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primeiro SEMESTRE
2014 ISSN 1984-056X
O FESTIVAL DAS RESIDÊNCIAS ARTÍSTICAS Também nesta edição
MOSTRAS DESTACAM O FAROESTE DE JOHN FORD E O CINEMA ALEMÃO CONTEMPORÂNEO EXPOSIÇÃO VIAJANTE DE CARLOS VERGARA CIRCULA PELO RIO GRANDE DO SUL
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
08
40
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artes cênicas
caderno de teatro
música
08 Publicação em doses das notas dos ensaios
30 Caderno de Teatro traz o relato do ator
40 Festival Internacional Sesc de Música, em
do espetáculo O patrão cordial, da Cia.
Cláudio Dias, da Cia. Luna Lunera,
Pelotas, impulsiona a carreira de jovens
do Latão, na visão do ator Ney Piacentini;
de Belo Horizonte, sobre a vivência em
músicos, que estabelecem contatos e têm a
e o aprendizado dos atores no processo,
grupo, o processo de produção dos
oportunidade de tocar com os professores,
sintetizado pelo dramaturgo e diretor
espetáculos em repertório que estarão
músicos consagrados
Sérgio de Carvalho
no 9º Festival Palco Giratório; e um texto
15 Teatro de objetos da Cia. Gente Falante representa o Rio Grande do Sul no Palco Giratório Nacional 19 Divagações cênicas de Patrícia Fagundes,
do professor Jean-Luc Moriceau, que dirige a formação doutoral do
pedagogia do sopapo, faz um resgate das
Institut Mines-Telecom/Télécom Ecole
origens do "grande tambor", que quase
de Management – França, sobre o
desapareceu no final do século 19
espetáculo Prazer
da Cia. Rústica, que completa 10 anos
de Leandro Anton, faz uma homenagem fevereiro deste ano
e trabalho continuado
DIRETORIA Zildo De Marchi
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Everton Dalla Vecchia
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br
46 O sopapo de todos os papos, ao músico Giba Giba, que faleceu em
28 Oigalê: 15 anos de estrada
O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
43 Artigo de Richard Serraria, Por uma
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
Jane Schöninger
Coordenadora de Cultura
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. General Zeca Neto, 1085 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur Milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403
Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
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CINEMA
ARTES VISUAIS
literatura
48 Mostra A América por John Ford exibe
56 Sesc realiza itinerância da exposição
59 Artigo do professor de literatura, jornalista
oito filmes do diretor que deu origem ao
Viajante: experiências de São Miguel
e escritor Flávio Aguiar analisa a obra de
gênero faroeste e que entrou para história
das Missões, com telas, lenços,
Qorpo-Santo, falecido em 1883, considerado
do cinema, inspirando até mesmo o Cinema
montagens de fotografias em 3D do
por alguns o precursor do teatro do absurdo
Novo brasileiro
artista Carlos Vergara
e sacramentado por Guilhermino César como "o manso louco do Guaíba"
52 Encontro com o Cinema Alemão, mostra 61 Leitura
realizada pelo Sesc em parceria com o Goethe-Institut que circula pelo Rio Grande do Sul em 2014, apresenta um fragmento da produção contemporânea
BALCÕES Sesc/SENAC
NÚCLEO DE ATENDIMENTO
Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de Moura Jardim, 1250 51 3490.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 3º andar 55 3423.5403 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
São Luiz Gonzaga R. 13 de Maio, 1297 55 3352.6225 Três Passos Rua Dom João Becker, 310 55 3522.8146
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Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte
Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem
Grace Prado
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.500 exemplares
CAPA
Foto de Claudio Etges do espetáculo Aqueles dois no 8º Festival Palco Giratório, em Porto Alegre
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cultura para todos A arte descentralizada chega aos mais diferentes locais, disseminando a cultura, formando plateias e instigando o pensamento crítico. Com o Arte Sesc – Cultura por toda parte, temos levado variadas manifestações artísticas a todas as regiões gaúchas. Com projetos como o Circuito Palco Giratório, por exemplo, trazemos ao RS um resumo do trabalho desenvolvido no restante do Brasil. Os 30 espetáculos que circulam pelo país destacam-se pela diversidade cultural das companhias de teatro selecionadas, pelas variadas linguagens, estéticas e pelos temas regionais. Na entrevista especial dessa 15ª edição da Revista Arte Sesc, é possível conferir o relato de Paulo Fontes, da Cia. Gente Falante, grupo gaúcho que participa do Circuito Nacional Palco Giratório 2014 e que já está em turnê pelo Brasil. Eles, assim como os demais grupos selecionados pelo projeto, além da circulação por 120 cidades, estarão presentes no 9º Festival Palco Giratório Sesc/POA, que acontece em maio deste ano. O Festival também conta com apresentações de grupos convidados, como a Cia. do Latão, também presente nas páginas a seguir, com textos de Ney Piacentini e Sérgio de Carvalho. Destacam-se, também, a homenagem de Leandro Anton, coordenador do Quilombo do Sopapo, ao mestre Giba Giba, e o Caderno de Teatro, com a Cia. Luna Lunera. A publicação contempla, ainda, artigos e matérias relacionados à Cia. Rústica, Oigalê, Mostras de Cinema Alemão e de John Ford, Festival Internacional Sesc de Música, Carlos Vergara, Qorpo-Santo, Sopapo, entre outras pautas. Boa leitura!
Zildo De Marchi
Everton Dalla Vecchia
Presidente do Sistema Fecomércio-RS, Sesc e Senac
Diretor Regional Sesc/RS
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Obra de Carlos Vergara Sem tĂtulo, 2011 Monotipia e pintura em lona crua 130 x 80 cm
Foto: Cesar Duarte
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ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
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POR ney piacentini
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ator da cia. do latão
Ensaio sobre ensaios Publicação em doses das notas dos ensaios de O Patrão Cordial, da Cia. do Latão, na visão do ator Ney Piacentini
1ª dose
contato com a dramaturgia de Brecht. Na oca-
O Sr. Puntila e seu criado Matti foi escrito em 1940,
sião, percebemos o potencial social e popular do
no exílio de Bertolt Brecht na Finlândia. Trata-se de
texto brechtiano, assim como suas facetas patética
uma fábula na qual um fazendeiro está para casar
e cômica. De lá para cá, nos envolvemos em ou-
sua filha com um diplomata. O centro do debate da
tros trabalhos para, em 2011, retomarmos o projeto
peça está na relação de Puntila com seu motoris-
com algumas leituras da obra, mesclando Puntila
ta Matti, que espelha dois modos de dominação: o
com trechos do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Bu-
primeiro arcaico e violento, quando o proprietário
arque de Holanda. Esta segunda tentativa, de dar
de terras está sóbrio, e o segundo moderado e cor-
vida às elaborações de Brecht e Sérgio Buarque, foi
dial, quando o fazendeiro está embriagado.
apresentada na forma de uma resumida leitura en-
Os demais personagens da peça reproduzem
cenada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na
o tema vertebral do texto, envolvendo-se nos ar-
USP, por ocasião das comemorações dos 50 anos do
dis do ambíguo comportamento do patrão. Brecht
instituto criado por Buarque de Holanda.
mesmo a encenou no Berliner Ensemble, na Alema-
Em fevereiro de 2012, começamos a etapa de-
nha, em 1948. No Brasil, uma das mais conhecidas
finitiva de apropriação dos referidos materiais, com
montagens dessa obra foi realizada em 1966, com
vistas a um resultado teatral. O que aqui descreverei,
direção de Flávio Rangel, tendo Ítalo Rossi e Jardel
em doses, é fruto de anotações que fiz durante os
Filho nos papéis centrais, pela Companhia Nacional
ensaios, embora não seja a totalidade das experi-
de Comédia .
ências que o grupo realizou em torno da obra de
[1]
Demonstração de O patrão cordial no assentamento Carlos Lamarca, no município de Sarapuí, no interior de São Paulo Foto: Sérgio de Carvalho
A aproximação da Cia. do Latão ao texto
Brecht. Trata-se de uma visão pessoal e parcial do
de Bertolt Brecht começou há mais de uma dé-
espectro gerado pela equipe da Cia. do Latão, que,
cada. Logo depois de termos feito A comédia do
até o momento da publicação destas notas, conti-
trabalho em 2000, experimentamos, por algumas
nua trabalhando sobre O patrão cordial, nome com
semanas, através da Análise Ativa[2], um primeiro
o qual rebatizamos a criação do poeta alemão.
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
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1 Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural – Teatro. 2 Segundo Maria Knebel, assistente de Constantin Stanislavski, em seu livro O último Stanislavski, a Análise Ativa é um método prático de compreensão da dramaturgia, em que os atores improvisam sucessivas vezes as situações da peça, de acordo com as indicações da direção, para entender “em pé” o texto, e não via leituras de mesa.
2ª dose
No entanto, ao fazer e refazer todos os dias ideias
seria preciso detalhar as interpretações para que
Como fonte de inspiração para as nossas expe-
e imagens como as chaplinianas, quem nos ga-
os atores adquirissem, simultaneamente, feminili-
riências, assistíamos a filmes curtos do início da
rantiria que não poderíamos chegar em sugestões
dade e sinceridade em cena.
trajetória de Charles Chaplin para estudar seu
aplicáveis a Puntila?
estilo de atuar e, quem sabe, utilizá-lo no modo
Por outro prisma, a postura de Puntila no improviso, que passeava observando os depoi-
como os personagens da peça de Brecht se com-
3ª dose
mentos daquelas mulheres, seria a de encanto
portariam. Em uma dessas pequenas películas,
Pelo fato de termos, nesse processo, somente duas
e não de repulsa como eu experimentei na oca-
Chaplin representa um bêbado, e a associação
atrizes no elenco e ainda por não nos limitarmos
sião. O patrão, alcoolizado, agiria na contramão
com o estado de embriaguez do Sr. Puntila foi
ao physique de role das atrizes e atores, três dos
do que cometi, vendo beleza, sem deboche, nos
imediata. Acontece que se inspirar no gênio de
nossos intérpretes – Carlos Escher, Renan Rovida e
relatos da dura e árdua vida rural, captada pela
Carlitos é tarefa complexa. Contudo, paulatina-
Rony Koren – prepararam um fragmento cênico, a
pena honesta de Mário de Andrade. Novamen-
mente, o diretor Sérgio de Carvalho conduzia o
partir de textos de O turista aprendiz, de Mário de
te, observamos que a primeira tendência de um
nosso olhar para o que poderia nos interessar:
Andrade, que davam voz a camponesas brasileiras
ator é trabalhar dualisticamente, ou seja, se um
“Observem como ele dá vida aos objetos que o
das décadas de 1940 e 1950. Este cruzamento par-
fazendeiro se depara com um grupo de campo-
rodeiam. O seu casaco se torna animado e por
tiu da direção, que pretendia inserir o fazendeiro
nesas, ele inercialmente entraria em oposição a
isso ele se atrapalha tanto com a roupa. Temos a
Puntila no universo rural nacional, deslocando-o
elas. Mas no caso do realismo dialético, que está-
impressão que o casaco tem vida e que Chaplin é
de seu contexto europeu, como na obra de Brecht.
vamos reaprendendo, o personagem poderia ser
o objeto diante de sua própria vestimenta.”
Além da mistura de homens representando mu-
dois: mesmo que a sua função de patrão o levasse
Essas recomendações nos deixavam intriga-
lheres, havia outro desafio que era o de atores fa-
ao autoritarismo, porque não tê-lo, naquela pas-
do, pois éramos desafiados a procurar uma co-
zendo se passar por camponesas. Por conseguinte,
sagem, como afável e contemplativo?
micidade ao mesmo tempo simples, sofisticada e
foi requisitada a atenção para evitar a tipificação,
rica em detalhes. Ao nos metermos a fazer algo
que normalmente vemos no teatro, tanto nos ca-
4ª dose
semelhante a Chaplin, tínhamos em mente um
sos de inversão de gêneros quanto de classe so-
Em um novo experimento de ensaios, formulado
pequeno roteiro para a execução dos fragmen-
cial, ou da mimese de figuras urbanas em agrárias.
pela atriz Adriana Mendonça, foi proposto para o
tos, embora sempre com liberdade para o ines-
Simplificando, é tarefa difícil dar vida a mulheres
grupo uma transcrição teatral de um trecho ex-
perado. Nos improvisos, algo interessante surgia,
camponesas sem descambar para a caricatura. Na
traído do filme mudo de D. W. Griffith, Lírio par-
porém, em boa parte das vezes, fracassávamos.
primeira amostragem, isto não aconteceu, todavia
tido. Transportamos a atmosfera melodramática do cinema para o tablado, e a cena ganhou alguma vida, distinta do filme e com pouca relação com os demais temas que estávamos tratando. Mas justo pelo seu deslocamento foi vista com bons olhos pela direção, ainda que não viesse a ter utilidade imediata. Para o elenco, encenar uma sequência de ações sem o uso de palavras, como foi aquele caso, pareceu-nos produtivo, por um ângulo que, para tal propósito, é necessário tecer a trama apenas imaginariamente, povoando as cabeças com falas internas. A prática de falar mentalmente, sem a emissão de palavras, assemelha-se ao que se passa constantemente em nossas consciências na vida real. Podemos, aparentemente, permanecer em silêncio, embora, por vezes, estamos continuamente em diálogo mudo com as pessoas e com as coisas que nos rodeiam, e esses pensamentos mobilizam
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o corpo todo. Em cena, acontece de não levarmos
essa a questão a ser enfrentada naquelas sessões.
em conta de que modo reagimos à realidade dos
Sabíamos que estávamos exercitando algo que
acontecimentos do mundo, por isso o exercício foi
não era fluente para nós, embora soubéssemos da
importante: por nos ter dado a oportunidade de
sua importância, justo pelo poder de ampliação do
pensar em cena, sem o imperativo da fala.
nosso repertório: com alongamentos, nossos movimentos em cena, quem sabe, seriam melhores e,
5ª dose
se somados ao aprendizado coreográfico, seriam
A preparação corporal a que o bailarino Milton
muito úteis com certos passos em danças que a
Kennedy nos submetia teve suas peculiaridades.
peça poderia exigir.
Parte dos atores, inclusive eu, sentia dificuldades em fazer as aulas de alongamentos, acompanha-
6ª dose
dos de alguns movimentos coreográficos. É fre-
Seguindo uma dinâmica que permite avanços e
quente que parte dos atores brasileiros não tenha
retomadas do que já havia sido levantado em nos-
uma cultura de treino físico permanente. Essa des-
sos treinos, lançamo-nos a um exercício cênico-
continuidade no trabalho corporal se manifesta
-musical no qual um ator cantaria o trecho de uma
quando se tem pela frente um preparo consistente,
música, e um colega se acoplaria cenicamente à
como era o caso da nossa parceria com o ex-in-
canção. Tentamos nos colocar em tempos-ritmos
tegrante do Balé da Cidade de São Paulo. Mesmo
diferentes nas intervenções, feitas a partir das can-
percebendo a nossa limitação, Milton requeria, em
ções, de modo a não nos harmonizarmos com as
suas aulas, que fôssemos enfrentando, gradativa-
músicas, mas, sim, criar contrastes.
mente, pequenos desafios, em busca de uma maior flexibilidade e maleabilidade muscular e rítmica.
Espetáculo mistura O Sr. Puntila e seu criado Matti, de Brecht, com trechos de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda
Fotos: Divulgação Cia. do Latão
Se alguém propusesse uma canção lenta ou introspectiva, outro colega poderia contracenar
Todavia, havia resistências da nossa parte.
em velocidade alterada, porém mantendo a re-
Pela falta de hábito, nossos corpos nem sempre
lação com a ideia do parceiro. Ricardo Monaste-
respondiam às orientações de Kennedy, contudo
ro, por exemplo, entoou um trecho que parecia
estávamos lá, praticando. Desenvolver habilidades
ser um canto gregoriano, e eu entrei pedalando
que nos são próximas é confortável e o mesmo não
freneticamente uma bicicleta na frente do que
se pode afirmar sobre nossas incapacidades. Era
seria uma igreja, olhando para trás, como se fu-
ARTES CÊNICAS
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gisse de alguém. Renan Rovida puxou um tom
Puntila, questionando aquela prática, pois, para
Essa postura de fazer a máquina teatral fun-
religioso e Adriana Mendonça fez uma garota
ele, os trabalhadores deveriam estar na labuta.
cionar, preenchendo o espaço com palavras e ar-
sedutora, que para ele se insinuava, com uma
Ao ver a atriz Helena Albergaria em cena, tratei-a
ranjando coisas para fazer o tempo todo durante
ponta de vulgaridade.
como se a minha filha Eva estivesse no meio dos
uma improvisação, vem do ator que quer dirigir
Na verdade, estávamos colocando à prova
camponeses, ao que Helena me respondeu que eu
internamente o ritmo das coisas. É um comporta-
as teorias que Martin Eikmeier vem desenvolven-
mesmo (Puntila) havia pedido a ela (Eva) que des-
mento que tem origem na ansiedade de “mostrar
do há anos, cujo bojo é a desarmonização entre
se aulas de corpo para os empregados, coisa que
serviço” e não do personagem em reagir com os
música e cena, o que contraria a expectativa de
o fazendeiro não lembrava.
próprios pensamentos, o que proporcionaria ou-
o que comumente se faz no teatro e no cinema.
Depois que fizemos o improviso fiquei pen-
tras posturas mais próximas ao realismo. Não é tão
Quer seja uma música lenta que leva os atores a
sando que poderia ter agido de outro modo,
simples para um diretor convencer um ator de que
agirem com vagar ou o contrário, quer seja uma
apenas perguntando a respeito do meu estranho
a sua pressa em resolver uma cena é inútil em de-
trilha sonora ágil que provoca uma dinâmica cé-
pedido: “Em que momento eu havia solicitado
terminados momentos.
lere nos intérpretes. Nos termos de um realismo
que ela fizesse ginástica com os peões? Eu es-
Mais tarde, já fazendo ensaios abertos ao pú-
matizado, nem sempre é o que acontece. Podemos
tava bêbado?”, mas deixando que Eva contasse
blico, Sérgio me disse que Puntila (renomeado em
estar em um consultório de um dentista onde toca
como teria sido aquela ordem esdrúxula. Deveria
nossa adaptação como Cornélio) poderia ser um
uma música suave e internamente estarmos muito
ter mandado que ela me mostrasse o que havia
sujeito que mais recebe dos outros e pouco age so-
agitados com o fato de, talvez, não termos dinheiro
preparado e assistir ao tal alongamento com os
bre eles. É um proprietário que não tem as mesmas
para pagar o tratamento dentário, mas temos que
empregados. Assim a cena ficaria nas ações, nos
ânsias do ator Ney, desatinado a falar sem respirar,
fazer a consulta, pois o dente já está caindo.
gestos e na boca dela e não comigo falando du-
não vivenciando a fundo as situações.
rante toda a cena, sem sequer ouvir as respostas 7ª dose
dos outros atores. Esse problema é recorrente em
8ª dose
A partir de uma foto curiosa, sugerida pelo ator
mim e sempre, com toda razão, criticado pela di-
Era a hora de encarar os personagens. Uma atriz
Renan Rovida, na qual se exibia um grupo de
reção. Sérgio de Carvalho sempre nos diz que o
faria Eva (que na nossa versão passou a se cha-
cortadores de cana fazendo ginástica no meio de
importante é vivenciar as relações dentro do jogo
mar de Vidinha ou Vivi) e os demais se revezariam
uma plantação, lançamo-nos em uma sequência
das ações, ouvindo como personagem os parcei-
fazendo o diplomata-noivo de Vivi, dentro do sis-
em que aconteceria uma espécie de ginástica la-
ros em cena e não como um ator, como no meu
tema Coringa, em que o mesmo papel é feito por
boral dos camponeses, como se faz em empresas
caso, tentando manter a energia do improviso em
diferentes atores. A recomendação era lutar contra
urbanas. Terminei entrando na brincadeira como
alta voltagem.
a afetação do diplomata, mostrando seus esforços
ARTES CÊNICAS
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3 Brecht retirou de Stanislavski esta dialética da atuação: “Ao representar um bêbado, não demonstrar sua volubilidade, mas sim seus esforços em parecer sóbrio.”
em ser másculo. Em um e outro instante, o ator
My name is Lolyta e eu não posso
Carlos Escher conseguiu, em meio aos improvisos,
brincar com garotos
com Escher e Koren, foi arrebatora. Ela mostrou
um lampejo do que seria atuar com duas forças em
Meu coração é do papai, you know, the
uma Vidinha/Eva cantando e dançando como uma
luta dentro do personagem: um homem que não é
proprietaire
diva bêbada, acompanhada por dois peões de seu
totalmente heterossexual, procurando se conven-
A performance de Helena, que a coreografou
pai, num estágio de embriaguez que não existe no
cer, diante de sua noiva, que tem desejos por ela.
Enquanto se divertem na quadra de
texto de Brecht, mas que poderia ser outro cami-
Escher, ao pegar Eva/Vidinha para dançar, de forma
bocha
nho para a personagem. A cena/canção/dança de
viril, assim que os corpos dos dois se colaram, des-
Talvez ainda façam um jogo diferente
Vidinha/Vivi insinuando um striptease agressivo
viou sua cabeça no sentido contrário ao rosto da
Mas quando eu disser não me siga
para o pai, como consequência do fracasso da pos-
atriz Helena Albergaria, fechando suavemente os
Porque meu coração pertence ao papai
sível união entre ela e o motorista Matti, causou
olhos, o que gerou, simultaneamente, um suspiro
espanto e está no espetáculo. A direção foi pro-
romântico, mas também uma rejeição física ao en-
Se o meu coração pertence ao papai
movendo a cena, que se tornou um dos momen-
lace da dança.
Então eu simplesmente não posso dar
tos mais fortes da peça, pois nela Vivi se apresenta
mole
ao pai revoltosa e de aspecto obsceno e grotesco.
meira reação, que busca encontrar uma força in-
Se o meu coração pertence ao
Albergaria é, entre nós, a mais ativa atriz como co-
terna oposta a sua aparência, é uma constante na
papapapapapapapaii...
dramaturga e coencenadora. Tem um despojamen-
A procura por uma atuação contrária à pri-
atuação da Cia. do Latão, embora de extrema difi-
to exemplar que nos incentiva ao risco e à ousadia,
culdade. Nós, atores, parecemos ter uma mola que
Se eu convidar, algum moço ou garota
contudo inimitável. Trata-se de uma energia e um
nos impulsiona para o lugar comum: ao fazermos
Para um sarapatel e tibiribidubi...
modo de ver o mundo característicos, e o melhor
um homem afeminado, vamos para a afetação, ao
Mesmo que seu tamanho me satisfaça
que temos a fazer é nos arriscarmos como ela o faz
mostrarmos um bêbado, não conseguimos pensar
O meu coração pertence ao papai
nos ensaios, ao nosso modo é claro, pois só Helena
que ele tenta disfarçar sua embriaguez. O paradig-
é capaz de propor disparates tão produtivos.
ma stanislavskiano nos escapa, mesmo nos ato-
Se eu convidar um garoto alguma noite
res que já têm experiência com essa pesquisa no
Pra fazer uma boquinha e tibirubiduri...
10ª dose
campo da interpretação. Todavia, o pequeno feito
Adoraria vê-lo pedindo mais
Quanto à festa de noivado que estava em discussão
de Carlos Escher naquele dia revelou que, fazen-
Mas o meu coração pertence
naquela semana, a direção nos encomendou uma
do e errando, mas sempre tentando, seria possível
ao papai
espécie de prólogo da cena que mostrasse Puntila
[3]
compreender, em cena, a ideia do realismo contraditório, proposto pela direção. 9ª dose O exercício mais surpreendente, oriundo do elenco, foi uma parceria entre Martin Eikmeier e Helena Albergaria, segundo uma proposta da atriz. Eles fizeram uma adaptação da canção de Cole Porter, cantada por Marilyn Monroe, My heart belongs to daddy, sendo que a primeira versão da letra foi, mais ou menos, a seguinte:
Personagens foram construídos a partir de exercícios de improviso
Foto: Divulgação Cia. do Latão
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
13
4 Pela descrição de Dario Fo, em seu livro Manual mínimo do ator, “grammelot” é uma palavra de origem francesa, inventado pelos cômicos “dell’arte” e italianizada pelos venezianos, que pronunciavam “gramlotto”. Apesar de não possuir um significa intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se portanto, de um jogo onomatopeico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, como o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo.”
(Cornélio para nós) preocupado com os gastos que
O debate era pertinente para termos mais claro
Em alguns casos, creio que conseguimos al-
aumentavam a cada momento. Preparamos um
em que estágio se encontrava, diante daqueles
cançar o que a direção nos propunha, em outros
trecho em que o fazendeiro vê empregados abrin-
acontecimentos, a dependência econômica entre
não. Na ação em que Cornélio decide jogar fora
do muitas garrafas de champanha, comidas saindo
os dois personagens. Isto acabou por gerar uma
todas as garrafas, na penúltima cena da peça,
dos fornos sem parar, um serviçal chegando com
pequena frase na boca do noivo: “A grandeza de
resolvemos destacar o instante em que o patrão
um barrilzinho dizendo: “Sr. Puntila, vamos ter que
um homem se mede pelo tamanho de suas dívidas,
impede o seu motorista de tocar nas garrafas,
abrir este também....”, com o dono respondendo:
quer dizer, da sua generosidade...”
quando este se dispõe a ajudá-lo a se livrar das
“Esse não, você não sabe o quanto me custou...” e
bebidas. Com um gesto de quem dá uma ordem
assim por diante. A direção pareceu ter aprovado
11ª dose
brusca com a mão direita, o proprietário manda o
a experiência, mas mudou a dinâmica, misturando
A tônica dos ensaios continuou sendo a busca
seu empregado ficar parado, interrompendo o seu
os planos, dando a eles simultaneidade, sujando-
das ênfases nas ações, dentro das experiências na
movimento de quem atiraria os preciosos líquidos
-os e os desorganizando para que ficassem mais
sala de trabalho. Quais seriam as atitudes físicas
do alcoólatra.
próximos da agitação que é uma cozinha de uma
primordiais de cada cena da peça? O que estaria
Em outra parte da peça, quando Cornélio e
festa de casamento, introduzindo o adido e a Vivi
acontecendo corporalmente entre os persona-
o adido Hélio se deparam com Vivi e Matti (re-
nesse contexto.
gens? Esta abordagem se diferenciava de uma lei-
nomeado como Vitor no papel conduzido pelo
Lá pelas tantas, conversamos sobre uma in-
tura imediata do texto de Brecht, que poderia dar
ator Rogério Bandeira) saindo do banheiro juntos
dicação do original na qual Puntila/Cornélio, para
a entender que os problemas da trama eram de-
depois de uma suposta relação sexual, fizemos
lembrar o nome do diplomata, saca de seu bolso
batidos verbalmente, uma vez que os personagens
Cornélio agarrar com as mãos o pescoço da fi-
uma nota promissória. A origem deste documento
falam muito nos atos do original. Mas a direção
lha, ação que levou todos os demais envolvidos
de dívida foi motivo de larga discussão, pois isso
fugia dessa ótica e insistia que buscássemos as de-
na cena a livrar a moça do estrangulamento do
poderia definir melhor a relação entre genro e
finições gestuais. Para isso, em nossos experimen-
pai, com o grupo puxando o corpo do velho num
sogro: se a promissória era do adido e estava no
tos, teríamos que evitar a verborragia, e se possí-
movimento de vem e vai, que lembrou um jogo de
bolso de Cornélio, o que teria acontecido antes?
vel, quase não falar, o que não era uma regra sem
cabo de guerra e que tinha como base as estre-
Quando houve o encontro em que o proprietário
exceções. Como já tínhamos em nosso repertório
polias chaplinianas. As dificuldades dessas buscas
resgatou a promissória? Era uma dívida do diplo-
as pantomimas chaplinianas e/ou o “grammelot” ,
eram as de unirmos algo que poderia ser estiliza-
mata contraída junto com o futuro sogro ou com
esses recursos serviriam para evitar diálogos pura-
do, mas em registro realista, o que seria distinto
terceiros? Através de um banco ou de um agiota?
mente orais durante as improvisações.
de ou fazer acionar os clichês, ou incorporar a ati-
[4]
tude psicologizada. O “barato” seria o interregno entre as instâncias. 12ª dose Em síntese, as iniciativas dos atores e da direção se uniam, motivando a participação de todos: um entrava com uma imagem, outro com uma frase, de outro lado vinha uma música de Martin e uma polifonia de inquietações tomava conta de nós: “E se acontecesse isso? E se fizéssemos aquilo? Ali não poderíamos mudar para...?” A sala estava habitada pela imaginação acesa da equipe inteira. Não é fácil o convívio diário entre as pessoas de um grupo de teatro. São tantas as idiossincrasias que podem macular as relações que, quando o ambiente se torna criativo e cheio de vida, com um interesse real pelo trabalho, temos que dar vivas!
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
POR Sérgio de Carvalho,
14
dramaturgo e diretor da Cia. do Latão
APRENDIZADO DE ATUAÇÃO NO PROCESSO P
ou alegóricos) que um ator apresenta, mas os
atitudes das pessoas no espaço e tempo da cena.
processos – internos e externos – e as interações
A beleza das palavras teatrais é gestual.
vivenciadas pelo grupo em cena. Ação física é um conceito relacional.
Não concentrar – ao menos de início – os esforços da cena na dimensão comunicacional
Registro de alguns pontos
Não devemos definir o caráter da persona-
do teatro. Acossado pela sua dupla tarefa: cons-
gem, procurar sua “chave”, mas sim os seus vários
tituir o mundo imaginário e, simultaneamente,
importantes para o trabalho
comportamentos em relação aos outros, a partir
transmiti-lo ao público, o ator quase sempre se
dos atores na Cia. do Latão a
de um conjunto de coordenadas: condição social
agarra à segunda e foge das dificuldades da pri-
e psíquica, momento na história, situação obje-
meira. Recusa-se à difícil arte da mediação entre
tiva e subjetiva, finalidade estética e política da
mundos: a transmissão das palavras e atos é visí-
cena. Essas definições, entretanto, são móveis e
vel, a constituição simbólica é invisível, a primeira
fundamentalmente gestuais: importa menos o
dimensão parece mais tangível, mas ela é uma
“A máscara é o que dá sentido e tira”, ouvi a frase
que as personagens dizem e mais como se põem
passagem que pode se tornar obstáculo. A boa
fulminante numa entrevista dada pelo mestre de
(como totalidade) diante dos outros.
emissão vocal, a face trêmula, os olhos vidrados,
partir do espetáculo
O Patrão Cordial
reisado Manuel Torrado, que viveu no interior do
Não devemos acreditar, como quase todo
o peito projetado para a frente – tudo isso pa-
Ceará. Um ator interessado em dialética (e no te-
ator acredita, que as palavras são mais importan-
rece objetivo e chama a atenção para os meios
atro como interesse pela vida) pode se aproximar
tes do que as relações físicas. Na realidade, as pa-
técnicos do ator: ah, que dicção, que belo tim-
dessa compreensão se praticar algumas negações
lavras no teatro só têm mais importância do que
bre, quanta vibração. Já a vida da ficção, a luta da
que visam a superações.
os atos para o ator vaidoso, como moeda de troca
personagem consigo mesma, as dificuldades de
Desse ponto de vista, torna-se importante:
estética, não como lugar da verdade da cena. Só
agir com os outros, os pensamentos sutis, a per-
Não se deixar carregar pela própria energia
é possível buscar o mundo ficcional a partir dos
sistência no desejo do ato – tudo isso parece sub-
interpretativa, aquela que em certa medida é útil
enunciados do texto quando percebemos que as
jetivo demais e depende do que eu costumo cha-
para a superação do medo da boca de cena. “O que
falas são consequências, não causas dramatúrgi-
mar “calma épica”, de uma confiança nos olhos
me alimenta me mata”, “a força necessária para
cas. Que são sustentadas (e muitas vezes entram
e ouvidos do público, além de ofuscar a exibição
fazer uma revolução é a mesma que pode destruí-
em contradição) com um mundo sugerido pelas
imediata dos meios técnicos. Daí o alto desenvol-
-la” e “o remédio se torna veneno”: daí no teatro
vimento de truques e cacoetes comunicacionais
vermos tantos “energúmenos”, atores tomados
no palco e a baixíssima capacidade dos atores de
pela própria energia, sobretudo quando julgam
usarem a imaginação. Só que a autorreferenciali-
que protagonizam a cena.
dade da “presença” em relação ao “mundo repre-
Não podemos nos aproximar da persona-
sentado” gera também uma narrativa: a ficção
gem antes de trabalhar com o conjunto da peça,
de que o privilégio social conferido aos artistas é
sem pesquisar o sentido geral que permite a for-
índice de liberdade.
mulação da posição individual, sem entender as possíveis expectativas geradas pelo material no público. Daí a necessidade de nos considerarmos narradores, dramaturgos em ato, e não apenas executores, de percebermos que as pequenas personagens são tão ou mais determinantes para a experiência geral do que as consideradas grandes, de que no teatro dialético as contradições subjetivas dependem de sua capacidade de concentrar contradições objetivas. Não representar para demonstrar ideias, mas sim atuar numa relação concreta. Não interessam os “estados” (emocionais, psicológicos
Ilustração de Ricardo Bezerra para o programa de O patrão cordial
ARTES CÊNICAS
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2014
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Teatro de objetos da Cia. Gente Falante é o RS no CIRCUITO NACIONAL DO Palco Giratório
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
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A Cia. Gente Falante – Teatro de Bonecos é a repre-
Quais são as referências da companhia
madas brasileiras. Mas a promessa é grande e
sentante do Rio Grande do Sul no Palco Giratório Na-
nesta a linguagem ainda pouco explorada
os eventos que contemplam essa linguagem
cional, pela segunda vez, com os espetáculos Louça
no país que é o teatro de objetos?
despontam com toda força.
Cinderella e Xirê das Águas – Orayeyê Ôh. Fundada
A Gente Falante começou às cegas, porém,
em 1991 em Salvador, a trupe transitou por São Paulo
movidos pelo magnetismo quase metafísico
Como foi o processo de produção e o
até fazer da capital gaúcha o seu porto principal de-
que esse fazer teatral promove, curiosos e
percurso dos espetáculos que estão
vido à tradição local do teatro de bonecos ou formas
inquietos continuamos buscando mais hori-
no Palco Giratório Nacional: Louça
animadas, fomentado por inciativas como o Festival
zontes. Mas agora nos sentimos mais respei-
Cinderella e Xirê das Águas – Orayeyê Ôh?
Internacional de Teatro de Bonecos de Canela e as
tados e levados a sério pelas nossas travessu-
O Louça Cinderella, que é o espetáculo carro-
políticas públicas que financiam e amadurecem cada
ras muito focadas.
-chefe da nossa circulação em 2014 no Palco
dia mais a arte. Com 23 anos e 10 espetáculos no
O teatro de objetos é a linguagem mais recen-
Giratório Nacional, nasceu como ideia de uma
repertório, a companhia que se denomina “baiúcha”
te de todas, nascida com o impulso revolucio-
experimentação realizada em uma demons-
acredita na inesgotável variação de possibilidades
nário e contestador de artistas europeus que
tração para uma oficina de teatro de objetos
dessa linguagem mágica, rica e pulsante, um campo
faziam uma veemente oposição ao consu-
que realizamos em 1999, numa Mostra de
fértil e adequado para a exaltação dos mitos, das len-
mismo da revolução industrial na década de
Teatro de Bonecos aqui de Porto Alegre, para
das e da pluralidade étnica do Brasil. Nesta entrevista
1970. Uma reconstrução do olhar que equi-
a qual escrevi um roteiro, quase igual ao que
concedida à Arte Sesc, o diretor, ator, manipulador e
librasse a rigidez objetiva da sociedade con-
ele é hoje. Durante 10 anos, este roteiro en-
bonequeiro Paulo Martins Fontes fala sobre a traje-
temporânea e a disseminação da poesia das
trava e saía da gaveta e era contestado com
tória da companhia, as referências, os espetáculos, a
relações pautadas na importância da afeição
as referências que tínhamos acesso sobre a
circulação por todo o país, a atuação do Sesc como
e na necessidade da diferença como instru-
linguagem e, incessantemente, buscávamos
instituição promotora de cultura e outras curiosida-
mento complementar de crescimento no
mais referenciais. Em 2010, nos enchemos de
des do universo do inusitado teatro de objetos.
resgate do pensamento e das atividades lú-
coragem e fizemos eclodir o Louça e, no ano
dicas, tão naturais nas nossas infâncias. Esse
seguinte, o Xirê das Águas – Orayeyê Ôh (que
movimento construiu referências através de
circulará na programação como repertório)
três companhias que se destacaram: Théâtre
com a parceria da atriz e diretora Liane Ven-
de Cuisine, com Katy Deville e Christian Ca-
turella. Nós nos apaixonamos totalmente por
rignon, Vélo Théâtre, com Tania Castaing e
essa linguagem, ela transgredia a ideia que
Charlot Lemoine, e Théâtre Manarf, de Jac-
tínhamos sobre as formas animadas, definiu
ques Templeraud, fomentando a linguagem.
parâmetros inusitados para as nossas cria-
Mas foi a atriz francesa Katy Deville que fez
ções que nos deixavam mais intimistas e ple-
uso pela primeira vez do termo “teatro de ob-
nos de prazer no ato teatral. Surpreendente a
jetos”, caracterizando essa linguagem à qual
aceitação: o Louça Cinderella circulou muito
se dedicavam há muitos anos, usando obje-
pelos festivais e circuitos nacionais de teatro
tos prontos nas encenações, diferenciando
e foi indicado a sete categorias do Prêmio
do teatro de bonecos e teatro convencional
Tibicuera de Teatro, no Prêmio Açorianos de
de atores, uma linguagem que, para nós da
Teatro 2011, e foi contemplado com três: Me-
companhia, era um bicho assustador e com-
lhor Ator (primeiro prêmio de ator para um
plexo de sete cabeças. Passamos muitos anos
bonequeiro na história do Açorianos), Melhor
temerosos de experimentar e, hoje, é a mais
Cenografia e Iluminação.
desafiadora e deleitosa vertente de executar.
Louça Cinderella conectou o conto de fadas
Na Europa, existe uma infinidade de mani-
clássico com as minhas memórias afetivas,
festações preciosas usando essa linguagem,
relacionadas aos meus avós paternos e suas
no Brasil, infelizmente ainda somos poucas
origens étnicas, suas práticas de aproximação
companhias a experimentarem o teatro de
dos filhos e netos à volta da mesa. Para essa
objetos, ainda novo na cena das formas ani-
produção, nós nos servimos do imaginário
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
17
de uma mesa de chá inglês e seus aparatos
tanto quanto nos encanta e sensibiliza
antigos. Isso nos favoreceu por estarmos em
quando as executamos. Que exale de forma
uma terra onde os antiquários são inúmeros,
delicada o mesmo perfume de sempre, que
e essa pesquisa nos levou a resoluções plásti-
deixamos em infusão para compartilhar com
cas instigantes e também sintéticas.
vocês, uma essência de humanidade e lúdica
Xirê das Águas – Orayeyê Ôh é um segundo
poesia do nosso coração bonequeiro, com a
resgate dos referenciais culturais da cidade de
sutileza da “louça” e beleza com força expres-
origem da companhia e uma conexão com os
siva da artesania “tupi e afro”.
meus avós maternos. Uma homenagem a eles que reverencia a oralidade tal qual é realiza-
O que significa para a Gente Falante
da nas práticas tribais indígenas e africanas,
representar o Rio Grande do Sul
em uma floresta imaginária, usando objetos
nesse projeto nacional, talvez o mais
de artesania indígena e afro de todo o Brasil
abrangente do país?
para contar a lenda da sereia da água doce
Há alguns anos, nós nos lançamos na pesqui-
encantada pelo índio Abaeté (o belo). Esses
sa de novas manifestações dentro da nossa
objetos foram adquiridos nas inúmeras cir-
linguagem – teatro de formas animadas. Na
culações que fizemos Brasil afora, nas quais
verdade, temos consciência de que todas elas
visitamos os núcleos indígenas de cada região
são antiquíssimas, nasceram com as primei-
para conhecê-los um pouco mais, e os objetos
ras descobertas do homem. Nossa busca se dá
de muitos núcleos viraram personagens.
no desafio de hibridar todas elas, estabelecer
Estamos na expectativa de que essas duas
pontes com outras áreas das artes e nos de-
produções encantem por onde passarem,
safiar construindo nossas obras fora da nossa
Xirê das Águas – Orayeyê Ôh é um resgate dos referenciais culturais da cidade de origem da companhia, Salvador Fotos: Vilmar Carvalho
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
18
zona de conforto, explorando as manifestações que mais achamos complexas. Esse processo começou pela hibridação de técnicas de construção das marionetes (luvas so-
bom que esse projeto contempla os vários Louça Cinderella conecta o conto de fadas clássico com as memórias afetivas de Paulo Fontes
olhares no que tange à relação mais íntima e delicada com a plateia. Estamos muito gratos!
Foto: Vilmar Carvalho
fisticadas, marionetes-tringle, bonecos mo-
Como você avalia a atuação do Sesc na
chila...), depois passando para a construção
área da cultura?
de um roteiro que passa do textual à obra
Sem sombra de dúvidas, o Sesc é um dos
mímica (universalizando a comunicação e
maiores mantenedores da cultura no Brasil.
voltando ao textual, supervalorizando o sa-
Em todas as instâncias que fizemos parte da
bor das palavras) e uma dramaturgia pessoal
programação Sesc, observamos que é uma
(reveladora das nossas inquietações e nossa
instituição conectada com três aspectos que
vontade de contribuir para mudar o mundo).
para nós como companhia são essenciais:
Depois, passa pelas reduções (miniaturiza-
atenção para com a cultura local, escolha
ção e estreitamento do contato com o públi-
dos seus repertórios pela qualidade, mas com
co) para finalmente culminar em experimen-
diversidade, e atitude de fazer dialogarem os
tações lúdicas, as que acreditamos serem as
criadores daquela região com o que está sen-
mais simbólicas, universais e delicadas: as do
do produzido no resto do Brasil e no mundo.
teatro de objetos.
Esse triângulo de ações contempla a cultura
Essa linguagem dos objetos, a mais contem-
local com o incentivo necessário para manter
porânea de todas, é a que nos inspira, possui
essa mesma cultura regional viva, ventilando
mais liga com a velocidade do nosso tempo
as manifestações populares e abrindo prece-
presente, infelizmente, tão sem espaço para
dentes para a possibilidade de recriações, com
a poesia, com tanta pressa para as relações,
reconhecimento da identidade local e a pos-
com tantas megamanifestações artísticas
sibilidade de trocas de figurinhas ideológicas
que pouco atingem o indivíduo no seu co-
e técnicas com os outros Brasis através des-
ração. Há muitos anos, nossas escolhas são
se intercâmbio que o Projeto Palco Giratório
feitas pelas pequenas plateias, aquelas que
promove, que muito admiramos.
podemos olhar nos olhos, respirar junto, fe-
Circular para nós é uma reafirmação constan-
char uma egrégora de experiência sinestési-
te da nossa “identidade brasileira”, pois reitero
ca e afetuosa.
que não conhecemos esse nosso grande país.
Ser escolhido para uma segunda circula-
A tecnologia encurtou os caminhos, nos pos-
ção com nossas produções, este ano como
sibilitou uma comunicação simultânea, mas
representante único do Rio Gande do Sul,
não há nada melhor do que sentir na pele as
além de uma honra e muita responsabilida-
temperaturas, os sabores, os sotaques... O con-
de, também é uma chance de mostrarmos ao
vívio direto é fundamental para que tenhamos
público o quanto estamos nos reinventando,
mais material humano para inserir nas nossas
preocupados com o indivíduo, e de levarmos
obras. “Vamos lá mostrar nossas criações e fi-
para quem nos assistiu com o Circo Minimal
car um pouco mais brasileiros.” Essa frase é
(circuito 2008 no Palco Giratório Nacional) a
praxe de ser usada por nós da Gente Falante,
surpresa de outras formas prazerosas de brin-
nas filas de check-in. Cada viagem é um delei-
car e, principalmente, seguir também apren-
te no qual nos descobrimos mais e mais como
dendo. Somos muito gratos à curadoria pelo
artistas criadores, ficamos mais maduros e
olhar generoso para esse atendimento que
conscientes da riqueza e pluralidade de nossas
fazemos menos numeroso – máximo 50 es-
manifestações artísticas brasileiras.
pectadores por sessão – e mais abraçado. Que
ARTES CÊNICAS
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2014
19
por Patrícia Fagundes,
1 Cornago, Oscar. Teatralidade e Ética, in: Próximo Ato: questões da teatralidade contemporânea / organização Fátima Saadi e Silvana Garcia. – São Paulo: Itaú Cultural, 2008.
Diretora da Cia. Rústica de Teatro e professora de direção teatral no Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Doutora em ciências do espetáculo pela Universidade Carlos III de Madri; mestre em direção teatral pela Middlesex de Londres www.ciarustica.com
Sobre criações e mortes
cia. rústica 10 anos – divagações cênicas Este texto se compõe basicamente como um tes-
de tempo em que alguns corpos se encontram no
temunho em primeira pessoa. Incompleto, frag-
mesmo espaço respirando o mesmo ar, e certa se-
mentado, parcial, impregnado de possíveis enga-
quência específica de ações, palavras, movimentos
nos, como todo depoimento. Não é uma narrativa
é apresentada mais uma vez. Talvez essa própria
histórica, um artigo acadêmico apropriado ou um
condição efêmera, que conhecemos tão bem, nos
material de divulgação adequado. “Frente à im-
empurre a desejos de solidez. Uma mistura de re-
pessoalidade do poder corporativo, a cena ousa
sistência necessária e anacronismo, nessa época em
articular-se em primeira pessoa” , disse Oscar
que tudo se movimenta tão rápido, e o virtual é nos-
Cornago. Assim aconteceu nas últimas cria-
so meio habitual de convívio, relação e percepção. O
ções da Cia. Rústica, e com frequência na cena
teatro é velho. Está sempre morrendo. Mas renasce,
contemporânea em geral. Algumas vezes, o for-
morre e renasce, e só morrendo pode viver.
[1]
mato já se revela inclusive desgastado, esse falar
“Ser” um grupo e permanecer através dos
explicitamente a partir do “eu”. Desgaste, morte
anos, comemorar 10, 20, 30 anos de existência.
e renascimento; transformação. Assim caminha o
O que garante o aniversário? O nome, o CNPJ, o
teatro através dos tempos.
anúncio do tempo? Um projeto de trabalho? Vários
Como falar desde um narrador impessoal so-
projetos de trabalho? A promessa de editais? Se “é”
bre uma prática que é pessoal e afetiva do início ao
grupo ou se “está” grupo, em fluxo, em devir, aber-
fim? Como falar em “nós” sem incorrer nessa pe-
to a transformações, ventos, pequenas mortes?
rigosa tentativa homogeneizante de uma narrativa
Instituição ou associações livres temporárias em
que esconde diferenças, singularidades e desvios?
desejos de coletivo?
O “nós” de um núcleo de criação teatral, ou o que
Assim como o teatro, os espetáculos, o nú-
se convencionou chamar “grupo”, com frequência
cleo de criação e eu mesma morremos e renas-
muda muito ao longo do tempo. O nós só pode
cemos sem cessar. Ao pensar em 10 anos, penso
existir em constante negociação, com seus dese-
em transformações, ou seja, em mortes e nas-
jos de comunidade e encontro. Estará o conceito
cimentos. A memória se faz difusa e inventiva.
de “grupo” imbuído de desejos de permanência,
Não somos os mesmos, nunca somos os mesmos:
continuidade e eternidade, ou seja, tudo o que o
nem melhor nem pior, diferentes. Meus vários eus
teatro não tem? A materialidade pesada da cena
são diferentes de 10 anos atrás. A Cia. Rústica foi
– corpos, objetos, espaço-tempo real – desaparece
várias ao longo desse tempo. Cada projeto supôs
ao final de cada apresentação. O que poderia ser
diferentes parceiros, histórias, vontades, redes de
nossa “obra” se esvanece no ar. Neste momento
associações. Algumas pessoas permanecem, outras
que escrevo, os espetáculos que dirigi ao longo da
se foram, partidas e encontros, trocas, rupturas,
vida, incluindo os que estão ativos no repertório
colaborações, reinvenções, diferenças. Nenhum
da Cia. Rústica, não existem. São passado e talvez
plano de uniformidade. O heterogêneo e o diverso
desejos de futuro. Só existem no breve intervalo
parecem mais férteis.
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
20
Sabemos que não há um caminho para a arte.
se os artistas pudessem salvar as pessoas do que
e ampliado grupo de pessoas, os espectadores, que
A cena contemporânea é um mundo polifônico,
eles próprios acreditam que elas devam ser salvas.
influenciam e são parte da montagem. Não há
divergente, promíscuo (ou cheio de transversa-
Uma pretensão mais simples: compor espaços
cena sem público. O teatro acontece sempre entre,
lidades – mas gosto do conceito de “promíscuo”,
onde talvez possamos nos afetar, espaços de afe-
entre pessoas, entre elementos, objetos, espaços,
porque além de difuso, confuso, misturado, evoca
to e convívio com o outro. Experiências estÉticas
tempos, entre – ocupamos interstícios sociais. No
percepções de sensualidade e relações diversas).
(a grafia é essa mesmo, estÉtica, evidenciando o
entre, nessa espécie de vazio temporário, mundos
Fascinantes e múltiplas possibilidades de criação,
óbvio de certa forma, ética e estética são indissoci-
a explorar.
linguagens, discursos. Tento devorar antropo-
áveis, toda proposta artística implica um conjunto
Nessas explorações, meu papel é de ence-
fagicamente referências que me atravessam de
de opções em relação ao outro, uma ação no mun-
nadora. Também de produtora, tradutora, drama-
todos os lados, certa de que o verdadeiro teatro
do, uma forma de posicionar-se no espaço-tempo
turgista e outras possíveis funções que assumi
é um engodo. Tantas cenas possíveis. Visitamos
que vivemos).
em diferentes projetos. Ainda assim, penso que a
Shakespeare, intervenção urbana, autobiografia,
Cada espetáculo supõe um processo de en-
circo, música ao vivo, depoimento, dança, cabaré,
saios, que constitui uma extensa experiência re-
vídeo, ficções, desejos de real. Costurando esse
lacional intensificada e tensionada pela carga de
Sobre o diretor como artista relacional
patchwork de explorações, o desejo de compor a
desejos, desafios, convívio, conflitos e afetos que
Controverso papel o do encenador (usarei aqui os
cena como possibilidade de encontro entre pes-
circulam em turbulência durante o período de sua
termos “diretor” e “encenador” sem distinção de
soas: entre os artistas envolvidos, entre artistas e
realização. O espetáculo um dia se faz, estreamos,
sentido). Celebrado como autor-estrela ou limitado
espectadores, entre os próprios espectadores. Sem
e essa dimensão relacional do fazer teatral conti-
a “olho de fora”, expulso de alguns processos que
a pretensão messiânica de revelar a verdade, como
nua durante as apresentações, incluindo um novo
se pretendem livres, e efetivamente dispensável
MACBETH Estreia em maio de 2004. Financiamento Fumproarte. Indicado ao Açorianos nas categorias Melhor Direção, Ator, Figurino e Produção. Prêmio de Melhor Figurino.
SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO Estreia em março de 2006. Financiamento Fumproarte. Prêmio Açorianos de Melhor Espetáculo, Direção e Trilha Sonora. Prêmio Braskem de Melhor Espetáculo, Direção, Ator e Júri Popular. Prêmio Quero-Quero (do Sated) de Melhor Espetáculo, Direção e Trilha Sonora.
A MEGERA DOMADA Estreia em março de 2008. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2007. Indicado aos Prêmios Açorianos 2008 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Ator e Atriz, recebendo os Prêmios de Melhor Ator e Melhor Atriz, categorias nas quais também recebeu o Prêmio Braskem.
EQUIPE: Direção e tradução Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro Vilaverde, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Leonardo Machado, Marcelo Bulgarelli/ Felipe de Paula, Marina Mendo/ Elisa Volpatto, Renata de Lelis, Roberta Savian, Serginho Etchichury, Tadeu Lieselfeld/ Rafael Guerra e Lu Tatiana Cardoso/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora e preparação musical Marcelo Delacroix e Simone Rasslan/ Figurinos Antonio Rabadan/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão e Leonardo Machado/ Assistência de produção Ana Paula Zanandrea/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
EQUIPE: Atuação Álvaro Vilaverde, Carlos Modinger, Elisa Volpatto, Felipe de Paula/ Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Leonardo Machado, Rafael Guerra e Roberta Savian/ Sandra Possani/ Direção e adaptação Patrícia Fagundes/ Tradução Beatriz ViegasFarias/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora Monica Tomasi/ Preparação musical Simone Rasslan/ Figurinos e adereços Antonio Rabadan/ Cenário e objetos de cena Paloma Hernandez/ Assistência de direção Julia Rodrigues/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão e Leonardo Machado/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
EQUIPE: Direção e tradução Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro RosaCosta, Alexandre Scapini, Heinz Limaverde, João Spalding, Julio Andrade, Lisandro Bellotto, Nelson Diniz, Serginho Etchichury e Vanise Carneiro/ Iluminação Jo Fontana/ Trilha sonora Álvaro RosaCosta/ Figurinos Fabiana Pizzeta/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
encenação é o que me define, meu principal ofício.
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primeiro SEMESTRE
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para que o fenômeno cênico exista. No entanto,
que trabalhamos na esfera do imprevisível, posto
mesmo que a pessoa do diretor seja absolutamen-
que humano. As opções e metodologias propos-
te dispensável; não o são suas funções, que serão
tas afetam a vitalidade, a pulsação, a capacidade
sempre realizadas por alguém – en-cena-ção. Co-
de irradiação e inclusive as formas finais de uma
locar uma ação em cena, relacionar elementos di-
montagem. O processo é parte do espetáculo, ain-
versos, articular um discurso, compor, montar.
da que não o identifiquemos claramente, como
Dirigir é um ofício, e gosto de pensar na concretude de um ofício porque pode nos conectar
veias e músculos são parte do corpo. Compreendendo o teatro como um sistema
com a terra, nos afastando do delírio do artista
de relações – isso que acontece entre – acredito
genial superior aos comuns mortais. Como ofício,
que a principal função da direção é criar mecanis-
o papel do diretor está vinculado ao artesanato da
mos provocadores de relações, tanto no espetáculo
cena, a técnicas de composição espetacular que
como no processo de ensaios; mas principalmente
envolvem conhecimentos teórico-práticos sobre
no processo, área de ação intensificada do diretor
espaço, ritmo, tempo, movimento, corpo, cor,
(durante uma apresentação, o diretor não exerce
palavra, luz, sonoridade, atuação, dramaturgia,
um papel decisivo, a não ser que trabalhe também
articulando os múltiplos componentes do jogo
como ator, técnico, produtor executivo; de qual-
cênico. Além dessa dimensão, sua função inclui
quer modo, neste momento o diretor, na condição
o planejamento do processo criativo, que é em si
de diretor, é inútil). Mecanismos que instiguem e
uma intensa e exigente atividade de criação, em
acolham a criação de diversas fontes, redes de estí-
PANDOLFO BEREBA Projeto Teatro para Todas as Idades. Estreia em abril de 2005. Financiamento Fumproarte. Indicado ao Prêmio Tibicuera Melhor Espetáculo, Direção, Ator, Atriz Coadjuvante, Ator Coadjuvante, Figurino, Iluminação, Produção. Prêmio Tibicuera Melhor Trilha Original.
NATALÍCIO CAVALO Projeto Trilogia Festiva. Estreia em março de 2013, no Teatro de Câmara em Porto Alegre. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2012. Indicado aos Prêmios Açorianos 2013 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Dramaturgia, Trilha Sonora, Iluminação, Cenografia, Figurino, Ator. Recebeu o Prêmio Açorianos de Melhor Ator. www.nataliciocavalo.wordpress.com
EQUIPE: Direção e roteiro Patrícia Fagundes/ Atuação Álvaro RosaCosta, Karen Radde/ Marina Mendo, Marcelo Bulgarelli e Vanise Carneiro/ Iluminação Eduardo Kraemer/ Trilha sonora Álvaro RosaCosta e Simone Rasslan/ Figurinos Antonio Rabadan/ Cenário e direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Luciana Leão/ Fotos Alex Ramires
Fotos: Alex Ramirez
EQUIPE: Direção e composição dramatúrgica Patrícia Fagundes/ Atuação Heinz Limaverde, Marina Mendo, Lisandro Bellotto, Priscilla Colombi, Marcelo Mertins e Rossendo Rodrigues/ Trilha sonora Arthur de Faria/ Preparação vocal Simone Rasslan/ Vídeos Mauricio Casiraghi/ Iluminação Lucca Simas/ Cenário Rodrigo Shalako/ Programação gráfica Paloma Hernandez/ Figurino Daniel Lion/ Preparação de danças Clovis Rocha/ Assistência de direção Ander Belotto e Mauricio Casiraghi/ Direção de Produção Patrícia Fagundes/ Assistência de produção Ander Belotto/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
CLUBE DO FRACASSO Projeto Trilogia Festiva. Estreia em outubro de 2010. Financiamento Prêmio Funarte Myriam Muniz 2009. Indicações ao Açorianos de Melhor Espetáculo, Melhor Direção, Dramaturgia e Produção. Prêmio Açorianos Melhor Dramaturgia e Melhor Espetáculo pelo Júri Popular. www.clubedofracasso.wordpress.com EQUIPE: Direção e composição dramatúrgica Patrícia Fagundes/ Atuação Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Marina Mendo e Priscila Colombi/ Figurinos e adereços Heinz Limaverde/ Assistência figurinos Francisco de los Santos/ Cenário Álvaro Vilaverde/ Trilha sonora e preparação vocal-musical Simone Rasslan/ Composições e pitacos corporais Cibele Sastre/ Iluminação Claudia de Bem/ Captação e edição de imagens Fabio Lobanowsky/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Morgana Kretzmann e Lisandro Bellotto/ Programação gráfica Paloma Hernandez/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
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2 BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
mulos que incitem reações e combustões criativas,
A composição de propostas de ensaio supõe
supõe generosidade e esforço. Claro que muitas
em fenômenos de transformação e descoberta,
uma vertigem criativa. Sempre fico nervosa ao co-
vezes nada funciona. Congestionamentos do pro-
através da associação entre pessoas.
meçar um processo e a cada vez tenho certeza que
cesso, momentos, indisponibilidades, becos sem
A partir dessa perspectiva e do conceito de
teremos problemas, ainda que não saiba exata-
saída que algumas vezes acabam por provocar o
arte relacional de Nicholas Borriaud , que identi-
mente quais. Já desisti de prevê-los, porque traba-
desequilíbrio necessário para transformações. Ou
fica o enfoque da prática artística contemporânea
lhamos nessa dimensão do humano, do afeto e do
travas que emperram mesmo. Nenhuma proposta
na esfera das relações humanas e afirma que “só
corpo, fenômenos em constante mutação. Dirigir
é incrível em si mesma, uma festa não funciona se
há forma no encontro”, podemos definir o papel
envolve razão, sensibilidade, corpo, risco. A escuta
as pessoas não desejarem. Cabe a todos buscarem
do diretor como o de um artista relacional. Con-
é uma ação exigente.
aberturas, interstícios, conexões; a composição de
[2]
duzir um processo de ensaios é articular um me-
Gosto também da analogia entre encenação
microterritórios sociais onde outras realidades são
canismo que só acontece a partir da colaboração
e organização de festas, compreendendo a fes-
possíveis só pode ser uma aventura compartilhada.
entre pessoas; envolve jogo e festa, é uma má-
ta como experiência vital de criação e encontro,
É a necessidade dessas aventuras estÉtica-
quina que provoca e administra encontros, uma
evento relacional e liminar, ao borde do caos, que
-política-sociais, o prazer dos breves êxtases e
experiência na qual os papéis de ator e especta-
provoca o desequilíbrio necessário para quem sabe
epifanias festivas e o desejo dessas comunidades
dor, artista e observador, se alteram constante-
criar novas formas. Além dos inevitáveis proce-
temporárias que o teatro pode inventar que me
mente, e a “obra” é uma produção compartilhada
dimentos de repetição, ordenação e reflexão, um
movem nesse ofício. É o que me mantém nessa
entre várias pessoas. Se o que o artista produz em
processo de ensaios pode estar imbuído dessa di-
navegação insana.
primeiro lugar são relações entre as pessoas e o
mensão festiva profana, que envolve transgressão,
mundo, o diretor é um artista, à medida que pro-
despojamento, convívio, visitas ao improvável, o
põe a constituição de microterritórios relacionais,
desafio do prazer e da alegria nesse mundo ab-
ou seja, um dispositivo de ensaios que gerará um
surdo. Uma forma de encontrar e negociar com a
espetáculo (ou não) que em si é outra proposta
morte, todas nossas pequenas e grandes mortes.
relacional (quer funcione ou não).
Claro que planejar uma festa envolve genero-
O período de ensaios pode ser assim compre-
sidade, certa disposição para servir: queremos que
endido como uma extensa ação de arte relacional,
as pessoas tenham uma experiência significativa,
em que um grupo de pessoas se reúne e realiza
servimos, compartilhamos. Acredito que servir e
determinadas atividades em um certo espaço,
compartilhar são ações que também compõem o
durante um certo tempo. São estabelecidas inúme-
papel do diretor. Importante esclarecer que esse
ras relações pessoais intersubjetivas, além (e com
ponto de vista não implica uma posição de sacri-
frequência derivadas) das atividades específicas.
fício e sofrimento, ao contrário. Sinto um imenso
O artista-diretor propõe para os artistas-atores
prazer quando proponho um exercício, um jogo,
várias situações as quais reagirão de distintas for-
uma vivência, e funciona, pois os atores se trans-
mas, afetando novas propostas; o ciclo de ações-
formam na experiência. Estás simultaneamente
-reações se retroalimenta constantemente e vai
dentro e fora do acontecimento, provocas e ob-
compondo a forma final (espetáculo), que em de-
servas, és ator e espectador; testemunha de mo-
terminado momento é exposta a um grupo maior
mentos intensos, belos e únicos, breves epifanias
de pessoas, o público. A rede de relações então se
que me alimentam nesse contínuo lutar contra
multiplica, sempre mantendo a rede matriz. A obra
moinhos de vento que é o fazer teatral. Servir tam-
é tanto composta pelas relações iniciais como pe-
pouco significa que o diretor tenha a obrigação de
las relações multiplicadas a partir da “forma final”,
ser uma pessoa sempre amável e gentil, que diga
que tampouco é fixa e se altera a cada apresenta-
somente coisas agradáveis e proponha ativida-
ção, pois a forma não é nada senão a própria rede
des amenas, como um alegre massagista de egos,
de relações em ambos planos – matricial e múlti-
animador de torcida ou vendedor de produtos re-
plo. O período de ensaios, assim, já é um período de
quintados. Ao contrário, é preciso desafiar, exigir,
prática artística, já é “obra”, como forma relacional.
provocar, convidar ao risco e à dificuldade, o que
Em repertório DESVIOS EM TRÂNSITO Projeto Trânsitos. Intervenção Urbana. Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2009. Estreia em março de 2010. www.desviosemtransito.wordpress.com EQUIPE: Direção e concepção Patrícia Fagundes/ Atuação Francisco de los Santos, Heinz Limaverde, Lisandro Bellotto, Marina Mendo e Priscilla Colombi/ Colaboradores Álvaro Vilaverde, Arlete Cunha, Leonardo Machado, Carlos Modinger, Cris Eifler, Vinicius Mello, Julia Rodrigues, Rafael Leidens, Ander Belotto, Rossendo Rodrigues, Mirah Laline, Marcelo Mertins, Lucca Simas e muitos outros
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Foto: Patrícia Fagundes Foto: Fernanda Chemale Foto: Rique Barbo Foto: Adriana Marchiori
O FANTÁSTICO CIRCO-TEATRO DE UM HOMEM SÓ Estreia em 14 de outubro de 2011. Financiamento Fumproarte. Indicação ao Prêmio Açorianos 2011 em todas as categorias possíveis. Prêmio Açorianos de Melhor Direção e Melhor Figurino. www.ofantasticocirco.wordpress.com EQUIPE: Dramaturgia Heinz Limaverde e Patrícia Fagundes/ Direção Patrícia Fagundes/ Atuação Heinz Limaverde/ Iluminação Lucca Simas e Patrícia Fagundes/ Trilha sonora e preparação vocal Simone Rasslan/ Cenário Juliano Rossi/ Adereços, pintura cenográfica e programação visual Paloma Hernandez/ Figurino Daniel Lion/ Preparação corporal Cibele Sastre/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Rochele Beatriz e Priscilla Colombi/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
Álbum de Memórias – anotações
criando pontes entre tradição e inovação, entre a
Em 2004, o primeiro espetáculo sob a expressão
herança dos que vieram antes de nós e de nossos
“Cia. Rústica apresenta" estreou em maio em
desejos de futuro. O teatro elisabetano inspirou
Porto Alegre: Macbeth, no Teatro Dante Barone
grande parte das renovações cênicas do sécu-
da Assembleia Legislativa. Desde então, foram 10
lo 20, foi um fenômeno artístico-social liminar,
anos de produções, invenções, tentativas, encon-
popular e vital, atravessado por contradições,
tros e desencontros. Aqui estão mementos das
que reconhecia e celebrava a si mesmo. Penso
criações, que nesse exato instante que escrevo
que o fascínio dessa dramaturgia só se revela no
não existem, são só memória – ainda que a me-
mergulho, ao sondar cada palavra, buscando os
mória seja algo que está no corpo, e o corpo exis-
vestígios da cena que o papel fossiliza – palavras
te. Reformulando: a memória desses espetáculos
impregnadas da memória de uma cena viva, im-
está espalhada em vários corpos, pedacinhos de
pura e vibrante. Traduzir é um bom método de
experiências fragmentados entre pessoas.
mergulho; traduzi dois textos do projeto. Mesmo
Shakespeare definiu o primeiro projeto
com adaptações que reduziram personagens, as
da companhia. Três espetáculos: Macbeth, So-
montagens contaram com elencos numerosos, o
nho de uma noite de verão e A megera domada.
que sem dúvida é uma insanidade no contexto
A ideia era beber da teatralidade shakespeariana,
de produção em que vivemos no país e na cida-
MIRAGEM Projeto Movimentos Rústicos. Estreia em julho de 2013. Financiamento Fumproarte/PMPA. Indicado aos Prêmios Açorianos 2013 de Melhor Espetáculo, Direção, Produção, Dramaturgia, Trilha Sonora, Iluminação, Cenografia, Figurino, Atriz e Ator Coadjuvante. Recebeu o Prêmio Açorianos Especial do Júri. www.projetomiragem.wordpress.com
CIDADE PROIBIDA Estreia em novembro de 2013. Projeto Trânsitos. Contemplado com o Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua 2012. Intervenção urbana. www.projetocidadeproibida.wordpress.com
EQUIPE: Direção-geral do projeto: Marina Mendo/ Direção do espetáculo: Lisandro Bellotto/ Direção de corpo: Eva Schul/ Atuação: Marcelo Mertins e Marina Mendo/ Vídeos: Miragem Rua (Daniel Eizirik/Leonardo Remor), Miragem Bordado (Rochele Zandavalli/Daniel Eizirik/Leonardo Remor), Globo da Morte (Maurício Casiraghi), Miragem Final (Daniel Eizirik/Leonardo Remor)/ Interferências em bordado sobre fotografias: Rochele Zandavalli/ Desenhos sobre retroprojetor: Cris Bastos/ Luz: Bathista Freire/ Cenografia: Rodrigo Shalako/ Figurinos: Itiana Passetti/ Produção sonora: Alexandre Missel e Marina Mendo/ Operação e mixagem de áudio: Alexandre Missel/ Produção: Marina Mendo/ Fotografias: Rique Barbo, Renata Nascimento ou Charles Lima/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
EQUIPE: Concepção e direção Patrícia Fagundes/ Atuação Di Nardi, Gabriela Chultz, Heinz Limaverde, Karine Paz, Lisandro Bellotto, Marina Mendo, Mirah Laline, Mirna Spritzer, Priscilla Colombi, Roberta Alfaya, Rodrigo Shalako, Rossendo Rodrigues, Silvero Pereira e Susy Weber/ Cenografia e adereços Rodrigo Shalako/ Iluminação Bahtista Freire/ Direção de produção Patrícia Fagundes/ Produção executiva Rodrigo Shalako/ Assistência de ensaios Karine Paz/ Mirah Laline/ Assessoria de imprensa Leo Sant’Anna
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3 Bausch em Climenhaga 2009, p. 58- CLIMENHAGA, Royd. Pina Bausch. London: Routledge, 2009.
de. Entretanto, há uma intensidade especial que
Macbeth não é uma peça fácil, em seu universo
do, suando, inventando, sentindo, desejando em
emana de muita gente reunida em cena, uma certa
sombrio de violência e degradação, que o pessoal
uma sala durante um certo tempo. Vida e arte
beleza, uma alegria próprias da potência do coleti-
marginalizado do abrigo compreendeu tão bem.
sempre se cruzam na intensidade sensível de um
vo em movimento.
Girando a roda, Sonho de uma noite de verão
processo de criação, em que cruzamos com nos-
As montagens foram apresentadas em lo-
nos levou a outras paisagens, evocando pulsões de
sas fragilidades e desejos. Pina Bausch dizia que
cais muito diversos, incluindo o tradicional e re-
prazer e celebração da vida que suspendem regras
“todos temos os mesmos desejos, todos estamos
quintado Theatro São Pedro e precários salões de
e convenções sociais; a floresta se fez cabaré em
assustados”[3]. Não saímos da mesma forma que
centros comunitários da periferia. A diversidade
nossa montagem. É impressionante como o poder
entramos. E talvez seja o que nos mova a vivê-los.
de espaços implica diversidade de público, o que
de contaminação do teatro se faz presente desde
Mortes, renascimentos, transformação.
constituía uma das ideias do projeto: investigar a
os temas que abordamos, exploramos territórios
Pandolfo Bereba foi o único espetáculo para
possibilidade de uma cena aberta, que dialogasse
e inventamos mundos que nos atravessam, nos
crianças que dirigi, em 2005. Uma bela experiência,
com todo tipo de espectador. É muito recompen-
afetamos uns aos outros de múltiplas e intensas
gostava bastante da montagem, que começou a ex-
sador apresentar fora do circuito convencional do
maneiras. Essa rede não envolve só as pessoas,
plorar aspectos de linguagem que logo foram mais
teatro, onde as pessoas são menos condiciona-
inclui os objetos, o espaço, o tempo, as cores, os
desenvolvidos no projeto Shakespeare, como músi-
das por certos pré-conceitos e convenções. Uma
cheiros, os temas, o texto. Tudo afeta. Em A me-
ca ao vivo e trânsitos entre humor e poesia. Mas a
das apresentações mais efetivas de Macbeth, por
gera domada, por exemplo, exploramos a questão
vida do espetáculo pareceu menos intensa do que
exemplo, aconteceu em um abrigo municipal. Foi
da formação da identidade através dos papéis de-
poderia ter sido, frente à receptividade que gerava
um ensaio aberto, ainda nem tínhamos o espetá-
signados socialmente e das relações que estabe-
nas pessoas que o assistiam. Houve certa dificulda-
culo na íntegra, mas vivemos um daqueles mo-
lecemos com o outro; sem dúvida conflitantes, já
de de navegar no mercado específico do “teatro in-
mentos arrebatadores de encontro que o teatro
que onde há alteridade, há conflito. E justamente
fantil”, como se integrasse um universo paralelo que
pode oferecer – mesmo não se tratando de uma
esse aspecto conflitivo marcou o processo, entre
desconheço. É quase como se “teatro infantil” fosse
peça encantadora, inclusive marcada pela lenda
tangos e exercícios de composição. De qualquer
outra forma cênica, diferente de “teatro”... Entendo
de ser uma “peça maldita”, cujo nome não pode
modo, é improvável sair ileso de experiências de
teatro para crianças como uma possível linguagem
ser pronunciado. Lendas à parte, com certeza
criação em coletivo, com várias pessoas respiran-
entre tantas possíveis na cena contemporânea, com
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seus próprios desafios e prazeres, e certamente com o mesmo teor de exigência artística que supõe qualquer outro tipo de montagem. Quero voltar a esse fazer pelas possibilidades de criação que oferece, assim como investigar possibilidades de ações artísticas no espaço público, por exemplo. (Não estou interessada em monogamias cênicas.) Desvios em trânsito foi a primeira experiência da Cia. Rústica com intervenção urbana. Partindo do desejo de provocar o estranhamento no seio do cotidiano, pequenos desvios que podem gerar transformações de percepção, pontes entre o ordinário e o extra-ordinário, desenvolvemos um modelo que já experimentamos em vários formatos, com diferentes pessoas, em diferentes locais e cidades. Os atores se deslocam por uma área determinada do centro da cidade, desenvolvendo suas pequenas e estranhas ações, sem pedir atenção de ninguém. Em certos intervalos de tempo, encontram-se em uma breve ação coletiva e seguem caminhando. A intervenção sempre muda porque é uma ação que só faz sentido a partir da observação e reação das pessoas que estão habitando a rua naquele momento, em relação com quem está “desviando”. Infiltrações
Natalício Cavalo Foto: Alex Ramirez
Sonho de uma noite de verão Foto: Luciana Menna Barreto
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poéticas. O acontecimento mais significativo é efe-
que os espetáculos integrem diferentes projetos e
contros com resistências. No entanto, as histórias,
tivamente a reação das pessoas.
apresentem linguagens cênicas diversas, partem da
lembranças, sensações a princípio individuais se
Com Cidade proibida, outra experiência na
memória como impulso criativo e são atravessados
ofereciam como matéria bruta comum, ressignifi-
rua, propõe-se outra relação: convidamos as pes-
por elementos autobiográficos da equipe. Mas não
cando experiências por meio da troca com o outro.
soas a irem até um lugar que não iriam durante a
é o eu isolado que “fala”, e sim sua relação com ou-
Além das experiências pessoais da equipe, os fios
noite, parques e praças da cidade, espaços públicos
tro, considerando que o eu só se define em relação.
dessa trama incorporaram referências de muitas
de possível convívio que se tornam proibidos pela
Nós nos vemos através do outro. A memória é aqui
outras fontes, como livros, filmes, internet, pessoas
ameaça potencial de violência. A ideia é resgatar
uma máquina relacional.
entrevistadas nas ruas. A montagem se fez como
a possibilidade desse convívio, imaginar coleti-
Clube do Fracasso investiga a temática que o
um mosaico de percepções, relatos, sensações,
va e ativamente outras realidades para a cidade,
próprio título indica, direcionando o olhar ao erro
memórias transformadas, reflexões e questiona-
compreendida como espaço de memória, relação e
e à fragilidade humana, na tentativa de inverter a
mentos sobre o tema do fracasso, articulando con-
convívio, cuja arquitetura invisível é feita de redes
lógica dos discursos de sucesso e superioridade.
ceitos com a matéria bruta da vida e do cotidiano,
de afetos. Um espaço compartilhado com o outro.
A dramaturgia foi composta em sala de ensaio, a
transmutando experiências individuais em experi-
Esse compartilhar começou no processo criativo,
partir de perguntas e provocações que poderiam
ência compartilhada.
onde reunimos um grupo numeroso de artistas
ser respondidas de forma escrita, performativa,
O fantástico circo-teatro de um homem só
diversos, celebrando outra vez a potência do co-
visual: o primeiro grande fracasso da vida, lista
define um processo distinto, cujo projeto começou
letivo em movimento, e se estende ao estar-junto
dos 10 maiores atos ridículos cometidos, desastres
a ser discutido em 2008. O ponto de partida foi
com o público no parque ou praça durante a noite,
amorosos, desejos de sucesso, o que mais teme,
o desejo do ator Heinz Limaverde de montar um
embaixo do céu.
vivências específicas, etc. Através desses dispositi-
solo que reunisse diferentes personagens, afetos
A memória como matéria bruta para a
vos, os atores e a direção compartilhavam as pró-
e aspectos de sua relação com a cena. Entre vá-
criação esteve presente em Cidade proibida e
prias experiências, atualizando o vivido. Relembrar
rias ideias e possibilidades discutidas ao longo dos
vem marcando o processo de várias montagens
episódios de “fracasso” consistiu sem dúvida um
anos (enquanto escrevíamos fragmentos e proje-
desenvolvidas pela companhia desde 2010. Ainda
desafio, que nos levou a zonas dolorosas e en-
tos solicitando financiamento), escolhemos como
ARTES CÊNICAS
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2014
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embrião um texto de quase duas páginas escrito
recomposta a partir de minhas fragmentadas lem-
com os testemunhos, histórias e relatos oferecidos
pelo ator, que esboçava um início de biografia pau-
branças de suas próprias memórias, de pequenos
a partir de suas próprias experiências, acionando o
tado por suas primeiras experiências com a arte. O
resquícios do tempo, da dolorosa experiência da
dispositivo relacional que resgata vivências e atu-
circo aparecia nesse relato e acabou tornando-se
morte de alguém que amamos, de invenções com-
aliza o vivido, nesse espaço virtual entre o palco e
o vetor aglutinador da diversidade de referências
partilhadas, reconhecendo a memória como uma
a plateia onde se dá o teatro. A memória é matéria
que o projeto evocava, abrigando tanto a autobio-
criação conjunta que trama o tempo e o espaço.
comum de reinvenção.
grafia como a representação de personagens-tipo
Através de Valter-Natalício, ousamos percorrer
Para concluir as anotações desse álbum, me
fictícios. Além de constituir uma experiência im-
o imaginário do pampa gaúcho, o que pode ser
parece inevitável relembrar um episódio singular
portante na vida do menino que vivia no interior
assustador pela carga de clichês que evoca, ain-
em que arte e vida se cruzam, potencializando-
do Ceará, o circo compõe um imaginário coletivo
da que seja parte do que somos, paisagem poética
-se mutuamente. Durante os ensaios de Natalício,
potente, alimentado não só pelo próprio como
e existencial marcada pela amplitude e exposta à
pensando a morte, o tempo e revivendo a memória
também pelo cinema, televisão, brinquedos, músi-
violência dos ventos. Um espaço que habitamos e
da morte de meu pai, eu estava grávida, a barriga
cas, etc. A memória pessoal do ator disponibilizava
que outros habitaram antes de nós.
crescendo junto com o processo. Uma coincidên-
assim um fértil canal de conexão para tornar-se
Miragem também propõe um cruzamento
cia quase ilustrativa: vida e morte como partes de
memória comum, sem abdicar de sua singulari-
entre a memória dos artistas e a de nossos ante-
um só movimento. Criações e mortes, nascimentos,
dade. Durante o processo, a experiência de Heinz
passados por meio de outros caminhos. O proje-
transformações. Os que vieram antes de nós e os
no interior do nordeste de alguma forma se co-
to, de autoria de Marina Mendo, marca uma nova
que virão depois. Meu pai e minha filha, o teatro
municou com a minha (e com a de toda equipe)
experiência na companhia, é o único espetáculo
e o tempo, eu e o outro, desejos e afetos, o nós
na capital do estado mais ao sul do Brasil, e nos
que não dirigi, tampouco integro a equipe criati-
mutante de qualquer coletivo. Como esse álbum
tornamos cúmplices no picadeiro que inventamos,
va. Vi o projeto nascer e crescer, assisti ao ensaio,
continuará? Respiro diante do que não sei. Verti-
tramando uma dramaturgia na qual os fragmentos
acompanhei o processo, mas não sou parte ativa
gem da criação, mortes e transformações, nossos
se confundem e dialogam.
da criação. Assim, me parece necessário incorpo-
desejos e voos.
Em Natalício Cavalo, a memória está enlaça-
rar as anotações da própria Marina: “Miragem,
da à temática da morte, compreendida como zona
em tradução simples, significa um efeito ótico de
de sombra que define a experiência humana, como
refração da luz que leva o observador a ter uma
espaço mnemônico que articula passado, presente
visão e não saber se ela é real. O projeto como
e futuro. Pensar a morte, a nossa e a dos mortos
um todo nasceu da minha vontade de descobrir
que carregamos, é pensar o tempo e articular uma
e experimentar outros modos de dar tratamento
teia de memória que define quem somos e abre
às memórias, reciclar objetos, fotografias e vesti-
possibilidades a quem podemos e queremos ser –
dos rasgados, costurar suas histórias e, sobretu-
afinal, somos aquilo que lembramos, e aquilo que
do, conviver com o fato de que minha vó estava
esquecemos também. De forma distinta à Clube do
morrendo. Tinha a intenção de apresentar esse
Fracasso, nessa montagem a temática não é abor-
material para artistas que se expressam através
dada de forma dissertativa, tampouco fragmenta-
de outras linguagens, como a fotografia, as artes
da em várias histórias pessoais. Os atores pouco
visuais, o vídeo, a música, e acredito que nessa
falam de si mesmos, tentando recompor uma his-
interação começamos fazer ver aquilo que não
tória de alguém que não conheceram, através de
existia, nossas miragens”.
vestígios de vida: cartas, fotografias, recortes de
Talvez seja através da singularidade, da expe-
jornais, relatos. Tecem fragmentos e imaginam o
riência vivida ou da memória como corpo, que se
que não sabem, já que “a vida de Natalício é uma
estabeleça a condição para uma zona compartilha-
teia cheia de espaços vazios, um livro com pági-
da de experiência. Nós nos percebemos no outro
nas desaparecidas e outras inventadas”. Natalício
através da vivência marcada na pele – não através
Cavalo não é um personagem totalmente ficcio-
da precisão dos fatos, mas da experiência vital que
nal, sendo inspirado em Valter Fagundes, meu pai,
lembramos por vias tortas e incompletas, que nos
que morreu no início deste século. Sua história é
faz. O público ativa processos de reconhecimento
Desvios em trânsito Foto: Luciana Leão
primeiro SEMESTRE
ARTES CÊNICAS
2014
28
Oigalê: 15 anos de estrada e trabalho continuado
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2014
Por Giancarlo Carlomagno,
29
ator e produtor da Oigalê
Existe uma relação afetuosa da Oigalê com o Pal-
tico, mas, sim, de uma vivência do artista com a
e de muitas faxinas na nossa sede. Uma data sig-
co Giratório. Uma relação de carinho iniciada na
estrada e as cidades. A estrada faz parte da dinâ-
nificativa compartilhada em parceria com o Sesc/
década passada, mais precisamente no ano de
mica de trabalho e contribui bastante para a con-
RS justamente no mês de maio, mês de aniversário
2006, quando tivemos o privilégio de compor o
solidação de outra importante escolha do grupo,
do grupo e de mais uma edição do Festival Palco
seleto grupo de escolhidos para circular pelo Brasil
a construção de um repertório.
Giratório. Nesta edição, estaremos desenvolvendo
afora. Lugares fascinantes, diversidade constante,
A manutenção dos espetáculos em repertó-
o projeto Residência Oigalê, com a apresentação
estados e cidades longínquas, pessoas maravilho-
rio exige do coletivo uma caminhada constante,
de cinco espetáculos de teatro de rua, varal de fo-
sas, ampliação do nosso horizonte, intercâmbio
permanente. Um crescimento diário que precisa
tos, museu, exibição do DVD Uma década de teatro
cultural intenso... Projeto incrível! Uma fantástica
ser compreendido, planejado e almejado com
e o lançamento do livro Oigalê 15 anos. Trata-se
e inesquecível circulação pelo norte, nordeste e
perseverança. Desde 1999, foram três espetácu-
de uma oportunidade única e expressiva, em que
centro-oeste brasileiro.
los de teatro de sala, sendo um para o público
exercitamos a possibilidade de mostrarmos os
Aliás, circulações ou corredores culturais de
adulto (Cara queimada – 2001), dois para o pú-
trabalhos de forma intensa. De “trocarmos”, lite-
teatro de rua sempre foram uma das caracterís-
blico infantil com pesquisa no teatro animado e
ralmente, com o público e com os outros coletivos
ticas desenvolvidas pela Oigalê nesses 15 anos
de sombras (Uma aventura farroupilha – 2006 e
teatrais que estarão participando do festival com
de estrada. Literalmente de estrada. Executa-
Era uma vez... Uma fábula assombrosa – 2008) e
essa mesma linha de pesquisa continuada. Essas
da de forma simples, potencializada, com baixo
outros seis espetáculos para o teatro de rua (Deus
“trocas” de gentilezas ou experiências são impor-
custo orçamentário, desenvolve gratuitamente
e o Diabo na terra de Miséria – 1999, Mboitatá –
tantes e muito significativas, pois nos fortalecem,
apresentações, oficinas, seminários e bate-papos
2001, O Negrinho do Pastoreio – 2002, Miséria
modificam os espetáculos, o coletivo de atores e,
sobre o teatro de rua com a população das cida-
servidor de dois estancieiros – 2009, O baile dos
fundamentalmente, a cada um de nós, transfor-
des escolhidas. Desde os “primórdios”, com Deus
Anastácio – 2012 e Circo de horrores e maravilhas
mando-nos em seres humanos melhores. Mais
e o Diabo na terra de Miséria dirigindo de Porto
– 2013). O trabalho desenvolvido na rua pela Oi-
atentos ao indivíduo ao lado. Mais sensíveis.
Alegre ao FIT de Belo Horizonte (I Corredor Cultu-
galê, em sua maioria, vem investigando incessan-
Um momento ímpar, de comemoração e feli-
ral-2000), passando pelas três fronteiras latino-
temente em busca de um teatro de rua pampiano.
cidade. Uma celebração compartilhada com a po-
-americanas (Argentina-Uruguai-Paraguai 2002),
Um teatro de rua “gaucho”, fronteiriço aos três
pulação porto-alegrense com o que sabemos fazer
até bandas além-mar no Festival de Oeiras com os
países – UY, AR e BR. Essa pesquisa de linguagem
de melhor, arte pública, horizontal e democrática!
coirmãos portugueses (2009) são alguns exem-
contínua contribuiu para projetar o grupo nacio-
plos. As “farsas gaudérias” da Oigalê já estiveram
nalmente como uma das importantes referências
em mais de 20 estados brasileiros e preparam-se
gaúchas no teatro “callejero”.
para circular por mais quatro estados nordestinos
Em 2014, estamos comemorando nossos pri-
ainda inéditos no currículo da companhia. Não se
meiros 15 anos de grupo. De trabalho continuado,
trata apenas de uma turnê, de um circuito artís-
de pesquisa de linguagem, de treinamento musical
Oigalê, tchê!
Miséria servidor de dois estancieiros Fotos: Kiran
Negrinho do Pastoreio
Foto: Carlos Sillero
caderno de teatro
PRIMEIRO SEMESTRE
2014
30
#12 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, depoimentos e entrevistas com artistas que nos últimos anos participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, o ator Cláudio Dias conta a trajetória da Cia. Luna Lunera, de Belo Horizonte, e o processo produtivo dos espetáculos desde 2001, quando junto com os atores Cláudia Corrêa, Isabela Paes, Fernanda Kahal, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Zé Walter Albinati encenou ainda na escola de teatro da Fundação Clóvis Salgado, Palácio das Artes, Perdoa-me por me traíres. A companhia participou da quinta edição do festival em 2010 e retorna neste ano com quatro espetáculos do seu repertório.
caderno de teatro
PRIMEIRO SEMESTRE
2014
31
Por Clarissa Eidelwein Jornalista
Luna lunera Entre tangos, boleros, traição, solidão, angústia, alegria e outros delírios
Fotos: Gustavo Jacome, Guto Muniz, Adriano Bastos e Claudio Etges
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
32
A Cia. Luna Lunera participa do Festival Palco Giratório com quatro espetáculos: Nesta data querida, Aqueles dois, Cortiços e o ainda inédito nos palcos gaúchos, Prazer
Antropologia Teatral e teatro-dança
mos este o nosso primeiro trabalho porque conti-
O primeiro espetáculo foi Fuleirices em Fuleiró, de
nuamos com ele já como grupo. O espetáculo era
Mário Farias Brasini, com direção de um diretor
impregnado dessas duas ideias: do teatro-dança,
carioca que faleceu no ano passado, Marcos Vo-
do expressionismo, e tecnicamente carregado da
gel. É um grande diretor que morou muitos anos
Antropologia Teatral. Estivemos em Porto Alegre,
em Belo Horizonte e grande conhecedor do teatro
em 2002, no Theatro São Pedro.
de rua. O espetáculo percorria o centro da capi-
Um caso interessante aconteceu no São Pe-
tal mineira passando por três estações contando
dro. O cenário era composto por uma caçamba
a história de um herói, Nadim Nadinha, em luta
inteira de terra vermelha, e era um grande evento
contra o Rei ditador. Para o espetáculo de palco,
descarregar essa terra no teatro recém-reformado
convidamos Kalluh Araújo, que é um grande ence-
e, da faxineira a dona Eva (Sopher, presidente da
nador, para dirigir o espetáculo Perdoa-me por me
Fundação Theatro São Pedro), todo mundo foi as-
traíres, de Nelson Rodrigues. Os dois espetáculos
sistir a terra entrando. E foi muito legal quando
tiveram grande repercussão de público e de crítica
ela veio nos cumprimentar ao final e disse que o
e, por isso, decidimos continuar juntos como gru-
público havia gostado muito. Tínhamos achado o
po. O trabalho desenvolvido pelos grupos em Belo
público frio. “Não, o público gostou muito e reagiu
Horizonte é uma referência para os novos artistas
de uma forma que é muito característica quando
na cidade. Fomos influenciados por grupos como o
gosta do espetáculo”, explicou ela. Então para nós
Galpão, Giramundo, Sonho e Drama e tantos ou-
foi um grande prazer apresentar em 2002 esse es-
tros. Acreditávamos que juntos era mais fácil.
petáculo em Porto Alegre.
Naquele momento em Belo Horizonte, final dos anos de 1990, os artistas da cidade eram muito
Processo colaborativo de criação
influenciados pela Antropologia Teatral do Euge-
Em 2003, o Grupo Galpão, por meio do Galpão
nio Barba, principalmente na escola de teatro do
Cine Horto, um centro cultural mantido pelo cole-
Palácio das Artes. Estudávamos no curso os livros
tivo há 15 anos com propósito de fomentar os ar-
do Barba, o pensamento e, de alguma forma, ten-
tistas locais, de provocar discussão artística, nesse
távamos chegar próximo às técnicas. Dois grandes
momento, queria discutir a criação de espetáculos
eventos, o Festival Internacional de Belo Horizonte,
através do processo colaborativo de criação. Para
que ainda existe, e o Encontro Mundial de Artes
esse projeto, convidaram o Antônio Araújo, do Te-
Cênicas, que agora acontece em São Paulo, trou-
atro da Vertigem, o Luís Alberto de Abreu, grande
xeram para BH grandes artistas com projeção
dramaturgo brasileiro, da Escola Livre de Santo
internacional. Tivemos a oportunidade de assistir,
André, o Paulo de Moraes, do Armazém do Rio de
por exemplo, a espetáculos do Barba com o Odin
Janeiro, o Fernando Mencarelli, da Universidade
Teatret, demonstrações de trabalho com Rober-
Federal de Minas Gerais (UFMG), e juntamente
Somos um grupo de atores que nasceu a par-
ta Carreri e Julia Valey. Então, naquele momento,
com a Cia. Maldita deram início a um projeto onde
tir de um encontro no Centro de Formação Artísti-
estávamos muito imbuídos daquelas ideias todas
criaríamos espetáculos pelo processo colaborativo
ca do Palácio das Artes, Fundação Clóvis Salgado,
e, de alguma forma, o contato direto com aque-
sistematizado pelo Araújo e pelo Abreu.
em Belo Horizonte, um grande centro cultural que
les grandes artistas é claro que influenciou nossos
abriga escola de teatro, de música e de dança. Nós
dois trabalhos.
Convidaram quatro grupos, quatro diretores e quatro novos dramaturgos para criarem quatro
nos encontramos em 1998, ingressando na escola
No caso do Perdoa-me por me traíres, o Kalluh
espetáculos dentro desse processo. Durante nove
de teatro. São três anos de curso de formação e no
Araújo buscou inspiração no teatro-dança de Pina
meses, os grupos investigariam como é possível
último cada turma monta um ou dois espetáculos.
Bausch através dos espetáculos Café Müller e A sa-
fazer esse processo colaborativo em que diretor,
Naquele momento, optamos por dois processos: 1)
gração da Primavera. Estávamos saindo da escola,
ator, dramaturgo e outras funções têm o mesmo
experimentar o teatro de rua. 2) Montar um espe-
e somamos esse frescor com relação aos estudos
poder na criação. É uma horizontalização do pro-
táculo de palco.
da Antropologia Teatral às ideias dele. Considera-
cesso, diferente da criação coletiva, na qual todo
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
33
mundo faz tudo. Cada um tem a sua função, res-
Observatório de Criação
ponde por ela, mas você pode dentro de uma outra
Desde 2005, no Não desperdice a sua única vida,
função sugerir um determinado encaminhamento,
passamos a convidar pessoas que se interessam por
e esse encaminhamento vai ser testado na execução
artes cênicas, público em geral, e pessoas que estão
da cena. Não basta ter uma ideia, tem que executá-
em volta da nossa sede, no Bairro Floresta, para as-
-la e de, alguma forma, relacionar essa criação, essa
sistir aos nossos ensaios. Não são ensaios abertos,
cena à exposição, ao diálogo com o público. Esse pú-
que é o espetáculo pronto. O que apresentamos
blico era formado por outros grupos participantes
ainda está dentro de um embrião, não existem
do projeto. Então, fomos nos visitando e dialogando
cenas prontas, existem ideias que são executadas
para criar esses espetáculos. No caso da Luna Lune-
muitas vezes para aquele público que está assis-
ra, criamos Nesta data querida com direção de Rita
tindo. Chamamos isso de Observatório de Criação.
Luna Lunera
Clemente e dramaturgia de Guilherme Lessa. O texto
E isso ganhou uma força em 2007 com Aqueles
Gregório Barrios
inédito teve como ponto de partida, no começo da
dois, quando o público começou a ser convidado
pesquisa, o tema a solidão nos grandes centros ur-
todas as semanas a assistir a um pouco do nosso
Luna lunera, cascabelera
banos. Partimos da letra de uma música do Moreno
processo e contribuir para a criação do espetáculo.
Ve dile a mi amorcito por dios que me quiera
Veloso, filho do Caetano, que dizia:
Nós dialogamos muito com os parceiros, com os
Dile que no vivo de tanto padecer
artistas locais para construir os espetáculos.
Dile que a mi lado debiera volver. Luna lunera, cascabelera
– Eu sou melhor que você, mas por favor fique comigo que eu não tenho mais
Aqueles dois: Contato Improvisação
Ve dile a mi amorcito por dios que me quiera
ninguém.
e as Ações Vocais de Stanislavski
Dile que me muero que tenga compasion
No Luna Lunera, cada espetáculo é composto por
Dile que se apiade de mi corazon.
Essa frase, de alguma forma, dá início ao nos-
um elenco diferente. É uma característica do grupo,
Ay lunita redondita
so projeto e vamos atrás de reportagens de jornais
nos colocamos ou não à disposição para cada tra-
Que la espuma de tu luz
de Belo Horizonte, onde encontramos persona-
balho e, quando você não está numa determinada
Bañe mis noches.
gens e os apresentamos em forma de cena. Então,
montagem, está livre para pesquisar outras coisas,
Ay lunita redondita
criamos 15 cenas para cada personagem a partir
para poder investigar outros assuntos. Quando vol-
Dile que me has visto tu
dos estímulos dados pelo diretor, pelo dramatur-
tamos e nos encontramos para trabalhar, aquele
Llorar de amor.
go, pelo iluminador, pelos próprios atores. Depois
ator que saiu chega alimentado de informação e de
De amor.
improvisamos o encontro dessas personagens em
alguma forma compartilha com o grupo os seus in-
vários ambientes reais e imaginários e acabamos
teresses naquele momento. Quando inicia o proces-
chagando em uma festa infantil, por isso esse
so de Aqueles dois, eu cheguei da Europa com Con-
A canção fez parte da trilha sonora do primeiro
nome do espetáculo, que vai ser apresentado em
tato Improvisação, técnica corporal criada por Steve
espetáculo do grupo de formandos do Centro
Porto Alegre no Festival Palco Giratório.
Paxton, e propus uma oficina. Desde o nosso pri-
de Formação Artística do Palácio das Artes
Esse jeito de fazer teatro compartilhado in-
meiro espetáculo, tivemos um contato com a dança,
(Cefar), Fundação Clóvis Salgado, de Belo Ho-
fluenciou todos os nossos espetáculos seguintes.
mas nunca com esta técnica. A oficina de Contato
rizonte. Perdoa-me por me traíres, de Nelson
Não desperdice sua única vida em 2005, Aqueles
Improvisação, juntamente com outra proposta pelo
Rodrigues, cheio de referências de tangos e
dois em 2007, Cortiços de 2008 e Prazer de 2012
ator da companhia Odilon Esteves, gera o início do
boleros, em determinado momento todos os
refletem esse estudo do processo colaborativo, e a
que vai ser o processo do espetáculo. Odilon Esteves
atores em cena, todas as personagens viviam
cada processo nós experimentamos novas formas
estava interessado na época pelo método das Ações
algum tipo de delírio ao som de Luna Lunera.
de realizá-lo. Nós entendemos as funções de cada
Vocais, parte menos conhecida dos estudos de Sta-
A música, emblemática e potente, passou a re-
um dentro do processo: entendemos a função do
nislavski. As Ações Físicas são mais conhecidas.
presentar aqueles atores que não tiveram dúvi-
diretor, do dramaturgo, do ator e dos outros com-
Esses dois interesses – Contato Improvisação
ponentes. Em determinado momento do processo,
e Ações Vocais – estimularam o restante do grupo
cada um passa a exercer essas funções, sempre co-
para que fôssemos pesquisar um pouco esses uni-
locando isso em diálogo com o público.
versos, dando início ao processo de Aqueles dois.
da ao batizar a Cia. Luna Lunera, uma lua que inspira, encanta, uma lua enamorada.
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
34
Exatamente neste processo, a gente entende as
do público o que seria um espetáculo. A primeira
sação, então convidamos um coreógrafo de Minas
funções de direção, de dramaturgia e de atuação
mostra durou quatro horas e, a partir desses en-
Gerais, o Tuca Pinheiro, que também trabalhou no
e constrói um espetáculo dirigido, escrito e atua-
contros semanais, dessas observações do público e
Balé Teatro Guaíra, de Curitiba, um cara superinte-
do pelos próprios atores da companhia. Não teve
avaliações dos próprios atores, fomos construindo
ressante, para dirigir teatro pela primeira vez. Era
nenhuma função externa. Cada ator tinha uma
o que foi Aqueles dois. Até hoje é nosso espetácu-
um mergulho maior nesse universo da dança e na
semana para desenvolver um projeto de direção,
lo de maior repercussão, o que mais rodou Brasil
pesquisa corporal, que era o nosso foco.
que podia ser qualquer coisa. Já tínhamos estuda-
afora. Percorremos quase todas as capitais, só fal-
A gente não queria sair dançando, a gente que-
do o Contato Improvisação, já tínhamos estudado
taram Palmas (TO) e Porto Velho (RO). O espetáculo
ria fazer uma investigação mais corporal e o Tuca
as Ações Vocais, então escolhemos um texto para
também foi apresentado em espanhol no México.
traz uma técnica da dança que também se aplica ao
poder aplicar esses estudos, que foi o texto do Caio
Aqueles dois participou do Palco Giratório de 2010
teatro que são os Sistemas Corporais. Nos ensaios,
Fernando Abreu. Dividimos o período em semanas
em Porto Alegre e mais 14 cidades gaúchas.
trabalhamos como se movimentar, por exemplo,
de direção, cada um teria uma semana para fazer
utilizando a ideia da pele, ou como realizar movi-
uma proposta de direção de acordo com o seu
Dança e os Sistemas Corporais
mentos através dos ossos. Ou como realizar movi-
olhar, com suas próprias referências.
Cortiços, que também estará em Porto Alegre em
mentos que nascem no centro do corpo e vão para
Ao longo dessas semanas, em vez de blocos
maio, é resultado de um namoro com a dança. Lá
as extremidades, ou das extremidades em direção
isolados, cada ator/diretor foi aproveitando a ideia
na escola em 1998, 1999, éramos muito influen-
ao corpo. Criamos personagens a partir disso e ao
do outro, uma direção ia alimentando a outra.
ciados pela Cia. de Dança de Minas Gerais, que
mesmo tempo juntamos esse trabalho com a obra
Em vez de nos isolarmos, fomos somando ideias
também faz parte da Fundação Clóvis Salgado, no
O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Com isso, fizemos
e referências. O resultado foi um número muito
Palácio das Artes. É uma companhia muito con-
Cortiços, um espetáculo muito imagético e ao
grande de material, cenas, imagens, e com isso
ceituada, sem falar no Grupo Corpo, nos outros
mesmo tempo muito físico. Não é um espetáculo
construímos um grande roteiro, e com esse roteiro
grupos, no Primeiro Ato, sempre foram grupos de
de dança, mas carrega estas duas questões: a fisi-
convidamos o público para participar dos ensaios.
referência. Sempre tivemos muita proximidade,
calidade e o universo imagético que a dança ge-
Não tínhamos um espetáculo, existia um roteiro
desde o Perdoa-me, com o teatro-dança de Pina
ralmente trabalha. Um diálogo frutífero do teatro
de imagens e cenas e fomos improvisando diante
Bausch, Aqueles dois, através do Contato Improvi-
com a dança.
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
35
Caldeirão de referências Quando começamos a criar o projeto para o novo espetáculo, Prazer, em 2011, pensamos em voltar para a direção e a dramaturgia compartilhada. De novo os atores donos de todo o processo. Tínhamos completado 10 anos de companhia e pensamos: e agora? O que somos e para onde vamos? O que está pegando pra cada membro do grupo? Quais as angústias pessoais? Naquele momento eram questões que estavam muito fortes para nós e fomos encontrar respostas e novas perguntas em um fragmento do livro da Clarice Lispector Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, no qual um dos personagens diz que: ... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida. Foi apesar de que parei na rua e fiquei olhando para você enquanto você esperava um táxi. E desde logo desejando você, esse teu corpo que nem sequer é bonito, mas é o corpo que eu quero. Mas quero inteira, com a alma também. Por isso, não faz mal que você não venha, esperarei quanto tempo for preciso. Não tínhamos a pretensão de adaptar o texto. O apesar de..., apesar de tudo, do caos urbano, da vida maluca, da pressão que vivemos o tempo inteiro, apesar das angústias, temos que continuar e temos que buscar a alegria, buscar a felicidade, buscar o encontro, o compartilhamento. Então, é nesse momento de caos e de tentativa de encontro que achamos na Clarice uma resposta para nossas perguntas. Porém, ao ler Clarice tivemos muitas outras perguntas. Além da direção e dramaturgia compartilhada, convidamos quatro colaboradores externos para nos provocar de alguma forma, porque cada um dentro do grupo tem uma intensão de
O espetáculo Aqueles dois foi apresentado no Festival Palco Giratório, 2010 Fotos: Claudio Etges
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
36
pesquisa, de pensamento específico sobre determi-
para o Brasil um festival de arte digital alternati-
residência artística. Ficamos 20 dias em Holstebro
nada coisa que é muito diferente. Aliás, nós somos
va que trouxe muitos artistas internacionais, mas
realizando treinamentos, vivendo a sede do Odin,
muito diferentes. Por isso, queríamos contar com
que também dialogava com artistas locais, minei-
dialogando com os atores, com o Eugenio Barba,
pessoas que nos colocassem em um outro lugar.
ros. Nesse contexto, reencontramos Eder Santos,
com as pessoas do mundo inteiro que passam por
O primeiro é Jô Bilac, um novo dramaturgo
um videoartista importante de Minas e conhecido
aquele lugar. Foi uma vivência muito intensa que
brasileiro de grande destaque, um cara superjo-
nacionalmente. Ele tinha assistido Aqueles dois no
influenciou não só a técnica, mas a própria dra-
vem e muito inteligente que a gente conheceu no
Rio de Janeiro e pensou que podia trabalhar co-
maturgia do espetáculo. A gente cozinha em cena
Festival Internacional de São José do Rio Preto.
nosco e nós também tínhamos vontade de traba-
no Prazer porque a gente cozinhou em cena lá na
A partir daí, começamos a dialogar com ele e com
lhar com ele. Então foi um namoro que deu certo e
Dinamarca. Nos intervalos do trabalho, íamos ao
seu grupo, o Teatro Independente, nos tornamos
o Eder veio fazer um trabalho de videoarte dentro
supermercado realizar compras, dividíamos as ta-
amigos, passamos a trocar, e o Jô veio fazer uma
do Prazer. Dialogou com a cenografia e dramatur-
refas da cozinha, cozinhávamos, sentávamos junto
orientação dramatúrgica para o espetáculo. Reali-
gia do espetáculo de forma precisa.
à mesa para comer e conversar sobre o trabalho e a
zou uma oficina de dramaturgia e durante o pro-
Ao mesmo tempo, a Isabela foi para o Odin e
vida, e isso influenciou a construção do espetáculo.
cesso pontuações fundamentais para a construção
“experienciou” muita coisa, participou de diversos
Trocávamos muito com atores do Odin que tam-
das personagens e a dramaturgia do espetáculo.
estudos e alguns espetáculos e queria que a gente
bém viviam na sede e outros artistas residentes.
Uma das atrizes do grupo, a Isabela Paes, re-
tivesse alguma vivência dentro daquele universo.
Outra colaboração veio da nossa paixão pela
tornou de uma temporada na França, onde reali-
O objetivo não era apenas aprender técnica, mas
dança, o Mário Nascimento, da Cia. de Dança Má-
zou mestrado e doutorado em comunicação. Nes-
também aprender um pouco da ética daquele gru-
rio Nascimento, que também esteve no Palco Gira-
sas formações, ela entrou em contato com duas
po que completa 50 anos de história, a ética do
tório em Porto Alegre, no ano passado. Ele fez um
vertentes, uma na área da arte digital alternativa,
lugar, como se faz, há tanto tempo, como ficar jun-
treinamento corporal muito grande conosco. Nós
outra foi uma pesquisa com o Odin Teatret. Ela
to por tanto tempo. Então, convidamos a Roberta
tínhamos interesse no trabalho dele e ele no nosso,
havia participado do Perdoa-me por me traíres, foi
Carreri para fazer uma colaboração. No caso da
devido ao Contato Improvisação que experimenta-
embora para Europa e voltou no Cortiços, depois
Roberta, foi mais legal porque, como ela também
mos em Aqueles dois.
de estudar no Odin e também trabalhar com essa
viaja muito, a solução que encontramos foi nós
Todos eles foram colaboradores afetivos, que
arte digital. Nesse processo, ela trouxe da França
irmos ao Odin, na Dinamarca, e lá fazermos uma
tinham um material para trazer para o grupo, mas
CADERNO DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
37
também esta afetividade que sempre buscamos
meus amigos pra beber um champanhe e brindar
para a construção dos trabalhos. O espetáculo Pra-
à vida... É a história da Clarice, né?! Apesar de... eu
zer é reflexo de muitas referências e é um caldeirão
vou buscar a felicidade.” Presenciamos lá no Odin
de informações e influências.
essa referência que se tornou muito forte no espetáculo. Apesar de todos os problemas, das dife-
Residência artística no Odin
renças, a gente vai tentar mais uma vez. E é muito
Éramos seis pessoas da Cia. Luna Lunera no Odin
bacana porque o Torgeir preparou as pessoas que
Teatret, na Dinamarca, os quatro atores: eu, Isabela
iriam substituí-lo nos espetáculos. É bonito isso,
Paes, Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves, mais
né?! Como você dá conta de entregar os papéis da
o Zé Walter Albinati, que não está em cena, mas
sua vida para outra pessoa. Foi uma coisa que nos
acompanha todo o processo, e levamos um video-
tocou muito naquele momento. Depois vemos lá
maker, o Léo Pinho, para registrar tudo.
no Odin as fotos do enterro, onde todos os atores
Esta ida para lá era tão especial, a gente es-
estão vestidos com suas personagens mais signifi-
cuta a história do Torgeir Wethal, ator e um dos
cativas para enterrar o outro ator. É muito bonito.
fundadores da companhia que faleceu em 2010,
Contamos a história, sem contar que é a vida
marido da Roberta Carreri. De alguma forma, a
dele. Utilizamos essa história para fazer o que a
história dele nos inspira para o próprio espetáculo.
gente chama no espetáculo de inventário imate-
Antes de morrer, ele recebe a notícia de que tem
rial, o que você deixaria para outra pessoa que não
um câncer e, dentro de poucos meses, deve fale-
fosse material. Um dos personagens, por exemplo,
cer. Então ele convida os amigos para um brinde,
diz: – Ah, eu queria deixar pra você o pôr do sol
porque ele tinha sido muito feliz, a vida tinha sido
mais bonito que você já viu até hoje. Então isso vai
muito bacana com ele. Ele queria brindar à vida
acontecendo no espetáculo. Nós não fomos buscar
com os companheiros de tanto tempo de trabalho.
somente a técnica do Odin, fomos buscar esse en-
Isso foi muito forte para nós, esse encontro com
contro das pessoas com o teatro. Foi bem intenso.
essa generosidade. “Eu estou pra morrer e chamo
Espetáculo Cortiços, inspirado na obra de Aluísio de Azevedo, traz para o teatro os Sistemas Corporais, técnica utilizada na dança Foto: Gustavo Jacome Foto: Rodrigo Zeferino Foto: Tiago Lima Foto: Gustavo Jacome
CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
por Jean-Luc Moriceau,
38
PHD em Ciências das Organizações, dirige a formação doutoral do Institut Mines-Telecom/Télécom Ecole de Management – França. Foi professor na formação doutoral da University for Humanistics – Holanda
O duro desejo de devir
Em um gesto decidido, a atriz contorna com giz a silhueta de seus amigos na parede,
mesmos, cada um em um momento-chave da sua vida, neste espetáculo.
como que para impedi-los de devir, como se ti-
Em Prazer, o prazer em questão vai muito
vesse medo daquilo que eles deixariam de ser.
além do gozo ou da boa mesa. Ele não se dá como
Mais tarde, cada amigo retorna para dentro
um objeto a ser adquirido, ele exige um caminho
deste contorno de giz como que para se reen-
de aprendizagem, a aceitação de, em primeiro lu-
contrar, como que para se proteger do mundo
gar, mudar a si mesmo, de renunciar à identidade
ao redor. Estes contornos de giz, como quando
à qual se agarrava. Há momentos em que deve-
se marca a posição da vítima após seu assas-
ria-se dar uma nova direção a sua vida, uma nova
sinato, ficam desenhados na parede, como se
etapa, e hesitamos em saltar para o desconheci-
evoluir significasse a morte de uma identidade
do, em abrir mão dos contornos dentro dos quais
passada. Contornos que permanecem lá, pare-
havíamos nos refugiado: nossas máscaras sociais,
cendo fantasmas que assombram os futuros
nossos maus desejos e nossos maiores medos.
encontros destes quatro amigos da peça Prazer,
Mas como, sobre um palco, fazer sentir esse
da Cia. Luna Lunera, fantasmas que os observam
momento liminar no qual talvez mudaremos ra-
mas que, ao mesmo tempo, um simples gesto
dicalmente a existência para um caminho que
pode apagar. E quando um dos amigos não está
ainda se ignora, momento em que o ser pode
mais lá, reforçar com giz sua silhueta parece
se bloquear ou se colocar em movimento num
uma carícia que lhe implora para voltar. Conti-
mesmo sopro? Como, se esse tal momento é de
nuar, avançar, devir parece ser difícil quando os
experimentar, de viver? Como, se falar sobre ele
golpes duros bombardeiam nossa existência – é
ou explicá-lo pode destruir toda a sua força e seu
preciso coragem, parece mais fácil nos escon-
teor, justamente porque ele é um movimento in-
dermos no que já fomos, dentro da imagem que
terior? Como fazer o espectador experimentar, à
desejamos transmitir. A coragem de devir, a co-
distância, em seu assento, tais movimentos inte-
ragem de aprender, de aprender a viver, de des-
riores, tais saltos?
cobrir o prazer apesar de tudo o que nos acon-
No espetáculo Prazer, o ousar não se encon-
tece. Estes desenhos de giz, como se marcassem
tra somente na sua forma ou no seu conteúdo,
um hesitação antes de avançar, figuram o medo
mas sobretudo em como se dá sua feitura, sua
e os desejos destes quatro amigos que decidem
construção. A maioria dos elementos que im-
se reencontrar, distantes e bem próximos deles
põem uma forma ou imobilizam a criação teatral
CADERNO ARTES CÊNICAS DE TEATRO
primeiro SEMESTRE
2014
39
outros escrevem e-mails para compartilhar suas
esta transformação, esta aprendizagem, que é o
emoções e suas experiências mais íntimas, seus
próprio sentido. Como dizia Deleuze: "Experimen-
próprios movimentos. Sem dúvida, a obra de
tem, não interpretem nunca." O espectador é sub-
Lispector ganha novos relevos; alguns profunda-
metido a um conjunto de forças e de afetos, que
mente epicuristas, outros ultracontemporâneos.
o torna sensível ao que ele não era mais sensível,
A peça fala de aprendizagem e do prazer, mas
às possibilidades existenciais e às experiências
esta aprendizagem e este prazer são vividos por
que colocam em movimento tanto sua sensibi-
cada um. Talvez até mesmo uma forma de se fa-
lidade quanto seus pensamentos. A arte, ainda
zer teatro é deslocada aqui, pois o sentido não é
para Deleuze, deve ser avaliada em função do que
apenas mostrado, e sim experimentado. Aprendi-
ela nos faz devir, do seu poder de nos afetar, de
zagem e prazer são postos em movimento, e o
nos transformar. O espetáculo nos afeta, e assim,
movimento é aprendizagem e prazer.
e mesmo que fosse só por isso, já haveria cumpri-
Lembremo-nos de Un manifeste de moins
do sua função como arte.
(Um manifesto de menos), no qual Deleuze ana-
É interessante pensar o poder não como o
lisa o espetáculo Ricardo III dirigido por Car-
que impõe e dirige, mas como o que fixa uma
foi abalada e disso provém uma imensa potên-
melo Bene. Ele compreende que Bene retirou o
ordem e impede que outros devenires se desen-
cia de movimento. Não há um único diretor nem
poder do rei e que, ao retirar assim a principal
volvam. Ao bloquear certas fontes de poder, o ca-
verdadeiramente um texto – o romance Uma
fonte de poder, todo um conjunto de forças, de
minho se abre para a expressão e invenção de ou-
aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice
devires, de eventos, pode ocorrer. Para Deleuze,
tras forças e criações. Se abrem novas formas de
Lispector – é apenas o impulso inicial; nenhuma
o poder, assim como a representação ou a lin-
criar sentido, de fazer o comum, de ser afetado e,
narrativa limita a sucessão de eventos; diversos
guagem, fixa os devires, ele impede que outras
assim, novas sensibilidades, talvez novas formas,
interventores influenciam a forma e o conteúdo
forças se exprimam, ele controla o que nasce ou
novas falas. Mas não se trata aqui do novo pelo
da peça antes e mesmo depois da estreia; a dis-
quer escapar de seu domínio. Aqui, a Cia. Luna
novo. O que nos afeta portanto, o que é transmi-
tinção entre a vida dos atores e a representação é
Lunera não restringe o poder de um personagem
tido por essas forças e dinâmicas que por vezes
nebulosa (eles interpretam elementos de sua pró-
ou de uma situação, o que ela faz é limitar os
nos tomam pela garganta e por vezes nos con-
pria biografia, eles preparam no palco a refeição
poderes que habitualmente são exercidos sobre
vidam a meditar, é uma certa urgência de viver.
que irão comer, etc.). Todos as convenções que
a criação e que, tantas vezes, a enrijece; e ao fa-
Aprender a viver enfim, como nos convida Der-
estabelecem o papel e o lugar de cada um, toda
zer isto, torna-se possível todo um conjunto de
rida, reencontrar os poderes do espectro e da in-
fonte de poder que impõe e fixa uma forma, aqui-
devires, de transformações e de reconfiguração
fância, encontrar a vida mais intensa no cotidiano
lo que Rancière chama de a ‘partilha do sensível’,
dos papéis – e permite também aprendizado e
mesmo, encontrar o prazer de existir mesmo nas
sofreram, neste processo, um tipo de contenção,
prazer. Peter Brook dizia que no dia em que a
provações, se transformar para sobre-viver (vi-
de bloqueio. Os lugares tradicionalmente atribu-
encenação era fixada algo invisível começava a
ver apesar da morte daquilo que se foi, daquele
ídos ao autor, ao diretor, aos atores, ao público,
morrer. Aqui, a posição tomada pela companhia
que se foi, ou que poderá ter sido – e viver mais
aos críticos, foram modificados. A criação da
de bloquear tudo o que congela é, ao contrá-
intensamente).
peça, ao partir da quebra de muitos pontos de re-
rio, o nascimento de uma multitude de inícios
ferência, e assim de muitos moldes, se desenvolve
e evoluções.
Certamente um convite ao prazer, porque aqueles quatro amigos, que se afastam dos abor-
ao mesmo tempo em que uma nova partilha do
O movimento vivido pelos atores na criação,
recimentos da vida cotidiana, que dificilmente
sensível se inventa. Disso resulta uma formidável
movimento que eles parecem retomar a cada
recompõem sua amizade, que aprendem a sabo-
energia, um ‘colocar-se em movimento’ de todos
representação, produz um ‘colocar-se em movi-
rear, a cantar e dançar juntos, estão num limiar,
e em todos os níveis.
mento’ também nos espectadores. O sentido não
na iminência de tocar o puro prazer de existir. Um
O espetáculo e os papéis não pararam de
é enunciado ou representado, ao contrário, este
puro prazer, que exige coragem, que exige que
evoluir. Os atores foram transformados por essa
‘colocar-se em movimento’ (reforçado por um
acreditemos. Apesar de todas as desventuras que
experiência. Os espectadores parecem se afetar
agenciamento de falas: as palavras na parede, as
acontecem conosco, apesar de todos os fantas-
em suas próprias existências: alguns vêm como-
animações de vídeo...) se propaga e é o que afeta,
mas que nos habitam.
vidos abraçar os atores ao final do espetáculo,
que força uma transformação do espectador, e é
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2014
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Festival Internacional Sesc de Música impulsiona carreira de jovens músicos Para os alunos, eventos como o de Pelotas representam uma oportunidade de troca de informações, contatos profissionais e convivência com músicos reconhecidos mundialmente
Durante 13 dias do mês de janeiro, a música tomou
Festival Internacional de Música Carlos Gomes
Desde a primeira edição do festival, Luchéu
conta das ruas e de diversos espaços da cidade de
(FestiGomes) de Campinas, entre outros. Para o
participa das classes de eufônio do professor Fer-
Pelotas, no sul do Rio Grande do Sul, na quarta
músico, que toca eufônio, festivais como o de
nando Deddos, de quem se tornou amigo. “Fazer
edição do Festival Internacional Sesc de Música. O
Pelotas representam uma oportunidade de fa-
música por si só já é algo fantástico, agora, dia-
evento reuniu 47 professores de 13 nacionalidades
zer parte do dia a dia de grandes músicos de
logar musicalmente, aprender e tocar com um
em 24 cursos, um público estimado de 20 mil pes-
renome internacional, algo importante para o
amigo que você admira como pessoa e artista é
soas nos 48 espetáculos realizados e 300 alunos de
crescimento de um aluno, seja ele iniciante ou
muito melhor”, avalia. Segundo ele, fazer música é
18 estados brasileiros, bem como da Colômbia, da
avançado. “Podemos dialogar, trocar ideias e
trabalho de “formiguinha”, é absorver informações,
Argentina, da Venezuela, do Equador e do Uruguai.
experiências com ‘caras’ que normalmente verí-
dicas e técnicas e colocá-las em prática diariamen-
O festival é celebrado por todos que participam,
amos apenas em concertos e na mídia especia-
te. “Ter alguém para se espelhar é extremamente
mas são os alunos, que têm acesso a aulas com
lizada”, salienta.
importante, e o festival de Pelotas te proporciona
expoentes internacionais da música de concerto,
Luchéu também destaca como pontos po-
isso te colocando frente a frente com grandes
além da possibilidade de tocar com esses músicos
sitivos poder conviver com colegas de pratica-
nomes, que além de grandes músicos são muitas
e de estabelecer contatos até mesmo para estudar
mente todo país e boa parte da América do Sul,
vezes ótimas pessoas.”
em outros países, os maiores beneficiados.
além de participar da rotina das cidades-sedes, como Pelotas, e sua cultura. “São coisas que tu
Estudos na Europa
Para toda a vida
levas para tua vida toda”, afirma. “Propor-se a
Matheus Moresco teve seu primeiro contato com
O músico Luchéu Igor da Silva, de Dois Irmãos
participar de um evento desta magnitude signi-
a música através do piano, aos 7 anos. Interessou-
(RS), participou das quatro edições do Festival
fica sair da zona de conforto, estabelecer novos
-se pela bateria, depois saxofone até conhecer a
do Sesc/RS e também de outros eventos tradi-
desafios e ser desafiado. A música não tem fim,
percussão sinfônica, a qual estuda mais profun-
cionais, como o Festival Internacional de Mú-
todo dia é um aprendizado, tanto nos estudos
damente desde 2009, na Universidade de Pas-
sica Unisinos, Festival Internacional de Música
como ouvindo um concerto ou somente dialo-
so Fundo (UPF). O músico dá aulas de percussão
de Santa Catarina (Femusc), Festival de Música
gando, e acredito que quem não se propõe a isso
para crianças carentes e em escolas de música de
de Cascavel, do qual foi professor-assistente, e
não está vivenciando realmente a arte.”
Passo Fundo, participou de festivais com o grupo
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
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de percussão da UPF, do Unimúsica da Universi-
sicas, até mesmo visitá-los e tocar com eles. Foi
dade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com o
o que aconteceu este ano: combinei com colegas
compositor Ney Rosauro, e também realizou um
uruguaios de ir visitá-los em julho e levar material
intercâmbio na Argentina, onde estudou tímpanos
daqui e trazer coisas de lá”, conta.
com o professor Arturo Vergara. No festival de Pelotas, do qual só não participou da terceira edição,
Parceria com grandes músicos
Matheus conheceu Clarissa Severo de Borba, pro-
A música entrou cedo na vida de Leonardo Mateus
fessora no Conservatório de Le Mans, com quem
Bock, de 19 anos. Aos 2 anos e meio, iniciou seus
mantém contato sobre a possibilidade de estudar
estudos de musicalização e aos 5 anos escolheu o
na Europa. “A professora vem dando muitas dicas
violino, instrumento ao qual se dedica até hoje, sem
para que meu sonho se concretize”, diz.
interrupções. Leonardo faz graduação em música
“Já participei de vários festivais, em Curitiba,
na Ufrgs e participou de diversos festivais e cursos
Vale Vêneto, os de Córdoba e Rosário, na Argenti-
nacionais e internacionais, entre os quais, encon-
na, mas o Festival do Sesc é um pouco diferente, há
tros Suzuki, Festival de Inverno Unisinos, Femusc,
um encontro com os amigos que sempre vão, com
além das quatro edições do Festival do Sesc, em
os professores, a cidade tem uma energia super-
Pelotas. “Os festivais de música nos trazem muitos
boa, enfim, é um momento sempre muito aguar-
fatos legais. Com eles, aprendemos muito, adqui-
dado e está melhor a cada ano”, destaca. Matheus
rimos experiência. Dentre todos os festivais que já
diz que além da qualidade do curso, o evento pos-
participei, o que mais marcou minha trajetória até
sibilita tocar em grandes formações instrumentais
aqui foi o festival de Pelotas de 2013. Tive a opor-
e ter uma posição de outros professores sobre sua
tunidade de me apresentar como solista ao lado do
música. “Uma das coisas que me mais me encan-
violinista Yang Liu, nosso professor no festival, sob
ta é conhecer outros colegas músicos de distintos
regência do também violinista Emmanuele Baldi-
lados e manter contato, trocar informações, mú-
ni, com a Orquestra Unisinos. Esse acontecimento
Alunos e professores tocam juntos nos concertos do festival Foto: Mauro Buss
Apresentação na Catedral Foto: Flávio Neves
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Músicos interagem com a população em espetáculos que são realizados em toda a cidade de Pelotas Fotos: Flávio Neves
me ajudou muito artisticamente. Foi uma grande experiência”, conta. Na edição deste ano, o violinista foi spalla da orquestra sinfônica do festival, executando a primeira sinfonia de Gustav Mahler. “Nos festivais, respiramos música. São aulas, ensaios, concertos, todos os dias, e mesmo no nosso tempo livre, é difícil se desligar da música.” Segundo Leonardo, ter aulas com professores reconhecidos mundialmente, que vêm da Alemanha, Estados Unidos, China, Bielorússia, entre outros lugares, especialmente para o festival, e assisti-los nos concertos proporciona um contato gratificante, pois é difícil ter esse acesso em outras situações. Reciclagem profissional Integrante da Camerata Pampeana, sob a regência do maestro Tasso Bangel, e da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (Ospa) desde 2009, a violista Gabriela Vilanova considera o Festival Internacional Sesc de Música uma oportunidade de reciclagem profissional que impulsiona para novos projetos e atualiza o músico sobre a pedagogia do instrumento. “Também é um excelente ponto de encontro para novas amizades e contatos profissionais. Participei das quatro edições e trouxe meus alunos, inclusive. Tive a oportunidade de ter aulas com grandes violistas e maestros, o que foi muito produtivo por estarmos envolvidos em projetos de resultado muito refinado e de nível alto”, avalia. Gabriela trabalha com música de concerto e popular, se formou pela Ufrgs e fez aperfeiçoamento em São Paulo e na Musikakademie, em Kassel, na Alemanha. A violista foi professora no projeto Villa-lobos, na Lomba do Pinheiro, e no curso de extensão da Ufrgs.
MÚSICA
MÚSICA
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Por Richard Serraria,
1 Texto transcrito do documentário O grande tambor (Coletivo Catarse/Iphan; 2010).
cancionista, poeta e percussionista
Por uma pedagogia do Sopapo INSTRUMENTO MUSICAL DE APROXIMADAMENTE 110 CM DE ALTURA E 60 CM DE DIÂMETRO, DONO DE UM GRAVE ABSOLUTO, ESCULPIDO ORIGINALMENTE COM TRONCO DE ÁRVORE E COURO ANIMAL, CAVALO E GADO PREFERENCIALMENTE. ELO DE ANCESTRALIDADE COM A MÃE ÁFRICA, RITUAL DE PERMANÊNCIA, OBJETO DE ETERNIDADE: SOPAPO, COMO INSTRUMENTO PROFANO, EXIGE APENAS MÃOS PARA SER TOCADO. NA CONDIÇÃO DE INSTRUMENTO SAGRADO, LIGADO AO BATUQUE GAÚCHO, EXIGE APENAS A DEVOÇÃO DAS MESMAS MÃOS QUE FAZIAM A CARNE DE SAL E AINDA HOJE FAZEM O CARNAVAL.[1]
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Dança de negros. A aquarela de Rudolph Wendroth, mercenário e artista plástico alemão que andou pelo Rio Grande do Sul no século 19, é o registro visual mais antigo que se tem da presença do tambor sopapo no Estado. A aquarela confirma a presença do tambor ancestral gaúcho, assim como fizeram Nicolaus Dreys, Carl Seidler e outros viajantes europeus daquele século. Tal aquarela ilustrou o Projeto Cabobu, que teve duas edições no ano 2000 na cidade de Pelotas. Idealizado por Giba Giba junto com o Governo do Estado do RS, consistiu, dentre outras coisas, na criação de uma oficina no Colégio Pelotense que construiu 40 sopapos através de Mestre Baptista, mestre de bateria que se tornou referência na confecção contemporânea do atabaque-rei. Por sua vez, o Novo dicionário Banto do Brasil escrito por Nei Lopes (2003) mencionava a provável origem do termo ligado ao tambor recriado nas charqueadas gaúchas após a diáspora africana: “Grande tambor, popularizado no RS nos anos 70, pelo músico negro Giba Giba. Provavelmente de “yakupapa”, tambor dos ganguelas (Redinha, 1984).” Referência ainda mais antiga, o Glosario de afro negrismos uruguayos de Alberto Britos Serrat (1999) registrava a presença no século 18 de um quarto tambor grave junto à “cuerda” chamado de “sopipa”. Mais recentemente, Arthur de Faria na História da música de Porto Alegre, referindo-se ao final do século 19: “Nas imediações onde hoje é a Rua Lima e Silva, havia o Candombe da Mãe Rita (...), como o ritmo criado pelos negros de Montevidéu (...). Além de tambores variados havia: sopapos – surdo gigante, tocado com a mão, típico do Rio Grande do Sul.” No âmbito acadêmico, Mário de Souza Maia defendeu a tese intitulada O sopapo e o Cabobu, em 2008. Nesse trabalho, o autor reafirmou a invisibilidade e o escamoteamento do negro na identidade cultural gaúcha em função do positivismo e ainda da ascensão do tradicionalismo na metade do século 20. Importante mencionar que no final do século 19 e a chegada do século 20 o sopapo ganha espaço nos festejos de rua. No carnaval gaúcho moderno, em Rio Grande e em Pelotas, o sopapo encon-
MÚSICA
MÚSICA
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junto com alguns grupos de dança afro e recentemente propaga-se por diferentes pontos de cultura, cada vez mais se revestindo como símbolo significativo da resistência negra no RS. Com isso,
Mestre Baptista, em cena do documentário O grande tambor
Foto: Divulgação do filme
Sopapos no show de Richard Serraria
Foto: Arquivo pessoal
avança-se no sentido de reconhecer o instrumento como Patrimônio Imaterial Nacional, conferindo novo impulso ao resgate desse tambor que quase desapareceu no fim do século 20. Sob esse ponto de vista, diferentes griôs vêm contribuindo para manter viva a memória desse instrumento, empenhando-se arduamente para que o tambor chegue trou seu lugar fazendo o papel que hoje é ocupado
às novas gerações: Dona Sirlei, Dilermando, Mestre
tiva de instaurar um novo paradigma cultural, que,
pelo surdo de terceira, responsável pelo “molho”,
Chico, Mestre Paraquedas, Paulo Romeu, além dos
se levado a cabo, repetiria erros anteriormente
o “redobre” que conferia uma característica única
já citados Mestre Baptista e Giba Giba (falecido em
praticados no RS. O objetivo é apenas usar o sopa-
ao samba gaúcho em função do som grave e in-
fevereiro deste ano) e instrumentistas que coloca-
po como elemento disparador da reflexão sobre a
confundível do instrumento, sendo que o tambor
ram o tambor em seus sets musicais, como Sandro
“invisibilidade” da cultura negra no Estado, justifi-
chega ao desfile de carnaval em Porto Alegre por
Gravador, Edu Nascimento, Lucas Kinoshita (que
cando o termo “resgate”, por exemplo. Parece-me
meio da Academia de Samba Praiana, fundada em
também escreveu um trabalho de conclusão de
que no RS, pelas peculiaridades históricas breve-
1960. Depois ocorreria a “carioquização” do samba
curso de graduação em Música, em 2009, materia-
mente expostas anteriormente, talvez se deva falar
gaúcho na década de 1970, acentuando-se na dé-
lizando pela primeira vez a escrita musical aplicada
de “apagamento” da expressão negra, em função
cada de 1980, fruto da televisão que divulga para
ao sopapo), Mimmo Ferreira, Alessandro Brinco,
do positivismo, ainda da ascensão do tradiciona-
todo o país o desfile “oficial” das escolas de samba
Paulo Mallet, Nego Wado, entre outros. Poderiam
lismo na metade do século 20 e da carioquização
do Rio de Janeiro. Assim, o sopapo perde espaço
ser citados ainda compositores que vêm usando o
do samba na segunda metade deste século, den-
nas baterias para os instrumentos sintéticos, numa
instrumento nos seus discos e arranjos, como Kako
tre outras coisas. Nesse contexto, explica-se a re-
tentativa de cópia do modelo carioca.
Xavier, Leandro Maia, Zé Evandro, Marcelo Cougo,
criação de um repertório ancestral que ao mesmo
Sebastian Jantos, Dany Lopez, Richard Serraria etc.
tempo contemple o sincretismo da religiosidade
a Lei 10639/03, que torna obrigatório o ensino da
Assim, nos últimos anos, diferentes pessoas
afro-católica (maçambique e quicumbi), cantos de
história e cultura afro-brasileira e africana nas
envolvidas com o sopapo vêm discutindo a poten-
trabalho, cantos de batuque de nação Jêje-Ijexá e
redes de ensino pública e particular, o sopapo
cialidade da recriação de um repertório ancestral
toques de candombe, tudo isso sob a benção do
chama atenção sobre a invisibilidade da cultura
feito, por exemplo, a partir de alujás de religião exe-
mestre de cerimônias: tambor sopapo.
negra no Rio Grande do Sul. Contribuindo para
cutados no instrumento, cantos de procissão reco-
Busca-se assim uma linhagem de permanên-
suprir essa lacuna, no ano de 2010, realizou-se
lhidos em material etnográfico e musical ligados ao
cia e ancestralidade do sopapo ligada aos cantos
o documentário O grande tambor, num esfor-
maçambique (manifestação negra presente no lito-
de religião e cantos de trabalho, não uma manifes-
ço de diferentes instituições capitaneadas pelo
ral norte do RS), quicumbi (manifestação negra no
tação do sopapo ligada ao ciclo urbano e dessa for-
Coletivo Catarse com apoio do Instituto do Pa-
litoral sul do RS) e ainda toques de sopapo aplicados
ma desatrelada do fenômeno do carnaval carioca.
trimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan),
ao candombe (manifestação afro-uruguaia espa-
Isso tudo vem conferindo novo impulso a
que envolveu ainda Pontos de Cultura Quilombo
lhada pela fronteira desse país com o RS, além dos
esse instrumento que quase desapareceu no fim
do Sopapo, Ventre Livre e Afro Sul Odomodê, em
registros históricos que atestam a presença de can-
do século passado. Certo é que o sopapo faz parte
Porto Alegre, assim como a Casa Brasil Dunas e
dombe na Capital do Estado no fim do século 19).
de uma linha direta com ancestrais fundadores
Em tempos em que ainda não se concretizou
RádioCom, de Pelotas, Ponto de Cultura Arte Es-
Assim, justifica-se a criação do Alabê Ôni
daquilo que precisa ser revisto como “gauchi-
tação, de Rio Grande, e Bataclã FC, que em 2011
(“Nobre Tamboreiro” na língua Iorubá), que busca
dade”, mostrando a presença negra no trabalho
recebeu o selo Cultura Viva do Ministério da Cul-
no momento atual recriar o sopapo em manifes-
no Rio Grande do Sul ao longo do período co-
tura (Minc) por difundir o sopapo.
tações da cultura negra do RS pelo fato de este ter
lonial, trazendo com isso o reconhecimento da
Após o Projeto Cabobu, o instrumento se es-
perdido suas referências ancestrais. Isso deve ser
contribuição afrodescendente à cultura gaúcha.
palha pela música popular do Estado, bem como
feito não como modelo a ser seguido ou na tenta-
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
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Por Leandro Anton, coordenador do Quilombo do Sopapo (quilombodosopapo.blogspot.com.br)
O Sopapo de Todos os Papos
No final da tarde do dia 16 de abril de 2008, na Avenida Capivari, 602, Bairro Cristal, em Porto Alegre, numa sala há pouco pintada e vazia de mobiliários, estava cheia de história, de gerações que se encontravam e registravam os preparativos do evento daquela noite de outono. Gilberto Amaro do Nascimento, Neives Meireles Baptista e Marcelo Cougo, entre sons de cavaquinho, cuíca e sopapo eram filmados por jovens do primeiro curso de audiovisual do Quilombo do Sopapo, ponto de cultura que estava para receber no início da noite a benção dos seus padrinhos e madrinha, Mestre Giba Giba, Mestre Baptista e Bataclã FC. Os jovens, em meio a acordes, histórias e gargalhadas, registravam alguns depoimentos, Mestre Giba Giba fala do Cabobu, encontro dos Tambores do Sul, realizado em Pelotas no ano de 2000, quando convidou Baptista para construir os 40 sopapos que foram às ruas de Pelotas na primeira edição do evento, e lá Bataclã FC recebeu seu primeiro tambor de sopapo. Giba recorda a inclusão do sopapo
MÚSICA
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1 Fala extraída do vídeo de inauguração do Quilombo do Sopapo que está no link https://www.youtube.com/ watch?v=TXNBrDcoA34. 2 Discurso sobre o programa Cultura Viva proferido em Berlim em 2 de setembro de 2004.
no dicionário Banto do Brasil de Nei Lopes, a músi-
Tambor nas escolas e no Ponto de Cultura durante
e tecnologias de ponta.”[2] Os Pontos de Cultura
ca de Paulo Moura e João Donato sobre o tambor
a Ação Griô – O Sopapo de Todos os Papos, pela
são intervenções agudas nas profundezas do Brasil
de sopapo e num breve registro diz “A cultura tu
tradição oral, encantou juntamente com os Gri-
urbano e rural para despertar, estimular e projetar
não faz dentro de uma sala, a cultura é o jeito de
ôs Edu do Nascimento e Mestre Jaburu e com o
o que há de singular e mais positivo nas comuni-
ser de um lugar, não tem monitoramento cultu-
Aprendiz Fernando Rizzolo, crianças e jovens das
dades, nas periferias, nos quilombos, nas aldeias: a
ral, tem uma educação geral que é do povo, que o
escolas públicas da Região Cristal, através da his-
cultura local.
povo se organiza cada um no seu jeito de ser e dali
tória do negro no Rio Grande do Sul contada e
se tem a cultura, por isso não sabemos até agora o
cantada por meio do tambor de sopapo.
Giba Giba é expressão desse do-in antropológico, dessa resistência que a tradição oral permitiu
tambor típico de nosso lugar... aqui chamam a polí-
Assim como os Pontos de Cultura, a Ação Griô
manter vivo um dos maiores bens culturais do Rio
cia quando estamos tocando tambor... tem vizinho
surge com o programa Cultura Viva, na condução
Grande do Sul, o tambor de sopapo e todo patri-
que grita que tem barulho, tem muito fiscal da ale-
de outro Gilberto, também negro e ícone da músi-
mônio imaterial que ele projeta. Para a rede dos
gria, tem muita proibição, tem muito regulamento,
ca brasileira como Gilberto Amaro do Nascimento.
Pontos de Cultura do Brasil, eternamente Mestre
tem muito quequequé, muito jerereré, dadadá, e
Gilberto Gil revoluciona a cultura brasileira naquilo
Giba Giba, eternamente Mestre Griô, eternamente
isto aí não é legal pra ninguém, muito menos para
que nas suas palavras são “uma espécie de ‘do-in’
uma mordida na flor!
a cultura e educação, tenho dito!”
antropológico, massageando pontos vitais, mas
[1]
Giga Giba, acolheu, apadrinhou e principal-
momentaneamente desprezados ou adormecidos,
mente construiu e transformou o Quilombo do
do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o ve-
Sopapo pela palavra, pela música, pelo tambor de
lho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não
sopapo. Por ser Giba Giba, nestes seis anos de Pon-
pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética
to de Cultura, Mestre Giga Giba, como é conhecido
permanente entre a tradição e a invenção, numa
por todos que ouviram histórias através do Grande
encruzilhada de matrizes milenares e informações
Gilberto Amaro do Nascimento, Giba Giba Fotos: Diego Coiro Fotos: Arquivo Quilombo do Sopapo
CINEMA
primeiro SEMESTRE
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A América por John Ford Mostra de cinema com oito filmes circula pelo Estado durante o ano de 2014
Ilustrações sobre imagens dos filmes Rastros de ódio, O prisioneiro da Ilha dos Tubarões e Médico e amante Ilustrações: Kako (catálogo da mostra)
CINEMA
primeiro SEMESTRE
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Texto extraído do catálogo da mostra de cinema A América por John Ford, editado pelo Departamento Nacional do Sesc, em agosto de 2013.
Inquestionavelmente, foi o diretor John Ford um
personagens ratificasse a ética valorativa dos pio-
leiros, chegou a afirmar que deixaria de escrever
dos responsáveis pelo status que o gênero faro-
neiros, daqueles que enfrentaram as adversidades
sobre cinema depois que Ford morresse e, para a
este adquiriu no decorrer da história do cinema.
para construir uma nova ordem social. A mostra
surpresa de todos, assim o fez. Sua última críti-
Isso se justifica se considerarmos seu currículo
do Sesc A América por John Ford, composta por
ca, publicada em 1973 no Correio da Manhã, em
com nada menos de 133 filmes ao longo da car-
oito obras, esforça-se em apresentá-lo como um
exatos 10 dias após da morte de Ford, é uma ho-
reira. A sua facilidade de trabalhar com os ato-
diretor capaz de fazer filmes com temáticas diver-
menagem emocionada para o artista que mais
res, fazendo-os improvisar e realizando poucas
sas, mas alicerçadas na história norte-americana.
admirou na arte cinematográfica.
(às vezes apenas uma) tomadas de cenas era,
Médico e amante (1931) é um bom exemplo de um
na verdade, uma afirmação da sua capacidade
típico drama; As vinhas da ira (1940), de um drama
[...] enquanto as fordianas imagens fo-
produtiva. Entre os atores que trabalharam com
social; O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (1936),
rem projetadas, não importa em que
Ford, pode-se citar as presenças marcantes de
de uma aventura dramática; Juiz Priest (1934),
tela ou em que sala, ou se o cinema
James Stewart, Henry Fonda, Will Rogers, John
de uma comédia de costumes; e A mocidade de
acabar, enquanto houver memória,
Carradine, Maureen O’Hara, George O’Brien,
Lincoln (1940), de um drama político. O faroeste
Ford será. Assim como Shakespeare
Ward Bond, Harry Carey Jr., Victor McLaglen e o
completa a mostra com três clássicos indubitáveis:
está casa vez mais vivo, a despeito da
seu ator-ícone e xará John Wayne.
No tempo das diligências (1939), Rastros de ódio
agonia tão lenta do teatro, Ford está
(1956) e O homem que matou o facínora (1962).
cada dia mais presente, ainda que o ci-
Seu trabalho cinematográfico foi marcado pela clareza de opiniões sobre o homem, a his-
nema já não tenha mais a mesma alma
tória e a sociedade norte-americana. Ford jamais
Palavra dos críticos
intencionou manter uma postura socialmente crí-
John Ford foi um dos cineastas mais festejados
tica, mas sempre foi profundamente dedicado à
pela crítica. Seu cinema, apesar de clássico, por
[...] faz tempo que sua reputação como
humanidade das pessoas, independentemente de
vezes até duvidoso ideologicamente, mobilizou
mestre número um do cinema clássico
sua posição social (um presidente, um pistoleiro
diversos pensadores do cinema. Antonio Moniz
americano deixou de ser contestada.
ou uma prostituta), desde que a posição desses
Vianna, um dos mais respeitáveis críticos brasi-
Nem aqueles que, por razões respeitá-
(VIANA, 2004, p. 396).
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2014
50
veis, preferem o também clássico cinema de Howard Hawks (1896-1977) ou o de Raoul Walsh (1887-1980) ou o de
Médico e amante Arrowsmith, 1931 / P&B, 98 min
King Vidor (1894-1982) negam a Ford a primazia que os três citados, aliás, fa-
Com Ronald Colman, Helen Hayes e Richard Bennet
ziam questão de reconhecer (AUGUSTO, 1995, p. 88).
O talentoso médico Arrowsmith (Ronald Colman) abre mão de uma promissora carreira de cientista para ser médico em Dakota do Sul, cidade natal de sua esposa. Mas seu trabalho de cientista é resgatado quando ajuda um fazendeiro e consegue eliminar uma doença que havia afetado suas vacas. A competência de Arrowsmith como cientista o leva ao mais elevado instituto de pesquisa de Nova York. Lá é destacado às Antilhas para resolver um caso de epidemia de peste bubônica, onde os trabalhos de médico e cientista se misturam. Arrowsmith fica então dividido entre uma função e outra. O médico controla a doença, mas perde a mulher e os amigos. Filme sensível e emocionante indicado a Melhor Direção no Oscar de 1931. Adaptação da novela de Sinclair Lewis, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.
Um dos críticos brasileiros mais atuantes nos anos de 1950 e 1960, Francisco Luiz de Almeida Salles faz uma análise deliciosa ao misturar a biografia e o estilo cinematográfico fordiano, além de uma acurada descrição técnica. O filme em questão era o atípico Depois do vendaval (The quiet man, produção de 1952). Salles desenha o pensamento que [...] o intuito primeiro de John Ford, irlandês de 60 anos, nascido exatamente no ano em que Lumière, em Paris, abria o primeiro cinematógrafo do mundo, e
FILMES DA MOSTRA
cuja biografia se confunde com a própria biografia do cinema, deve ter sido, de fato, este – o de resumir e fazer reviver a seiva, o espírito, a graça, a ingenuidade, a força da narração cinematográfica primitiva desse livro de imagens, aturdido e perplexo, que foi ofertado às gerações deste século (SALLES, 1988, p. 88-89). O lado épico de Ford foi realçado na crítica de Luiz Carlos Merten. [...] há um mito John Ford, que foi comparado, como criador de epopeias, a Homero. Ford seria o Homero das pradarias, identificado como tal por sua preferência pelo western como território de criação de lendas. O próprio Ford admita-o (MERTEN, p. 94).
Juiz Priest Judge Priest, 1934 / P&B, 96 min Com Warner Baxter, Gloria Stuart, Claude Gillingwater, Harry Carey, John Carradine e Francis Ford O tema central deste filme é a tolerância para que o país consiga superar as diferenças políticas provocadas pela Guerra de Secessão. Priest, interpretado carismaticamente por Will Rogers, vai suavemente falando sobre os outros personagens, muitas vezes falando sozinho, como se mais nada tivesse a fazer senão nos apresentar o universo social de Kentucky. A questão racial é tratada com muita sutileza, mas Ford, desde o começo do filme, estabelece a importância da integração inter-racial, de incorporar os negros em um novo estatuto social, mas mantém o caráter submisso e subalterno dos negros como mão de obra barata. O diretor consegue criar com uma história simples um painel surpreendente da cultura sulista dos Estados Unidos.
CINEMA
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Referências bibliográficas AUGUSTO, Sergio. A folha conta 100 anos de cinema. Rio de Janeiro: Imago, 1995. MERTEN, Luiz Carlos. Cinema: entre a realidade e o artifício. 2ª ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2007. SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. VIANNA, Antonio Moniz. Um filme por dia: crítica de choque (1946-73). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
O prisioneiro da Ilha dos Tubarões The prisoner of Shark Island, 1936 / P&B, 96 min
No tempo das diligências Stagecoach, 1939 / P&B, 97 min
Rastros de ódio The searchers, 1956 / Cor, 119 min
Com Warner Baxter, Gloria Stuart, Claude Gillingwater, Harry Carey, John Carradine e Francis Ford
Com John Wayne, Claire Trevor, Thomas Mitchell, Andy Devine, George Bancroft e John Carradine
Com John Wayne, Jeffrey Hunte, Vera Miles, John Qualen, Harry Carey Jr. e Natalie Wood
Dr. Mudd é condenado por ter socorrido um homem com a perna quebrada, fato corriqueiro para um médico, não fosse esse homem o assassino do presidente Abraham Lincoln. O médico, é claro, desconhecia essa importante informação. O real assassino é morto e toda a ira popular recai sob oito suspeitos de serem cúmplices, que são rapidamente tomados como culpados e devem pagar pelo crime de assassinato ao presidente. Dr. Mudd é o único que não é executado, mas é condenado à prisão perpétua e levado para a Ilha dos Tubarões, localizada no meio do oceano. Na ilha, o médico se encarregará de combater uma terrível doença.
Uma das obras mais aclamadas de John Ford e considerada uma obra-prima do faroeste. No caminho para a cidade de Lordsburg, viajam em uma carruagem um banqueiro corrupto, um médico alcoólatra, uma prostituta, a esposa de um oficial, um jogador decadente, um rígido xerife, um condutor abobalhado, um vendedor de bebidas e um fora da lei que fugiu da cadeia. Diversos conflitos são deflagrados enquanto um clima de tensão permeia todo o percurso, pois um ataque indígena pode acontecer a qualquer momento. Ford explora com eficiência as paisagens naturais do Monument Valley para instaurar uma nova forma de contar uma história de faroeste.
Ethan Edwards, personagem de John Wayne, após anos lutando pelos confederados, regressa ao rancho de seu irmão. Enquanto isso, a região está mergulhada em conflitos com os índios, que de tanto sofrerem com ataques dos norte-americanos resolvem pagar na mesma moeda. Os comanches realizam um violento ataque, assassinando toda a família de Ethan e raptando as suas duas sobrinhas. Ele inicia uma perseguição implacável. Uma delas é morta, e a outra é criada para ser uma das mulheres do líder da tribo. Considerado por muitos críticos um dos maiores filmes da história do cinema, com direção, fotografia, música, roteiro e edição majestosos, dignos de um filme de John Ford.
A mocidade de Lincoln Young Mr. Lincoln, 1939 / P&B, 100 min
As vinhas da ira The grapes of wrath, 1940 / P&B, 129 min
O homem que matou o facínora The man who shot liberty Valance, 1940 / P&B, 119 min
Com Henry Fonda, Alice Brady, Marjorie Weaver, Arleen Whelan, Eddie Collins, Pauline Moore e Richard Cromwell
Com Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine, Charley Grapewin, Dorris Bowdon, Russell Simpson e John Qualen
Com James Stewart, John Wayne, Lee Marvin, Vera Miles, John Qualen e Jeanette Nolan
Neste filme, Ford aborda a juventude de seu ídolo, o ex-presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, em especial a formação do seu caráter. A história do filme é simples, narra o apreço de Lincoln pelo Direito e seu desdobramento na carreira política. Apesar de gozar de certo reconhecimento, sua fama só viria após um incidente em que dois irmãos matam um homem em legítima defesa. Após o assassinato, entra em cena a figura de Lincoln, o homem do direito e da política, impedindo o linchamento e se tornando advogado de defesa dos acusados. Um dos filmes mais emblemáticos de Ford e talvez o mais significativo para melhor compreendê-lo como cineasta.
História clássica, baseada no livro de John Steinbeck, que se passa no auge da Grande Depressão, no final dos anos 1920. Uma grande família de arrendatários é expulsa de suas terras no norte e parte para procurar emprego no sul. O filme gira em torno de três personagens-chave: Tom Joad, Casy e Mãe Joad. Tom está retornando para a família após um período de quatro anos na cadeia, Casy é um ex-pregador religioso e Mãe Joad é a matriarca lutadora que não mede esforços para manter sua família. Todos são lançados à famosa Rota 66 rumo a uma Califórnia idílica.
A cidade de Shinbone, no Velho Oeste, recebe a visita de Ransom Stoddard (James Stewart), senador que foi para o funeral de Tom Doniphon (John Wayne), um desconhecido vaqueiro do qual era muito amigo. Ao ser entrevistado por um repórter sobre o que fazia na cidade, Ramson começa a contar que sua fama começou quando ainda era um advogado recém-formado e matou um pistoleiro violento chamado Liberty Valance (Lee Marvin). Em flashback, o filme narra todo esse período de sua vida, em especial sua relação de amizade com Tom Doniphon.
primeiro SEMESTRE
CINEMA
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Mostra traz um fragmento da produção alemã contemporânea Por meio de uma parceria entre o Departamento Nacional do Sesc e o Goethe-Institut, será realizada no primeiro semestre de 2014 em diversas capitais brasileiras, entre elas Porto Alegre, a Mostra Encontro com o Cinema Alemão. Dez filmes produzidos na Alemanha entre o final
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2014
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do século 20 e início do século 21 configuram
Alemanha + Brasil 2013-2014, pois permite co-
o recorte de um cinema articulado com temas
nhecer a produção cinematográfica contempo-
contemporâneos da sociedade ocidental (Yella,
rânea da Alemanha, favorecendo o estudo e a
Todos os outros, O que permanece, Bem-vindo à
discussão sobre as questões específicas da arte
Alemanha) e com dois temas de grande impacto
do cinema e, ao mesmo tempo, conhecer novos
na história do país: a Segunda Guerra Mundial
aspectos, novos olhares, sobre as questões do
(Quatro dias em maio) e a vida na Alemanha
homem e da sociedade.
Oriental com a unificação do país (Sonnenalle,
Na abertura da mostra em algumas capitais
Berlin is in Germany, A Vida é um canteiro de
está previsto o debate “A narração no cinema
obras, Nenhum lugar para ir e Adeus Lenin!), re-
pelas lentes do cineasta”, com a cineasta alemã
visitados por seus cineastas nas questões viven-
Yasemin Samdereli, diretora do filme Bem-vindo
ciadas pelo homem comum.
à Alemanha, que estreou no Festival de Cinema
Esse recorte nos proporciona conhecer,
de Berlim. Yasemim relata sua experiência no ci-
por intermédio da ficção, aspectos da vida co-
nema, explicando sua visão sobre como escreve
tidiana alemã, levando-nos a refletir sobre uma
um roteiro que funcione como base para o bom
infinidade de aspectos sociais e humanos, em
desdobramento da narração de um filme. Para
detalhes normalmente esquecidos, apagados em
mostrar a teoria na prática, Yasemin Samdereli
filmes que em geral são exibidos em circuitos
ilustra sua apresentação com pequenos trechos
comerciais. Uma abordagem bastante apropria-
de filmes e em seguida debate com o público.
da para uma ação do calendário da temporada
Berlin is in Germany Bem-vindo à Alemanha Adeus Lenin!
CINEMA
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2014
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A vida é um canteiro de obras Das leben ist eine baustelle, 1997 / 118 minutos
Nenhum lugar para ir Die unberührbare, 1999 / 100 minutos
Direção: Wolfgang Becker
Direção: Oskar Roehler
Em Berlim, manifestantes e policiais se enfrentam na rua, enquanto Jan Nebel vai para seu emprego no frigorífico. No caminho, derruba dois homens que perseguem uma jovem, e ele nem imagina que são policiais à paisana. A noite traz sérias consequências para Jan: uma multa, sua demissão e, talvez, a perda de seu grande amor. Pela manhã, ao fazer uma visita ao pai, encontra-o morto. Além disso, Jan desconfia que contraiu Aids. Mas toda catástrofe pode ter seu lado bom: em seu último dia no frigorífico, ganha um novo amigo; no confronto com a polícia, conhece Vera; com a morte do pai, ele tem agora um apartamento próprio e talvez o medo da Aids o faça ordenar melhor a própria vida.
Neste filme, Oskar Roehler relata a história de sua mãe – a escritora Gisela Elsner, que se suicidou em 1992 – através da personagem Hanna Flanders, que vê sua suposta carreira destruída com a queda do muro de Berlim. Gisela Elsner tinha se tornado uma figura tão marginal, que passara a ver-se como pária da sociedade cultural. Na verdade, exceto pelo seu impetuoso romance de estreia, Gisela nunca chegou a ser uma grande escritora. Membro do Partido Comunista Alemão, a escritora bem poderia ter pressentido que o fim da Alemanha Oriental seria também o fim do seu sucesso profissional.
Berlin is in Germany 2001 / 90 minutos
Adeus Lenin! Good bye Lenin! , 2003 / 120 minutos
Direção: Hannes Stöhr
Direção: Wolfgang Becker
Martin deixa a penitenciária de Brandenburgo após 11 anos na prisão por um assassinato em 1989. Ele só conhecia a Alemanha Oriental e agora é subitamente confrontado com uma nova Berlim unificada. Hospeda-se em um hotel e sai em busca de trabalho, mas nada consegue. Procura Manuela, sua mulher e mãe do filho que nunca vira até então, mas o atual companheiro da esposa não vê com bons olhos essa aproximação. Inspirado por uma história real, o diretor Hannes Stöhr nos revela uma história que tem um ponto de partida realista, mas se transforma aos poucos em um conto de fadas.
Em 1978, em plena Alemanha Oriental, o pai de Alex Kerber deixa o país, rumo ao ocidente. Uma visita dos homens da Stasi (Serviço de Segurança Nacional) leva a mãe do garoto ao hospital, de onde volta como uma ativista ferrenha. Anos depois, em uma manifestação pacífica, ela vê seu filho Alex sendo espancado por representantes do governo e entra em coma após sofrer um infarto. O muro de Berlim é destruído, e a casa da família é adaptada aos padrões ocidentais. Somente em 1990, um ano depois, ela desperta do coma. O médico explica que qualquer excitação pode ser fatal para a paciente. Por isso, Alex decide esconder a queda do Partido Socialista. Mas o que acontecerá quando a mãe, mesmo acamada, voltar para casa?
FILMES DA MOSTRA
CINEMA
primeiro SEMESTRE
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Sonnenallee 1999 / 94 minutos
Yella 2007 / 88 minutos
Todos os Outros Alle anderen, 2008 / 119 minutos
Direção: Leander Haußmann
Direção: Christian Petzold
Direção: Maren Ade
Com este filme, sua estreia no cinema, o diretor de teatro Leander Haußmann retrata de forma humorística a vida dos jovens na Berlim Oriental e nas zonas fronteiriças, em 1973. Muita coisa acontece na Sonnenallee, avenida que tem um trecho mais longo na Berlim Ocidental e um trecho mais curto na parte oriental da cidade dividida. Haußmann oferece uma caricatura dos problemas dos cidadãos da Alemanha Oriental sem que para isso seja necessário conhecer a fundo a história da queda do socialismo na Alemanha.
Yella quer sair de Wittenberge, onde a empresa de seu marido Ben faliu, e seu casamento chegou ao fim de maneira dramática. Decide então ir para o oeste, para o outro lado do Elba, em busca de oportunidades. Em seu novo lar, ela encontra Philipp, que a convida para acompanhá-lo em um encontro de negócios. Ali, Yella descobre o mundo do capital de risco e começa a trabalhar para Phillipp. Ela começa a participar do sonho de Philipp, que quer ganhar muito dinheiro e para isso planeja um negócio incrivelmente simples e altamente promissor.
O filme conta a história de Gitti e Chris, um jovem casal de trinta e poucos anos e muitas diferenças que tenta desfrutar suas férias isolando-se. Na casa de veraneio dos pais de Chris, na Sardenha, eles tentam fugir dos problemas não resolvidos. Dentro da casa tudo é igual ao lar na Alemanha, por isso o casal prefere passar o tempo na piscina, entregando-se a brincadeiras pueris e fugindo de vizinhos inconvenientes. Só não conseguem fugir um do outro.
Quatro dias em maio 4 tage im mai , 2011 / 95 minutos
Bem-vindo à Alemanha Almanya — Willkommen in Deutschland, 2010 / 95 minutos
O que Permanece Was bleibt, 2012 / 88 minutos
Direção: Achim von Borries
Direção: Yasemin Samdereli
Direção: Hans-Christian Schmid
Aos 13 anos, Peter queria ser um guerreiro valente. Durante as batalhas da Segunda Guerra Mundial, ele encontra um soldado alemão morto, veste o seu uniforme e pendura também o seu fuzil. Uma pequena patrulha russa ocupa o orfanato no qual o garoto vive com a tia, que se rende aos russos. Nesses últimos dias de guerra, o major da pequena tropa, Kalmykow, quer apenas proteger seus homens. Quando uma unidade alemã aparece na região, Peter denuncia os soldados soviéticos, mas nem mesmo os alemães querem continuar lutando.
Em 1964, Hüseyin Yilmaz deixou a Anatólia e foi para Alemanha como trabalhador imigrante. Prestes a receber a cidadania alemã, não sabe se é isso o que realmente deseja. Inesperadamente, ele compra uma casa em seu país natal e convoca sua família para ajudá-lo com a reforma, mas esta reage de maneiras diversas. Lembranças do passado se misturam ao presente, enquanto a família toda está novamente a caminho da Anatólia. Durante a viagem de ônibus, Hüseyin morre, provocando discussões que há muito já deveriam ter acontecido. O filme, uma extraordinária contribuição ao debate sobre a integração alemã, fala sobre identidades que se transformam pouco a pouco, sobre a complexa questão da pátria de cada um.
Marko sai de Berlim para encontrar sua rabugenta mulher nas proximidades de Bonn e pegar seu filho Zowie. O casal vive separado, mas os avós de Zowie não podem saber. A ilusão da família intacta deve ser mantida, principalmente por causa da avó Gitte, que sofre de depressão há muitos anos. Durante um jantar, Gitte faz uma revelação que, em princípio, deveria alegrar a todos os presentes: ela declara estar vivendo agora sem o uso de medicamentos. Os parentes reagem com surpresa, estranheza e desconfiança, pois todos temem novos problemas.
primeiro SEMESTRE
ARTES VISUAIS
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Exposição de Carlos Vergara circula pelo RS Sesc apresenta trabalho do artista
O Sesc tem trabalhado com artes visuais desde 1976 e, em 1981, iniciou o projeto Arte Sesc com o intuito de fomentar a produção artística do país, estimulando a criação de um circuito que não fosse limitado às capitais, mas que alcançasse o interior do Brasil, chegando a áreas onde a produção artística fica mais restrita. O Arte Sesc, portanto, é um projeto que há mais de 30 anos tem levado exposições de artes visuais em itinerâncias por todo o país. São variados os períodos históricos, temas, técnicas e suportes que integram o projeto, com obras de diferentes artistas ou grupos, seleciona-
inspirado nas experiências, ao mesmo
dos através de curadorias específicas. Atualmente,
tempo espirituais e utópicas, que
o projeto apresenta 12 exposições que, todos os
ocorreram em São Miguel das Missões no século 18
anos, têm passado por uma média de 80 cidades, abrangendo capitais e o interior. Cada exposição é acompanhada de criterioso material educativo,
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2014
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Compilado dos textos contidos no catálogo da exposição Carlos Vergara viajante: experiências de São Miguel das Missões
o qual propõe diferentes possibilidades de leitura
ao seu trabalho como analista de laboratório, se
das obras e permite ao Sesc desenvolver desdo-
dedicava ao artesanato de joias, que chegaram
bramentos, como cursos, oficinas e palestras nas
a ser expostas na 7ª Bienal Internacional de São
comunidades por onde circulam.
Paulo em 1963. Foi quando descobriu o desenho
Nos últimos 10 anos, o projeto tem se voltado
e a pintura. Participou, então, das emblemáti-
para a discussão da arte contemporânea, permitin-
cas mostras Opinião 65 e 66, no Museu de Arte
do que o público possa conhecer obras de artistas
Moderna do Rio de Janeiro, e foi um dos organi-
visuais de renome como Carlos Vergara, que está
zadores da mostra Nova Objetividade Brasileira.
em circulação no Rio Grande do Sul desde o mês
Sua obra, nos mais diversos suportes – pintura,
de março com a exposição “Viajante: A experiência
fotografia, vídeo, colagem e monotipias – é sur-
de São Miguel das Missões”. O principal propósi-
preendente e combativa. As viagens, seja para São
to do Arte Sesc com esta exposição é contribuir
Miguel das Missões seja para Capadócia, repre-
com o trabalho de formação do olhar e estímulo
sentam para o artista o momento de “olhar para
da criatividade numa tentativa de formar sujeitos
fora”, que será seguido de um olhar mais intros-
com uma visão mais crítica do mundo a sua volta.
pectivo, para dentro da própria obra, no desdo-
Gaúcho de Santa Maria, Carlos Vergara chegou ao Rio de Janeiro na década de 1950, paralelo
bramento necessário do atelier.
S.M. 7, 2008 S.M. 9, 2008 S.M. 6, 2008 S.M. 8, 2008 Montagens de fotos com acrílico lenticular (3D) 100 x 100 cm
Fotos: Cesar Duarte
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ARTES VISUAIS
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Por Luiz Camillo Osório, crítico de arte
Sem título, 2011 Monotipia e pintura em lona crua Foto: Cesar Duarte
Viajante – O processo* Carlos Vergara viaja para pintar, buscando no deslumbramento do ver pela primeira vez a força motriz da sua poética visual. A viagem desnaturaliza o olhar, tira dele a força do hábito e das convenções. A viagem, no fundo, é uma metáfora para o fazer da obra – ir em busca de diferentes formas de ver e de ser no mundo. A experiência de São Miguel é um momento decisivo desse “ir em busca” no interior da poética de Vergara. Nas Experiências de São Miguel das Missões, Carlos Vergara encontra esse lugar povoado por acontecimentos de relevância religiosa, política e geográfica para a história da América. Aldeamentos indígenas gerenciados por padres jesuítas no Novo Mundo, as missões representavam parte do sonho jesuíta de civilização e evangelização desses povos. Espalhadas por toda a América colonial, as missões constituem uma das mais notáveis utopias da história. Nessa viagem, vários tempos e espaços se encontram e se multiplicam na superfície da tela e dos lenços, nas fotografias em 3D e nas imagens do vídeo Sudário. Da história pessoal à cultural, passa pela revisitação de modos de vida soterrados e esquecidos e chega à própria potência da arte em abrir perspectivas de compreensão que não se encaixam no saber científico e objetivo. Criou-se ali, no extremo sul da América, uma possibilidade singular de vida em comum, nas quais as diferenças eram assumidas, cultivadas e reinventadas não obstante os conflitos pertinentes ao processo. *Texto de apresentação da exposição
literatura
primeiro SEMESTRE
2014
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Por flávio aguiar,
Professor de literatura brasileira da USP (1973 - 2006), jornalista e escritor. Correspondente em Berlim para várias mídias brasileiras.
Qorpo-Santo, ontem, hoje e sempre Qorpo-Santo é quem tinha razão
Quando Qorpo-Santo foi introduzido no cânone
Naquele maio.
da dramaturgia brasileira, a partir das pesquisas de Guilhermino César, Aníbal Damasceno e tantos ou-
Carlos Drummond de Andrade,
tros, e das montagens no Clube de Cultura de Porto
Relatório de maio, 1968
Alegre, dirigidas por Antonio Carlos Sena, em 1966, ele teve como acompanhante a auréola das vanguardas europeias. Foi logo considerado um precursor do Teatro do Absurdo: falou-se em Beckett e Ionesco. Depois, chegou-se a aventar até Brecht para sacramentar o nome daquele que Gilhermino César chamara de “o manso louco do Guaíba”. Sem desacreditar o nobre esforço dos que buscavam um verbete para alinhar sua dramaturgia irrequieta e surpreendente, volto hoje à perspectiva de Aníbal Damasceno, certamente o primeiro que descortinou o valor da sua obra para além do espírito de colecionador de raridades bibliográficas, segundo a qual Qorpo-Santo seria antes de tudo “um singular”. Não sei se Aníbal e eu quereríamos dizer exatamente a mesma coisa através da expressão – ela também “singular”. Para mim, a singularidade de Qorpo-Santo se reveste de caráter artístico que venho observando frequentemente em episódios contemporâneos – nossos, do século 21. Estava eu certa vez na Place des Vosges, em Paris, quando ouvi uma voz cantando – uma voz extremamente “singular”. Assistira na noite anterior a um concerto na Igreja de la Madeleine que me deixara completamente insatisfeito. Fora uma apresentação de orquestra de câmara, com peças de Vivaldi, Mozart, etc. E esta última palavra me sintetizara a percepção do concerto: etcétera. Era mais um
literatura
primeiro SEMESTRE
2014
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etcétera. A apresentação fora correta, sem deslize,
fragmentos, se assumiam como tal, era isto que
até ela; e foi esse espírito de improvisação na lei-
mas sem mais do que isto. Fora uma apresentação
lhes dava a graça da aura benjaminiana.
tura de uma desrazão que tornou suas encenações
burocrática, daquelas em que se sai sem a centelha de alguma arte. Um zero à esquerda.
Tais pensamentos me levaram à consideração da contemporaneidade do artista, neste oceano
– e as torna ainda – apaixonantes e mesmo hilárias para quem as vê.
Pois ali nas arcadas da Place des Vosges es-
turbulento de informações aparentemente frag-
Qorpo-Santo era sem dúvida um homem
tava um homem, não maltrapilho, mas com vestes
mentárias, mas marcialmente organizadas pelo
dotado de certo instinto teatral – assim como
puídas e em desalinho, acompanhado por uma
império – não dos – mas sobre os sentidos, nesta
José de Anchieta, entre os índios e os empreen-
destas caixas de som toscas em que borbulham
ordem unida que apregoa continuamente: você
dimentos e as catástrofes da conquista, também
melodias de espírito kitsch, e que cantava em
não precisa sonhar, nós sonhamos por você.
fora dotado. Este instinto era a capacidade – que sabe-se lá de onde vem – de ver a vida como tea-
voz de falsete canções absurdamente lindas, com
Talvez fosse desse sentimento que Qorpo-
sentimento e dedicação total a elas. Para falar a
-Santo era de fato a vanguarda, com seu teatro a
verdade, não me lembro das canções; lembro-me
um tempo desengonçado, cômico e trágico, dra-
Aqueles saltimbancos de rua a que me refe-
da voz dele, do empenho, daquele cenário único,
mático e desdramático, como querem os absurdis-
ri no começo fora dada essa verdadeira graça de
em que a arcada sob a qual ele cantava criara uma
tas e os brechtianos. Ele e seu teatro eram também
encenar sua perda de medidas e de certezas com
acústica única, embora e talvez por isto mesmo,
o fragmento de um naufrágio, o naufrágio da ra-
a arte da transfiguração, ao contrário daqueles ar-
improvisada. Ficou-me a lembrança sobretudo do
zão, o naufrágio de uma razão. Não estou falando
tistas que ficavam confinados ao próprio decoro
contraste: de um lado, aquela encenação canônica
da pecha de loucura que sobre ele se abateu e se
repetido. Qorpo-Santo, a seu modo, desfrutou da
e burocrática da igreja na noite anterior; do outro,
abate, ora negativa, ora positivamente. Estou fa-
mesma graça.
a absoluta singularidade daquele momento único,
lando da razão de um teatro, que compunha um
O resto, convenhamos, é silêncio e mistério.
dotado de uma aura que talvez lembrasse o que
decoro, em que os códigos estavam todos preser-
Por que foi assim? Por que a ele foi dada essa me-
Walter Benjamin dizia: aquilo era irreprodutível,
vados em seus respectivos nichos. É certo que o ro-
dida da desmedida? Jamais saberemos.
efêmero, mas imorredouro.
mantismo de que Qorpo-Santo foi contemporâneo
Tempos depois, a vivência de momentos úni-
chacoalhou os códigos do teatro clássico, mas não
cos se repetiu. Uma vez, em Belgrado, diante de
o suficiente para se fazer o teatro que se reorga-
um tocador de copos; outra vez em Berlim, diante
nizava continuamente em seus decoros. Foi essa
de um tocador de garrafas. Mas as mais impressio-
radicalidade que Qorpo-Santo, com suas comédias
nantes aconteceram com um coro russo que ouvi
aparentemente toscas, trouxe para a dramaturgia
por duas vezes, uma em Bremen e outra também
e para a cena do Brasil. Algo de fato muito singular.
em Berlim. Vestidos a caráter, com suas fardas do
Houve assim uma coincidência qurioza –
antigo Exército (talvez o czarista, porque hoje o
como escreveria Qorpo-Santo. Não se tratava
Vermelho não pega mais bem), o coro era simples-
apenas de que seu teatro tivesse um caráter frag-
mente magnífico. De novo, efêmero e imorredouro
mentário como forma de composição. Na verdade,
ao mesmo tempo.
era como se existisse junto com as peças fragmen-
Foi quando me assaltou o sentimento que
tárias, que nos encantavam e ainda encantam pelo
nesses casos eu estivera exposto a fragmentos de
tratamento irreverente dado aos cânones e ao de-
uma ordem que se decompusera; eram artistas de
coro do século 19, um metafragmento. Este seria
algum coral desfeito, talvez pela intempérie do
o próprio Qorpo-Santo e seu teatro, personagens
naufrágio dos regimes comunistas e de suas or-
de si mesmos. Ali onde os seus contemporâneos
dens artísticas. Destas, restara aquele fragmento (e
viram a decomposição de um espírito, o de Qorpo-
talvez outros), à solta, meteoricamente, pelo tempo
-Santo, nós víamos a decomposição do espírito de
e pelo espaço.
um teatro, de um “espírito do tempo”, um zeitgeist,
De que ordens ou narrativas seriam os outros – o cantante da Place des Vosges e os batucadores
de onde emergira o nosso, afeito às decomposições e ao fragmentário.
de copos e garrafas – fragmentos perdidos? Nes-
Foi esse aspecto que tornou a dramaturgia de
ta altura, impossível saber. Mas eles eram de fato
Qorpo-Santo atraente para quem primeiro chegou
tro, e de inserir-se nessa encenação.
LEITURA
primeiro SEMESTRE
2014
61
O TRABALHO COM(O) FRACASSO Aline Dias Corpo Editorial
GODEL, ESCHER E BACH: UM ENTRELAÇAMENTO DE GÊNIOS BRILHANTES
a máquina de fazer espanhóis
Eu Vi o Mundo
valter hugo mãe
Cícero Dias
Cosac Naify
Cosac Naify
São tantas as anotações e tantos os
No livro Eu Vi o Mundo, Cícero
momentos de abandono durante a
Dias (1907 – 2003) nos leva
Douglas R. Hofstadter O trabalho com(o) fracasso é uma
Imesp
publicação da artista brasileira radicada em Coimbra Aline Dias.
Ganhador do prêmio Pulitzer,
leitura, para encaixar a respiração
a conhecer o seu mundo que
A um só tempo trabalho artístico
este livro fantástico compara
no lugar certo depois de uma cena
começa em Escada (PE) até Paris,
e pesquisa em arte, o livro
a música de Bach com os
estupenda, que ouso classificar
onde se finda. Suas memórias
explora a potência do que ainda
desenhos de Escher e o Teorema
este como um de meus romances
passam pela infância no engenho
não foi – daquilo que desarma
da Incompletude de Gödel,
prediletos. Em todos os tempos.
Jundiá; a sua amizade com
uma ação poética ou, mesmo,
demonstrando como todos eles
O angolano valter hugo mãe não é
Gilberto Freyre; a vida no Rio de
ordinária. Ele fala do fracasso como
funcionam simultaneamente em
um autor fácil – além de grafar tudo
Janeiro com Manuel Bandeira e
acontecimento. Condensado a partir
diversos níveis interconectados.
em minúsculas, tem uma pontuação
Villa-Lobos; a amizade com Pablo
de relatos de experiências da autora,
Traçam-se a seguir paralelos com
errante. Há períodos longuíssimos,
Picasso, Henri Matisse e com Di
depoimentos de outros artistas
a estrutura da mente humana
com diálogos e pensamentos
Cavalcanti. A edição traz fotos
(contemporâneos e históricos) e um
e com o desenvolvimento de
intercalados no mesmo formato de
de Cícero na sua infância e na
vocabulário poético, a publicação
inteligência artificial.
texto. O barbeiro antónio jorge da
vida adulta. O livro apresenta os
nos coloca frente à mágica
Se tudo isto soa muito complicado,
silva, 84 anos, perde a companheira de
croquis dos figurinos feitos por
contradição que é estar diante
não tema: cada capítulo é
toda uma vida, laura, logo no primeiro
Dias para o balé Maracatu de
daquilo que poderia ter sido, mas
precedido por um diálogo ficcional
capítulo. Não obstante, ainda vai parar
Chico Rei. Cícero Dias não foi um
não aconteceu, e que, num jogo
entre Aquiles e a Tartaruga, no qual
num asilo porque a filha elisa não
brasileiro distante. Logo no início
de lógica, passa a fazer sentido à
os conceitos a serem discutidos
tem como lhe dar atenção e porque o
do livro, ele diz: “Minha memória
medida que é narrado. Numa espécie
são apresentados de maneira
irmão, ricardo, está há anos rompido
não obedece a leis, mas à saudade
de poética do fracasso, Aline nos
relativamente simples. Não é
com a família. Essa descida ao inferno
que tenho dos doces de caju em
fala do que está prestes a afundar e
exatamente o que eu chamaria
é narrada de forma magistral.
calda...” Vale ler!
nos deixa ver nas entrelinhas o que
de leitura fácil, mas é altamente
P.S. – Ainda que obviamente
(não) constitui um trabalho de arte.
fascinante. Uma excelente
involuntário, a tal máquina de fazer
ginástica para o cérebro!
espanhóis do livro tem tudo a ver com a dúvida histórica de nós, gaúchos, termos escolhido pertencer a Portugal.
Mônica Hoff
Daniel Wolff
flávio ilha
Walter Karwatzki
Artista visual
Músico
jornalista
artista visual e curador
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA