Revista Arte Sesc - nº 14

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segundo SEMESTRE

2013 ISSN 1984-056X

OS TRAJETOS DO PALCO GIRATÓRIO Também nesta edição

caderno de teatro: Ney Piacentini, Sérgio de Carvalho, BRECHT e a Companhia do Latão IV FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA EM PELOTAS



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


08

50

12

difusão cultural

artes cênicas

música

08 Os números do programa

12 Palco Giratório 2013:

50 Para o violista da Osesp Horácio Schaefer

Arte Sesc – Cultura por toda parte

Daniel Colin analisa espetáculos do festival

no ano de 2013

Festival Internacional Sesc de Música representa uma oportunidade para

20 Os trajetos percorridos pela Cia. Mungunzá 10 Projeto Recrearte leva cultura

e Guido Campos Correa, com Luis-Antonio

para cidades que não têm

Gabriela e BOI, no Palco Giratório Nacional

unidade do Sesc

alunos e professores 52 Trompista português Abel Pereira, da Orquestra Filarmônica de Berlim, estará pela

26 Mostra Sesc de Teatro de Passo Fundo 29 25 anos da Companhia Teatro di Stravaganza 36 A trajetória da Companhia do Latão do ponto de vista do ator Ney Piacentini, que fala do

segunda vez no Festival de Pelotas 54 Iná Eloísa Grabin escreve sobre o Festival na Comunidade em Uma inesperada pausa na rotina

seu ativismo cultural à frente da Cooperativa Paulista de Teatro; e a dialética brechtiana pelo diretor e dramaturgo Sérgio de Carvalho

DIRETORIA O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Zildo De Marchi

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Everton Dalla Vecchia

Diretor Regional Sesc/RS

www.sesc-rs.com.br

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

Jane Schöninger

Coordenadora de Cultura

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. General Zeca Neto, 1085  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403 Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973

Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brigadeiro Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684-3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Vale do Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


56

60

62

CINEMA

ARTES VISUAIS

literatura

56 No artigo O cinema repensa o real e o

60 Ilustrador e escritor André Neves apresenta

62 Nova fase do projeto Sesc Mais Leitura

ficcional na internet, o produtor, roteirista e

imagens, esculturas entalhadas em madeira

promove a interação entre a literatura e

diretor Willian Mayer analisa a passividade

e outros objetos criados a partir do livro

outras manifestações artísticas como cinema,

do espectador diante de tudo que assiste a

Tom, na exposição O Imaginário de Tom: da

história em quadrinhos, música e teatro

partir do filme Depois das Aulas

Paleta à Letra, que circulou no Rio Grande do

com o objetivo de dinamizar o acervo das

Sul, no segundo semestre de 2013, por meio

bibliotecas Sesc

de uma parceria com o Sesc 65 Leitura

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7750 Cachoeirinha  Av. Flores da Cunha, 1320 Sala 805  51 3438.3249 Caçapava do Sul  Av. XV de Novembro, 267  55 3281.3684 Frederico Westphalen  R. do Comércio, 1013  55 3744.8193 Gravataí  R. Álvares Cabral, 880  51 3043.7916 Guaíba  R. São José, 433 Sala 01  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. XV de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Jorge Dariva, 941  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 8º andar  55 3423.1664 Santiago  R. Pinheiro Machado, 2232  55 3251.5528 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos  Rua Don João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Marechal Floriano, 488 Sala 17  54 3231.5883 Viamão  R. Marechal Deodoro, 175 Loja 102  51 3434.0391

NÚCLEO DE ATENDIMENTO Sesc São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1297  55 3352.7398

Coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Design Editorial

Rua Mariante, 200  Sala 02  51 3013.1330 90430-180  Porto Alegre/RS

Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Grace Prado

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.000 exemplares

CAPA

Ilustração extraída do livro Malvina, de André Neves


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segundo SEMESTRE

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Ilustração: André Neves, do livro Uma Festa no Céu

lazer e cultura Desde a década de sessenta, quando o Sesc foi criado, temos a cultura entre os nossos pilares de atuação. Mas em 2007, quando sistematizamos todas as ações culturais em um único ‘guarda-chuva’, o Arte Sesc – Cultura por toda parte, traçamos como diretriz a diversidade, a acessibilidade e a transversalidade, assim como a descentralização e a circulação. O desafio é grande, mas os números indicam que estamos no caminho certo. Conforme apresentado nesta edição da Revista Arte Sesc, a promoção da cultura no Rio Grande do Sul está chegando a centenas de cidades, com as mais variadas atrações, em que todas as manifestações culturais se fazem presente. Em 2013, também inovamos com a implantação da Unidade Móvel de Cultura e Lazer – Recrearte. A cada semana, a carreta chega a uma cidade diferente, levando apresentações teatrais e musicais, sessões de cinema, oficinas artísticas e recreativas. É como um palco sobre rodas, circulando pelos arredores da Capital. Cada cidadão, cada adulto, cada criança traduz de uma forma bem particular a sua própria significação para a expressão qualidade de vida. Entendemos que mais tempo para o lazer significa mais tempo para a saúde, assim como mais tempo para família significa mais tempo para si mesmo. E tudo isso é qualidade de vida. Com esse novo projeto, a nossa expectativa é grande de que as comunidades tenham mais momentos juntas, de convivência e de harmonia. O lazer e a cultura podem sim fazer a diferença e é nisso que acreditamos. Ainda nesta edição da Revista Arte Sesc, é possível conferir relatos de profissionais como Daniel Colin, Guido Viana, Sérgio de Carvalho, André Neves, entre outros, sobre os projetos culturais que têm se destacado no cenário rio-grandense e nacional. Boa leitura!

Zildo De Marchi

Everton Dalla Vecchia

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Diretor Regional Sesc/RS


DIFUSÃO CULTURAL

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Nosso Estado é grande não só no nome. Para uma equipe de 14 pessoas (incluindo músicos e equipe) poder circular e mostrar sua produção artística, é de extrema importância, além de contar com bons espaços de apresentação. Os palcos e as plateias precisam de boas condições estruturais para que a relação artista-público se efetue. Seja na rua, no teatro ou nas telas, a arte, a expressão artística, está sempre disposta a alcançar outro ser humano. Para nós da Funkalister, as quatro apresentações realizadas dentro da programação do Arte Sesc nos oportunizou chegar a municípios que ainda não tínhamos ido com nosso trabalho. Percebemos nessas cidades uma cena musical consistente e uma ótima receptividade à música instrumental que fazemos. Vida longa a projetos assim. Mateus Mapa Funkalister


DIFUSテグ CULTURAL

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DIFUSテグ CULTURAL

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Um caminhテ」o de atividades culturais Projeto Recrearte leva arte e lazer para as cidades que nテ」o contam com unidades do Sesc


DIFUSÃO CULTURAL

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Um novo projeto está levando cultura para as

e voltaram com seus familiares”, diz Iná Eloísa

comunidades de pequenas cidades do Rio Gran-

Grabin, agente de Cultura do Sesc Navegantes.

Fotos: Iná Eloísa Grabin

de do Sul desde o mês de agosto: é o Recrearte.

“É como um circo chegando à cidade, onde

Um caminhão que se transforma em palco e em

o espetáculo não inicia quando se abrem as cor-

tela de cinema, equipado com uma biblioteca in-

tinas, mas, sim, com a chegada da grande unida-

fantil, e que permanece em cada local por duas

de”, descreve a agente de Cultura. Normalmente,

semanas com atrações de teatro e música, além

as pessoas que dão o suporte local e auxiliam

de sessões de cinema de rua e recreação. O obje-

na montagem da estrutura já estão aguardan-

tivo é promover o acesso a atividades culturais

do sua chegada. Neste momento, quem passa

através das linguagens culturais apresentadas”,

de qualidade que possibilitem o desenvolvimento

pergunta o que está acontecendo e já surge a

afirma Iná.

integral de comerciários e demais moradores de

expectativa. Para a logística local, como agen-

Gustavo Bayni de Abreu, auxiliar de Cultura

municípios de abrangência das unidades opera-

damentos com escolas, divulgação e permissão

e Lazer do Sesc Navegantes, relata que quando

cionais do Sesc.

para permanência da unidade, o Sesc conta com

o caminhão chega à cidade e se instala nas pra-

a parceria das prefeituras municipais.

ças e nos parques é nítida a alegria das pessoas

As primeiras cidades a receberem o Recrearte foram as da jurisdição do Sesc Navegantes,

A programação inclui espetáculos teatrais,

que se aproximam. “Em Mariana Pimentel, havia

de Porto Alegre. A estreia foi em Charqueadas.

musicais, de dança e sessões de cinema. As

uma criança chorando na hora da apresentação

Depois, o caminhão que já chama a atenção da

atrações sempre são para todas as idades, para

do cinema, cheguei perto para ver se estava

comunidade desde a chegada pelas suas dimen-

todos os públicos. Alguns espetáculos, porém

acontecendo alguma coisa, e ela me disse que

sões e cores passou por Butiá, Eldorado do Sul,

são mais infantis, outros mais circenses. Nas

estava chorando de alegria, pois nunca tinha

Guaíba, Mariana Pimentel, São Jerônimo e Sertão

sextas e nos sábados à noite, geralmente é re-

visto um filme em uma TV tão grande – o telão.

Santana. A animação ocorre de quarta a domin-

alizado algum espetáculo musical, e um filme

Temos inúmeras histórias emocionantes, desde

go, sendo que nos dias de semana a prioridade é

é exibido. “O gratificante deste projeto é que

criança até idosos.”

atender aos alunos da rede pública, por meio de

ele proporciona acessibilidade à cultura para o

Quem disse que crianças preferem televisão

agendamentos das escolas. “Nos finais de sema-

público que não está acostumado, estimula a

e videogames, em vez de teatro, música, cinema

na, o público é espontâneo, mas percebemos que

prática da apreciação e contribui para a forma-

e literatura?

grande parte são as crianças que já participaram

ção de plateia, transformando esses indivíduos


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ARTES CÊNICAS

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POR Daniel Colin Encenador, ator, dramaturgo e integrante-fundador do grupo Teatro Sarcáustico. Mestre em artes cênicas (PPGAC-UFRGS) e bacharel em interpretação teatral (DAD-UFRGS)


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1 O grupo Teatro Sarcáustico surgiu em janeiro de 2004, do Trabalho de Conclusão do Curso de Artes Cênicas (UFRGS), de Andressa de Oliveira, Daniel Colin e Tatiana Mielczarski, intitulado GORDOS ou Somewhere Beyond the Sea. Nesses quase 10 anos de trabalho continuado, foram produzidos outros nove espetáculos profissionais, além de performances, oficinas, workshops e cursos de formação de atores. O Teatro Sarcáustico recebeu importantes prêmios do Estado (Açorianos de Teatro, Tibicuera de Teatro Infantil, RBS Cultura e Braskem em Cena) e é considerado uma das mais significativas companhias da cena teatral gaúcha contemporânea. Atualmente, o Teatro Sarcáustico é um dos grupos que integram o Projeto Usina das Artes, que prevê a ocupação do Centro Cultural Usina do Gasômetro em Porto Alegre, e é constituído pelos artistas Daniel Colin, Guadalupe Casal e Ricardo Zigomático.

PALCO GIRATÓRIO 2013: fábulas originais e dramaturgias cênicas Mais uma vez fui convidado pela Jane Schöninger,

Randevú (RS), Objeto Gritante (SP) e As Leviani-

coordenadora do Palco Giratório RS, para mediar al-

nhas (PE). Acredito que a característica que mais

guns dos espetáculos que integraram a programa-

interliga estes trabalhos é que todos se utilizam

ção da 8ª edição do Festival. Ano passado também

de uma dramaturgia original, cujo texto foi cria-

assumi o mesmo compromisso e pude ter contato

do especificamente para a cena, o que muito me

com trabalhos e artistas vindos de outras cidades e

fez pensar nos processos de linguagem que venho

estados do Brasil. Em 2013, não foi diferente: tive a

pesquisando junto com meu grupo aqui em Porto

oportunidade de conhecer a pesquisa de vários ar-

Alegre, o Teatro Sarcáustico[1], bem como me fez

tistas, de dança e de teatro, e, de certa maneira, pude

refletir sobre as dramaturgias cênicas que temos

fazer uma breve reflexão sobre os meios através dos

visto no teatro contemporâneo de vários lugares

quais a arte brasileira vem se estabelecendo nos pal-

do mundo.

cos do Brasil e do resto do mundo.

Natália Fernandes, no espetáculo de dança Objeto Gritante Fotos: Claudio Etges

Ao que tudo indica, todos os seis espetáculos

Desta vez, fomos quatro mediadores diferen-

citados tiveram suas dramaturgias construídas em

tes, cada um responsável por debater com seis pe-

processos de ensaios, sempre com a participação

ças. No meu caso, os espetáculos para os quais fui

do(a) diretor(a) na elaboração desta estrutura dra-

escalado para ser mediador eram de cinco estados

matúrgica, algumas adaptadas de obras literárias

diferentes do país (um deles, inclusive, sendo uma

(como Coração Randevú, inspirado em poemas

produção franco-brasileira): Luis Antonio-Gabriela

de Fernando Pessoa, por exemplo), outras a partir

(SP), Insone (ES), Ausência (França-Brasil), Coração

de entrevistas com pessoas reais (Luis Antonio-


ARTES CÊNICAS

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2 Segundo FÉRAL (2008, p. 204), “a etimologia da palavra événement [evento, acontecimento] (...) remeteria àquilo que acontece e talvez daí venha a sua associação com a palavra avènement [advento]”.

-Gabriela, da Cia. Mungunzá), ou ainda usando

Esses processos de elaboração de drama-

drama, à estrutura narrativa, à ficção e

um artigo jornalístico como inspiração (Ausência).

turgias para a cena vêm se configurando como

à ilusão cênica que a distancia do real, a

Foram diversificadas estas opções dramatúrgicas,

uma das características mais pujantes do teatro

performatividade (e o teatro performa-

fragmentadas e performáticas, coreográficas e so-

contemporâneo. Segundo Josette Féral (2008),

tivo) insiste mais no aspecto lúdico do

noras, fato que concorda com as reflexões de Pa-

a escrita cênica do teatro atual não se estrutura

discurso sob suas múltiplas formas –

trice Pavis (2008), segundo o qual

mais de maneira hierárquica e ordenada, mas, sim,

(visuais ou verbais: as do performer, do

de modo desconstruído e caótico. Ao introduzir

texto, das imagens ou das coisas). Ela

não se procura mais (...) elaborar uma

o evento (événement [2]) e reconhecer o risco, o

os faz dialogar em conjunto, comple-

dramaturgia que agrupe artificialmen-

“teatro atual” coloca em cena o processo, ainda

tarem-se e se contradizerem ao mesmo

te uma ideologia coerente e uma for-

mais do que o produto, o que o aproxima mais

tempo (FÉRAL, 2008, p. 207).

ma adequada e, frequentemente, uma

da performance art do que do teatro dramático.

mesma representação recorre a diversas

Para a autora, este elemento ajudaria a inscrever

Portanto, quando faço esta breve análise

dramaturgias. Não se fundamenta mais

uma performatividade cênica e, por este motivo,

sobre as dramaturgias dos espetáculos aos quais

o espetáculo apenas na identificação ou

ela propõe que chamemos este teatro que se faz

assisti no 8º Festival Palco Giratório, em momento

no distanciamento(...) Portanto a no-

hoje de “teatro performativo”: a performatividade

algum estou pensando em articular minhas refle-

ção de opções dramatúrgicas está mais

estaria no centro de seu funcionamento.

xões apenas acerca dos “textos dramáticos” dos trabalhos, mas, sim, da totalidade das obras cêni-

adequada às tendências atuais do que aquela de uma dramaturgia considerada

O ato performativo se inscreveria assim

como conjunto global e estruturado de

contra a teatralidade que cria sistemas,

princípios estético-ideológicos homogê-

do sentido e que remete à memória. Lá

a dramaturgia abrange tanto o texto de

neos (PAVIS, 2008, p. 114-115).

onde a teatralidade está mais ligada ao

origem quanto os meios cênicos empre-

cas, já que

gados pela encenação. Estudar a dramaturgia de um espetáculo é, portanto, descrever a fábula ‘em relevo’, isto é, na sua representação concreta, especificar o modo teatral de mostrar e narrar um acontecimento (PAVIS, 2008, p. 113).

SARCASMO E DOCUMENTÁRIO EM LUIS ANTONIO-GABRIELA (SP) O primeiro dos espetáculos que acompanhei foi Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá (SP), sobre o qual já escrevi no texto publicado sobre o festival do ano passado (“a obra ‘devastou meu coração’”, foi o que escrevi, exagerado e passional que sou...). Fã absoluto e confesso deste trabalho dirigido por Nelson Baskerville, continuo impactado pela potência do discurso e da poética do espetáculo, mesmo assistindo-o pela terceira vez em apenas dois anos. Para os desavisados, a obra narra a história de Luis Antonio, irmão do diretor Nelson, que se transforma em Gabriela em determinado momento da vida, quando a família inteira abdica de sua presença e da convivência com ela. “Partindo de um pressuposto absolutamente im-


ARTES CÊNICAS

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pactante – e corajoso! –, Baskerville consegue, não

nico – quase como se ele fizesse piada do caso...

somente (re)contar sua trajetória familiar de modo

“Ele contava as histórias e ria logo em seguida.

sensível e tocantemente sincero, como também o

E isso nos deu a liberdade de rir também”, comen-

faz de maneira incrivelmente criativa”, escrevi na

tou um dos atores. E, pela primeira vez, consegui

revista Arte Sesc em 2012. Como no ano passa-

compreender um detalhe que me fez apaixonar

do, vi mais uma vez o Teatro Sesc absolutamente

pelo espetáculo: que esse deboche escancarado

lotado, com a plateia envolvidíssima e chorando

surge naturalmente na dramaturgia cênica de Luis

muito, comentando e indicando bastante aos ami-

Antonio-Gabriela, como na belíssima passagem em

gos, tanto no Facebook quanto presencialmente,

que Gabriela morre e logo em seguida, se levanta

completamente tocada que estava pelo trabalho

cantando debochadamente (mais ou menos assim)

da Mungunzá. Neste ano, contudo, com a opor-

“Eu morri... Me fudi... Eu morri...”. Irônico, triste, sar-

tunidade de conversar brevemente com o elenco,

dônico e profundo. Algo que eu almejo pros meus

por meio do bate-papo ao final da apresentação,

trabalhos e que venho pesquisando há anos: como

lembro-me de perguntar como foi para eles lida-

rir das nossas tragédias. Como utilizar o riso como

rem com um tema tão forte e tão traumático do

elemento crítico e sério também, por que não?

diretor e, mais ainda, como foi o processo de “in-

Como estrutura dramatúrgica, o grupo opta

vadir” as memórias de Nelson para, a partir delas,

por construir uma narrativa cronológica, inician-

criarem o espetáculo e as personagens. O elenco

do-se com o nascimento de Luis Antonio até a sua

pareceu-me convicto ao responder que, no fundo,

morte, agora Gabriela. Há, contudo, a inserção de

não foi tão pesado assim, já que o próprio diretor

cenas de flashbacks e o distanciamento da ence-

lida com esta história de modo debochado e irô-

nação, já que os performers narram o espetáculo

Luis-Antonio Gabriela, da Companhia Mungunzá, e Insone, do Grupo Z de Teatro Fotos: Claudio Etges

todo o tempo. Nelson leva à cabo a ideia de “teatro documentário” e não nos poupa de informações concretas nestas narrações, como datas, documen-

intérpretes, os quais performam sobre “os estados

tos e locais específicos. A utilização de imagens re-

de sono e vigília, os sonhos, pesadelos e a insô-

ais de Gabriela e de outras personas representadas

nia, mostrando o homem contemporâneo entre

pelos intérpretes (inclusive do próprio Nelson) tor-

a sua necessidade de repouso e as exigências

nam todo o espetáculo ainda mais magnetizante.

de um mundo cada vez mais veloz, vertiginoso”,

Mais uma vez, Luis Antonio-Gabriela foi o auge do

segundo a própria sinopse do espetáculo. É um

festival em Porto Alegre sem sombra de dúvida!

ponto de partida bastante vago, mas pertinente, que aguçou minha curiosidade assim que li so-

DESCONEXÃO E INCÔMODO EM INSONE (ES)

bre o espetáculo e vi imagens deste na internet.

Insone é um espetáculo que não sabe bem se é te-

Curiosidade ampliada quando me deparei com

atro ou se é dança. Ou se é ambos. E essa preocu-

os quatro performers deitados naquele enorme

pação parece não ser pertinente ao Grupo Z de Te-

colchão instalado sobre o palco do Teatro de

atro (apesar de seu próprio nome apontar pra uma

Arena. O público adentra o espaço e se depa-

direção...). Acho que um dos grandes méritos do

ra com quatro sujeitos incapazes de “pregar os

trabalho seja justamente esse: mesclar as duas for-

olhos”. Bela imagem! Contudo, preciso dizer que

mas artísticas até um ponto em que ficamos nos

a obra não conseguiu atingir-me em cheio: repe-

questionando “o que diabos é isso que estamos

titiva e linear, Insone conseguiu ser no máximo

vendo?” (pergunta que, para mim, cada vez mais se

cansativa e desconfortável, como se eu estivesse

torna fundamental para a arte contemporânea!).

sentado ali no teatro por cerca de quatro horas...

O espetáculo se constroi e se apresenta so-

em um trabalho de 40 minutos! Por um lado,

bre um grande colchão, único elemento cênico,

acredito que este seja mesmo o objetivo da obra:

literalmente impactante, que comporta os quatro

colocar-nos em estado de insônia, insuportável,


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

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no qual não conseguimos descansar nem ter o prazer do sono. Suas cenas são fragmentadas e

Objeto Gritante

Fotos: Claudio Etges

pretendem mesmo reproduzir os estados citados na descrição do espetáculo, mas tudo nos atinge mornamente, já que as coreografias parecem desconexas e sem propósito, nunca se definindo como um “sonho bom” ou um “terrível pesadelo”. Confesso porém que não sei dizer ao certo se o tédio que senti na – e “da” – plateia surgiu por causa da temática ou se pela execução do espetáculo, se é que me faço entender. Porque se, como escrevi anteriormente, a mistura entre linguagens é um ponto forte do espetáculo, por outro lado, este ponto se torna frágil porque nem o teatro nem a dança me parecem bem-sucedidos. Os textos são fracos e ditos sem potência e os movimentos não são bem executados por alguns dos intérpretes – a que melhor se sai dentro da proposta dos diretores é Alexsandra Bertoli, que capta nosso olhar com sua forte presença cênica. Saí do teatro com uma sensação de noite mal-

transformando conforme a necessidade das ence-

acrescentam vivacidade e ritmo às dramaturgias

-dormida, insone que sou. E, sinceramente, não

nações. Além disso, os espetáculos, apesar de não

sei se isso foi bom para o espetáculo... Porque

da Dos à Deux. Em Ausência, os sons dos ratos fa-

utilizarem o recurso da fala, elaboram uma narra-

mintos ou dos canos secos tornam-se personagens

mais do que incomodar, para mim a peça foi de-

tiva clara e linear, fiéis às histórias que pretendem

que contracenam com Melo em várias passagens

sinteressante por vários momentos.

contar. Foi assim em Saudade...; depois em Frag-

da peça, por exemplo.

mentos do Desejo; e agora em Ausência. Com uma

Detesto comparações entre um trabalho e

diferença bastante peculiar: neste último, nem Ri-

outro da mesma companhia, como se eles fos-

beiro nem Curti estão em cena. Luis Melo, um dos

sem interdependentes, mas, ao mesmo tempo, me

Acredito que Porto Alegre, como várias outras

melhores atores brasileiros, mergulha de cabeça

parece agora uma maneira eficaz de visualizar a

cidades do mundo, é realmente apaixonada pelo

no processo intenso da Dos à Deux para encar-

evolução do trabalho da Dos à Deux... Sem a po-

trabalho da companhia franco-brasileira Dos à

nar neste monólogo um homem solitário à espera

Deux graças sobretudo ao inesquecível espetácu-

tência dilacerante de Saudade em Terras D´Água,

do apocalipse. Mais uma vez sem a utilização de

lo Saudade em Terras D’Água, ao qual tivemos a

ou mesmo o desbunde visual de Fragmentos do

palavras, Ausência constrói um universo futurista

Desejo, ainda assim, Ausência se fez marcante

no qual um homem está isolado em seu terraço,

pela feliz parceria entre as experiências de Luis

gramação do Porto Alegre Em Cena. Lembro-me

acompanhado apenas de seu peixe-beta. Ambos

Melo e da Dos à Deux, ambos grandes nomes do

perfeitamente de sair do Teatro Renascença aos

dividem a mesma água, cada dia mais escassa.

teatro brasileiro.

prantos, inebriado com tamanha singeleza em um

Apesar de denso, o espetáculo nunca é tedioso,

espetáculo em nada simples. Muito pelo contrá-

graças à inventividade das cenas e ao trabalho de

rio: André Curti e Artur Ribeiro, responsáveis pelo

Melo, lindamente conduzido pelos diretores. Para

MEMÓRIA E POESIA EM CORAÇÃO RANDEVÚ (RS)

grupo, especializaram-se em trabalhos comple-

mim, é impressionante como o ator consegue ser

Zé Adão Barbosa é um dos mais importantes ato-

xos e engenhosos para tratar de assuntos muitas

emocionante mesmo inserido em uma técnica por

res do Rio Grande do Sul, tendo em seu currículo

vezes delicados. Somos sempre brindados com

muitas vezes severa e distante.

quase 30 anos de trabalho voltados para o teatro,

SONORIDADES E GESTOS EM AUSÊNCIA (FRANÇA-BRASIL)

oportunidade de assistir há alguns anos na pro-

um trabalho corporal hipnotizante (resultado de

Outra característica muito forte nos trabalhos

o cinema e a televisão, além de ser um dos mais

suas pesquisas sobre o teatro gestual) atrelado a

do grupo é que o silêncio existente em relação à

famosos professores de interpretação da cidade.

uma cenografia extremamente criativa, que vai se

fala é sempre confrontado com músicas e sons que

Em Coração Randevú, Zé celebra três décadas de


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

17

palco nos brindando com um monólogo delicado

de uma maneira tão passional e crível que, como

que misturam clássicos do cinema e imagens

e ao mesmo tempo rústico dirigido por Patricia

descrevi anteriormente, nunca sabemos quando

especialmente gravadas para a peça; cenogra-

Fagundes. O espetáculo se constrói a partir de

o espetáculo se debruça sobre histórias reais ou

fia formada por instrumentos musicais/equipa-

poemas de Fernando Pessoa, atrelados a memó-

sobre poemas. Em tempos de performatividades

mentos sonoros, além de caixas/malas; figurinos

rias do próprio ator, como quando ele apresenta

e teatro-danças (sem querer ser pejorativo e já

que são expostos e reaproveitados em cena;

a sua fantasia de palhaço de quando era crian-

sendo...), ainda é reconfortante ouvir um belo texto

narrações de casos e acontecimentos pessoais

ça, por exemplo. É tudo muito bem costurado e

ser proferido. E cantado também (que versão linda

dos intérpretes; utilização de espaços cênicos

acabamos nos perdendo entre quais palavras são

é aquele tango musicado pelo Francis Hime, hein?

reduzidos. Se são estas as principais caracterís-

memórias do ator e quais foram escritas pelo

“Beijo na boca todas as prostitutas / Beijo sobre

ticas dos espetáculos da Cia. Rústica, não há o

escritor português, o que torna o trabalho parti-

os olhos todos os souteneurs...”)!!! Foi gratificante

menor problema, mas acredito que sendo uma

cularmente excelente, propiciando um jogo cons-

ver uma peça tão boa ser apresentada por colegas

parceria entre o grupo e a Casa de Teatro, talvez

tante entre ficção e realidade.

de trabalho (apesar de nunca ter trabalhado com

o espetáculo pudesse sofrer um pouco mais as

nenhum dos dois, os admiro muito e os considero

influências das experiências do ator.

Confesso aqui que minha maior curiosidade era compreender como Zé Adão, ator stanis-

meus colegas...).

lavskiano experiente com textos clássicos, conse-

Gostaria, entretanto, de expressar que ado-

guiria mesclar sua técnica à direção de Patrícia,

raria ver o trabalho da Patricia Fagundes ser um

VAIDADE E MOVIMENTO EM OBJETO GRITANTE

que ultimamente tem se debruçado sobre espe-

pouco mais influenciado pela participação do

Preciso ser honesto e começar dizendo que sem-

táculos autobiográficos, como Clube do Fracasso

Zé: apesar de sentir que a diretora conseguiu

pre me sinto desconfortável quando escrevo

e O Fantástico Circo Teatro de um Homem Só.

delicadamente inserir o ator em sua linguagem

sobre espetáculos de dança, porque não é exata-

E preciso registrar que saí bem satisfeito: acredi-

e de resolver a estrutura dramatúrgica de ma-

mente uma linguagem que eu tenha aprofunda-

to que o ator conseguiu mesmo se entrosar bem

neira muito interessante, fiquei com a sensação

da compreensão para argumentar elementos que

aos processos da diretora. Zé Adão está excelen-

de déjà vu ao assistir a este trabalho, quando

constituem a obra. Por isso, sempre opto por ser

te, sobretudo por um motivo bastante específi-

constatei a utilização dos mesmos recursos

fiel ao meu olhar como espectador, ciente de que

co, que parece besteira mas, no fundo, não é: ele

que ela vem utilizando em seus últimos espe-

as percepções do público também são importan-

consegue dizer as palavras de Fernando Pessoa

táculos frente a seu grupo: projeções de vídeo

tíssimas para a análise do trabalho.


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

18

Objeto Gritante se inicia com uma coreografia interessante, muito bem executada por Natalia Fernandes, enredada em uma cenografia belíssima

As Levianinhas, da pernambucana Companhia Animée, traz ótimas canções com arranjos diferentes Fotos: Claudio Etges

HUMOR E ALEATORIEDADE EM AS LEVIANINHAS (PE) Foi uma deliciosa tarde com As Levianinhas, es-

de Mauricio de Oliveira e André Mello. Com movi-

petáculo infantil da Cia. Animée (PE). Depois de

mentos truncados, Natalia vai instituindo espaços

criarem As Levianas, uma banda composta por

com seu movimento, evoluindo em seu próprio

quatro palhaças e seu show homônimo, repleto

espaço, um corpo-lugar potente. Espaço do corpo

de canções bregas, o grupo decidiu então criar um

este compreendido por José Gil (2001) como

repertório especificamente voltado para as crianças e a ideia não poderia ser mais feliz. Na ses-

espaço a vários títulos paradoxal: dife-

são a que assisti, a gurizada estava absorta com

rente do espaço objetivo, não está se-

o show das palhaças, que arrebatou inclusive os

parado dele. Pelo contrário, imbrica-se

mais velhos. Como show, a obra funciona muito e

nele totalmente, a ponto de já não ser

cativa a todos, com arranjos diferentes e canções

possível distingui-lo desse espaço (...) o

ótimas, como Biquíni de Bolinha Amarelinho e The

espaço do corpo é a pele que se prolon-

Lion Sleeps Tonight, esta um dos pontos altos da

ga no espaço, a pele tornada espaço. De

peça. Eu, porém, acredito que o trabalho poderia

onde a extrema proximidade das coisas

ser muito mais aprofundado se tivesse um olhar

e do corpo (GIL, 2001, p. 57-58).

mais apurado de direção, já que algumas gags e cenas não funcionaram eficazmente, tornando as

As dramaturgias do espetáculo (assim eu cha-

transições entre as músicas o ponto fraco de As

mo... não sei bem se a dança assimila esta mesma

Levianinhas. Além disso, um repertório mais coe-

designação para os elementos da cena) se confi-

so poderia tornar o espetáculo mais “redondinho”:

guram destes espaços criados pelos bailarinos e

por mais que as músicas escolhidas sejam carismá-

mergulham no questionamento sobre os próprios

ticas e bem executadas pelas palhaças, a seleção

processos artísticos e as razões pelas quais os ar-

das canções parece deveras aleatória e confusa se

tistas defendem estes processos. Acho que é uma

pensarmos na obra como um todo. Aqui, mais uma

reflexão absolutamente pertinente e que encontra

vez, um diretor poderia ter auxiliado na elaboração

sua metáfora mais contundente na figura de Rino,

destas escolhas cênicas.

um artista-monstruoso-animalesco que insiste em

O trabalho das atrizes é excelente: Nara Me-

“mostrar-se” em sua performance ególatra e vai-

nezes (Aurhelia), Tâmara Floriano (Tan Tan) e Ju-

dosa, autocentrada e autoendeusada, como tantas

liana de Almeida (Baju) são engraçadíssimas, com

que vemos por aí, às vezes em nossos próprios espe-

timing cômico exemplar. A única figura que destoa

táculos... Inclusive, quantas vezes não fomos Rinos

deste contexto, impressionantemente, é Enne Marx

em nossos trabalhos?! Na apresentação em que eu

(Mary En), uma das idealizadoras do grupo e do

estava, Rino gritou, correu pela plateia, saiu da sala,

projeto. Enne pareceu-me deslocada e desatenta

tão empolgado que estava em “roubar o foco todo

na apresentação, prejudicando, inclusive, algumas

para si”. Tudo isso com a outra bailarina tentando

das cenas de transição.

acalmá-lo: “Não, Rino... Volta pra sala, Rino...”. Ao

Entretanto, de modo geral, o grupo funciona

final da cena, Rino é decapitado e tem sua cabeça

muito e tem o mérito de enganar bem a plateia, fa-

ostentada na parede até o fim do espetáculo. Torna-

zendo-se passar por musicistas e cantoras; confor-

-se onipresente. Aliás, os objetos de Duda Paiva e

me disse a elas, por vários momentos me perguntei

André Mello, como a cabeça do Rino e a máscara

se eram cantoras que decidiram virarem palhaças

feita de vários rostos, são impressionantes! Trazem

para fazer um show ou vice-versa. Afinadas, cati-

aos bailarinos possibilidades incríveis de movimen-

vantes, simpáticas e hilárias. Um espetáculo feito

tos, como na tocante cena dos dois velhos.

por atrizes – e que só por causa delas se sustenta.


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

19

3 A dramaturgia de CNPJ: uma comédia totalmente ficcional é assinada por mim e por Thais Fernandes, a partir das improvisações dos atores Guadalupe Casal, Juliana Kersting, Ricardo Zigomático e Daniel Colin.

EXORCISMO E MISCELÂNEA EM CNPJ: UMA COMÉDIA TOTALMENTE FICCIONAL (RS) Decidi criar um adendo neste texto para escrever um pouco sobre o novo espetáculo do Teatro Sarcáustico, no caso mordaz CNPJ: uma comédia totalmente ficcional. Se faço este epílogo ególatra (“Sai desse corpo, Rino...”), é porque acredito que este trabalho também faz as mesmas conexões dramatúrgicas que os outros seis aqui descritos. CNPJ... estreou oficialmente na programação do Palco Giratório com uma dramaturgia perversa que encarcera quatro funcionários em uma mesma sala e força-os a se combaterem até que a verdade surja à tona: qual deles roubou a empresa em que trabalham? Ao que tudo indica, todos têm o “rabo preso”, bem como possuem informações confidenciais sobre os outros funcionários. O texto dramático utiliza como referência improvisação

mentos cênicos: uma trilha sonora que mistura o

proponho que podemos ter uma noção do teatro

dos atores sobre fatos reais acontecidos com eles

rap sul-africano do Die Anterwood com clássicos

feito em outros estados com esses espetáculos a

em outros trabalhos ou relacionamentos profissio-

de musicais hollywoodianos; uma cenografia en-

que podemos assistir durante o festival, acredito

nais, em filmes com temáticas semelhantes (como

xuta e clean que vai sendo invadida por uma in-

que o Sarcáustico vem contribuindo para a exce-

Psicopata Americano, de Mary Harron, e O Método

finidade de objetos; uma fábula fragmentada que

lente participação do teatro gaúcho na mostra,

– O que você faria?, de Marcelo Piñeyro), em textos

se desloca no tempo e no espaço; atuações que

agregado ao trabalho de outros importantes gru-

jornalísticos e e-mails agressivos, além de outras

mesclam representação de personagens e jogos

pos como o In.Co.Mo.De-Te, a Cia. Stravaganza, o

várias fontes de inspiração. Este processo de utili-

performáticos; um reality show que elege, a cada

Depósito de Teatro, a Cia. Gente Falante, a Caixa do

zar referências diversas para criar um espetáculo-

apresentação, o melhor ator da apresentação; uma

Elefante, a Cia. Rústica e tantos outros. Assim, es-

-pastiche vem sendo, acredito, uma das maiores

narrativa que apresenta quatro finais possíveis e

tamos todos construindo este grande festival que

características dos trabalhos e performances do

diferenciados, o que muda completamente o des-

o Sesc propicia à comunidade e à cultura do Brasil!

Sarcáustico, cujo maior exemplo seja Wonderland

fecho da fábula. Tudo regado a sangue, vômito e

e o que M. Jackson Encontrou por Lá (Prêmio Aço-

veneno. Um espetáculo de exorcismo, produzido

rianos de Melhor Dramaturgia), uma obra cultuada

para livrar toda a equipe de processos desagradá-

por sua encenação que valoriza uma miscelânea de

veis pelos quais estávamos passando. Daí, a fúria e

informações, característica própria do mundo pop

o incômodo que pontuam a encenação.

contemporâneo.

Perdoem-me se abro este espaço aqui para

Eu, como diretor e um dos dramaturgos de

falar sobre o meu próprio trabalho, mas sincera-

CNPJ..., acabo por configurar e estruturar a en-

mente não acredito que ele seja só meu e, mais do

cenação pelo casamento destas funções, sempre

que isso, acho que, de uma forma ou de outra, o

elaborando a obra pelos dois vieses. Confesso que

Teatro Sarcáustico é um grupo que vem compac-

eu mesmo nunca sei quando estou sendo diretor

tuando com o Palco Giratório desde que o grupo

ou quando estou elaborando a dramaturgia do

completou cinco anos e participou do Festival em

espetáculo: para mim tudo se mistura e se com-

2009 com três espetáculos diferentes. De lá para

plementa. Desta forma, assimilo à cena elementos

cá, foram várias as participações, por meio das

que são fundamentais para a construção do texto

quais pudemos rever o nosso próprio trabalho,

e vice-versa. Se os processos de escrita são caóti-

com o retorno do público e de profissionais da área

cos e “miscelânicos”, assim também o são os ele-

envolvidos com o Palco Giratório. Por isso, quando

[3]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta – Revista de Artes Cênicas. São Paulo: PPG Artes Cênicas USP, 2008, nº 8, p. 197-210. GIL, José. Movimento total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2001. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2008.


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

POR Cia. Mungunzá de Teatro

20

circuito PALCO GIRATÓRIO

CULTURA DO PÓLEN PRA NUNCA MAIS SERMOS OS MESMOS

infundadas. E tivemos uma aula de percepções.

sério demais. Somos um estado que se leva a sério

No dia 31 de março de 2013, dez pares de pernas

Espaço escadaria em Arcoverde. Um rapaz fecha

demais. Quando nos vimos longe, vendo o mundo

saltaram do chão de São Paulo rumo a tudo. Para

os olhos e, intencionalmente, se deixa ninar por

pelos muitos olhos de cada povo, pudemos olhar

nunca mais serem as mesmas.

uma música da cena. Uma das maiores bênçãos

para nosso pequeno “estado de alerta” que é São

Nós, que nascemos há pouco e nem tínha-

de se fazer um espetáculo épico, é poder assistir à

Paulo e ter mais compaixão de como levamos nos-

mos os pés suficientemente plantados no chão,

plateia. Uma menina de quatro anos aplaudindo

sa vida. De como nossa cultura foi criada a partir

repentinamente nos vimos alçados da terra. Da

veementemente em cima do ombro do pai. Um

de um amálgama de culturas externas ao Brasil e

nossa ilusão de terra. Tínhamos um espetácu-

homem que quer sair no meio da peça pra ligar

internas dele. De como tivemos que suprir as ex-

lo e muitos braços cheios de querer fazer sem

pro irmão e dizer para este vir assistir porque a

pectativas das mais variadas regiões do mundo. De

saber por onde.

peça é boa. Um rapaz que se escandaliza com

como nossas ideias, vestimentas, gastronomia são

o fato da peça começar sem atrasos, e o teatro

um misto de tudo o que se vê em todos os lugares.

O EQUÍVOCO JESUÍTA

não dar essa informação. Gente saindo no meio

Talvez por isso a dificuldade de nos sentirmos em

Depois de dois anos sedimentados num palco

da peça indignada. Gente ficando até o final, não

“casa” numa cidade que é tantas casas ao mesmo

fixo, esse mesmo palco se pôs a girar. A gente sai

menos indignada. A naturalidade e a leveza que o

tempo. De entender nossa estima de vitrine, nossa

com uma ingênua visão missionária: vamos le-

ato teatral pode ter fora do rigor com que apren-

personalidade que se compõe como um camaleão

var cultura ao restante do país. E ao sair da nossa

demos a revesti-lo foi um grande aprendizado.

a cada dia que passamos sem que percebamos.

metrópole tão cultural para levar a “nossa cultura”, na próxima esquina nos deparamos com o

DAS REGIONALIDADES

significado real de cultura. Aquilo que se cultiva. Ponto. Quanto mais nos distanciamos de nossa

“Para se conhecer é preciso sair de si.”

pluralidade mais nos aproximamos das raízes

José Saramago – A Ilha Desconhecida

de culturas muito singulares. A cultura de cada nicho é tão arraigada que não precisa chamar a

Fomos a pretexto de nos levar aos outros e aca-

si mesma de “cultura”. É tão orgânica e está tão

bamos por nos recolher dos outros. Levar um es-

intrínseca na forma como as pessoas levam sua

petáculo de norte a sul do país é também colher

vida em seu cotidiano que contamina quem passa

espetáculos. Colhemos 41 espetáculos distintos

por perto. É essa a beleza das culturas regionais

girando pelo país. E cada sala desta casa-país nos

que conhecemos: elas não se pretendem. Elas são.

recebe com seu café a seu modo. Minas é o ce-

Nós saímos da casca paulista, do “fervor cultural”

leiro do riso gostoso. Percebemos que nossa peça

que se apercebe como tal, que se expressa como

também podia ser comédia e leve e simples assim

tal, mas que, celularmente falando, ainda somos

como os mineiros. Os mineiros nos deram de pre-

preocupados em mostrar que somos. Esse foi o

sente a simplicidade do gesto de apenas “espec-

primeiro de uma série de pré-conceitos que fo-

tar” do espectador. Dos mineiros, colhemos o riso

ram desabando a cada dia.

e a simplicidade do aconchego. No sul/sudeste

Luis Antonio-Gabriela no sertão de Pernam-

a cumplicidade de uma plateia que, como nós,

buco! Como será? Estarão preparados? Estaremos

se aprofunda na cadeira do começo ao fim de

preparados?

forma irrespirável e desaba ao final. O sul sofre.

Que ideia fazíamos do sertão de Pernambu-

Nós somos paulistas e sabemos disso. Sabemos

co e da Bahia que não fosse a distância do mapa?

o que é chegar ao teatro pronto para sofrer pelas

Nenhuma. Ou melhor, uma série de conjecturas

próximas duas horas. Sabemos o que é se levar a


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

21

Pelo Palco Giratório Nacional, espetáculo foi apresentado em 41 cidades do Nordeste ao Sul do país Fotos: Claudio Etges

Nossas padarias, farmácias, amor aos pedaços, de-

“Minha mãe estava grávida de mim quando se

livery 24 horas, nossa cidade que não dorme forma

queimou com café quente. Por isso eu nasci com

pessoas que também não dormem. Sair daqui, des-

essa mancha, é do café quente que caiu nela e

se contexto cultural, e percorrer a imensidão de um

vazou pra mim.” / “Eu sempre fui muito apegada

país que só vemos nos mapas do livro de geografia

com minha mãe.” / “Eu me queimei muito feio e

é, no mínimo, curioso.

minha vó jurou que cloro sarava.” / “Mastruz. Ju-

Não fomos apenas levar esta peça. Fomos

mento derrubando os baldes de água que eu penei

colher os pedaços do qual somos compostos e

pra pegar. Caí.” / “Quando eu tinha que ir pra es-

não sabíamos. Nossa cultura mosaico paulistana

cola, ela me acompanhava até o ponto de ônibus

não é apenas muito rica, mas também promís-

pra gente ficar conversando e depois voltava pra

cua. Nós nos misturamos demais sem saber exa-

casa.” / “Essa eu fiz com meu piercing, andando de

tamente aquilo que nos pertence. E, com muito

bike em Berlim.” / “Meus pais se separaram mas

amor, voltamos e constatamos que talvez seja

continuaram morando na mesma casa.” / “Tomei

isso mesmo, e cada um nasce no nicho no qual

remédio que deixava o xixi azul e fiquei achando

será mais útil à sociedade e à humanidade. Somos

que era menstruação masculina.” / “Um ano eu e

bichos de mistura. Conhecemos bichos de raiz. E

meus irmãos fomos viajar pra casa dos meus avós

é tão lindo ver a raiz das coisas. Ver como se bate

e minha mãe ficou em casa para procurar traba-

um chão de terra de uma casa e se transforma

lho.” / “Nadando em piscina com comfort, na chá-

isso em dança. Ver uma senhora de 92 anos subir

cara dos meus avós.” / “Ela e meu pai brigaram.” /

num palco e destilar sobre nós a riqueza de toda

“Fui me barbear porque queria ser homem.” / “Ele

uma vida plantada numa tradição que desconhe-

esfaqueou ela.” / “Meu pai me deu remédio de pas-

cíamos. Ver uma criança no meio de uma ciranda

sarinho pra sarar meu machucado. Sarou.” / “ Só

composta de todas as idades e culturas cantando

soube quando voltei de viagem e ela tinha morrido

apenas para o ato de girar em roda. Ver toda essa

já há alguns dias.”

energia indo para uma criança no centro olhando entorpecer com os mais diversos sabores do nos-

DA CRUEL BELEZA DO MOVIMENTO – “A companhia de vocês tem uma sede?”

so Brasil, do “excesso” de coentro baiano impreg-

Ouvimos muito esta pergunta ao longo de várias

nado nos mais lindos rastafáris, até o “amargo”

oficinas que fizemos, em meio a muita discussão

mate sulista revestido por bombachas. Do aroma

política de engajamento de grupo. E descobrimos

da moqueca capixaba sobrevoando suas belas

– depois de muito responder que não – que, sim,

praias ao doce de leite com queijo no camarim

temos uma sede.

com surpresa aquilo que acontece em volta. Se

do grande Palladim. Da universalidade da feira sem fim em Campina Grande ao minimalismo do mungunzá salgado de Triunfo (PE)...

E então percebemos o que é ter uma sede que está permanentemente em trânsito. Temos uma sede no vento. Nossa sede é o caminhão do Tico. Tico é nosso

DAS CICATRIZES (Conhecemos três minutos da vida de todas as pessoas que fizeram oficina conosco, por meio de um exercício chamado “Cicatriz”)

transportador, cenotécnico e dono do caminhão. Nossa sede é a “Ieiri Express”. Dentro desse caminhão, nosso cenário – e às vezes nós – vai para todos os lugares.


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

22

Os quartos de hotéis se transformaram em

O buscador planta sua felicidade fora. Ele

composição. Esse relatório intenta devolver à

nossos escritórios. Escrevemos muitos projetos e

coleciona os segundos dos outros. E se constrói

vida nosso olhar itinerante. Um olhar itineran-

nos organizamos nesses quartos. E viva o What-

e se despede. E conhece um outro onde emenda

te é um olhar que costura. É um olhar que une

sapp, a ferramenta pela qual nos organizamos em

novos segundos. Como se emenda as contas de

percepções distintas colhidas em diversos lu-

meio a tanto movimento.

um colar. E, ao final, ele tem um grande colar de

gares. Por onde passamos, colhemos situações,

Resolvemos construir uma perna de pau.

contas colhidas pelo mundo, mas que ao ador-

fotografias, vídeos, fizemos intervenções, inter-

Começamos a construir a perna de pau em

narem seu pescoço, falta-lhe qualquer coisa sua.

câmbios. Conhecemos pessoas das mais diversas

Palmas e finalizamos em Jequié. / Foi a perna de

A sua conta não existe. A sua conta precisava

áreas e contextos. Conhecemos companhias que

pau mais cheia de mundo da História. / Pegamos

de um espaço fixo para formar-se, como uma

admiramos, mais que o trabalho, as pessoas e

a madeira da casa de um primo meu que estava

pérola. Mas o espaço do buscador é a estrada.

sua lida diária dentro desse ofício.

em construção e que mora em Palmas. / Embala-

E a estrada leva, mas não planta. Ela dá a forma

Se o espetáculo Luis Antonio-Gabriela foi um

mos essas madeiras e despachamos no aeroporto.

redonda das pedras que rolam, mas não produz

pedido de desculpas do diretor Nelson Baskerville

/ Em Paulo Afonso (BA), compramos uma papete

a pérola na concha fechada e protegida. A perola

ao seu irmão, esse relatório constitui parte de um

e pregamos na madeira, para apoiarmos nossos

do vento é o rolar das pedras. Ele não pode cha-

intento maior da Cia. Mungunzá sobre a gratidão

pés. E pregos. / Em Salvador (BA), compramos

mar as pedras de suas nem saberá exatamente

pelas histórias que pudemos percorrer. Intento

aparatos de segurança para colocar na perna. /

quais pedras esculpiu. Sua arte é seu movimen-

esse de fazer um documentário sobre os bastido-

Em Surubim (PE), encontramos uma marcenaria

to. Para plantar é necessário terreno. O buscador

res desse processo tão bonito. Para que possamos

onde lixamos e pregamos. Compramos uma faixa

é um ser de ponte.

compartilhar com todas as pessoas a existência

de gaze para amarrar bem na perna. / Em Arco

Qual o prazer de ser colhido? O buscador

desse projeto e como ele atua em cada pequena

Verde (PE), estreamos a perna de pau. / E foi assim

mais colhe do que é colhido. Por isso sua sina é

instância. Vida longa a todas as iniciativas que

com tudo em nossa vida quase 70 dias. / Inspirar

se confundir e se “incompletar”, aos poucos. Até

prezam pelo compartilhamento – não apenas de

numa cidade e expirar em outra gera mundos. /

renascer pelo avesso e ser a própria linha que

trabalhos – mas de vidas.

Inspirar uma cultura e expirar na outra é alquí-

une as contas com seu eterno olhar estrangeiro.

mico. / De todas as lições sobre o movimento a

E acabamos de batizar esse ofício de cultura

mais forte é a alquimia que se faz dos fluxos. / Por

de pólen. Saímos – todo homem pela vida – para

algum motivo, não buscamos nossa raiz na terra,

polinizar, jogar sementes de nossas experiências.

mas no vento. / Nos plantamos no movimento

Um pouquinho em cada lugar. Cada lugar fará

das coisas. / Não temos perfil para sedimentar

seu uso e seu proveito desse pólen. E nós , subi-

nada por muito tempo. / Nosso maior sedimento

tamente espelhados e devolvidos a nós mesmos

é o que fica orgânico em nossas células ao passar

pelo olhar de tudo aquilo que não somos nós.

de cada experiência. / A geografia é uma experiência. A história é uma experiência. O ser humano

DA GRATIDÃO

é uma experiência disparada para todos os luga-

O Palco Giratório, mais do que divulgar nosso ofí-

res. Para brotar. A gente é para brotar.

cio, nos possibilitou uma percepção aguda acerca das tramas que compõem a vida como um todo.

DA COLEÇÃO DOS SEGUNDOS ALHEIOS

Passamos por tantos lugares distintos e pudemos

Viajar é colher pedaços de felicidade alheia para

perceber a presença de algo universal naquilo que

compor uma possível felicidade nossa. A nossa

parecia singular.

felicidade, a do curioso, do itinerante, do inde-

Portanto, esse relatório constitui um pe-

finido, é uma colcha de retalhos tecida a partir

queno relicário. Uma colcha de retalhos das

de momentos roubados de outros. E com o que

nossas percepções acerca de tudo o que viven-

tecemos a nossa própria colcha? A gente que é

ciamos nesse processo: as teias de relações que

“composto” pode compor?

consolidamos dentro da nossa companhia e ao

Tem o buscador e aquele que não sabe que é buscado.

mesmo tempo com outras culturas, outras geografias, outras histórias. Tudo isso urge uma

Obrigada!


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

POR Guido Campos Correa

23

Ator e produtor do espetáculo solo “BOI”, de Goiânia (GO)

Prazerosa, mas uma vida de teatro nunca foi e nunca será tão simples, mas nada simples. Refazer todos os dias um plano infalível de sobrevivência não é fácil, com tantas opções tecnológicas, mundo virtual aliado a uma preguicite e ainda dezenas de cervejas geladas nos inúmeros bares. Fica realmente difícil ter na plateia um público relativo que cubra o mínimo das despesas diárias de um espetáculo. Sem contar os shows das duplas sertanejas que por essas bandas de Goiás é uma epidemia. Bom, então fazemos um festival de teatro aqui e outro acolá e nesse entremeio torcemos

E não é que acontece o inesperado

circuito PALCO GIRATÓRIO

pela aprovação de um pequeno projeto de lei de incentivo. E assim avançamos no tempo. Contudo, efetivamente não podemos levar nossos espetáculos por aí e por ali, aliás “por aí e por ali” seria igual pequenas viagens, pequenas turnês, todas essas “pequenas” exigem custos orçamentários, ou mesmo uma aprovação dos famosos projetos de circulação, então mais uma vez contamos com a sorte, sorte danada, seletiva. Mas correr o risco de bilheteria, jamais. Pode ser e pode não ser. O que fazer? Acionar o plano número 2, 3, 4... de sobrevivência e não deixar de atuar, dar aula de teatro, gravar comerciais de TV, fazer uma convenção, quem sabe gravar uma participação na próxima novela das nove, trabalhar de garçom e na pior das hipóteses fazer um bico num escritório, loja, bar de um amigo ou parente. O fato é: não está fácil ser ator, produtor e viver de teatro. Sem contar que não podemos perder outros sonhos: ganhar o Prêmio Shell de Melhor Ator, protagonizar um longa-metragem e ganhar um Kikito em Gramado-RS, depois um Oscar em Hollywood, sair na capa da Revista Caras tomando champanhe no castelo de Angra dos Reis, recusar um contrato na TV Globo, ter uma casa de campo e uma cobertura na Vieira Souto, ser vip no camarote da Brahma ou da Revista Quem no carnaval do Rio, ser rainha de bateria de uma escola de samba (ops, essa categoria não existe para homens, que pena) e quem sabe fazer o arquivo

BOI representou a região Centro-oeste no projeto nacional Fotos: Layza Vasconcelos

confidencial do Domingão do Faustão. Nossa, quanta pretensão. Será? Tudo é possível....ou não.


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

24

Ainda assim ter a graça, o prazer e o sonho

lar, nem mesmo em órgãos federais, e merecida-

de viver dessa arte tão fascinante que é o teatro,

mente leva o nome de Palco Giratório Sesc – Cir-

sobretudo viver de um teatro de pesquisa, ex-

cuito Nacional. Na sua 16ª edição, já consolidado,

perimental (fora dos padrões comerciais), solo,

foi idealizado por Sidnei Cruz. Esse projeto tem

mais conhecido como monólogo. Não é fácil,

como maior objetivo a formação de plateia, sem

mas estamos firmes. Citei agora mesmo que não

distinção, reverenciando e respeitando o artista

podemos perder o sonho, mas que sonho? Qual

em seu teatro e criações, assim como o comerci-

seria meu verdadeiro sonho? Qual seria meu so-

ário porque facilita sua ida ao teatro (vimos mui-

nho teatral? Com muita saúde e proteção divina,

tos comerciários assistirem a um espetáculo pela

ter um espetáculo de sucesso de público, crítica,

primeira vez na vida). Isso mostra, mais uma vez,

e viajar por todo país? Apresentar em todas ca-

o respeito pelo público em geral.

pitais do Brasil e no interior dos estados? Par-

Palco Giratório, seu nome diz tudo, girató-

ticipar de festivais nacionais e internacionais?

rio, girar pelos palcos do Brasil, fazer teatro e

Sim, seria isso um dos meus sonhos, simples não

conhecer as produções locais, educar e ser edu-

é? Brasil continente,

cado através da arte no país continente, onde toda uma logística funciona com equipes quali-

“Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha essa grandeza.

ficadas amparando as produções viajantes. Repetindo: e não é que acontece o inesperado: BOI, texto de Miguel Jorge, concepção e direção de Hugo Rodas, é o escolhido para repre-

Terra adorada

sentar a região Centro-oeste circulando nacio-

Entre outras mil,

nalmente no ano de 2013. Obaaaaa! Bingooooo!

És tu, Brasil, Ó pátria amada!” [1]

De abril a outubro de 2013, viveríamos um sonho, girar por um continente chamado Brasil! De Porto Alegre-RS a Boa Vista-RR; de São

Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei.

A vida segue... e lá estamos na labuta artís-

Paulo-SP a Porto Velho-RO, um olhar sobre meu

tica fazendo mais um dia dos 33 anos de palco,

fazer teatral e do outro; prazeres e dificuldades

puro teatro. Ufa!

cênicas; o desejo e o sonho de expressar por

Chuva e sol

Mais um projeto, mais um edital, mais uma

meio da arte. Olhares e mais olhares, uns tristes

Poeira e carvão

inscrição... uma hora “cola”. E não é que acontece

outros mais alegres e aqueles sempre felizes... a

Longe de casa

o inesperado! Na verdade, não espero muito dos

informação e a falta dela. O teatro só é possível

Sigo o roteiro

órgãos competentes responsáveis pela cultura

através da relação do meu eu com o eu do ou-

Mais uma estação

em geral, mas existe uma instituição que levo

tro. Hoje em dia, até se estende pelo Facebook,

E alegria no coração.” [2]

a sério e venho realizando parcerias ao longo

Instagram e Twitter, tempos modernos, mas so-

dos anos, eu e toda uma classe artística, uma

mente com o contato humano é que o fenôme-

instituição idônea que de certa forma assumiu

no teatro acontece.

a fomentação cultural da cidade (um alívio para as secretarias de culturas dos municípios e es-

Verdade, minha vida é andar por este país, me reconhecer nele e ser ele:

Vida de viajante, artista mambembe, lembrando e cantando canções antigas:

tados), uma instituição que tem nome e sigla,

“Meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro

CNPJ e endereço: Sesc – Serviço Social do Co-

“Minha vida é andar

Vou cantar-te nos meus versos

mércio!

Por esse país

O Brasil, samba que dá

Pra ver se um dia

Bamboleio, que faz gingar

cedidos, existe um que merece total relevância.

Descanso feliz

O Brasil, do meu amor

Tenho o costume de dizer que é o melhor projeto

Guardando as recordações

Terra de Nosso Senhor

de circulação do país, pois não existe nada simi-

Das terras por onde passei

Brasil! Pra mim! Pra mim, pra mim!” [3]

Dentre tantos projetos artísticos e bem-su-


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

1 Hino Nacional Brasileiro de Joaquim Osório Duque Estrada 2 Vida de Viajante de Luiz Gonzaga 3 Aquarela do Brasil de Ary Barroso

25

Espetáculo percorreu o Brasil durante sete meses Fotos: Layza Vasconcelos

E o tempo vai passando formando meses, e

O teatro é umas das maiores forças de expres-

Brasil de meu Deus. Gira, gira arte, gira eu , gira

nós cruzando ares e terra, fazendo e vivendo de te-

sões do ser humano. Toda minha reverência para

tu, giratório oratório Teatro Baco Deus!

atro. Apresentações mais apresentações, aplausos

essa arte tão generosa e acolhedora, nela estão

mais aplausos, debates mais debates, workshops

todos, sem distinção. Já não sou mais o mesmo...

Obrigado Sesc, Goiás, obrigado Sesc, Nacional,

mais whorkshops, voos mais voos... Protegidos e

meu olhar sobre a vida e a mim mesmo tornou-

obrigado, unidades Sesc de todo Brasil, obriga-

cuidados pelo Sesc. Acalentado e aplaudido pelo

-se mais aguçado, interessado, crítico e nunca

do a cada pessoa que contribuiu para o êxito das

público! Puro prazer! Tempo... Graças a Deus!

julgador, nunca, mas, sim, um olhar afetuoso,

apresentações e o bem-estar do elenco e equi-

solidário. Um olhar de aproximação!

pe, obrigado a cada gerente e a cada coordenador

Mas uma hora teria que ser, pois está sendo agora, o final da turnê BOI Palco Giratório Sesc – Circuito Nacional 2013.

Foram sete meses (sendo dois meses e

cultural dos diversos Sesc, Obrigado, equipe “BOI”,

meio viajando direto), de aeroportos, aerona-

obrigado a cada técnico, bilheteiras, camareiras

Foram sete longos meses girando por este

ves, poltronas de aviões, vans, hotéis, check-in

do teatro, obrigado a cada sorriso encontrado e a

Brasilzão, desta gente misturada e culturas dife-

e check-out, restaurantes, mais vans, teatros,

alegria de nos ver, obrigado àqueles que riram e

rentes, culinárias diversas, mas todos brasileiros,

montagens e desmontagens, passagem de som

choraram comigo, obrigado a cada aluno talentoso

fazendo do nosso país um orgulho mundial de

e de luz, ensaios, apresentações, workshops, fes-

dos workshops, obrigado a cada pessoa interessa-

nação. Foram histórias vistas e vividas de norte

tivais, outros espetáculos, festas, bares, amores

da no debate final do espetáculo e muito obrigado

a sul (da caatinga e seus mandacarus aos arvo-

e desamores, estradas e rodovias, pessoas e mais

ao público. Agora, sou eu que aplaudo todos vocês:

redos e suas araucárias) e de leste a oeste (da

pessoas, animais e pássaros, paisagens verdes,

Bravo! Bravo! Bravo! Bis! Bis! Bis!

Amazônia úmida ao mar de corpos ardentes),

amarelas, vermelhas, azuis, cidades grandes, ci-

Um sonho!!!

palcos diversos, plateias multicores... Emoção

dades pequenas e pequeninas, sertão e mar, frio

Obrigado, Dionísio/Baco!!!

pura! Ficam a experiência e a saudade, ficam os

e calor, sete meses de solidão e silêncios, mas de

Obrigado, meu Deus!!!

velhos e novos amigos.

aplausos! Um giro cultural de 360 graus neste


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

POR Marina de Campos

26

JORNALISTA

Um presente feito em casa Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo Um presente dado a uma cidade que acolhe o teatro sempre de braços abertos: esse é o espírito da Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo, que em setembro chegou à sua terceira edição. Consolidada como uma referência regional e recentemente adotada como projeto corporativo do Sesc/RS, a mostra alcançou maturidade em 2013, quando realizou uma semana de espetáculos, oficinas e intervenções artísticas, atingindo diretamente mais de 6 mil pessoas e agraciando a cidade do norte gaúcho com uma verdadeira celebração a essa metamorfose que se dá não apenas no palco, mas também dentro de cada espectador depois do último aplauso. Ao contrário da programação que o município costuma receber ao longo do ano, integrante Apresentação de O Filho Eterno, drama da Cia. Atores de Laura, do Rio de Janeiro Interação com a plateia marcou o espetáculo ao ar livre Misto Quente, do Circo Teatro Girassol Fotos: Gledson Maffessoni

de circuitos estaduais e nacionais trazidos pelo projeto Arte Sesc – Cultura por toda parte, pode-se dizer que a Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo é “feita em casa” – e por isso mesmo dotada de uma dose especial de carinho e cuidado. Iniciativa


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

27

da equipe de cultura da unidade local, a maratona

ao teatro o ano inteiro. A função da mostra é um

momento, estávamos representando o público”,

teatral nasceu oficialmente em 2011, mas já vinha

coroamento desse trabalho cotidiano, é um mo-

explica Alcídio.

sendo idealizada desde 2007, quando Passo Fundo

mento de festa pra nós. É o nosso Natal!”, explicam

O momento a que ele se refere começou

ganhou outro grande presente: a construção do

os integrantes da equipe, satisfeitos com o sucesso

quando, após três ou quatro esquetes apresen-

novo prédio equipado com um amplo e moderno

desta edição.

tados pela companhia de teatro Timbre de Galo,

teatro de 346 lugares. “Com a criação da mostra,

os quatro adentraram o salão vestidos de preto e

conseguimos reforçar ainda mais esse direciona-

Artistas dos bastidores

com as caras pintadas, posicionando-se em cada

mento do Sesc Passo Fundo para a cultura, que

Eles podem até não ser artistas, mas protago-

extremo do espaço e pegando de surpresa o pú-

hoje é a nossa grande marca”, explica Aline Pas-

nizaram um dos momentos mais espetaculares

blico presente com uma intervenção artística que

quetti, gerente da unidade.

dessa mostra. Alcídio e Andressa, acompanhados

em nada perdia para as anteriores. “Ninguém,

Com o objetivo de valorizar esse espaço e

por Edegar Junior e Mônica Novello – que juntos

além da gente, sabia que isso estava programado,

destacar as ações promovidas pelo Sesc através

formam a equipe de cultura do Sesc Passo Fun-

foi mesmo uma surpresa. Como estávamos entre

de um grande evento, a mostra veio crescendo aos

do – decidiram inovar na cerimônia de lançamento

amigos e convidados, nos sentimos à vontade para

poucos até conquistar maturidade e consistência.

tornando-se artistas por uma noite. “Queríamos

nos expor de uma maneira diferente. Eu me senti

“No começo, ainda estávamos em uma fase de

passar uma mensagem para quem estivesse pre-

realizada, porque a gente não imaginava que fosse

experimentação e adaptação. Da segunda edição

sente, na entrada havia espelhos com a frase ‘con-

surtir tanto efeito”, conta Andressa. “Realmente foi

pra cá, evoluímos significativamente, e isso graças

vidado especial’ e organizamos o salão de forma

muito legal, não somos artistas, longe disso, mas

ao reconhecimento do Sesc em relação ao projeto,

que o público se sentisse em pleno palco. Nossa

o instinto nos guiou, tínhamos ensaiado apenas

pois a Gerência de Cultura estadual acreditou real-

intenção não era chamar a atenção para nós mes-

uma vez e na hora de fazer saiu tudo certo, fa-

mente no potencial da mostra”, afirma a agente de

mos, mas, sim, destacar que todos são importan-

lamos com vontade, acertamos o texto, a plateia

cultura Andressa Pagnussat de Quadros.

tes na mostra, todos são um pouco artistas. E se

ficou perplexa. Acredito que tenha sido um dos

Essa resposta positiva da instituição foi o di-

a nossa intenção era que as pessoas se sentissem

momentos mais gratificantes que passei no Sesc”,

visor de águas para a realização da terceira edi-

inseridas, por que não nos inserirmos? Naquele

completa Alcídio.

ção. “A mostra criou autonomia. E essa autonomia aparece inclusive na escolha dos espetáculos, desta vez a curadoria do evento foi inteiramente nossa, porém com o olhar técnico da Gerência de Cultura RS, o que se tornou um desafio muito grande. Mas nos esforçamos para nos superar, já que autonomia também quer dizer um peso maior de responsabilidade”, pondera Andressa. Para o agente Alcídio Schroeder Filho, um dos pontos mais gratificantes dessa iniciativa foi ver os frutos do trabalho diário. “A mostra nos ajuda a perceber a evolução do público local, dessa formação de plateias na qual batalhamos o ano todo. Faz cinco anos que a gente vem plantando o gosto pelo teatro e agora é hora de colher os frutos, você percebe que o público vai se habituando e compreendendo cada vez mais essa arte, e é então que nosso trabalho ganha sentido.” A recompensa – seja para aqueles que fazem acontecer, seja para quem prestigia frequentando o teatro – não poderia ser melhor. “A mostra acaba sendo um presente para a cidade, um presente para o público que vem


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

28

Edegar lembra com alegria da reação do pú-

depois, ao alcançar a Praça da Cuia, o meio-fio já

dias, pois queremos que o público tenha esse cres-

blico. “Teve quem veio nos perguntar quanto tem-

estava tomado por olhares curiosos, o público que

cimento no seu olhar intelectual. São espetáculos

po ensaiamos, se nós já fazíamos teatro, se éra-

avistava de longe a movimentação ia se aproxi-

inéditos em Passo Fundo, de diferentes gêneros, e

mos mesmo atores, isso porque transmitimos uma

mando, até das sacadas e janelas começou a surgir

vindos de todo país”, lembra Andressa. Ela destaca

confiança muito grande naquela hora”. Já Mônica

plateia. Pensado justamente para inserir a popula-

como sinal de evolução o fato de este ano a equipe

resume com precisão o motivo de tanto suces-

ção de Passo Fundo no acontecimento ao mesmo

ter recebido muitas propostas de espetáculos de

so: “A gente fica tão empolgado com a mostra, é

tempo que fazia o convite para a mostra, o Cortejo

companhias nacionais, e não apenas buscá-las, o

algo tão nosso, tão intrínseco da equipe, que era

Musical Circense da companhia Circo Teatro Giras-

que demonstra o fortalecimento da mostra como

o momento de chegar lá e colocar tudo pra fora,

sol deu o tom desta terceira edição. Comerciantes,

referência dentro do cenário teatral.

mostrar o quanto a gente gosta do que faz. Foi

estudantes, familiares, crianças e até um conheci-

Todo esse empenho em oferecer uma gran-

isso que conseguimos transmitir, o quanto estáva-

do artista de rua que se apresenta nos semáforos,

diosa programação à população da cidade se

mos emocionados, de coração e alma entregues à

todos participaram de forma alegre e espontânea

refletiu claramente no palco. Uma sensível e co-

mostra”. O toque especial, ainda que arriscado, foi

do show de música, dança, equilíbrio, fogo e acro-

movente ode à amizade abriu a mostra com a

fundamental para a repercussão do lançamento e

bacia que lembrava a triunfal chegada do circo na

apresentação de Cravo, Lírio e Rosa, do grupo pau-

o posterior sucesso da mostra, já que desde o prin-

cidade dos tempos de antigamente.

lista Lume, que trouxe a pureza do teatro clown

cípio o público sentiu a dedicação desses “artistas

Com uma maratona de cinco espetáculos

em sua melhor forma. Na sequência, foi a vez do

entre os dias 26 e 29 de setembro, além de três

espetáculo infantil O Casamento do Grande Mági-

oficinas e inúmeras intervenções artísticas no co-

co Maycon Stallone, da companhia gaúcha Circo

Enfim, a terceira

mércio, a 3ª Mostra Sesc de Teatro Passo Fundo fez

Teatro Girassol, que também realizou o cortejo e

Quando o cortejo começou a andar pela Rua Mo-

questão de ir além da simples diversão. “Prioriza-

apresentou o show circense Misto Quente para

rom naquela tarde de sábado nublada, não havia

mos espetáculos que tivessem um apelo reflexivo.

quase mil pessoas na Praça Antonino Xavier, numa

sinal de multidão na rua. Mas algumas quadras

Não apenas no drama como também nas comé-

tarde de domingo que fechou o mês de setembro

dos bastidores” e sua visível paixão pelo teatro.

com chave de ouro. O destaque da edição ficou por conta do drama O Filho Eterno, da carioca Cia. Atores de Laura, que trouxe à tona a coragem, crueza e honestidade que só o teatro é capaz de expressar com tamanha intensidade, conseguindo assim uma surpreendente identificação com o público. O encerramento contou com os atores Letícia Isnard e Érico Brás para a encenação da comédia Tarja Preta, uma divertida crítica à sociedade atual e sua constante bipolaridade entre a euforia e a depressão. Mas essa missão, enfim cumprida, está longe de ser sinônimo de sossego para a equipe de cultura do Sesc Passo Fundo. Orgulhosos, eles deixam bem claro: “já começamos a trabalhar na próxima mostra!”. E que 2014 seja ainda melhor.

Espetáculo clown Cravo, Lírio e Rosa, da companhia paulista Lume Espetáculo de comédia Tarja Preta, com os atores Érico Brás e Letícia Isnard Fotos: Gledson Maffessoni


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

29

Fãs do humor sarcástico do grupo britânico Monty Python, já extinto na segunda metade da década de 1980, os amigos atores Adriane Mottola, Luiz Henrique Palese e Cacá Correa reuniam-se em Porto Alegre para jornadas de brainstorming que culminavam em textos para teatro. Nesse clima, foi criado o espetáculo infantil Shandar e o Feitiço de Mungo, que estreou em junho de 1988 e marcou o início da Companhia Teatro di Stravaganza, ba-

25 anos da Companhia Teatro di Stravaganza

tizada dois anos depois. Muito diferente do que se fazia na época, com uma pegada de cinema, em seu primeiro ano em cartaz, a peça enfileirou em torno de 10 prêmios. O sucesso empolgou o trio, que seguiu no caminho da dramaturgia própria durante o que hoje Adriane denomina de primeira fase da companhia. Com a morte de Palese (2003) e o afastamento de Cacá após cinco anos de atividades, Adriane é a única das fundadoras que está na companhia desde o começo, o que faz com que seja vista como ‘a cara’ da Stravaganza. “O protagonismo não me interessa, somos muitos e todos têm tamanho e

Pequenas Violências Silenciosas e Cotidianas Foto: Vilmar Carvalho


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

30

expressão no grupo”, comenta a atriz, diretora e

elas é de forma extremamente prazerosa, pois novas

produtora que comemorou a estreia em novem-

relações e trocas de experiências são vitais para o

bro do primeiro espetáculo do grupo em que não

crescimento do grupo. Até hoje não fechamos com

está diretamente envolvida: Pequenas Violências

a ideia de ter uma escola permanente, por ora in-

Silenciosas e Cotidianas, com texto e direção de

vestimos nas oficinas anuais”, comenta. Todos na

Fernando Kike Barbosa. Kike, um dos integrantes

companhia iniciaram como atores, mas há quem

da companhia, ganhou o Prêmio de Dramaturgia

tenha vocação também para produção, outros para

Ivo Bender, concedido pela Secretaria de Cultura

direção. Alguns têm grande prazer em ministrar

de Porto Alegre e pelo Instituto Goethe, que lhe

oficinas, outros já não tanto e, segundo Adriane, as

rendeu uma bolsa para escrever seu roteiro na

habilidades vão se definindo com o tempo.

Alemanha. Posteriormente, foi contemplado no

“Somos pessoas diferentes, alguns tendem

Edital de Incentivo à Pesquisa em Artes Cênicas

para determinado tipo de espetáculo, diferente

do Teatro de Arena, onde a peça está em cartaz

dos que eu dirigiria hoje. São pequenos grupos

a preços populares. O texto lança um olhar sobre

dentro do grupo, e isso é muito bom porque se

a banalização da violência no mundo contempo-

a pessoa não encontra seu meio de expressão no

râneo. “Este é o 26o espetáculo da companhia,

coletivo, não pode colocar suas ideias em prática,

e é com imenso prazer que vejo que os nossos

não tem porque permanecer.” Apesar de todos do

25 anos foram comemorados no mais alto nível:

grupo terem voz, existe um direcionamento artís-

Pequenas Violências é original, consistente e ino-

tico que é dado por Adriane. “Tem trabalhos que

vador. Estou muito feliz, principalmente por ser

não têm a ver com gente, então sugiro que não

dramaturgia própria”, afirma Adriane.

se assine como Stravaganza. Será um projeto pa-

Além de Adriane e Fernando Kike Barbosa, a Stravaganza hoje é formada por Duda Cardoso,

ralelo de um ou mais integrantes do grupo, mas não é da companhia”, explica.

Janaina Pelizzon, Rodrigo Mello, Sofia Salvatori e ticipam das reuniões que decidem os projetos que

A primeira fase: dramaturgia própria para crianças

serão encenados, Ricardo Vivian, que embora te-

Na época em que criaram Shandar e o Feitiço de

nha ficado oito anos em Roma estudando cinema

Mungo, Cacá, Palese e Adriane se organizaram

na Universidade La Sapienza, de onde está retor-

como núcleo artístico e convidaram alguns atores

nando, faz parte do grupo, e Gustavo Curti, que es-

para compor o elenco. Não havia intenção de for-

tuda teatro com o Théatre de L’Ange Fou em Lon-

mar um grupo. “O espetáculo foi tão bem-sucedido

dres. “Tem ainda os nossos amados colaboradores,

que seguimos trabalhando com dramaturgia pró-

atores incríveis que têm nos acompanhado já há

pria. O Monthy Pyton, com aquele humor corrosivo,

algum tempo, como a Fernanda Petit, que está em

satírico, non sense era muito forte para nós três.

três espetáculos, a Geórgia Reck, o Cassiano Ran-

Éramos loucos por eles – o grupo já havia acabado,

zolin e o Rafael Guerra que dividem a cena conos-

mas ainda passavam os filmes na TV – e escrevíamos

co em dois espetáculos. E ainda o Áquila Mattos, o

um pouco em cima do que eles faziam.” Ainda sem

Marcelo Crawshaw, o Vini Petry, o Marcelo Adams

se denominarem um grupo, encenaram três espetá-

e a Liane Venturella. E a Coca Serpa, figurinista e

culos infantis, que foram bem recebidos pelo públi-

amiga muito próxima.”

co e pela crítica. Por um Punhado de Jujubas (1990),

Lauro Ramalho, que moram em Porto Alegre e par-

A Stravaganza é uma companhia de teatro que

um espetáculo satírico, cômico, foi o segundo;

cria e produz espetáculos, intervenções urbanas e

A Lenda do Rei Arthur (1991), assim como Shandar,

projetos maiores com processos de criação que en-

uma aventura que enfoca mais a saga do herói, o

volvem pesquisa e oficinas. “Estas oficinas não são

terceiro. “Nesta época, muitos diziam: vocês são tão

o foco da companhia, mas quando nos dedicamos a

legais, queremos ver vocês sempre, então pensamos,


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

31

nós já somos um grupo, trabalhamos sempre juntos,

rainha ou rei, que escolhe o tema da noite, por

então está na hora de oficializar.”

exemplo, as burlas que os homens cometem entre

Decameron

Foto: Claudio Etges

Decameron

Logo depois, a companhia decidiu realizar

si, mulheres que enganaram o marido e se deram

Foto: Castagnello

projetos maiores, cruzar fronteiras. Com a peça

bem ou os amores que tiveram um final infeliz. Es-

O Ovo de Colombo (1992), sobre Cristóvão Colom-

ses temas são os mais variados, mas o Decameron

Pequenas Violências Silenciosas e Cotidianas

bo, também satírica e infantil, foi para Montevidéu.

é sempre lembrado pelas histórias plenas de sen-

A apresentação foi no Teatro Solis, com capacida-

sualidade, como expressão dos fortes desejos hu-

de para mais de mil pessoas, o maior da capital

manos. Este espetáculo é muito importante para

uruguaia, e o grupo trabalhou muito na produção

nós, decidimos trabalhar com sete histórias, e que

e divulgação por lá para lotar o teatro (“ao lado

seriam as de amor e sexo porque a gente estava vi-

da nossa primeira e grande produtora, Daniela

vendo uma época que os amigos morriam de aids.

Cunha”). “Numa das inúmeras entrevistas, quem

Juntamos as histórias de sexo com – a gente não

falou conosco foi uma crítica de uns 90 anos que

falava que era aids – a peste. Num ambiente de

queria saber das nossas encenações. Até então só

dor, uma trupe mambembe celebrava os prazeres

havíamos trabalhado com dramaturgia própria.

da vida para superar o lado trágico da existência.”

Nossas referências, para quem não nos conhecia,

O processo de montagem de Decameron

éramos nós mesmos. Mas o que vocês fizeram? Ah,

(1993) durou um ano e meio. O grupo chamou

fizemos uma peça nossa, mais uma peça nossa...

pessoas para dar aulas sobre estilos de jogo, bu-

Mas nem um Becket? Nem um Shakespeare? E aí

fão, clown. O espetáculo foi totalmente falado em

percebemos: estava na hora de mudar.”

italiano, mas o conteúdo das narrativas tornava-se claro pelo uso de recursos gestuais e corporais,

A segunda fase: textos consagrados – Decameron

com foco na ação dos personagens. “A primeira

“Naquela época (1992), o Antunes Filho tinha feito

mais para o espectador acostumar o ouvido e as-

um espetáculo que era a história do Chapeuzinho

sim por diante. Ia crescendo, tudo pensado. Repetí-

Vermelho, Nova Velha História, todo em uma lín-

amos palavras que faziam parte de um vocabulário

gua imaginária, o que nos marcou profundamente.

básico usado na adaptação. O espectador na pri-

Nossa primeira ideia para um próximo trabalho era

meira história entendia que tal palavra significava

encenar contos medievais e fomos buscar algo na

tal coisa, e no curso da peça esta palavra era usada

Biblioteca Municipal. Já pensávamos em desenvol-

em contextos mais complexos. A última e sétima

ver uma linguagem mais corporal, não depender

cena já era bastante verbal.

história tinha pouca fala, a segunda um pouco

tanto da palavra. E tinha essa coisa do Antunes.

Decameron foi muito bem-sucedido. De iní-

Achamos incrível uma língua imaginária e ter que

cio, Porto Alegre não entendeu. Porto Alegre nun-

se fazer entender corporalmente.”

ca entende de início. ‘Por que estão fazendo um

“Por que não o Decameron do Bocaccio? Em

espetáculo em italiano?’ E era italiano arcaico,

italiano! Siiim. Todos tinham descendência italiana,

até os italianos não entendiam algumas palavras,

mas não sabiam o idioma. Ótimo desafio! O Pasoli-

mas compreendiam o todo, o tema, o espetáculo.

ni tinha feito um filme do Decameron, que contava

Viajamos para o Rio e a Bárbara Heliodora, muito

algumas histórias, são 100 novelas no total. A Eu-

temida e respeitada na época, fez uma boa críti-

ropa está vivendo a Peste Negra, em meados do sé-

ca do espetáculo. Como ela não gostava de nada,

culo 14. Dez jovens – sete mulheres e três homens

quando fazia uma crítica elogiosa, o espetáculo

– pra fugir da peste saem de Florença, vão pra um

tinha repercussão. Com a crítica da Bárbara, e de-

castelo no campo e pra passar o tempo, passam

pois com as outras dos críticos dos outros veículos,

as 10 noites contando histórias. ‘Decameron’ quer

conseguimos teatro, produtores locais, bons divul-

dizer 10 dias, ou jornadas. Cada noite se elege uma

gadores, viajamos muito.”

Foto: Vilmar Carvalho

Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos Foto: Vilmar Carvallho

Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos Foto: Vilmar Carvallho

Sacra Folia

Foto: Vilmar Carvalho


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

32

Commedia dell’arte, máscara e outras referências

ência forte em nosso jogo cênico.” A Stravaganza,

Com um formato enxuto, quatro atores e dois

preparação corporal, ao jogar com a commedia,

técnicos, o grupo foi a Portugal, Buenos Aires,

passou a investir mais na improvisação, no traba-

Montevidéu, fez temporada no Rio de Janeiro,

lho físico. “É um estilo de jogo muito completo e

São Paulo, Brasília, Recife. Para Adriane, viajar

que desenvolve muitas habilidades para segurar a

com o espetáculo é fundamental porque aqueles

improvisação”, diz Adriane.

que já utilizava acrobacia como trabalho inicial de

que ainda não te conhecem te veem com olhos

Nessa fase, a companhia trabalhou muito

virgens e se consegue avaliar melhor o impacto

o jogo popular. Em Fellini by Stravaganza, os 12

do trabalho. “Na tua cidade, as pessoas te conhe-

atores jogavam com 35 máscaras expressivas

cem muito e é para bem ou para o mal.”

mudas, criadas especialmente para 12 apresen-

Como a peça era em italiano, muitos co-

tações em um shopping durante uma edição do

mentaram que se tratava de commedia dell’arte

Porto Alegre Em Cena. O Pastelão foi nosso pri-

devido à linguagem popular, apesar de sofisti-

meiro espetáculo de rua, com as máscaras da

cada. “Nunca tínhamos estudado o estilo e, du-

commedia. “Depois veio o Arlecchino, Servidor

rante temporada em São Paulo, chamamos um

de Dois Patrões, do Carlo Goldoni, em que apro-

amigo, o Joca Andreaza, que vinha do Fora do

fundamos o jogo com as máscaras da commedia

Sério, um grupo especializado em commedia

dell’arte. Foi o espetáculo mais elaborado dessa

dell’arte – para nos introduzir na sua prática.

fase, um ano inteiro de pesquisa e de trabalho até

E a partir dali começamos a trabalhar com o

encenarmos a peça, em 1997.”

jogo das máscaras.” Estremeço

Foto: Vilmar Carvalho

com o Donato Sartori, um dos maiores masca-

A terceira fase: o Studio Stravaganza e a retomada da dramaturgia própria

Por um Punhado de Jujubas

reiros do mundo, a criar máscaras em couro.

Essa terceira fase da Stravaganza, que inicia pela

“Viajamos muito pelo mundo das máscaras e da

conquista da sede própria – o Studio Stravaganza

commedia, e até hoje este trabalho é uma influ-

– é fundamental para o aprofundamento dos

Foto: Vilmar Carvalho

Estremeço

Fotos: Claudio Etges

Encontros Depois da Chuva Fotos: Claudio Etges

Artista plástico, Palese já confeccionava máscaras em papel e foi para Pádua aprender


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

33

A quarta fase: os temas contemporâneos

dramaturgia latino-americana. “Isso foi fazendo

grupo tem um espaço de experimentação. “Divertido hoje é lembrar que o estúdio era a garagem

Deixar de lado a tradição, os estilos europeus

turgia contemporânea e andar na contramão:

de um edifício, não tinha banheiro, e o Gustavo

e abordar mais o mundo atual e questões per-

enquanto grande parte dos grupos brasileiros

Curti me propôs ministrar uma oficina a partir do

tinentes ao Brasil foi o desafio da quarta fase

construía dramaturgia própria de forma colabo-

Encontros Depois da Chuva. Com o dinheiro da

da companhia. A morte de Palese, marido de

rativa, a Stravaganza, nesse momento, buscava o

inscrição, construímos o banheiro.”

caminhos cênicos da companhia, já que agora o

a gente se apaixonar cada vez mais pela drama-

Adriane, em 2003, uniu o grupo, e os integran-

encontro com dramaturgos que trouxessem com

É no Studio que, depois de jogar com as

tes resolveram, eles mesmos, reformar o estúdio

potência os temas que queríamos tratar. Desde o

máscaras expressivas e com as da commedia

adquirido em 1998 para poder receber os espec-

Encontros, não trabalhamos mais com dramatur-

dell’arte, o grupo enfrenta o desafio de inves-

tadores. “O Studio era um lindo espaço, grande,

gia própria criada de forma colaborativa. Mesmo

tigar o universo do clown e o jogo com a sua

mas com paredes mofadas e piso empoeirado

Pequenas Violências, do Fernando Kike, é um tex-

minúscula máscara, o nariz vermelho. Desse

onde só ensaiávamos e guardávamos cenários e

to elaborado 'na solidão do gabinete', que chega

mergulho, nasce o espetáculo infantil Bebê Bum

figurinos. Resolvemos recriar o lugar, tínhamos

ao grupo pronto, embora aberto às modificações

(1999), em que Adriane deixa a cena para fazer a

o Carlos no grupo que já havia trabalhado como

exigidas pelo processo de criação."

assistência de direção. “Além de atuar, até então

pedreiro, fizemos o piso de cimento queimado, o

A Comédia dos Erros (2008), um dos espetá-

era muito produtora e isso de produzir e estar

piso de ladrilhos, pintamos as paredes, um lugar

culos mais conhecidos do grupo, há cinco anos

em cena ao mesmo tempo, é muito cansativo,

enorme que se abriu para a rua, para receber.”

em cartaz, ainda retrata uma fase anterior, ainda

doloroso. Deixei a atriz de lado e me apaixonei

Com o Studio Stravaganza em funciona-

tem resquícios do jogo da commedia dell’arte.

pela direção”, admite. Depois de Bebê Bum, di-

mento, em 2004, a companhia iniciou o proje-

“O estilo sempre vai estar no que a gente faz,

rige Encontros Depois da Chuva (2000), um es-

to Diálogos Contemporâneos que tinha como

porque está no nosso corpo. A cada espetáculo a

petáculo de teatro físico, mudo, sobre o mundo

foco leituras dramáticas encenadas. Em um ano,

gente se propõe a trabalhar com a dificuldade, o

contemporâneo, e Sacra Folia (2002), com texto

Adriane, que selecionava o que seria trabalhado,

desafio, na tentativa de não repetir um formato.

de Luiz Alberto de Abreu, em montagem para a

leu mais de 100 textos, todos da dramaturgia

A cada projeto procuramos trocar experiências

rua. Luiz Henrique Palese cria e encena Como

contemporânea, universal, e os atores da Stra-

com diferentes artistas, que nos inspirem com

Vivem os Mortos?, monólogo de sua autoria, e

vaganza se revezavam em duas leituras ao mês,

novas ideias e técnicas para que a cada espetá-

excursiona por diversas cidades do país, além de

dirigidas por membros da companhia ou diretores

culo possamos chegar a um mundo diferente da-

cumprir temporada em Montevidéu.

convidados. No ano seguinte, trabalharam apenas

quele do espetáculo anterior. E o que se encontra


ARTES CÊNICAS

SEGUNDO SEMESTRE

2013

34

é transformado pelo grupo, pois não nos interes-

lógica consciente, nascidos nas profundezas

sa repetir o que já está posto. Tentamos fugir da

insondáveis do mundo moderno e dos mons-

fórmula pronta.”

tros da solidão que ele gerou. De acordo com

Ecos da Cidade

Foto: Vilmar Carvalho

A Comédia dos Erros

Foto: Vilmar Carvalho

Em 2013, além de Pequenas Violências Si-

Pommerat, essa fragmentação do real denuncia

lenciosas e Cotidianas, a Stravaganza estreou

que nós não temos a certeza de um futuro con-

Príncipes e Princesas, Sapos e Lagartos – His-

creto porque as relações humanas consistentes

tórias Modernas de Tempos Antigos, inspirado

não são possíveis em uma sociedade balizada

no texto de Flavio de Souza que foi montado

na ética caracteristicamente sob influência dos

pela Stravaganza à moda do romance-em-cena

fundamentos do mundo de trabalho capitalista.

desenvolvido por Aderbal Freire Filho. “A com-

Ainda em 2013, três integrantes da Stra-

panhia também manteve em temporada Estre-

vaganza criaram o Núcleo Stravaganza de Per-

meço, que estreou em 2012 e foi apresentado

formance e Intervenção, com a intenção de

no último Porto Alegre Em Cena. O texto de Joel

promover o debate em torno das questões das

Pommerat, dramaturgo e diretor francês reco-

cidades e reafirmar a arte como meio de poten-

nhecido no circuito europeu por seu trabalho

cializar estratégias simbólicas que reconfiguram

pessoas que são bem mais jovens e com outras

junto à Cie. Louis Brouillard, foi encenado pela

a relação das pessoas com os espaços públicos.

vivências (não necessariamente teatrais), nos

Stravaganza sob a direção de Camila Bauer, con-

Formado por Adriane, Janaina Pelizzon e Duda

transformamos e voltamos ao grupo renovados.”

quistando o Troféu Braskem de Melhor Direção

Cardoso, o núcleo reuniu jovens criadores de

Agora, a Stravaganza se prepara para levar a

2013. Estremeço promete a possibilidade do so-

formação multidisciplinar e com eles produziu

Recife seu repertório, representando o Rio Grande

nho, mas não do sonho formatado característico

diversas intervenções que, a partir da sua for-

do Sul no 20o Janeiro de Grandes Espetáculos –

da indústria do espetáculo, e sim de um “sonho

mação, foram apresentadas nas ruas de Porto

Festival Internacional de Artes Cênicas do Recife/

do futuro”, onde os acontecimentos são lista-

Alegre, inclusive durante o Festival Palco Girató-

Pernambuco, em janeiro do próximo ano.

dos em fragmentos e encadeados às vezes sem

rio. “Envolvidos numa troca de experiências com


ARTES CÊNICAS

segundo SEMESTRE

2013

35

A vida em grupo  POR adriane mottola do mundo. É um casamento aberto, quem fica é

nossas coisinhas, faxinar a casa para dar espaço

porque quer.

ao pensamento. Temos ainda um repertório, te-

O que mantém um grupo unido são os ideais

mos que distribuir nossas peças. Todos os atores

artísticos e a sua realização em projetos. Há os

da Stravaganza só fazem teatro. Ninguém tem

que se afastam e acabam voltando quando surge

um trabalho fixo. Fazem oficinas, dão aula, criam

a oportunidade, seja uma boa ideia ou um projeto

projetos, trabalham em festivais de teatro, mas

interessante. Nem todos os espetáculos nascem

ninguém tem atividade que não é relacionada

do grande grupo. Somos muitos, portanto há

ao teatro. Somos um grupo, mas também somos

afinidades artísticas que se realizam em grupos

indivíduos que têm que correr todo dia atrás do

O grupo é uma família. Com suas delícias e hor-

menores, em espetáculos de pequeno porte. Mes-

ganha-pão. Isso une, desune, une.

rores. Tu escolheste aquelas pessoas para traba-

mo aí procuramos colocar aqueles que não estão

Estudiosos do teatro comentam que os gru-

lhar e setenta por cento da tua vida tu vais passar

diretamente envolvidos na equipe em outras fun-

pos estão em crise. Grupos de teatro com mais

com elas. É como um casamento, temos que lutar

ções, sejam artísticas ou técnicas. É com projetos

de 10 anos de trajetória se desfazem, diretores lí-

todo dia para preservar a união. Às vezes, porém,

que a gente se reúne. Outra coisa é a sede. É um

deres abandonam seus grupos para seguir outros

é inevitável a saída de alguém. As pessoas mu-

espaço onde se pode experimentar. Acho que a

caminhos e por aí vai. Estar em grupo é resistir.

dam, criam outras prioridades, têm vontade de

sede é tudo, sem ela não tem espaço para o apro-

Até quando dá. Por enquanto estamos aqui. Fir-

transitar por outros espaços. A fricção é constan-

fundamento de um trabalho. Espaço é um lugar

mes e fortes.

te (e necessária). É complicado, mas não é o fim

de união, temos que deixá-lo habitável, arrumar


PRIMEIRO SEMESTRE

2013

caderno de teatro

36

Por Clarissa Eidelwein Jornalista

Companhia do Latão investigações, pedagogia, música,

produção de espetáculos, cinema e vídeo


caderno de teatro

PRIMEIRO SEMESTRE

2013

37

Fotos: Lenise Pinheiro e Sérgio de Cavalho

#11 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório no Arte Sesc – Cultura por toda parte. Sua edição desempenha um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Sesc. Nas próximas páginas, o caderno apresenta a trajetória da Companhia do Latão a partir da visão do ator Ney Piacentini, que concedeu a entrevista à Arte Sesc, em outubro, e também fala de seu ativismo cultural, além de um texto do diretor do grupo, crítico e professor da Universidade de São Paulo, Sérgio de Carvalho, sobre a dialética brechtiana. A companhia participou, no Rio Grande do Sul, de duas edições do festival e, em 2014, retorna ao evento com cinco espetáculos, incluindo o mais recente, O Patrão

Cordial, uma comédia sobre a cordialidade brasileira, nos moldes da tradição clássica do patrão e do empregado, inspirada em textos de Brecht e de Sérgio Buarque de Holanda. O grupo, um dos mais politizados do Brasil e que apresenta em suas peças um trabalho de pesquisa que envolve a discussão dos problemas atuais da sociedade com inspiração em textos clássicos, também participará da atividade Residência Artística.


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2013

38

O início da parceria com Sérgio de Carvalho e a criação da Companhia do Latão

teatrais que não a relação convencional entre palco italiano e a plateia frontal, por assim dizer. É uma dramaturgia narrativa, na qual a encenação no aspecto convencional talvez não caiba. Sérgio tinha mestrado sobre o teórico Anatol Rosenfeld, cuja visão sobre teatro épico é bem particular e profícua. Não posso afirmar com certeza porque não estava presente, mas se observou a questão temática, posto que Danton trata da Revolução Francesa. Lembro que no início falávamos que além de sermos um grupo de teatro de pesquisa de linguagem, tínhamos interesse em assuntos liga-

Encontrei com Sérgio de Carvalho em uma mon-

dos à realidade social brasileira e também de fora do

tagem de parte da Companhia Cidade Muda, um

país, em apontar alguns nortes e ideais. No Arena,

projeto de uma versão de Alice no País das Ma-

começamos investigando A Compra do Latão, que é

ravilhas, de Lewis Carroll, para adultos. Logo de-

um texto teórico do Brecht, uma crítica ao idealis-

pois nos juntamos para fazer uma peça chamada

mo da arte. O livro, uma versão portuguesa, foi um

O Catálogo, do francês Jean-Claude Carrière, isso

presente de Fernando Peixoto, que disse que o tex-

de 1995 para 1996. Tivemos uma relação razo-

to poderia ser útil. Ele havia feito anotações à mão

ável nessa tentativa de realizarmos algo juntos,

no livro. Depois participamos de uma homenagem

e, logo em seguida, ele se inscreveu no edital de

a Peixoto em Porto Alegre, em 2012, a convite da

ocupação do Teatro de Arena, em que propôs a

velha guarda que conviveu com ele, da qual o crítico

ocupação com uma ideia sobre uma pesquisa em

gaúcho Antonio Hohlfeldt fazia parte.

teatro dialético.

O fato é que começamos a pesquisar o tea-

Acabamos sendo convidados para um evento

Entre a primeira experiência que tivemos jun-

tro dialético através desta obra. E foi ela que deu

do Sesc, que comemorou os 100 anos de nasci-

tos (ele como diretor e eu como ator) e a ocupa-

o nome ao grupo. Esse material proporcionou a

mento de Brecht, em 1998. Nós nos metemos a

ção do Teatro de Arena, Sérgio montou com um

abertura de algumas frentes: observações nas ruas

fazer o Santa Joana, mas foi também muito pro-

grupo de atores o espetáculo Ensaio para Danton,

do centro de São Paulo, o trabalho com Hamlet,

cessual porque encenamos cinco versões, por certa

a partir de A Morte de Danton de Georg Büchner,

que é utilizado por Brecht no livro, e a análise de

insatisfação com a repercussão de determinados

enquanto me envolvi em uma versão teatral do fil-

aspectos teóricos do texto, vertendo para um as-

aspectos da obra. Vou citar um: o cinismo do per-

me de Fernando Bonassi, Um Céu de Estrelas, e vol-

pecto ensaístico e experimental. Quando abrimos a

sonagem principal, Pedro Paulo Bocarra, tinha um

tamos a nos encontrar em 1997. Sérgio criou uma

cena ao público para mostrar alguma coisa quase

tremendo eco do público e aquilo passou a inco-

equipe e me chamou para fazer parte do grupo,

interna fomos surpreendidos com uma incipiente

modar os diretores e dramaturgos, Sérgio de Car-

já com a pretensão de criar um coletivo, batizado

repercussão. Paralelo a isso, estávamos fazendo

valho e Márcio Marciano. Fomos estudando, vendo

como Companhia do Latão. Então, estamos juntos

uma leitura de A Santa Joana dos Matadouros, es-

como modificar o olhar, nosso e do espectador,

praticamente desde o início, com o projeto Pesqui-

tudando um pouco mais a dramaturgia do Brecht.

para que aquilo não tivesse tanta força. Pesquisan-

sa em Teatro Dialético na ocupação do Teatro de

Era um processo no qual nos reuníamos nas sex-

do e fazendo ao mesmo tempo. Eles interferindo

Arena Eugênio Kusnet, no centro de São Paulo.

tas-feiras e íamos para levantar uma cena, o que

na dramaturgia, e nós acompanhando de perto

significa encená-la. A cada sexta uma nova cena

tudo isso. E o Ensaio Sobre o Latão já ganhando

A pesquisa

seria erguida, enquanto as outras permaneciam

algum público. Depois, fizemos e produzimos nos-

Do que eu sei, em Ensaio para Danton foi quan-

em caráter de leitura. Era praticamente um grupo

sa primeira incursão a uma dramaturgia própria,

do se percebeu uma aproximação a Brecht, pois

de estudos. Dá até pra fazer uma brincadeira, piada

que foi O Nome do Sujeito. Ensaio Sobre o Latão

o Büchner tem um aspecto pioneiro em alguns

interna: “E teatro vocês vão fazer quando?” O Latão

era um híbrido, Santa Joana tinha como referência

sentidos de uma dramaturgia não contínua e da

sempre foi e continua sendo mais de estudos que

o texto do Brecht e a tradução de Roberto Schwarz.

possibilidade de você experimentar outras formas

de produção de espetáculos, desde sua gênese.

Paralelo a isso, um grupo de música coordenado


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2013

39

ciado: última peça da Companhia do Latão. Santa

católicos em receber uma obra politicamente de

Joana nos proporcionou relações interessantes por

esquerda, que questionava muito a religião. Aca-

parte da comunidade acadêmica que começou a

bamos indo a Veranópolis na escola do MST, nos

nos assistir, quer estudantes das humanas, quer

apresentamos num clube, no centro da cidade.

professores. Já tínhamos uma associação com al-

Apresentamos a peça outras vezes para movi-

guns intelectuais, Roberto Schwarz, José Antônio

mentos sociais e era como se fosse um jogo de

Pasta, Iná Camargo Costa, Paulo Arantes e Maria

futebol, muito ruidoso, as pessoas se manifesta-

Silvia Betti, que nos acompanhavam e dividiam

vam durante o espetáculo, contra ou a favor de

ideias conosco, ora em palestras, ora em encontros

algum personagem, e isso dava um calor à cena

internos, e a coisa atingiu uma abrangência com a

bem interessante. Era uma peça que precisava

qual não contávamos muito. Lembro que na época,

de um caminhão inteiro de cenografia, eram 48

o falecido Reinaldo Maia disse: “Ah, o Latão é um

horas de montagem. Nós nos autoapelidamos de

grupo de esquerda, mas que se apresenta para a

teatro “selvagem”: em Cajamar, próxima a São

classe média.” Uma coisa assim.

Paulo, em um encontro de lideranças do MST em que não tínhamos de onde puxar a luz, levamos

O MST

cabos grossos e pesados, trabalhávamos suando

Em 1988, em uma apresentação do Santa Joana

litros, contudo fazíamos os espetáculos com gosto.

durante o governo de Cristovam Buarque, que ti-

E isso abriu um campo de trabalho de relação so-

nha um projeto interessante chamado Temporadas

cial, muito diferente daquilo que na época o Maia

Populares, fomos surpreendidos pelo MST (Movi-

havia observado, que seria o de um grupo politi-

mento dos Trabalhadores Sem-terra) e pela CNBB

zado de classe média levando para um público de

(Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) em

mesmo nível econômico.

Brasília. Do Festival de Londrina, fomos à capital

Desde então, esta parceria existe, ora mais

por Lincoln Antonio e Walter Garcia estava em

e recebemos a notícia que a CNBB tinha enco-

intensa, ora intermitente. E esta nova relação nos

desenvolvimento e que depois derivou no grupo

mendado dezenas de ingressos. A gente estranhou

deslocou do público tradicional do teatro para

musical A Barca, que tem uma produção bastante

porque A Santa Joana dos Matadouros é uma peça

outro tipo de relação e mudou nosso olhar, assim

reconhecida; e as publicações do grupo também

crítica à religião. E tinha uma exposição do Sebas-

como quando fomos a Recife, no 1º Festival Recife

já vinham à tona, principalmente a revista Vintém,

tião Salgado no saguão do Teatro Nacional sobre o

de Teatro Nacional, nos deixamos influenciar pelo

que tem um texto inaugural do Roberto Schwarz,

MST, que estava fazendo uma mobilização no In-

local. Em 1997, levamos a Pernambuco Danton

A atualidade de Brecht. De modo que Companhia

cra, perto do teatro – estávamos nos apresentando

e Ensaio Sobre o Latão e voltamos em 1998 com

do Latão é este conjunto de investigações, de pe-

na sala menor –, e aquilo foi um pequeno marco

O Nome do Sujeito, que tem base em livros de Gil-

dagogia, música, de produção de espetáculos tea-

para nós porque, ao final do espetáculo, João Pedro

berto Freyre, e a ação se passa no Recife.

trais, naturalmente, e mais tarde cinema e vídeo.

Stédile, que não conhecíamos, entrou no camarim

A Comédia do Trabalho foi feita pensada para

O Nome do Sujeito (1998) recebeu algumas

e nos presenteou com pôsteres das fotos da expo-

ter uma comunicação muito direta com o público

indicações para prêmios, como a de melhor ator,

sição e sentenciou: “Vocês vão trabalhar conosco”.

e possível de ser realizada sem maiores condições

sendo que em Ensaio Sobre o Latão eu já tinha

E assim aconteceu.

técnicas. Nossa primeira apresentação aberta foi

recebido outra indicação do extinto Prêmio Mam-

Fomos a Itaici no interior de São Paulo, onde

nas ruínas de uma vila que havia sido construída

bembe do Ministério da Cultura, como ator coad-

estava acontecendo um encontro dos movimentos

para a construção de uma hidroelétrica no Paraná,

juvante. E O Nome do Sujeito ganhou uma publi-

sociais de todo o Brasil, e apresentamos A Santa

local que virou um assentamento. No que restou

cação em livro, que por sua vez foi resenhado no

Joana dos Matadouros. O Frei Beto estava lá e fez

no lugar de um cinema, erguemos lonas plásticas,

Jornal da Tarde de São Paulo, e o colunista da Fo-

algum comentário sobre uma tentativa de monta-

como a de acampamentos de sem-terra, e as pes-

lha de São Paulo Marcelo Coelho escreveu sobre a

gem deles da mesma peça. Havia outras pessoas

soas sentavam no declive que sobrou da plateia já

peça e passamos a ser observados não só por gente

como o padre Joacir de Caxias do Sul, que nos le-

sem teto e paredes. Foi incrível, muito potente pra

de teatro. Uma curiosidade foi a peça aparecer nas

vou para uma apresentação num colégio católico

nós. O pessoal da região chegava em camionetes e

palavras cruzadas, da mesma Folha, com o enun-

e foi muito inusitada a tolerância por parte dos

caminhões. A reação era a de quem participava de


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2013

40

uma assembleia. Isso inadvertidamente nos apro-

semprego, do trabalho informal precarizado, ou

Observamos praças de desempregados, em

ximou ainda mais do Brecht que tinha esta visão

pela deterioração das relações humanas (o que

Campinas, e um jovem de lá foi ver a peça, e o pro-

para um teatro popular, como um jogo, um debate

não só é atual, mas histórico), pela onda de ter-

grama Metrópoles o entrevistou. Ele deu um de-

no qual o prazer e a reflexão não se excluem.

ceirizações, que envolve as funções de RH, dos

poimento forte, dizendo que se a arte fosse capaz

administradores de gente, a quem tragicomica-

de mudar a sociedade, um amigo dele não teria se

mente ironizamos.

matado, se jogando de uma ponte numa das rodo-

O ápice da nossa interface com o MST foi quando fizemos uma oficina no Assentamento Carlos Lamarca, no interior de São Paulo, e produ-

Enquanto que em O Nome do Sujeito a pes-

vias que levam a Campinas. Uma coisa real, muito

zimos um vídeo do convívio, o que gerou o pró-

quisa foi livresca, pictórica, e alguma vivência lo-

mais realista do que a peça. E esta peça alcançou

logo da peça O Círculo de Giz Caucasiano, com o

cal quando ficamos no Recife por alguns dias, n’A

sindicatos, chegamos a fazer agitação e propagan-

elenco do Latão e o pessoal de lá juntos em cena.

Comédia retomamos um pouco aquele princípio

da na porta da General Motors, em São José dos

Atualmente continuamos em contato, fazendo

de observação de rua que a gente experimentou

Campos. Foi uma peça que a intelectualidade tor-

apresentações em espaços do movimento, entre

em Ensaio Sobre o Latão, no Arena, em que o cen-

ceu um pouco o nariz, porque ela era muito direta,

outras atividades.

tro de São Paulo, mais deteriorado à época que

uma comédia rasgada, até escatológica.

hoje, foi incorporado à cena. Na nossa visita ao

E foi assim que até O Nome do Sujeito mon-

Um “sucesso” acima da média

mundo do trabalho, entrevistamos de ministros

tamos um repertório, refizemos o Danton, numa

A Comédia do Trabalho foi nossa segunda drama-

de Estado a pessoas que moram na rua, passan-

nova configuração de elenco, porque eu não

turgia própria e teve uma repercussão enorme.

do por psicólogos, terapeutas, gerente de RH, o

estava na primeira montagem que chamamos

Podemos arriscar que ao longo de seus 10 anos

Fernando Haddad, sociólogo na época, João Saad,

de “proto” Latão, e o nosso primeiro repertório

de apresentações, tivemos perto de 200 mil es-

que havia sido ministro e foi secretário de Estado

se estabeleceu com Ensaio para Danton, Ensaio

pectadores, se somarmos às exibições em salas de

da Cultura e tem uma trajetória financeiro-polí-

Sobre o Latão, O Nome do Sujeito e A Santa Jo-

espetáculos, em escolas e para projetos sociais,

tica que nem sei como classificar. Bresser Pereira,

ana dos Matadouros. Este teve lugar no Centro

sindicatos e assim por diante. É uma peça que

que tinha sido ministro e muitas outras pesso-

Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com

carrega uma contradição pelo fato de os proble-

as. Lembro de uma psicóloga que disse que não

uma receptividade forte da imprensa, favorável

mas por ela abordados permanecerem no país.

era simples para esses diretores de RH demitirem

e desfavorável. A Bárbara Heliodora, por exem-

Não há motivo de orgulho em sua longevidade,

empregados das empresas. Entrevistei até meu

plo, desde então nos dava cacetada, e isso con-

mas traduz que as coisas pouco mudaram. A Co-

irmão, que é um capitalista no Paraná e nos deu

tinua até hoje.

média mostrava o mundo do trabalho brasileiro

frases que entraram na peça. Ele é meio cínico, e

em 2000. Mas pela contraface, pela ótica do de-

a entrevista dele foi útil pra gente.

O Sérgio entrevistou o Stédile para a Revista do Jornal do Brasil que ainda existia, enfim, havia


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2013

41

certa saúde nisso, no sentido de que as pessoas

que até hoje temos uma relação com o Ói Nóis,

propõe a levar atividade, não só espetacular, mas

que produziam arte com um caráter mais social

por exemplo. E outra lembrança que tenho, por

também pedagógica para lugares que normal-

viram em nós novos interlocutores. Pessoas que

exemplo, é a do Palco Giratório no Rio Grande do

mente não fazem parte dos circuitos. O contato

estavam um pouco desacreditadas que esse tipo

Sul, porque ali já estávamos experimentando uma

com uma metrópole como Porto Alegre, e com as

de coisa tivesse pertinência no final dos anos de

pedagogia e, às vezes, deparávamo-nos com pes-

pequenas cidades, como Cruz Alta, Santo Ângelo,

1990 começaram a ver que o assunto não ti-

soas muito novas, e acontecia uma comunicação

muda o olhar da gente. Fizemos uma viagem in-

nha morrido. Claro que em função do trabalho

entre eles e nós.

crível tanto existencialmente para cada indivíduo

deles mesmos, principalmente, mas em diálogo

O teatro não é só a relação entre o que

como para o coletivo. Essas experiências, com o

conosco. Augusto Boal, Luiz Carlos Moreira do

acontece no espaço cênico e quem o assiste, mas

MST, com o Palco Giratório em lugares simples,

grupo Engenho Teatral, que trabalha em regiões

tem outras linhas como a pedagogia e de nada

o contato com os estudantes, a própria classe

periféricas da cidade de São Paulo, e o próprio Ói

adianta um discurso que tenta ser elaborado se

intelectual, sem saber ao certo se a minha visão

Nóis Aqui Traveiz com quem tivemos encontros e

não dialoga com os jovens que querem conhecer

é correta, tem história nisso, visto que a ditadu-

visitamos a sede deles. Parecia que a velha guarda

as artes cênicas. Assim, esses falsos recuos, que

ra, política dos 60/70 e econômica de lá para cá,

brechtiana ou socialista, ou humanista, pensava

na verdade são avanços, foram muito interes-

cerceou isso tudo. De certa forma, a exposição

“vamos trazer estes meninos para ver qual é a vi-

santes para vermos se a nossa ideia de teatro

midiática do teatro não tem tanta importância.

são deles sobre um tipo de arte que nós acredita-

tinha ou não a sua razão de ser. O que notamos

Seria hipócrita da minha parte dizer que não tem

mos ou chegamos a acreditar”, e que a onda ne-

agora é que ensaiar, fazer uma peça pro público

valor, mas não é o principal.

oliberal, que mercantilizou a arte, deixou de lado.

ou nos envolvermos em oficinas não tem muita

Melhor é fazer coisas como levar O Círculo de

E apesar de estarmos à margem do teatro

diferença, já que teatro pode ser a interação de

Giz Caucasiano para o Palco Giratório, em Porto

reconhecido como tal pela grande imprensa, pe-

pessoas com pessoas, ou seja, uma das poucas

Alegre, levar para o Sesc/RS A Comédia do Traba-

los críticos, pelo meio, começamos a observar que

experiências humanas que ainda prescindem do

lho e, mais recentemente, com O Patrão Cordial,

havia uma repercussão tanto no público de tea-

filtro tecnológico.

para puxar a brasa para nossa sardinha. Somos

tro como em um diferente, e fomos aprendendo

fregueses daí. Só no Sesc da Alberto Bins fomos

a dialogar com estes outros espectadores. Que-

Porto Alegre e o Palco Giratório

umas cinco vezes talvez , e de quebra fomos con-

ríamos nos fazer inteligíveis e também escutar,

O Palco Giratório é um dos melhores projetos do

vidados para o primeiro Fórum Social Mundial. Há

aprender com os movimentos dos sem-terra, com

país. Fizemos parte dele no ano 2000 e tenho al-

cultura de vanguarda e, politicamente, boas coi-

os lugares por onde passamos, com os movimen-

guma propriedade pra falar. É uma das ideias mais

sas surgiram aí como o orçamento participativo.

tos teatrais de várias partes do país. Não é à toa

clarividentes de difusão teatral do país, porque se

Pena que algumas depois degringolaram. A lite-


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2013

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ratura gaúcha, o cinema que acompanho desde

Circo da Ideologia, que levamos para o Fórum Social

de sucesso. Fizemos Auto dos Bons Tratos, em

quando comecei a fazer artes em Florianópolis:

Mundial, Ensaio da Comuna, um trabalho sobre Ma-

uma ocupação de um teatro de bairro, o Cacilda

vi Verdes Anos, ouvia falar de School’s Out, Nei

chado de Assis – Entre o Céu e a Terra –, enfim, pode

Becker, no bairro da Vila Romana. Montamos o

Lisboa e mais. A minha referência de então era o

ser que a gente vá acompanhado de alguma dessas

trabalho que conta a história do colonizador por-

Rio Grande do Sul e não Rio e São Paulo. Há uma

obras mais experimentais. Nem todos fazem parte

tuguês que fundou Porto Seguro, Pero do Campo

cultura de grupos sublinhada. Vamos combinar

do repertório por motivos de subsistência material

Tourinho. Uma obra que algumas pessoas viram

que sou sulista, sou do Paraná, mas creio que o

ou porque flutuam numa certa medida.

e consideraram árida pela sua literatura dramáti-

grupo todo sente isso. Não é à toa que tem o Luis

ca e seu despojamento cenográfico. Não foi uma

De obra árida à pequena obra-prima

peça fluente como algumas das anteriores. Estre-

Em 2014, a Companhia do Latão levará ao

Cronologicamente, depois de A Comédia do Tra-

amos em Curitiba em condições desfavoráveis,

Palco Giratório de Porto Alegre cinco espetácu-

balho, mudamos totalmente de rumo, o que à

pessoas do elenco que tinham tido problemas,

los e participará da atividade Residência Artísti-

época eu torci o nariz porque sou mais imedia-

gente machucada, um teatro que não era o espaço

ca. Ainda não estamos com tudo definido, mas

tista, diferentemente de Sérgio de Carvalho e do

adequado para a obra. Estávamos experimentando.

a tendência é levarmos O Patrão Cordial, o atual

Márcio Marciano. Por mim, naquela ocasião, irí-

E tomamos na cabeça. Em Portugal, porém, a peça

trabalho, Ópera dos Vivos, imediatamente ante-

amos atrás de um outro sucessinho, o que seria

já estava mais assentada e foi considerada por um

rior, O Círculo de Giz Caucasiano, além de talvez

um grande erro. Grupos que repetem seus acha-

dos críticos uma pequena obra-prima. Mudamos

Revolução na América do Sul, de Augusto Boal.

dos tendem a se estabilizar esteticamente.

de rumo, de linguagem, de tema, mudamos a nos-

Fernando Verissimo morando aí.

Temos alguns experimentos cênicos, não ne-

Invertemos totalmente o eixo, fizemos uma

sa relação com o público, apesar de já termos ex-

cessariamente espetáculos acabados, que chama-

coisa totalmente distinta d’A Comédia do Tra-

perimentado o público vendo a peça em cima do

mos de leituras encenadas: João Fausto, O Grande

balho, que tinha sido o que podemos chamar

palco em Danton. Em O Nome do Sujeito, já prefe-


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2013

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à prostituição. Primeiro, ele que a empurra pra campa. E depois era ela que o assediava, só para dar um exemplo. Como digo, estudos, interesse em conhecer as coisas e ver como elas rebatem em nós como grupo e como indivíduos. Voltando um pouco, em O Nome do Sujeito, começamos experimentando Fausto do Goethe e um dos atores, Otávio Martins, perguntou: “Mas o que o Fausto tem a ver com a gente?” E fomos procurando essas associações. Então o Latão tem um aspecto, digamos, culto, que vem da direção, e um outro comum, em que nós, os ignorantes, questionamos: “Mas e daí, o que e tenho a ver com isso?” Eu que sou fruto dessa época de consumo, de televisão, não tenho pudor com isso, de se deslocar a partir da base, de voltar ao chão e de se enfiar na terra. É melhor admitir a falta de conhecimento do mundo do que despistar a burrice.

A arte do precário O Instituto Goethe foi um dos nossos grandes parceiros. Foi através dele que o Latão teve o privilégio de cruzar com Hans-Thies Lehmann e o Peter Palitzsch, que foi assistente do Brecht e ficou conosrimos fazer o espetáculo para o público em volta

experimentando coisas como uma grande re-

co alguns dias para discutir o distanciamento. Em

da gente. O Ensaio Sobre o Latão, apesar de no final

dação de jornal, uma emissora de televisão e

épocas que não tínhamos para onde ir, o Goethe

da temporada ter sido feito em teatros enormes,

mudamos para um tema anterior que seria a

nos abrigou. Ensaiamos Danton lá. Era no sótão e

do Sesi, em São Paulo e no interior, foi pensado

fabricação da imagem, misturado com as gre-

fazíamos muito barulho. Às vezes, os professores

para um público menor. Resolvemos retomar isso

ves de São Paulo, operárias, anarquistas, das

reclamavam que atrapalhava as aulas. Na verda-

do público junto conosco no palco em Auto dos

décadas de 1910, 1920, e ainda outro tema pa-

de, o teatro é a arte do precário, nós não somos

Bons Tratos, uma peça histórica sobre o início do

ralelo: a prostituição europeizada no Brasil, o

profissionais. Temos um rito que é necessário, mas

Brasil. Ela fecha com a chegada dos negros, a es-

tráfico de brancas. Também foi outra pesquisa

sem o conforto burguês. Há simplicidade, tentar

cravidão em questão era a indígena.

enorme, assim como O Auto que exigiu conhe-

desafios, querer fazer, querer entender o mundo,

cimentos históricos e também tinha uma pos-

quem sabe melhorá-lo. Daí uma postura política

tura de linguagem distinta das demais.

acentuada. E sem vigilância com as opções de cada

O Mercado do Gozo, a peça seguinte, partiu de uma pesquisa sobre a imprensa no seminário Mídia e Poder, no qual recebemos numa

Experimentamos a aproximação com o cine-

indivíduo, o grupo tem gente que vai à umbanda,

primeira leva de palestras Mino Carta, de novo

ma nessa peça. Como teatralizar o cinema, discutir

tem gente que tem práticas espirituais; no entan-

Fernando Haddad, ao lado de Eugenio Bucci,

a forma da representação. Havia cenas feitas duas

to, tem uma linha marxista, que é mais dada pelo

Raimundo Pereira, da revista Imprensa, Tereza

vezes: uma em que uma personagem era mais

Sérgio, pela Helena Albergaria, eu não posso dizer

Cruvinel, que fazia parte d’O Globo, Marcelo

opressora e a outra mais oprimida, e depois inver-

que sou porque não tenho tanta leitura visto que

Coelho, Nelson de Sá, Fernando Rodrigues de

tendo os papéis. A leitura de distintos ângulos para

assimilo empiricamente o teatro dialético. Embora

Souza, que assina uma coluna na Folha até

o espectador e para nós mesmos. Tinha o sujeito

saiba que preciso estudar mais, como Sérgio Bu-

hoje. Mas foi pelas ideias do Haddad e do Bucci

de uma fábrica que ia ter um caso sexual com uma

arque de Holanda, que é um autor que estamos

que resolvemos mudar de rumo. Já estávamos

mulher em um cemitério. Uma operária tendendo

retomando – em O Nome do Sujeito já o líamos e


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

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agora em O Patrão Cordial, que é uma nossa adaptação do Puntila, de Brecht, com influência da tese d’O Homem Cordial do Sérgio Buarque de Holanda. Sempre tivemos essa curiosidade. Essa interação com alguns pensadores é muito salutar.

Razão ao inimigo Nós nos formamos sobre a égide brechtiana e mantemos uma certa fidelidade. No entanto, temos uma produção dramatúrgica própria para além dos textos do Brecht, de quem encenamos três obras: O Círculo de Giz Caucasiano, Santa Joana e agora o Puntila, que já é uma outra coisa, mas está lá o Brecht, todas as cenas por ele pensadas e adaptas pelo Latão. E há também Büchner com Danton, Heiner Müller, que por influência do Hans-Thies Lehmann transformamos entrevistas do dramaturgo alemão em uma experiência. É curiosa a nossa relação com o autor do Teatro pós-dramático, livro que no Brasil foi prefaciado pelo Sérgio e que não tem uma afinidade ideológica conosco, mas acontece o diálogo, um interesse em nós também e vice-versa, com um respeito pelas diferenças de opinião. Temos muito cuidado com o dogmatismo. O Brecht é um instrumento pra nós porque, enquanto na Europa as pessoas podem achar que ele está obsoleto, o Brasil ainda é um país de terceiro mundo, em que as questões sociais são latentes, a desigualdade é brutal e a violência social é explícita. Não seguimos a cartilha, embora a o método marxista dialético brechtiano seja uma base. No sentido de que se não há o outro lado, a contradição é menor. Óbvio que damos nosso ponto de vista, mas tentamos também ir para o lado oposto, tentamos dar razão ao inimigo, não sei se é simples de explicar, mas na nossa última peça acho que está claro. O meu Cornélio, baseado no Puntila, tem de fato momentos de humanismo. Ele não é só um crápula. O Sérgio me fala isso, ele tem que ter humanidade, quando está bêbado, veja bem. Porque o brasileiro se acha cordial. E o espectador pode olhar e dizer: esse cara tem razão. Ou pode estranhar o excesso de humanidade em algumas figuras. É o transbordamento que gera


CADERNO DE TEATRO

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o questionamento no público. O famoso distan-

um produto embalado, cujas motivações não têm

de mercado que tinha feito duas ou três peças na

ciamento brechtiano, nós não só usamos como a

a mesma importância que as vendas e o alcance

raça. Tenho um pouco de vergonha desse episódio

maioria das pessoas conhece, em que o ator sai da

massivo, hegemônicos na mercantilização da vida.

e já ensaiei admitir ao Paulo do Ói Nóis que eu es-

situação dramática e narra diretamente ao públi-

Na perspectiva de apreendermos com um

tava errado com aquela visão venal. Com os anos

co na terceira pessoa. Às vezes, o distanciamento

tema e dividir os estudos com o público, foi bem

de aprendizado no Latão, passei a notar que os va-

está por uma figura silenciosa na cena, pela luz,

positivo. E a peça está viva, pois continua rece-

lores simbólicos seus têm fundamentos e buscar

por um elemento da cenografia, pelo excesso de

bendo convites. Engraçado é que ela foi indicada

aprimoramento artístico vale mais que “não perder

dramaticidade de uma cena. Esta é uma pesquisa

a alguns prêmios, mas não levou nenhum. Tem

dinheiro” em teatro. Ao Paulo Flores, as minhas

constante, e também estou pesquisando com mais

uma história muito boa em Porto Alegre, quando

desculpas e o meu agradecimento por ele ter me

afinco no campo da atuação.

apresentamos o espetáculo na sede do Ói Nóis a

ensinado.

E mesmo com tantos desvios, vamos voltar à

zero grau. Uma discussão de camarim era de que

cronologia: depois de O Mercado do Gozo, fizemos

os atores iam passar mal fazendo o primeiro ato

A música

Equívocos Colecionados, baseado em entrevistas

com aquelas roupas mínimas. O Sérgio dizia: “Vão

Os músicos atravessam o grupo desde o início

de Heiner Müller, depois Visões Siamesas, que foi

passar mal, não vou mudar, não vou deixar vocês

de forma muito presente. A companhia tem dois

uma mistura de Machado de Assis com Brecht, e

usarem uma roupinha por baixo”. Foi uma situação

CDs com as canções das peças e está produzindo

na sequência O Círculo de Giz Caucasiano, Ópera

muito curiosa, tinha gente na plateia assistindo à

um terceiro. Com a parceria de Martin Eikmeier,

dos Vivos e agora o Puntila, entremeado por alguns

peça de cobertor. Foi incrível! E devemos muito à

integrante do grupo, os atores praticam a mu-

experimentos.

Terreira da Tribo o engajamento de todos eles por-

sicalidade todos os dias, na sala de ensaios, que

que, como a peça tem quatro espaços cênicos dife-

tem um piano. Já tivemos Walter Garcia, Lincoln

Síntese da obra

rentes, se é um espaço maior, o público se desloca

Antônio e Luís Felipe Gama como parceiros, e

Algumas pessoas que assistiram à Ópera dos Vivos

de um local a outro, mas ali não era tão grande e

vários bons nomes como Juçara Marçal, Sandra

e que viram outras coisas nossas, disseram que

houve mudanças de cenário nos intervalos da peça

Ximenez e de contribuições de dentro do grupo

é um resumo da nossa ópera toda. O espetáculo

que foram ensaiadas. A alteração de arquibancada

como a da atriz Alessandra Fernandez. O contí-

contém assertivas, elementos e contradições de

de um lado para outro parecia um balé, um balé

nuo interesse da direção pela prática e por um

obras anteriores, uma espécie de síntese, súmula

cenográfico e não coreográfico. Um momento

pensamento musical fez de mim, por exemplo,

da nossa poética. São quatro horas, quatro atos

marcante para nós. E são grupos que têm linhas

que não canto, alguém que até consegue puxar

que observam a relação da cultura com o Brasil

distintas, nós marxista e eles não. No entanto, há

umas notas, mas prefiro seguir os colegas afina-

desde a década de 1950 até os dias atuais. Deman-

um profundo respeito e uma admiração mútua,

dos. Fomos nos apropriando da função narrativa

dou três anos de pesquisa. Optamos por lingua-

mesmo que as opiniões às vezes não coincidam.

das canções, sem descartar seu lirismo e drama-

gens: a teatral é protagonista do primeiro ato, em

Vou revelar aqui algo que há tempos estou

ticidade. Alguns atores compõem, mas aplicar o

que visitamos, ao nosso modo, a produção Centro

para comentar com o Paulo Flores e que ainda

princípio da contradição, que vem se tornando

Popular de Cultura (CPC) da UNE; o cinema do

não tive coragem. Em 1977, a Cooperativa Pau-

uma matriz para nós, tem gerado melodias leves

segundo ato, que é um filme que dialoga com o

lista de Teatro organizou a 1 Mostra Brasileira de

com letras estranhas que desarmonizam a união

cinema novo, como já tínhamos feito em Equívo-

Teatro de Grupo, pelas mãos do então presidente

usual de letras de amor ao som suave de um pia-

cos Colecionáveis, para o qual trouxemos a obra do

Luiz Amorim e com o empenho dos Parlapatões.

no ou violino. Diversas vezes fazemos o oposto.

Glauber à tona em conexão com o Heiner Müller; a

Coordenei um encontro sobre produção, visto que

Colocamos trechos de Marx com fundo musical

música do terceiro, um show tropicalista em deba-

era ator e produtor do Latão. Mas na hora regredi

lírico. É uma espécie de estranhamento musical.

te com a MPB; e o quarto ato é sobre o trabalho ar-

para as produções que tinha feito antes de entrar

Todavia somos um coletivo de teatro, o que

tístico atual via TV. Este último segmento de Ópera

no grupo e falei umas bobagens do gênero: “... eu

abrange a produção de peças, a pedagogia cênica

dos Vivos talvez ganhe continuidade – o Sérgio

nunca perdi dinheiro com teatro e outras piores

e musical, algumas levadas em vídeo e cinema, pu-

fala em um desdobramento – porque é muito clara

talvez. O Flores reagiu e mandou de volta para

blicações (quatro livros, uma revista e dois jornais)

a influência da TV na vida de todos nós, é brutal.

mim: “Mas você faz teatro para quê?” Creio que

e ainda a participação em debates e palestras sobre

Na peça, de certa forma lançamos a ideia de que

gaguejei naquele momento, pois só então me dei

cultura e política. Sendo que Sérgio de Carvalho,

a cultura já foi mais importante para a socieda-

conta que estava em um contexto coletivo e po-

eu, Helena Albergaria, Martin Eikmeier e João Pis-

de brasileira e porque hoje ela virou um pastiche,

litizado, mas com a cabeça de um produtorzinho

sarra somos quem está há mais tempo no grupo.

a


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2013

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Ativismo cultural

Não sei o que será da minha década na co-

-la quando lançamos o livro dos cinco anos da Lei

Cheguei à Cooperativa Paulista de Teatro (CPT) pela

operativa, como vão analisar isso, mas fizemos

de Fomento, quando começamos a perceber que

Companhia do Latão, quando o movimento Arte

muita coisa.

lutávamos mais por nós. Foi então que elaborei

Contra a Barbárie surgiu em 1997/98. O movimen-

Como exponencial, cito a Mostra Latino-

uma visão de que somos meio, assim como a saúde

to ganhou muita força, a direção da cooperativa

-Americana de Teatro de Grupo que vai para sua

e a educação. O fim é a população e no momento

estava sendo renovada e me empurraram. Eu fui.

nona edição em 2014, e foi uma ousadia. Lembro

não sei ao certo para qual lado a balança pende.

Fiquei dois anos como vice e oito como presidente

que o Sérgio me falou (quase tudo que eu fiz lá

– saí em março deste ano – mas nunca deixei de

teve uma mão dele e digo isso com muito orgulho):

atuar. A gestão tem aspectos muito interessantes

“Agora que você entrou lá, faz alguma coisa.” E eu:

10 anos da Lei de Fomento ao Teatro de Grupos

e outros complicados. O principal feito da CPT é

“O quê?” Ele: “Sei lá, alguma coisa latino-america-

Tomei a inciativa de lançar livro de cinco e dez anos

sobreviver por mais de três décadas diante de uma

na.” E está na nona edição. Traz grupos do Brasil

da Lei de Fomento ao Teatro em São Paulo e com

era de desagregação. Acho que esse exercício do

inteiro, vários do Rio Grande do Sul e de toda a

muita polêmica, injustiças, omissões, mais espaço

encontro é o ganho intangível maior, e o fato de

América Latina. Só tem um grupo de São Paulo por

pra uns do que pra outros, o que me pareceu ine-

uma cooperativa estar resistindo como uma asso-

ano. E por isso enfrentamos divergências internas.

vitável. Lembro que quis fazer um documentário

ciação de artistas e núcleos para mim é um fenô-

As pessoas questionam como é que se faz uma

sobre a lei logo nos seus primeiros anos e me dis-

meno mundial. Porque somos um bando de loucos,

mostra e tem apenas um grupo da cooperativa.

seram: “Cada grupo tem que ter o mesmo espaço,

desavisados e sem gestão, que é algo recente. Ao

O argumento é que a gente recebe convite de tan-

o mesmo tempo de exposição no vídeo”. O que é

menos pela minha ótica, embora eu possa ser de

tas partes do Brasil e a gente não pode retribuir?

ortodoxo demais e desisti na ocasião. Mas com

outra cepa. Assim tivemos que inventar muita

E aprender com os parceiros de outras localidades?

este livro, tentamos. Vou virar vidraça, paciência,

coisa e algumas potentes como o Arte Contra a

Hoje, os grupos circulam mais, inclusive pelo Sesc

pois tinha que ter um registro histórico e pode não

Barbárie, eu como coadjuvante, o Sérgio no cen-

e outros programas incipientes. A mostra vingou e

ser o melhor. Na minha opinião, ele é autocrítico,

tro junto com outros parceiros. Na cooperativa,

tenho que citar o Alexandre Roit, com quem dese-

se lerem os artigos das pessoas que comentam o

sempre fui um porta-voz, sempre me reportei aos

nhei o formato do festival.

espectro é variável, heterogêneo e damos a cara à

mais experientes, entrei no Conselho de Cultura da cidade de São Paulo. Foi um aprendizado.

Atualmente, tem umas quatro ou cinco mostras latino-americanas, e a nossa é a primeira. Um

tapa. Se quiserem falar mal da cooperativa podem falar, devem falar.

Sou muito temperamental, explosivo, foram

outro modelo, que incentivei foi ideia de um coo-

Mas, por favor, imaginem um grupo de ar-

muitas batalhas que levaram a confrontos necessá-

perado, o Edson Caiero, que é um projeto chamado

tistas, técnicos e pensadores conseguir uma sede

rios. Nem todos, é claro. Por exemplo, levamos 500

Teatro nos Parques: são só apresentações ao ar li-

própria no centro de São Paulo e construir uma

pessoas às ruas quando o governo de José Serra deu

vre em parque públicos da cidade, este, sim, na sua

sociedade que chegou a ter mais de quatro mil

a entender que a Lei de Fomento ao Teatro de Grupo

maioria senão a totalidade para cooperados. Mas

sócios. Há 35 anos, a cooperativa nasceu dentro

acabaria. Mobilizamos a opinião pública, os políti-

como lidamos com recursos públicos não podemos

do Incra, à época as cooperativas no Brasil eram

cos, a ponto de ele recuar. Depois fomos para cima

pensar só na corporação, e sim colocar o interes-

agrícolas em sua maioria, hoje existem coopera-

do Estado, tentamos implantar algo muito mais

se público à frente. De maneira que este exercício

tivas por todo o país, inclusive as falsas coopera-

aberto que a Lei de Fomento, um fundo para todas

de cidadania cultural, de autoeducação entre os

tivas. E a CPT cooperativa sofre ataques por uma

as áreas da cultura, e quebramos a cara. Chegamos

grupos foi a ambição primeira. Porém, superar as

desconfiança de que não somos idôneos. E isso

a colocar três mil pessoas na Assembleia Legislativa

necessidades individuais visando ao comunitário

não é verdade e continuo defendendo. É óbvio

do Estado de São Paulo, e quando digo chegamos,

é difícil. Não se pode condenar ninguém por isso,

que você não tem controle absoluto, mas se você

foi com a liderança de Marco Antonio Rodrigues e

porque a sobrevivência sempre fala mais alto, é

pensar que cada vez que um cooperado comete

Luiz Carlos Moreira, entre numerosos militantes. Eu

um princípio material, não tem como escapar dis-

uma irregularidade na praça, isto afeta a todos.

ficava ali como um menino e às vezes dava uma de

so. Daí que equilibrar os interesses dos cooperados

E são raros os casos de má-fé, sendo que na maio-

bobo, papagaio de pirata do lado dos famosos, e os

porque merecem já que são os depositários e a

ria dos casos são reparáveis. A gestão não é de uma

amigos lúcidos me davam toques, como o Sérgio de

sociedade existe por eles e para eles e, ao mesmo

empresa capitalista. Contratamos gestores de fora

Carvalho. Estupidez à parte, eu reconhecia minha

tempo, ter em mente de que não somos o fim da

dentro dos limites financeiros da agremiação. É um

inexperiência e, com as leituras proporcionadas no

linha, é uma autocrítica recente da nossa parte. Se

modo muito particular de operar o fazer artístico,

Latão, fui me corrigindo.

não me engano, foi o Sérgio que começou a fazê-

com nuances, e vamos cuidando dos incêndios


CADERNO DE TEATRO

segundo SEMESTRE

2013

47

aos trancos e barrancos, resgatando o histórico e

educativo, se a Globo tivesse me chamado talvez

viver sozinho é complicado, viver a dois é um pou-

planejando o futuro. Hoje, muitos grupos têm pu-

eu tivesse ido. Talvez eu tivesse me tornado uma

co mais difícil, em grupo é quase inviável, em uma

blicações, fazem seminários, pegam interlocutores

dessas mulheres que estão aí de luto. Será? Fiz RBS

cooperativa é impossível. O Luiz Amorim, o presi-

externos à arte e à cultura. Querem entender um

TV em Florianópolis por um ano ou dois e saí, fiz

dente anterior a mim que reergueu a cooperativa,

pouco o meio no qual estão inseridos. Geram di-

televisão em Sampa e voltei para o teatro. Fiz TV

deixou recursos para adquirir uma sede no centro

videndos, contudo, há retrocessos. Não dá pra sair

Manchete e me saíram. Parece que sou de outra

da cidade de São Paulo, a gestão do Chiquinho

assobiando como um pássaro diante das máculas.

índole, mas não posso afirmar categoricamente. Se

Cabrera, de quem fui vice, comprou, e a nossa pri-

E tudo será contado. Parte já está registrada como

para o indivíduo a pressão do meio é forte demais,

meira gestão a reformou com o pulso do Roberto

o discutível documentário que está no YouTube:

porque a pessoa quer consumo, quer conforto,

Rosa nisso. É um patrimônio coletivo de gerações.

Teatro Contra a Barbárie. Houve quem detestou e

quer mobilidade através de um veículo individual,

Se você perguntar qual é meu legado eu não sei.

quem achou que tem validade.

a mesma coisa se dá em relação aos grupos.

Há controvérsias, melhor perguntar aos outros. Se

Como foi uma iniciativa da diretoria da CPT,

As pessoas têm uma imagem de que a Com-

quem não estava no documentário queria nos

panhia do Latão é uma companhia estabelecida

Estou em um momento de desilusão, mas

matar. E demos liberdade para o diretor, Evaldo

e bem de vida. Ganhamos uma ajuda de custo

ainda dou umas bufadas. O ITI está propondo a

Mocarzel, um cineasta que transita no teatro. Só

dentro da companhia, mas para eu adquirir esta

equiparação entre renúncia fiscal e fundo públi-

dissemos, no primeiro corte que vimos, para tirar o

consciência que cheguei à cooperativa via Latão,

co na reforma da Lei Rouanet. Fizemos um mo-

pessoal da diretoria do filme, e ele resistiu. Insisti-

cheguei à Unesco pelo Latão – embora o Latão

vimento, o Cultura Travessa, agora em São Paulo,

mos que a primeira leitura que vai se fazer é que a

não tenha relação direta com esta minha escolha

em que me liguei ao Zé Celso e ao Teatro Oficina.

diretoria fez um filme para eles mesmos. Sou um

recente com isso, a criação, em 2010, do Centro

Fizemos quatro edições. Foram debates intensos,

pouco mais velho e sei que isto é uma bobagem,

ITI Brasil – Instituto Internacional de Teatro. Até

porém vivemos na sociedade do espetáculo e por

não se impõe um reconhecimento, reconhecimen-

cheguei a USP pelo Latão, então tenho outros ga-

mais que a critiquemos, nós aprendemos a gostar

to vem do outro e, se não vier, paciência, vai pra

nhos, que é ser menos ignorante. Quando eu e

do espetáculo, ele está em nós. É uma coisa que foi

um consultório de psicanálise discutir isso. Mas

o Sérgio comemoramos 15 anos de parceria, no

falada lá atrás no seminário da peça O Mercado do

essa visão é fruto de muita pancadaria e da sorte

Rio de Janeiro, era final de uma eleição, da Dilma

Gozo: compraram o nosso olhar. Não temos mais

de ter um parceiro como o Sérgio, que é um sujeito

se não me engano, as pessoas queriam ouvir his-

imaginário próprio, e isso arde.

bem mais razoável que eu, e de ter uma analista

tórias e a frase que me veio à cabeça foi: depois

Concluindo, o interesse é pela alteridade,

como a Maria Rita Kehl.

que eu conheci o Sérgio, eu me tornei uma pessoa

porque quando voltamos para a obra de um Ma-

melhor. E ele disse a mesma coisa. Foi educado.

chado de Assis, estudamos o caráter do brasileiro

Pressão mercadológica

Temos que ser gratos por encontrar pessoas que

e, consequentemente, o nosso. É preciso educar

Fiz parte da Câmara Setorial de Teatro por conse-

iluminam a sua trajetória e lhe falam que dinhei-

olhar para fora.

quência da cooperativa e fui um dos relatores do

ro não é tão importante. Conhecimento é mais.

Plano Setorial de Teatro, promovemos o Congresso

Você não é tão interessante, vai estudar. E isso

Intercâmbio com outros grupos

Brasileiro de Teatro em São Paulo e participamos

dentro da sala de ensaio, mudando para o cam-

Fiquei na presidência da cooperativa por 10 anos

do Redemoinho, que teve sede um ano em Porto

po da atuação, que é um lugar que me mobili-

pela categoria e, sem hipocrisias, lutamos pelos

Alegre com a Terreira da Tribo. Há acúmulo, mas

za muito, temos a tendência de defender nosso

outros e por nós. Na verdade, este movimento ar-

admito um momento de retrocesso, que as indi-

caráter, nossa moral diante de um personagem.

tístico, politizado ou não, mas de grupos, sobretu-

vidualidades estão falando mais alto que os agru-

E doía ouvir da direção: “Esse cara é um imbecil,

do, é o modo de produção coletivizado que reúne

pamentos. A pressão externa é muito grande e

um idiota”. E eu, pateticamente respondia: “Mas

centenas de grupos em São Paulo e outras tantas

analisemos: uma pessoa que está dentro do nosso

ele podia...” – “Não, o personagem é burro!”

dezenas pelo país afora. Depende da luta conjun-

é que vão falar, talvez falem mal.

grupo enfrenta em sua vida questões econômicas,

Quando você passa pro outro lado, e se ima-

ta dentro e fora dos coletivos, ao lado de outros

mercadológicas e midiáticas violentas. Eu passei

gina e tenta ser uma besta ainda pior que você

grupos, pois uma coisa retroalimenta a outra.

a arrebentação com muita dor e até eu brinco às

mesmo e quem sabe algo resulte deste paradoxo.

É muito difícil manter um projeto associativista se

vezes: não é que eu não quis me vender, é que nin-

Uma desfaçatez consigo de trincar o ego ao meio.

você não se juntar a outros grupos. Então, minha

guém quis me comprar. Quando eu estava na TV

Se você for colocar isso em um coletivo é muito

permanência na cooperativa também se deveu

Cultura, dois ou três anos fazendo um programa

mais difícil. Tem uma broma que costumo fazer:

a isto, a minha consciência de que não basta o


CADERNO DE TEATRO

SEGUNDO SEMESTRE

2013

48

trabalho dentro de uma companhia, pois temos que nos unir aos outros. Nesse sentido, surgiram algumas iniciativas, dentro e fora da cooperativa. O próprio movimento Arte Contra a Barbárie já foi a reunião de alguns grupos e pessoas. A edição do jornal O Sarrafo foi outra ideia que juntou cinco ou seis grupos. Então essas experiências de reunir vários coletivos são necessárias tanto que grupos polo como o Ói Nóis, o Galpão, o Vila Velha sempre têm um intercâmbio com vizinhos. Abrem espaço para novos grupos, fazem parcerias, nós mesmos já fizemos parcerias com Ói Nóis, com o Galpão, e em São Paulo temos vários parceiros. Quando ocupamos o Teatro de Arena pela segunda vez em 2012, ganhamos o edital e chamamos vários grupos para mostrarem seu trabalho lá. Inclusive abrimos uma temporada de um mês para o Alfenin da Paraíba, do ex-diretor do Latão Márcio Marciano, tirando parte dos recursos que recebemos da Funarte e endereçando a eles, uma fatia razoável, porque do nosso ponto de vista, a retenção econômica não

ência de que a cultura é um dever do Estado e um

casa com esse pensamento.

direito do cidadão. A Petrobras poderia estar ainda

O intercâmbio tem um papel de mútuo

na linha ainda de patrocinar coisas de interesse co-

aprendizado. Se fazemos parte de uma coletivida-

mercial. As pessoas conhecidas iam lá e conseguiam

de maior com grupos de teatro politizado, o que

os recursos. Hoje, tem um programa, não só na

e como está chegando à população? Quais são as

área de teatro. Todavia, a tímida cultura de editais

preocupações que não ultrapassam a porta de sa-

já gerou sua contraface, e temos participação nis-

ída do espaço cênico, que é mais interna do que

so. Certa vez, o jornalista Marcelo Coelho escreveu,

externa às pessoas que estão pagando para fazer-

creio que na década passada, que a esperança de

mos arte, já que vivemos de programas públicos?

mudança que estava ocorrendo teve origem em um

Estamos apenas amadurecendo esse princípio do

trabalho como o do Latão. Ele não é um cara de es-

interesse público. Podemos até resolver um proble-

querda, mas também não é um reacionário, e aqui-

ma de subsistência aqui e ali, mas a força maior

lo me chamou a atenção porque aumenta a nossa

é mudar a sociedade. Deixar ela mais horizontal,

responsabilidade. Se não atingimos a amplitude que

mais igualitária, e se a gente não se atenta, isso vai

desejamos, o nosso nada é alguma coisa. A nossa

se perdendo no meio do caminho.

pequena ilha não está tão isolada, assim como outras, tão ou mais importantes do que a nossa.

Responsabilidade

Por fim, o futuro. Temos três anos pela frente

Minha migração para a cooperativa se deu por ne-

patrocinados pela Petrobras, DVDs, jornais e revis-

cessidade, se não lutássemos pela implantação e

tas, e assim caminha a Companhia do Latão. E eu

manutenção da Lei de Fomento ao Teatro em São

estou esperando a resposta do concurso para um

Paulo, pela ampliação pública no setor cultural tam-

doutorado na USP, sobre a pedagogia teatral do

bém em escala estadual e federal, muitos de nós

grupo, que será uma sistematização do que esta-

não teriam acesso aos editais em voga. Talvez, tenha

mos e pretendemos transmitir às novas gerações.

sido uma consequência desta tomada de consci-


CADERNO de caderno DE teatro TEATRO

segundo SEMESTRE

2013

Por Sérgio de Carvalho Dramaturgo e encenador da Companhia do Latão. É também pesquisador e professor de Dramaturgia e Crítica na Universidade de São Paulo.

1 Diário de Trabalho, volume I: 1938-1941. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 24. 2 A Compra do Latão (1939-1955), op.cit., p. 54. 3 Narrativa completa 3: Historias del senõr Keuner/Me-ti, livro de los câmbios. Op.cit, p. 82.

49

Brecht e a dialética A compreensão do indivíduo como fenômeno

contém a visão plena do projeto. Ele defende uma

um grande número de pessoas indivi-

social, nos termos do teatro como “imagem pra-

funcionalidade que se opõe ao idealismo artístico

duais, sendo estas, portanto, suprimidas

ticável”, está também no centro da melhor teoria

de alguns atores, mas por sua vez é criticado pela

como indivíduos. Para a classe são váli-

escrita por Brecht naqueles anos do exílio.

situação concreta do trabalho teatral. Toda a obra

das determinadas leis. Estas são válidas

Como se sabe, ele imaginou realizar uma

artística de Brecht está marcada pela procura de

para a pessoa individual na medida em

grande síntese de sua visão teatral num projeto

uma unidade contraditória entre reflexão e ação,

que ela é idêntica à classe, portanto não

chamado A Compra do Latão, que permaneceu in-

num movimento em que a própria condição está-

absolutamente. (…) Vocês não represen-

completo e fragmentado. Mais do que escrever so-

vel da obra entra em causa. Nas quatro noites, eles

tam princípios, mas seres humanos.”[2]

bre a dialética do teatro, ele procurou uma forma

falam do teatro político de Piscator, comparando

literária dessa dialética. Com esse intuito, Brecht

suas conquistas às do Homem de Augsburg, dos

Juízos novos

imaginou um diálogo entre um grupo que se des-

limites e da força do Naturalismo, de Shakespeare

O Grande Método de Brecht só confirma a for-

dobraria por quatro noites. De um lado, um grupo

como um dramaturgo-chefe de um coletivo, da

ça da atitude dialética quando livre de qualquer

de atores que encenam uma peça de Shakespeare,

arte do ator como elaboração histórica, da função

mecanicismo teleológico. Sua obra se ergue sobre

de outro, um filósofo convidado. O debate acon-

desalienante da arte ligada a um estilo alienante de

categorias móveis, por sua vez negadas pela re-

tece – distanciadamente – enquanto os técnicos

representação, da importância de se estudar auto-

alidade dos materiais de arte. Ela mostra visões

desmontam o cenário após cada apresentação e é

res “clássicos” como Marx.

que são válidas num momento e circunstância

mediado por um dramaturgista.

Na dramaturgia Planetário apresentada pelo

determinadas, mas que após um tempo e noutra

No Diário de Trabalho, numa nota de fevereiro

filósofo, o espectador está parado, olhando para o

circunstância já não são e atuar sobre o dinamis-

de 1939, existe um resumo do projeto ao qual Bre-

movimento dos astros com o intuito de entender

mo é o trabalho do espectador.

cht se dedicou por 16 anos:

suas leis dinâmicas. Ela é contraposta ao teatro do

Me-ti dizia:

Carrossel, em que o espectador gira e dá saltos em “Um bocado de teoria em forma de diá-

torno de um centro, sem romper com o circuito

“As experiências se transformam muito

logo em A Compra do Latão. Fui estimu-

emocional. O grande teatro dialético está bem mais

rapidamente em juízos. (…) A maioria

lado a usar essa forma pelos Diálogos de

distante do Carrossel do que do Planetário. O mo-

das pessoas se lembra dos juízos, acredi-

Galileu. Quatro noites. O filósofo insiste

delo de Brecht, entretanto, não é uma coisa nem

tando que eles correspondem às experi-

no teatro do tipo P (tipo planetário, em

outra. Ainda que procure discutir causalidades de

ências reais”. Sobre isso Me-ti sugere: “E

vez do tipo C, tipo carrossel) simples-

comportamentos, seu movimento filosofante des-

está claro que os juízos não são tão con-

mente para fins didáticos: movimentos

confia das configurações em abstrato. A constru-

fiáveis como as experiências. Para con-

de pessoas organizados como meros

ção material é a base de sua atitude dramatúrgica,

servar frescas as experiências é preciso

modelos para finalidades de estudo, para

e seu teatro rejeita o obscurantismo com as mes-

uma técnica especial que permita tirar

mostrar como funcionam as relações

mas forças que despreza as generalizações falsas e

delas continuamente juízos novos.”[3]

sociais, a fim de que a sociedade possa

ama a imprevisibilidade e impureza da vida.

intervir. Os desejos deles se transformam em teatro, já que podem ser executados

São conselhos do filósofo de A Compra do Latão aos atores:

O modelo brechtiano é um dos experimentos imaginativos capazes de gerar juízos novos. Sua dialética não pode ser deduzida dos conceitos, de

no teatro. De uma crítica do teatro surge um novo teatro. A coisa toda concebi-

“Quando pensam que um camponês

sua história ideológica, mas de seus vínculos his-

da de modo a poder ser realizada, com

terá – em determinadas circunstâncias –

tóricos com práticas possíveis. “É preciso deduzir a

experimentos e exercícios. Centrada no

uma determinada maneira de agir, então

dialética da realidade”, era uma de suas formula-

Efeito de Estranhamento.”

escolham um camponês bem determi-

ções recorrentes.

[1]

nado. E não um escolhido ou construído A Compra do Latão é uma teoria-prática, um

só pela condescendência em agir exata-

tratado fragmentário que surge da interação en-

mente de tal forma. (…) A noção classe,

tre diversos pontos de vista: não é o filósofo que

por exemplo, é uma noção que engloba

O texto integral pode ser lido no livro Pensamento Alemão no século XX, vol. III, organização de Jorge de Almeida e Wolfgang Bader, São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp.111-134


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2013

50

Festival: Oportunidade para alunos e professores Spalla do naipe de

já era spalla (1º violino) da Sinfônica Jovem de São

violas da Osesp, Horácio

Paulo e também participava de festivais.

Passados os nove anos de formação na Alemanha, seu quarteto havia se desfeito, e o músico

Schaefer estará no IV

Ainda sem convicção do rumo que ia seguir,

passou no concurso para viola solista da Orques-

na música ou não, e prestes a fazer vestibular,

tra Filarmônica de Essen. Dois anos depois, entrou

Festival internacional

ocorreu o fato que seria o divisor de águas: tocar

para a conceituada Orquestra Sinfônica da Rádio

sesc de música, de 19 a 31

para o Quarteto Amadeus, um grupo de cordas

de Frankfurt, onde tocou também com o Sexteto de

que fez história na música ao estabelecer padrões

Cordas por três anos. Foi membro ainda da Orques-

de como tocar nesta formação. Em grandes tur-

tra de Câmara Deutsche Bach Solisten.

de janeiro de 2014, em pelotas

nês mundiais, passava pelo Brasil uma vez por

“Aí bateu uma saudade grande do Brasil. Tive

ano. Os músicos eram amigos da família de uma

a sensação de ‘puxa, consegui conquistar um obje-

colega de Horácio na escola de música. “A mãe

tivo tão grande que não vou mais embora nunca,

dela era minha fã, me considerava um menino

vou viver o resto da minha vida aqui’, e aquilo me

prodígio e avisou a minha mãe que o grupo es-

assustou”, lembra. Surgiram, então, convites para

tava tomando café na sua casa e que era pra eu

atuar no Brasil, um para dar aulas na Universidade

Iniciar o estudo de um instrumento cedo e dedi-

ir tocar para eles. Lembro que estava indo jogar

de São Paulo (USP), outro para formação de uma

car-se muito, ingressar em uma orquestra jovem e

futebol – era do time da escola –, peguei meu vio-

orquestra de câmara e um terceiro, de Eleazar de

participar de festivais é um dos caminhos aponta-

lino e fui tocar.” Impressionados com seu talento,

Carvalho, para participar de um projeto de criação

dos por Horácio Schaefer, spalla das violas da Or-

os músicos fizeram contato com o professor Max

de uma escola de música. Licenciado da Orques-

questra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp),

Rostal, com quem estudaram na Europa, e Horá-

tra da Rádio de Frankfurt, Horácio passou alguns

para buscar uma carreira de músico de concerto.

cio preparou-se para uma rigorosa seleção, já que

meses no país, onde ainda coordenou um proje-

A trajetória indicada pelo músico é exatamente

a classe consistia em no máximo 12 alunos.

to de formação de professores de instrumentos

a que ele percorreu. Ainda adolescente, quando

“Músicos do mundo inteiro queriam estudar

de cordas no Nordeste. “Retornei para Europa e a

convidado a tocar para os integrantes do mais fa-

com Max Rostal e fui um dos aprovados. O que fa-

lembrança daquelas praias mais lindas do planeta,

moso quarteto de cordas do mundo em meados

cilitou minha ida à Alemanha é que os estudos nes-

depois de 15 anos no frio, ajudaram na decisão, em

dos anos de 1970, o britânico Quarteto Amadeus,

ta área são pagos pelo governo, e eu só precisaria

1987, de tentar a vida aqui.”

surpreendeu e não deixou de aproveitar as oportu-

bancar minha subsistência, e ainda consegui uma

nidades que surgiram.

bolsa”, conta. No quarto ano na Escola Superior de

De volta ao Brasil

Horácio vem de uma família de refugiados

Música de Colônia, prestes a concluir a graduação,

O retorno não foi fácil, e Horácio levou quase uma

judeus da Alemanha e, por uma questão cultural,

Horácio teria novamente contato com o Amadeus,

década para se readaptar. Além da desorganização,

a música clássica sempre esteve presente na sua

que havia sido convidado a dar aula na mesma

segundo ele, o nível da música clássica ainda era

casa. Aos nove anos, pediu – e ganhou – um violi-

instituição. Permaneceu por mais cinco anos, es-

baixíssimo, por conta de escassos investimentos.

no. Daquele momento até os 18 anos, estudou com

pecializando-se na formação quarteto, enquanto

“Havia poucas pessoas, alguns aventureiros de alto

uma conceituada professora suíça, Lola Benda, que

participava de festivais pelo mundo e gravava com

nível que tentavam fazer alguma coisa, entre eles, o

depois voltou para seu país. Aos 17 anos, o músico

o seu Quarteto Ravel em diversas rádios da Europa.

Eleazar de Carvalho, que assumiu a direção do Fes-


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2013

51

tival de Inverno de Campos do Jordão, em 1973 – o

a trilhar para aprender bem um instrumento e tor-

em uma peça de um dos recitais. “A empatia foi tão

evento havia sido criado em 1970 por Luís Arroba

nar aquilo sua profissão”, explica.

grande, foi tão natural que estamos em contato

Martins e Camargo Guarnieri. Era um movimento bacana, mas durava apenas um mês.”

Para os alunos mais adiantados, o festival per-

constante, com planos para tocar nos Estados Uni-

mite uma troca de informações com professores e

dos e no Brasil em 2014. Por outro lado, tenho um

Outra iniciativa isolada apontada pelo mú-

novas ideias, além do convívio com outros jovens

aluno na academia que funciona dentro da Osesp

sico foi a criação da Orquestra Sinfônica da Pa-

para fazer música de câmara juntos. “É uma vi-

que ganhou o Prêmio Eleazar de Carvalho, em di-

raíba, no final da década de 1980, pelo governa-

vência muito bacana porque é possível aprender o

nheiro, e foi convidado imediatamente por uma

dor Tarcísio Burity, que havia estudado em Paris,

tempo inteiro e obter informações que os alunos

professora do Conservatório de Haia, na Holanda,

gostava de música e tornou-se amigo de Eleazar.

jamais teriam nas suas cidades.” Os que se desta-

para estudar lá, com bolsa. Acontece todo o ano.”

“Era excelente, alguns músicos foram importa-

cam conseguem, muitas vezes, serem levados por

dos dos Estados Unidos, com altos salários, mas

professores para estudar em outros países, Alema-

Construção da carreira

durou quatro anos e, ao fim do governo, acabou

nha, França, até mesmo com bolsas.

Se os festivais oferecem uma grande oportuni-

o projeto, que foi retomado quatro anos depois,

Os professores, por sua vez, têm no festival

dade para conhecer escolas de instrumentos, por

quando o governador se reelegeu. Eu dei aulas lá,

uma vitrine. “Você aparece na mídia, no concerto

meio de professores que estudaram na Alemanha,

toquei na orquestra, que terminou novamente no

com um público enorme da cidade, e os alunos de

na Rússia, na França, entre outros lugares, e auxi-

final da segunda gestão.”

toda a parte vão difundir o seu nome pelos lugares

liar na decisão de onde seguir os estudos, Horá-

Para o violista, a grande revolução, que

para onde vão voltar. Isso acaba formando público

cio alerta que é necessário começar muito antes,

ainda está em curso no país, ocorreu a partir da

para você pessoalmente. Também fazemos contato,

com o apoio dos pais, se o jovem quer trilhar uma

reformulação da Osesp, em 1997, pelo maestro

assim, como os alunos, com pessoas de fora para

carreira, entrar em um mercado mais amplo que o

John Neschling com apoio de uma equipe de go-

fazer trabalhos com eles em seus países ou trazendo

Brasil. “Nosso país ainda sofre isso de começar o

verno, que estabeleceu parâmetros semelhantes

elas para cá.” Horácio cita como exemplo o último

estudo de música muito tarde e trabalhar muito

aos da Europa e Estados Unidos. “No rastro des-

Festival de Campos do Jordão, quando foi convida-

cedo. Como muitos jovens vêm de famílias de pou-

sa nova Osesp, muita coisa aconteceu no Brasil,

do por um quarteto de residência norte-americano,

cos recursos, acabam vendo na música uma pos-

muita gente acordou, viu que existia público,

o Enso String Quartet, para fazer a segunda viola

sibilidade de ascensão financeira, social, estudam

existia receptividade para a cultura de um nível

três, quatro anos de instrumento, tocam mais ou

mais elevado. Eu entrei na orquestra na segunda

menos, e já conseguem um emprego em orquestra

temporada.” A Osesp é hoje considerada a melhor

de menor qualidade, casamentos, festas, às vezes,

orquestra da América Latina.

porque vai ajudar a família. Esse é o fim da carreira séria”, avalia. O violista considera necessário es-

Festivais de música

tudar pelo menos 10 anos com muito afinco para

Um dos professores do Festival Internacional Sesc

conseguir entrar em uma orquestra de alto nível.

de Música em Pelotas, em janeiro de 2014, pelo se-

Para Horácio, até mesmo conhecer a cultura

gundo ano consecutivo, Horácio destaca que a par-

do local onde as músicas de concerto foram com-

ticipação em eventos como este traz possibilidades

postas – cerca de 90% são de origem anglo-saxôni-

em todos os níveis: para alunos iniciantes, para os

ca, provenientes da Europa Central – faz a diferen-

mais adiantados e também para os professores.

ça. “É imprescindível que o aluno conheça isso, caso

Os mais jovens, em um mesmo festival, po-

contrário não tem como interpretar sem nunca ter

dem fazer aulas com até três professores de for-

visto, sentido o cheiro, sentido o ar, o ambiente em

mações diferentes e buscar uma identificação com

que as peças foram criadas. Mas como o aluno de

alguma escola para continuar seus estudos. “Se pe-

baixa renda vai conseguir visitar esses lugares?

garmos toda a América do Sul, tem pouquíssimos

É um grande problema, mas tem que ir. As orques-

lugares com realmente bons professores de viola,

tras jovens proporcionam isso, se apresentam fora

por exemplo. Num festival, dá-se oportunidade ao

do Brasil, e isso é uma grande oportunidade para os

jovem de lugares distantes dos grandes centros de

jovens de 16, 17 anos.”

ter conhecimento de que existe um caminho legal


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2013

52

Da Orquestra filarmônica de Berlim a Pelotas Um dos mais conceituados intérpretes portugue-

Músico português Abel Ferreira é trompista convidado da melhor orquestra do mundo Foto: Divulgação

Quem são suas referências na música?

ses de todos os tempos, o trompista Abel Pereira

As minhas grandes referências desde muito

estará pela segunda vez no Festival Internacional

cedo foram aquelas cujas gravações ia tendo

Sesc de Música em Pelotas. Desde o mês de se-

acesso e que normalmente são as grandes

tembro, o músico que iniciou sua trajetória aos 11

orquestras mundiais e os grandes maestros

anos, quando atuou como solista no Rivoli Teatro

que dirigem essas orquestras por terem um

Municipal de Porto, é o primeiro trompista convi-

grande registro discográfico de repertório.

dado da Orquestra Filarmônica de Berlim, conside-

São elas, por exemplo: Orquestra Filarmôni-

rada a melhor do mundo. Também é professor na

ca de Berlim, Sinfônica de Chicago, Filarmô-

Escola Superior de Música, Artes e Espetáculo do

nica de Nova Iorque, Filarmônica de Viena

Porto e chefe do naipe da Orquestra Sinfônica do

e Filarmônica de Londres e maestros, como

Porto. Nesta entrevista, concedida à Revista Arte

Bernard Haitink, Claudio Abado, Sir Colin

Sesc por e-mail, Abel Pereira fala de sua carreira,

Davis, Sir George Solti, Carlos Kleiber, entre

das influências, do momento da música com a cri-

outros. Felizmente, durante a minha carrei-

se na Europa e da sua participação no festival do

ra tive a oportunidade de tocar em algumas

Sesc, em janeiro de 2014.

dessas orquestras e com alguns desses ma-


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2013

53

estros. Esses momentos foram sem dúvida a

muito bem recebido no Brasil e até já me

pregos para os estudantes de música que re-

realização de alguns sonhos que fui criando

sinto em casa. Estou certo de que a cultura é

alizam os seus estudos nas escolas estatais.

ao longo dos anos, à medida que ia ouvindo

bastante diferente da Europa, e as condições

Eu acho fantástica essa iniciativa, e essa

falar dessas instituições e personalidades,

de trabalho no Brasil nem sempre são as ide-

atitude deverá servir de exemplo na Europa,

achando sempre que seriam inatingíveis. Na

ais para se fazer música clássica.

que está a esta altura, como bem sabem,

verdade não o são, e o meu lema sempre foi

vivendo um momento de crise de tal forma

perseguir os sonhos e tentar que se tornem

Quais as diferenças e semelhanças da

que, ao contrário do Brasil, estão fechando

realidade... em todos os níveis!!!

música no Brasil e na Europa referente

orquestras, escolas e dificultam o investi-

a orquestras e possibilidades?

mento nos grupos de música de câmara.

Como é sua relação com o Brasil?

A admiração pela música clássica que se vive

Estive várias vezes no Brasil. A primeira vez

na Europa tem origem nas questões cul-

O que move um músico do seu nível a

foi em 1993, numa digressão durante um

turais que tem séculos e está enraizada na

participar de um festival no sul do Brasil,

mês com uma Orquestra de Jovens de Portu-

educação das pessoas. No Brasil, a cultura

longe da capital? Qual sua expectativa?

gal, realizando concertos em diversas cida-

valoriza outros aspectos e outro tipo de coi-

Este fantástico Festival Internacional Sesc de

des, de São Paulo a Belém do Pará. Regressei

sas que no meu entender são também muito

Música é sem dúvida um excelente exemplo

alguns anos mais tarde, em 2008, ao Rio de

importantes e que criam a identidade desse

dessa aposta na cultura! Tal como no ano

Janeiro para uma masterclasse e um recital

país. Não me parece que sejam melhores ou

anterior, o elenco de professores este ano

com piano e, em 2011, voltei novamente em

piores, são apenas diferentes.

tem uma qualidade de músicos de gran-

digressão com a Orquestra Sinfônica do Por-

De qualquer forma, encontro sempre coi-

de gabarito internacional com carreiras

to – Casa da Música, atuando entre outros

sas muito positivas em todos esses projetos

agraciadas em todo o mundo. É para mim

locais na Sala São Paulo e no Festival de

que tenho realizado no Brasil, como o calor

um enorme prazer poder fazer parte desse

Campos de Jordão.

humano, a simpatia das pessoas, a fantásti-

grupo de orientadores que partilharão o

Finalmente, em 2013, estive três vezes. Em

ca comida, a estada acolhedora, o clima, o

seu conhecimento com os diversos alunos,

janeiro, para o III Festival Internacional Sesc

ambiente positivo e relaxado das pessoas e

que, tal como na edição anterior, mostrarão

de Música em Pelotas; em abril, para uma

a ausência de arrogância e prepotência que

muito interesse em absorver essa informa-

masterclasse na escola de música da Ospa

se vive muitas vezes em meios com um ní-

ção e de alguma forma mostrar o trabalho

(Orquestra Sinfônica de Porto Alegre); e, em

vel artístico muito elevado onde os egos das

que fizeram ao longo deste ano com base

agosto, para solar com a Orquestra Unisinos

pessoas falam mais alto que as suas vozes.

no conhecimento adquirido em 2013. Es-

Anchieta e para dar mais uma vez uma mas-

Seja em que país for, para mim, o mais im-

tou, portanto, muito ansioso para voltar ao

terclasse na escola da Ospa.

portante é que as pessoas gostem do que

festival do Sesc e perceber a evolução dos

Para o ano de 2014 tenho marcadas quatro

toco e da forma como interpreto. Gosto de

alunos que retornarão ao evento, além de ter

idas ao Brasil. Se Deus quiser, regressarei em

sentir essa energia por parte do público e

a oportunidade de conhecer novos alunos e

janeiro para mais um Festival Internacional

de poder partilhar o meu som e as minhas

novos professores e rever os amigos que fiz

Sesc de Música em Pelotas; em maio para

ideias musicais sem limites e com a ambição

no ano passado!

concertos solo em Curitiba e Brasília; e em

de que desejem que eu volte. Na realidade,

outubro para mais um concerto solo em São

sempre senti isso no Brasil, apesar das di-

Paulo, estando ainda por agendar um con-

ferenças culturais. No entanto, soube que

certo com a Orquestra Eleazar de Carvalho

o estado brasileiro está, neste momento,

em Fortaleza.

bastante empenhado e quer apostar num

O Brasil é sem dúvida um dos meus países

enorme investimento na cultura, no que

favoritos. Em todas as minhas visitas, senti

diz respeito, por exemplo, à música clássica,

sempre uma enorme satisfação, pois fazer

com a criação de novas orquestras, escolas e

música num país irmão e que está tão lon-

infraestruturas que permitirão, sem dúvida,

ge de Portugal, geográfica e culturalmente,

um melhor desempenho dessas instituições

é para mim um grande prazer. Sempre fui

permitindo também a criação de novos em-


MÚSICA

SEGUNDO SEMESTRE

2013

Por Iná Eloísa Grabin

54

Agente de Cultura da Unidade Sesc Navegantes de Porto Alegre

Uma inesperada pausa na rotina O Festival Internacional Sesc de Música vai muito

Nas edições anteriores, o Festival na Comu-

é uma pausa para presentear o corpo e a alma.

além de duas semanas em que professores e alu-

nidade passou pelos mais diversos locais, entre

O diretor de um hospital verbalizou que, com

nos trocam contatos, vivências e conhecimento, e

eles, o setor de oncologia do Hospital Escola, asilos,

certeza, após esse tipo de trabalho com música,

a população tem a oportunidade de apreciar reci-

Hospital Geriátrico, Hospital Psiquiátrico, comuni-

os pacientes ficam mais calmos, principalmente,

tais e concertos de renomados músicos vindos de

dade de pescadores, Centro de Artistas Plásticos e

em hospitais psiquiátricos. O bacana do Festival

diversos países no teatro ou até mesmo em praças.

outros frequentados por universitários e jovens,

na Comunidade é a acessibilidade que proporcio-

Na atividade Festival na Comunidade, músicos –

igrejas e empresas apoiadoras do evento.

na para o público e como isso estimula a prática

professores e alunos – que participam do festival

São momentos encantadores esse despertar

da apreciação e contribui para formar, alegrar e

formam grupos, quintetos que vão até comunida-

da alegria que a música proporciona. Presenciamos

promover uma pausa para essa evoluída invenção

des periféricas de Pelotas, centros comunitários,

de tudo: pacientes que se levantam e dançam no

humana que é a música.

hospitais, asilos, entre outras instituições para

setor de oncologia, idosos que são convidados e

apresentação de um repertório, erudito ou popular.

ensinados a reger o grupo de músicos que tocará

A receptividade é ótima e sempre há pedido de bis

pedidos de músicas, pessoas conhecendo novos

para a próxima edição.

instrumentos, por exemplo, a tuba, o eufônio ou o

É uma forma de inclusão dessas pessoas que

fagote, descobrindo curiosidades sobre esse vasto

normalmente não assistiriam às apresentações,

campo. Em outros locais, significa uma pausa na

seja por problemas de saúde ou mesmo por es-

jornada de trabalho para apreciar música de altís-

tarem em comunidades afastadas que não têm

sima qualidade ou uma simples alteração da rotina

acesso fácil para os locais onde acontecem as de-

vivida habitualmente naquele espaço.

mais atrações. Os músicos tocam e apresentam os

O divino da música é essa comunhão que ela

instrumentos, as curiosidades sobre eles, sobre as

proporciona. É como se ela minimizasse ou aquie-

músicas que tocam e falam sobre o festival.

tasse qualquer ruído existente naquele momento,


MÚSICA

segundo SEMESTRE

2013

55

Professores e alunos participam das apresentações do Festival na Comunidade em asilos, hospitais, igrejas e outras instituições

Foto: Javier Barbinder Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Iná Eloísa Grabin Foto: Roberta Bandeira

Participar de um festival de música é de extrema importância para minha formação musical. Percebo que a cada festival que participo, abrem-se novas oportunidades, melhoro meu desempenho, tenho contato com inúmeras informações e vivências técnicas, renomados músicos, além de todo o intercâmbio com músicos estudantes de minha geração. Estar próximo de profissionais, por meio das aulas, vivência de palco, faz com que melhoremos e reciclemos nosso desempenho musical. Muitas vezes, nós estudantes, não temos a chance de fazer aula com esses grandes nomes da música, e os festivais acabam possibilitando esse encontro. Esta oportunidade é imprescindível para minha maturidade profissional. Victor De Vincenzo São Paulo (SP), pela primeira vez no Festival em Pelotas


CINEMA

SEGUNDO SEMESTRE

2013

POR willian mayer

56

produtor, roteirista e diretor de cinema e televisão

O cinema repensa o real e o ficcional na internet você realmente curte aquilo que você compartilha? A internet é um espaço coletivo em construção,

as únicas responsáveis pela distribuição de con-

passam a agir diretamente sobre grande parte do

em que, constantemente, agentes e usuários es-

teúdo e, por meio de redes sociais como Twitter,

que é produzido e compartilhado. Com softwares

tão postando um novo texto, uma nova imagem,

Flickr, Facebook, YouTube etc., usuários passaram

simples e de fácil acesso, podem produzir conte-

armazenando um novo vídeo. Com a possibi-

a dividir informações de todos os tipos. Seja fo-

údo ou simplesmente aproveitar o já disponível,

lidade de inserção de vídeos nos meios digitais,

tos, textos ou vídeos, o importante é que, no cibe-

apropriando-se do que já existe.

a noção de coletividade extrapola o player que

respaço, os materiais deixaram de ser analógicos

Um usuário pode criar novos conteúdos gra-

reproduz o vídeo, pois existe a permissão de os

e tornaram-se dados numéricos, podendo ser

vando imagens e colocando um vídeo pessoal no

usuários – legalmente ou não – editarem, adicio-

inseridos, modificados e distribuídos para todo

YouTube, utilizando-se de cenas de filmes, imagens

narem comentários e realizarem downloads. As

o mundo, criando uma espécie de aldeia global,

de videogames, fotografias e, até mesmo, de ma-

formas de construção audiovisuais coletivas são

segundo McLuhan. Uma extensão mundial que

teriais já disponíveis no site. É a partir desse olhar

praticamente inesgotáveis. Atualmente, apenas

pretende interconectar todos os seres humanos

sobre a miscigenação das novas mídias com os de-

no YouTube, são inseridas mais de 100 horas de

através de um único meio, modificando a manei-

mais meios audiovisuais que escolhemos observar

material audiovisual por minuto.

ra como nos comunicamos, transformando a in-

o filme Depois das Aulas (2008) do diretor Antonio

ternet num dos principais meios de comunicação

Campos. O filme retrata a trajetória de Robert, um

da atualidade.

jovem garoto, estudante de uma escola tradicio-

A massificação do acesso à internet parece ter modificado o jeito como o próprio meio audiovisual se organiza, promovendo, inclusive,

A partir de recursos da Web 2.0, potenciali-

nal, que, assim como grande parte dos seus cole-

mudanças na forma de produzir tanto os mate-

za-se a livre criação e a organização distribuída

gas adolescentes, costuma passar horas em frente

riais audiovisuais compartilhados na rede como

de informações compartilhadas através de asso-

ao computador. Mas durante um trabalho de aula

também aqueles feitos para a televisão e o cine-

ciações mentais. Nestes casos, importa menos a

proposto na disciplina de cinema, em que o garoto

ma. Além do acesso facilitado à banda larga, o

formação especializada de membros individuais.

percorre a escola gravando imagens dos corredores,

crescimento do mercado de câmeras portáteis,

A credibilidade e relevância dos materiais publi-

ele depara-se com duas meninas tendo uma over-

bem como o aumento na capacidade de armaze-

cados é reconhecida a partir da constante dinâ-

dose. Em estado de choque, Robert apenas observa

namento dos computadores, também contribuiu

mica de construção e atualização coletiva. (PRI-

a morte das meninas, sem ajudá-las.

para o início desse processo de compartilhamen-

MO, Alex, p. 4, 2007.)

O filme inicia com uma sequência de vídeos

to de informação por parte das empresas e dos

Como a rede mundial de computadores pos-

compartilhados na internet. Robert assiste em seu

usuários. As mídias tradicionais deixaram de ser

sibilita que todos se interconectem, os usuários

computador ao vídeo de uma criança que ri sempre


CINEMA

segundo SEMESTRE

2013

57

Cenas do filme Depois das Aulas Fonte: YouTube

que alguém rasga um papel, uma briga de meninas

Ao assistirmos a cena do filme Depois das Au-

em algum colégio, um garoto que cai de bicicleta ao

las, inicialmente nos sentimos desconfortáveis pela

tentar fazer uma manobra, a execução de um ho-

excitação do personagem, frente à tamanha selva-

Mas a história ainda continua, e o diretor sur-

mem na forca, um gato tocando piano, vídeos de

geria, mas deixada a hipocrisia de lado, nos damos

preende ao levantar outros questionamentos. Evi-

soldados morrendo na guerra e, por fim, enquanto

conta de que estamos constantemente nos alimen-

tando que o envolvimento dos alunos com drogas

se masturba, assiste a um vídeo pornô de uma garo-

tando de experiências audiovisuais irrefletidas, de

se torne um problema para a escola, a diretoria so-

ta que sofre violência física e psicológica do homem

maneira muito semelhante.

licita ao aluno Robert que prepare um vídeo memo-

que está com ela.

eventualmente, mesmo que ‘chocados’, assistiríamos on-line.

Durante o filme, Robert está gravando cenas

rial em homenagem a morte das irmãs, enaltecendo

Logo de início, o diretor já problematiza uma

de um vídeo para um trabalho de aula quando se

os pontos positivos das meninas e evitando debater

questão relevante no modo como assistimos aos

depara com duas colegas, as irmãs gêmeas Talbot,

o fácil acesso às drogas, outro assunto também ex-

vídeos na internet. É como se de algum modo,

saindo do banheiro e tendo uma overdose de co-

plorado no filme, mas que não cabe na discussão

tudo que consumimos on-line fosse ficção, não

caína. Assistimos à cena a partir do ponto de vista

aqui proposta. Antes da apresentação do vídeo,

há uma reflexão sobre o audiovisual ali inserido,

da câmera de Robert, que durante alguns instantes

Robert assiste a sua versão final do projeto com

não há interesse em saber se o vídeo é real ou não.

apenas observa as meninas saindo do banheiro com

o coordenador pedagógico da escola. Procurando

Nós os assistimos, curtimos ou desgostamos deles,

os narizes ensanguentados, desmaiando no meio

retratar uma visão diferenciada sobre o assunto, o

comentamos e compartilhamos com outras pesso-

do corredor silencioso da escola. Em seguida, ele se

vídeo de Robert é bastante incômodo. Ele coloca

as, e no dia seguinte iniciamos o mesmo processo.

aproxima das meninas que gritam. Observamos o

depoimentos de alunos, mas usando os momentos

O importante é estar por dentro, divertir-se, emo-

garoto acercar-se das meninas com calma, na se-

em que eles não dizem nada ou dizem coisas sem

cionar-se às vezes. Vídeos caseiros, catástrofes,

quência, parado por um tempo e incapaz de fazer

importância. Os movimentos de câmera são bastan-

pessoas se machucando, situações de inferiorida-

algo, simplesmente colocando uma das meninas

te desconfortáveis, muito próximos do personagem

de, tudo é compartilhado como entretenimento.

sobre o seu colo enquanto a assiste morrer. Toda a

ou pouco instáveis e com falta de foco. Pouco antes

Uma imagem de um tsunami causa tão pouca re-

cena é vista a partir de uma câmera amadora, de

do término do vídeo, aparece o depoimento do di-

flexão quanto um filme de catástrofes no cinema.

qualidade inferior, em um plano bem aberto e de um

retor da escola. Robert escolhe colocar na edição o

Um vídeo de pessoas brigando é motivo de diver-

ponto de vista que pouco revela as apreensões dos

momento em que o diretor ensaia o que vai dizer

são, uma pessoa sendo atropelada é um bom vídeo

personagens. Tudo muito semelhante às produções

e não o discurso em si. Para finalizar o memorial,

para assustar o colega de trabalho.

caseiras assistidas na internet, um desses vídeos que

a última imagem usada é o plano das escadas em


CINEMA

SEGUNDO SEMESTRE

2013

58

que o garoto encontra as gêmeas, poucos segundos

a maneira como editamos, a trilha que escolhemos,

mostra de costas, observamos Robert quase em

antes de elas morrerem.

o modo como decidimos apresentar um audiovisual

uma posição vouyerista. Trata-se de um plano

Ao terminar de assistir ao vídeo, o coordena-

podem gerar diferentes percepções e interpreta-

estático no qual quase nada acontece durante

dor pedagógico critica: “Eu não conheço muito de

ções. Ao mesmo tempo, quando a escola opta por

vários segundos até que Robert vira-se para a

montagem, mas isto está muito ruim. Não há nem

um vídeo que homenageie de forma tradicional a

câmera e a encara diretamente, como se olhasse

música”. Essa cena e esse comentário são relevantes

morte das meninas, somos levados a pensar que as-

para o telespectador. A imagem é então substi-

em mais de um ponto. Primeiramente, o próprio fil-

sim como grande parte dos vídeos, matérias, filmes

tuída por outra de qualidade inferior, como se

me não tem trilha em momento algum, salvo nos

a que assistimos, as partes excluídas e o modo como

alguém estivesse filmando o garoto com uma

créditos, ou seja, o diretor ao inserir um comentário

o filme é editado, suprimem tudo aquilo que pode

câmera de celular. Ele encara por mais alguns

destes está questionando a própria linguagem do

nos fazer refletir. Somos deixados apenas com as

segundos como se sentisse observado e então o

filme ao referenciar-se sobre a opinião daqueles

boas lembranças, impossibilitados de refletir sobre

filme encerra. Neste momento, o diretor coloca

que não conseguem interpretar escolhas estéticas

assuntos mais importantes.

o espectador no lugar de Robert no início do fil-

como uma tentativa de gerar novas reflexões. Ainda

Por fim, na cena final do filme, Robert está

me. Logo na primeira cena, como vimos, o garoto

no que diz respeito a essa cena, Campos demonstra

sentado na biblioteca da escola, os alunos do úl-

assiste a inúmeros vídeos de maneira displicente,

que a partir de imagens gravadas podemos gerar

timo ano estão se formando e saem do colégio

no escuro, aproveitando-se do prazer que as ima-

inúmeros sentidos com um mesmo material, e que

comemorando. Filmado por uma câmera que o

gens o proporcionam. Com a troca da qualidade da câmera e nos colocando como vouyers da vida de Robert, o diretor nos convida a questionar a força da imagem, o sentido, a importância da reflexão. Quando Robert encara o telespectador, de modo semelhante ao da garota que sofre violência sexual no vídeo a que ele assiste em seu quarto, somos levados a pensar: O que nos diferencia daquele jovem em um quarto escuro buscando prazer? Por isso, acreditamos que o diretor é muito competente ao trazer à tona um assunto tão pouco explorado. O filme Depois das Aulas é extremamente sensível ao explorar a banalização do compartilhamento de audiovisuais na internet, na


CINEMA

segundo SEMESTRE

2013

59

televisão e nos demais meios de comunicação.

cessidade de produzir questionamentos no es-

É preciso pensar, protestar, promover diálogos so-

É importante que haja um espaço de comparti-

pectador. Tal qual um vídeo de internet, já não

bre os materiais que consumimos. Do contrário, a

lhamento, e as redes têm permitido o surgimento

importa se aquilo a que assisto na televisão, no

aldeia global que poderia nos unir possibilitando

de muitos materiais audiovisuais interessantes,

cinema é real ou não, desde que eu esteja sen-

culturas cada vez mais ricas e sociáveis, pode ter-

mas é necessário diferenciar o ficcional do real,

do entretido. A imagem perde o valor do real, e

minar por uniformizar padrões imbecilizados de

é imprescindível refletir sobre aquilo que é visto

torna-se simples representação. Um casal feliz

telespectadores.

on-line, pensar sobre o audiovisual e perceber o

ou um jovem garoto sendo morto são apenas a

Se não exercitarmos a reflexão, cada vez

conteúdo daquilo que se está consumindo. É pre-

reprodução desses fatos, eles em si já não são

mais vamos nos divertir assistindo a vídeos re-

ciso realmente curtir algo antes de compartilhar.

mais reais, o que ‘permite’ ao cinema e à televi-

petidos de gatos tocando piano, pessoas sendo

É preciso antes de tudo levantar alguns questio-

são suprimirem os fatos desinteressantes.

enforcadas, cidades sendo destruídas por catás-

namentos sobre quais os motivos nos levaram a tal apatia frente aos audiovisuais.

Não há, porém, imparcialidade que resista à

trofes climáticas, enquanto uma infinidade de

visão do diretor, do cinegrafista, do montador, do

materiais interessantes se perde no ciberespaço,

Há inúmeras pistas, mas acredito que a fal-

plano escolhido, da trilha, da editoria. Isso mais

ou deixa de ser produzido com a desculpa de que

ta de reflexão imposta pela ausência de discus-

uma vez nos leva a compartilhar ideias simplistas

um vídeo inteligente não pode ser tão bom, afinal:

são nos meios tradicionais como a televisão e

de assuntos tão importantes, nesses casos, não

“Não há nem música”.

o cinema são de algum modo o prelúdio desse

somente no mundo virtual, mas também no real.

momento atual. O cinema há muito está repleto de filmes cheios de diálogos vazios, cenas de ação sem motivação dramática, planos que não duram mais que poucos segundos e narrativas que deixam pouco espaço para a imaginação. Com filmes tão digeridos, pouco sobra para que o espectador possa de fato exercitar sua introspecção e levantar questionamentos sobre aquilo que assiste. A televisão da mesma forma produz conteúdo jornalístico totalmente maquinal. Podemos assistir diariamente inúmeras notícias, sejam elas trágicas ou felizes, completamente ficcionalizadas. Com a desculpa de produzir matérias imparciais, os jornais renunciam a ne-


SEGUNDO SEMESTRE

ARTES VISUAIS

2013

60

O Imaginário de Tom: da Paleta à Letra Ilustrador e escritor André Neves expõe objetos entalhados, desenhos e pinturas inspirados no livro Tom


ARTES VISUAIS

segundo SEMESTRE

2013

61

Por esse livro, o mais recente, o autor recebeu o Prêmio de Melhor Ilustração 2013 da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), que também concedeu ao livro o selo de “Altamente Recomendável”, pela qualidade relacionada ao tex-

Imagem integrante do livro Malvina

Ilustração: André Neves

Exposição alusiva ao livro Tom circulou em 2013 no Rio Grande do Sul

Fotos: Arquivo pessoal do artista

to, à imagem e ao projeto gráfico. Além disso, o caderno Estadinho, de O Estado de São Paulo, incluiu o livro na lista dos 50 melhores lançamentos do ano. Por livros ilustrados anteriores, André Neves já recebeu prêmios Jabuti e Açorianos, por cinco vezes o da Mostra Internazionale di Illustrazione per Infanzia, em Bolonha, entre outros na Alemanha, Eslováquia e México. “Estes reconhecimentos são importantes porque estimulam meus estudos e A história do menino Tom é contada por seu irmão,

minha prática e ainda mostram o livro para leitores

que sempre o observa intrigado: “Por que Tom não

ainda de olhar desatento”, diz.

brinca? Por que Tom não diz o que sente? Onde

A ilustração entrou na vida de André Neves,

Tom guarda todos os seus sonhos?”. Até que um

que se diz meio gaúcho, meio pernambucano, a

dia, Tom chama seu irmão para que conheça o seu

partir da relação profissional com dois artistas: Ba-

mundo, e os dois descobrem como se comunicar.

dida, artista plástica e professora, e Manuel Ban-

Esta é a sinopse do livro Tom, do escritor e ilus-

deira e o Espaço Pasárgada, na casa em que nasceu

trador André Neves, que deu origem à exposição

o poeta e o artista realizou o estágio em Relações

O Imaginário de Tom: da Paleta à Letra, que circu-

Públicas, sua formação. “Tenho muitas referências,

lou no Rio Grande do Sul no segundo semestre a

difícil listar porque elas chegam e modificam meu

partir de uma parceria com o Sesc, que pretende

olhar o tempo inteiro. Manuel Bandeira sempre me

dar continuidade à itinerância em 2014. São de-

sensibiliza, assim como autores contemporâneos.

senhos, pinturas, palavras, objetos em madeira

O Sul e o Nordeste se integram cada vez mais e

entalhada. Como descreve o artista visual ligado

artistas dessas regiões hoje povoam meu imaginá-

à palavra, é “o espaço criativo por fora do livro, o

rio: de Ascenso Ferreira a Augusto Meier, de Iberê

mundo do ilustrador, todas as sensações escon-

Camargo a Cícero Dias. Uma mistura criativa.”

didas que o leitor não percebe, algo muito íntimo ligado exclusivamente a esta história”.

Com uma produção que iniciou em 2000, com Tom, André Neves chega ao seu 16º livro ilustrado.

André Neves, autor de trabalhos de traços

Ele tem ainda quatro de imagens. “Livros de ima-

marcantes e histórias delicadas, conta que Tom

gens são difíceis de elaborar. A estrutura, a forma, a

surgiu de uma seleção de inspirações, de uma

composição, o número de páginas, dificulta a cria-

ilustração que fez para a revista Crescer, que no

ção narrativa com poucas vírgulas visuais, que torna

meio do ano incluiu três títulos seus – Tom, Entre

o livro, com imagens amplas e de caráter narrativo

Nuvens e Malvina – entre os 30 melhores livros

complexo e veloz, diferente dos quadrinhos.”

do ano, a sua memória. “A imagem da revista já

O ilustrador está trabalhando em um livro de

me contava algo e, com o tempo, relacionei a uma

título provisório Mel na Boca, ainda sem editora.

experiência pessoal de um amigo com seu filho, e a

“Estou trabalhando livre e sem medo, quero criar

história nasceu.” A exposição O Imaginário de Tom:

o que sinto. Se depois alguma casa o abrigar, tere-

da Paleta à Letra é a primeira individual do ilus-

mos um outro livro, se não, usarei essa experiência

trador, que já participou de diversas coletivas no

em um trabalho futuro”, adianta.

Brasil e no exterior.

O Sesc promoveu a circulação da exposição O Imaginário de Tom: da paleta à letra em Passo Fundo, durante a Jornada de Literatura realizada de 27 a 31 de agosto, e em Caxias de Sul, entre os dias 2 e 25 de outubro, na Galeria Municipal de Arte Gerd Bornheim da Casa da Cultura.


literatura

SEGUNDO SEMESTRE

2013

62

Mais do que um estímulo à leitura Projeto que busca dar mais dinamismo à utilização

escolas da rede pública. Luciana Saraiva Farias, do

do acervo das bibliotecas do Sesc, o projeto Sesc

Sesc Gravataí, destaca o excelente retorno que ob-

Mais Leitura experimentou uma nova fase no ano

tiveram por parte dos professores, que incluíram os

de 2013 ao atrelar linguagens como cinema, his-

temas abordados nas palestras no planejamento

tórias em quadrinhos, teatro e música à literatura.

curricular. “Foi emocionante ver a identificação dos

Para viabilizar esse formato, as oficinas, palestras

jovens com os temas das palestras. As poesias de

e apresentações artísticas realizadas nas unidades

Manoel de Barros, por exemplo, foram apresentadas

do Sesc equipadas com bibliotecas contaram com

na linguagem teatral e tinha um grupo na escola

a participação de profissionais das áreas específicas,

que estava iniciando as atividades, então o espaço

sem deixar de lado os escritores, como já acontecia

do debate foi usado para pedir dicas de atuação e

desde 2012. Neste ano, em cinco etapas, o proje-

de como utilizar textos literários no teatro”, afirma.

to contemplou 14 unidades – Bagé, Cachoeirinha,

Para Bruna Brum, do Sesc Passo Fundo, o novo dire-

Caxias do Sul, Chuí, Erechim, Frederico Westphalen,

cionamento do projeto em 2013 colaborou para que

Gravataí, Lajeado, Navegantes (Porto Alegre), Passo

os alunos abrissem sua visão de mundo para outros

Fundo, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento,

tipos de arte que podem ser produzidas na escola,

Taquara e Uruguaiana – com a participação de mais

como teatro, cinema e quadrinhos.

de 20 mil estudantes da rede pública de ensino.

Nova fase do projeto promoveu a integração da literatura com outras manifestações artísticas, como teatro, música, quadrinhos e cinema Foto: Divulgação Sesc/RS Foto: Arquivo pessoal de Carlos Ferreira Foto: Arquivo pessoal de Rodrigo Cavalheiro

O desenhista Carlos Ferreira optou por con-

Além de trabalhar escritores consagrados

tar sua trajetória aos alunos na palestra Literatura,

como Rubem Braga e Manoel de Barros, com

Cinema e Quadrinhos. “Assim como eu, as pessoas

as temáticas relacionadas a outras linguagens

pensam que quadrinhos são só histórias de super-

que não elegem um autor específico, a iniciativa

-heróis ou Turma da Mônica”, relata. Carlos diz que

concede mais liberdade aos professores para uti-

começou lendo os mesmo quadrinhos que os alu-

lizarem em sala de aula uma abrangência maior

nos do projeto até que aos 13 anos teve contato

de títulos. As oficinas e palestras foram condu-

com uma história de aventura – A Espada Selvagem

zidas por Artur José Pinto (O teatro de papel e

de Conan – que lhe deu a sensação de estar no ci-

a literatura no palco – Literatura e Dramaturgia).

nema. “Até então não tinha muito interesse, acha-

Carlos Ferreira (Literatura, Cinema e Quadrinhos),

va as histórias chatas, e então comecei a entender

Lia Motta (Manoelando histórias: Manoel de Bar-

melhor e essa virou uma referência. Parti do ponto

ros – Poesia), Marcia Ivana Lima e Silva e Claudia

em que eles estavam e houve uma identificação. Ali

Caimi (Leitura de linguagens verbais e não verbais

não havia só leitores, mas também novos autores.

– Literatura e Cultura), Rodrigo Castelhano (Lite-

Havia uma gama de alunos que gostavam de de-

ratura em movimento – Literatura e Cinema), Ru-

senhar e escrever e se sentiram estimulados por-

bem Penz (Rubem Braga – Crônicas) e Guto Leite

que viram uma possibilidade profissional. Fizeram

(Canção, poesia e história brasileira no século 20

contato comigo pelas redes sociais porque queriam

– Literatura, Canção e História).

aprofundar o tema.” Este contato posterior em que

São os auxiliares de biblioteca das unidades

os participantes pedem dicas de como iniciar e onde

do Sesc que coordenam as atividades desenvolvi-

buscar cursos foi uma tendência verificada na maio-

das, nas próprias instalações da instituição ou nas

ria das atividades.


literatura

segundo SEMESTRE

2013

63

Por Rodrigo Cavalheiro

Por Rubem Penz,

Diretor e produtor de cinema e ministrante da oficina Literatura em Movimento – Literatura e Cinema

Cronista, músico e publicitário, ministrante da oficina de crônicas com o tema Centenário de Rubem Braga

Onde há arte, há paz

Sobre crises e oportunidades

Bueno, quando fui convidado pelo produtor

tornarem as aulas mais dinâmicas, esta ini-

cultural Cleverson Ferreira para desenvolver

ciativa também colabore com os objetivos de

São tantas e tão insistentes as vozes que destratam

uma atividade de fomento à literatura, utili-

desmitificar a “sétima arte”, qualificar a plateia

nosso sistema de ensino – escolas, professores,

zando os argumentos trabalhados no Cinema,

e ainda promover o acesso à cultura. A máxima

alunos e pais –, que um interlocutor menos atento

achei fantástico tanto pelo fato de incentivar

prevalece: “Onde há arte, há paz”.

é levado a crer que não há salvação para o jovem

os alunos do ensino médio a terem ainda mais

Durante o ano de 2013, tive a oportu-

brasileiro. O termo em voga é em todo pessimista:

contato com os livros quanto pela oportuni-

nidade de percorrer diversas cidades do Rio

crise. Ao mesmo tempo, concluo um ciclo de pa-

dade de desmitificar e popularizar a produção

Grande do Sul, através do projeto Sesc Mais

lestras ofertado pelo programa Sesc Mais Leitura

cinematográfica.

Leitura. Este contato com os alunos do en-

encantado com a receptividade, o carinho e o inte-

Acredito que o Brasil é um celeiro de

sino médio foi uma fonte surpreendente de

resse das comunidades escolares por onde passei.

grandes escritores, justamente porque a lite-

pesquisa. Consegui avaliar, por exemplo, que

E agora, como explicar essa aparente contradição?

ratura possui um espaço garantido em sala

a cultura possui poderes que muitas vezes os

Coincidência? Acaso? Sorte? Talvez o termo que as

de aula e o contato com a arte escrita desde

profissionais do meio cultural esquecem ou

perguntas procuram seja bem simples: oportuni-

a infância instiga a criatividade de escritores

não observam. Recebi relatos via rede social de

dade. Ou melhor, oportunidades. Senão, vejamos:

em potencial. Claro que por isso temos que

professores falando o quanto foram produti-

Escritor que sou (cronista), dedico boa parte

cada vez mais aumentar o acesso das crian-

vas as aulas em que o vídeo foi colocado como

do tempo estudando a obra de cânones no gê-

ças e adolescentes a literatura e projetos

atividade para os alunos encenarem trechos de

nero literário que professo. São ferramentas não

como o Sesc Mais Leitura, que cria esta pos-

literatura clássica, assim como relatos de alu-

apenas para a evolução pessoal da técnica, como

sibilidade de contato, de incentivo, de curio-

nos mais interessados por determinado tema

também algo fundamental nas oficinas literárias

sidade artística.

e querendo reproduzir em vídeo. Eu acredito

que ofereço. Quando constatei que Rubem Braga

Entretanto, o cinema ainda não ganhou

que este contato com a arte de um modo ge-

– um dos mais proeminentes autores do gênero

a oportunidade de ter um contato mais ínti-

ral mobiliza a sensibilidade do ser humano e

– completaria 100 anos, desejei saber muito mais

mo com o espectador. Existem alguns projetos

oportuniza um melhor campo de visão sobre o

sobre sua vida, considerando que é um marco da

isolados, porém acredito que devemos levar a

mundo e o meio em que vivemos – a educação

crônica moderna e um dos mais influentes pen-

produção para dentro da sala de aula para que

ensina a ler e a escrever, mas só a cultura en-

sadores brasileiros no século 20. Fascinado com

desta forma, além de ajudar os professores a

sina a enxergar.

minhas descobertas, ambicionei a oportunidade de compartilhar um pouco desses achados, bem como as reflexões suscitadas. Encontrei-a no programa Mais Leitura do Sesc. Simultaneamente, me coloco no lugar dos professores de escolas públicas, ou mesmo da rede particular, tantas situadas longe dos grandes centros urbanos. Assoberbados numa rotina de tarefas árduas e incessantes, pouco tempo lhes resta para pesquisas mais aprofundadas ou projetos audaciosos. Dar conta do programa de ensino e, nele, oferecer a desejada qualidade já é empreitada suficientemente difícil. Porém, são conscientes de que é necessário


literatura

SEGUNDO SEMESTRE

2013

64

ofertar à turma pontes entre o conteúdo e a vida,

Mas tem, na outra ponta do processo, um

afirmar sem sombra de dúvida que todos saíram

dotando de sentido seu esforço. Para tal, muitas

igual anseio de oportunidade: a promoção de

conhecendo a vida e a obra do autor celebrado,

vezes carecem de oportunidades na ampliação dos

inserções culturais no seio da comunidade, es-

bem como as estruturas básicas do gênero crônica.

horizontes, pois o dia a dia tende a ocupar todo

pecialmente entre estudantes, oferece ao próprio

Uma semente foi lançada e, apenas depois disso, se

o tempo disponível (quando não um pouco além).

Sesc um canal para cumprimento de sua missão.

pode pensar em futura colheita.

A chegada de alguém de fora auxilia na construção

De nada valerá suas portentosas sedes, sua equipe

Outros indicativos de sucesso: jovens me adi-

dessas pontes, rompe a lógica limitadora, avaliza

de trabalho, seus equipamentos, suas bibliotecas,

cionando em seus perfis nas comunidades virtuais

seus esforços. Outra vez, o programa Mais Leitura

enfim, a soma de sua grande estrutura, se não

(inserindo-se em um ambiente que a cultura é dis-

do Sesc surge como importante aliado.

existir o envolvimento das pessoas. Um livro na

seminada), demonstrando interesse em conhecer

Há também a realidade dos alunos para ser

prateleira, por exemplo, não cumpre nem de perto

mais sobre o gênero crônica, encorajados a mos-

analisada. Tudo o que a matrícula no início do

sua missão. Uma das maneiras de induzir a neces-

trarem seus próprios textos. Alguns tendo refor-

ano promete são oportunidades. Oportunidade de

sária percepção de pertencimento é justamente a

çada a intenção de seguirem profissões ligadas ao

crescimento pessoal, de apropriação de conheci-

programação cultural e, nela, programas como o

magistério e à comunicação (jornalismo, publici-

mento, de capacidade analítica, de senso crítico,

Mais Leitura. Chamando escritores, contadores de

dade e relações públicas). Professores encontran-

enfim, oportunidade de se tornarem cidadãos

história e outros profissionais envolvidos na cadeia

do em minhas palavras o reforço de conteúdo já

melhores. A sociedade lhes deve esse direito, pois,

do livro e da leitura, o Sesc promove essa oportu-

trabalhado em sala de aula, ou a preparação para

daqueles que souberem aproveitar – e esperamos

nidade e também se beneficia com seus resultados.

temas que ainda estão por vir. Agentes culturais

que sejam muitos – os ganhos serão revertidos

Nessa altura, quem acompanhou o raciocínio

e bibliotecárias do Sesc recebendo consultas sobre

em desenvolvimento para todos. Contudo, nem

até aqui pode pensar que, na teoria, tudo parece

outros programas e tendo a oportunidade de di-

sempre essa compreensão fica muito clara ao jo-

funcionar. Mas, e na prática? Eis a grande notícia:

vulgar a totalidade dos serviços ofertados nas se-

vem, principalmente quando a oferta parece dis-

na prática, só melhora. Estive em 2013 levando

des regionais. Isso ninguém me contou, eu vi e vivi.

sociada de seu entorno. O contato com os livros

Rubem Braga para Taquara, Caxias do Sul, Bagé,

Agora, cumprindo meu dever de ofício (como

e – importante! – com escritores, desmistifica e

Santana do Livramento, Uruguaiana, Chuí, Lajeado

bom cronista), desejo finalizar dando atenção a dois

aproxima os estudantes do mundo letrado. Ain-

e Santa Cruz do Sul. Em todo lugar, trocas de afe-

detalhes menores, singelos, insignificantes. Porém,

da mais quando a produção cultural é abordada

to e um sabor de quero mais. O alvo foram jovens

sintomáticos. Primeiro, lembrando meus tempos de

de modo interdisciplinar: toda formação escolar

a partir dos 14 anos de idade. Também professo-

menino, sei muito bem o poder de estouro de ma-

se vê justificada. Papel exemplarmente cumprido

res que se dispusessem a acompanhar a palestra,

nada do sinal que noticia o período de recreio (ou

pelo programa Mais Leitura.

enriquecendo-a com suas participações. E posso

intervalo). E, espremido pelo tempo exíguo, fui alertado por um professor que havia batido a sineta do recreio antes de eu concluir as leituras programadas (repare, eu não vi nos alunos a esperada ansiedade em partir). Perguntei para os jovens: querem sair ou escutar até o fim? Todos ficaram. Uau! Por fim, em Lajeado, ganhei uma caricatura, numa iniciativa muito bacana de um dos jovens. Crise, onde está a crise? É certo que ela existe, sim, mas some quando vislumbramos oportunidades. Simples assim: Mais Leitura, mais oportunidades, menos crise. A quem não entendeu, o desenho explica.

Oficina do escritor Rubem Penz trabalhou com as crônicas de Rubem Braga Foto: Divulgação Sesc/RS


LEITURA

segundo SEMESTRE

2013

65

OS SONHOS NÃO ENVELHECEM – HISTÓRIAS DO CLUBE DA ESQUINA

SANGUE E CHAMPANHE – A VIDA DE ROBERT CAPA

O CLUBE DO FILME David Gilmour

UM DIA COMO OUTRO QUALQUER

Alex Kershaw

Intrínseca

Rivane Neuenschwander

Márcio Borges

Editora Record

Geração Editorial

Cobogó Gilmour é um crítico de cinema que

“Se uma fotografia não está

mora no Canadá e trabalha para o

Um dia como outro qualquer é

Em tempos de muita polêmica

suficientemente boa é porque

Festival Internacional de Cinema

o primeiro livro monográfico

sobre biografias autorizadas ou não,

o fotógrafo não chegou

de Toronto. No livro, conta sua

da artista brasileira Rivane

recomendo a leitura deste excelente

suficientemente perto.” Esta talvez

trajetória com o filho de 15 anos.

Neuenschwander. Produzido em

livro. Esta espécie de biografia coletiva

seja a frase que melhor defina Robert

Gilmour está desempregado no

ocasião de uma exposição que

é um relato liberto de qualquer rigor

Capa, um dos melhores fotojornalistas

momento que seu filho adolescente,

itinerou por diversas cidades

de estilo, mas, ao mesmo tempo,

do século 20 e um dos mais

em um momento de desilusão – mal

nos Estados Unidos e na Irlanda,

fidelíssimo ao espírito que fez surgir

audaciosos fotógrafos de guerra de

na escola, sem se entender com a

o livro é mais do que um mero

em Minas Gerais uma geração capaz

todos os tempos e que revolucionou a

mãe, usando drogas –, vem morar

registro das mostras, sendo uma

de grafar sua marca na Música

profissão ao fundar uma cooperativa

com ele. Gilmour o recebe de braços

referência fundamental sobre

Popular Brasileira (e na minha, na

de fotojornalistas, a Magnum, ao

abertos e, num ato de desespero,

a obra da artista. Seu trabalho

nossa vida). Borges se apresenta

lado do amigo Cartier Bresson. Esta

traça uma estratégia para aumentar

remete a questões provenientes do

como um narrador privilegiado

biografia reconstrói a vida do Capa,

a autoestima do filho usando a

mundo cotidiano, explorando uma

dos momentos que precederam a

partindo da Budapeste fascista, onde

magia do cinema.

poética relacionada à linguagem

ascensão de Milton Nascimento, a

nasceu, passando pela Berlim nazista

O pai faz uma proposta ao filho, na

e a esferas geopolíticas. Mostra

grande estrela, sem deixar de passar

e por todo o terror da Guerra Civil

qual ele poderia parar de estudar

uma percepção de mundo de

por nomes também luminosos como

Espanhola e da 2ª Guerra Mundial,

desde que assistam juntos a três

uma sutileza peculiar na arte

Wagner Tiso, Toninho Horta, Fernando

culminando com sua morte, em 1954,

filmes por semana, escolhidos por

contemporânea. “Talvez toda a

Brant, Beto Guedes, Lô Borges,

aos 41 anos, ao pisar em uma mina

Gilmour, para depois debaterem

arte de Rivane Neuenschwander

Ronaldo Bastos, ele próprio e muitos

na guerra da Indochina. O livro é

sobre o roteiro, direção, atuações

busque ser apenas um diálogo

mais. Registra o feliz encontro de

fascinante (ok, sou fotógrafo, e Capa

e narrativa. Eles formam “O Clube

infinito do olhar com o peso das

pessoas num ambiente alimentado

sempre foi um ídolo!), mas Kershaw

do Filme”, um livro emocionante,

pálpebras num piscar de olhos”,

pela cultura e pela fraternidade. Entre

surpreende pela riqueza dos detalhes

que mostra a criatividade de um pai

diz Paulo Herkenhoff. O livro

eles, de tudo se fez canção, história e

e pela escrita fluente e elegante,

para resgatar e ajudar seu filho a

tem textos de Lars Bang Larsen,

sonhos – que seguem encantando e

revelando um Capa humano, mas

entender um pouco o mundo que

Herkenhoff, Richard Flood e

jamais envelhecem.

ainda assim mítico.

vive e principalmente se entender.

Yasmin Raymond.

RUBEM PENZ

ANDRÉ FELTES

RODRIGO CASTELHANO

MARINA CAMARGO

escritor

REPÓRTER FOTOGRÁFICO

DIRETOR E PRODUTOR DE CINEMA

ARTISTA VISUAL



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA



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