Revista Arte Sesc - nº 15

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15

primeiro SEMESTRE

2014 ISSN 1984-056X

O FESTIVAL DAS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS Também nesta edição

MOSTRAS DESTACAM O FAROESTE DE JOHN FORD E O CINEMA ALEMÃO CONTEMPORÂNEO EXPOSIÇÃO VIAJANTE DE CARLOS VERGARA CIRCULA PELO RIO GRANDE DO SUL



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


08

40

30

artes cênicas

caderno de teatro

música

08 Publicação em doses das notas dos ensaios

30 Caderno de Teatro traz o relato do ator

40 Festival Internacional Sesc de Música, em

do espetáculo O patrão cordial, da Cia.

Cláudio Dias, da Cia. Luna Lunera,

Pelotas, impulsiona a carreira de jovens

do Latão, na visão do ator Ney Piacentini;

de Belo Horizonte, sobre a vivência em

músicos, que estabelecem contatos e têm a

e o aprendizado dos atores no processo,

grupo, o processo de produção dos

oportunidade de tocar com os professores,

sintetizado pelo dramaturgo e diretor

espetáculos em repertório que estarão

músicos consagrados

Sérgio de Carvalho

no 9º Festival Palco Giratório; e um texto

15 Teatro de objetos da Cia. Gente Falante representa o Rio Grande do Sul no Palco Giratório Nacional 19 Divagações cênicas de Patrícia Fagundes,

do professor Jean-Luc Moriceau, que dirige a formação doutoral do

pedagogia do sopapo, faz um resgate das

Institut Mines-Telecom/Télécom Ecole

origens do "grande tambor", que quase

de Management – França, sobre o

desapareceu no final do século 19

espetáculo Prazer

da Cia. Rústica, que completa 10 anos

de Leandro Anton, faz uma homenagem fevereiro deste ano

e trabalho continuado

DIRETORIA Zildo De Marchi

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Everton Dalla Vecchia

Diretor Regional Sesc/RS

www.sesc-rs.com.br

46 O sopapo de todos os papos, ao músico Giba Giba, que faleceu em

28 Oigalê: 15 anos de estrada

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

43 Artigo de Richard Serraria, Por uma

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura

Jane Schöninger

Coordenadora de Cultura

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. General Zeca Neto, 1085  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403

Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


48

56

59

CINEMA

ARTES VISUAIS

literatura

48 Mostra A América por John Ford exibe

56 Sesc realiza itinerância da exposição

59 Artigo do professor de literatura, jornalista

oito filmes do diretor que deu origem ao

Viajante: experiências de São Miguel

e escritor Flávio Aguiar analisa a obra de

gênero faroeste e que entrou para história

das Missões, com telas, lenços,

Qorpo-Santo, falecido em 1883, considerado

do cinema, inspirando até mesmo o Cinema

montagens de fotografias em 3D do

por alguns o precursor do teatro do absurdo

Novo brasileiro

artista Carlos Vergara

e sacramentado por Guilhermino César como "o manso louco do Guaíba"

52 Encontro com o Cinema Alemão, mostra 61 Leitura

realizada pelo Sesc em parceria com o Goethe-Institut que circula pelo Rio Grande do Sul em 2014, apresenta um fragmento da produção contemporânea

BALCÕES Sesc/SENAC

NÚCLEO DE ATENDIMENTO

Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3490.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 3º andar  55 3423.5403 Santiago  R. Pinheiro Machado, 2232  55 3251.5528 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Vacaria  R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

São Luiz Gonzaga  R. 13 de Maio, 1297  55 3352.6225 Três Passos  Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146

Coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Design Editorial

Rua Mariante, 200  Sala 02  51 3013.1330 90430-180  Porto Alegre/RS

Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Grace Prado

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

CAPA

Foto de Claudio Etges do espetáculo Aqueles dois no 8º Festival Palco Giratório, em Porto Alegre


primeiro SEMESTRE

2014

6

cultura para todos A arte descentralizada chega aos mais diferentes locais, disseminando a cultura, formando plateias e instigando o pensamento crítico. Com o Arte Sesc – Cultura por toda parte, temos levado variadas manifestações artísticas a todas as regiões gaúchas. Com projetos como o Circuito Palco Giratório, por exemplo, trazemos ao RS um resumo do trabalho desenvolvido no restante do Brasil. Os 30 espetáculos que circulam pelo país destacam-se pela diversidade cultural das companhias de teatro selecionadas, pelas variadas linguagens, estéticas e pelos temas regionais. Na entrevista especial dessa 15ª edição da Revista Arte Sesc, é possível conferir o relato de Paulo Fontes, da Cia. Gente Falante, grupo gaúcho que participa do Circuito Nacional Palco Giratório 2014 e que já está em turnê pelo Brasil. Eles, assim como os demais grupos selecionados pelo projeto, além da circulação por 120 cidades, estarão presentes no 9º Festival Palco Giratório Sesc/POA, que acontece em maio deste ano. O Festival também conta com apresentações de grupos convidados, como a Cia. do Latão, também presente nas páginas a seguir, com textos de Ney Piacentini e Sérgio de Carvalho. Destacam-se, também, a homenagem de Leandro Anton, coordenador do Quilombo do Sopapo, ao mestre Giba Giba, e o Caderno de Teatro, com a Cia. Luna Lunera. A publicação contempla, ainda, artigos e matérias relacionados à Cia. Rústica, Oigalê, Mostras de Cinema Alemão e de John Ford, Festival Internacional Sesc de Música, Carlos Vergara, Qorpo-Santo, Sopapo, entre outras pautas. Boa leitura!

Zildo De Marchi

Everton Dalla Vecchia

Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac

Diretor Regional Sesc/RS


primeiro SEMESTRE

2014

Obra de Carlos Vergara Sem tĂ­tulo, 2011 Monotipia e pintura em lona crua 130 x 80 cm

Foto: Cesar Duarte

7


ARTES CÊNICAS

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2014

POR ney piacentini

8

ator da cia. do latão

Ensaio sobre ensaios Publicação em doses das notas dos ensaios de O Patrão Cordial, da Cia. do Latão, na visão do ator Ney Piacentini

1ª dose

contato com a dramaturgia de Brecht. Na oca-

O Sr. Puntila e seu criado Matti foi escrito em 1940,

sião, percebemos o potencial social e popular do

no exílio de Bertolt Brecht na Finlândia. Trata-se de

texto brechtiano, assim como suas facetas patética

uma fábula na qual um fazendeiro está para casar

e cômica. De lá para cá, nos envolvemos em ou-

sua filha com um diplomata. O centro do debate da

tros trabalhos para, em 2011, retomarmos o projeto

peça está na relação de Puntila com seu motoris-

com algumas leituras da obra, mesclando Puntila

ta Matti, que espelha dois modos de dominação: o

com trechos do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Bu-

primeiro arcaico e violento, quando o proprietário

arque de Holanda. Esta segunda tentativa, de dar

de terras está sóbrio, e o segundo moderado e cor-

vida às elaborações de Brecht e Sérgio Buarque, foi

dial, quando o fazendeiro está embriagado.

apresentada na forma de uma resumida leitura en-

Os demais personagens da peça reproduzem

cenada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na

o tema vertebral do texto, envolvendo-se nos ar-

USP, por ocasião das comemorações dos 50 anos do

dis do ambíguo comportamento do patrão. Brecht

instituto criado por Buarque de Holanda.

mesmo a encenou no Berliner Ensemble, na Alema-

Em fevereiro de 2012, começamos a etapa de-

nha, em 1948. No Brasil, uma das mais conhecidas

finitiva de apropriação dos referidos materiais, com

montagens dessa obra foi realizada em 1966, com

vistas a um resultado teatral. O que aqui descreverei,

direção de Flávio Rangel, tendo Ítalo Rossi e Jardel

em doses, é fruto de anotações que fiz durante os

Filho nos papéis centrais, pela Companhia Nacional

ensaios, embora não seja a totalidade das experi-

de Comédia .

ências que o grupo realizou em torno da obra de

[1]

Demonstração de O patrão cordial no assentamento Carlos Lamarca, no município de Sarapuí, no interior de São Paulo Foto: Sérgio de Carvalho

A aproximação da Cia. do Latão ao texto

Brecht. Trata-se de uma visão pessoal e parcial do

de Bertolt Brecht começou há mais de uma dé-

espectro gerado pela equipe da Cia. do Latão, que,

cada. Logo depois de termos feito A comédia do

até o momento da publicação destas notas, conti-

trabalho em 2000, experimentamos, por algumas

nua trabalhando sobre O patrão cordial, nome com

semanas, através da Análise Ativa[2], um primeiro

o qual rebatizamos a criação do poeta alemão.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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1 Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural – Teatro. 2 Segundo Maria Knebel, assistente de Constantin Stanislavski, em seu livro O último Stanislavski, a Análise Ativa é um método prático de compreensão da dramaturgia, em que os atores improvisam sucessivas vezes as situações da peça, de acordo com as indicações da direção, para entender “em pé” o texto, e não via leituras de mesa.

2ª dose

No entanto, ao fazer e refazer todos os dias ideias

seria preciso detalhar as interpretações para que

Como fonte de inspiração para as nossas expe-

e imagens como as chaplinianas, quem nos ga-

os atores adquirissem, simultaneamente, feminili-

riências, assistíamos a filmes curtos do início da

rantiria que não poderíamos chegar em sugestões

dade e sinceridade em cena.

trajetória de Charles Chaplin para estudar seu

aplicáveis a Puntila?

estilo de atuar e, quem sabe, utilizá-lo no modo

Por outro prisma, a postura de Puntila no improviso, que passeava observando os depoi-

como os personagens da peça de Brecht se com-

3ª dose

mentos daquelas mulheres, seria a de encanto

portariam. Em uma dessas pequenas películas,

Pelo fato de termos, nesse processo, somente duas

e não de repulsa como eu experimentei na oca-

Chaplin representa um bêbado, e a associação

atrizes no elenco e ainda por não nos limitarmos

sião. O patrão, alcoolizado, agiria na contramão

com o estado de embriaguez do Sr. Puntila foi

ao physique de role das atrizes e atores, três dos

do que cometi, vendo beleza, sem deboche, nos

imediata. Acontece que se inspirar no gênio de

nossos intérpretes – Carlos Escher, Renan Rovida e

relatos da dura e árdua vida rural, captada pela

Carlitos é tarefa complexa. Contudo, paulatina-

Rony Koren – prepararam um fragmento cênico, a

pena honesta de Mário de Andrade. Novamen-

mente, o diretor Sérgio de Carvalho conduzia o

partir de textos de O turista aprendiz, de Mário de

te, observamos que a primeira tendência de um

nosso olhar para o que poderia nos interessar:

Andrade, que davam voz a camponesas brasileiras

ator é trabalhar dualisticamente, ou seja, se um

“Observem como ele dá vida aos objetos que o

das décadas de 1940 e 1950. Este cruzamento par-

fazendeiro se depara com um grupo de campo-

rodeiam. O seu casaco se torna animado e por

tiu da direção, que pretendia inserir o fazendeiro

nesas, ele inercialmente entraria em oposição a

isso ele se atrapalha tanto com a roupa. Temos a

Puntila no universo rural nacional, deslocando-o

elas. Mas no caso do realismo dialético, que está-

impressão que o casaco tem vida e que Chaplin é

de seu contexto europeu, como na obra de Brecht.

vamos reaprendendo, o personagem poderia ser

o objeto diante de sua própria vestimenta.”

Além da mistura de homens representando mu-

dois: mesmo que a sua função de patrão o levasse

Essas recomendações nos deixavam intriga-

lheres, havia outro desafio que era o de atores fa-

ao autoritarismo, porque não tê-lo, naquela pas-

do, pois éramos desafiados a procurar uma co-

zendo se passar por camponesas. Por conseguinte,

sagem, como afável e contemplativo?

micidade ao mesmo tempo simples, sofisticada e

foi requisitada a atenção para evitar a tipificação,

rica em detalhes. Ao nos metermos a fazer algo

que normalmente vemos no teatro, tanto nos ca-

4ª dose

semelhante a Chaplin, tínhamos em mente um

sos de inversão de gêneros quanto de classe so-

Em um novo experimento de ensaios, formulado

pequeno roteiro para a execução dos fragmen-

cial, ou da mimese de figuras urbanas em agrárias.

pela atriz Adriana Mendonça, foi proposto para o

tos, embora sempre com liberdade para o ines-

Simplificando, é tarefa difícil dar vida a mulheres

grupo uma transcrição teatral de um trecho ex-

perado. Nos improvisos, algo interessante surgia,

camponesas sem descambar para a caricatura. Na

traído do filme mudo de D. W. Griffith, Lírio par-

porém, em boa parte das vezes, fracassávamos.

primeira amostragem, isto não aconteceu, todavia

tido. Transportamos a atmosfera melodramática do cinema para o tablado, e a cena ganhou alguma vida, distinta do filme e com pouca relação com os demais temas que estávamos tratando. Mas justo pelo seu deslocamento foi vista com bons olhos pela direção, ainda que não viesse a ter utilidade imediata. Para o elenco, encenar uma sequência de ações sem o uso de palavras, como foi aquele caso, pareceu-nos produtivo, por um ângulo que, para tal propósito, é necessário tecer a trama apenas imaginariamente, povoando as cabeças com falas internas. A prática de falar mentalmente, sem a emissão de palavras, assemelha-se ao que se passa constantemente em nossas consciências na vida real. Podemos, aparentemente, permanecer em silêncio, embora, por vezes, estamos continuamente em diálogo mudo com as pessoas e com as coisas que nos rodeiam, e esses pensamentos mobilizam


ARTES CÊNICAS

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2014

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o corpo todo. Em cena, acontece de não levarmos

essa a questão a ser enfrentada naquelas sessões.

em conta de que modo reagimos à realidade dos

Sabíamos que estávamos exercitando algo que

acontecimentos do mundo, por isso o exercício foi

não era fluente para nós, embora soubéssemos da

importante: por nos ter dado a oportunidade de

sua importância, justo pelo poder de ampliação do

pensar em cena, sem o imperativo da fala.

nosso repertório: com alongamentos, nossos movimentos em cena, quem sabe, seriam melhores e,

5ª dose

se somados ao aprendizado coreográfico, seriam

A preparação corporal a que o bailarino Milton

muito úteis com certos passos em danças que a

Kennedy nos submetia teve suas peculiaridades.

peça poderia exigir.

Parte dos atores, inclusive eu, sentia dificuldades em fazer as aulas de alongamentos, acompanha-

6ª dose

dos de alguns movimentos coreográficos. É fre-

Seguindo uma dinâmica que permite avanços e

quente que parte dos atores brasileiros não tenha

retomadas do que já havia sido levantado em nos-

uma cultura de treino físico permanente. Essa des-

sos treinos, lançamo-nos a um exercício cênico-

continuidade no trabalho corporal se manifesta

-musical no qual um ator cantaria o trecho de uma

quando se tem pela frente um preparo consistente,

música, e um colega se acoplaria cenicamente à

como era o caso da nossa parceria com o ex-in-

canção. Tentamos nos colocar em tempos-ritmos

tegrante do Balé da Cidade de São Paulo. Mesmo

diferentes nas intervenções, feitas a partir das can-

percebendo a nossa limitação, Milton requeria, em

ções, de modo a não nos harmonizarmos com as

suas aulas, que fôssemos enfrentando, gradativa-

músicas, mas, sim, criar contrastes.

mente, pequenos desafios, em busca de uma maior flexibilidade e maleabilidade muscular e rítmica.

Espetáculo mistura O Sr. Puntila e seu criado Matti, de Brecht, com trechos de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda

Fotos: Divulgação Cia. do Latão

Se alguém propusesse uma canção lenta ou introspectiva, outro colega poderia contracenar

Todavia, havia resistências da nossa parte.

em velocidade alterada, porém mantendo a re-

Pela falta de hábito, nossos corpos nem sempre

lação com a ideia do parceiro. Ricardo Monaste-

respondiam às orientações de Kennedy, contudo

ro, por exemplo, entoou um trecho que parecia

estávamos lá, praticando. Desenvolver habilidades

ser um canto gregoriano, e eu entrei pedalando

que nos são próximas é confortável e o mesmo não

freneticamente uma bicicleta na frente do que

se pode afirmar sobre nossas incapacidades. Era

seria uma igreja, olhando para trás, como se fu-


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

11

gisse de alguém. Renan Rovida puxou um tom

Puntila, questionando aquela prática, pois, para

Essa postura de fazer a máquina teatral fun-

religioso e Adriana Mendonça fez uma garota

ele, os trabalhadores deveriam estar na labuta.

cionar, preenchendo o espaço com palavras e ar-

sedutora, que para ele se insinuava, com uma

Ao ver a atriz Helena Albergaria em cena, tratei-a

ranjando coisas para fazer o tempo todo durante

ponta de vulgaridade.

como se a minha filha Eva estivesse no meio dos

uma improvisação, vem do ator que quer dirigir

Na verdade, estávamos colocando à prova

camponeses, ao que Helena me respondeu que eu

internamente o ritmo das coisas. É um comporta-

as teorias que Martin Eikmeier vem desenvolven-

mesmo (Puntila) havia pedido a ela (Eva) que des-

mento que tem origem na ansiedade de “mostrar

do há anos, cujo bojo é a desarmonização entre

se aulas de corpo para os empregados, coisa que

serviço” e não do personagem em reagir com os

música e cena, o que contraria a expectativa de

o fazendeiro não lembrava.

próprios pensamentos, o que proporcionaria ou-

o que comumente se faz no teatro e no cinema.

Depois que fizemos o improviso fiquei pen-

tras posturas mais próximas ao realismo. Não é tão

Quer seja uma música lenta que leva os atores a

sando que poderia ter agido de outro modo,

simples para um diretor convencer um ator de que

agirem com vagar ou o contrário, quer seja uma

apenas perguntando a respeito do meu estranho

a sua pressa em resolver uma cena é inútil em de-

trilha sonora ágil que provoca uma dinâmica cé-

pedido: “Em que momento eu havia solicitado

terminados momentos.

lere nos intérpretes. Nos termos de um realismo

que ela fizesse ginástica com os peões? Eu es-

Mais tarde, já fazendo ensaios abertos ao pú-

matizado, nem sempre é o que acontece. Podemos

tava bêbado?”, mas deixando que Eva contasse

blico, Sérgio me disse que Puntila (renomeado em

estar em um consultório de um dentista onde toca

como teria sido aquela ordem esdrúxula. Deveria

nossa adaptação como Cornélio) poderia ser um

uma música suave e internamente estarmos muito

ter mandado que ela me mostrasse o que havia

sujeito que mais recebe dos outros e pouco age so-

agitados com o fato de, talvez, não termos dinheiro

preparado e assistir ao tal alongamento com os

bre eles. É um proprietário que não tem as mesmas

para pagar o tratamento dentário, mas temos que

empregados. Assim a cena ficaria nas ações, nos

ânsias do ator Ney, desatinado a falar sem respirar,

fazer a consulta, pois o dente já está caindo.

gestos e na boca dela e não comigo falando du-

não vivenciando a fundo as situações.

rante toda a cena, sem sequer ouvir as respostas 7ª dose

dos outros atores. Esse problema é recorrente em

8ª dose

A partir de uma foto curiosa, sugerida pelo ator

mim e sempre, com toda razão, criticado pela di-

Era a hora de encarar os personagens. Uma atriz

Renan Rovida, na qual se exibia um grupo de

reção. Sérgio de Carvalho sempre nos diz que o

faria Eva (que na nossa versão passou a se cha-

cortadores de cana fazendo ginástica no meio de

importante é vivenciar as relações dentro do jogo

mar de Vidinha ou Vivi) e os demais se revezariam

uma plantação, lançamo-nos em uma sequência

das ações, ouvindo como personagem os parcei-

fazendo o diplomata-noivo de Vivi, dentro do sis-

em que aconteceria uma espécie de ginástica la-

ros em cena e não como um ator, como no meu

tema Coringa, em que o mesmo papel é feito por

boral dos camponeses, como se faz em empresas

caso, tentando manter a energia do improviso em

diferentes atores. A recomendação era lutar contra

urbanas. Terminei entrando na brincadeira como

alta voltagem.

a afetação do diplomata, mostrando seus esforços


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

12

3 Brecht retirou de Stanislavski esta dialética da atuação: “Ao representar um bêbado, não demonstrar sua volubilidade, mas sim seus esforços em parecer sóbrio.”

em ser másculo. Em um e outro instante, o ator

My name is Lolyta e eu não posso

Carlos Escher conseguiu, em meio aos improvisos,

brincar com garotos

com Escher e Koren, foi arrebatora. Ela mostrou

um lampejo do que seria atuar com duas forças em

Meu coração é do papai, you know, the

uma Vidinha/Eva cantando e dançando como uma

luta dentro do personagem: um homem que não é

proprietaire

diva bêbada, acompanhada por dois peões de seu

totalmente heterossexual, procurando se conven-

A performance de Helena, que a coreografou

pai, num estágio de embriaguez que não existe no

cer, diante de sua noiva, que tem desejos por ela.

Enquanto se divertem na quadra de

texto de Brecht, mas que poderia ser outro cami-

Escher, ao pegar Eva/Vidinha para dançar, de forma

bocha

nho para a personagem. A cena/canção/dança de

viril, assim que os corpos dos dois se colaram, des-

Talvez ainda façam um jogo diferente

Vidinha/Vivi insinuando um striptease agressivo

viou sua cabeça no sentido contrário ao rosto da

Mas quando eu disser não me siga

para o pai, como consequência do fracasso da pos-

atriz Helena Albergaria, fechando suavemente os

Porque meu coração pertence ao papai

sível união entre ela e o motorista Matti, causou

olhos, o que gerou, simultaneamente, um suspiro

espanto e está no espetáculo. A direção foi pro-

romântico, mas também uma rejeição física ao en-

Se o meu coração pertence ao papai

movendo a cena, que se tornou um dos momen-

lace da dança.

Então eu simplesmente não posso dar

tos mais fortes da peça, pois nela Vivi se apresenta

mole

ao pai revoltosa e de aspecto obsceno e grotesco.

meira reação, que busca encontrar uma força in-

Se o meu coração pertence ao

Albergaria é, entre nós, a mais ativa atriz como co-

terna oposta a sua aparência, é uma constante na

papapapapapapapaii...

dramaturga e coencenadora. Tem um despojamen-

A procura por uma atuação contrária à pri-

atuação da Cia. do Latão, embora de extrema difi-

to exemplar que nos incentiva ao risco e à ousadia,

culdade. Nós, atores, parecemos ter uma mola que

Se eu convidar, algum moço ou garota

contudo inimitável. Trata-se de uma energia e um

nos impulsiona para o lugar comum: ao fazermos

Para um sarapatel e tibiribidubi...

modo de ver o mundo característicos, e o melhor

um homem afeminado, vamos para a afetação, ao

Mesmo que seu tamanho me satisfaça

que temos a fazer é nos arriscarmos como ela o faz

mostrarmos um bêbado, não conseguimos pensar

O meu coração pertence ao papai

nos ensaios, ao nosso modo é claro, pois só Helena

que ele tenta disfarçar sua embriaguez. O paradig-

é capaz de propor disparates tão produtivos.

ma stanislavskiano nos escapa, mesmo nos ato-

Se eu convidar um garoto alguma noite

res que já têm experiência com essa pesquisa no

Pra fazer uma boquinha e tibirubiduri...

10ª dose

campo da interpretação. Todavia, o pequeno feito

Adoraria vê-lo pedindo mais

Quanto à festa de noivado que estava em discussão

de Carlos Escher naquele dia revelou que, fazen-

Mas o meu coração pertence

naquela semana, a direção nos encomendou uma

do e errando, mas sempre tentando, seria possível

ao papai

espécie de prólogo da cena que mostrasse Puntila

[3]

compreender, em cena, a ideia do realismo contraditório, proposto pela direção. 9ª dose O exercício mais surpreendente, oriundo do elenco, foi uma parceria entre Martin Eikmeier e Helena Albergaria, segundo uma proposta da atriz. Eles fizeram uma adaptação da canção de Cole Porter, cantada por Marilyn Monroe, My heart belongs to daddy, sendo que a primeira versão da letra foi, mais ou menos, a seguinte:

Personagens foram construídos a partir de exercícios de improviso

Foto: Divulgação Cia. do Latão


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

13

4 Pela descrição de Dario Fo, em seu livro Manual mínimo do ator, “grammelot” é uma palavra de origem francesa, inventado pelos cômicos “dell’arte” e italianizada pelos venezianos, que pronunciavam “gramlotto”. Apesar de não possuir um significa intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se portanto, de um jogo onomatopeico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, como o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo.”

(Cornélio para nós) preocupado com os gastos que

O debate era pertinente para termos mais claro

Em alguns casos, creio que conseguimos al-

aumentavam a cada momento. Preparamos um

em que estágio se encontrava, diante daqueles

cançar o que a direção nos propunha, em outros

trecho em que o fazendeiro vê empregados abrin-

acontecimentos, a dependência econômica entre

não. Na ação em que Cornélio decide jogar fora

do muitas garrafas de champanha, comidas saindo

os dois personagens. Isto acabou por gerar uma

todas as garrafas, na penúltima cena da peça,

dos fornos sem parar, um serviçal chegando com

pequena frase na boca do noivo: “A grandeza de

resolvemos destacar o instante em que o patrão

um barrilzinho dizendo: “Sr. Puntila, vamos ter que

um homem se mede pelo tamanho de suas dívidas,

impede o seu motorista de tocar nas garrafas,

abrir este também....”, com o dono respondendo:

quer dizer, da sua generosidade...”

quando este se dispõe a ajudá-lo a se livrar das

“Esse não, você não sabe o quanto me custou...” e

bebidas. Com um gesto de quem dá uma ordem

assim por diante. A direção pareceu ter aprovado

11ª dose

brusca com a mão direita, o proprietário manda o

a experiência, mas mudou a dinâmica, misturando

A tônica dos ensaios continuou sendo a busca

seu empregado ficar parado, interrompendo o seu

os planos, dando a eles simultaneidade, sujando-

das ênfases nas ações, dentro das experiências na

movimento de quem atiraria os preciosos líquidos

-os e os desorganizando para que ficassem mais

sala de trabalho. Quais seriam as atitudes físicas

do alcoólatra.

próximos da agitação que é uma cozinha de uma

primordiais de cada cena da peça? O que estaria

Em outra parte da peça, quando Cornélio e

festa de casamento, introduzindo o adido e a Vivi

acontecendo corporalmente entre os persona-

o adido Hélio se deparam com Vivi e Matti (re-

nesse contexto.

gens? Esta abordagem se diferenciava de uma lei-

nomeado como Vitor no papel conduzido pelo

Lá pelas tantas, conversamos sobre uma in-

tura imediata do texto de Brecht, que poderia dar

ator Rogério Bandeira) saindo do banheiro juntos

dicação do original na qual Puntila/Cornélio, para

a entender que os problemas da trama eram de-

depois de uma suposta relação sexual, fizemos

lembrar o nome do diplomata, saca de seu bolso

batidos verbalmente, uma vez que os personagens

Cornélio agarrar com as mãos o pescoço da fi-

uma nota promissória. A origem deste documento

falam muito nos atos do original. Mas a direção

lha, ação que levou todos os demais envolvidos

de dívida foi motivo de larga discussão, pois isso

fugia dessa ótica e insistia que buscássemos as de-

na cena a livrar a moça do estrangulamento do

poderia definir melhor a relação entre genro e

finições gestuais. Para isso, em nossos experimen-

pai, com o grupo puxando o corpo do velho num

sogro: se a promissória era do adido e estava no

tos, teríamos que evitar a verborragia, e se possí-

movimento de vem e vai, que lembrou um jogo de

bolso de Cornélio, o que teria acontecido antes?

vel, quase não falar, o que não era uma regra sem

cabo de guerra e que tinha como base as estre-

Quando houve o encontro em que o proprietário

exceções. Como já tínhamos em nosso repertório

polias chaplinianas. As dificuldades dessas buscas

resgatou a promissória? Era uma dívida do diplo-

as pantomimas chaplinianas e/ou o “grammelot” ,

eram as de unirmos algo que poderia ser estiliza-

mata contraída junto com o futuro sogro ou com

esses recursos serviriam para evitar diálogos pura-

do, mas em registro realista, o que seria distinto

terceiros? Através de um banco ou de um agiota?

mente orais durante as improvisações.

de ou fazer acionar os clichês, ou incorporar a ati-

[4]

tude psicologizada. O “barato” seria o interregno entre as instâncias. 12ª dose Em síntese, as iniciativas dos atores e da direção se uniam, motivando a participação de todos: um entrava com uma imagem, outro com uma frase, de outro lado vinha uma música de Martin e uma polifonia de inquietações tomava conta de nós: “E se acontecesse isso? E se fizéssemos aquilo? Ali não poderíamos mudar para...?” A sala estava habitada pela imaginação acesa da equipe inteira. Não é fácil o convívio diário entre as pessoas de um grupo de teatro. São tantas as idiossincrasias que podem macular as relações que, quando o ambiente se torna criativo e cheio de vida, com um interesse real pelo trabalho, temos que dar vivas!


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

POR Sérgio de Carvalho,

14

dramaturgo e diretor da Cia. do Latão

APRENDIZADO DE ATUAÇÃO NO PROCESSO P

ou alegóricos) que um ator apresenta, mas os

atitudes das pessoas no espaço e tempo da cena.

processos – internos e externos – e as interações

A beleza das palavras teatrais é gestual.

vivenciadas pelo grupo em cena. Ação física é um conceito relacional.

Não concentrar – ao menos de início – os esforços da cena na dimensão comunicacional

Registro de alguns pontos

Não devemos definir o caráter da persona-

do teatro. Acossado pela sua dupla tarefa: cons-

gem, procurar sua “chave”, mas sim os seus vários

tituir o mundo imaginário e, simultaneamente,

importantes para o trabalho

comportamentos em relação aos outros, a partir

transmiti-lo ao público, o ator quase sempre se

dos atores na Cia. do Latão a

de um conjunto de coordenadas: condição social

agarra à segunda e foge das dificuldades da pri-

e psíquica, momento na história, situação obje-

meira. Recusa-se à difícil arte da mediação entre

tiva e subjetiva, finalidade estética e política da

mundos: a transmissão das palavras e atos é visí-

cena. Essas definições, entretanto, são móveis e

vel, a constituição simbólica é invisível, a primeira

fundamentalmente gestuais: importa menos o

dimensão parece mais tangível, mas ela é uma

“A máscara é o que dá sentido e tira”, ouvi a frase

que as personagens dizem e mais como se põem

passagem que pode se tornar obstáculo. A boa

fulminante numa entrevista dada pelo mestre de

(como totalidade) diante dos outros.

emissão vocal, a face trêmula, os olhos vidrados,

partir do espetáculo

O Patrão Cordial

reisado Manuel Torrado, que viveu no interior do

Não devemos acreditar, como quase todo

o peito projetado para a frente – tudo isso pa-

Ceará. Um ator interessado em dialética (e no te-

ator acredita, que as palavras são mais importan-

rece objetivo e chama a atenção para os meios

atro como interesse pela vida) pode se aproximar

tes do que as relações físicas. Na realidade, as pa-

técnicos do ator: ah, que dicção, que belo tim-

dessa compreensão se praticar algumas negações

lavras no teatro só têm mais importância do que

bre, quanta vibração. Já a vida da ficção, a luta da

que visam a superações.

os atos para o ator vaidoso, como moeda de troca

personagem consigo mesma, as dificuldades de

Desse ponto de vista, torna-se importante:

estética, não como lugar da verdade da cena. Só

agir com os outros, os pensamentos sutis, a per-

Não se deixar carregar pela própria energia

é possível buscar o mundo ficcional a partir dos

sistência no desejo do ato – tudo isso parece sub-

interpretativa, aquela que em certa medida é útil

enunciados do texto quando percebemos que as

jetivo demais e depende do que eu costumo cha-

para a superação do medo da boca de cena. “O que

falas são consequências, não causas dramatúrgi-

mar “calma épica”, de uma confiança nos olhos

me alimenta me mata”, “a força necessária para

cas. Que são sustentadas (e muitas vezes entram

e ouvidos do público, além de ofuscar a exibição

fazer uma revolução é a mesma que pode destruí-

em contradição) com um mundo sugerido pelas

imediata dos meios técnicos. Daí o alto desenvol-

-la” e “o remédio se torna veneno”: daí no teatro

vimento de truques e cacoetes comunicacionais

vermos tantos “energúmenos”, atores tomados

no palco e a baixíssima capacidade dos atores de

pela própria energia, sobretudo quando julgam

usarem a imaginação. Só que a autorreferenciali-

que protagonizam a cena.

dade da “presença” em relação ao “mundo repre-

Não podemos nos aproximar da persona-

sentado” gera também uma narrativa: a ficção

gem antes de trabalhar com o conjunto da peça,

de que o privilégio social conferido aos artistas é

sem pesquisar o sentido geral que permite a for-

índice de liberdade.

mulação da posição individual, sem entender as possíveis expectativas geradas pelo material no público. Daí a necessidade de nos considerarmos narradores, dramaturgos em ato, e não apenas executores, de percebermos que as pequenas personagens são tão ou mais determinantes para a experiência geral do que as consideradas grandes, de que no teatro dialético as contradições subjetivas dependem de sua capacidade de concentrar contradições objetivas. Não representar para demonstrar ideias, mas sim atuar numa relação concreta. Não interessam os “estados” (emocionais, psicológicos

Ilustração de Ricardo Bezerra para o programa de O patrão cordial


ARTES CÊNICAS

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2014

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Teatro de objetos da Cia. Gente Falante é o RS no CIRCUITO NACIONAL DO Palco Giratório


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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A Cia. Gente Falante – Teatro de Bonecos é a repre-

Quais são as referências da companhia

madas brasileiras. Mas a promessa é grande e

sentante do Rio Grande do Sul no Palco Giratório Na-

nesta a linguagem ainda pouco explorada

os eventos que contemplam essa linguagem

cional, pela segunda vez, com os espetáculos Louça

no país que é o teatro de objetos?

despontam com toda força.

Cinderella e Xirê das Águas – Orayeyê Ôh. Fundada

A Gente Falante começou às cegas, porém,

em 1991 em Salvador, a trupe transitou por São Paulo

movidos pelo magnetismo quase metafísico

Como foi o processo de produção e o

até fazer da capital gaúcha o seu porto principal de-

que esse fazer teatral promove, curiosos e

percurso dos espetáculos que estão

vido à tradição local do teatro de bonecos ou formas

inquietos continuamos buscando mais hori-

no Palco Giratório Nacional: Louça

animadas, fomentado por inciativas como o Festival

zontes. Mas agora nos sentimos mais respei-

Cinderella e Xirê das Águas – Orayeyê Ôh?

Internacional de Teatro de Bonecos de Canela e as

tados e levados a sério pelas nossas travessu-

O Louça Cinderella, que é o espetáculo carro-

políticas públicas que financiam e amadurecem cada

ras muito focadas.

-chefe da nossa circulação em 2014 no Palco

dia mais a arte. Com 23 anos e 10 espetáculos no

O teatro de objetos é a linguagem mais recen-

Giratório Nacional, nasceu como ideia de uma

repertório, a companhia que se denomina “baiúcha”

te de todas, nascida com o impulso revolucio-

experimentação realizada em uma demons-

acredita na inesgotável variação de possibilidades

nário e contestador de artistas europeus que

tração para uma oficina de teatro de objetos

dessa linguagem mágica, rica e pulsante, um campo

faziam uma veemente oposição ao consu-

que realizamos em 1999, numa Mostra de

fértil e adequado para a exaltação dos mitos, das len-

mismo da revolução industrial na década de

Teatro de Bonecos aqui de Porto Alegre, para

das e da pluralidade étnica do Brasil. Nesta entrevista

1970. Uma reconstrução do olhar que equi-

a qual escrevi um roteiro, quase igual ao que

concedida à Arte Sesc, o diretor, ator, manipulador e

librasse a rigidez objetiva da sociedade con-

ele é hoje. Durante 10 anos, este roteiro en-

bonequeiro Paulo Martins Fontes fala sobre a traje-

temporânea e a disseminação da poesia das

trava e saía da gaveta e era contestado com

tória da companhia, as referências, os espetáculos, a

relações pautadas na importância da afeição

as referências que tínhamos acesso sobre a

circulação por todo o país, a atuação do Sesc como

e na necessidade da diferença como instru-

linguagem e, incessantemente, buscávamos

instituição promotora de cultura e outras curiosida-

mento complementar de crescimento no

mais referenciais. Em 2010, nos enchemos de

des do universo do inusitado teatro de objetos.

resgate do pensamento e das atividades lú-

coragem e fizemos eclodir o Louça e, no ano

dicas, tão naturais nas nossas infâncias. Esse

seguinte, o Xirê das Águas – Orayeyê Ôh (que

movimento construiu referências através de

circulará na programação como repertório)

três companhias que se destacaram: Théâtre

com a parceria da atriz e diretora Liane Ven-

de Cuisine, com Katy Deville e Christian Ca-

turella. Nós nos apaixonamos totalmente por

rignon, Vélo Théâtre, com Tania Castaing e

essa linguagem, ela transgredia a ideia que

Charlot Lemoine, e Théâtre Manarf, de Jac-

tínhamos sobre as formas animadas, definiu

ques Templeraud, fomentando a linguagem.

parâmetros inusitados para as nossas cria-

Mas foi a atriz francesa Katy Deville que fez

ções que nos deixavam mais intimistas e ple-

uso pela primeira vez do termo “teatro de ob-

nos de prazer no ato teatral. Surpreendente a

jetos”, caracterizando essa linguagem à qual

aceitação: o Louça Cinderella circulou muito

se dedicavam há muitos anos, usando obje-

pelos festivais e circuitos nacionais de teatro

tos prontos nas encenações, diferenciando

e foi indicado a sete categorias do Prêmio

do teatro de bonecos e teatro convencional

Tibicuera de Teatro, no Prêmio Açorianos de

de atores, uma linguagem que, para nós da

Teatro 2011, e foi contemplado com três: Me-

companhia, era um bicho assustador e com-

lhor Ator (primeiro prêmio de ator para um

plexo de sete cabeças. Passamos muitos anos

bonequeiro na história do Açorianos), Melhor

temerosos de experimentar e, hoje, é a mais

Cenografia e Iluminação.

desafiadora e deleitosa vertente de executar.

Louça Cinderella conectou o conto de fadas

Na Europa, existe uma infinidade de mani-

clássico com as minhas memórias afetivas,

festações preciosas usando essa linguagem,

relacionadas aos meus avós paternos e suas

no Brasil, infelizmente ainda somos poucas

origens étnicas, suas práticas de aproximação

companhias a experimentarem o teatro de

dos filhos e netos à volta da mesa. Para essa

objetos, ainda novo na cena das formas ani-

produção, nós nos servimos do imaginário


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

17

de uma mesa de chá inglês e seus aparatos

tanto quanto nos encanta e sensibiliza

antigos. Isso nos favoreceu por estarmos em

quando as executamos. Que exale de forma

uma terra onde os antiquários são inúmeros,

delicada o mesmo perfume de sempre, que

e essa pesquisa nos levou a resoluções plásti-

deixamos em infusão para compartilhar com

cas instigantes e também sintéticas.

vocês, uma essência de humanidade e lúdica

Xirê das Águas – Orayeyê Ôh é um segundo

poesia do nosso coração bonequeiro, com a

resgate dos referenciais culturais da cidade de

sutileza da “louça” e beleza com força expres-

origem da companhia e uma conexão com os

siva da artesania “tupi e afro”.

meus avós maternos. Uma homenagem a eles que reverencia a oralidade tal qual é realiza-

O que significa para a Gente Falante

da nas práticas tribais indígenas e africanas,

representar o Rio Grande do Sul

em uma floresta imaginária, usando objetos

nesse projeto nacional, talvez o mais

de artesania indígena e afro de todo o Brasil

abrangente do país?

para contar a lenda da sereia da água doce

Há alguns anos, nós nos lançamos na pesqui-

encantada pelo índio Abaeté (o belo). Esses

sa de novas manifestações dentro da nossa

objetos foram adquiridos nas inúmeras cir-

linguagem – teatro de formas animadas. Na

culações que fizemos Brasil afora, nas quais

verdade, temos consciência de que todas elas

visitamos os núcleos indígenas de cada região

são antiquíssimas, nasceram com as primei-

para conhecê-los um pouco mais, e os objetos

ras descobertas do homem. Nossa busca se dá

de muitos núcleos viraram personagens.

no desafio de hibridar todas elas, estabelecer

Estamos na expectativa de que essas duas

pontes com outras áreas das artes e nos de-

produções encantem por onde passarem,

safiar construindo nossas obras fora da nossa

Xirê das Águas – Orayeyê Ôh é um resgate dos referenciais culturais da cidade de origem da companhia, Salvador Fotos: Vilmar Carvalho


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

18

zona de conforto, explorando as manifestações que mais achamos complexas. Esse processo começou pela hibridação de técnicas de construção das marionetes (luvas so-

bom que esse projeto contempla os vários Louça Cinderella conecta o conto de fadas clássico com as memórias afetivas de Paulo Fontes

olhares no que tange à relação mais íntima e delicada com a plateia. Estamos muito gratos!

Foto: Vilmar Carvalho

fisticadas, marionetes-tringle, bonecos mo-

Como você avalia a atuação do Sesc na

chila...), depois passando para a construção

área da cultura?

de um roteiro que passa do textual à obra

Sem sombra de dúvidas, o Sesc é um dos

mímica (universalizando a comunicação e

maiores mantenedores da cultura no Brasil.

voltando ao textual, supervalorizando o sa-

Em todas as instâncias que fizemos parte da

bor das palavras) e uma dramaturgia pessoal

programação Sesc, observamos que é uma

(reveladora das nossas inquietações e nossa

instituição conectada com três aspectos que

vontade de contribuir para mudar o mundo).

para nós como companhia são essenciais:

Depois, passa pelas reduções (miniaturiza-

atenção para com a cultura local, escolha

ção e estreitamento do contato com o públi-

dos seus repertórios pela qualidade, mas com

co) para finalmente culminar em experimen-

diversidade, e atitude de fazer dialogarem os

tações lúdicas, as que acreditamos serem as

criadores daquela região com o que está sen-

mais simbólicas, universais e delicadas: as do

do produzido no resto do Brasil e no mundo.

teatro de objetos.

Esse triângulo de ações contempla a cultura

Essa linguagem dos objetos, a mais contem-

local com o incentivo necessário para manter

porânea de todas, é a que nos inspira, possui

essa mesma cultura regional viva, ventilando

mais liga com a velocidade do nosso tempo

as manifestações populares e abrindo prece-

presente, infelizmente, tão sem espaço para

dentes para a possibilidade de recriações, com

a poesia, com tanta pressa para as relações,

reconhecimento da identidade local e a pos-

com tantas megamanifestações artísticas

sibilidade de trocas de figurinhas ideológicas

que pouco atingem o indivíduo no seu co-

e técnicas com os outros Brasis através des-

ração. Há muitos anos, nossas escolhas são

se intercâmbio que o Projeto Palco Giratório

feitas pelas pequenas plateias, aquelas que

promove, que muito admiramos.

podemos olhar nos olhos, respirar junto, fe-

Circular para nós é uma reafirmação constan-

char uma egrégora de experiência sinestési-

te da nossa “identidade brasileira”, pois reitero

ca e afetuosa.

que não conhecemos esse nosso grande país.

Ser escolhido para uma segunda circula-

A tecnologia encurtou os caminhos, nos pos-

ção com nossas produções, este ano como

sibilitou uma comunicação simultânea, mas

representante único do Rio Gande do Sul,

não há nada melhor do que sentir na pele as

além de uma honra e muita responsabilida-

temperaturas, os sabores, os sotaques... O con-

de, também é uma chance de mostrarmos ao

vívio direto é fundamental para que tenhamos

público o quanto estamos nos reinventando,

mais material humano para inserir nas nossas

preocupados com o indivíduo, e de levarmos

obras. “Vamos lá mostrar nossas criações e fi-

para quem nos assistiu com o Circo Minimal

car um pouco mais brasileiros.” Essa frase é

(circuito 2008 no Palco Giratório Nacional) a

praxe de ser usada por nós da Gente Falante,

surpresa de outras formas prazerosas de brin-

nas filas de check-in. Cada viagem é um delei-

car e, principalmente, seguir também apren-

te no qual nos descobrimos mais e mais como

dendo. Somos muito gratos à curadoria pelo

artistas criadores, ficamos mais maduros e

olhar generoso para esse atendimento que

conscientes da riqueza e pluralidade de nossas

fazemos menos numeroso – máximo 50 es-

manifestações artísticas brasileiras.

pectadores por sessão – e mais abraçado. Que


ARTES CÊNICAS

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2014

19

por Patrícia Fagundes,

1 Cornago, Oscar. Teatralidade e Ética, in: Próximo Ato: questões da teatralidade contemporânea / organização Fátima Saadi e Silvana Garcia. – São Paulo: Itaú Cultural, 2008.

Diretora da Cia. Rústica de Teatro e professora de direção teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Doutora em ciências do espetáculo pela Universidade Carlos III de Madri; mestre em direção teatral pela Middlesex de Londres www.ciarustica.com

Sobre criações e mortes

cia. rústica 10 anos – divagações cênicas Este texto se compõe basicamente como um tes-

de tempo em que alguns corpos se encontram no

temunho em primeira pessoa. Incompleto, frag-

mesmo espaço respirando o mesmo ar, e certa se-

mentado, parcial, impregnado de possíveis enga-

quência específica de ações, palavras, movimentos

nos, como todo depoimento. Não é uma narrativa

é apresentada mais uma vez. Talvez essa própria

histórica, um artigo acadêmico apropriado ou um

condição efêmera, que conhecemos tão bem, nos

material de divulgação adequado. “Frente à im-

empurre a desejos de solidez. Uma mistura de re-

pessoalidade do poder corporativo, a cena ousa

sistência necessária e anacronismo, nessa época em

articular-se em primeira pessoa” , disse Oscar

que tudo se movimenta tão rápido, e o virtual é nos-

Cornago. Assim aconteceu nas últimas cria-

so meio habitual de convívio, relação e percepção. O

ções da Cia. Rústica, e com frequência na cena

teatro é velho. Está sempre morrendo. Mas renasce,

contemporânea em geral. Algumas vezes, o for-

morre e renasce, e só morrendo pode viver.

[1]

mato já se revela inclusive desgastado, esse falar

“Ser” um grupo e permanecer através dos

explicitamente a partir do “eu”. Desgaste, morte

anos, comemorar 10, 20, 30 anos de existência.

e renascimento; transformação. Assim caminha o

O que garante o aniversário? O nome, o CNPJ, o

teatro através dos tempos.

anúncio do tempo? Um projeto de trabalho? Vários

Como falar desde um narrador impessoal so-

projetos de trabalho? A promessa de editais? Se “é”

bre uma prática que é pessoal e afetiva do início ao

grupo ou se “está” grupo, em fluxo, em devir, aber-

fim? Como falar em “nós” sem incorrer nessa pe-

to a transformações, ventos, pequenas mortes?

rigosa tentativa homogeneizante de uma narrativa

Instituição ou associações livres temporárias em

que esconde diferenças, singularidades e desvios?

desejos de coletivo?

O “nós” de um núcleo de criação teatral, ou o que

Assim como o teatro, os espetáculos, o nú-

se convencionou chamar “grupo”, com frequência

cleo de criação e eu mesma morremos e renas-

muda muito ao longo do tempo. O nós só pode

cemos sem cessar. Ao pensar em 10 anos, penso

existir em constante negociação, com seus dese-

em transformações, ou seja, em mortes e nas-

jos de comunidade e encontro. Estará o conceito

cimentos. A memória se faz difusa e inventiva.

de “grupo” imbuído de desejos de permanência,

Não somos os mesmos, nunca somos os mesmos:

continuidade e eternidade, ou seja, tudo o que o

nem melhor nem pior, diferentes. Meus vários eus

teatro não tem? A materialidade pesada da cena

são diferentes de 10 anos atrás. A Cia. Rústica foi

– corpos, objetos, espaço-tempo real – desaparece

várias ao longo desse tempo. Cada projeto supôs

ao final de cada apresentação. O que poderia ser

diferentes parceiros, histórias, vontades, redes de

nossa “obra” se esvanece no ar. Neste momento

associações. Algumas pessoas permanecem, outras

que escrevo, os espetáculos que dirigi ao longo da

se foram, partidas e encontros, trocas, rupturas,

vida, incluindo os que estão ativos no repertório

colaborações, reinvenções, diferenças. Nenhum

da Cia. Rústica, não existem. São passado e talvez

plano de uniformidade. O heterogêneo e o diverso

desejos de futuro. Só existem no breve intervalo

parecem mais férteis.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

20

Sabemos que não há um caminho para a arte.

se os artistas pudessem salvar as pessoas do que

e ampliado grupo de pessoas, os espectadores, que

A cena contemporânea é um mundo polifônico,

eles próprios acreditam que elas devam ser salvas.

influenciam e são parte da montagem. Não há

divergente, promíscuo (ou cheio de transversa-

Uma pretensão mais simples: compor espaços

cena sem público. O teatro acontece sempre entre,

lidades – mas gosto do conceito de “promíscuo”,

onde talvez possamos nos afetar, espaços de afe-

entre pessoas, entre elementos, objetos, espaços,

porque além de difuso, confuso, misturado, evoca

to e convívio com o outro. Experiências estÉticas

tempos, entre – ocupamos interstícios sociais. No

percepções de sensualidade e relações diversas).

(a grafia é essa mesmo, estÉtica, evidenciando o

entre, nessa espécie de vazio temporário, mundos

Fascinantes e múltiplas possibilidades de criação,

óbvio de certa forma, ética e estética são indissoci-

a explorar.

linguagens, discursos. Tento devorar antropo-

áveis, toda proposta artística implica um conjunto

Nessas explorações, meu papel é de ence-

fagicamente referências que me atravessam de

de opções em relação ao outro, uma ação no mun-

nadora. Também de produtora, tradutora, drama-

todos os lados, certa de que o verdadeiro teatro

do, uma forma de posicionar-se no espaço-tempo

turgista e outras possíveis funções que assumi

é um engodo. Tantas cenas possíveis. Visitamos

que vivemos).

em diferentes projetos. Ainda assim, penso que a

Shakespeare, intervenção urbana, autobiografia,

Cada espetáculo supõe um processo de en-

circo, música ao vivo, depoimento, dança, cabaré,

saios, que constitui uma extensa experiência re-

vídeo, ficções, desejos de real. Costurando esse

lacional intensificada e tensionada pela carga de

Sobre o diretor como artista relacional

patchwork de explorações, o desejo de compor a

desejos, desafios, convívio, conflitos e afetos que

Controverso papel o do encenador (usarei aqui os

cena como possibilidade de encontro entre pes-

circulam em turbulência durante o período de sua

termos “diretor” e “encenador” sem distinção de

soas: entre os artistas envolvidos, entre artistas e

realização. O espetáculo um dia se faz, estreamos,

sentido). Celebrado como autor-estrela ou limitado

espectadores, entre os próprios espectadores. Sem

e essa dimensão relacional do fazer teatral conti-

a “olho de fora”, expulso de alguns processos que

a pretensão messiânica de revelar a verdade, como

nua durante as apresentações, incluindo um novo

se pretendem livres, e efetivamente dispensável

MACBETH Estreia em maio de 2004. Financiamento Fumproarte. Indicado ao Açorianos nas categorias Melhor Direção, Ator, Figurino e Produção. Prêmio de Melhor Figurino.

SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO Estreia em março de 2006. Financiamento Fumproarte. Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo, Direção e Trilha Sonora. Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo, Direção, Ator e Júri Popular. Prêmio Quero-Quero (do Sated) de Melhor Espetáculo, Direção e Trilha Sonora.

A MEGERA DOMADA Estreia em março de 2008. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2007. Indicado aos Prêmios Açorianos 2008 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Ator e Atriz, recebendo os Prêmios de Melhor Ator e Melhor Atriz, categorias nas quais também recebeu o Prêmio Braskem.

EQUIPE: Direção e tradução Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro Vilaverde, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Leonardo Machado, Marcelo Bulgarelli/ Felipe de Paula, Marina Mendo/ Elisa Volpatto, Renata de Lelis, Roberta Savian, Serginho Etchichury, Tadeu Lieselfeld/ Rafael Guerra e Lu Tatiana Cardoso/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora e preparação musical Marcelo Delacroix e Simone Rasslan/ Figurinos Antonio Rabadan/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão e Leonardo Machado/ Assistência de produção Ana Paula Zanandrea/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

EQUIPE: Atuação Álvaro Vilaverde, Carlos Modinger, Elisa Volpatto, Felipe de Paula/ Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Leonardo Machado, Rafael Guerra e Roberta Savian/ Sandra Possani/ Direção e adaptação Patrícia Fagundes/ Tradução Beatriz ViegasFarias/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora Monica Tomasi/ Preparação musical Simone Rasslan/ Figurinos e adereços Antonio Rabadan/ Cenário e objetos de cena Paloma Hernandez/ Assistência de direção Julia Rodrigues/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão e Leonardo Machado/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

EQUIPE: Direção e tradução Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro RosaCosta, Alexandre Scapini, Heinz Limaverde, João Spalding, Julio Andrade, Lisandro Bellotto, Nelson Diniz, Serginho Etchichury e Vanise Carneiro/ Iluminação Jo Fontana/ Trilha sonora Álvaro RosaCosta/ Figurinos Fabiana Pizzeta/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

encenação é o que me define, meu principal ofício.


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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para que o fenômeno cênico exista. No entanto,

que trabalhamos na esfera do imprevisível, posto

mesmo que a pessoa do diretor seja absolutamen-

que humano. As opções e metodologias propos-

te dispensável; não o são suas funções, que serão

tas afetam a vitalidade, a pulsação, a capacidade

sempre realizadas por alguém – en-cena-ção. Co-

de irradiação e inclusive as formas finais de uma

locar uma ação em cena, relacionar elementos di-

montagem. O processo é parte do espetáculo, ain-

versos, articular um discurso, compor, montar.

da que não o identifiquemos claramente, como

Dirigir é um ofício, e gosto de pensar na concretude de um ofício porque pode nos conectar

veias e músculos são parte do corpo. Compreendendo o teatro como um sistema

com a terra, nos afastando do delírio do artista

de relações – isso que acontece entre – acredito

genial superior aos comuns mortais. Como ofício,

que a principal função da direção é criar mecanis-

o papel do diretor está vinculado ao artesanato da

mos provocadores de relações, tanto no espetáculo

cena, a técnicas de composição espetacular que

como no processo de ensaios; mas principalmente

envolvem conhecimentos teórico-práticos sobre

no processo, área de ação intensificada do diretor

espaço, ritmo, tempo, movimento, corpo, cor,

(durante uma apresentação, o diretor não exerce

palavra, luz, sonoridade, atuação, dramaturgia,

um papel decisivo, a não ser que trabalhe também

articulando os múltiplos componentes do jogo

como ator, técnico, produtor executivo; de qual-

cênico. Além dessa dimensão, sua função inclui

quer modo, neste momento o diretor, na condição

o planejamento do processo criativo, que é em si

de diretor, é inútil). Mecanismos que instiguem e

uma intensa e exigente atividade de criação, em

acolham a criação de diversas fontes, redes de estí-

PANDOLFO BEREBA Projeto Teatro para Todas as Idades. Estreia em abril de 2005. Financiamento Fumproarte. Indicado ao Prêmio Tibicuera Melhor Espetáculo, Direção, Ator, Atriz Coadjuvante, Ator Coadjuvante, Figurino, Iluminação, Produção. Prêmio Tibicuera Melhor Trilha Original.

NATALÍCIO CAVALO Projeto Trilogia Festiva. Estreia em março de 2013, no Teatro de Câmara em Porto Alegre. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2012. Indicado aos Prêmios Açorianos 2013 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Dramaturgia, Trilha Sonora, Iluminação, Cenografia, Figurino, Ator. Recebeu o Prêmio Açorianos de Melhor Ator. www.nataliciocavalo.wordpress.com

EQUIPE: Direção e roteiro Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro RosaCosta, Karen Radde/ Marina Mendo, Marcelo Bulgarelli e Vanise Carneiro/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora Álvaro RosaCosta e Simone Rasslan/ Figurinos Antonio Rabadan/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão/ Fotos Alex Ramires

Fotos: Alex Ramirez

EQUIPE: Direção e composição dramatúrgica Patrícia Fagundes/ Atuação Heinz Limaverde, Marina Mendo, Lisandro Bellotto, Priscilla Colombi, Marcelo Mertins e Rossendo Rodrigues/ Trilha sonora Arthur de Faria/ Preparação vocal Simone Rasslan/ Vídeos Mauricio Casiraghi/ Iluminação Lucca Simas/ Cenário Rodrigo Shalako/ Programação gráfica Paloma Hernandez/ Figurino Daniel Lion/ Preparação de danças Clovis Rocha/ Assistência de direção Ander Belotto e Mauricio Casiraghi/ Direção de Produção Patrícia Fagundes/ Assistência de produção Ander Belotto/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

CLUBE DO FRACASSO Projeto Trilogia Festiva. Estreia em outubro de 2010. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2009. Indicações ao Açorianos de Melhor Espetáculo, Melhor Direção, Dramaturgia e Produção. Prêmio Açorianos Melhor Dramaturgia e Melhor Espetáculo pelo Júri Popular. www.clubedofracasso.wordpress.com EQUIPE: Direção e composição dramatúrgica Patrícia Fagundes/ Atuação Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Marina Mendo e Priscila Colombi/ Figurinos e adereços Heinz Limaverde/ Assistência figurinos Francisco de los Santos/ Cenário Álvaro Vilaverde/ Trilha sonora e preparação vocal-musical Simone Rasslan/ Composições e pitacos corporais Cibele Sastre/ Iluminação Claudia de Bem/ Captação e edição de imagens Fabio Lobanowsky/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Morgana Kretzmann e Lisandro Bellotto/ Programação gráfica Paloma Hernandez/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna


ARTES CÊNICAS

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2  BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.

mulos que incitem reações e combustões criativas,

A composição de propostas de ensaio supõe

supõe generosidade e esforço. Claro que muitas

em fenômenos de transformação e descoberta,

uma vertigem criativa. Sempre fico nervosa ao co-

vezes nada funciona. Congestionamentos do pro-

através da associação entre pessoas.

meçar um processo e a cada vez tenho certeza que

cesso, momentos, indisponibilidades, becos sem

A partir dessa perspectiva e do conceito de

teremos problemas, ainda que não saiba exata-

saída que algumas vezes acabam por provocar o

arte relacional de Nicholas Borriaud , que identi-

mente quais. Já desisti de prevê-los, porque traba-

desequilíbrio necessário para transformações. Ou

fica o enfoque da prática artística contemporânea

lhamos nessa dimensão do humano, do afeto e do

travas que emperram mesmo. Nenhuma proposta

na esfera das relações humanas e afirma que “só

corpo, fenômenos em constante mutação. Dirigir

é incrível em si mesma, uma festa não funciona se

há forma no encontro”, podemos definir o papel

envolve razão, sensibilidade, corpo, risco. A escuta

as pessoas não desejarem. Cabe a todos buscarem

do diretor como o de um artista relacional. Con-

é uma ação exigente.

aberturas, interstícios, conexões; a composição de

[2]

duzir um processo de ensaios é articular um me-

Gosto também da analogia entre encenação

microterritórios sociais onde outras realidades são

canismo que só acontece a partir da colaboração

e organização de festas, compreendendo a fes-

possíveis só pode ser uma aventura compartilhada.

entre pessoas; envolve jogo e festa, é uma má-

ta como experiência vital de criação e encontro,

É a necessidade dessas aventuras estÉtica-

quina que provoca e administra encontros, uma

evento relacional e liminar, ao borde do caos, que

-política-sociais, o prazer dos breves êxtases e

experiência na qual os papéis de ator e especta-

provoca o desequilíbrio necessário para quem sabe

epifanias festivas e o desejo dessas comunidades

dor, artista e observador, se alteram constante-

criar novas formas. Além dos inevitáveis proce-

temporárias que o teatro pode inventar que me

mente, e a “obra” é uma produção compartilhada

dimentos de repetição, ordenação e reflexão, um

movem nesse ofício. É o que me mantém nessa

entre várias pessoas. Se o que o artista produz em

processo de ensaios pode estar imbuído dessa di-

navegação insana.

primeiro lugar são relações entre as pessoas e o

mensão festiva profana, que envolve transgressão,

mundo, o diretor é um artista, à medida que pro-

despojamento, convívio, visitas ao improvável, o

põe a constituição de microterritórios relacionais,

desafio do prazer e da alegria nesse mundo ab-

ou seja, um dispositivo de ensaios que gerará um

surdo. Uma forma de encontrar e negociar com a

espetáculo (ou não) que em si é outra proposta

morte, todas nossas pequenas e grandes mortes.

relacional (quer funcione ou não).

Claro que planejar uma festa envolve genero-

O período de ensaios pode ser assim compre-

sidade, certa disposição para servir: queremos que

endido como uma extensa ação de arte relacional,

as pessoas tenham uma experiência significativa,

em que um grupo de pessoas se reúne e realiza

servimos, compartilhamos. Acredito que servir e

determinadas atividades em um certo espaço,

compartilhar são ações que também compõem o

durante um certo tempo. São estabelecidas inúme-

papel do diretor. Importante esclarecer que esse

ras relações pessoais intersubjetivas, além (e com

ponto de vista não implica uma posição de sacri-

frequência derivadas) das atividades específicas.

fício e sofrimento, ao contrário. Sinto um imenso

O artista-diretor propõe para os artistas-atores

prazer quando proponho um exercício, um jogo,

várias situações as quais reagirão de distintas for-

uma vivência, e funciona, pois os atores se trans-

mas, afetando novas propostas; o ciclo de ações-

formam na experiência. Estás simultaneamente

-reações se retroalimenta constantemente e vai

dentro e fora do acontecimento, provocas e ob-

compondo a forma final (espetáculo), que em de-

servas, és ator e espectador; testemunha de mo-

terminado momento é exposta a um grupo maior

mentos intensos, belos e únicos, breves epifanias

de pessoas, o público. A rede de relações então se

que me alimentam nesse contínuo lutar contra

multiplica, sempre mantendo a rede matriz. A obra

moinhos de vento que é o fazer teatral. Servir tam-

é tanto composta pelas relações iniciais como pe-

pouco significa que o diretor tenha a obrigação de

las relações multiplicadas a partir da “forma final”,

ser uma pessoa sempre amável e gentil, que diga

que tampouco é fixa e se altera a cada apresenta-

somente coisas agradáveis e proponha ativida-

ção, pois a forma não é nada senão a própria rede

des amenas, como um alegre massagista de egos,

de relações em ambos planos – matricial e múlti-

animador de torcida ou vendedor de produtos re-

plo. O período de ensaios, assim, já é um período de

quintados. Ao contrário, é preciso desafiar, exigir,

prática artística, já é “obra”, como forma relacional.

provocar, convidar ao risco e à dificuldade, o que

Em repertório DESVIOS EM TRÂNSITO Projeto Trânsitos. Intervenção Urbana. Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2009. Estreia em março de 2010. www.desviosemtransito.wordpress.com EQUIPE: Direção e concepção Patrícia Fagundes/ Atuação Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Marina Mendo e Priscilla Colombi/ Colaboradores Álvaro Vilaverde, Arlete Cunha, Leonardo Machado, Carlos Modinger, Cris Eifler, Vinicius Mello, Julia Rodrigues, Rafael Leidens, Ander Belotto, Rossendo Rodrigues, Mirah Laline, Marcelo Mertins, Lucca Simas e muitos outros


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Foto: Patrícia Fagundes Foto: Fernanda Chemale Foto: Rique Barbo Foto: Adriana Marchiori

O FANTÁSTICO CIRCO-TEATRO DE UM HOMEM SÓ Estreia em 14 de outubro de 2011. Financiamento Fumproarte. Indicação ao Prêmio Açorianos 2011 em todas as categorias possíveis. Prêmio Açorianos de Melhor Direção e Melhor Figurino. www.ofantasticocirco.wordpress.com EQUIPE: Dramaturgia Heinz Limaverde e Patrícia Fagundes/ Direção Patrícia Fagundes/ Atuação Heinz Limaverde/ Iluminação Lucca Simas e Patrícia Fagundes/ Trilha sonora e preparação vocal Simone Rasslan/ Cenário Juliano Rossi/ Adereços, pintura cenográfica e programação visual Paloma Hernandez/ Figurino Daniel Lion/ Preparação corporal Cibele Sastre/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Rochele Beatriz e Priscilla Colombi/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

Álbum de Memórias – anotações

criando pontes entre tradição e inovação, entre a

Em 2004, o primeiro espetáculo sob a expressão

herança dos que vieram antes de nós e de nossos

“Cia. Rústica apresenta" estreou em maio em

desejos de futuro. O teatro elisabetano inspirou

Porto Alegre: Macbeth, no Teatro Dante Barone

grande parte das renovações cênicas do sécu-

da Assembleia Legislativa. Desde então, foram 10

lo 20, foi um fenômeno artístico-social liminar,

anos de produções, invenções, tentativas, encon-

popular e vital, atravessado por contradições,

tros e desencontros. Aqui estão mementos das

que reconhecia e celebrava a si mesmo. Penso

criações, que nesse exato instante que escrevo

que o fascínio dessa dramaturgia só se revela no

não existem, são só memória – ainda que a me-

mergulho, ao sondar cada palavra, buscando os

mória seja algo que está no corpo, e o corpo exis-

vestígios da cena que o papel fossiliza – palavras

te. Reformulando: a memória desses espetáculos

impregnadas da memória de uma cena viva, im-

está espalhada em vários corpos, pedacinhos de

pura e vibrante. Traduzir é um bom método de

experiências fragmentados entre pessoas.

mergulho; traduzi dois textos do projeto. Mesmo

Shakespeare definiu o primeiro projeto

com adaptações que reduziram personagens, as

da companhia. Três espetáculos: Macbeth, So-

montagens contaram com elencos numerosos, o

nho de uma noite de verão e A megera domada.

que sem dúvida é uma insanidade no contexto

A ideia era beber da teatralidade shakespeariana,

de produção em que vivemos no país e na cida-

MIRAGEM Projeto Movimentos Rústicos. Estreia em julho de 2013. Financiamento Fumproarte/PMPA. Indicado aos Prêmios Açorianos 2013 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Dramaturgia, Trilha Sonora, Iluminação, Cenografia, Figurino, Atriz e Ator Coadjuvante. Recebeu o Prêmio Açorianos Especial do Júri. www.projetomiragem.wordpress.com

CIDADE PROIBIDA Estreia em novembro de 2013. Projeto Trânsitos. Contemplado com o Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2012. Intervenção urbana. www.projetocidadeproibida.wordpress.com

EQUIPE: Direção-geral do projeto: Marina Mendo/ Direção do espetáculo: Lisandro Bellotto/ Direção de corpo: Eva Schul/ Atuação: Marcelo Mertins e Marina Mendo/ Vídeos: Miragem Rua (Daniel Eizirik/Leonardo Remor), Miragem Bordado (Rochele Zandavalli/Daniel Eizirik/Leonardo Remor), Globo da Morte (Maurício Casiraghi), Miragem Final (Daniel Eizirik/Leonardo Remor)/ Interferências em bordado sobre fotografias: Rochele Zandavalli/ Desenhos sobre retroprojetor: Cris Bastos/ Luz: Bathista Freire/ Cenografia: Rodrigo Shalako/ Figurinos: Itiana Passetti/ Produção sonora: Alexandre Missel e Marina Mendo/ Operação e mixagem de áudio: Alexandre Missel/ Produção: Marina Mendo/ Fotografias: Rique Barbo, Renata Nascimento ou Charles Lima/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna

EQUIPE: Concepção e direção Patrícia Fagundes/ Atuação Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Karine Paz, Lisandro Bellotto, Marina Mendo, Mirah Laline, Mirna Spritzer, Priscilla Colombi, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Rossendo Rodrigues, Silvero Pereira e Susy Weber/ Cenografia e adereços Rodrigo Shalako/ Iluminação Bahtista Freire/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Rodrigo Shalako/ Assistência de ensaios Karine Paz/ Mirah Laline/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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3 Bausch em Climenhaga 2009, p. 58- CLIMENHAGA, Royd. Pina Bausch. London: Routledge, 2009.

de. Entretanto, há uma intensidade especial que

Macbeth não é uma peça fácil, em seu universo

do, suando, inventando, sentindo, desejando em

emana de muita gente reunida em cena, uma certa

sombrio de violência e degradação, que o pessoal

uma sala durante um certo tempo. Vida e arte

beleza, uma alegria próprias da potência do coleti-

marginalizado do abrigo compreendeu tão bem.

sempre se cruzam na intensidade sensível de um

vo em movimento.

Girando a roda, Sonho de uma noite de verão

processo de criação, em que cruzamos com nos-

As montagens foram apresentadas em lo-

nos levou a outras paisagens, evocando pulsões de

sas fragilidades e desejos. Pina Bausch dizia que

cais muito diversos, incluindo o tradicional e re-

prazer e celebração da vida que suspendem regras

“todos temos os mesmos desejos, todos estamos

quintado Theatro São Pedro e precários salões de

e convenções sociais; a floresta se fez cabaré em

assustados”[3]. Não saímos da mesma forma que

centros comunitários da periferia. A diversidade

nossa montagem. É impressionante como o poder

entramos. E talvez seja o que nos mova a vivê-los.

de espaços implica diversidade de público, o que

de contaminação do teatro se faz presente desde

Mortes, renascimentos, transformação.

constituía uma das ideias do projeto: investigar a

os temas que abordamos, exploramos territórios

Pandolfo Bereba foi o único espetáculo para

possibilidade de uma cena aberta, que dialogasse

e inventamos mundos que nos atravessam, nos

crianças que dirigi, em 2005. Uma bela experiência,

com todo tipo de espectador. É muito recompen-

afetamos uns aos outros de múltiplas e intensas

gostava bastante da montagem, que começou a ex-

sador apresentar fora do circuito convencional do

maneiras. Essa rede não envolve só as pessoas,

plorar aspectos de linguagem que logo foram mais

teatro, onde as pessoas são menos condiciona-

inclui os objetos, o espaço, o tempo, as cores, os

desenvolvidos no projeto Shakespeare, como músi-

das por certos pré-conceitos e convenções. Uma

cheiros, os temas, o texto. Tudo afeta. Em A me-

ca ao vivo e trânsitos entre humor e poesia. Mas a

das apresentações mais efetivas de Macbeth, por

gera domada, por exemplo, exploramos a questão

vida do espetáculo pareceu menos intensa do que

exemplo, aconteceu em um abrigo municipal. Foi

da formação da identidade através dos papéis de-

poderia ter sido, frente à receptividade que gerava

um ensaio aberto, ainda nem tínhamos o espetá-

signados socialmente e das relações que estabe-

nas pessoas que o assistiam. Houve certa dificulda-

culo na íntegra, mas vivemos um daqueles mo-

lecemos com o outro; sem dúvida conflitantes, já

de de navegar no mercado específico do “teatro in-

mentos arrebatadores de encontro que o teatro

que onde há alteridade, há conflito. E justamente

fantil”, como se integrasse um universo paralelo que

pode oferecer – mesmo não se tratando de uma

esse aspecto conflitivo marcou o processo, entre

desconheço. É quase como se “teatro infantil” fosse

peça encantadora, inclusive marcada pela lenda

tangos e exercícios de composição. De qualquer

outra forma cênica, diferente de “teatro”... Entendo

de ser uma “peça maldita”, cujo nome não pode

modo, é improvável sair ileso de experiências de

teatro para crianças como uma possível linguagem

ser pronunciado. Lendas à parte, com certeza

criação em coletivo, com várias pessoas respiran-

entre tantas possíveis na cena contemporânea, com


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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seus próprios desafios e prazeres, e certamente com o mesmo teor de exigência artística que supõe qualquer outro tipo de montagem. Quero voltar a esse fazer pelas possibilidades de criação que oferece, assim como investigar possibilidades de ações artísticas no espaço público, por exemplo. (Não estou interessada em monogamias cênicas.) Desvios em trânsito foi a primeira experiência da Cia. Rústica com intervenção urbana. Partindo do desejo de provocar o estranhamento no seio do cotidiano, pequenos desvios que podem gerar transformações de percepção, pontes entre o ordinário e o extra-ordinário, desenvolvemos um modelo que já experimentamos em vários formatos, com diferentes pessoas, em diferentes locais e cidades. Os atores se deslocam por uma área determinada do centro da cidade, desenvolvendo suas pequenas e estranhas ações, sem pedir atenção de ninguém. Em certos intervalos de tempo, encontram-se em uma breve ação coletiva e seguem caminhando. A intervenção sempre muda porque é uma ação que só faz sentido a partir da observação e reação das pessoas que estão habitando a rua naquele momento, em relação com quem está “desviando”. Infiltrações

Natalício Cavalo Foto: Alex Ramirez

Sonho de uma noite de verão Foto: Luciana Menna Barreto


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

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poéticas. O acontecimento mais significativo é efe-

que os espetáculos integrem diferentes projetos e

contros com resistências. No entanto, as histórias,

tivamente a reação das pessoas.

apresentem linguagens cênicas diversas, partem da

lembranças, sensações a princípio individuais se

Com Cidade proibida, outra experiência na

memória como impulso criativo e são atravessados

ofereciam como matéria bruta comum, ressignifi-

rua, propõe-se outra relação: convidamos as pes-

por elementos autobiográficos da equipe. Mas não

cando experiências por meio da troca com o outro.

soas a irem até um lugar que não iriam durante a

é o eu isolado que “fala”, e sim sua relação com ou-

Além das experiências pessoais da equipe, os fios

noite, parques e praças da cidade, espaços públicos

tro, considerando que o eu só se define em relação.

dessa trama incorporaram referências de muitas

de possível convívio que se tornam proibidos pela

Nós nos vemos através do outro. A memória é aqui

outras fontes, como livros, filmes, internet, pessoas

ameaça potencial de violência. A ideia é resgatar

uma máquina relacional.

entrevistadas nas ruas. A montagem se fez como

a possibilidade desse convívio, imaginar coleti-

Clube do Fracasso investiga a temática que o

um mosaico de percepções, relatos, sensações,

va e ativamente outras realidades para a cidade,

próprio título indica, direcionando o olhar ao erro

memórias transformadas, reflexões e questiona-

compreendida como espaço de memória, relação e

e à fragilidade humana, na tentativa de inverter a

mentos sobre o tema do fracasso, articulando con-

convívio, cuja arquitetura invisível é feita de redes

lógica dos discursos de sucesso e superioridade.

ceitos com a matéria bruta da vida e do cotidiano,

de afetos. Um espaço compartilhado com o outro.

A dramaturgia foi composta em sala de ensaio, a

transmutando experiências individuais em experi-

Esse compartilhar começou no processo criativo,

partir de perguntas e provocações que poderiam

ência compartilhada.

onde reunimos um grupo numeroso de artistas

ser respondidas de forma escrita, performativa,

O fantástico circo-teatro de um homem só

diversos, celebrando outra vez a potência do co-

visual: o primeiro grande fracasso da vida, lista

define um processo distinto, cujo projeto começou

letivo em movimento, e se estende ao estar-junto

dos 10 maiores atos ridículos cometidos, desastres

a ser discutido em 2008. O ponto de partida foi

com o público no parque ou praça durante a noite,

amorosos, desejos de sucesso, o que mais teme,

o desejo do ator Heinz Limaverde de montar um

embaixo do céu.

vivências específicas, etc. Através desses dispositi-

solo que reunisse diferentes personagens, afetos

A memória como matéria bruta para a

vos, os atores e a direção compartilhavam as pró-

e aspectos de sua relação com a cena. Entre vá-

criação esteve presente em Cidade proibida e

prias experiências, atualizando o vivido. Relembrar

rias ideias e possibilidades discutidas ao longo dos

vem marcando o processo de várias montagens

episódios de “fracasso” consistiu sem dúvida um

anos (enquanto escrevíamos fragmentos e proje-

desenvolvidas pela companhia desde 2010. Ainda

desafio, que nos levou a zonas dolorosas e en-

tos solicitando financiamento), escolhemos como


ARTES CÊNICAS

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2014

27

embrião um texto de quase duas páginas escrito

recomposta a partir de minhas fragmentadas lem-

com os testemunhos, histórias e relatos oferecidos

pelo ator, que esboçava um início de biografia pau-

branças de suas próprias memórias, de pequenos

a partir de suas próprias experiências, acionando o

tado por suas primeiras experiências com a arte. O

resquícios do tempo, da dolorosa experiência da

dispositivo relacional que resgata vivências e atu-

circo aparecia nesse relato e acabou tornando-se

morte de alguém que amamos, de invenções com-

aliza o vivido, nesse espaço virtual entre o palco e

o vetor aglutinador da diversidade de referências

partilhadas, reconhecendo a memória como uma

a plateia onde se dá o teatro. A memória é matéria

que o projeto evocava, abrigando tanto a autobio-

criação conjunta que trama o tempo e o espaço.

comum de reinvenção.

grafia como a representação de personagens-tipo

Através de Valter-Natalício, ousamos percorrer

Para concluir as anotações desse álbum, me

fictícios. Além de constituir uma experiência im-

o imaginário do pampa gaúcho, o que pode ser

parece inevitável relembrar um episódio singular

portante na vida do menino que vivia no interior

assustador pela carga de clichês que evoca, ain-

em que arte e vida se cruzam, potencializando-

do Ceará, o circo compõe um imaginário coletivo

da que seja parte do que somos, paisagem poética

-se mutuamente. Durante os ensaios de Natalício,

potente, alimentado não só pelo próprio como

e existencial marcada pela amplitude e exposta à

pensando a morte, o tempo e revivendo a memória

também pelo cinema, televisão, brinquedos, músi-

violência dos ventos. Um espaço que habitamos e

da morte de meu pai, eu estava grávida, a barriga

cas, etc. A memória pessoal do ator disponibilizava

que outros habitaram antes de nós.

crescendo junto com o processo. Uma coincidên-

assim um fértil canal de conexão para tornar-se

Miragem também propõe um cruzamento

cia quase ilustrativa: vida e morte como partes de

memória comum, sem abdicar de sua singulari-

entre a memória dos artistas e a de nossos ante-

um só movimento. Criações e mortes, nascimentos,

dade. Durante o processo, a experiência de Heinz

passados por meio de outros caminhos. O proje-

transformações. Os que vieram antes de nós e os

no interior do nordeste de alguma forma se co-

to, de autoria de Marina Mendo, marca uma nova

que virão depois. Meu pai e minha filha, o teatro

municou com a minha (e com a de toda equipe)

experiência na companhia, é o único espetáculo

e o tempo, eu e o outro, desejos e afetos, o nós

na capital do estado mais ao sul do Brasil, e nos

que não dirigi, tampouco integro a equipe criati-

mutante de qualquer coletivo. Como esse álbum

tornamos cúmplices no picadeiro que inventamos,

va. Vi o projeto nascer e crescer, assisti ao ensaio,

continuará? Respiro diante do que não sei. Verti-

tramando uma dramaturgia na qual os fragmentos

acompanhei o processo, mas não sou parte ativa

gem da criação, mortes e transformações, nossos

se confundem e dialogam.

da criação. Assim, me parece necessário incorpo-

desejos e voos.

Em Natalício Cavalo, a memória está enlaça-

rar as anotações da própria Marina: “Miragem,

da à temática da morte, compreendida como zona

em tradução simples, significa um efeito ótico de

de sombra que define a experiência humana, como

refração da luz que leva o observador a ter uma

espaço mnemônico que articula passado, presente

visão e não saber se ela é real. O projeto como

e futuro. Pensar a morte, a nossa e a dos mortos

um todo nasceu da minha vontade de descobrir

que carregamos, é pensar o tempo e articular uma

e experimentar outros modos de dar tratamento

teia de memória que define quem somos e abre

às memórias, reciclar objetos, fotografias e vesti-

possibilidades a quem podemos e queremos ser –

dos rasgados, costurar suas histórias e, sobretu-

afinal, somos aquilo que lembramos, e aquilo que

do, conviver com o fato de que minha vó estava

esquecemos também. De forma distinta à Clube do

morrendo. Tinha a intenção de apresentar esse

Fracasso, nessa montagem a temática não é abor-

material para artistas que se expressam através

dada de forma dissertativa, tampouco fragmenta-

de outras linguagens, como a fotografia, as artes

da em várias histórias pessoais. Os atores pouco

visuais, o vídeo, a música, e acredito que nessa

falam de si mesmos, tentando recompor uma his-

interação começamos fazer ver aquilo que não

tória de alguém que não conheceram, através de

existia, nossas miragens”.

vestígios de vida: cartas, fotografias, recortes de

Talvez seja através da singularidade, da expe-

jornais, relatos. Tecem fragmentos e imaginam o

riência vivida ou da memória como corpo, que se

que não sabem, já que “a vida de Natalício é uma

estabeleça a condição para uma zona compartilha-

teia cheia de espaços vazios, um livro com pági-

da de experiência. Nós nos percebemos no outro

nas desaparecidas e outras inventadas”. Natalício

através da vivência marcada na pele – não através

Cavalo não é um personagem totalmente ficcio-

da precisão dos fatos, mas da experiência vital que

nal, sendo inspirado em Valter Fagundes, meu pai,

lembramos por vias tortas e incompletas, que nos

que morreu no início deste século. Sua história é

faz. O público ativa processos de reconhecimento

Desvios em trânsito Foto: Luciana Leão


primeiro SEMESTRE

ARTES CÊNICAS

2014

28

Oigalê: 15 anos de estrada e trabalho continuado


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2014

Por Giancarlo Carlomagno,

29

ator e produtor da Oigalê

Existe uma relação afetuosa da Oigalê com o Pal-

tico, mas, sim, de uma vivência do artista com a

e de muitas faxinas na nossa sede. Uma data sig-

co Giratório. Uma relação de carinho iniciada na

estrada e as cidades. A estrada faz parte da dinâ-

nificativa compartilhada em parceria com o Sesc/

década passada, mais precisamente no ano de

mica de trabalho e contribui bastante para a con-

RS justamente no mês de maio, mês de aniversário

2006, quando tivemos o privilégio de compor o

solidação de outra importante escolha do grupo,

do grupo e de mais uma edição do Festival Palco

seleto grupo de escolhidos para circular pelo Brasil

a construção de um repertório.

Giratório. Nesta edição, estaremos desenvolvendo

afora. Lugares fascinantes, diversidade constante,

A manutenção dos espetáculos em repertó-

o projeto Residência Oigalê, com a apresentação

estados e cidades longínquas, pessoas maravilho-

rio exige do coletivo uma caminhada constante,

de cinco espetáculos de teatro de rua, varal de fo-

sas, ampliação do nosso horizonte, intercâmbio

permanente. Um crescimento diário que precisa

tos, museu, exibição do DVD Uma década de teatro

cultural intenso... Projeto incrível! Uma fantástica

ser compreendido, planejado e almejado com

e o lançamento do livro Oigalê 15 anos. Trata-se

e inesquecível circulação pelo norte, nordeste e

perseverança. Desde 1999, foram três espetácu-

de uma oportunidade única e expressiva, em que

centro-oeste brasileiro.

los de teatro de sala, sendo um para o público

exercitamos a possibilidade de mostrarmos os

Aliás, circulações ou corredores culturais de

adulto (Cara queimada – 2001), dois para o pú-

trabalhos de forma intensa. De “trocarmos”, lite-

teatro de rua sempre foram uma das caracterís-

blico infantil com pesquisa no teatro animado e

ralmente, com o público e com os outros coletivos

ticas desenvolvidas pela Oigalê nesses 15 anos

de sombras (Uma aventura farroupilha – 2006 e

teatrais que estarão participando do festival com

de estrada. Literalmente de estrada. Executa-

Era uma vez... Uma fábula assombrosa – 2008) e

essa mesma linha de pesquisa continuada. Essas

da de forma simples, potencializada, com baixo

outros seis espetáculos para o teatro de rua (Deus

“trocas” de gentilezas ou experiências são impor-

custo orçamentário, desenvolve gratuitamente

e o Diabo na terra de Miséria – 1999, Mboitatá –

tantes e muito significativas, pois nos fortalecem,

apresentações, oficinas, seminários e bate-papos

2001, O Negrinho do Pastoreio – 2002, Miséria

modificam os espetáculos, o coletivo de atores e,

sobre o teatro de rua com a população das cida-

servidor de dois estancieiros – 2009, O baile dos

fundamentalmente, a cada um de nós, transfor-

des escolhidas. Desde os “primórdios”, com Deus

Anastácio – 2012 e Circo de horrores e maravilhas

mando-nos em seres humanos melhores. Mais

e o Diabo na terra de Miséria dirigindo de Porto

– 2013). O trabalho desenvolvido na rua pela Oi-

atentos ao indivíduo ao lado. Mais sensíveis.

Alegre ao FIT de Belo Horizonte (I Corredor Cultu-

galê, em sua maioria, vem investigando incessan-

Um momento ímpar, de comemoração e feli-

ral-2000), passando pelas três fronteiras latino-

temente em busca de um teatro de rua pampiano.

cidade. Uma celebração compartilhada com a po-

-americanas (Argentina-Uruguai-Paraguai 2002),

Um teatro de rua “gaucho”, fronteiriço aos três

pulação porto-alegrense com o que sabemos fazer

até bandas além-mar no Festival de Oeiras com os

países – UY, AR e BR. Essa pesquisa de linguagem

de melhor, arte pública, horizontal e democrática!

coirmãos portugueses (2009) são alguns exem-

contínua contribuiu para projetar o grupo nacio-

plos. As “farsas gaudérias” da Oigalê já estiveram

nalmente como uma das importantes referências

em mais de 20 estados brasileiros e preparam-se

gaúchas no teatro “callejero”.

para circular por mais quatro estados nordestinos

Em 2014, estamos comemorando nossos pri-

ainda inéditos no currículo da companhia. Não se

meiros 15 anos de grupo. De trabalho continuado,

trata apenas de uma turnê, de um circuito artís-

de pesquisa de linguagem, de treinamento musical

Oigalê, tchê!

Miséria servidor de dois estancieiros Fotos: Kiran

Negrinho do Pastoreio

Foto: Carlos Sillero


caderno de teatro

PRIMEIRO SEMESTRE

2014

30

#12 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, o ator Cláudio Dias conta a trajetória da Cia. Luna Lunera, de Belo Horizonte, e o processo produtivo dos espetáculos desde 2001, quando junto com os atores Cláudia Corrêa, Isabela Paes, Fernanda Kahal, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Zé Walter Albinati encenou ainda na escola de teatro da Fundação Clóvis Salgado, Palácio das Artes, Perdoa-me por me traíres. A companhia participou da quinta edição do festival em 2010 e retorna neste ano com quatro espetáculos do seu repertório.


caderno de teatro

PRIMEIRO SEMESTRE

2014

31

Por Clarissa Eidelwein Jornalista

Luna lunera Entre tangos, boleros, traição, solidão, angústia, alegria e outros delírios

Fotos: Gustavo Jacome, Guto Muniz, Adriano Bastos e Claudio Etges


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

32

A Cia. Luna Lunera participa do Festival Palco Giratório com quatro espetáculos: Nesta data querida, Aqueles dois, Cortiços e o ainda inédito nos palcos gaúchos, Prazer

Antropologia Teatral e teatro-dança

mos este o nosso primeiro trabalho porque conti-

O primeiro espetáculo foi Fuleirices em Fuleiró, de

nuamos com ele já como grupo. O espetáculo era

Mário Farias Brasini, com direção de um diretor

impregnado dessas duas ideias: do teatro-dança,

carioca que faleceu no ano passado, Marcos Vo-

do expressionismo, e tecnicamente carregado da

gel. É um grande diretor que morou muitos anos

Antropologia Teatral. Estivemos em Porto Alegre,

em Belo Horizonte e grande conhecedor do teatro

em 2002, no Theatro São Pedro.

de rua. O espetáculo percorria o centro da capi-

Um caso interessante aconteceu no São Pe-

tal mineira passando por três estações contando

dro. O cenário era composto por uma caçamba

a história de um herói, Nadim Nadinha, em luta

inteira de terra vermelha, e era um grande evento

contra o Rei ditador. Para o espetáculo de palco,

descarregar essa terra no teatro recém-reformado

convidamos Kalluh Araújo, que é um grande ence-

e, da faxineira a dona Eva (Sopher, presidente da

nador, para dirigir o espetáculo Perdoa-me por me

Fundação Theatro São Pedro), todo mundo foi as-

traíres, de Nelson Rodrigues. Os dois espetáculos

sistir a terra entrando. E foi muito legal quando

tiveram grande repercussão de público e de crítica

ela veio nos cumprimentar ao final e disse que o

e, por isso, decidimos continuar juntos como gru-

público havia gostado muito. Tínhamos achado o

po. O trabalho desenvolvido pelos grupos em Belo

público frio. “Não, o público gostou muito e reagiu

Horizonte é uma referência para os novos artistas

de uma forma que é muito característica quando

na cidade. Fomos influenciados por grupos como o

gosta do espetáculo”, explicou ela. Então para nós

Galpão, Giramundo, Sonho e Drama e tantos ou-

foi um grande prazer apresentar em 2002 esse es-

tros. Acreditávamos que juntos era mais fácil.

petáculo em Porto Alegre.

Naquele momento em Belo Horizonte, final dos anos de 1990, os artistas da cidade eram muito

Processo colaborativo de criação

influenciados pela Antropologia Teatral do Euge-

Em 2003, o Grupo Galpão, por meio do Galpão

nio Barba, principalmente na escola de teatro do

Cine Horto, um centro cultural mantido pelo cole-

Palácio das Artes. Estudávamos no curso os livros

tivo há 15 anos com propósito de fomentar os ar-

do Barba, o pensamento e, de alguma forma, ten-

tistas locais, de provocar discussão artística, nesse

távamos chegar próximo às técnicas. Dois grandes

momento, queria discutir a criação de espetáculos

eventos, o Festival Internacional de Belo Horizonte,

através do processo colaborativo de criação. Para

que ainda existe, e o Encontro Mundial de Artes

esse projeto, convidaram o Antônio Araújo, do Te-

Cênicas, que agora acontece em São Paulo, trou-

atro da Vertigem, o Luís Alberto de Abreu, grande

xeram para BH grandes artistas com projeção

dramaturgo brasileiro, da Escola Livre de Santo

internacional. Tivemos a oportunidade de assistir,

André, o Paulo de Moraes, do Armazém do Rio de

por exemplo, a espetáculos do Barba com o Odin

Janeiro, o Fernando Mencarelli, da Universidade

Teatret, demonstrações de trabalho com Rober-

Federal de Minas Gerais (UFMG), e juntamente

Somos um grupo de atores que nasceu a par-

ta Carreri e Julia Valey. Então, naquele momento,

com a Cia. Maldita deram início a um projeto onde

tir de um encontro no Centro de Formação Artísti-

estávamos muito imbuídos daquelas ideias todas

criaríamos espetáculos pelo processo colaborativo

ca do Palácio das Artes, Fundação Clóvis Salgado,

e, de alguma forma, o contato direto com aque-

sistematizado pelo Araújo e pelo Abreu.

em Belo Horizonte, um grande centro cultural que

les grandes artistas é claro que influenciou nossos

abriga escola de teatro, de música e de dança. Nós

dois trabalhos.

Convidaram quatro grupos, quatro diretores e quatro novos dramaturgos para criarem quatro

nos encontramos em 1998, ingressando na escola

No caso do Perdoa-me por me traíres, o Kalluh

espetáculos dentro desse processo. Durante nove

de teatro. São três anos de curso de formação e no

Araújo buscou inspiração no teatro-dança de Pina

meses, os grupos investigariam como é possível

último cada turma monta um ou dois espetáculos.

Bausch através dos espetáculos Café Müller e A sa-

fazer esse processo colaborativo em que diretor,

Naquele momento, optamos por dois processos: 1)

gração da Primavera. Estávamos saindo da escola,

ator, dramaturgo e outras funções têm o mesmo

experimentar o teatro de rua. 2) Montar um espe-

e somamos esse frescor com relação aos estudos

poder na criação. É uma horizontalização do pro-

táculo de palco.

da Antropologia Teatral às ideias dele. Considera-

cesso, diferente da criação coletiva, na qual todo


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

33

mundo faz tudo. Cada um tem a sua função, res-

Observatório de Criação

ponde por ela, mas você pode dentro de uma outra

Desde 2005, no Não desperdice a sua única vida,

função sugerir um determinado encaminhamento,

passamos a convidar pessoas que se interessam por

e esse encaminhamento vai ser testado na execução

artes cênicas, público em geral, e pessoas que estão

da cena. Não basta ter uma ideia, tem que executá-

em volta da nossa sede, no Bairro Floresta, para as-

-la e de, alguma forma, relacionar essa criação, essa

sistir aos nossos ensaios. Não são ensaios abertos,

cena à exposição, ao diálogo com o público. Esse pú-

que é o espetáculo pronto. O que apresentamos

blico era formado por outros grupos participantes

ainda está dentro de um embrião, não existem

do projeto. Então, fomos nos visitando e dialogando

cenas prontas, existem ideias que são executadas

para criar esses espetáculos. No caso da Luna Lune-

muitas vezes para aquele público que está assis-

ra, criamos Nesta data querida com direção de Rita

tindo. Chamamos isso de Observatório de Criação.

Luna Lunera

Clemente e dramaturgia de Guilherme Lessa. O texto

E isso ganhou uma força em 2007 com Aqueles

Gregório Barrios

inédito teve como ponto de partida, no começo da

dois, quando o público começou a ser convidado

pesquisa, o tema a solidão nos grandes centros ur-

todas as semanas a assistir a um pouco do nosso

Luna lunera, cascabelera

banos. Partimos da letra de uma música do Moreno

processo e contribuir para a criação do espetáculo.

Ve dile a mi amorcito por dios que me quiera

Veloso, filho do Caetano, que dizia:

Nós dialogamos muito com os parceiros, com os

Dile que no vivo de tanto padecer

artistas locais para construir os espetáculos.

Dile que a mi lado debiera volver. Luna lunera, cascabelera

– Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não tenho mais

Aqueles dois: Contato Improvisação

Ve dile a mi amorcito por dios que me quiera

ninguém.

e as Ações Vocais de Stanislavski

Dile que me muero que tenga compasion

No Luna Lunera, cada espetáculo é composto por

Dile que se apiade de mi corazon.

Essa frase, de alguma forma, dá início ao nos-

um elenco diferente. É uma característica do grupo,

Ay lunita redondita

so projeto e vamos atrás de reportagens de jornais

nos colocamos ou não à disposição para cada tra-

Que la espuma de tu luz

de Belo Horizonte, onde encontramos persona-

balho e, quando você não está numa determinada

Bañe mis noches.

gens e os apresentamos em forma de cena. Então,

montagem, está livre para pesquisar outras coisas,

Ay lunita redondita

criamos 15 cenas para cada personagem a partir

para poder investigar outros assuntos. Quando vol-

Dile que me has visto tu

dos estímulos dados pelo diretor, pelo dramatur-

tamos e nos encontramos para trabalhar, aquele

Llorar de amor.

go, pelo iluminador, pelos próprios atores. Depois

ator que saiu chega alimentado de informação e de

De amor.

improvisamos o encontro dessas personagens em

alguma forma compartilha com o grupo os seus in-

vários ambientes reais e imaginários e acabamos

teresses naquele momento. Quando inicia o proces-

chagando em uma festa infantil, por isso esse

so de Aqueles dois, eu cheguei da Europa com Con-

A canção fez parte da trilha sonora do primeiro

nome do espetáculo, que vai ser apresentado em

tato Improvisação, técnica corporal criada por Steve

espetáculo do grupo de formandos do Centro

Porto Alegre no Festival Palco Giratório.

Paxton, e propus uma oficina. Desde o nosso pri-

de Formação Artística do Palácio das Artes

Esse jeito de fazer teatro compartilhado in-

meiro espetáculo, tivemos um contato com a dança,

(Cefar), Fundação Clóvis Salgado, de Belo Ho-

fluenciou todos os nossos espetáculos seguintes.

mas nunca com esta técnica. A oficina de Contato

rizonte. Perdoa-me por me traíres, de Nelson

Não desperdice sua única vida em 2005, Aqueles

Improvisação, juntamente com outra proposta pelo

Rodrigues, cheio de referências de tangos e

dois em 2007, Cortiços de 2008 e Prazer de 2012

ator da companhia Odilon Esteves, gera o início do

boleros, em determinado momento todos os

refletem esse estudo do processo colaborativo, e a

que vai ser o processo do espetáculo. Odilon Esteves

atores em cena, todas as personagens viviam

cada processo nós experimentamos novas formas

estava interessado na época pelo método das Ações

algum tipo de delírio ao som de Luna Lunera.

de realizá-lo. Nós entendemos as funções de cada

Vocais, parte menos conhecida dos estudos de Sta-

A música, emblemática e potente, passou a re-

um dentro do processo: entendemos a função do

nislavski. As Ações Físicas são mais conhecidas.

presentar aqueles atores que não tiveram dúvi-

diretor, do dramaturgo, do ator e dos outros com-

Esses dois interesses – Contato Improvisação

ponentes. Em determinado momento do processo,

e Ações Vocais – estimularam o restante do grupo

cada um passa a exercer essas funções, sempre co-

para que fôssemos pesquisar um pouco esses uni-

locando isso em diálogo com o público.

versos, dando início ao processo de Aqueles dois.

da ao batizar a Cia. Luna Lunera, uma lua que inspira, encanta, uma lua enamorada.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

34

Exatamente neste processo, a gente entende as

do público o que seria um espetáculo. A primeira

sação, então convidamos um coreógrafo de Minas

funções de direção, de dramaturgia e de atuação

mostra durou quatro horas e, a partir desses en-

Gerais, o Tuca Pinheiro, que também trabalhou no

e constrói um espetáculo dirigido, escrito e atua-

contros semanais, dessas observações do público e

Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, um cara superinte-

do pelos próprios atores da companhia. Não teve

avaliações dos próprios atores, fomos construindo

ressante, para dirigir teatro pela primeira vez. Era

nenhuma função externa. Cada ator tinha uma

o que foi Aqueles dois. Até hoje é nosso espetácu-

um mergulho maior nesse universo da dança e na

semana para desenvolver um projeto de direção,

lo de maior repercussão, o que mais rodou Brasil

pesquisa corporal, que era o nosso foco.

que podia ser qualquer coisa. Já tínhamos estuda-

afora. Percorremos quase todas as capitais, só fal-

A gente não queria sair dançando, a gente que-

do o Contato Improvisação, já tínhamos estudado

taram Palmas (TO) e Porto Velho (RO). O espetáculo

ria fazer uma investigação mais corporal e o Tuca

as Ações Vocais, então escolhemos um texto para

também foi apresentado em espanhol no México.

traz uma técnica da dança que também se aplica ao

poder aplicar esses estudos, que foi o texto do Caio

Aqueles dois participou do Palco Giratório de 2010

teatro que são os Sistemas Corporais. Nos ensaios,

Fernando Abreu. Dividimos o período em semanas

em Porto Alegre e mais 14 cidades gaúchas.

trabalhamos como se movimentar, por exemplo,

de direção, cada um teria uma semana para fazer

utilizando a ideia da pele, ou como realizar movi-

uma proposta de direção de acordo com o seu

Dança e os Sistemas Corporais

mentos através dos ossos. Ou como realizar movi-

olhar, com suas próprias referências.

Cortiços, que também estará em Porto Alegre em

mentos que nascem no centro do corpo e vão para

Ao longo dessas semanas, em vez de blocos

maio, é resultado de um namoro com a dança. Lá

as extremidades, ou das extremidades em direção

isolados, cada ator/diretor foi aproveitando a ideia

na escola em 1998, 1999, éramos muito influen-

ao corpo. Criamos personagens a partir disso e ao

do outro, uma direção ia alimentando a outra.

ciados pela Cia. de Dança de Minas Gerais, que

mesmo tempo juntamos esse trabalho com a obra

Em vez de nos isolarmos, fomos somando ideias

também faz parte da Fundação Clóvis Salgado, no

O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Com isso, fizemos

e referências. O resultado foi um número muito

Palácio das Artes. É uma companhia muito con-

Cortiços, um espetáculo muito imagético e ao

grande de material, cenas, imagens, e com isso

ceituada, sem falar no Grupo Corpo, nos outros

mesmo tempo muito físico. Não é um espetáculo

construímos um grande roteiro, e com esse roteiro

grupos, no Primeiro Ato, sempre foram grupos de

de dança, mas carrega estas duas questões: a fisi-

convidamos o público para participar dos ensaios.

referência. Sempre tivemos muita proximidade,

calidade e o universo imagético que a dança ge-

Não tínhamos um espetáculo, existia um roteiro

desde o Perdoa-me, com o teatro-dança de Pina

ralmente trabalha. Um diálogo frutífero do teatro

de imagens e cenas e fomos improvisando diante

Bausch, Aqueles dois, através do Contato Improvi-

com a dança.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

35

Caldeirão de referências Quando começamos a criar o projeto para o novo espetáculo, Prazer, em 2011, pensamos em voltar para a direção e a dramaturgia compartilhada. De novo os atores donos de todo o processo. Tínhamos completado 10 anos de companhia e pensamos: e agora? O que somos e para onde vamos? O que está pegando pra cada membro do grupo? Quais as angústias pessoais? Naquele momento eram questões que estavam muito fortes para nós e fomos encontrar respostas e novas perguntas em um fragmento do livro da Clarice Lispector Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, no qual um dos personagens diz que: ... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso. Não tínhamos a pretensão de adaptar o texto. O apesar de..., apesar de tudo, do caos urbano, da vida maluca, da pressão que vivemos o tempo inteiro, apesar das angústias, temos que continuar e temos que buscar a alegria, buscar a felicidade, buscar o encontro, o compartilhamento. Então, é nesse momento de caos e de tentativa de encontro que achamos na Clarice uma resposta para nossas perguntas. Porém, ao ler Clarice tivemos muitas outras perguntas. Além da direção e dramaturgia compartilhada, convidamos quatro colaboradores externos para nos provocar de alguma forma, porque cada um dentro do grupo tem uma intensão de

O espetáculo Aqueles dois foi apresentado no Festival Palco Giratório, 2010 Fotos: Claudio Etges


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

36

pesquisa, de pensamento específico sobre determi-

para o Brasil um festival de arte digital alternati-

residência artística. Ficamos 20 dias em Holstebro

nada coisa que é muito diferente. Aliás, nós somos

va que trouxe muitos artistas internacionais, mas

realizando treinamentos, vivendo a sede do Odin,

muito diferentes. Por isso, queríamos contar com

que também dialogava com artistas locais, minei-

dialogando com os atores, com o Eugenio Barba,

pessoas que nos colocassem em um outro lugar.

ros. Nesse contexto, reencontramos Eder Santos,

com as pessoas do mundo inteiro que passam por

O primeiro é Jô Bilac, um novo dramaturgo

um videoartista importante de Minas e conhecido

aquele lugar. Foi uma vivência muito intensa que

brasileiro de grande destaque, um cara superjo-

nacionalmente. Ele tinha assistido Aqueles dois no

influenciou não só a técnica, mas a própria dra-

vem e muito inteligente que a gente conheceu no

Rio de Janeiro e pensou que podia trabalhar co-

maturgia do espetáculo. A gente cozinha em cena

Festival Internacional de São José do Rio Preto.

nosco e nós também tínhamos vontade de traba-

no Prazer porque a gente cozinhou em cena lá na

A partir daí, começamos a dialogar com ele e com

lhar com ele. Então foi um namoro que deu certo e

Dinamarca. Nos intervalos do trabalho, íamos ao

seu grupo, o Teatro Independente, nos tornamos

o Eder veio fazer um trabalho de videoarte dentro

supermercado realizar compras, dividíamos as ta-

amigos, passamos a trocar, e o Jô veio fazer uma

do Prazer. Dialogou com a cenografia e dramatur-

refas da cozinha, cozinhávamos, sentávamos junto

orientação dramatúrgica para o espetáculo. Reali-

gia do espetáculo de forma precisa.

à mesa para comer e conversar sobre o trabalho e a

zou uma oficina de dramaturgia e durante o pro-

Ao mesmo tempo, a Isabela foi para o Odin e

vida, e isso influenciou a construção do espetáculo.

cesso pontuações fundamentais para a construção

“experienciou” muita coisa, participou de diversos

Trocávamos muito com atores do Odin que tam-

das personagens e a dramaturgia do espetáculo.

estudos e alguns espetáculos e queria que a gente

bém viviam na sede e outros artistas residentes.

Uma das atrizes do grupo, a Isabela Paes, re-

tivesse alguma vivência dentro daquele universo.

Outra colaboração veio da nossa paixão pela

tornou de uma temporada na França, onde reali-

O objetivo não era apenas aprender técnica, mas

dança, o Mário Nascimento, da Cia. de Dança Má-

zou mestrado e doutorado em comunicação. Nes-

também aprender um pouco da ética daquele gru-

rio Nascimento, que também esteve no Palco Gira-

sas formações, ela entrou em contato com duas

po que completa 50 anos de história, a ética do

tório em Porto Alegre, no ano passado. Ele fez um

vertentes, uma na área da arte digital alternativa,

lugar, como se faz, há tanto tempo, como ficar jun-

treinamento corporal muito grande conosco. Nós

outra foi uma pesquisa com o Odin Teatret. Ela

to por tanto tempo. Então, convidamos a Roberta

tínhamos interesse no trabalho dele e ele no nosso,

havia participado do Perdoa-me por me traíres, foi

Carreri para fazer uma colaboração. No caso da

devido ao Contato Improvisação que experimenta-

embora para Europa e voltou no Cortiços, depois

Roberta, foi mais legal porque, como ela também

mos em Aqueles dois.

de estudar no Odin e também trabalhar com essa

viaja muito, a solução que encontramos foi nós

Todos eles foram colaboradores afetivos, que

arte digital. Nesse processo, ela trouxe da França

irmos ao Odin, na Dinamarca, e lá fazermos uma

tinham um material para trazer para o grupo, mas


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

37

também esta afetividade que sempre buscamos

meus amigos pra beber um champanhe e brindar

para a construção dos trabalhos. O espetáculo Pra-

à vida... É a história da Clarice, né?! Apesar de... eu

zer é reflexo de muitas referências e é um caldeirão

vou buscar a felicidade.” Presenciamos lá no Odin

de informações e influências.

essa referência que se tornou muito forte no espetáculo. Apesar de todos os problemas, das dife-

Residência artística no Odin

renças, a gente vai tentar mais uma vez. E é muito

Éramos seis pessoas da Cia. Luna Lunera no Odin

bacana porque o Torgeir preparou as pessoas que

Teatret, na Dinamarca, os quatro atores: eu, Isabela

iriam substituí-lo nos espetáculos. É bonito isso,

Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves, mais

né?! Como você dá conta de entregar os papéis da

o Zé Walter Albinati, que não está em cena, mas

sua vida para outra pessoa. Foi uma coisa que nos

acompanha todo o processo, e levamos um video-

tocou muito naquele momento. Depois vemos lá

maker, o Léo Pinho, para registrar tudo.

no Odin as fotos do enterro, onde todos os atores

Esta ida para lá era tão especial, a gente es-

estão vestidos com suas personagens mais signifi-

cuta a história do Torgeir Wethal, ator e um dos

cativas para enterrar o outro ator. É muito bonito.

fundadores da companhia que faleceu em 2010,

Contamos a história, sem contar que é a vida

marido da Roberta Carreri. De alguma forma, a

dele. Utilizamos essa história para fazer o que a

história dele nos inspira para o próprio espetáculo.

gente chama no espetáculo de inventário imate-

Antes de morrer, ele recebe a notícia de que tem

rial, o que você deixaria para outra pessoa que não

um câncer e, dentro de poucos meses, deve fale-

fosse material. Um dos personagens, por exemplo,

cer. Então ele convida os amigos para um brinde,

diz: – Ah, eu queria deixar pra você o pôr do sol

porque ele tinha sido muito feliz, a vida tinha sido

mais bonito que você já viu até hoje. Então isso vai

muito bacana com ele. Ele queria brindar à vida

acontecendo no espetáculo. Nós não fomos buscar

com os companheiros de tanto tempo de trabalho.

somente a técnica do Odin, fomos buscar esse en-

Isso foi muito forte para nós, esse encontro com

contro das pessoas com o teatro. Foi bem intenso.

essa generosidade. “Eu estou pra morrer e chamo

Espetáculo Cortiços, inspirado na obra de Aluísio de Azevedo, traz para o teatro os Sistemas Corporais, técnica utilizada na dança Foto: Gustavo Jacome Foto: Rodrigo Zeferino Foto: Tiago Lima Foto: Gustavo Jacome


CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

por Jean-Luc Moriceau,

38

PHD em Ciências das Organizações, dirige a formação doutoral do Institut Mines-Telecom/Télécom Ecole de Management – França. Foi professor na formação doutoral da University for Humanistics – Holanda

O duro desejo de devir

Em um gesto decidido, a atriz contorna com giz a silhueta de seus amigos na parede,

mesmos, cada um em um momento-chave da sua vida, neste espetáculo.

como que para impedi-los de devir, como se ti-

Em Prazer, o prazer em questão vai muito

vesse medo daquilo que eles deixariam de ser.

além do gozo ou da boa mesa. Ele não se dá como

Mais tarde, cada amigo retorna para dentro

um objeto a ser adquirido, ele exige um caminho

deste contorno de giz como que para se reen-

de aprendizagem, a aceitação de, em primeiro lu-

contrar, como que para se proteger do mundo

gar, mudar a si mesmo, de renunciar à identidade

ao redor. Estes contornos de giz, como quando

à qual se agarrava. Há momentos em que deve-

se marca a posição da vítima após seu assas-

ria-se dar uma nova direção a sua vida, uma nova

sinato, ficam desenhados na parede, como se

etapa, e hesitamos em saltar para o desconheci-

evoluir significasse a morte de uma identidade

do, em abrir mão dos contornos dentro dos quais

passada. Contornos que permanecem lá, pare-

havíamos nos refugiado: nossas máscaras sociais,

cendo fantasmas que assombram os futuros

nossos maus desejos e nossos maiores medos.

encontros destes quatro amigos da peça Prazer,

Mas como, sobre um palco, fazer sentir esse

da Cia. Luna Lunera, fantasmas que os observam

momento liminar no qual talvez mudaremos ra-

mas que, ao mesmo tempo, um simples gesto

dicalmente a existência para um caminho que

pode apagar. E quando um dos amigos não está

ainda se ignora, momento em que o ser pode

mais lá, reforçar com giz sua silhueta parece

se bloquear ou se colocar em movimento num

uma carícia que lhe implora para voltar. Conti-

mesmo sopro? Como, se esse tal momento é de

nuar, avançar, devir parece ser difícil quando os

experimentar, de viver? Como, se falar sobre ele

golpes duros bombardeiam nossa existência – é

ou explicá-lo pode destruir toda a sua força e seu

preciso coragem, parece mais fácil nos escon-

teor, justamente porque ele é um movimento in-

dermos no que já fomos, dentro da imagem que

terior? Como fazer o espectador experimentar, à

desejamos transmitir. A coragem de devir, a co-

distância, em seu assento, tais movimentos inte-

ragem de aprender, de aprender a viver, de des-

riores, tais saltos?

cobrir o prazer apesar de tudo o que nos acon-

No espetáculo Prazer, o ousar não se encon-

tece. Estes desenhos de giz, como se marcassem

tra somente na sua forma ou no seu conteúdo,

um hesitação antes de avançar, figuram o medo

mas sobretudo em como se dá sua feitura, sua

e os desejos destes quatro amigos que decidem

construção. A maioria dos elementos que im-

se reencontrar, distantes e bem próximos deles

põem uma forma ou imobilizam a criação teatral


CADERNO ARTES CÊNICAS DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2014

39

outros escrevem e-mails para compartilhar suas

esta transformação, esta aprendizagem, que é o

emoções e suas experiências mais íntimas, seus

próprio sentido. Como dizia Deleuze: "Experimen-

próprios movimentos. Sem dúvida, a obra de

tem, não interpretem nunca." O espectador é sub-

Lispector ganha novos relevos; alguns profunda-

metido a um conjunto de forças e de afetos, que

mente epicuristas, outros ultracontemporâneos.

o torna sensível ao que ele não era mais sensível,

A peça fala de aprendizagem e do prazer, mas

às possibilidades existenciais e às experiências

esta aprendizagem e este prazer são vividos por

que colocam em movimento tanto sua sensibi-

cada um. Talvez até mesmo uma forma de se fa-

lidade quanto seus pensamentos. A arte, ainda

zer teatro é deslocada aqui, pois o sentido não é

para Deleuze, deve ser avaliada em função do que

apenas mostrado, e sim experimentado. Aprendi-

ela nos faz devir, do seu poder de nos afetar, de

zagem e prazer são postos em movimento, e o

nos transformar. O espetáculo nos afeta, e assim,

movimento é aprendizagem e prazer.

e mesmo que fosse só por isso, já haveria cumpri-

Lembremo-nos de Un manifeste de moins

do sua função como arte.

(Um manifesto de menos), no qual Deleuze ana-

É interessante pensar o poder não como o

lisa o espetáculo Ricardo III dirigido por Car-

que impõe e dirige, mas como o que fixa uma

foi abalada e disso provém uma imensa potên-

melo Bene. Ele compreende que Bene retirou o

ordem e impede que outros devenires se desen-

cia de movimento. Não há um único diretor nem

poder do rei e que, ao retirar assim a principal

volvam. Ao bloquear certas fontes de poder, o ca-

verdadeiramente um texto – o romance Uma

fonte de poder, todo um conjunto de forças, de

minho se abre para a expressão e invenção de ou-

aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice

devires, de eventos, pode ocorrer. Para Deleuze,

tras forças e criações. Se abrem novas formas de

Lispector – é apenas o impulso inicial; nenhuma

o poder, assim como a representação ou a lin-

criar sentido, de fazer o comum, de ser afetado e,

narrativa limita a sucessão de eventos; diversos

guagem, fixa os devires, ele impede que outras

assim, novas sensibilidades, talvez novas formas,

interventores influenciam a forma e o conteúdo

forças se exprimam, ele controla o que nasce ou

novas falas. Mas não se trata aqui do novo pelo

da peça antes e mesmo depois da estreia; a dis-

quer escapar de seu domínio. Aqui, a Cia. Luna

novo. O que nos afeta portanto, o que é transmi-

tinção entre a vida dos atores e a representação é

Lunera não restringe o poder de um personagem

tido por essas forças e dinâmicas que por vezes

nebulosa (eles interpretam elementos de sua pró-

ou de uma situação, o que ela faz é limitar os

nos tomam pela garganta e por vezes nos con-

pria biografia, eles preparam no palco a refeição

poderes que habitualmente são exercidos sobre

vidam a meditar, é uma certa urgência de viver.

que irão comer, etc.). Todos as convenções que

a criação e que, tantas vezes, a enrijece; e ao fa-

Aprender a viver enfim, como nos convida Der-

estabelecem o papel e o lugar de cada um, toda

zer isto, torna-se possível todo um conjunto de

rida, reencontrar os poderes do espectro e da in-

fonte de poder que impõe e fixa uma forma, aqui-

devires, de transformações e de reconfiguração

fância, encontrar a vida mais intensa no cotidiano

lo que Rancière chama de a ‘partilha do sensível’,

dos papéis – e permite também aprendizado e

mesmo, encontrar o prazer de existir mesmo nas

sofreram, neste processo, um tipo de contenção,

prazer. Peter Brook dizia que no dia em que a

provações, se transformar para sobre-viver (vi-

de bloqueio. Os lugares tradicionalmente atribu-

encenação era fixada algo invisível começava a

ver apesar da morte daquilo que se foi, daquele

ídos ao autor, ao diretor, aos atores, ao público,

morrer. Aqui, a posição tomada pela companhia

que se foi, ou que poderá ter sido – e viver mais

aos críticos, foram modificados. A criação da

de bloquear tudo o que congela é, ao contrá-

intensamente).

peça, ao partir da quebra de muitos pontos de re-

rio, o nascimento de uma multitude de inícios

ferência, e assim de muitos moldes, se desenvolve

e evoluções.

Certamente um convite ao prazer, porque aqueles quatro amigos, que se afastam dos abor-

ao mesmo tempo em que uma nova partilha do

O movimento vivido pelos atores na criação,

recimentos da vida cotidiana, que dificilmente

sensível se inventa. Disso resulta uma formidável

movimento que eles parecem retomar a cada

recompõem sua amizade, que aprendem a sabo-

energia, um ‘colocar-se em movimento’ de todos

representação, produz um ‘colocar-se em movi-

rear, a cantar e dançar juntos, estão num limiar,

e em todos os níveis.

mento’ também nos espectadores. O sentido não

na iminência de tocar o puro prazer de existir. Um

O espetáculo e os papéis não pararam de

é enunciado ou representado, ao contrário, este

puro prazer, que exige coragem, que exige que

evoluir. Os atores foram transformados por essa

‘colocar-se em movimento’ (reforçado por um

acreditemos. Apesar de todas as desventuras que

experiência. Os espectadores parecem se afetar

agenciamento de falas: as palavras na parede, as

acontecem conosco, apesar de todos os fantas-

em suas próprias existências: alguns vêm como-

animações de vídeo...) se propaga e é o que afeta,

mas que nos habitam.

vidos abraçar os atores ao final do espetáculo,

que força uma transformação do espectador, e é


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

40

Festival Internacional Sesc de Música impulsiona carreira de jovens músicos Para os alunos, eventos como o de Pelotas representam uma oportunidade de troca de informações, contatos profissionais e convivência com músicos reconhecidos mundialmente

Durante 13 dias do mês de janeiro, a música tomou

Festival Internacional de Música Carlos Gomes

Desde a primeira edição do festival, Luchéu

conta das ruas e de diversos espaços da cidade de

(FestiGomes) de Campinas, entre outros. Para o

participa das classes de eufônio do professor Fer-

Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, na quarta

músico, que toca eufônio, festivais como o de

nando Deddos, de quem se tornou amigo. “Fazer

edição do Festival Internacional Sesc de Música. O

Pelotas representam uma oportunidade de fa-

música por si só já é algo fantástico, agora, dia-

evento reuniu 47 professores de 13 nacionalidades

zer parte do dia a dia de grandes músicos de

logar musicalmente, aprender e tocar com um

em 24 cursos, um público estimado de 20 mil pes-

renome internacional, algo importante para o

amigo que você admira como pessoa e artista é

soas nos 48 espetáculos realizados e 300 alunos de

crescimento de um aluno, seja ele iniciante ou

muito melhor”, avalia. Segundo ele, fazer música é

18 estados brasileiros, bem como da Colômbia, da

avançado. “Podemos dialogar, trocar ideias e

trabalho de “formiguinha”, é absorver informações,

Argentina, da Venezuela, do Equador e do Uruguai.

experiências com ‘caras’ que normalmente verí-

dicas e técnicas e colocá-las em prática diariamen-

O festival é celebrado por todos que participam,

amos apenas em concertos e na mídia especia-

te. “Ter alguém para se espelhar é extremamente

mas são os alunos, que têm acesso a aulas com

lizada”, salienta.

importante, e o festival de Pelotas te proporciona

expoentes internacionais da música de concerto,

Luchéu também destaca como pontos po-

isso te colocando frente a frente com grandes

além da possibilidade de tocar com esses músicos

sitivos poder conviver com colegas de pratica-

nomes, que além de grandes músicos são muitas

e de estabelecer contatos até mesmo para estudar

mente todo país e boa parte da América do Sul,

vezes ótimas pessoas.”

em outros países, os maiores beneficiados.

além de participar da rotina das cidades-sedes, como Pelotas, e sua cultura. “São coisas que tu

Estudos na Europa

Para toda a vida

levas para tua vida toda”, afirma. “Propor-se a

Matheus Moresco teve seu primeiro contato com

O músico Luchéu Igor da Silva, de Dois Irmãos

participar de um evento desta magnitude signi-

a música através do piano, aos 7 anos. Interessou-

(RS), participou das quatro edições do Festival

fica sair da zona de conforto, estabelecer novos

-se pela bateria, depois saxofone até conhecer a

do Sesc/RS e também de outros eventos tradi-

desafios e ser desafiado. A música não tem fim,

percussão sinfônica, a qual estuda mais profun-

cionais, como o Festival Internacional de Mú-

todo dia é um aprendizado, tanto nos estudos

damente desde 2009, na Universidade de Pas-

sica Unisinos, Festival Internacional de Música

como ouvindo um concerto ou somente dialo-

so Fundo (UPF). O músico dá aulas de percussão

de Santa Catarina (Femusc), Festival de Música

gando, e acredito que quem não se propõe a isso

para crianças carentes e em escolas de música de

de Cascavel, do qual foi professor-assistente, e

não está vivenciando realmente a arte.”

Passo Fundo, participou de festivais com o grupo


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

41

de percussão da UPF, do Unimúsica da Universi-

sicas, até mesmo visitá-los e tocar com eles. Foi

dade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com o

o que aconteceu este ano: combinei com colegas

compositor Ney Rosauro, e também realizou um

uruguaios de ir visitá-los em julho e levar material

intercâmbio na Argentina, onde estudou tímpanos

daqui e trazer coisas de lá”, conta.

com o professor Arturo Vergara. No festival de Pelotas, do qual só não participou da terceira edição,

Parceria com grandes músicos

Matheus conheceu Clarissa Severo de Borba, pro-

A música entrou cedo na vida de Leonardo Mateus

fessora no Conservatório de Le Mans, com quem

Bock, de 19 anos. Aos 2 anos e meio, iniciou seus

mantém contato sobre a possibilidade de estudar

estudos de musicalização e aos 5 anos escolheu o

na Europa. “A professora vem dando muitas dicas

violino, instrumento ao qual se dedica até hoje, sem

para que meu sonho se concretize”, diz.

interrupções. Leonardo faz graduação em música

“Já participei de vários festivais, em Curitiba,

na Ufrgs e participou de diversos festivais e cursos

Vale Vêneto, os de Córdoba e Rosário, na Argenti-

nacionais e internacionais, entre os quais, encon-

na, mas o Festival do Sesc é um pouco diferente, há

tros Suzuki, Festival de Inverno Unisinos, Femusc,

um encontro com os amigos que sempre vão, com

além das quatro edições do Festival do Sesc, em

os professores, a cidade tem uma energia super-

Pelotas. “Os festivais de música nos trazem muitos

boa, enfim, é um momento sempre muito aguar-

fatos legais. Com eles, aprendemos muito, adqui-

dado e está melhor a cada ano”, destaca. Matheus

rimos experiência. Dentre todos os festivais que já

diz que além da qualidade do curso, o evento pos-

participei, o que mais marcou minha trajetória até

sibilita tocar em grandes formações instrumentais

aqui foi o festival de Pelotas de 2013. Tive a opor-

e ter uma posição de outros professores sobre sua

tunidade de me apresentar como solista ao lado do

música. “Uma das coisas que me mais me encan-

violinista Yang Liu, nosso professor no festival, sob

ta é conhecer outros colegas músicos de distintos

regência do também violinista Emmanuele Baldi-

lados e manter contato, trocar informações, mú-

ni, com a Orquestra Unisinos. Esse acontecimento

Alunos e professores tocam juntos nos concertos do festival Foto: Mauro Buss

Apresentação na Catedral Foto: Flávio Neves


primeiro SEMESTRE

2014

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Músicos interagem com a população em espetáculos que são realizados em toda a cidade de Pelotas Fotos: Flávio Neves

me ajudou muito artisticamente. Foi uma grande experiência”, conta. Na edição deste ano, o violinista foi spalla da orquestra sinfônica do festival, executando a primeira sinfonia de Gustav Mahler. “Nos festivais, respiramos música. São aulas, ensaios, concertos, todos os dias, e mesmo no nosso tempo livre, é difícil se desligar da música.” Segundo Leonardo, ter aulas com professores reconhecidos mundialmente, que vêm da Alemanha, Estados Unidos, China, Bielorússia, entre outros lugares, especialmente para o festival, e assisti-los nos concertos proporciona um contato gratificante, pois é difícil ter esse acesso em outras situações. Reciclagem profissional Integrante da Camerata Pampeana, sob a regência do maestro Tasso Bangel, e da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) desde 2009, a violista Gabriela Vilanova considera o Festival Internacional Sesc de Música uma oportunidade de reciclagem profissional que impulsiona para novos projetos e atualiza o músico sobre a pedagogia do instrumento. “Também é um excelente ponto de encontro para novas amizades e contatos profissionais. Participei das quatro edições e trouxe meus alunos, inclusive. Tive a oportunidade de ter aulas com grandes violistas e maestros, o que foi muito produtivo por estarmos envolvidos em projetos de resultado muito refinado e de nível alto”, avalia. Gabriela trabalha com música de concerto e popular, se formou pela Ufrgs e fez aperfeiçoamento em São Paulo e na Musikakademie, em Kassel, na Alemanha. A violista foi professora no projeto Villa-lobos, na Lomba do Pinheiro, e no curso de extensão da Ufrgs.

MÚSICA


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

Por Richard Serraria,

1 Texto transcrito do documentário O grande tambor (Coletivo Catarse/Iphan; 2010).

cancionista, poeta e percussionista

Por uma pedagogia do Sopapo INSTRUMENTO MUSICAL DE APROXIMADAMENTE 110 CM DE ALTURA E 60 CM DE DIÂMETRO, DONO DE UM GRAVE ABSOLUTO, ESCULPIDO ORIGINALMENTE COM TRONCO DE ÁRVORE E COURO ANIMAL, CAVALO E GADO PREFERENCIALMENTE. ELO DE ANCESTRALIDADE COM A MÃE ÁFRICA, RITUAL DE PERMANÊNCIA, OBJETO DE ETERNIDADE: SOPAPO, COMO INSTRUMENTO PROFANO, EXIGE APENAS MÃOS PARA SER TOCADO. NA CONDIÇÃO DE INSTRUMENTO SAGRADO, LIGADO AO BATUQUE GAÚCHO, EXIGE APENAS A DEVOÇÃO DAS MESMAS MÃOS QUE FAZIAM A CARNE DE SAL E AINDA HOJE FAZEM O CARNAVAL.[1]

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primeiro SEMESTRE

2014

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Dança de negros. A aquarela de Rudolph Wendroth, mercenário e artista plástico alemão que andou pelo Rio Grande do Sul no século 19, é o registro visual mais antigo que se tem da presença do tambor sopapo no Estado. A aquarela confirma a presença do tambor ancestral gaúcho, assim como fizeram Nicolaus Dreys, Carl Seidler e outros viajantes europeus daquele século. Tal aquarela ilustrou o Projeto Cabobu, que teve duas edições no ano 2000 na cidade de Pelotas. Idealizado por Giba Giba junto com o Governo do Estado do RS, consistiu, dentre outras coisas, na criação de uma oficina no Colégio Pelotense que construiu 40 sopapos através de Mestre Baptista, mestre de bateria que se tornou referência na confecção contemporânea do atabaque-rei. Por sua vez, o Novo dicionário Banto do Brasil escrito por Nei Lopes (2003) mencionava a provável origem do termo ligado ao tambor recriado nas charqueadas gaúchas após a diáspora africana: “Grande tambor, popularizado no RS nos anos 70, pelo músico negro Giba Giba. Provavelmente de “yakupapa”, tambor dos ganguelas (Redinha, 1984).” Referência ainda mais antiga, o Glosario de afro negrismos uruguayos de Alberto Britos Serrat (1999) registrava a presença no século 18 de um quarto tambor grave junto à “cuerda” chamado de “sopipa”. Mais recentemente, Arthur de Faria na História da música de Porto Alegre, referindo-se ao final do século 19: “Nas imediações onde hoje é a Rua Lima e Silva, havia o Candombe da Mãe Rita (...), como o ritmo criado pelos negros de Montevidéu (...). Além de tambores variados havia: sopapos – surdo gigante, tocado com a mão, típico do Rio Grande do Sul.” No âmbito acadêmico, Mário de Souza Maia defendeu a tese intitulada O sopapo e o Cabobu, em 2008. Nesse trabalho, o autor reafirmou a invisibilidade e o escamoteamento do negro na identidade cultural gaúcha em função do positivismo e ainda da ascensão do tradicionalismo na metade do século 20. Importante mencionar que no final do século 19 e a chegada do século 20 o sopapo ganha espaço nos festejos de rua. No carnaval gaúcho moderno, em Rio Grande e em Pelotas, o sopapo encon-

MÚSICA


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

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junto com alguns grupos de dança afro e recentemente propaga-se por diferentes pontos de cultura, cada vez mais se revestindo como símbolo significativo da resistência negra no RS. Com isso,

Mestre Baptista, em cena do documentário O grande tambor

Foto: Divulgação do filme

Sopapos no show de Richard Serraria

Foto: Arquivo pessoal

avança-se no sentido de reconhecer o instrumento como Patrimônio Imaterial Nacional, conferindo novo impulso ao resgate desse tambor que quase desapareceu no fim do século 20. Sob esse ponto de vista, diferentes griôs vêm contribuindo para manter viva a memória desse instrumento, empenhando-se arduamente para que o tambor chegue trou seu lugar fazendo o papel que hoje é ocupado

às novas gerações: Dona Sirlei, Dilermando, Mestre

tiva de instaurar um novo paradigma cultural, que,

pelo surdo de terceira, responsável pelo “molho”,

Chico, Mestre Paraquedas, Paulo Romeu, além dos

se levado a cabo, repetiria erros anteriormente

o “redobre” que conferia uma característica única

já citados Mestre Baptista e Giba Giba (falecido em

praticados no RS. O objetivo é apenas usar o sopa-

ao samba gaúcho em função do som grave e in-

fevereiro deste ano) e instrumentistas que coloca-

po como elemento disparador da reflexão sobre a

confundível do instrumento, sendo que o tambor

ram o tambor em seus sets musicais, como Sandro

“invisibilidade” da cultura negra no Estado, justifi-

chega ao desfile de carnaval em Porto Alegre por

Gravador, Edu Nascimento, Lucas Kinoshita (que

cando o termo “resgate”, por exemplo. Parece-me

meio da Academia de Samba Praiana, fundada em

também escreveu um trabalho de conclusão de

que no RS, pelas peculiaridades históricas breve-

1960. Depois ocorreria a “carioquização” do samba

curso de graduação em Música, em 2009, materia-

mente expostas anteriormente, talvez se deva falar

gaúcho na década de 1970, acentuando-se na dé-

lizando pela primeira vez a escrita musical aplicada

de “apagamento” da expressão negra, em função

cada de 1980, fruto da televisão que divulga para

ao sopapo), Mimmo Ferreira, Alessandro Brinco,

do positivismo, ainda da ascensão do tradiciona-

todo o país o desfile “oficial” das escolas de samba

Paulo Mallet, Nego Wado, entre outros. Poderiam

lismo na metade do século 20 e da carioquização

do Rio de Janeiro. Assim, o sopapo perde espaço

ser citados ainda compositores que vêm usando o

do samba na segunda metade deste século, den-

nas baterias para os instrumentos sintéticos, numa

instrumento nos seus discos e arranjos, como Kako

tre outras coisas. Nesse contexto, explica-se a re-

tentativa de cópia do modelo carioca.

Xavier, Leandro Maia, Zé Evandro, Marcelo Cougo,

criação de um repertório ancestral que ao mesmo

Sebastian Jantos, Dany Lopez, Richard Serraria etc.

tempo contemple o sincretismo da religiosidade

a Lei 10639/03, que torna obrigatório o ensino da

Assim, nos últimos anos, diferentes pessoas

afro-católica (maçambique e quicumbi), cantos de

história e cultura afro-brasileira e africana nas

envolvidas com o sopapo vêm discutindo a poten-

trabalho, cantos de batuque de nação Jêje-Ijexá e

redes de ensino pública e particular, o sopapo

cialidade da recriação de um repertório ancestral

toques de candombe, tudo isso sob a benção do

chama atenção sobre a invisibilidade da cultura

feito, por exemplo, a partir de alujás de religião exe-

mestre de cerimônias: tambor sopapo.

negra no Rio Grande do Sul. Contribuindo para

cutados no instrumento, cantos de procissão reco-

Busca-se assim uma linhagem de permanên-

suprir essa lacuna, no ano de 2010, realizou-se

lhidos em material etnográfico e musical ligados ao

cia e ancestralidade do sopapo ligada aos cantos

o documentário O grande tambor, num esfor-

maçambique (manifestação negra presente no lito-

de religião e cantos de trabalho, não uma manifes-

ço de diferentes instituições capitaneadas pelo

ral norte do RS), quicumbi (manifestação negra no

tação do sopapo ligada ao ciclo urbano e dessa for-

Coletivo Catarse com apoio do Instituto do Pa-

litoral sul do RS) e ainda toques de sopapo aplicados

ma desatrelada do fenômeno do carnaval carioca.

trimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),

ao candombe (manifestação afro-uruguaia espa-

Isso tudo vem conferindo novo impulso a

que envolveu ainda Pontos de Cultura Quilombo

lhada pela fronteira desse país com o RS, além dos

esse instrumento que quase desapareceu no fim

do Sopapo, Ventre Livre e Afro Sul Odomodê, em

registros históricos que atestam a presença de can-

do século passado. Certo é que o sopapo faz parte

Porto Alegre, assim como a Casa Brasil Dunas e

dombe na Capital do Estado no fim do século 19).

de uma linha direta com ancestrais fundadores

Em tempos em que ainda não se concretizou

RádioCom, de Pelotas, Ponto de Cultura Arte Es-

Assim, justifica-se a criação do Alabê Ôni

daquilo que precisa ser revisto como “gauchi-

tação, de Rio Grande, e Bataclã FC, que em 2011

(“Nobre Tamboreiro” na língua Iorubá), que busca

dade”, mostrando a presença negra no trabalho

recebeu o selo Cultura Viva do Ministério da Cul-

no momento atual recriar o sopapo em manifes-

no Rio Grande do Sul ao longo do período co-

tura (Minc) por difundir o sopapo.

tações da cultura negra do RS pelo fato de este ter

lonial, trazendo com isso o reconhecimento da

Após o Projeto Cabobu, o instrumento se es-

perdido suas referências ancestrais. Isso deve ser

contribuição afrodescendente à cultura gaúcha.

palha pela música popular do Estado, bem como

feito não como modelo a ser seguido ou na tenta-


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

46

Por Leandro Anton, coordenador do Quilombo do Sopapo (quilombodosopapo.blogspot.com.br)

O Sopapo de Todos os Papos

No final da tarde do dia 16 de abril de 2008, na Avenida Capivari, 602, Bairro Cristal, em Porto Alegre, numa sala há pouco pintada e vazia de mobiliários, estava cheia de história, de gerações que se encontravam e registravam os preparativos do evento daquela noite de outono. Gilberto Amaro do Nascimento, Neives Meireles Baptista e Marcelo Cougo, entre sons de cavaquinho, cuíca e sopapo eram filmados por jovens do primeiro curso de audiovisual do Quilombo do Sopapo, ponto de cultura que estava para receber no início da noite a benção dos seus padrinhos e madrinha, Mestre Giba Giba, Mestre Baptista e Bataclã FC. Os jovens, em meio a acordes, histórias e gargalhadas, registravam alguns depoimentos, Mestre Giba Giba fala do Cabobu, encontro dos Tambores do Sul, realizado em Pelotas no ano de 2000, quando convidou Baptista para construir os 40 sopapos que foram às ruas de Pelotas na primeira edição do evento, e lá Bataclã FC recebeu seu primeiro tambor de sopapo. Giba recorda a inclusão do sopapo


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2014

47

1 Fala extraída do vídeo de inauguração do Quilombo do Sopapo que está no link https://www.youtube.com/ watch?v=TXNBrDcoA34. 2 Discurso sobre o programa Cultura Viva proferido em Berlim em 2 de setembro de 2004.

no dicionário Banto do Brasil de Nei Lopes, a músi-

Tambor nas escolas e no Ponto de Cultura durante

e tecnologias de ponta.”[2] Os Pontos de Cultura

ca de Paulo Moura e João Donato sobre o tambor

a Ação Griô – O Sopapo de Todos os Papos, pela

são intervenções agudas nas profundezas do Brasil

de sopapo e num breve registro diz “A cultura tu

tradição oral, encantou juntamente com os Gri-

urbano e rural para despertar, estimular e projetar

não faz dentro de uma sala, a cultura é o jeito de

ôs Edu do Nascimento e Mestre Jaburu e com o

o que há de singular e mais positivo nas comuni-

ser de um lugar, não tem monitoramento cultu-

Aprendiz Fernando Rizzolo, crianças e jovens das

dades, nas periferias, nos quilombos, nas aldeias: a

ral, tem uma educação geral que é do povo, que o

escolas públicas da Região Cristal, através da his-

cultura local.

povo se organiza cada um no seu jeito de ser e dali

tória do negro no Rio Grande do Sul contada e

se tem a cultura, por isso não sabemos até agora o

cantada por meio do tambor de sopapo.

Giba Giba é expressão desse do-in antropológico, dessa resistência que a tradição oral permitiu

tambor típico de nosso lugar... aqui chamam a polí-

Assim como os Pontos de Cultura, a Ação Griô

manter vivo um dos maiores bens culturais do Rio

cia quando estamos tocando tambor... tem vizinho

surge com o programa Cultura Viva, na condução

Grande do Sul, o tambor de sopapo e todo patri-

que grita que tem barulho, tem muito fiscal da ale-

de outro Gilberto, também negro e ícone da músi-

mônio imaterial que ele projeta. Para a rede dos

gria, tem muita proibição, tem muito regulamento,

ca brasileira como Gilberto Amaro do Nascimento.

Pontos de Cultura do Brasil, eternamente Mestre

tem muito quequequé, muito jerereré, dadadá, e

Gilberto Gil revoluciona a cultura brasileira naquilo

Giba Giba, eternamente Mestre Griô, eternamente

isto aí não é legal pra ninguém, muito menos para

que nas suas palavras são “uma espécie de ‘do-in’

uma mordida na flor!

a cultura e educação, tenho dito!”

antropológico, massageando pontos vitais, mas

[1]

Giga Giba, acolheu, apadrinhou e principal-

momentaneamente desprezados ou adormecidos,

mente construiu e transformou o Quilombo do

do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o ve-

Sopapo pela palavra, pela música, pelo tambor de

lho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não

sopapo. Por ser Giba Giba, nestes seis anos de Pon-

pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética

to de Cultura, Mestre Giga Giba, como é conhecido

permanente entre a tradição e a invenção, numa

por todos que ouviram histórias através do Grande

encruzilhada de matrizes milenares e informações

Gilberto Amaro do Nascimento, Giba Giba Fotos: Diego Coiro Fotos: Arquivo Quilombo do Sopapo


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2014

48

A América por John Ford Mostra de cinema com oito filmes circula pelo Estado durante o ano de 2014

Ilustrações sobre imagens dos filmes Rastros de ódio, O prisioneiro da Ilha dos Tubarões e Médico e amante Ilustrações: Kako (catálogo da mostra)


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2014

49

Texto extraído do catálogo da mostra de cinema A América por John Ford, editado pelo Departamento Nacional do Sesc, em agosto de 2013.

Inquestionavelmente, foi o diretor John Ford um

personagens ratificasse a ética valorativa dos pio-

leiros, chegou a afirmar que deixaria de escrever

dos responsáveis pelo status que o gênero faro-

neiros, daqueles que enfrentaram as adversidades

sobre cinema depois que Ford morresse e, para a

este adquiriu no decorrer da história do cinema.

para construir uma nova ordem social. A mostra

surpresa de todos, assim o fez. Sua última críti-

Isso se justifica se considerarmos seu currículo

do Sesc A América por John Ford, composta por

ca, publicada em 1973 no Correio da Manhã, em

com nada menos de 133 filmes ao longo da car-

oito obras, esforça-se em apresentá-lo como um

exatos 10 dias após da morte de Ford, é uma ho-

reira. A sua facilidade de trabalhar com os ato-

diretor capaz de fazer filmes com temáticas diver-

menagem emocionada para o artista que mais

res, fazendo-os improvisar e realizando poucas

sas, mas alicerçadas na história norte-americana.

admirou na arte cinematográfica.

(às vezes apenas uma) tomadas de cenas era,

Médico e amante (1931) é um bom exemplo de um

na verdade, uma afirmação da sua capacidade

típico drama; As vinhas da ira (1940), de um drama

[...] enquanto as fordianas imagens fo-

produtiva. Entre os atores que trabalharam com

social; O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (1936),

rem projetadas, não importa em que

Ford, pode-se citar as presenças marcantes de

de uma aventura dramática; Juiz Priest (1934),

tela ou em que sala, ou se o cinema

James Stewart, Henry Fonda, Will Rogers, John

de uma comédia de costumes; e A mocidade de

acabar, enquanto houver memória,

Carradine, Maureen O’Hara, George O’Brien,

Lincoln (1940), de um drama político. O faroeste

Ford será. Assim como Shakespeare

Ward Bond, Harry Carey Jr., Victor McLaglen e o

completa a mostra com três clássicos indubitáveis:

está casa vez mais vivo, a despeito da

seu ator-ícone e xará John Wayne.

No tempo das diligências (1939), Rastros de ódio

agonia tão lenta do teatro, Ford está

(1956) e O homem que matou o facínora (1962).

cada dia mais presente, ainda que o ci-

Seu trabalho cinematográfico foi marcado pela clareza de opiniões sobre o homem, a his-

nema já não tenha mais a mesma alma

tória e a sociedade norte-americana. Ford jamais

Palavra dos críticos

intencionou manter uma postura socialmente crí-

John Ford foi um dos cineastas mais festejados

tica, mas sempre foi profundamente dedicado à

pela crítica. Seu cinema, apesar de clássico, por

[...] faz tempo que sua reputação como

humanidade das pessoas, independentemente de

vezes até duvidoso ideologicamente, mobilizou

mestre número um do cinema clássico

sua posição social (um presidente, um pistoleiro

diversos pensadores do cinema. Antonio Moniz

americano deixou de ser contestada.

ou uma prostituta), desde que a posição desses

Vianna, um dos mais respeitáveis críticos brasi-

Nem aqueles que, por razões respeitá-

(VIANA, 2004, p. 396).


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2014

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veis, preferem o também clássico cinema de Howard Hawks (1896-1977) ou o de Raoul Walsh (1887-1980) ou o de

Médico e amante Arrowsmith, 1931 / P&B, 98 min

King Vidor (1894-1982) negam a Ford a primazia que os três citados, aliás, fa-

Com Ronald Colman, Helen Hayes e Richard Bennet

ziam questão de reconhecer (AUGUSTO, 1995, p. 88).

O talentoso médico Arrowsmith (Ronald Colman) abre mão de uma promissora carreira de cientista para ser médico em Dakota do Sul, cidade natal de sua esposa. Mas seu trabalho de cientista é resgatado quando ajuda um fazendeiro e consegue eliminar uma doença que havia afetado suas vacas. A competência de Arrowsmith como cientista o leva ao mais elevado instituto de pesquisa de Nova York. Lá é destacado às Antilhas para resolver um caso de epidemia de peste bubônica, onde os trabalhos de médico e cientista se misturam. Arrowsmith fica então dividido entre uma função e outra. O médico controla a doença, mas perde a mulher e os amigos. Filme sensível e emocionante indicado a Melhor Direção no Oscar de 1931. Adaptação da novela de Sinclair Lewis, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Um dos críticos brasileiros mais atuantes nos anos de 1950 e 1960, Francisco Luiz de Almeida Salles faz uma análise deliciosa ao misturar a biografia e o estilo cinematográfico fordiano, além de uma acurada descrição técnica. O filme em questão era o atípico Depois do vendaval (The quiet man, produção de 1952). Salles desenha o pensamento que [...] o intuito primeiro de John Ford, irlandês de 60 anos, nascido exatamente no ano em que Lumière, em Paris, abria o primeiro cinematógrafo do mundo, e

FILMES DA MOSTRA

cuja biografia se confunde com a própria biografia do cinema, deve ter sido, de fato, este – o de resumir e fazer reviver a seiva, o espírito, a graça, a ingenuidade, a força da narração cinematográfica primitiva desse livro de imagens, aturdido e perplexo, que foi ofertado às gerações deste século (SALLES, 1988, p. 88-89). O lado épico de Ford foi realçado na crítica de Luiz Carlos Merten. [...] há um mito John Ford, que foi comparado, como criador de epopeias, a Homero. Ford seria o Homero das pradarias, identificado como tal por sua preferência pelo western como território de criação de lendas. O próprio Ford admita-o (MERTEN, p. 94).

Juiz Priest Judge Priest, 1934 / P&B, 96 min Com Warner Baxter, Gloria Stuart, Claude Gillingwater, Harry Carey, John Carradine e Francis Ford O tema central deste filme é a tolerância para que o país consiga superar as diferenças políticas provocadas pela Guerra de Secessão. Priest, interpretado carismaticamente por Will Rogers, vai suavemente falando sobre os outros personagens, muitas vezes falando sozinho, como se mais nada tivesse a fazer senão nos apresentar o universo social de Kentucky. A questão racial é tratada com muita sutileza, mas Ford, desde o começo do filme, estabelece a importância da integração inter-racial, de incorporar os negros em um novo estatuto social, mas mantém o caráter submisso e subalterno dos negros como mão de obra barata. O diretor consegue criar com uma história simples um painel surpreendente da cultura sulista dos Estados Unidos.


CINEMA

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Referências bibliográficas AUGUSTO, Sergio. A folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. VIANNA, Antonio Moniz. Um filme por dia: crítica de choque (1946-73). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

O prisioneiro da Ilha dos Tubarões The prisoner of Shark Island, 1936 / P&B, 96 min

No tempo das diligências Stagecoach, 1939 / P&B, 97 min

Rastros de ódio The searchers, 1956 / Cor, 119 min

Com Warner Baxter, Gloria Stuart, Claude Gillingwater, Harry Carey, John Carradine e Francis Ford

Com John Wayne, Claire Trevor, Thomas Mitchell, Andy Devine, George Bancroft e John Carradine

Com John Wayne, Jeffrey Hunte, Vera Miles, John Qualen, Harry Carey Jr. e Natalie Wood

Dr. Mudd é condenado por ter socorrido um homem com a perna quebrada, fato corriqueiro para um médico, não fosse esse homem o assassino do presidente Abraham Lincoln. O médico, é claro, desconhecia essa importante informação. O real assassino é morto e toda a ira popular recai sob oito suspeitos de serem cúmplices, que são rapidamente tomados como culpados e devem pagar pelo crime de assassinato ao presidente. Dr. Mudd é o único que não é executado, mas é condenado à prisão perpétua e levado para a Ilha dos Tubarões, localizada no meio do oceano. Na ilha, o médico se encarregará de combater uma terrível doença.

Uma das obras mais aclamadas de John Ford e considerada uma obra-prima do faroeste. No caminho para a cidade de Lordsburg, viajam em uma carruagem um banqueiro corrupto, um médico alcoólatra, uma prostituta, a esposa de um oficial, um jogador decadente, um rígido xerife, um condutor abobalhado, um vendedor de bebidas e um fora da lei que fugiu da cadeia. Diversos conflitos são deflagrados enquanto um clima de tensão permeia todo o percurso, pois um ataque indígena pode acontecer a qualquer momento. Ford explora com eficiência as paisagens naturais do Monument Valley para instaurar uma nova forma de contar uma história de faroeste.

Ethan Edwards, personagem de John Wayne, após anos lutando pelos confederados, regressa ao rancho de seu irmão. Enquanto isso, a região está mergulhada em conflitos com os índios, que de tanto sofrerem com ataques dos norte-americanos resolvem pagar na mesma moeda. Os comanches realizam um violento ataque, assassinando toda a família de Ethan e raptando as suas duas sobrinhas. Ele inicia uma perseguição implacável. Uma delas é morta, e a outra é criada para ser uma das mulheres do líder da tribo. Considerado por muitos críticos um dos maiores filmes da história do cinema, com direção, fotografia, música, roteiro e edição majestosos, dignos de um filme de John Ford.

A mocidade de Lincoln Young Mr. Lincoln, 1939 / P&B, 100 min

As vinhas da ira The grapes of wrath, 1940 / P&B, 129 min

O homem que matou o facínora The man who shot liberty Valance, 1940 / P&B, 119 min

Com Henry Fonda, Alice Brady, Marjorie Weaver, Arleen Whelan, Eddie Collins, Pauline Moore e Richard Cromwell

Com Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine, Charley Grapewin, Dorris Bowdon, Russell Simpson e John Qualen

Com James Stewart, John Wayne, Lee Marvin, Vera Miles, John Qualen e Jeanette Nolan

Neste filme, Ford aborda a juventude de seu ídolo, o ex-presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, em especial a formação do seu caráter. A história do filme é simples, narra o apreço de Lincoln pelo Direito e seu desdobramento na carreira política. Apesar de gozar de certo reconhecimento, sua fama só viria após um incidente em que dois irmãos matam um homem em legítima defesa. Após o assassinato, entra em cena a figura de Lincoln, o homem do direito e da política, impedindo o linchamento e se tornando advogado de defesa dos acusados. Um dos filmes mais emblemáticos de Ford e talvez o mais significativo para melhor compreendê-lo como cineasta.

História clássica, baseada no livro de John Steinbeck, que se passa no auge da Grande Depressão, no final dos anos 1920. Uma grande família de arrendatários é expulsa de suas terras no norte e parte para procurar emprego no sul. O filme gira em torno de três personagens-chave: Tom Joad, Casy e Mãe Joad. Tom está retornando para a família após um período de quatro anos na cadeia, Casy é um ex-pregador religioso e Mãe Joad é a matriarca lutadora que não mede esforços para manter sua família. Todos são lançados à famosa Rota 66 rumo a uma Califórnia idílica.

A cidade de Shinbone, no Velho Oeste, recebe a visita de Ransom Stoddard (James Stewart), senador que foi para o funeral de Tom Doniphon (John Wayne), um desconhecido vaqueiro do qual era muito amigo. Ao ser entrevistado por um repórter sobre o que fazia na cidade, Ramson começa a contar que sua fama começou quando ainda era um advogado recém-formado e matou um pistoleiro violento chamado Liberty Valance (Lee Marvin). Em flashback, o filme narra todo esse período de sua vida, em especial sua relação de amizade com Tom Doniphon.


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Mostra traz um fragmento da produção alemã contemporânea Por meio de uma parceria entre o Departamento Nacional do Sesc e o Goethe-Institut, será realizada no primeiro semestre de 2014 em diversas capitais brasileiras, entre elas Porto Alegre, a Mostra Encontro com o Cinema Alemão. Dez filmes produzidos na Alemanha entre o final


CINEMA

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do século 20 e início do século 21 configuram

Alemanha + Brasil 2013-2014, pois permite co-

o recorte de um cinema articulado com temas

nhecer a produção cinematográfica contempo-

contemporâneos da sociedade ocidental (Yella,

rânea da Alemanha, favorecendo o estudo e a

Todos os outros, O que permanece, Bem-vindo à

discussão sobre as questões específicas da arte

Alemanha) e com dois temas de grande impacto

do cinema e, ao mesmo tempo, conhecer novos

na história do país: a Segunda Guerra Mundial

aspectos, novos olhares, sobre as questões do

(Quatro dias em maio) e a vida na Alemanha

homem e da sociedade.

Oriental com a unificação do país (Sonnenalle,

Na abertura da mostra em algumas capitais

Berlin is in Germany, A Vida é um canteiro de

está previsto o debate “A narração no cinema

obras, Nenhum lugar para ir e Adeus Lenin!), re-

pelas lentes do cineasta”, com a cineasta alemã

visitados por seus cineastas nas questões viven-

Yasemin Samdereli, diretora do filme Bem-vindo

ciadas pelo homem comum.

à Alemanha, que estreou no Festival de Cinema

Esse recorte nos proporciona conhecer,

de Berlim. Yasemim relata sua experiência no ci-

por intermédio da ficção, aspectos da vida co-

nema, explicando sua visão sobre como escreve

tidiana alemã, levando-nos a refletir sobre uma

um roteiro que funcione como base para o bom

infinidade de aspectos sociais e humanos, em

desdobramento da narração de um filme. Para

detalhes normalmente esquecidos, apagados em

mostrar a teoria na prática, Yasemin Samdereli

filmes que em geral são exibidos em circuitos

ilustra sua apresentação com pequenos trechos

comerciais. Uma abordagem bastante apropria-

de filmes e em seguida debate com o público.

da para uma ação do calendário da temporada

Berlin is in Germany Bem-vindo à Alemanha Adeus Lenin!


CINEMA

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A vida é um canteiro de obras Das leben ist eine baustelle, 1997 / 118 minutos

Nenhum lugar para ir Die unberührbare, 1999 / 100 minutos

Direção: Wolfgang Becker

Direção: Oskar Roehler

Em Berlim, manifestantes e policiais se enfrentam na rua, enquanto Jan Nebel vai para seu emprego no frigorífico. No caminho, derruba dois homens que perseguem uma jovem, e ele nem imagina que são policiais à paisana. A noite traz sérias consequências para Jan: uma multa, sua demissão e, talvez, a perda de seu grande amor. Pela manhã, ao fazer uma visita ao pai, encontra-o morto. Além disso, Jan desconfia que contraiu Aids. Mas toda catástrofe pode ter seu lado bom: em seu último dia no frigorífico, ganha um novo amigo; no confronto com a polícia, conhece Vera; com a morte do pai, ele tem agora um apartamento próprio e talvez o medo da Aids o faça ordenar melhor a própria vida.

Neste filme, Oskar Roehler relata a história de sua mãe – a escritora Gisela Elsner, que se suicidou em 1992 – através da personagem Hanna Flanders, que vê sua suposta carreira destruída com a queda do muro de Berlim. Gisela Elsner tinha se tornado uma figura tão marginal, que passara a ver-se como pária da sociedade cultural. Na verdade, exceto pelo seu impetuoso romance de estreia, Gisela nunca chegou a ser uma grande escritora. Membro do Partido Comunista Alemão, a escritora bem poderia ter pressentido que o fim da Alemanha Oriental seria também o fim do seu sucesso profissional.

Berlin is in Germany 2001 / 90 minutos

Adeus Lenin! Good bye Lenin! , 2003 / 120 minutos

Direção: Hannes Stöhr

Direção: Wolfgang Becker

Martin deixa a penitenciária de Brandenburgo após 11 anos na prisão por um assassinato em 1989. Ele só conhecia a Alemanha Oriental e agora é subitamente confrontado com uma nova Berlim unificada. Hospeda-se em um hotel e sai em busca de trabalho, mas nada consegue. Procura Manuela, sua mulher e mãe do filho que nunca vira até então, mas o atual companheiro da esposa não vê com bons olhos essa aproximação. Inspirado por uma história real, o diretor Hannes Stöhr nos revela uma história que tem um ponto de partida realista, mas se transforma aos poucos em um conto de fadas.

Em 1978, em plena Alemanha Oriental, o pai de Alex Kerber deixa o país, rumo ao ocidente. Uma visita dos homens da Stasi (Serviço de Segurança Nacional) leva a mãe do garoto ao hospital, de onde volta como uma ativista ferrenha. Anos depois, em uma manifestação pacífica, ela vê seu filho Alex sendo espancado por representantes do governo e entra em coma após sofrer um infarto. O muro de Berlim é destruído, e a casa da família é adaptada aos padrões ocidentais. Somente em 1990, um ano depois, ela desperta do coma. O médico explica que qualquer excitação pode ser fatal para a paciente. Por isso, Alex decide esconder a queda do Partido Socialista. Mas o que acontecerá quando a mãe, mesmo acamada, voltar para casa?

FILMES DA MOSTRA


CINEMA

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Sonnenallee 1999 / 94 minutos

Yella 2007 / 88 minutos

Todos os Outros Alle anderen, 2008 / 119 minutos

Direção: Leander Haußmann

Direção: Christian Petzold

Direção: Maren Ade

Com este filme, sua estreia no cinema, o diretor de teatro Leander Haußmann retrata de forma humorística a vida dos jovens na Berlim Oriental e nas zonas fronteiriças, em 1973. Muita coisa acontece na Sonnenallee, avenida que tem um trecho mais longo na Berlim Ocidental e um trecho mais curto na parte oriental da cidade dividida. Haußmann oferece uma caricatura dos problemas dos cidadãos da Alemanha Oriental sem que para isso seja necessário conhecer a fundo a história da queda do socialismo na Alemanha.

Yella quer sair de Wittenberge, onde a empresa de seu marido Ben faliu, e seu casamento chegou ao fim de maneira dramática. Decide então ir para o oeste, para o outro lado do Elba, em busca de oportunidades. Em seu novo lar, ela encontra Philipp, que a convida para acompanhá-lo em um encontro de negócios. Ali, Yella descobre o mundo do capital de risco e começa a trabalhar para Phillipp. Ela começa a participar do sonho de Philipp, que quer ganhar muito dinheiro e para isso planeja um negócio incrivelmente simples e altamente promissor.

O filme conta a história de Gitti e Chris, um jovem casal de trinta e poucos anos e muitas diferenças que tenta desfrutar suas férias isolando-se. Na casa de veraneio dos pais de Chris, na Sardenha, eles tentam fugir dos problemas não resolvidos. Dentro da casa tudo é igual ao lar na Alemanha, por isso o casal prefere passar o tempo na piscina, entregando-se a brincadeiras pueris e fugindo de vizinhos inconvenientes. Só não conseguem fugir um do outro.

Quatro dias em maio 4 tage im mai , 2011 / 95 minutos

Bem-vindo à Alemanha Almanya — Willkommen in Deutschland, 2010 / 95 minutos

O que Permanece Was bleibt, 2012 / 88 minutos

Direção: Achim von Borries

Direção: Yasemin Samdereli

Direção: Hans-Christian Schmid

Aos 13 anos, Peter queria ser um guerreiro valente. Durante as batalhas da Segunda Guerra Mundial, ele encontra um soldado alemão morto, veste o seu uniforme e pendura também o seu fuzil. Uma pequena patrulha russa ocupa o orfanato no qual o garoto vive com a tia, que se rende aos russos. Nesses últimos dias de guerra, o major da pequena tropa, Kalmykow, quer apenas proteger seus homens. Quando uma unidade alemã aparece na região, Peter denuncia os soldados soviéticos, mas nem mesmo os alemães querem continuar lutando.

Em 1964, Hüseyin Yilmaz deixou a Anatólia e foi para Alemanha como trabalhador imigrante. Prestes a receber a cidadania alemã, não sabe se é isso o que realmente deseja. Inesperadamente, ele compra uma casa em seu país natal e convoca sua família para ajudá-lo com a reforma, mas esta reage de maneiras diversas. Lembranças do passado se misturam ao presente, enquanto a família toda está novamente a caminho da Anatólia. Durante a viagem de ônibus, Hüseyin morre, provocando discussões que há muito já deveriam ter acontecido. O filme, uma extraordinária contribuição ao debate sobre a integração alemã, fala sobre identidades que se transformam pouco a pouco, sobre a complexa questão da pátria de cada um.

Marko sai de Berlim para encontrar sua rabugenta mulher nas proximidades de Bonn e pegar seu filho Zowie. O casal vive separado, mas os avós de Zowie não podem saber. A ilusão da família intacta deve ser mantida, principalmente por causa da avó Gitte, que sofre de depressão há muitos anos. Durante um jantar, Gitte faz uma revelação que, em princípio, deveria alegrar a todos os presentes: ela declara estar vivendo agora sem o uso de medicamentos. Os parentes reagem com surpresa, estranheza e desconfiança, pois todos temem novos problemas.


primeiro SEMESTRE

ARTES VISUAIS

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Exposição de Carlos Vergara circula pelo RS Sesc apresenta trabalho do artista

O Sesc tem trabalhado com artes visuais desde 1976 e, em 1981, iniciou o projeto Arte Sesc com o intuito de fomentar a produção artística do país, estimulando a criação de um circuito que não fosse limitado às capitais, mas que alcançasse o interior do Brasil, chegando a áreas onde a produção artística fica mais restrita. O Arte Sesc, portanto, é um projeto que há mais de 30 anos tem levado exposições de artes visuais em itinerâncias por todo o país. São variados os períodos históricos, temas, técnicas e suportes que integram o projeto, com obras de diferentes artistas ou grupos, seleciona-

inspirado nas experiências, ao mesmo

dos através de curadorias específicas. Atualmente,

tempo espirituais e utópicas, que

o projeto apresenta 12 exposições que, todos os

ocorreram em São Miguel das Missões no século 18

anos, têm passado por uma média de 80 cidades, abrangendo capitais e o interior. Cada exposição é acompanhada de criterioso material educativo,


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

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Compilado dos textos contidos no catálogo da exposição Carlos Vergara viajante: experiências de São Miguel das Missões

o qual propõe diferentes possibilidades de leitura

ao seu trabalho como analista de laboratório, se

das obras e permite ao Sesc desenvolver desdo-

dedicava ao artesanato de joias, que chegaram

bramentos, como cursos, oficinas e palestras nas

a ser expostas na 7ª Bienal Internacional de São

comunidades por onde circulam.

Paulo em 1963. Foi quando descobriu o desenho

Nos últimos 10 anos, o projeto tem se voltado

e a pintura. Participou, então, das emblemáti-

para a discussão da arte contemporânea, permitin-

cas mostras Opinião 65 e 66, no Museu de Arte

do que o público possa conhecer obras de artistas

Moderna do Rio de Janeiro, e foi um dos organi-

visuais de renome como Carlos Vergara, que está

zadores da mostra Nova Objetividade Brasileira.

em circulação no Rio Grande do Sul desde o mês

Sua obra, nos mais diversos suportes – pintura,

de março com a exposição “Viajante: A experiência

fotografia, vídeo, colagem e monotipias – é sur-

de São Miguel das Missões”. O principal propósi-

preendente e combativa. As viagens, seja para São

to do Arte Sesc com esta exposição é contribuir

Miguel das Missões seja para Capadócia, repre-

com o trabalho de formação do olhar e estímulo

sentam para o artista o momento de “olhar para

da criatividade numa tentativa de formar sujeitos

fora”, que será seguido de um olhar mais intros-

com uma visão mais crítica do mundo a sua volta.

pectivo, para dentro da própria obra, no desdo-

Gaúcho de Santa Maria, Carlos Vergara chegou ao Rio de Janeiro na década de 1950, paralelo

bramento necessário do atelier.

S.M. 7, 2008 S.M. 9, 2008 S.M. 6, 2008 S.M. 8, 2008 Montagens de fotos com acrílico lenticular (3D) 100 x 100 cm

Fotos: Cesar Duarte


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ARTES VISUAIS

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Por Luiz Camillo Osório, crítico de arte

Sem título, 2011 Monotipia e pintura em lona crua Foto: Cesar Duarte

Viajante – O processo* Carlos Vergara viaja para pintar, buscando no deslumbramento do ver pela primeira vez a força motriz da sua poética visual. A viagem desnaturaliza o olhar, tira dele a força do hábito e das convenções. A viagem, no fundo, é uma metáfora para o fazer da obra – ir em busca de diferentes formas de ver e de ser no mundo. A experiência de São Miguel é um momento decisivo desse “ir em busca” no interior da poética de Vergara. Nas Experiências de São Miguel das Missões, Carlos Vergara encontra esse lugar povoado por acontecimentos de relevância religiosa, política e geográfica para a história da América. Aldeamentos indígenas gerenciados por padres jesuítas no Novo Mundo, as missões representavam parte do sonho jesuíta de civilização e evangelização desses povos. Espalhadas por toda a América colonial, as missões constituem uma das mais notáveis utopias da história. Nessa viagem, vários tempos e espaços se encontram e se multiplicam na superfície da tela e dos lenços, nas fotografias em 3D e nas imagens do vídeo Sudário. Da história pessoal à cultural, passa pela revisitação de modos de vida soterrados e esquecidos e chega à própria potência da arte em abrir perspectivas de compreensão que não se encaixam no saber científico e objetivo. Criou-se ali, no extremo sul da América, uma possibilidade singular de vida em comum, nas quais as diferenças eram assumidas, cultivadas e reinventadas não obstante os conflitos pertinentes ao processo. *Texto de apresentação da exposição


literatura

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Por flávio aguiar,

Professor de literatura brasileira da USP (1973 - 2006), jornalista e escritor. Correspondente em Berlim para várias mídias brasileiras.

Qorpo-Santo, ontem, hoje e sempre Qorpo-Santo é quem tinha razão

Quando Qorpo-Santo foi introduzido no cânone

Naquele maio.

da dramaturgia brasileira, a partir das pesquisas de Guilhermino César, Aníbal Damasceno e tantos ou-

Carlos Drummond de Andrade,

tros, e das montagens no Clube de Cultura de Porto

Relatório de maio, 1968

Alegre, dirigidas por Antonio Carlos Sena, em 1966, ele teve como acompanhante a auréola das vanguardas europeias. Foi logo considerado um precursor do Teatro do Absurdo: falou-se em Beckett e Ionesco. Depois, chegou-se a aventar até Brecht para sacramentar o nome daquele que Gilhermino César chamara de “o manso louco do Guaíba”. Sem desacreditar o nobre esforço dos que buscavam um verbete para alinhar sua dramaturgia irrequieta e surpreendente, volto hoje à perspectiva de Aníbal Damasceno, certamente o primeiro que descortinou o valor da sua obra para além do espírito de colecionador de raridades bibliográficas, segundo a qual Qorpo-Santo seria antes de tudo “um singular”. Não sei se Aníbal e eu quereríamos dizer exatamente a mesma coisa através da expressão – ela também “singular”. Para mim, a singularidade de Qorpo-Santo se reveste de caráter artístico que venho observando frequentemente em episódios contemporâneos – nossos, do século 21. Estava eu certa vez na Place des Vosges, em Paris, quando ouvi uma voz cantando – uma voz extremamente “singular”. Assistira na noite anterior a um concerto na Igreja de la Madeleine que me deixara completamente insatisfeito. Fora uma apresentação de orquestra de câmara, com peças de Vivaldi, Mozart, etc. E esta última palavra me sintetizara a percepção do concerto: etcétera. Era mais um


literatura

primeiro SEMESTRE

2014

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etcétera. A apresentação fora correta, sem deslize,

fragmentos, se assumiam como tal, era isto que

até ela; e foi esse espírito de improvisação na lei-

mas sem mais do que isto. Fora uma apresentação

lhes dava a graça da aura benjaminiana.

tura de uma desrazão que tornou suas encenações

burocrática, daquelas em que se sai sem a centelha de alguma arte. Um zero à esquerda.

Tais pensamentos me levaram à consideração da contemporaneidade do artista, neste oceano

– e as torna ainda – apaixonantes e mesmo hilárias para quem as vê.

Pois ali nas arcadas da Place des Vosges es-

turbulento de informações aparentemente frag-

Qorpo-Santo era sem dúvida um homem

tava um homem, não maltrapilho, mas com vestes

mentárias, mas marcialmente organizadas pelo

dotado de certo instinto teatral – assim como

puídas e em desalinho, acompanhado por uma

império – não dos – mas sobre os sentidos, nesta

José de Anchieta, entre os índios e os empreen-

destas caixas de som toscas em que borbulham

ordem unida que apregoa continuamente: você

dimentos e as catástrofes da conquista, também

melodias de espírito kitsch, e que cantava em

não precisa sonhar, nós sonhamos por você.

fora dotado. Este instinto era a capacidade – que sabe-se lá de onde vem – de ver a vida como tea-

voz de falsete canções absurdamente lindas, com

Talvez fosse desse sentimento que Qorpo-

sentimento e dedicação total a elas. Para falar a

-Santo era de fato a vanguarda, com seu teatro a

verdade, não me lembro das canções; lembro-me

um tempo desengonçado, cômico e trágico, dra-

Aqueles saltimbancos de rua a que me refe-

da voz dele, do empenho, daquele cenário único,

mático e desdramático, como querem os absurdis-

ri no começo fora dada essa verdadeira graça de

em que a arcada sob a qual ele cantava criara uma

tas e os brechtianos. Ele e seu teatro eram também

encenar sua perda de medidas e de certezas com

acústica única, embora e talvez por isto mesmo,

o fragmento de um naufrágio, o naufrágio da ra-

a arte da transfiguração, ao contrário daqueles ar-

improvisada. Ficou-me a lembrança sobretudo do

zão, o naufrágio de uma razão. Não estou falando

tistas que ficavam confinados ao próprio decoro

contraste: de um lado, aquela encenação canônica

da pecha de loucura que sobre ele se abateu e se

repetido. Qorpo-Santo, a seu modo, desfrutou da

e burocrática da igreja na noite anterior; do outro,

abate, ora negativa, ora positivamente. Estou fa-

mesma graça.

a absoluta singularidade daquele momento único,

lando da razão de um teatro, que compunha um

O resto, convenhamos, é silêncio e mistério.

dotado de uma aura que talvez lembrasse o que

decoro, em que os códigos estavam todos preser-

Por que foi assim? Por que a ele foi dada essa me-

Walter Benjamin dizia: aquilo era irreprodutível,

vados em seus respectivos nichos. É certo que o ro-

dida da desmedida? Jamais saberemos.

efêmero, mas imorredouro.

mantismo de que Qorpo-Santo foi contemporâneo

Tempos depois, a vivência de momentos úni-

chacoalhou os códigos do teatro clássico, mas não

cos se repetiu. Uma vez, em Belgrado, diante de

o suficiente para se fazer o teatro que se reorga-

um tocador de copos; outra vez em Berlim, diante

nizava continuamente em seus decoros. Foi essa

de um tocador de garrafas. Mas as mais impressio-

radicalidade que Qorpo-Santo, com suas comédias

nantes aconteceram com um coro russo que ouvi

aparentemente toscas, trouxe para a dramaturgia

por duas vezes, uma em Bremen e outra também

e para a cena do Brasil. Algo de fato muito singular.

em Berlim. Vestidos a caráter, com suas fardas do

Houve assim uma coincidência qurioza –

antigo Exército (talvez o czarista, porque hoje o

como escreveria Qorpo-Santo. Não se tratava

Vermelho não pega mais bem), o coro era simples-

apenas de que seu teatro tivesse um caráter frag-

mente magnífico. De novo, efêmero e imorredouro

mentário como forma de composição. Na verdade,

ao mesmo tempo.

era como se existisse junto com as peças fragmen-

Foi quando me assaltou o sentimento que

tárias, que nos encantavam e ainda encantam pelo

nesses casos eu estivera exposto a fragmentos de

tratamento irreverente dado aos cânones e ao de-

uma ordem que se decompusera; eram artistas de

coro do século 19, um metafragmento. Este seria

algum coral desfeito, talvez pela intempérie do

o próprio Qorpo-Santo e seu teatro, personagens

naufrágio dos regimes comunistas e de suas or-

de si mesmos. Ali onde os seus contemporâneos

dens artísticas. Destas, restara aquele fragmento (e

viram a decomposição de um espírito, o de Qorpo-

talvez outros), à solta, meteoricamente, pelo tempo

-Santo, nós víamos a decomposição do espírito de

e pelo espaço.

um teatro, de um “espírito do tempo”, um zeitgeist,

De que ordens ou narrativas seriam os outros – o cantante da Place des Vosges e os batucadores

de onde emergira o nosso, afeito às decomposições e ao fragmentário.

de copos e garrafas – fragmentos perdidos? Nes-

Foi esse aspecto que tornou a dramaturgia de

ta altura, impossível saber. Mas eles eram de fato

Qorpo-Santo atraente para quem primeiro chegou

tro, e de inserir-se nessa encenação.


LEITURA

primeiro SEMESTRE

2014

61

O TRABALHO COM(O) FRACASSO Aline Dias Corpo Editorial

GODEL, ESCHER E BACH: UM ENTRELAÇAMENTO DE GÊNIOS BRILHANTES

a máquina de fazer espanhóis

Eu Vi o Mundo

valter hugo mãe

Cícero Dias

Cosac Naify

Cosac Naify

São tantas as anotações e tantos os

No livro Eu Vi o Mundo, Cícero

momentos de abandono durante a

Dias (1907 – 2003) nos leva

Douglas R. Hofstadter O trabalho com(o) fracasso é uma

Imesp

publicação da artista brasileira radicada em Coimbra Aline Dias.

Ganhador do prêmio Pulitzer,

leitura, para encaixar a respiração

a conhecer o seu mundo que

A um só tempo trabalho artístico

este livro fantástico compara

no lugar certo depois de uma cena

começa em Escada (PE) até Paris,

e pesquisa em arte, o livro

a música de Bach com os

estupenda, que ouso classificar

onde se finda. Suas memórias

explora a potência do que ainda

desenhos de Escher e o Teorema

este como um de meus romances

passam pela infância no engenho

não foi – daquilo que desarma

da Incompletude de Gödel,

prediletos. Em todos os tempos.

Jundiá; a sua amizade com

uma ação poética ou, mesmo,

demonstrando como todos eles

O angolano valter hugo mãe não é

Gilberto Freyre; a vida no Rio de

ordinária. Ele fala do fracasso como

funcionam simultaneamente em

um autor fácil – além de grafar tudo

Janeiro com Manuel Bandeira e

acontecimento. Condensado a partir

diversos níveis interconectados.

em minúsculas, tem uma pontuação

Villa-Lobos; a amizade com Pablo

de relatos de experiências da autora,

Traçam-se a seguir paralelos com

errante. Há períodos longuíssimos,

Picasso, Henri Matisse e com Di

depoimentos de outros artistas

a estrutura da mente humana

com diálogos e pensamentos

Cavalcanti. A edição traz fotos

(contemporâneos e históricos) e um

e com o desenvolvimento de

intercalados no mesmo formato de

de Cícero na sua infância e na

vocabulário poético, a publicação

inteligência artificial.

texto. O barbeiro antónio jorge da

vida adulta. O livro apresenta os

nos coloca frente à mágica

Se tudo isto soa muito complicado,

silva, 84 anos, perde a companheira de

croquis dos figurinos feitos por

contradição que é estar diante

não tema: cada capítulo é

toda uma vida, laura, logo no primeiro

Dias para o balé Maracatu de

daquilo que poderia ter sido, mas

precedido por um diálogo ficcional

capítulo. Não obstante, ainda vai parar

Chico Rei. Cícero Dias não foi um

não aconteceu, e que, num jogo

entre Aquiles e a Tartaruga, no qual

num asilo porque a filha elisa não

brasileiro distante. Logo no início

de lógica, passa a fazer sentido à

os conceitos a serem discutidos

tem como lhe dar atenção e porque o

do livro, ele diz: “Minha memória

medida que é narrado. Numa espécie

são apresentados de maneira

irmão, ricardo, está há anos rompido

não obedece a leis, mas à saudade

de poética do fracasso, Aline nos

relativamente simples. Não é

com a família. Essa descida ao inferno

que tenho dos doces de caju em

fala do que está prestes a afundar e

exatamente o que eu chamaria

é narrada de forma magistral.

calda...” Vale ler!

nos deixa ver nas entrelinhas o que

de leitura fácil, mas é altamente

P.S. – Ainda que obviamente

(não) constitui um trabalho de arte.

fascinante. Uma excelente

involuntário, a tal máquina de fazer

ginástica para o cérebro!

espanhóis do livro tem tudo a ver com a dúvida histórica de nós, gaúchos, termos escolhido pertencer a Portugal.

Mônica Hoff

Daniel Wolff

flávio ilha

Walter Karwatzki

Artista visual

Músico

jornalista

artista visual e curador



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA



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