudos que
o texto do Brecht e a tradução de Roberto Schwarz.
possibilidade de você experimentar outras formas
de produção de espetáculos, desde sua gênese.
Paralelo a isso, um grupo de música coordenado
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2013
39
ciado: última peça da Companhia do Latão. Santa
católicos em receber uma obra politicamente de
Joana nos proporcionou relações interessantes por
esquerda, que questionava muito a religião. Aca-
parte da comunidade acadêmica que começou a
bamos indo a Veranópolis na escola do MST, nos
nos assistir, quer estudantes das humanas, quer
apresentamos num clube, no centro da cidade.
professores. Já tínhamos uma associação com al-
Apresentamos a peça outras vezes para movi-
guns intelectuais, Roberto Schwarz, José Antônio
mentos sociais e era como se fosse um jogo de
Pasta, Iná Camargo Costa, Paulo Arantes e Maria
futebol, muito ruidoso, as pessoas se manifesta-
Silvia Betti, que nos acompanhavam e dividiam
vam durante o espetáculo, contra ou a favor de
ideias conosco, ora em palestras, ora em encontros
algum personagem, e isso dava um calor à cena
internos, e a coisa atingiu uma abrangência com a
bem interessante. Era uma peça que precisava
qual não contávamos muito. Lembro que na época,
de um caminhão inteiro de cenografia, eram 48
o falecido Reinaldo Maia disse: “Ah, o Latão é um
horas de montagem. Nós nos autoapelidamos de
grupo de esquerda, mas que se apresenta para a
teatro “selvagem”: em Cajamar, próxima a São
classe média.” Uma coisa assim.
Paulo, em um encontro de lideranças do MST em que não tínhamos de onde puxar a luz, levamos
O MST
cabos grossos e pesados, trabalhávamos suando
Em 1988, em uma apresentação do Santa Joana
litros, contudo fazíamos os espetáculos com gosto.
durante o governo de Cristovam Buarque, que ti-
E isso abriu um campo de trabalho de relação so-
nha um projeto interessante chamado Temporadas
cial, muito diferente daquilo que na época o Maia
Populares, fomos surpreendidos pelo MST (Movi-
havia observado, que seria o de um grupo politi-
mento dos Trabalhadores Sem-terra) e pela CNBB
zado de classe média levando para um público de
(Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) em
mesmo nível econômico.
Brasília. Do Festival de Londrina, fomos à capital
Desde então, esta parceria existe, ora mais
por Lincoln Antonio e Walter Garcia estava em
e recebemos a notícia que a CNBB tinha enco-
intensa, ora intermitente. E esta nova relação nos
desenvolvimento e que depois derivou no grupo
mendado dezenas de ingressos. A gente estranhou
deslocou do público tradicional do teatro para
musical A Barca, que tem uma produção bastante
porque A Santa Joana dos Matadouros é uma peça
outro tipo de relação e mudou nosso olhar, assim
reconhecida; e as publicações do grupo também
crítica à religião. E tinha uma exposição do Sebas-
como quando fomos a Recife, no 1º Festival Recife
já vinham à tona, principalmente a revista Vintém,
tião Salgado no saguão do Teatro Nacional sobre o
de Teatro Nacional, nos deixamos influenciar pelo
que tem um texto inaugural do Roberto Schwarz,
MST, que estava fazendo uma mobilização no In-
local. Em 1997, levamos a Pernambuco Danton
A atualidade de Brecht. De modo que Companhia
cra, perto do teatro – estávamos nos apresentando
e Ensaio Sobre o Latão e voltamos em 1998 com
do Latão é este conjunto de investigações, de pe-
na sala menor –, e aquilo foi um pequeno marco
O Nome do Sujeito, que tem base em livros de Gil-
dagogia, música, de produção de espetáculos tea-
para nós porque, ao final do espetáculo, João Pedro
berto Freyre, e a ação se passa no Recife.
trais, naturalmente, e mais tarde cinema e vídeo.
Stédile, que não conhecíamos, entrou no camarim
A Comédia do Trabalho foi feita pensada para
O Nome do Sujeito (1998) recebeu algumas
e nos presenteou com pôsteres das fotos da expo-
ter uma comunicação muito direta com o público
indicações para prêmios, como a de melhor ator,
sição e sentenciou: “Vocês vão trabalhar conosco”.
e possível de ser realizada sem maiores condições
sendo que em Ensaio Sobre o Latão eu já tinha
E assim aconteceu.
técnicas. Nossa primeira apresentação aberta foi
recebido outra indicação do extinto Prêmio Mam-
Fomos a Itaici no interior de São Paulo, onde
nas ruínas de uma vila que havia sido construída
bembe do Ministério da Cultura, como ator coad-
estava acontecendo um encontro dos movimentos
para a construção de uma hidroelétrica no Paraná,
juvante. E O Nome do Sujeito ganhou uma publi-
sociais de todo o Brasil, e apresentamos A Santa
local que virou um assentamento. No que restou
cação em livro, que por sua vez foi resenhado no
Joana dos Matadouros. O Frei Beto estava lá e fez
no lugar de um cinema, erguemos lonas plásticas,
Jornal da Tarde de São Paulo, e o colunista da Fo-
algum comentário sobre uma tentativa de monta-
como a de acampamentos de sem-terra, e as pes-
lha de São Paulo Marcelo Coelho escreveu sobre a
gem deles da mesma peça. Havia outras pessoas
soas sentavam no declive que sobrou da plateia já
peça e passamos a ser observados não só por gente
como o padre Joacir de Caxias do Sul, que nos le-
sem teto e paredes. Foi incrível, muito potente pra
de teatro. Uma curiosidade foi a peça aparecer nas
vou para uma apresentação num colégio católico
nós. O pessoal da região chegava em camionetes e
palavras cruzadas, da mesma Folha, com o enun-
e foi muito inusitada a tolerância por parte dos
caminhões. A reação era a de quem participava de
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2013
40
uma assembleia. Isso inadvertidamente nos apro-
semprego, do trabalho informal precarizado, ou
Observamos praças de desempregados, em
ximou ainda mais do Brecht que tinha esta visão
pela deterioração das relações humanas (o que
Campinas, e um jovem de lá foi ver a peça, e o pro-
para um teatro popular, como um jogo, um debate
não só é atual, mas histórico), pela onda de ter-
grama Metrópoles o entrevistou. Ele deu um de-
no qual o prazer e a reflexão não se excluem.
ceirizações, que envolve as funções de RH, dos
poimento forte, dizendo que se a arte fosse capaz
administradores de gente, a quem tragicomica-
de mudar a sociedade, um amigo dele não teria se
mente ironizamos.
matado, se jogando de uma ponte numa das rodo-
O ápice da nossa interface com o MST foi quando fizemos uma oficina no Assentamento Carlos Lamarca, no interior de São Paulo, e produ-
Enquanto que em O Nome do Sujeito a pes-
vias que levam a Campinas. Uma coisa real, muito
zimos um vídeo do convívio, o que gerou o pró-
quisa foi livresca, pictórica, e alguma vivência lo-
mais realista do que a peça. E esta peça alcançou
logo da peça O Círculo de Giz Caucasiano, com o
cal quando ficamos no Recife por alguns dias, n’A
sindicatos, chegamos a fazer agitação e propagan-
elenco do Latão e o pessoal de lá juntos em cena.
Comédia retomamos um pouco aquele princípio
da na porta da General Motors, em São José dos
Atualmente continuamos em contato, fazendo
de observação de rua que a gente experimentou
Campos. Foi uma peça que a intelectualidade tor-
apresentações em espaços do movimento, entre
em Ensaio Sobre o Latão, no Arena, em que o cen-
ceu um pouco o nariz, porque ela era muito direta,
outras atividades.
tro de São Paulo, mais deteriorado à época que
uma comédia rasgada, até escatológica.
hoje, foi incorporado à cena. Na nossa visita ao
E foi assim que até O Nome do Sujeito mon-
Um “sucesso” acima da média
mundo do trabalho, entrevistamos de ministros
tamos um repertório, refizemos o Danton, numa
A Comédia do Trabalho foi nossa segunda drama-
de Estado a pessoas que moram na rua, passan-
nova configuração de elenco, porque eu não
turgia própria e teve uma repercussão enorme.
do por psicólogos, terapeutas, gerente de RH, o
estava na primeira montagem que chamamos
Podemos arriscar que ao longo de seus 10 anos
Fernando Haddad, sociólogo na época, João Saad,
de “proto” Latão, e o nosso primeiro repertório
de apresentações, tivemos perto de 200 mil es-
que havia sido ministro e foi secretário de Estado
se estabeleceu com Ensaio para Danton, Ensaio
pectadores, se somarmos às exibições em salas de
da Cultura e tem uma trajetória financeiro-polí-
Sobre o Latão, O Nome do Sujeito e A Santa Jo-
espetáculos, em escolas e para projetos sociais,
tica que nem sei como classificar. Bresser Pereira,
ana dos Matadouros. Este teve lugar no Centro
sindicatos e assim por diante. É uma peça que
que tinha sido ministro e muitas outras pesso-
Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com
carrega uma contradição pelo fato de os proble-
as. Lembro de uma psicóloga que disse que não
uma receptividade forte da imprensa, favorável
mas por ela abordados permanecerem no país.
era simples para esses diretores de RH demitirem
e desfavorável. A Bárbara Heliodora, por exem-
Não há motivo de orgulho em sua longevidade,
empregados das empresas. Entrevistei até meu
plo, desde então nos dava cacetada, e isso con-
mas traduz que as coisas pouco mudaram. A Co-
irmão, que é um capitalista no Paraná e nos deu
tinua até hoje.
média mostrava o mundo do trabalho brasileiro
frases que entraram na peça. Ele é meio cínico, e
em 2000. Mas pela contraface, pela ótica do de-
a entrevista dele foi útil pra gente.
O Sérgio entrevistou o Stédile para a Revista do Jornal do Brasil que ainda existia, enfim, havia
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2013
41
certa saúde nisso, no sentido de que as pessoas
que até hoje temos uma relação com o Ói Nóis,
propõe a levar atividade, não só espetacular, mas
que produziam arte com um caráter mais social
por exemplo. E outra lembrança que tenho, por
também pedagógica para lugares que normal-
viram em nós novos interlocutores. Pessoas que
exemplo, é a do Palco Giratório no Rio Grande do
mente não fazem parte dos circuitos. O contato
estavam um pouco desacreditadas que esse tipo
Sul, porque ali já estávamos experimentando uma
com uma metrópole como Porto Alegre, e com as
de coisa tivesse pertinência no final dos anos de
pedagogia e, às vezes, deparávamo-nos com pes-
pequenas cidades, como Cruz Alta, Santo Ângelo,
1990 começaram a ver que o assunto não ti-
soas muito novas, e acontecia uma comunicação
muda o olhar da gente. Fizemos uma viagem in-
nha morrido. Claro que em função do trabalho
entre eles e nós.
crível tanto existencialmente para cada indivíduo
deles mesmos, principalmente, mas em diálogo
O teatro não é só a relação entre o que
como para o coletivo. Essas experiências, com o
conosco. Augusto Boal, Luiz Carlos Moreira do
acontece no espaço cênico e quem o assiste, mas
MST, com o Palco Giratório em lugares simples,
grupo Engenho Teatral, que trabalha em regiões
tem outras linhas como a pedagogia e de nada
o contato com os estudantes, a própria classe
periféricas da cidade de São Paulo, e o próprio Ói
adianta um discurso que tenta ser elaborado se
intelectual, sem saber ao certo se a minha visão
Nóis Aqui Traveiz com quem tivemos encontros e
não dialoga com os jovens que querem conhecer
é correta, tem história nisso, visto que a ditadu-
visitamos a sede deles. Parecia que a velha guarda
as artes cênicas. Assim, esses falsos recuos, que
ra, política dos 60/70 e econômica de lá para cá,
brechtiana ou socialista, ou humanista, pensava
na verdade são avanços, foram muito interes-
cerceou isso tudo. De certa forma, a exposição
“vamos trazer estes meninos para ver qual é a vi-
santes para vermos se a nossa ideia de teatro
midiática do teatro não tem tanta importância.
são deles sobre um tipo de arte que nós acredita-
tinha ou não a sua razão de ser. O que notamos
Seria hipócrita da minha parte dizer que não tem
mos ou chegamos a acreditar”, e que a onda ne-
agora é que ensaiar, fazer uma peça pro público
valor, mas não é o principal.
oliberal, que mercantilizou a arte, deixou de lado.
ou nos envolvermos em oficinas não tem muita
Melhor é fazer coisas como levar O Círculo de
E apesar de estarmos à margem do teatro
diferença, já que teatro pode ser a interação de
Giz Caucasiano para o Palco Giratório, em Porto
reconhecido como tal pela grande imprensa, pe-
pessoas com pessoas, ou seja, uma das poucas
Alegre, levar para o Sesc/RS A Comédia do Traba-
los críticos, pelo meio, começamos a observar que
experiências humanas que ainda prescindem do
lho e, mais recentemente, com O Patrão Cordial,
havia uma repercussão tanto no público de tea-
filtro tecnológico.
para puxar a brasa para nossa sardinha. Somos
tro como em um diferente, e fomos aprendendo
fregueses daí. Só no Sesc da Alberto Bins fomos
a dialogar com estes outros espectadores. Que-
Porto Alegre e o Palco Giratório
umas cinco vezes talvez , e de quebra fomos con-
ríamos nos fazer inteligíveis e também escutar,
O Palco Giratório é um dos melhores projetos do
vidados para o primeiro Fórum Social Mundial. Há
aprender com os movimentos dos sem-terra, com
país. Fizemos parte dele no ano 2000 e tenho al-
cultura de vanguarda e, politicamente, boas coi-
os lugares por onde passamos, com os movimen-
guma propriedade pra falar. É uma das ideias mais
sas surgiram aí como o orçamento participativo.
tos teatrais de várias partes do país. Não é à toa
clarividentes de difusão teatral do país, porque se
Pena que algumas depois degringolaram. A lite-
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ratura gaúcha, o cinema que acompanho desde
Circo da Ideologia, que levamos para o Fórum Social
de sucesso. Fizemos Auto dos Bons Tratos, em
quando comecei a fazer artes em Florianópolis:
Mundial, Ensaio da Comuna, um trabalho sobre Ma-
uma ocupação de um teatro de bairro, o Cacilda
vi Verdes Anos, ouvia falar de School’s Out, Nei
chado de Assis – Entre o Céu e a Terra –, enfim, pode
Becker, no bairro da Vila Romana. Montamos o
Lisboa e mais. A minha referência de então era o
ser que a gente vá acompanhado de alguma dessas
trabalho que conta a história do colonizador por-
Rio Grande do Sul e não Rio e São Paulo. Há uma
obras mais experimentais. Nem todos fazem parte
tuguês que fundou Porto Seguro, Pero do Campo
cultura de grupos sublinhada. Vamos combinar
do repertório por motivos de subsistência material
Tourinho. Uma obra que algumas pessoas viram
que sou sulista, sou do Paraná, mas creio que o
ou porque flutuam numa certa medida.
e consideraram árida pela sua literatura dramáti-
grupo todo sente isso. Não é à toa que tem o Luis
ca e seu despojamento cenográfico. Não foi uma
De obra árida à pequena obra-prima
peça fluente como algumas das anteriores. Estre-
Em 2014, a Companhia do Latão levará ao
Cronologicamente, depois de A Comédia do Tra-
amos em Curitiba em condições desfavoráveis,
Palco Giratório de Porto Alegre cinco espetácu-
balho, mudamos totalmente de rumo, o que à
pessoas do elenco que tinham tido problemas,
los e participará da atividade Residência Artísti-
época eu torci o nariz porque sou mais imedia-
gente machucada, um teatro que não era o espaço
ca. Ainda não estamos com tudo definido, mas
tista, diferentemente de Sérgio de Carvalho e do
adequado para a obra. Estávamos experimentando.
a tendência é levarmos O Patrão Cordial, o atual
Márcio Marciano. Por mim, naquela ocasião, irí-
E tomamos na cabeça. Em Portugal, porém, a peça
trabalho, Ópera dos Vivos, imediatamente ante-
amos atrás de um outro sucessinho, o que seria
já estava mais assentada e foi considerada por um
rior, O Círculo de Giz Caucasiano, além de talvez
um grande erro. Grupos que repetem seus acha-
dos críticos uma pequena obra-prima. Mudamos
Revolução na América do Sul, de Augusto Boal.
dos tendem a se estabilizar esteticamente.
de rumo, de linguagem, de tema, mudamos a nos-
Fernando Verissimo morando aí.
Temos alguns experimentos cênicos, não ne-
Invertemos totalmente o eixo, fizemos uma
sa relação com o público, apesar de já termos ex-
cessariamente espetáculos acabados, que chama-
coisa totalmente distinta d’A Comédia do Tra-
perimentado o público vendo a peça em cima do
mos de leituras encenadas: João Fausto, O Grande
balho, que tinha sido o que podemos chamar
palco em Danton. Em O Nome do Sujeito, já prefe-
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segundo SEMESTRE
2013
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à prostituição. Primeiro, ele que a empurra pra campa. E depois era ela que o assediava, só para dar um exemplo. Como digo, estudos, interesse em conhecer as coisas e ver como elas rebatem em nós como grupo e como indivíduos. Voltando um pouco, em O Nome do Sujeito, começamos experimentando Fausto do Goethe e um dos atores, Otávio Martins, perguntou: “Mas o que o Fausto tem a ver com a gente?” E fomos procurando essas associações. Então o Latão tem um aspecto, digamos, culto, que vem da direção, e um outro comum, em que nós, os ignorantes, questionamos: “Mas e daí, o que e tenho a ver com isso?” Eu que sou fruto dessa época de consumo, de televisão, não tenho pudor com isso, de se deslocar a partir da base, de voltar ao chão e de se enfiar na terra. É melhor admitir a falta de conhecimento do mundo do que despistar a burrice.
A arte do precário O Instituto Goethe foi um dos nossos grandes parceiros. Foi através dele que o Latão teve o privilégio de cruzar com Hans-Thies Lehmann e o Peter Palitzsch, que foi assistente do Brecht e ficou conosrimos fazer o espetáculo para o público em volta
experimentando coisas como uma grande re-
co alguns dias para discutir o distanciamento. Em
da gente. O Ensaio Sobre o Latão, apesar de no final
dação de jornal, uma emissora de televisão e
épocas que não tínhamos para onde ir, o Goethe
da temporada ter sido feito em teatros enormes,
mudamos para um tema anterior que seria a
nos abrigou. Ensaiamos Danton lá. Era no sótão e
do Sesi, em São Paulo e no interior, foi pensado
fabricação da imagem, misturado com as gre-
fazíamos muito barulho. Às vezes, os professores
para um público menor. Resolvemos retomar isso
ves de São Paulo, operárias, anarquistas, das
reclamavam que atrapalhava as aulas. Na verda-
do público junto conosco no palco em Auto dos
décadas de 1910, 1920, e ainda outro tema pa-
de, o teatro é a arte do precário, nós não somos
Bons Tratos, uma peça histórica sobre o início do
ralelo: a prostituição europeizada no Brasil, o
profissionais. Temos um rito que é necessário, mas
Brasil. Ela fecha com a chegada dos negros, a es-
tráfico de brancas. Também foi outra pesquisa
sem o conforto burguês. Há simplicidade, tentar
cravidão em questão era a indígena.
enorme, assim como O Auto que exigiu conhe-
desafios, querer fazer, querer entender o mundo,
cimentos históricos e também tinha uma pos-
quem sabe melhorá-lo. Daí uma postura política
tura de linguagem distinta das demais.
acentuada. E sem vigilância com as opções de cada
O Mercado do Gozo, a peça seguinte, partiu de uma pesquisa sobre a imprensa no seminário Mídia e Poder, no qual recebemos numa
Experimentamos a aproximação com o cine-
indivíduo, o grupo tem gente que vai à umbanda,
primeira leva de palestras Mino Carta, de novo
ma nessa peça. Como teatralizar o cinema, discutir
tem gente que tem práticas espirituais; no entan-
Fernando Haddad, ao lado de Eugenio Bucci,
a forma da representação. Havia cenas feitas duas
to, tem uma linha marxista, que é mais dada pelo
Raimundo Pereira, da revista Imprensa, Tereza
vezes: uma em que uma personagem era mais
Sérgio, pela Helena Albergaria, eu não posso dizer
Cruvinel, que fazia parte d’O Globo, Marcelo
opressora e a outra mais oprimida, e depois inver-
que sou porque não tenho tanta leitura visto que
Coelho, Nelson de Sá, Fernando Rodrigues de
tendo os papéis. A leitura de distintos ângulos para
assimilo empiricamente o teatro dialético. Embora
Souza, que assina uma coluna na Folha até
o espectador e para nós mesmos. Tinha o sujeito
saiba que preciso estudar mais, como Sérgio Bu-
hoje. Mas foi pelas ideias do Haddad e do Bucci
de uma fábrica que ia ter um caso sexual com uma
arque de Holanda, que é um autor que estamos
que resolvemos mudar de rumo. Já estávamos
mulher em um cemitério. Uma operária tendendo
retomando – em O Nome do Sujeito já o líamos e
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agora em O Patrão Cordial, que é uma nossa adaptação do Puntila, de Brecht, com influência da tese d’O Homem Cordial do Sérgio Buarque de Holanda. Sempre tivemos essa curiosidade. Essa interação com alguns pensadores é muito salutar.
Razão ao inimigo Nós nos formamos sobre a égide brechtiana e mantemos uma certa fidelidade. No entanto, temos uma produção dramatúrgica própria para além dos textos do Brecht, de quem encenamos três obras: O Círculo de Giz Caucasiano, Santa Joana e agora o Puntila, que já é uma outra coisa, mas está lá o Brecht, todas as cenas por ele pensadas e adaptas pelo Latão. E há também Büchner com Danton, Heiner Müller, que por influência do Hans-Thies Lehmann transformamos entrevistas do dramaturgo alemão em uma experiência. É curiosa a nossa relação com o autor do Teatro pós-dramático, livro que no Brasil foi prefaciado pelo Sérgio e que não tem uma afinidade ideológica conosco, mas acontece o diálogo, um interesse em nós também e vice-versa, com um respeito pelas diferenças de opinião. Temos muito cuidado com o dogmatismo. O Brecht é um instrumento pra nós porque, enquanto na Europa as pessoas podem achar que ele está obsoleto, o Brasil ainda é um país de terceiro mundo, em que as questões sociais são latentes, a desigualdade é brutal e a violência social é explícita. Não seguimos a cartilha, embora a o método marxista dialético brechtiano seja uma base. No sentido de que se não há o outro lado, a contradição é menor. Óbvio que damos nosso ponto de vista, mas tentamos também ir para o lado oposto, tentamos dar razão ao inimigo, não sei se é simples de explicar, mas na nossa última peça acho que está claro. O meu Cornélio, baseado no Puntila, tem de fato momentos de humanismo. Ele não é só um crápula. O Sérgio me fala isso, ele tem que ter humanidade, quando está bêbado, veja bem. Porque o brasileiro se acha cordial. E o espectador pode olhar e dizer: esse cara tem razão. Ou pode estranhar o excesso de humanidade em algumas figuras. É o transbordamento que gera
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o questionamento no público. O famoso distan-
um produto embalado, cujas motivações não têm
de mercado que tinha feito duas ou três peças na
ciamento brechtiano, nós não só usamos como a
a mesma importância que as vendas e o alcance
raça. Tenho um pouco de vergonha desse episódio
maioria das pessoas conhece, em que o ator sai da
massivo, hegemônicos na mercantilização da vida.
e já ensaiei admitir ao Paulo do Ói Nóis que eu es-
situação dramática e narra diretamente ao públi-
Na perspectiva de apreendermos com um
tava errado com aquela visão venal. Com os anos
co na terceira pessoa. Às vezes, o distanciamento
tema e dividir os estudos com o público, foi bem
de aprendizado no Latão, passei a notar que os va-
está por uma figura silenciosa na cena, pela luz,
positivo. E a peça está viva, pois continua rece-
lores simbólicos seus têm fundamentos e buscar
por um elemento da cenografia, pelo excesso de
bendo convites. Engraçado é que ela foi indicada
aprimoramento artístico vale mais que “não perder
dramaticidade de uma cena. Esta é uma pesquisa
a alguns prêmios, mas não levou nenhum. Tem
dinheiro” em teatro. Ao Paulo Flores, as minhas
constante, e também estou pesquisando com mais
uma história muito boa em Porto Alegre, quando
desculpas e o meu agradecimento por ele ter me
afinco no campo da atuação.
apresentamos o espetáculo na sede do Ói Nóis a
ensinado.
E mesmo com tantos desvios, vamos voltar à
zero grau. Uma discussão de camarim era de que
cronologia: depois de O Mercado do Gozo, fizemos
os atores iam passar mal fazendo o primeiro ato
A música
Equívocos Colecionados, baseado em entrevistas
com aquelas roupas mínimas. O Sérgio dizia: “Vão
Os músicos atravessam o grupo desde o início
de Heiner Müller, depois Visões Siamesas, que foi
passar mal, não vou mudar, não vou deixar vocês
de forma muito presente. A companhia tem dois
uma mistura de Machado de Assis com Brecht, e
usarem uma roupinha por baixo”. Foi uma situação
CDs com as canções das peças e está produzindo
na sequência O Círculo de Giz Caucasiano, Ópera
muito curiosa, tinha gente na plateia assistindo à
um terceiro. Com a parceria de Martin Eikmeier,
dos Vivos e agora o Puntila, entremeado por alguns
peça de cobertor. Foi incrível! E devemos muito à
integrante do grupo, os atores praticam a mu-
experimentos.
Terreira da Tribo o engajamento de todos eles por-
sicalidade todos os dias, na sala de ensaios, que
que, como a peça tem quatro espaços cênicos dife-
tem um piano. Já tivemos Walter Garcia, Lincoln
Síntese da obra
rentes, se é um espaço maior, o público se desloca
Antônio e Luís Felipe Gama como parceiros, e
Algumas pessoas que assistiram à Ópera dos Vivos
de um local a outro, mas ali não era tão grande e
vários bons nomes como Juçara Marçal, Sandra
e que viram outras coisas nossas, disseram que
houve mudanças de cenário nos intervalos da peça
Ximenez e de contribuições de dentro do grupo
é um resumo da nossa ópera toda. O espetáculo
que foram ensaiadas. A alteração de arquibancada
como a da atriz Alessandra Fernandez. O contí-
contém assertivas, elementos e contradições de
de um lado para outro parecia um balé, um balé
nuo interesse da direção pela prática e por um
obras anteriores, uma espécie de síntese, súmula
cenográfico e não coreográfico. Um momento
pensamento musical fez de mim, por exemplo,
da nossa poética. São quatro horas, quatro atos
marcante para nós. E são grupos que têm linhas
que não canto, alguém que até consegue puxar
que observam a relação da cultura com o Brasil
distintas, nós marxista e eles não. No entanto, há
umas notas, mas prefiro seguir os colegas afina-
desde a década de 1950 até os dias atuais. Deman-
um profundo respeito e uma admiração mútua,
dos. Fomos nos apropriando da função narrativa
dou três anos de pesquisa. Optamos por lingua-
mesmo que as opiniões às vezes não coincidam.
das canções, sem descartar seu lirismo e drama-
gens: a teatral é protagonista do primeiro ato, em
Vou revelar aqui algo que há tempos estou
ticidade. Alguns atores compõem, mas aplicar o
que visitamos, ao nosso modo, a produção Centro
para comentar com o Paulo Flores e que ainda
princípio da contradição, que vem se tornando
Popular de Cultura (CPC) da UNE; o cinema do
não tive coragem. Em 1977, a Cooperativa Pau-
uma matriz para nós, tem gerado melodias leves
segundo ato, que é um filme que dialoga com o
lista de Teatro organizou a 1 Mostra Brasileira de
com letras estranhas que desarmonizam a união
cinema novo, como já tínhamos feito em Equívo-
Teatro de Grupo, pelas mãos do então presidente
usual de letras de amor ao som suave de um pia-
cos Colecionáveis, para o qual trouxemos a obra do
Luiz Amorim e com o empenho dos Parlapatões.
no ou violino. Diversas vezes fazemos o oposto.
Glauber à tona em conexão com o Heiner Müller; a
Coordenei um encontro sobre produção, visto que
Colocamos trechos de Marx com fundo musical
música do terceiro, um show tropicalista em deba-
era ator e produtor do Latão. Mas na hora regredi
lírico. É uma espécie de estranhamento musical.
te com a MPB; e o quarto ato é sobre o trabalho ar-
para as produções que tinha feito antes de entrar
Todavia somos um coletivo de teatro, o que
tístico atual via TV. Este último segmento de Ópera
no grupo e falei umas bobagens do gênero: “... eu
abrange a produção de peças, a pedagogia cênica
dos Vivos talvez ganhe continuidade – o Sérgio
nunca perdi dinheiro com teatro e outras piores
e musical, algumas levadas em vídeo e cinema, pu-
fala em um desdobramento – porque é muito clara
talvez. O Flores reagiu e mandou de volta para
blicações (quatro livros, uma revista e dois jornais)
a influência da TV na vida de todos nós, é brutal.
mim: “Mas você faz teatro para quê?” Creio que
e ainda a participação em debates e palestras sobre
Na peça, de certa forma lançamos a ideia de que
gaguejei naquele momento, pois só então me dei
cultura e política. Sendo que Sérgio de Carvalho,
a cultura já foi mais importante para a socieda-
conta que estava em um contexto coletivo e po-
eu, Helena Albergaria, Martin Eikmeier e João Pis-
de brasileira e porque hoje ela virou um pastiche,
litizado, mas com a cabeça de um produtorzinho
sarra somos quem está há mais tempo no grupo.
a
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Ativismo cultural
Não sei o que será da minha década na co-
-la quando lançamos o livro dos cinco anos da Lei
Cheguei à Cooperativa Paulista de Teatro (CPT) pela
operativa, como vão analisar isso, mas fizemos
de Fomento, quando começamos a perceber que
Companhia do Latão, quando o movimento Arte
muita coisa.
lutávamos mais por nós. Foi então que elaborei
Contra a Barbárie surgiu em 1997/98. O movimen-
Como exponencial, cito a Mostra Latino-
uma visão de que somos meio, assim como a saúde
to ganhou muita força, a direção da cooperativa
-Americana de Teatro de Grupo que vai para sua
e a educação. O fim é a população e no momento
estava sendo renovada e me empurraram. Eu fui.
nona edição em 2014, e foi uma ousadia. Lembro
não sei ao certo para qual lado a balança pende.
Fiquei dois anos como vice e oito como presidente
que o Sérgio me falou (quase tudo que eu fiz lá
– saí em março deste ano – mas nunca deixei de
teve uma mão dele e digo isso com muito orgulho):
atuar. A gestão tem aspectos muito interessantes
“Agora que você entrou lá, faz alguma coisa.” E eu:
10 anos da Lei de Fomento ao Teatro de Grupos
e outros complicados. O principal feito da CPT é
“O quê?” Ele: “Sei lá, alguma coisa latino-america-
Tomei a inciativa de lançar livro de cinco e dez anos
sobreviver por mais de três décadas diante de uma
na.” E está na nona edição. Traz grupos do Brasil
da Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo e com
era de desagregação. Acho que esse exercício do
inteiro, vários do Rio Grande do Sul e de toda a
muita polêmica, injustiças, omissões, mais espaço
encontro é o ganho intangível maior, e o fato de
América Latina. Só tem um grupo de São Paulo por
pra uns do que pra outros, o que me pareceu ine-
uma cooperativa estar resistindo como uma asso-
ano. E por isso enfrentamos divergências internas.
vitável. Lembro que quis fazer um documentário
ciação de artistas e núcleos para mim é um fenô-
As pessoas questionam como é que se faz uma
sobre a lei logo nos seus primeiros anos e me dis-
meno mundial. Porque somos um bando de loucos,
mostra e tem apenas um grupo da cooperativa.
seram: “Cada grupo tem que ter o mesmo espaço,
desavisados e sem gestão, que é algo recente. Ao
O argumento é que a gente recebe convite de tan-
o mesmo tempo de exposição no vídeo”. O que é
menos pela minha ótica, embora eu possa ser de
tas partes do Brasil e a gente não pode retribuir?
ortodoxo demais e desisti na ocasião. Mas com
outra cepa. Assim tivemos que inventar muita
E aprender com os parceiros de outras localidades?
este livro, tentamos. Vou virar vidraça, paciência,
coisa e algumas potentes como o Arte Contra a
Hoje, os grupos circulam mais, inclusive pelo Sesc
pois tinha que ter um registro histórico e pode não
Barbárie, eu como coadjuvante, o Sérgio no cen-
e outros programas incipientes. A mostra vingou e
ser o melhor. Na minha opinião, ele é autocrítico,
tro junto com outros parceiros. Na cooperativa,
tenho que citar o Alexandre Roit, com quem dese-
se lerem os artigos das pessoas que comentam o
sempre fui um porta-voz, sempre me reportei aos
nhei o formato do festival.
espectro é variável, heterogêneo e damos a cara à
mais experientes, entrei no Conselho de Cultura da cidade de São Paulo. Foi um aprendizado.
Atualmente, tem umas quatro ou cinco mostras latino-americanas, e a nossa é a primeira. Um
tapa. Se quiserem falar mal da cooperativa podem falar, devem falar.
Sou muito temperamental, explosivo, foram
outro modelo, que incentivei foi ideia de um coo-
Mas, por favor, imaginem um grupo de ar-
muitas batalhas que levaram a confrontos necessá-
perado, o Edson Caiero, que é um projeto chamado
tistas, técnicos e pensadores conseguir uma sede
rios. Nem todos, é claro. Por exemplo, levamos 500
Teatro nos Parques: são só apresentações ao ar li-
própria no centro de São Paulo e construir uma
pessoas às ruas quando o governo de José Serra deu
vre em parque públicos da cidade, este, sim, na sua
sociedade que chegou a ter mais de quatro mil
a entender que a Lei de Fomento ao Teatro de Grupo
maioria senão a totalidade para cooperados. Mas
sócios. Há 35 anos, a cooperativa nasceu dentro
acabaria. Mobilizamos a opinião pública, os políti-
como lidamos com recursos públicos não podemos
do Incra, à época as cooperativas no Brasil eram
cos, a ponto de ele recuar. Depois fomos para cima
pensar só na corporação, e sim colocar o interes-
agrícolas em sua maioria, hoje existem coopera-
do Estado, tentamos implantar algo muito mais
se público à frente. De maneira que este exercício
tivas por todo o país, inclusive as falsas coopera-
aberto que a Lei de Fomento, um fundo para todas
de cidadania cultural, de autoeducação entre os
tivas. E a CPT cooperativa sofre ataques por uma
as áreas da cultura, e quebramos a cara. Chegamos
grupos foi a ambição primeira. Porém, superar as
desconfiança de que não somos idôneos. E isso
a colocar três mil pessoas na Assembleia Legislativa
necessidades individuais visando ao comunitário
não é verdade e continuo defendendo. É óbvio
do Estado de São Paulo, e quando digo chegamos,
é difícil. Não se pode condenar ninguém por isso,
que você não tem controle absoluto, mas se você
foi com a liderança de Marco Antonio Rodrigues e
porque a sobrevivência sempre fala mais alto, é
pensar que cada vez que um cooperado comete
Luiz Carlos Moreira, entre numerosos militantes. Eu
um princípio material, não tem como escapar dis-
uma irregularidade na praça, isto afeta a todos.
ficava ali como um menino e às vezes dava uma de
so. Daí que equilibrar os interesses dos cooperados
E são raros os casos de má-fé, sendo que na maio-
bobo, papagaio de pirata do lado dos famosos, e os
porque merecem já que são os depositários e a
ria dos casos são reparáveis. A gestão não é de uma
amigos lúcidos me davam toques, como o Sérgio de
sociedade existe por eles e para eles e, ao mesmo
empresa capitalista. Contratamos gestores de fora
Carvalho. Estupidez à parte, eu reconhecia minha
tempo, ter em mente de que não somos o fim da
dentro dos limites financeiros da agremiação. É um
inexperiência e, com as leituras proporcionadas no
linha, é uma autocrítica recente da nossa parte. Se
modo muito particular de operar o fazer artístico,
Latão, fui me corrigindo.
não me engano, foi o Sérgio que começou a fazê-
com nuances, e vamos cuidando dos incêndios
CADERNO DE TEATRO
segundo SEMESTRE
2013
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aos trancos e barrancos, resgatando o histórico e
educativo, se a Globo tivesse me chamado talvez
viver sozinho é complicado, viver a dois é um pou-
planejando o futuro. Hoje, muitos grupos têm pu-
eu tivesse ido. Talvez eu tivesse me tornado uma
co mais difícil, em grupo é quase inviável, em uma
blicações, fazem seminários, pegam interlocutores
dessas mulheres que estão aí de luto. Será? Fiz RBS
cooperativa é impossível. O Luiz Amorim, o presi-
externos à arte e à cultura. Querem entender um
TV em Florianópolis por um ano ou dois e saí, fiz
dente anterior a mim que reergueu a cooperativa,
pouco o meio no qual estão inseridos. Geram di-
televisão em Sampa e voltei para o teatro. Fiz TV
deixou recursos para adquirir uma sede no centro
videndos, contudo, há retrocessos. Não dá pra sair
Manchete e me saíram. Parece que sou de outra
da cidade de São Paulo, a gestão do Chiquinho
assobiando como um pássaro diante das máculas.
índole, mas não posso afirmar categoricamente. Se
Cabrera, de quem fui vice, comprou, e a nossa pri-
E tudo será contado. Parte já está registrada como
para o indivíduo a pressão do meio é forte demais,
meira gestão a reformou com o pulso do Roberto
o discutível documentário que está no YouTube:
porque a pessoa quer consumo, quer conforto,
Rosa nisso. É um patrimônio coletivo de gerações.
Teatro Contra a Barbárie. Houve quem detestou e
quer mobilidade através de um veículo individual,
Se você perguntar qual é meu legado eu não sei.
quem achou que tem validade.
a mesma coisa se dá em relação aos grupos.
Há controvérsias, melhor perguntar aos outros. Se
Como foi uma iniciativa da diretoria da CPT,
As pessoas têm uma imagem de que a Com-
quem não estava no documentário queria nos
panhia do Latão é uma companhia estabelecida
Estou em um momento de desilusão, mas
matar. E demos liberdade para o diretor, Evaldo
e bem de vida. Ganhamos uma ajuda de custo
ainda dou umas bufadas. O ITI está propondo a
Mocarzel, um cineasta que transita no teatro. Só
dentro da companhia, mas para eu adquirir esta
equiparação entre renúncia fiscal e fundo públi-
dissemos, no primeiro corte que vimos, para tirar o
consciência que cheguei à cooperativa via Latão,
co na reforma da Lei Rouanet. Fizemos um mo-
pessoal da diretoria do filme, e ele resistiu. Insisti-
cheguei à Unesco pelo Latão – embora o Latão
vimento, o Cultura Travessa, agora em São Paulo,
mos que a primeira leitura que vai se fazer é que a
não tenha relação direta com esta minha escolha
em que me liguei ao Zé Celso e ao Teatro Oficina.
diretoria fez um filme para eles mesmos. Sou um
recente com isso, a criação, em 2010, do Centro
Fizemos quatro edições. Foram debates intensos,
pouco mais velho e sei que isto é uma bobagem,
ITI Brasil – Instituto Internacional de Teatro. Até
porém vivemos na sociedade do espetáculo e por
não se impõe um reconhecimento, reconhecimen-
cheguei a USP pelo Latão, então tenho outros ga-
mais que a critiquemos, nós aprendemos a gostar
to vem do outro e, se não vier, paciência, vai pra
nhos, que é ser menos ignorante. Quando eu e
do espetáculo, ele está em nós. É uma coisa que foi
um consultório de psicanálise discutir isso. Mas
o Sérgio comemoramos 15 anos de parceria, no
falada lá atrás no seminário da peça O Mercado do
essa visão é fruto de muita pancadaria e da sorte
Rio de Janeiro, era final de uma eleição, da Dilma
Gozo: compraram o nosso olhar. Não temos mais
de ter um parceiro como o Sérgio, que é um sujeito
se não me engano, as pessoas queriam ouvir his-
imaginário próprio, e isso arde.
bem mais razoável que eu, e de ter uma analista
tórias e a frase que me veio à cabeça foi: depois
Concluindo, o interesse é pela alteridade,
como a Maria Rita Kehl.
que eu conheci o Sérgio, eu me tornei uma pessoa
porque quando voltamos para a obra de um Ma-
melhor. E ele disse a mesma coisa. Foi educado.
chado de Assis, estudamos o caráter do brasileiro
Pressão mercadológica
Temos que ser gratos por encontrar pessoas que
e, consequentemente, o nosso. É preciso educar
Fiz parte da Câmara Setorial de Teatro por conse-
iluminam a sua trajetória e lhe falam que dinhei-
olhar para fora.
quência da cooperativa e fui um dos relatores do
ro não é tão importante. Conhecimento é mais.
Plano Setorial de Teatro, promovemos o Congresso
Você não é tão interessante, vai estudar. E isso
Intercâmbio com outros grupos
Brasileiro de Teatro em São Paulo e participamos
dentro da sala de ensaio, mudando para o cam-
Fiquei na presidência da cooperativa por 10 anos
do Redemoinho, que teve sede um ano em Porto
po da atuação, que é um lugar que me mobili-
pela categoria e, sem hipocrisias, lutamos pelos
Alegre com a Terreira da Tribo. Há acúmulo, mas
za muito, temos a tendência de defender nosso
outros e por nós. Na verdade, este movimento ar-
admito um momento de retrocesso, que as indi-
caráter, nossa moral diante de um personagem.
tístico, politizado ou não, mas de grupos, sobretu-
vidualidades estão falando mais alto que os agru-
E doía ouvir da direção: “Esse cara é um imbecil,
do, é o modo de produção coletivizado que reúne
pamentos. A pressão externa é muito grande e
um idiota”. E eu, pateticamente respondia: “Mas
centenas de grupos em São Paulo e outras tantas
analisemos: uma pessoa que está dentro do nosso
ele podia...” – “Não, o personagem é burro!”
dezenas pelo país afora. Depende da luta conjun-
é que vão falar, talvez falem mal.
grupo enfrenta em sua vida questões econômicas,
Quando você passa pro outro lado, e se ima-
ta dentro e fora dos coletivos, ao lado de outros
mercadológicas e midiáticas violentas. Eu passei
gina e tenta ser uma besta ainda pior que você
grupos, pois uma coisa retroalimenta a outra.
a arrebentação com muita dor e até eu brinco às
mesmo e quem sabe algo resulte deste paradoxo.
É muito difícil manter um projeto associativista se
vezes: não é que eu não quis me vender, é que nin-
Uma desfaçatez consigo de trincar o ego ao meio.
você não se juntar a outros grupos. Então, minha
guém quis me comprar. Quando eu estava na TV
Se você for colocar isso em um coletivo é muito
permanência na cooperativa também se deveu
Cultura, dois ou três anos fazendo um programa
mais difícil. Tem uma broma que costumo fazer:
a isto, a minha consciência de que não basta o
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2013
48
trabalho dentro de uma companhia, pois temos que nos unir aos outros. Nesse sentido, surgiram algumas iniciativas, dentro e fora da cooperativa. O próprio movimento Arte Contra a Barbárie já foi a reunião de alguns grupos e pessoas. A edição do jornal O Sarrafo foi outra ideia que juntou cinco ou seis grupos. Então essas experiências de reunir vários coletivos são necessárias tanto que grupos polo como o Ói Nóis, o Galpão, o Vila Velha sempre têm um intercâmbio com vizinhos. Abrem espaço para novos grupos, fazem parcerias, nós mesmos já fizemos parcerias com Ói Nóis, com o Galpão, e em São Paulo temos vários parceiros. Quando ocupamos o Teatro de Arena pela segunda vez em 2012, ganhamos o edital e chamamos vários grupos para mostrarem seu trabalho lá. Inclusive abrimos uma temporada de um mês para o Alfenin da Paraíba, do ex-diretor do Latão Márcio Marciano, tirando parte dos recursos que recebemos da Funarte e endereçando a eles, uma fatia razoável, porque do nosso ponto de vista, a retenção econômica não
ência de que a cultura é um dever do Estado e um
casa com esse pensamento.
direito do cidadão. A Petrobras poderia estar ainda
O intercâmbio tem um papel de mútuo
na linha ainda de patrocinar coisas de interesse co-
aprendizado. Se fazemos parte de uma coletivida-
mercial. As pessoas conhecidas iam lá e conseguiam
de maior com grupos de teatro politizado, o que
os recursos. Hoje, tem um programa, não só na
e como está chegando à população? Quais são as
área de teatro. Todavia, a tímida cultura de editais
preocupações que não ultrapassam a porta de sa-
já gerou sua contraface, e temos participação nis-
ída do espaço cênico, que é mais interna do que
so. Certa vez, o jornalista Marcelo Coelho escreveu,
externa às pessoas que estão pagando para fazer-
creio que na década passada, que a esperança de
mos arte, já que vivemos de programas públicos?
mudança que estava ocorrendo teve origem em um
Estamos apenas amadurecendo esse princípio do
trabalho como o do Latão. Ele não é um cara de es-
interesse público. Podemos até resolver um proble-
querda, mas também não é um reacionário, e aqui-
ma de subsistência aqui e ali, mas a força maior
lo me chamou a atenção porque aumenta a nossa
é mudar a sociedade. Deixar ela mais horizontal,
responsabilidade. Se não atingimos a amplitude que
mais igualitária, e se a gente não se atenta, isso vai
desejamos, o nosso nada é alguma coisa. A nossa
se perdendo no meio do caminho.
pequena ilha não está tão isolada, assim como outras, tão ou mais importantes do que a nossa.
Responsabilidade
Por fim, o futuro. Temos três anos pela frente
Minha migração para a cooperativa se deu por ne-
patrocinados pela Petrobras, DVDs, jornais e revis-
cessidade, se não lutássemos pela implantação e
tas, e assim caminha a Companhia do Latão. E eu
manutenção da Lei de Fomento ao Teatro em São
estou esperando a resposta do concurso para um
Paulo, pela ampliação pública no setor cultural tam-
doutorado na USP, sobre a pedagogia teatral do
bém em escala estadual e federal, muitos de nós
grupo, que será uma sistematização do que esta-
não teriam acesso aos editais em voga. Talvez, tenha
mos e pretendemos transmitir às novas gerações.
sido uma consequência desta tomada de consci-
CADERNO de caderno DE teatro TEATRO
segundo SEMESTRE
2013
Por Sérgio de Carvalho Dramaturgo e encenador da Companhia do Latão. É também pesquisador e professor de Dramaturgia e Crítica na Universidade de São Paulo.
1 Diário de Trabalho, volume I: 1938-1941. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 24. 2 A Compra do Latão (1939-1955), op.cit., p. 54. 3 Narrativa completa 3: Historias del senõr Keuner/Me-ti, livro de los câmbios. Op.cit, p. 82.
49
Brecht e a dialética A compreensão do indivíduo como fenômeno
contém a visão plena do projeto. Ele defende uma
um grande número de pessoas indivi-
social, nos termos do teatro como “imagem pra-
funcionalidade que se opõe ao idealismo artístico
duais, sendo estas, portanto, suprimidas
ticável”, está também no centro da melhor teoria
de alguns atores, mas por sua vez é criticado pela
como indivíduos. Para a classe são váli-
escrita por Brecht naqueles anos do exílio.
situação concreta do trabalho teatral. Toda a obra
das determinadas leis. Estas são válidas
Como se sabe, ele imaginou realizar uma
artística de Brecht está marcada pela procura de
para a pessoa individual na medida em
grande síntese de sua visão teatral num projeto
uma unidade contraditória entre reflexão e ação,
que ela é idêntica à classe, portanto não
chamado A Compra do Latão, que permaneceu in-
num movimento em que a própria condição está-
absolutamente. (…) Vocês não represen-
completo e fragmentado. Mais do que escrever so-
vel da obra entra em causa. Nas quatro noites, eles
tam princípios, mas seres humanos.”[2]
bre a dialética do teatro, ele procurou uma forma
falam do teatro político de Piscator, comparando
literária dessa dialética. Com esse intuito, Brecht
suas conquistas às do Homem de Augsburg, dos
Juízos novos
imaginou um diálogo entre um grupo que se des-
limites e da força do Naturalismo, de Shakespeare
O Grande Método de Brecht só confirma a for-
dobraria por quatro noites. De um lado, um grupo
como um dramaturgo-chefe de um coletivo, da
ça da atitude dialética quando livre de qualquer
de atores que encenam uma peça de Shakespeare,
arte do ator como elaboração histórica, da função
mecanicismo teleológico. Sua obra se ergue sobre
de outro, um filósofo convidado. O debate acon-
desalienante da arte ligada a um estilo alienante de
categorias móveis, por sua vez negadas pela re-
tece – distanciadamente – enquanto os técnicos
representação, da importância de se estudar auto-
alidade dos materiais de arte. Ela mostra visões
desmontam o cenário após cada apresentação e é
res “clássicos” como Marx.
que são válidas num momento e circunstância
mediado por um dramaturgista.
Na dramaturgia Planetário apresentada pelo
determinadas, mas que após um tempo e noutra
No Diário de Trabalho, numa nota de fevereiro
filósofo, o espectador está parado, olhando para o
circunstância já não são e atuar sobre o dinamis-
de 1939, existe um resumo do projeto ao qual Bre-
movimento dos astros com o intuito de entender
mo é o trabalho do espectador.
cht se dedicou por 16 anos:
suas leis dinâmicas. Ela é contraposta ao teatro do
Me-ti dizia:
Carrossel, em que o espectador gira e dá saltos em “Um bocado de teoria em forma de diá-
torno de um centro, sem romper com o circuito
“As experiências se transformam muito
logo em A Compra do Latão. Fui estimu-
emocional. O grande teatro dialético está bem mais
rapidamente em juízos. (…) A maioria
lado a usar essa forma pelos Diálogos de
distante do Carrossel do que do Planetário. O mo-
das pessoas se lembra dos juízos, acredi-
Galileu. Quatro noites. O filósofo insiste
delo de Brecht, entretanto, não é uma coisa nem
tando que eles correspondem às experi-
no teatro do tipo P (tipo planetário, em
outra. Ainda que procure discutir causalidades de
ências reais”. Sobre isso Me-ti sugere: “E
vez do tipo C, tipo carrossel) simples-
comportamentos, seu movimento filosofante des-
está claro que os juízos não são tão con-
mente para fins didáticos: movimentos
confia das configurações em abstrato. A constru-
fiáveis como as experiências. Para con-
de pessoas organizados como meros
ção material é a base de sua atitude dramatúrgica,
servar frescas as experiências é preciso
modelos para finalidades de estudo, para
e seu teatro rejeita o obscurantismo com as mes-
uma técnica especial que permita tirar
mostrar como funcionam as relações
mas forças que despreza as generalizações falsas e
delas continuamente juízos novos.”[3]
sociais, a fim de que a sociedade possa
ama a imprevisibilidade e impureza da vida.
intervir. Os desejos deles se transformam em teatro, já que podem ser executados
São conselhos do filósofo de A Compra do Latão aos atores:
O modelo brechtiano é um dos experimentos imaginativos capazes de gerar juízos novos. Sua dialética não pode ser deduzida dos conceitos, de
no teatro. De uma crítica do teatro surge um novo teatro. A coisa toda concebi-
“Quando pensam que um camponês
sua história ideológica, mas de seus vínculos his-
da de modo a poder ser realizada, com
terá – em determinadas circunstâncias –
tóricos com práticas possíveis. “É preciso deduzir a
experimentos e exercícios. Centrada no
uma determinada maneira de agir, então
dialética da realidade”, era uma de suas formula-
Efeito de Estranhamento.”
escolham um camponês bem determi-
ções recorrentes.
[1]
nado. E não um escolhido ou construído A Compra do Latão é uma teoria-prática, um
só pela condescendência em agir exata-
tratado fragmentário que surge da interação en-
mente de tal forma. (…) A noção classe,
tre diversos pontos de vista: não é o filósofo que
por exemplo, é uma noção que engloba
O texto integral pode ser lido no livro Pensamento Alemão no século XX, vol. III, organização de Jorge de Almeida e Wolfgang Bader, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.111-134
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2013
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Festival: Oportunidade para alunos e professores Spalla do naipe de
já era spalla (1º violino) da Sinfônica Jovem de São
violas da Osesp, Horácio
Paulo e também participava de festivais.
Passados os nove anos de formação na Alemanha, seu quarteto havia se desfeito, e o músico
Schaefer estará no IV
Ainda sem convicção do rumo que ia seguir,
passou no concurso para viola solista da Orques-
na música ou não, e prestes a fazer vestibular,
tra Filarmônica de Essen. Dois anos depois, entrou
Festival internacional
ocorreu o fato que seria o divisor de águas: tocar
para a conceituada Orquestra Sinfônica da Rádio
sesc de música, de 19 a 31
para o Quarteto Amadeus, um grupo de cordas
de Frankfurt, onde tocou também com o Sexteto de
que fez história na música ao estabelecer padrões
Cordas por três anos. Foi membro ainda da Orques-
de como tocar nesta formação. Em grandes tur-
tra de Câmara Deutsche Bach Solisten.
de janeiro de 2014, em pelotas
nês mundiais, passava pelo Brasil uma vez por
“Aí bateu uma saudade grande do Brasil. Tive
ano. Os músicos eram amigos da família de uma
a sensação de ‘puxa, consegui conquistar um obje-
colega de Horácio na escola de música. “A mãe
tivo tão grande que não vou mais embora nunca,
dela era minha fã, me considerava um menino
vou viver o resto da minha vida aqui’, e aquilo me
prodígio e avisou a minha mãe que o grupo es-
assustou”, lembra. Surgiram, então, convites para
tava tomando café na sua casa e que era pra eu
atuar no Brasil, um para dar aulas na Universidade
Iniciar o estudo de um instrumento cedo e dedi-
ir tocar para eles. Lembro que estava indo jogar
de São Paulo (USP), outro para formação de uma
car-se muito, ingressar em uma orquestra jovem e
futebol – era do time da escola –, peguei meu vio-
orquestra de câmara e um terceiro, de Eleazar de
participar de festivais é um dos caminhos aponta-
lino e fui tocar.” Impressionados com seu talento,
Carvalho, para participar de um projeto de criação
dos por Horácio Schaefer, spalla das violas da Or-
os músicos fizeram contato com o professor Max
de uma escola de música. Licenciado da Orques-
questra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp),
Rostal, com quem estudaram na Europa, e Horá-
tra da Rádio de Frankfurt, Horácio passou alguns
para buscar uma carreira de músico de concerto.
cio preparou-se para uma rigorosa seleção, já que
meses no país, onde ainda coordenou um proje-
A trajetória indicada pelo músico é exatamente
a classe consistia em no máximo 12 alunos.
to de formação de professores de instrumentos
a que ele percorreu. Ainda adolescente, quando
“Músicos do mundo inteiro queriam estudar
de cordas no Nordeste. “Retornei para Europa e a
convidado a tocar para os integrantes do mais fa-
com Max Rostal e fui um dos aprovados. O que fa-
lembrança daquelas praias mais lindas do planeta,
moso quarteto de cordas do mundo em meados
cilitou minha ida à Alemanha é que os estudos nes-
depois de 15 anos no frio, ajudaram na decisão, em
dos anos de 1970, o britânico Quarteto Amadeus,
ta área são pagos pelo governo, e eu só precisaria
1987, de tentar a vida aqui.”
surpreendeu e não deixou de aproveitar as oportu-
bancar minha subsistência, e ainda consegui uma
nidades que surgiram.
bolsa”, conta. No quarto ano na Escola Superior de
De volta ao Brasil
Horácio vem de uma família de refugiados
Música de Colônia, prestes a concluir a graduação,
O retorno não foi fácil, e Horácio levou quase uma
judeus da Alemanha e, por uma questão cultural,
Horácio teria novamente contato com o Amadeus,
década para se readaptar. Além da desorganização,
a música clássica sempre esteve presente na sua
que havia sido convidado a dar aula na mesma
segundo ele, o nível da música clássica ainda era
casa. Aos nove anos, pediu – e ganhou – um violi-
instituição. Permaneceu por mais cinco anos, es-
baixíssimo, por conta de escassos investimentos.
no. Daquele momento até os 18 anos, estudou com
pecializando-se na formação quarteto, enquanto
“Havia poucas pessoas, alguns aventureiros de alto
uma conceituada professora suíça, Lola Benda, que
participava de festivais pelo mundo e gravava com
nível que tentavam fazer alguma coisa, entre eles, o
depois voltou para seu país. Aos 17 anos, o músico
o seu Quarteto Ravel em diversas rádios da Europa.
Eleazar de Carvalho, que assumiu a direção do Fes-
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2013
51
tival de Inverno de Campos do Jordão, em 1973 – o
a trilhar para aprender bem um instrumento e tor-
em uma peça de um dos recitais. “A empatia foi tão
evento havia sido criado em 1970 por Luís Arroba
nar aquilo sua profissão”, explica.
grande, foi tão natural que estamos em contato
Martins e Camargo Guarnieri. Era um movimento bacana, mas durava apenas um mês.”
Para os alunos mais adiantados, o festival per-
constante, com planos para tocar nos Estados Uni-
mite uma troca de informações com professores e
dos e no Brasil em 2014. Por outro lado, tenho um
Outra iniciativa isolada apontada pelo mú-
novas ideias, além do convívio com outros jovens
aluno na academia que funciona dentro da Osesp
sico foi a criação da Orquestra Sinfônica da Pa-
para fazer música de câmara juntos. “É uma vi-
que ganhou o Prêmio Eleazar de Carvalho, em di-
raíba, no final da década de 1980, pelo governa-
vência muito bacana porque é possível aprender o
nheiro, e foi convidado imediatamente por uma
dor Tarcísio Burity, que havia estudado em Paris,
tempo inteiro e obter informações que os alunos
professora do Conservatório de Haia, na Holanda,
gostava de música e tornou-se amigo de Eleazar.
jamais teriam nas suas cidades.” Os que se desta-
para estudar lá, com bolsa. Acontece todo o ano.”
“Era excelente, alguns músicos foram importa-
cam conseguem, muitas vezes, serem levados por
dos dos Estados Unidos, com altos salários, mas
professores para estudar em outros países, Alema-
Construção da carreira
durou quatro anos e, ao fim do governo, acabou
nha, França, até mesmo com bolsas.
Se os festivais oferecem uma grande oportuni-
o projeto, que foi retomado quatro anos depois,
Os professores, por sua vez, têm no festival
dade para conhecer escolas de instrumentos, por
quando o governador se reelegeu. Eu dei aulas lá,
uma vitrine. “Você aparece na mídia, no concerto
meio de professores que estudaram na Alemanha,
toquei na orquestra, que terminou novamente no
com um público enorme da cidade, e os alunos de
na Rússia, na França, entre outros lugares, e auxi-
final da segunda gestão.”
toda a parte vão difundir o seu nome pelos lugares
liar na decisão de onde seguir os estudos, Horá-
Para o violista, a grande revolução, que
para onde vão voltar. Isso acaba formando público
cio alerta que é necessário começar muito antes,
ainda está em curso no país, ocorreu a partir da
para você pessoalmente. Também fazemos contato,
com o apoio dos pais, se o jovem quer trilhar uma
reformulação da Osesp, em 1997, pelo maestro
assim, como os alunos, com pessoas de fora para
carreira, entrar em um mercado mais amplo que o
John Neschling com apoio de uma equipe de go-
fazer trabalhos com eles em seus países ou trazendo
Brasil. “Nosso país ainda sofre isso de começar o
verno, que estabeleceu parâmetros semelhantes
elas para cá.” Horácio cita como exemplo o último
estudo de música muito tarde e trabalhar muito
aos da Europa e Estados Unidos. “No rastro des-
Festival de Campos do Jordão, quando foi convida-
cedo. Como muitos jovens vêm de famílias de pou-
sa nova Osesp, muita coisa aconteceu no Brasil,
do por um quarteto de residência norte-americano,
cos recursos, acabam vendo na música uma pos-
muita gente acordou, viu que existia público,
o Enso String Quartet, para fazer a segunda viola
sibilidade de ascensão financeira, social, estudam
existia receptividade para a cultura de um nível
três, quatro anos de instrumento, tocam mais ou
mais elevado. Eu entrei na orquestra na segunda
menos, e já conseguem um emprego em orquestra
temporada.” A Osesp é hoje considerada a melhor
de menor qualidade, casamentos, festas, às vezes,
orquestra da América Latina.
porque vai ajudar a família. Esse é o fim da carreira séria”, avalia. O violista considera necessário es-
Festivais de música
tudar pelo menos 10 anos com muito afinco para
Um dos professores do Festival Internacional Sesc
conseguir entrar em uma orquestra de alto nível.
de Música em Pelotas, em janeiro de 2014, pelo se-
Para Horácio, até mesmo conhecer a cultura
gundo ano consecutivo, Horácio destaca que a par-
do local onde as músicas de concerto foram com-
ticipação em eventos como este traz possibilidades
postas – cerca de 90% são de origem anglo-saxôni-
em todos os níveis: para alunos iniciantes, para os
ca, provenientes da Europa Central – faz a diferen-
mais adiantados e também para os professores.
ça. “É imprescindível que o aluno conheça isso, caso
Os mais jovens, em um mesmo festival, po-
contrário não tem como interpretar sem nunca ter
dem fazer aulas com até três professores de for-
visto, sentido o cheiro, sentido o ar, o ambiente em
mações diferentes e buscar uma identificação com
que as peças foram criadas. Mas como o aluno de
alguma escola para continuar seus estudos. “Se pe-
baixa renda vai conseguir visitar esses lugares?
garmos toda a América do Sul, tem pouquíssimos
É um grande problema, mas tem que ir. As orques-
lugares com realmente bons professores de viola,
tras jovens proporcionam isso, se apresentam fora
por exemplo. Num festival, dá-se oportunidade ao
do Brasil, e isso é uma grande oportunidade para os
jovem de lugares distantes dos grandes centros de
jovens de 16, 17 anos.”
ter conhecimento de que existe um caminho legal
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2013
52
Da Orquestra filarmônica de Berlim a Pelotas Um dos mais conceituados intérpretes portugue-
Músico português Abel Ferreira é trompista convidado da melhor orquestra do mundo Foto: Divulgação
Quem são suas referências na música?
ses de todos os tempos, o trompista Abel Pereira
As minhas grandes referências desde muito
estará pela segunda vez no Festival Internacional
cedo foram aquelas cujas gravações ia tendo
Sesc de Música em Pelotas. Desde o mês de se-
acesso e que normalmente são as grandes
tembro, o músico que iniciou sua trajetória aos 11
orquestras mundiais e os grandes maestros
anos, quando atuou como solista no Rivoli Teatro
que dirigem essas orquestras por terem um
Municipal de Porto, é o primeiro trompista convi-
grande registro discográfico de repertório.
dado da Orquestra Filarmônica de Berlim, conside-
São elas, por exemplo: Orquestra Filarmôni-
rada a melhor do mundo. Também é professor na
ca de Berlim, Sinfônica de Chicago, Filarmô-
Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo do
nica de Nova Iorque, Filarmônica de Viena
Porto e chefe do naipe da Orquestra Sinfônica do
e Filarmônica de Londres e maestros, como
Porto. Nesta entrevista, concedida à Revista Arte
Bernard Haitink, Claudio Abado, Sir Colin
Sesc por e-mail, Abel Pereira fala de sua carreira,
Davis, Sir George Solti, Carlos Kleiber, entre
das influências, do momento da música com a cri-
outros. Felizmente, durante a minha carrei-
se na Europa e da sua participação no festival do
ra tive a oportunidade de tocar em algumas
Sesc, em janeiro de 2014.
dessas orquestras e com alguns desses ma-
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2013
53
estros. Esses momentos foram sem dúvida a
muito bem recebido no Brasil e até já me
pregos para os estudantes de música que re-
realização de alguns sonhos que fui criando
sinto em casa. Estou certo de que a cultura é
alizam os seus estudos nas escolas estatais.
ao longo dos anos, à medida que ia ouvindo
bastante diferente da Europa, e as condições
Eu acho fantástica essa iniciativa, e essa
falar dessas instituições e personalidades,
de trabalho no Brasil nem sempre são as ide-
atitude deverá servir de exemplo na Europa,
achando sempre que seriam inatingíveis. Na
ais para se fazer música clássica.
que está a esta altura, como bem sabem,
verdade não o são, e o meu lema sempre foi
vivendo um momento de crise de tal forma
perseguir os sonhos e tentar que se tornem
Quais as diferenças e semelhanças da
que, ao contrário do Brasil, estão fechando
realidade... em todos os níveis!!!
música no Brasil e na Europa referente
orquestras, escolas e dificultam o investi-
a orquestras e possibilidades?
mento nos grupos de música de câmara.
Como é sua relação com o Brasil?
A admiração pela música clássica que se vive
Estive várias vezes no Brasil. A primeira vez
na Europa tem origem nas questões cul-
O que move um músico do seu nível a
foi em 1993, numa digressão durante um
turais que tem séculos e está enraizada na
participar de um festival no sul do Brasil,
mês com uma Orquestra de Jovens de Portu-
educação das pessoas. No Brasil, a cultura
longe da capital? Qual sua expectativa?
gal, realizando concertos em diversas cida-
valoriza outros aspectos e outro tipo de coi-
Este fantástico Festival Internacional Sesc de
des, de São Paulo a Belém do Pará. Regressei
sas que no meu entender são também muito
Música é sem dúvida um excelente exemplo
alguns anos mais tarde, em 2008, ao Rio de
importantes e que criam a identidade desse
dessa aposta na cultura! Tal como no ano
Janeiro para uma masterclasse e um recital
país. Não me parece que sejam melhores ou
anterior, o elenco de professores este ano
com piano e, em 2011, voltei novamente em
piores, são apenas diferentes.
tem uma qualidade de músicos de gran-
digressão com a Orquestra Sinfônica do Por-
De qualquer forma, encontro sempre coi-
de gabarito internacional com carreiras
to – Casa da Música, atuando entre outros
sas muito positivas em todos esses projetos
agraciadas em todo o mundo. É para mim
locais na Sala São Paulo e no Festival de
que tenho realizado no Brasil, como o calor
um enorme prazer poder fazer parte desse
Campos de Jordão.
humano, a simpatia das pessoas, a fantásti-
grupo de orientadores que partilharão o
Finalmente, em 2013, estive três vezes. Em
ca comida, a estada acolhedora, o clima, o
seu conhecimento com os diversos alunos,
janeiro, para o III Festival Internacional Sesc
ambiente positivo e relaxado das pessoas e
que, tal como na edição anterior, mostrarão
de Música em Pelotas; em abril, para uma
a ausência de arrogância e prepotência que
muito interesse em absorver essa informa-
masterclasse na escola de música da Ospa
se vive muitas vezes em meios com um ní-
ção e de alguma forma mostrar o trabalho
(Orquestra Sinfônica de Porto Alegre); e, em
vel artístico muito elevado onde os egos das
que fizeram ao longo deste ano com base
agosto, para solar com a Orquestra Unisinos
pessoas falam mais alto que as suas vozes.
no conhecimento adquirido em 2013. Es-
Anchieta e para dar mais uma vez uma mas-
Seja em que país for, para mim, o mais im-
tou, portanto, muito ansioso para voltar ao
terclasse na escola da Ospa.
portante é que as pessoas gostem do que
festival do Sesc e perceber a evolução dos
Para o ano de 2014 tenho marcadas quatro
toco e da forma como interpreto. Gosto de
alunos que retornarão ao evento, além de ter
idas ao Brasil. Se Deus quiser, regressarei em
sentir essa energia por parte do público e
a oportunidade de conhecer novos alunos e
janeiro para mais um Festival Internacional
de poder partilhar o meu som e as minhas
novos professores e rever os amigos que fiz
Sesc de Música em Pelotas; em maio para
ideias musicais sem limites e com a ambição
no ano passado!
concertos solo em Curitiba e Brasília; e em
de que desejem que eu volte. Na realidade,
outubro para mais um concerto solo em São
sempre senti isso no Brasil, apesar das di-
Paulo, estando ainda por agendar um con-
ferenças culturais. No entanto, soube que
certo com a Orquestra Eleazar de Carvalho
o estado brasileiro está, neste momento,
em Fortaleza.
bastante empenhado e quer apostar num
O Brasil é sem dúvida um dos meus países
enorme investimento na cultura, no que
favoritos. Em todas as minhas visitas, senti
diz respeito, por exemplo, à música clássica,
sempre uma enorme satisfação, pois fazer
com a criação de novas orquestras, escolas e
música num país irmão e que está tão lon-
infraestruturas que permitirão, sem dúvida,
ge de Portugal, geográfica e culturalmente,
um melhor desempenho dessas instituições
é para mim um grande prazer. Sempre fui
permitindo também a criação de novos em-
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2013
Por Iná Eloísa Grabin
54
Agente de Cultura da Unidade Sesc Navegantes de Porto Alegre
Uma inesperada pausa na rotina O Festival Internacional Sesc de Música vai muito
Nas edições anteriores, o Festival na Comu-
é uma pausa para presentear o corpo e a alma.
além de duas semanas em que professores e alu-
nidade passou pelos mais diversos locais, entre
O diretor de um hospital verbalizou que, com
nos trocam contatos, vivências e conhecimento, e
eles, o setor de oncologia do Hospital Escola, asilos,
certeza, após esse tipo de trabalho com música,
a população tem a oportunidade de apreciar reci-
Hospital Geriátrico, Hospital Psiquiátrico, comuni-
os pacientes ficam mais calmos, principalmente,
tais e concertos de renomados músicos vindos de
dade de pescadores, Centro de Artistas Plásticos e
em hospitais psiquiátricos. O bacana do Festival
diversos países no teatro ou até mesmo em praças.
outros frequentados por universitários e jovens,
na Comunidade é a acessibilidade que proporcio-
Na atividade Festival na Comunidade, músicos –
igrejas e empresas apoiadoras do evento.
na para o público e como isso estimula a prática
professores e alunos – que participam do festival
São momentos encantadores esse despertar
da apreciação e contribui para formar, alegrar e
formam grupos, quintetos que vão até comunida-
da alegria que a música proporciona. Presenciamos
promover uma pausa para essa evoluída invenção
des periféricas de Pelotas, centros comunitários,
de tudo: pacientes que se levantam e dançam no
humana que é a música.
hospitais, asilos, entre outras instituições para
setor de oncologia, idosos que são convidados e
apresentação de um repertório, erudito ou popular.
ensinados a reger o grupo de músicos que tocará
A receptividade é ótima e sempre há pedido de bis
pedidos de músicas, pessoas conhecendo novos
para a próxima edição.
instrumentos, por exemplo, a tuba, o eufônio ou o
É uma forma de inclusão dessas pessoas que
fagote, descobrindo curiosidades sobre esse vasto
normalmente não assistiriam às apresentações,
campo. Em outros locais, significa uma pausa na
seja por problemas de saúde ou mesmo por es-
jornada de trabalho para apreciar música de altís-
tarem em comunidades afastadas que não têm
sima qualidade ou uma simples alteração da rotina
acesso fácil para os locais onde acontecem as de-
vivida habitualmente naquele espaço.
mais atrações. Os músicos tocam e apresentam os
O divino da música é essa comunhão que ela
instrumentos, as curiosidades sobre eles, sobre as
proporciona. É como se ela minimizasse ou aquie-
músicas que tocam e falam sobre o festival.
tasse qualquer ruído existente naquele momento,
MÚSICA
segundo SEMESTRE
2013
55
Professores e alunos participam das apresentações do Festival na Comunidade em asilos, hospitais, igrejas e outras instituições
Foto: Javier Barbinder Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Roberta Bandeira
Participar de um festival de música é de extrema importância para minha formação musical. Percebo que a cada festival que participo, abrem-se novas oportunidades, melhoro meu desempenho, tenho contato com inúmeras informações e vivências técnicas, renomados músicos, além de todo o intercâmbio com músicos estudantes de minha geração. Estar próximo de profissionais, por meio das aulas, vivência de palco, faz com que melhoremos e reciclemos nosso desempenho musical. Muitas vezes, nós estudantes, não temos a chance de fazer aula com esses grandes nomes da música, e os festivais acabam possibilitando esse encontro. Esta oportunidade é imprescindível para minha maturidade profissional. Victor De Vincenzo São Paulo (SP), pela primeira vez no Festival em Pelotas
CINEMA
SEGUNDO SEMESTRE
2013
POR willian mayer
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produtor, roteirista e diretor de cinema e televisão
O cinema repensa o real e o ficcional na internet você realmente curte aquilo que você compartilha? A internet é um espaço coletivo em construção,
as únicas responsáveis pela distribuição de con-
passam a agir diretamente sobre grande parte do
em que, constantemente, agentes e usuários es-
teúdo e, por meio de redes sociais como Twitter,
que é produzido e compartilhado. Com softwares
tão postando um novo texto, uma nova imagem,
Flickr, Facebook, YouTube etc., usuários passaram
simples e de fácil acesso, podem produzir conte-
armazenando um novo vídeo. Com a possibi-
a dividir informações de todos os tipos. Seja fo-
údo ou simplesmente aproveitar o já disponível,
lidade de inserção de vídeos nos meios digitais,
tos, textos ou vídeos, o importante é que, no cibe-
apropriando-se do que já existe.
a noção de coletividade extrapola o player que
respaço, os materiais deixaram de ser analógicos
Um usuário pode criar novos conteúdos gra-
reproduz o vídeo, pois existe a permissão de os
e tornaram-se dados numéricos, podendo ser
vando imagens e colocando um vídeo pessoal no
usuários – legalmente ou não – editarem, adicio-
inseridos, modificados e distribuídos para todo
YouTube, utilizando-se de cenas de filmes, imagens
narem comentários e realizarem downloads. As
o mundo, criando uma espécie de aldeia global,
de videogames, fotografias e, até mesmo, de ma-
formas de construção audiovisuais coletivas são
segundo McLuhan. Uma extensão mundial que
teriais já disponíveis no site. É a partir desse olhar
praticamente inesgotáveis. Atualmente, apenas
pretende interconectar todos os seres humanos
sobre a miscigenação das novas mídias com os de-
no YouTube, são inseridas mais de 100 horas de
através de um único meio, modificando a manei-
mais meios audiovisuais que escolhemos observar
material audiovisual por minuto.
ra como nos comunicamos, transformando a in-
o filme Depois das Aulas (2008) do diretor Antonio
ternet num dos principais meios de comunicação
Campos. O filme retrata a trajetória de Robert, um
da atualidade.
jovem garoto, estudante de uma escola tradicio-
A massificação do acesso à internet parece ter modificado o jeito como o próprio meio audiovisual se organiza, promovendo, inclusive,
A partir de recursos da Web 2.0, potenciali-
nal, que, assim como grande parte dos seus cole-
mudanças na forma de produzir tanto os mate-
za-se a livre criação e a organização distribuída
gas adolescentes, costuma passar horas em frente
riais audiovisuais compartilhados na rede como
de informações compartilhadas através de asso-
ao computador. Mas durante um trabalho de aula
também aqueles feitos para a televisão e o cine-
ciações mentais. Nestes casos, importa menos a
proposto na disciplina de cinema, em que o garoto
ma. Além do acesso facilitado à banda larga, o
formação especializada de membros individuais.
percorre a escola gravando imagens dos corredores,
crescimento do mercado de câmeras portáteis,
A credibilidade e relevância dos materiais publi-
ele depara-se com duas meninas tendo uma over-
bem como o aumento na capacidade de armaze-
cados é reconhecida a partir da constante dinâ-
dose. Em estado de choque, Robert apenas observa
namento dos computadores, também contribuiu
mica de construção e atualização coletiva. (PRI-
a morte das meninas, sem ajudá-las.
para o início desse processo de compartilhamen-
MO, Alex, p. 4, 2007.)
O filme inicia com uma sequência de vídeos
to de informação por parte das empresas e dos
Como a rede mundial de computadores pos-
compartilhados na internet. Robert assiste em seu
usuários. As mídias tradicionais deixaram de ser
sibilita que todos se interconectem, os usuários
computador ao vídeo de uma criança que ri sempre
CINEMA
segundo SEMESTRE
2013
57
Cenas do filme Depois das Aulas Fonte: YouTube
que alguém rasga um papel, uma briga de meninas
Ao assistirmos a cena do filme Depois das Au-
em algum colégio, um garoto que cai de bicicleta ao
las, inicialmente nos sentimos desconfortáveis pela
tentar fazer uma manobra, a execução de um ho-
excitação do personagem, frente à tamanha selva-
Mas a história ainda continua, e o diretor sur-
mem na forca, um gato tocando piano, vídeos de
geria, mas deixada a hipocrisia de lado, nos damos
preende ao levantar outros questionamentos. Evi-
soldados morrendo na guerra e, por fim, enquanto
conta de que estamos constantemente nos alimen-
tando que o envolvimento dos alunos com drogas
se masturba, assiste a um vídeo pornô de uma garo-
tando de experiências audiovisuais irrefletidas, de
se torne um problema para a escola, a diretoria so-
ta que sofre violência física e psicológica do homem
maneira muito semelhante.
licita ao aluno Robert que prepare um vídeo memo-
que está com ela.
eventualmente, mesmo que ‘chocados’, assistiríamos on-line.
Durante o filme, Robert está gravando cenas
rial em homenagem a morte das irmãs, enaltecendo
Logo de início, o diretor já problematiza uma
de um vídeo para um trabalho de aula quando se
os pontos positivos das meninas e evitando debater
questão relevante no modo como assistimos aos
depara com duas colegas, as irmãs gêmeas Talbot,
o fácil acesso às drogas, outro assunto também ex-
vídeos na internet. É como se de algum modo,
saindo do banheiro e tendo uma overdose de co-
plorado no filme, mas que não cabe na discussão
tudo que consumimos on-line fosse ficção, não
caína. Assistimos à cena a partir do ponto de vista
aqui proposta. Antes da apresentação do vídeo,
há uma reflexão sobre o audiovisual ali inserido,
da câmera de Robert, que durante alguns instantes
Robert assiste a sua versão final do projeto com
não há interesse em saber se o vídeo é real ou não.
apenas observa as meninas saindo do banheiro com
o coordenador pedagógico da escola. Procurando
Nós os assistimos, curtimos ou desgostamos deles,
os narizes ensanguentados, desmaiando no meio
retratar uma visão diferenciada sobre o assunto, o
comentamos e compartilhamos com outras pesso-
do corredor silencioso da escola. Em seguida, ele se
vídeo de Robert é bastante incômodo. Ele coloca
as, e no dia seguinte iniciamos o mesmo processo.
aproxima das meninas que gritam. Observamos o
depoimentos de alunos, mas usando os momentos
O importante é estar por dentro, divertir-se, emo-
garoto acercar-se das meninas com calma, na se-
em que eles não dizem nada ou dizem coisas sem
cionar-se às vezes. Vídeos caseiros, catástrofes,
quência, parado por um tempo e incapaz de fazer
importância. Os movimentos de câmera são bastan-
pessoas se machucando, situações de inferiorida-
algo, simplesmente colocando uma das meninas
te desconfortáveis, muito próximos do personagem
de, tudo é compartilhado como entretenimento.
sobre o seu colo enquanto a assiste morrer. Toda a
ou pouco instáveis e com falta de foco. Pouco antes
Uma imagem de um tsunami causa tão pouca re-
cena é vista a partir de uma câmera amadora, de
do término do vídeo, aparece o depoimento do di-
flexão quanto um filme de catástrofes no cinema.
qualidade inferior, em um plano bem aberto e de um
retor da escola. Robert escolhe colocar na edição o
Um vídeo de pessoas brigando é motivo de diver-
ponto de vista que pouco revela as apreensões dos
momento em que o diretor ensaia o que vai dizer
são, uma pessoa sendo atropelada é um bom vídeo
personagens. Tudo muito semelhante às produções
e não o discurso em si. Para finalizar o memorial,
para assustar o colega de trabalho.
caseiras assistidas na internet, um desses vídeos que
a última imagem usada é o plano das escadas em
CINEMA
SEGUNDO SEMESTRE
2013
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que o garoto encontra as gêmeas, poucos segundos
a maneira como editamos, a trilha que escolhemos,
mostra de costas, observamos Robert quase em
antes de elas morrerem.
o modo como decidimos apresentar um audiovisual
uma posição vouyerista. Trata-se de um plano
Ao terminar de assistir ao vídeo, o coordena-
podem gerar diferentes percepções e interpreta-
estático no qual quase nada acontece durante
dor pedagógico critica: “Eu não conheço muito de
ções. Ao mesmo tempo, quando a escola opta por
vários segundos até que Robert vira-se para a
montagem, mas isto está muito ruim. Não há nem
um vídeo que homenageie de forma tradicional a
câmera e a encara diretamente, como se olhasse
música”. Essa cena e esse comentário são relevantes
morte das meninas, somos levados a pensar que as-
para o telespectador. A imagem é então substi-
em mais de um ponto. Primeiramente, o próprio fil-
sim como grande parte dos vídeos, matérias, filmes
tuída por outra de qualidade inferior, como se
me não tem trilha em momento algum, salvo nos
a que assistimos, as partes excluídas e o modo como
alguém estivesse filmando o garoto com uma
créditos, ou seja, o diretor ao inserir um comentário
o filme é editado, suprimem tudo aquilo que pode
câmera de celular. Ele encara por mais alguns
destes está questionando a própria linguagem do
nos fazer refletir. Somos deixados apenas com as
segundos como se sentisse observado e então o
filme ao referenciar-se sobre a opinião daqueles
boas lembranças, impossibilitados de refletir sobre
filme encerra. Neste momento, o diretor coloca
que não conseguem interpretar escolhas estéticas
assuntos mais importantes.
o espectador no lugar de Robert no início do fil-
como uma tentativa de gerar novas reflexões. Ainda
Por fim, na cena final do filme, Robert está
me. Logo na primeira cena, como vimos, o garoto
no que diz respeito a essa cena, Campos demonstra
sentado na biblioteca da escola, os alunos do úl-
assiste a inúmeros vídeos de maneira displicente,
que a partir de imagens gravadas podemos gerar
timo ano estão se formando e saem do colégio
no escuro, aproveitando-se do prazer que as ima-
inúmeros sentidos com um mesmo material, e que
comemorando. Filmado por uma câmera que o
gens o proporcionam. Com a troca da qualidade da câmera e nos colocando como vouyers da vida de Robert, o diretor nos convida a questionar a força da imagem, o sentido, a importância da reflexão. Quando Robert encara o telespectador, de modo semelhante ao da garota que sofre violência sexual no vídeo a que ele assiste em seu quarto, somos levados a pensar: O que nos diferencia daquele jovem em um quarto escuro buscando prazer? Por isso, acreditamos que o diretor é muito competente ao trazer à tona um assunto tão pouco explorado. O filme Depois das Aulas é extremamente sensível ao explorar a banalização do compartilhamento de audiovisuais na internet, na
CINEMA
segundo SEMESTRE
2013
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televisão e nos demais meios de comunicação.
cessidade de produzir questionamentos no es-
É preciso pensar, protestar, promover diálogos so-
É importante que haja um espaço de comparti-
pectador. Tal qual um vídeo de internet, já não
bre os materiais que consumimos. Do contrário, a
lhamento, e as redes têm permitido o surgimento
importa se aquilo a que assisto na televisão, no
aldeia global que poderia nos unir possibilitando
de muitos materiais audiovisuais interessantes,
cinema é real ou não, desde que eu esteja sen-
culturas cada vez mais ricas e sociáveis, pode ter-
mas é necessário diferenciar o ficcional do real,
do entretido. A imagem perde o valor do real, e
minar por uniformizar padrões imbecilizados de
é imprescindível refletir sobre aquilo que é visto
torna-se simples representação. Um casal feliz
telespectadores.
on-line, pensar sobre o audiovisual e perceber o
ou um jovem garoto sendo morto são apenas a
Se não exercitarmos a reflexão, cada vez
conteúdo daquilo que se está consumindo. É pre-
reprodução desses fatos, eles em si já não são
mais vamos nos divertir assistindo a vídeos re-
ciso realmente curtir algo antes de compartilhar.
mais reais, o que ‘permite’ ao cinema e à televi-
petidos de gatos tocando piano, pessoas sendo
É preciso antes de tudo levantar alguns questio-
são suprimirem os fatos desinteressantes.
enforcadas, cidades sendo destruídas por catás-
namentos sobre quais os motivos nos levaram a tal apatia frente aos audiovisuais.
Não há, porém, imparcialidade que resista à
trofes climáticas, enquanto uma infinidade de
visão do diretor, do cinegrafista, do montador, do
materiais interessantes se perde no ciberespaço,
Há inúmeras pistas, mas acredito que a fal-
plano escolhido, da trilha, da editoria. Isso mais
ou deixa de ser produzido com a desculpa de que
ta de reflexão imposta pela ausência de discus-
uma vez nos leva a compartilhar ideias simplistas
um vídeo inteligente não pode ser tão bom, afinal:
são nos meios tradicionais como a televisão e
de assuntos tão importantes, nesses casos, não
“Não há nem música”.
o cinema são de algum modo o prelúdio desse
somente no mundo virtual, mas também no real.
momento atual. O cinema há muito está repleto de filmes cheios de diálogos vazios, cenas de ação sem motivação dramática, planos que não duram mais que poucos segundos e narrativas que deixam pouco espaço para a imaginação. Com filmes tão digeridos, pouco sobra para que o espectador possa de fato exercitar sua introspecção e levantar questionamentos sobre aquilo que assiste. A televisão da mesma forma produz conteúdo jornalístico totalmente maquinal. Podemos assistir diariamente inúmeras notícias, sejam elas trágicas ou felizes, completamente ficcionalizadas. Com a desculpa de produzir matérias imparciais, os jornais renunciam a ne-
SEGUNDO SEMESTRE
ARTES VISUAIS
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O Imaginário de Tom: da Paleta à Letra Ilustrador e escritor André Neves expõe objetos entalhados, desenhos e pinturas inspirados no livro Tom
ARTES VISUAIS
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Por esse livro, o mais recente, o autor recebeu o Prêmio de Melhor Ilustração 2013 da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), que também concedeu ao livro o selo de “Altamente Recomendável”, pela qualidade relacionada ao tex-
Imagem integrante do livro Malvina
Ilustração: André Neves
Exposição alusiva ao livro Tom circulou em 2013 no Rio Grande do Sul
Fotos: Arquivo pessoal do artista
to, à imagem e ao projeto gráfico. Além disso, o caderno Estadinho, de O Estado de São Paulo, incluiu o livro na lista dos 50 melhores lançamentos do ano. Por livros ilustrados anteriores, André Neves já recebeu prêmios Jabuti e Açorianos, por cinco vezes o da Mostra Internazionale di Illustrazione per Infanzia, em Bolonha, entre outros na Alemanha, Eslováquia e México. “Estes reconhecimentos são importantes porque estimulam meus estudos e A história do menino Tom é contada por seu irmão,
minha prática e ainda mostram o livro para leitores
que sempre o observa intrigado: “Por que Tom não
ainda de olhar desatento”, diz.
brinca? Por que Tom não diz o que sente? Onde
A ilustração entrou na vida de André Neves,
Tom guarda todos os seus sonhos?”. Até que um
que se diz meio gaúcho, meio pernambucano, a
dia, Tom chama seu irmão para que conheça o seu
partir da relação profissional com dois artistas: Ba-
mundo, e os dois descobrem como se comunicar.
dida, artista plástica e professora, e Manuel Ban-
Esta é a sinopse do livro Tom, do escritor e ilus-
deira e o Espaço Pasárgada, na casa em que nasceu
trador André Neves, que deu origem à exposição
o poeta e o artista realizou o estágio em Relações
O Imaginário de Tom: da Paleta à Letra, que circu-
Públicas, sua formação. “Tenho muitas referências,
lou no Rio Grande do Sul no segundo semestre a
difícil listar porque elas chegam e modificam meu
partir de uma parceria com o Sesc, que pretende
olhar o tempo inteiro. Manuel Bandeira sempre me
dar continuidade à itinerância em 2014. São de-
sensibiliza, assim como autores contemporâneos.
senhos, pinturas, palavras, objetos em madeira
O Sul e o Nordeste se integram cada vez mais e
entalhada. Como descreve o artista visual ligado
artistas dessas regiões hoje povoam meu imaginá-
à palavra, é “o espaço criativo por fora do livro, o
rio: de Ascenso Ferreira a Augusto Meier, de Iberê
mundo do ilustrador, todas as sensações escon-
Camargo a Cícero Dias. Uma mistura criativa.”
didas que o leitor não percebe, algo muito íntimo ligado exclusivamente a esta história”.
Com uma produção que iniciou em 2000, com Tom, André Neves chega ao seu 16º livro ilustrado.
André Neves, autor de trabalhos de traços
Ele tem ainda quatro de imagens. “Livros de ima-
marcantes e histórias delicadas, conta que Tom
gens são difíceis de elaborar. A estrutura, a forma, a
surgiu de uma seleção de inspirações, de uma
composição, o número de páginas, dificulta a cria-
ilustração que fez para a revista Crescer, que no
ção narrativa com poucas vírgulas visuais, que torna
meio do ano incluiu três títulos seus – Tom, Entre
o livro, com imagens amplas e de caráter narrativo
Nuvens e Malvina – entre os 30 melhores livros
complexo e veloz, diferente dos quadrinhos.”
do ano, a sua memória. “A imagem da revista já
O ilustrador está trabalhando em um livro de
me contava algo e, com o tempo, relacionei a uma
título provisório Mel na Boca, ainda sem editora.
experiência pessoal de um amigo com seu filho, e a
“Estou trabalhando livre e sem medo, quero criar
história nasceu.” A exposição O Imaginário de Tom:
o que sinto. Se depois alguma casa o abrigar, tere-
da Paleta à Letra é a primeira individual do ilus-
mos um outro livro, se não, usarei essa experiência
trador, que já participou de diversas coletivas no
em um trabalho futuro”, adianta.
Brasil e no exterior.
O Sesc promoveu a circulação da exposição O Imaginário de Tom: da paleta à letra em Passo Fundo, durante a Jornada de Literatura realizada de 27 a 31 de agosto, e em Caxias de Sul, entre os dias 2 e 25 de outubro, na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim da Casa da Cultura.
literatura
SEGUNDO SEMESTRE
2013
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Mais do que um estímulo à leitura Projeto que busca dar mais dinamismo à utilização
escolas da rede pública. Luciana Saraiva Farias, do
do acervo das bibliotecas do Sesc, o projeto Sesc
Sesc Gravataí, destaca o excelente retorno que ob-
Mais Leitura experimentou uma nova fase no ano
tiveram por parte dos professores, que incluíram os
de 2013 ao atrelar linguagens como cinema, his-
temas abordados nas palestras no planejamento
tórias em quadrinhos, teatro e música à literatura.
curricular. “Foi emocionante ver a identificação dos
Para viabilizar esse formato, as oficinas, palestras
jovens com os temas das palestras. As poesias de
e apresentações artísticas realizadas nas unidades
Manoel de Barros, por exemplo, foram apresentadas
do Sesc equipadas com bibliotecas contaram com
na linguagem teatral e tinha um grupo na escola
a participação de profissionais das áreas específicas,
que estava iniciando as atividades, então o espaço
sem deixar de lado os escritores, como já acontecia
do debate foi usado para pedir dicas de atuação e
desde 2012. Neste ano, em cinco etapas, o proje-
de como utilizar textos literários no teatro”, afirma.
to contemplou 14 unidades – Bagé, Cachoeirinha,
Para Bruna Brum, do Sesc Passo Fundo, o novo dire-
Caxias do Sul, Chuí, Erechim, Frederico Westphalen,
cionamento do projeto em 2013 colaborou para que
Gravataí, Lajeado, Navegantes (Porto Alegre), Passo
os alunos abrissem sua visão de mundo para outros
Fundo, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento,
tipos de arte que podem ser produzidas na escola,
Taquara e Uruguaiana – com a participação de mais
como teatro, cinema e quadrinhos.
de 20 mil estudantes da rede pública de ensino.
Nova fase do projeto promoveu a integração da literatura com outras manifestações artísticas, como teatro, música, quadrinhos e cinema Foto: Divulgação Sesc/RS Foto: Arquivo pessoal de Carlos Ferreira Foto: Arquivo pessoal de Rodrigo Cavalheiro
O desenhista Carlos Ferreira optou por con-
Além de trabalhar escritores consagrados
tar sua trajetória aos alunos na palestra Literatura,
como Rubem Braga e Manoel de Barros, com
Cinema e Quadrinhos. “Assim como eu, as pessoas
as temáticas relacionadas a outras linguagens
pensam que quadrinhos são só histórias de super-
que não elegem um autor específico, a iniciativa
-heróis ou Turma da Mônica”, relata. Carlos diz que
concede mais liberdade aos professores para uti-
começou lendo os mesmo quadrinhos que os alu-
lizarem em sala de aula uma abrangência maior
nos do projeto até que aos 13 anos teve contato
de títulos. As oficinas e palestras foram condu-
com uma história de aventura – A Espada Selvagem
zidas por Artur José Pinto (O teatro de papel e
de Conan – que lhe deu a sensação de estar no ci-
a literatura no palco – Literatura e Dramaturgia).
nema. “Até então não tinha muito interesse, acha-
Carlos Ferreira (Literatura, Cinema e Quadrinhos),
va as histórias chatas, e então comecei a entender
Lia Motta (Manoelando histórias: Manoel de Bar-
melhor e essa virou uma referência. Parti do ponto
ros – Poesia), Marcia Ivana Lima e Silva e Claudia
em que eles estavam e houve uma identificação. Ali
Caimi (Leitura de linguagens verbais e não verbais
não havia só leitores, mas também novos autores.
– Literatura e Cultura), Rodrigo Castelhano (Lite-
Havia uma gama de alunos que gostavam de de-
ratura em movimento – Literatura e Cinema), Ru-
senhar e escrever e se sentiram estimulados por-
bem Penz (Rubem Braga – Crônicas) e Guto Leite
que viram uma possibilidade profissional. Fizeram
(Canção, poesia e história brasileira no século 20
contato comigo pelas redes sociais porque queriam
– Literatura, Canção e História).
aprofundar o tema.” Este contato posterior em que
São os auxiliares de biblioteca das unidades
os participantes pedem dicas de como iniciar e onde
do Sesc que coordenam as atividades desenvolvi-
buscar cursos foi uma tendência verificada na maio-
das, nas próprias instalações da instituição ou nas
ria das atividades.
literatura
segundo SEMESTRE
2013
63
Por Rodrigo Cavalheiro
Por Rubem Penz,
Diretor e produtor de cinema e ministrante da oficina Literatura em Movimento – Literatura e Cinema
Cronista, músico e publicitário, ministrante da oficina de crônicas com o tema Centenário de Rubem Braga
Onde há arte, há paz
Sobre crises e oportunidades
Bueno, quando fui convidado pelo produtor
tornarem as aulas mais dinâmicas, esta ini-
cultural Cleverson Ferreira para desenvolver
ciativa também colabore com os objetivos de
São tantas e tão insistentes as vozes que destratam
uma atividade de fomento à literatura, utili-
desmitificar a “sétima arte”, qualificar a plateia
nosso sistema de ensino – escolas, professores,
zando os argumentos trabalhados no Cinema,
e ainda promover o acesso à cultura. A máxima
alunos e pais –, que um interlocutor menos atento
achei fantástico tanto pelo fato de incentivar
prevalece: “Onde há arte, há paz”.
é levado a crer que não há salvação para o jovem
os alunos do ensino médio a terem ainda mais
Durante o ano de 2013, tive a oportu-
brasileiro. O termo em voga é em todo pessimista:
contato com os livros quanto pela oportuni-
nidade de percorrer diversas cidades do Rio
crise. Ao mesmo tempo, concluo um ciclo de pa-
dade de desmitificar e popularizar a produção
Grande do Sul, através do projeto Sesc Mais
lestras ofertado pelo programa Sesc Mais Leitura
cinematográfica.
Leitura. Este contato com os alunos do en-
encantado com a receptividade, o carinho e o inte-
Acredito que o Brasil é um celeiro de
sino médio foi uma fonte surpreendente de
resse das comunidades escolares por onde passei.
grandes escritores, justamente porque a lite-
pesquisa. Consegui avaliar, por exemplo, que
E agora, como explicar essa aparente contradição?
ratura possui um espaço garantido em sala
a cultura possui poderes que muitas vezes os
Coincidência? Acaso? Sorte? Talvez o termo que as
de aula e o contato com a arte escrita desde
profissionais do meio cultural esquecem ou
perguntas procuram seja bem simples: oportuni-
a infância instiga a criatividade de escritores
não observam. Recebi relatos via rede social de
dade. Ou melhor, oportunidades. Senão, vejamos:
em potencial. Claro que por isso temos que
professores falando o quanto foram produti-
Escritor que sou (cronista), dedico boa parte
cada vez mais aumentar o acesso das crian-
vas as aulas em que o vídeo foi colocado como
do tempo estudando a obra de cânones no gê-
ças e adolescentes a literatura e projetos
atividade para os alunos encenarem trechos de
nero literário que professo. São ferramentas não
como o Sesc Mais Leitura, que cria esta pos-
literatura clássica, assim como relatos de alu-
apenas para a evolução pessoal da técnica, como
sibilidade de contato, de incentivo, de curio-
nos mais interessados por determinado tema
também algo fundamental nas oficinas literárias
sidade artística.
e querendo reproduzir em vídeo. Eu acredito
que ofereço. Quando constatei que Rubem Braga
Entretanto, o cinema ainda não ganhou
que este contato com a arte de um modo ge-
– um dos mais proeminentes autores do gênero
a oportunidade de ter um contato mais ínti-
ral mobiliza a sensibilidade do ser humano e
– completaria 100 anos, desejei saber muito mais
mo com o espectador. Existem alguns projetos
oportuniza um melhor campo de visão sobre o
sobre sua vida, considerando que é um marco da
isolados, porém acredito que devemos levar a
mundo e o meio em que vivemos – a educação
crônica moderna e um dos mais influentes pen-
produção para dentro da sala de aula para que
ensina a ler e a escrever, mas só a cultura en-
sadores brasileiros no século 20. Fascinado com
desta forma, além de ajudar os professores a
sina a enxergar.
minhas descobertas, ambicionei a oportunidade de compartilhar um pouco desses achados, bem como as reflexões suscitadas. Encontrei-a no programa Mais Leitura do Sesc. Simultaneamente, me coloco no lugar dos professores de escolas públicas, ou mesmo da rede particular, tantas situadas longe dos grandes centros urbanos. Assoberbados numa rotina de tarefas árduas e incessantes, pouco tempo lhes resta para pesquisas mais aprofundadas ou projetos audaciosos. Dar conta do programa de ensino e, nele, oferecer a desejada qualidade já é empreitada suficientemente difícil. Porém, são conscientes de que é necessário
literatura
SEGUNDO SEMESTRE
2013
64
ofertar à turma pontes entre o conteúdo e a vida,
Mas tem, na outra ponta do processo, um
afirmar sem sombra de dúvida que todos saíram
dotando de sentido seu esforço. Para tal, muitas
igual anseio de oportunidade: a promoção de
conhecendo a vida e a obra do autor celebrado,
vezes carecem de oportunidades na ampliação dos
inserções culturais no seio da comunidade, es-
bem como as estruturas básicas do gênero crônica.
horizontes, pois o dia a dia tende a ocupar todo
pecialmente entre estudantes, oferece ao próprio
Uma semente foi lançada e, apenas depois disso, se
o tempo disponível (quando não um pouco além).
Sesc um canal para cumprimento de sua missão.
pode pensar em futura colheita.
A chegada de alguém de fora auxilia na construção
De nada valerá suas portentosas sedes, sua equipe
Outros indicativos de sucesso: jovens me adi-
dessas pontes, rompe a lógica limitadora, avaliza
de trabalho, seus equipamentos, suas bibliotecas,
cionando em seus perfis nas comunidades virtuais
seus esforços. Outra vez, o programa Mais Leitura
enfim, a soma de sua grande estrutura, se não
(inserindo-se em um ambiente que a cultura é dis-
do Sesc surge como importante aliado.
existir o envolvimento das pessoas. Um livro na
seminada), demonstrando interesse em conhecer
Há também a realidade dos alunos para ser
prateleira, por exemplo, não cumpre nem de perto
mais sobre o gênero crônica, encorajados a mos-
analisada. Tudo o que a matrícula no início do
sua missão. Uma das maneiras de induzir a neces-
trarem seus próprios textos. Alguns tendo refor-
ano promete são oportunidades. Oportunidade de
sária percepção de pertencimento é justamente a
çada a intenção de seguirem profissões ligadas ao
crescimento pessoal, de apropriação de conheci-
programação cultural e, nela, programas como o
magistério e à comunicação (jornalismo, publici-
mento, de capacidade analítica, de senso crítico,
Mais Leitura. Chamando escritores, contadores de
dade e relações públicas). Professores encontran-
enfim, oportunidade de se tornarem cidadãos
história e outros profissionais envolvidos na cadeia
do em minhas palavras o reforço de conteúdo já
melhores. A sociedade lhes deve esse direito, pois,
do livro e da leitura, o Sesc promove essa oportu-
trabalhado em sala de aula, ou a preparação para
daqueles que souberem aproveitar – e esperamos
nidade e também se beneficia com seus resultados.
temas que ainda estão por vir. Agentes culturais
que sejam muitos – os ganhos serão revertidos
Nessa altura, quem acompanhou o raciocínio
e bibliotecárias do Sesc recebendo consultas sobre
em desenvolvimento para todos. Contudo, nem
até aqui pode pensar que, na teoria, tudo parece
outros programas e tendo a oportunidade de di-
sempre essa compreensão fica muito clara ao jo-
funcionar. Mas, e na prática? Eis a grande notícia:
vulgar a totalidade dos serviços ofertados nas se-
vem, principalmente quando a oferta parece dis-
na prática, só melhora. Estive em 2013 levando
des regionais. Isso ninguém me contou, eu vi e vivi.
sociada de seu entorno. O contato com os livros
Rubem Braga para Taquara, Caxias do Sul, Bagé,
Agora, cumprindo meu dever de ofício (como
e – importante! – com escritores, desmistifica e
Santana do Livramento, Uruguaiana, Chuí, Lajeado
bom cronista), desejo finalizar dando atenção a dois
aproxima os estudantes do mundo letrado. Ain-
e Santa Cruz do Sul. Em todo lugar, trocas de afe-
detalhes menores, singelos, insignificantes. Porém,
da mais quando a produção cultural é abordada
to e um sabor de quero mais. O alvo foram jovens
sintomáticos. Primeiro, lembrando meus tempos de
de modo interdisciplinar: toda formação escolar
a partir dos 14 anos de idade. Também professo-
menino, sei muito bem o poder de estouro de ma-
se vê justificada. Papel exemplarmente cumprido
res que se dispusessem a acompanhar a palestra,
nada do sinal que noticia o período de recreio (ou
pelo programa Mais Leitura.
enriquecendo-a com suas participações. E posso
intervalo). E, espremido pelo tempo exíguo, fui alertado por um professor que havia batido a sineta do recreio antes de eu concluir as leituras programadas (repare, eu não vi nos alunos a esperada ansiedade em partir). Perguntei para os jovens: querem sair ou escutar até o fim? Todos ficaram. Uau! Por fim, em Lajeado, ganhei uma caricatura, numa iniciativa muito bacana de um dos jovens. Crise, onde está a crise? É certo que ela existe, sim, mas some quando vislumbramos oportunidades. Simples assim: Mais Leitura, mais oportunidades, menos crise. A quem não entendeu, o desenho explica.
Oficina do escritor Rubem Penz trabalhou com as crônicas de Rubem Braga Foto: Divulgação Sesc/RS
LEITURA
segundo SEMESTRE
2013
65
OS SONHOS NÃO ENVELHECEM – HISTÓRIAS DO CLUBE DA ESQUINA
SANGUE E CHAMPANHE – A VIDA DE ROBERT CAPA
O CLUBE DO FILME David Gilmour
UM DIA COMO OUTRO QUALQUER
Alex Kershaw
Intrínseca
Rivane Neuenschwander
Márcio Borges
Editora Record
Geração Editorial
Cobogó Gilmour é um crítico de cinema que
“Se uma fotografia não está
mora no Canadá e trabalha para o
Um dia como outro qualquer é
Em tempos de muita polêmica
suficientemente boa é porque
Festival Internacional de Cinema
o primeiro livro monográfico
sobre biografias autorizadas ou não,
o fotógrafo não chegou
de Toronto. No livro, conta sua
da artista brasileira Rivane
recomendo a leitura deste excelente
suficientemente perto.” Esta talvez
trajetória com o filho de 15 anos.
Neuenschwander. Produzido em
livro. Esta espécie de biografia coletiva
seja a frase que melhor defina Robert
Gilmour está desempregado no
ocasião de uma exposição que
é um relato liberto de qualquer rigor
Capa, um dos melhores fotojornalistas
momento que seu filho adolescente,
itinerou por diversas cidades
de estilo, mas, ao mesmo tempo,
do século 20 e um dos mais
em um momento de desilusão – mal
nos Estados Unidos e na Irlanda,
fidelíssimo ao espírito que fez surgir
audaciosos fotógrafos de guerra de
na escola, sem se entender com a
o livro é mais do que um mero
em Minas Gerais uma geração capaz
todos os tempos e que revolucionou a
mãe, usando drogas –, vem morar
registro das mostras, sendo uma
de grafar sua marca na Música
profissão ao fundar uma cooperativa
com ele. Gilmour o recebe de braços
referência fundamental sobre
Popular Brasileira (e na minha, na
de fotojornalistas, a Magnum, ao
abertos e, num ato de desespero,
a obra da artista. Seu trabalho
nossa vida). Borges se apresenta
lado do amigo Cartier Bresson. Esta
traça uma estratégia para aumentar
remete a questões provenientes do
como um narrador privilegiado
biografia reconstrói a vida do Capa,
a autoestima do filho usando a
mundo cotidiano, explorando uma
dos momentos que precederam a
partindo da Budapeste fascista, onde
magia do cinema.
poética relacionada à linguagem
ascensão de Milton Nascimento, a
nasceu, passando pela Berlim nazista
O pai faz uma proposta ao filho, na
e a esferas geopolíticas. Mostra
grande estrela, sem deixar de passar
e por todo o terror da Guerra Civil
qual ele poderia parar de estudar
uma percepção de mundo de
por nomes também luminosos como
Espanhola e da 2ª Guerra Mundial,
desde que assistam juntos a três
uma sutileza peculiar na arte
Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando
culminando com sua morte, em 1954,
filmes por semana, escolhidos por
contemporânea. “Talvez toda a
Brant, Beto Guedes, Lô Borges,
aos 41 anos, ao pisar em uma mina
Gilmour, para depois debaterem
arte de Rivane Neuenschwander
Ronaldo Bastos, ele próprio e muitos
na guerra da Indochina. O livro é
sobre o roteiro, direção, atuações
busque ser apenas um diálogo
mais. Registra o feliz encontro de
fascinante (ok, sou fotógrafo, e Capa
e narrativa. Eles formam “O Clube
infinito do olhar com o peso das
pessoas num ambiente alimentado
sempre foi um ídolo!), mas Kershaw
do Filme”, um livro emocionante,
pálpebras num piscar de olhos”,
pela cultura e pela fraternidade. Entre
surpreende pela riqueza dos detalhes
que mostra a criatividade de um pai
diz Paulo Herkenhoff. O livro
eles, de tudo se fez canção, história e
e pela escrita fluente e elegante,
para resgatar e ajudar seu filho a
tem textos de Lars Bang Larsen,
sonhos – que seguem encantando e
revelando um Capa humano, mas
entender um pouco o mundo que
Herkenhoff, Richard Flood e
jamais envelhecem.
ainda assim mítico.
vive e principalmente se entender.
Yasmin Raymond.
RUBEM PENZ
ANDRÉ FELTES
RODRIGO CASTELHANO
MARINA CAMARGO
escritor
REPÓRTER FOTOGRÁFICO
DIRETOR E PRODUTOR DE CINEMA
ARTISTA VISUAL
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA