CAMPESINATO NEGRO NO PERÍODO PÓS-ABOLIÇÃO: REPENSANDO CORONELISMO, ENXADA E VOTO Ana Maria Lugão Rios
Introdução A proposta de repensar aspectos da obra de Vitor Nunes Leal Coronelismo, enxada e voto pareceu-me oportuna para um seminário que pretende exatamente discutir as interpretações clássicas sobre Brasil e, ao mesmo tempo, destacar as novas abordagens. A obra de Leal é, sem dúvida, um clássico da história política da Primeira República que, quando de sua publicação, representou um avanço significativo frente aos estudos até então existentes. Minha proposta neste artigo é discutir alguns pressupostos desta obra da perspectiva de sua caracterização da população rural na Primeira República. Pretendo repensar este aspecto da obra à luz da discussão corrente sobre o período pós-abolição nas Américas e no Brasil, e avançar algumas sugestões sobre caminhos que me parecem profícuos para a pesquisa sobre campesinato negro e liberto no Brasil dos anos 1888-1930. Discussão historiográfica Desde os anos 1970, quando preocupações macroeconômicas constituíam o principal aspecto, analisado em termos comparativos, das sociedades pós-emancipação, muito se avançou nas discussões historiográficas sobre o tema. O acentuado declínio da produção açucareira da Jamaica após a abolição da escravidão, em contraste com continuidade sem quebras expressivas desta indústria em Barbados, chamava a atenção para as diferentes atitudes dos libertos quando da emancipação do trabalho no Caribe Britânico. As diferenças foram explicadas enfatizando a existência de uma fronteira agrária aberta na Jamaica, com espaços montanhosos e inúteis para os canaviais, contraposta a uma fronteira agrícola fechada, como em Barbados, por exemplo. A existência ou não de uma fronteira agrícola aberta seria o elemento determinante para o entendimento da diferença do comportamento dos libertos nas duas ilhas, o que seria
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muitas vezes generalizado para outras regiões. Assim, nas condições de fronteira aberta, os libertos tenderiam a buscar a autonomia, a se retirarem do trabalho nas plantations e a criarem um estilo de vida camponês, vivendo próximos aos limites mínimos de subsistência, com efeitos desastrosos para a economia destas regiões. Ao contrário, onde a fronteira se encontrasse fechada, os libertos teriam que se submeter às condições de trabalho propostas pelos empregadores, e os efeitos das mudanças na situação jurídica dos trabalhadores seriam minimizados (HIGMAN, 1983; MINTZ, 1979). Da mesma forma, alguns trabalhos brasileiros das décadas de 1970 e 1980 enfatizaram um relativo paralelismo com esta situação. Foram apontadas dificuldades de reter, na grande lavoura, a chamada “mão-de-obra livre nacional” nas áreas escravistas do Centro-Sul. Dificuldades que explicariam a dependência dessas áreas dos fluxos internacionais de trabalho imigrante e a desarticulação da lavoura escravista de alimentos da região, substituída pela formação de um campesinato negro. Tais dificuldades foram consideradas, por alguns autores, função da fronteira agrícola ainda aberta nestas áreas, em oposição ao fechamento dela nas antigas áreas açucareiras do nordeste (EISEMBERG 1977; MATTOS DE CASTRO, 1987). Porém, a partir de estudos mais recentes, é possível relativizar a noção de “fronteira agrária” e avançar na discussão sobre o comportamento e as opções buscadas por libertos no período pós-abolição. A “fronteira agrária” não é puramente um dado geográfico, e a experiência da mesma Jamaica, estudada mais de perto, mostrou que a utilização desta fronteira, para a formação das vilas camponesas, foi palco de encarniçada luta política, na qual o estado jogou toda sua força. Pesados impostos e taxas sobre os produtos camponeses e sobre a terra, leis coercitivas ao trabalho nas plantations, redefinições sobre direitos consuetudinários estabelecidos no período escravista, e até mesmo novos códigos de conduta e moralidade a serem aplicados aos libertos relativizaram bastante a proeminência da fronteira agrária aberta na Jamaica como fator determinante nos destinos daquela sociedade após a escravidão. Tais considerações apontam para a dimensão de luta política dos libertos, desenvolvida em várias frentes, desde demandas no terreno jurídico até revoltas abertas e violentas (HOLT, 1992; FONER, 1983; FRAGINALS et alii; 1985; MCGGLYN e DRESCHER, 1992; COOPER et alii, 2000). Também neste aspecto, a historiografia brasileira seguiu percurso semelhante, passando a enfatizar os embates entre as expectativas dos libertos, que se definiam na forma de um “projeto camponês” e as condições políticas de acesso à terra e de garantia da sobrevivência em diferentes situações regionais. Especialmente, as pesquisas têm mostrado que, paralelamente à formação de um campesinato negro, manteve-se a centralida-
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de do liberto, enquanto força de trabalho, nas fazendas das antigas áreas escravistas do sudeste, nas décadas que se seguiram imediatamente à escravidão (RIOS e MATTOS, 2005; MATTOS, 1995). O campo aberto para os estudos do período pós-abolição passou assim a incluir variáveis e preocupações múltiplas: o papel do estado, dos ex-senhores, as condições das atividades que empregavam os escravos às vésperas do fim da escravidão, a existência ou não de possibilidades alternativas de recrutamento de mão-de-obra (imigração) etc. Incluiu também a recontextualização de conceitos como cidadania e liberdade e seus possíveis significados para os diversos atores sociais (RIOS e MATTOS, 2004). A exemplo do que se verificou em outras sociedades que emergiram da escravidão, o rearranjo das formas de trabalho e de sociabilidades no período pós-emancipação tem necessariamente uma dimensão política que não pode ser desprezada. O Sudeste concentrou a maioria dos últimos escravos brasileiros. Os caminhos escolhidos por esta população foram especialmente relevantes na paisagem rural das províncias do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de São Paulo. A escravidão se esvaziou nas demais províncias, transferindo o potencialmente explosivo problema da escravidão para as áreas mais dinâmicas do sudeste, com algumas “ilhas” ainda fortemente escravistas espalhadas no nordeste e sul do país (LOVE e BARICKMAN, 1985). Assim, não foi exatamente uma surpresa encontrar ainda bastante presente a memória familiar da escravidão no meio rural, especialmente no Vale do Paraíba. Muitos netos de escravos puderam contar sobre os avós com quem conviveram. A partir destas memórias, sustentadas por fontes “tradicionais”, foi possível retraçar três tipos principais de experiência da última geração de escravos e seus filhos (RIOS e MATTOS, 2005). A primeira destas experiências responde pelo que a antropologia costumou denominar como “terras de preto”, comunidades negras formadas tanto por quilombos históricos quanto, especialmente no caso do sudeste, pela organização de grupos de libertos originários de uma mesma fazenda ou da mesma família, que formaram, e em muitos casos ainda formam, grupos articulados com forte noção de parentesco como organizador de direitos e solidariedades, uso coletivo da terra, isolamento e certa independência frente ao proprietário e, mesmo, frente aos demais habitantes que não pertençam ao círculo da comunidade (BAIOCCHI, 1983; GOMES e PEREIRA, 1988 e 1992; GUSMÃO, 1990; LEITE, 1996; VOGT e FRY, 1996). Uma segunda experiência de extrema estabilidade diz respeito a famílias que habitaram (e muitas ainda permanecem) na mesma região, muitas vezes na mesma casa, desde antes do fim da escravidão. Estas famílias mostraram características semelhantes e associadas: extensa parentela na região, papel de destaque na vida religiosa e cultu-
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ral (rezadores e rezadoras, organizadores de reizados e festas religiosas, de novenas etc...), empreendedores capazes de arregimentação de mão-de-obra para turmas de empreitada, memória de certa fartura e conforto material na infância, bem como acesso à escola rural. São famílias que se orgulham da posição de certa proeminência e boa reputação, que valorizam o respeito e a consideração que pais e avós desfrutaram frente à população em geral e aos fazendeiros em particular. Ao contrário das experiências anteriormente descritas, parte da população liberta no 13 de maio, seus filhos e, muitas vezes seus netos, durante a infância e a adolescência, viveram de modo extremamente instável, com deslocamentos constantes, uma vida itinerante. Queixas a respeito de injustiças, nos acordos de ocupação de terras e de contratos de trabalho, foram muito lembradas. Em comum, estas famílias expuseram memórias de privações, queixas de violências e arbitrariedades, precariedade de moradias, dificuldades de acesso à escola na infância e perda de contato com parentes. As mudanças constantes foram, em sua maioria, circunscritas ao meio rural: mudanças de fazendas ou para “situações” de ocupação informal de terras – das quais eram eventualmente expulsos - ou para o trabalho de exploração do eucalipto. Em comum, tanto nas situações de estabilidade como na de extrema mobilidade, está a recorrência à experiência dos avós e dos pais. As diferentes experiências do campesinato negro pós-abolição foram analisadas como fruto das condições de contrato de trabalho e da natureza destes contratos no pós-abolição (RIOS, 2001, capítulos 3, 4 e 5; RIOS e MATTOS, 2005, parte 2). As estratégias de capturar tanto o trabalho quanto a lealdade dos antigos escravos, e as escolhas que eles fizeram, passaram até recentemente ao largo da preocupação dos historiadores. O caso de São Paulo, onde a imigração subvencionada apareceu como solução para a demanda da lavoura cafeeira de ponta, autorizou uma certa desqualificação do problema. O pós-abolição seria irrelevante, pois teria produzido uma população livre, mas deformada, incapaz como “agente histórico” à medida que incapaz de consciência (política ou social) ou de reflexão transformadora da própria realidade e, especialmente, despreparada para o trabalho livre, na competição com imigrantes europeus. Diluiu-se sua especificidade, como agentes preparados para o exercício da própria idéia de liberdade, gestada ainda no cativeiro, na massa dos “roceiros” e “nacionais”. No entanto, à diversidade de experiências de famílias de libertos e seus descendentes, descrita acima, somam-se reflexões já estabelecidas na historiografia sobre as complexidades apresentadas pelo período pós-abolição. Um importante estudo sobre a oligarquia agrária entre 1888 e 1930 aponta como principal dilema das frações agrárias da classe dominante na Primeira
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República o de como manter sua hegemonia quando não mais detêm a propriedade da mão-de-obra. Segundo a autora: “Seria essa a questão a perpassar, sobretudo, a construção da sociedade política, defrontada com a possibilidade, ainda que remota, de uma ampliação da cidadania, sendo ela também estruturante dos próprios conflitos intra-classe dominante” (MENDONÇA 1990, cap. 5). As mudanças trazidas pela abolição e pelo processo de urbanização reuniriam as classes proprietárias em um fórum de debates e organização ao longo do período, conhecido como o movimento ruralista. Tal movimento buscava a preservação do papel da agricultura e dos grandes proprietários na economia e no cenário político nacional. Apesar de divergências internas, tal classe se uniria na percepção de uma “crise” que estaria incidindo sobre a agricultura do país e na defesa da importância estratégica da agricultura para a jovem república (MENDONÇA, 1990, cap. 5). Tal crise, nos moldes construídos pelo discurso ruralista, teve diagnósticos diferentes, assim como diferentes propostas de solução, conforme o setor produtivo e a região a que pertenciam os membros do movimento. Assim, nas regiões de agricultura de exportação já decadentes, notadamente o estado do Rio de Janeiro e a parte fluminense do Vale do Paraíba, a questão da mão-de-obra seria o aspecto central da crise, ao contrário de áreas como São Paulo, que recebeu até a Primeira Guerra Mundial, constantes e numerosas levas de imigrantes. A solução para a “crise” segundo os representantes destas regiões estaria em um misto de repressão e “educação”, que pudesse disciplinar a mão-de-obra nacional, única a que tinham acesso. A educação cumpriria determinados objetivos, principalmente o de ensinar a conduta apropriada aos “trabalhadores nacionais” (MENDONÇA, 1990). Com isto, os ruralistas aproximavam-se das formulações que fundamentaram as propostas de um período de “aprendizado” como meio de preparar os ex-escravos para o exercício do trabalho livre no Caribe britânico. Ainda segundo Sonia Mendonça, sob o rótulo de nacionais estariam incluídos tanto os libertos de 1888 como toda a massa de trabalhadores rurais existentes, ambiguamente designados como “lavradores”, em oposição ao termo “agricultores”, atribuído aos proprietários. Os “lavradores”, ou os “nacionais”, ou ainda a “massa rural”, seriam termos usados indiscriminadamente no discurso ruralista para designar uma gama variada de situações que abrangia na época de pequenos proprietários a rendeiros, posseiros, agregados, trabalhadores por empreitada, parceiros ou trabalhadores diaristas (jornaleiros). A ausência de uma maior precisão na discriminação das diversas situações vividas pelos trabalhadores rurais não significava, obviamente, um desconhecimento da complexidade da situação no campo. Ao
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contrário, como ressalta a autora, reduzir tal complexidade ao termo genérico de “população rural” cumpria objetivos precisos no discurso. Nas palavras da autora, tal imprecisão servia, “por um lado, à manipulação política dos termos, permitindo que se constituíssem, em nome dos “pequenos”, causas cujo benefício não os atingiriam; e, por outro, à idealização do mundo rural que se tomava como ponto de partida para a proposição de estratégias de ação...” (MENDONÇA, 1990, p. 295). Poderia acrescentar, ainda, que a imprecisão e o nivelamento das diversas situações existentes no meio rural, além da de “agricultores”, alçavam os ruralistas, e grandes proprietários em geral, à categoria de legítimos representantes, únicos capazes de resolver a “crise”, na qual, segundo sua visão, debatia-se a agricultura na Primeira República. Mais ainda, para a região do Vale do Paraíba fluminense e, acredito, para as “ilhas” ainda pesadamente escravistas às vésperas do 13 de maio, a questão crucial seria exercer o controle – ou capturar a lealdade – da população que “aparece” subitamente, e em massa, demandando assentamento e negociações contratuais. O discurso das elites proprietárias pós-abolição foi, portanto, cuidadosamente construído para criar a entidade monolítica “população rural”, desprezando a diversidade de situações no campo, e apresentando-a como desvalida (por vezes coberta de vícios), ignorante e necessitada da proteção desta mesma elite proprietária. Assim, a solução da “crise” agrária seria não só de interesse dos agricultores abastados, mas de toda uma população deles dependente. Rediscutindo Nunes Leal Como vimos, a formulação de uma categoria homogênea, rotulada de “população rural”, e caracterizada como desvalida e necessitada de educação e proteção (quando não de repressão), cumpria objetivos políticos específicos no discurso dos proprietários. Esta formulação adquiriu contornos bastante convincentes, até mesmo porque somava-se a uma apreensão generalizada relativa aos rumos da lavoura pós-escravista e às incertezas quanto ao comportamento dos libertos e suas exigências. Não é, portanto, uma surpresa que um dos clássicos da historiografia política da Primeira República, o livro de Victor Nunes Leal, publicado pela primeira vez em 1949, repita esta mesma imprecisão quando analisa o coronelismo, o sistema clientelista típico da política do meio rural. Em que pese a forma bastante arguta com que constrói a arquitetura de poder e reciprocidade do nível local (municipal) às esferas superiores de poder na Primeira República, a complexidade da formação do poder local escapa ao autor. E escapa exatamente porque ele não consegue perceber a diferenciação na população rural. A imprecisão e o reducionismo neste autor tem, porém, características peculia-
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res a um trabalho acadêmico. Para Leal, o preciso diagnóstico da situação no campo seria fundamental para a compreensão do fenômeno do coronelismo. Em suas palavras: Por isso mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil (LEAL, 1978, p. 40).
A estrutura agrária a que Leal se refere, base de sustentação do coronelismo, teria como fundamento a concentração da propriedade fundiária. Tal concentração daria origem a uma descrição dicotômica da sociedade rural: os grandes proprietários e seus dependentes. O autor reproduz estudos baseados no recenseamento de 1940 para justificar sua argumentação, reduzindo as categorias apresentadas no censo a um denominador comum: “[...] em termos de generalização, pouca diferença existe entre a miséria do proletário rural e a do parceiro e do pequeno proprietário. Não há, pois, que estranhar os votos de cabresto” (LEAL, 1978, pg. 56, itálico no original). O salto entre o diagnóstico indiferenciado da miséria das diversas categorias e a inevitabilidade do “voto de cabresto” pode parecer um tanto forçado, mas é parte integrante do raciocínio do autor. Para Leal, o controle eleitoral exercido pelos coronéis é algo que emana naturalmente de sua posição de proprietário, sendo seus “dependentes” tão irrelevantes como sujeitos que sua subordinação é algo esperado. O nivelamento das categorias a uma miséria unificadora, aliado a uma determinada visão dos “miseráveis” e a sua psicologia particular, esvaziam do coronelismo uma dimensão complexa, violenta e coercitiva. Assim, em oposição à cidade, com suas diversas categorias profissionais e classes, no campo a situação seria outra: Ali o binômio ainda é geralmente representado pelo senhor da terra e seus dependentes. Completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais nem revistas, nas quais se limita a ver as figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de benfeitor. E é dele, na verdade, que recebe os favores que sua obscura existência conhece. Em sua situação, seria ilusório pretender que este novo pária tivesse consciência do seu direito a uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organização econômica rural (LEAL, 1978, p. 44).
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A igualdade na miséria, a ignorância do trabalhador rural e sua “obscura existência”, na qual os poucos benefícios são recebidos do coronel, são outras tantas razões que, aliadas à propriedade da terra, tornariam “natural” a relação de dependência para com os proprietários. A lealdade, a “luta com o coronel e pelo coronel”, seria uma outra conseqüência “natural”. A grande propriedade é um dos atributos, e jamais conseqüência, da proeminência política do coronel no texto de Leal: Esta ascendência resulta muito naturalmente de sua qualidade de proprietário rural. A massa humana que tira a subsistência de suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono. Diante dela o “coronel” é rico ... é, pois, para o próprio “coronel” que o roceiro apela em momentos de apertura [...] (Ibidem, p. 43).
A “massa humana” depende do coronel e a ele apela. Uma visão um tanto idílica faz com que a propriedade “natural” naturalmente crie uma massa de dependentes, ignorantes porém fiéis. O coronelismo, em Leal, passa a ser explicado pelos seus efeitos, como um sistema de reciprocidade entre o poder local e o estadual. E assim nos aparece este aspecto importantíssimo do “coronelismo”, que é o sistema de reciprocidade: de um lado, os chefes municipais e os “coronéis”, que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial [...] (Ibidem, p. 63-64).
“Massa humana”, “novos párias” “ignorantes”, “miseráveis”,“obscuros” que, por fim, podem ser conduzidos como “tropa de burros”. Não é à toa que o autor não possa percebê-los como sujeitos, e que sua lealdade seja tão facilmente presumida. O leitor talvez tenha estranhado o excessivo emprego do adjetivo natural nestes parágrafos. Isto foi proposital já que, na arquitetura de idéias de Leal, a condição indiscriminada de precariedade e ignorância da população rural não proprietária é, ao mesmo tempo, a base do edifício de construção do poder dos coronéis e algo que empresta a este mesmo poder uma legitimidade inescapável e visceral. É como se, dada esta característica insofismável da população rural, as coisas realmente não pudessem ter sido de outra maneira, especialmente nas áreas em que o suposto legado da escravidão – somado às percepções raciais da época –, apenas confirmariam a desqualificação destes indivíduos. Assim, a reciprocidade nas negociações dos atores políticos se daria apenas entre os coronéis e as instâncias formais de poder. Não só a reciprocidade como mais ainda a intencionalidade, a racionalidade, a capacidade de formulação de projetos e estratégias. A liderança do coronel, apresentada como
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um dado da natureza, o transforma no único interlocutor político a nível local, exatamente porque a massa que controla é homogeneamente incapaz de articular demandas próprias, particulares e diferenciadas que apresentem situações passíveis de negociações políticas a nível local. Neste sentido, Leal reifica o discurso ruralista conforme apresentado por Mendonça e vai ainda além. Ele de fato transforma a liderança que os grandes proprietários lutaram para construir sobre a massa de libertos e trabalhadores rurais em um dado da natureza. No entanto, o comportamento desta “massa humana” durante a Primeira República, apesar do que argumenta Leal, está longe de ser claramente percebido. As pesquisas sobre o período pós-abolição estão abrindo caminhos promissores para a apreensão dos variados aspectos da inserção dos libertos e dos rearranjos nos campos do trabalho, das sociabilidades, da cultura e das relações políticas locais. As expectativas dos libertos, os significados da liberdade e as negociações e conflitos deste período afastam definitivamente a imagem de uma “tropa de burros” docilmente orientada e homogênea. Discussão atual e linhas de investigação Ao contrário de Leal, Mattos identifica, no imediato pósabolição, diferenças significativas e hierárquicas entre os segmentos não proprietários da população rural. Nascidos livres, libertos, negros, pardos e brancos eram categorias a diferenciar, na prática, estes segmentos. O libertos teriam obtido sucesso exatamente em afastar de si, ainda na década de 1890, o estigma da escravidão recente (MATTOS, 1995, capítulos XV e XVI). Sobre ela, porém, pesaria nas décadas seguintes, como mostra Mendonça, a fama de serem o “núcleo potencial da desordem”, uma “classe sem hábitos”, perigosa, que necessitaria de constante vigilância, controle e educação. O clima alarmista das falas seria agravado, na Primeira República, pelo temor dos movimentos messiânicos, como os de Canudos (1893-1897) e Contestado (1908-1916), violentamente reprimidos (MENDONÇA, 1990, p. 322-323). Em especial no estado do Rio de Janeiro e norte do Vale do Paraíba, a abolição abriria um período conturbado de negociações sobre os novos contratos que, inicialmente, trariam aos libertos uma vantagem relativa. A necessidade de atrair e fixar mão-de-obra nas áreas de lavoura de exportação em crise permitiria a muitos libertos a fixação como parceiros em termos que seriam considerados vantajosos se comparados aos de São Paulo. Em alguns municípios, as culturas típicas de roça passariam a dominar a cena. Os fazendeiros destas regiões se ressentiram de negociações que lhes pareceram desvantajosas e da perda parcial do controle direto sobre seus trabalhadores e do
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ritmo de produção (MATTOS, 1995, capítulos XVII e XVIII). Portanto, a análise mais aprofundada das diferentes formas de contratos entre trabalhadores e proprietários nas décadas seguintes à abolição, deve partir da perspectiva de que tais acordos eram arranjos complexos e multifacetados, que envolviam muito mais do que simples prestações de serviços, além de trabalhadores que também não eram homogêneos. Viviam diferentes situações familiares, muitos emergiram da escravidão com atributos diversos e habilidades específicas e construíram diferentes estratégias para negociar acordos. Os contratos, mas também a mobilidade (migração), as famílias e as “vontades políticas” dos libertos, são eixos que até aqui parecem profícuos como norteadores de investigações sobre o tema. Assim, podemos nos deter, ainda que apenas superficialmente, sobre estes temas, que têm norteado minhas pesquisas atuais e, espero, possam interessar a outros pesquisadores. Contratos Uma das vertentes mais interessantes da discussão do pós-abolição nas Américas aponta para o problema da “transição” do trabalho escravo para o livre e o forte conteúdo evolucionista que o termo “transição” atribui a esta mudança. O trabalho livre em substituição ao escravo teve como pressupostos os dogmas liberais que o qualificavam como uma forma superior de trabalho, com caráter transformador e edificante de novas formas não apenas de relações de trabalho, mas também de comportamentos e atitudes que precisavam ser ensinados aos trabalhadores. A valorização da disciplina, da moralidade, da vida regrada, da poupança, da temperança, da organização, no âmbito familiar, de novos comportamentos de gênero e exercício da paternidade e maternidade, da intervenção da educação pública na criação dos filhos, enfim, um sem-número de aspectos da vida cotidiana deveria ser reestruturado para que os trabalhadores libertos pudessem apreender em sua plenitude o mundo do trabalho livre. Os fundamentos teóricos da necessidade de um período de aprendizado no Caribe inglês, e em outras sociedades escravistas, baseiam-se neste pressuposto: o de que o trabalho livre, ou a liberdade, é algo que precisa ser aprendido e pressupõe a incorporação de valores pré-determinados(HOLT, 1992; MAMIGONIAN, 2005; LIMA, 2005). O problema é que, aqui como alhures, os valores que se pretenderam passar não necessariamente estavam de acordo com a idéia de liberdade que os egressos do cativeiro procuraram exercer. A discussão em torno dos contratos de trabalho no meio rural mostrou-se uma forma privilegiada de perceber as maneiras como os libertos procuraram exercer a própria idéia de liberdade.
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Assim, foi recorrente encontrar determinadas características dos contratos do período como arranjos que abrangiam, de parte a parte, expectativas e exigências que foram muito além da simples prestação de serviços. Da parte da primeira geração de libertos e seus filhos, houve um forte desejo de autonomia e posse de uma “roça”, um espaço doméstico de produção, maior controle de ritmo e tempo de trabalho, tentativas de restringir o trabalho das mulheres ao círculo doméstico, além de um forte ressentimento contra a intrusão dos contratantes na vida familiar e privada. Estas e outras características presentes no Sudeste encontram forte paralelo nas atitudes dos libertos em outras regiões das Américas. Um dado, porém, chamou-me a atenção como sendo, a princípio, singular: a forte demanda, por parte de alguns contratantes, pela lealdade dos trabalhadores, ou, pelo menos, pela demonstração pública de lealdade. A não aceitação, por parte do contratado, dos códigos públicos de subserviência e lealdade deu origem a formas mais ou menos violentas de ruptura dos contratos (RIOS, 2001 cap. 5; RIOS e MATTOS, 2005, cap. 3). Contratos são tomados aqui, na acepção liberal do termo, de arranjos entre agentes econômicos livres. Acordos verbais e informais foram, na maioria das vezes, estabelecidos entre agentes que se preocupavam muito com outros aspectos envolvidos na relação e que foram além da prestação de serviços em troca de remuneração. Os contratos obedeceram em parte injunções de mercado (uma demanda decrescente por mão-de-obra em alguns lugares, devido ao declínio do café e aumento da criação extensiva de gado), mas podem ter, devido às dificuldades e tensões inerentes ao período, contribuído para redirecionar as opções de investimento que procuraram exatamente diminuir a necessidade de mão-de-obra. Isto como parte de um processo que teve início ainda antes do fim da escravidão (FRAGOSO e RIOS, 1995). Assim, ao investigar rompimentos de contratos, a parte não econômica até aqui se mostrou mais importante do que a de prestação do serviço em si. A lealdade, a deferência e os signos públicos de subserviência podem ter um papel mais importante do que os arranjos econômicos que motivaram os contratos. Para uma elite ciosa destas demonstrações, que na prática confirmam uma dada simbologia de poder, estes signos se revestiriam da máxima importância. Por outro lado, representavam demandas inaceitáveis para quem os considerasse uma continuação da situação de escravidão. Assim, em histórias de famílias egressas da escravidão, foi recorrente o conflito que girava em torno da negação da vassalagem exigida por estes signos, que estava além das exigências de relações puramente de trabalho. Por outro lado, alguns destes acordos informais para parte das famílias libertas foram bastante favoráveis, estáveis e em condi-
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ções bem mais aceitáveis. Famílias que, como descrito anteriormente, conseguiram bastante estabilidade, reuniram também condições favoráveis de inserção ao deixarem o cativeiro. A associação a outras características marcantes como uma extensa parentela na região e influência na vida cultural/religiosa frente a outros libertos e livres foi recorrente (RIOS E MATTOS, 2005 cap. 3). Ao que parece, uma camada da população liberta possuía atributos de extrema estabilidade e certa independência e influência no meio rural da Primeira República. Capazes, portanto, de certa influência entre seus pares e, porque não, no jogo político local. Assim, a investigação das relações de trabalho, nas décadas que seguiram ao fim da escravidão, pode mostrar-se valiosa para uma rediscussão dos fundamentos do poder local na Primeira República. Uma rediscussão que leve em conta não apenas o aparelhamento eleitoral descrito por Nunes Leal, mas as múltiplas tensões que perpassaram o rearranjo das relações cotidianas, incluindo as políticas e os custos da captura da lealdade dos ex-escravos. Enfim, uma discussão que parta do princípio de que o poder das lideranças locais, em um contexto conturbado de rearranjo das formas de trabalho, não é absolutamente um dado “natural”. Migração Migração e tensão nos contratos locais parecem processos paralelos, ou seja, migração, ou deslocamentos, no meio rural antes de migração rural urbana. Rompimentos de contratos acionaram mudanças e, muitas vezes, criaram situações de extrema instabilidade, como mencionei acima. Esta extrema instabilidade talvez seja o mecanismo mais perverso de pauperização e exclusão de parte da população negra neste período. Do que pesquisei até aqui, a instabilidade extrema estava na raiz da precariedade das moradias, da dificuldade de acesso à escola, da irregularidade nos padrões de alimentação e da diminuição do tamanho do círculo familiar. Os relatos de maiores privações e perda de contacto com parentes estavam neste segmento de filhos e netos de libertos. De pessoas, por exemplo, que “sumiram”: tios e tias dos quais se desconhece o paradeiro há décadas e até mesmo irmãos e irmãs que os entrevistados já não sabiam se estavam vivos ou mortos. Esta movimentação foi qualitativamente diferente de outros padrões de migração que, ao que parece, se acentuaram a partir dos anos 1930. Esta década inicia, ainda que timidamente, um movimento que passou a assumir um fluxo rural-urbano, em princípio para as pequenas cidades mais próximas, que se mostrou até aqui como proveniente de famílias mais estruturadas e estáveis que tinham membros que se distanciavam, mas que
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não perdiam o contacto com a família original. Muitas vezes irmãos ou primos iam juntos e, após estabelecidos, traziam outros parentes (RIOS e MATTOS, 2005, cap. 2). Algo a ser investigado é como ou de que maneiras a estabilidade, ou instabilidade, da família original influenciou na forma, no destino final e no sucesso destes deslocamentos. Por outro lado, dados demográficos, como o número de filhos, idade e requisitos necessários para o casamento, podem ser elementos importantes para a definição dos contratos e para a estabilidade ou não das famílias. A possibilidade de fixação nas proximidades para a geração de filhos e netos de libertos pode ter tido influência dos padrões de fecundidade. Até aqui encontrei idades de casamentos (em sua maioria casamentos formais) um tanto tardias, para esta população, nas famílias de netos de escravos já investigadas. A idade mais recorrente foi em torno dos vinte anos. Ainda é cedo para estabelecer um padrão, mas a se confirmar esta idade ela é tardia em relação ao resto da população e aos padrões do período escravista (FLORENTINO e GÓES, 1997). Para avançar nesta discussão, seria desejável que as investigações estabeleçam, na medida do possível, relações entre padrões de fecundidade e idade de casamentos, com os contratos e os padrões de mobilidade espacial. A partir destas reflexões, já avançamos no terceiro eixo norteador da pesquisa: a família. Família A família, pelo menos até agora, apareceu como a instituição mais recorrente e importante no mundo pós-cativeiro, o que está de acordo com o que foi descrito em outras sociedades escravistas para a população liberta (FONER, 1990). Este não é um dado inesperado ou surpreendente se considerarmos a importância da família escrava na vida e na socialização destes, como apontam os inúmeros trabalhos sobre o tema na região. O Sudeste, especialmente o Vale do Paraíba, alvo de muitos estudos, indica que, às vésperas da abolição, a experiência familiar foi a regra, e não a exceção, na vida dos cativos. A família aqui tratada considerou os arranjos domésticos que foram além da estrutura nuclear. A memória dos depoentes entrevistados, bem como a documentação de época, mostra a presença massiva dos avós, especialmente os maternos, a avó materna em particular (RIOS, 1990; RIOS e MATTOS, 2004). Ela apresentou-se com uma lógica bastante vinculada à posse de uma “roça” ou espaço de produção doméstica. Este espaço integrado roça-família, e suas possibilidades e perspectivas de manutenção, formou a parte mais valorizada dos contratos pelos trabalhadores. Ali se articularam tanto papéis de gênero na divisão do trabalho quanto a idade de trabalho para as crianças, maior
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ou menor grau de controle de ritmos e tempo de trabalho e formação de uma identidade camponesa, norteadora de projetos e de realização das expectativas de liberdade. Ao responder a expectativas familiares de exercício da liberdade, em oposição ao cativeiro, esta identidade camponesa seria, então, uma configuração específica do campesinato liberto das áreas ainda fortemente escravistas nos anos 1880. Nas “terras de preto”, devido ao seu relativo isolamento, esta característica foi, e é, ainda mais forte. As possibilidades da roça e da prestação de serviços conjugadas foi essencial para a definição do tamanho do núcleo familiar das residências, mas não só. Além da experiência de mobilidade ou estabilidade das famílias, o acesso a contratos estáveis e possibilidades de empreendimentos além da roça – como a formação de turmas de camaradas ou de empreitadas – esteve vinculada à extensão da rede de parentesco nas proximidades. Até aqui os resultados obtidos em minhas investigações retratam a trajetória de famílias descendentes de libertos que ainda moravam em municípios do vale do Paraíba e arredores. Trabalhei em Bananal (SP), Juiz de Fora e Bias Fortes (MG), Valença e Paraíba do Sul (RJ). Os entrevistados residiam nestes municípios, que são considerados na pesquisa como destino final daquelas famílias. No entanto, eles mencionaram muitos parentes que, em diferentes momentos, migraram para outros destinos finais. Um dos lugares mais recorrentemente mencionados foi a região de Nova Iguaçu, atualmente um subúrbio bastante urbanizado do Rio de Janeiro. Vontades políticas As relações familiares foram ainda indicadores de preocupações bastante específicas de boa parte da população egressa da escravidão. Os libertos se mostraram muito motivados a formalizar suas relações familiares, buscando com freqüência o registro civil de nascimento não só para registrar as crianças nascidas após a liberdade como também para informar sobre as nascidas ainda antes da instituição do registro civil, durante a escravidão. Registravam ainda, por via deste dispositivo legal, as promessas de casamento feitas ao constituir a relação de coabitação que iniciou as famílias. Foi grande também, nos anos de 1888 e 1889, a procura pelo casamento formal por parte dos libertos (RIOS e MATTOS, 2004). São indícios fortes de que se tratava de uma população longe da anomia e da ignorância descritas por Leal. Foi a partir desta constatação que um outro eixo de investigação parece constituir um elemento promissor. O subtítulo “vontades políticas” abarca as manifestações de busca de um tipo mais sofisticado de inclusão de parte da população liberta.
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Assim, considero não apenas a formalização legal das relações familiares preexistentes, mas também a busca da justiça em tribunais e o esforço, por parte de algumas famílias, de conseguirem alfabetização dos filhos. A realização de compras de propriedade, ainda que pequenas, por parte de famílias libertas também adquirem, neste contexto, uma conotação política, já que demonstram uma clara vontade de proteção legal e de independência maior frente aos proprietários do que o corriqueiro arranjo de ocupações informais e submissão a redes clientelares. Este subitem envolve ainda um aspecto bastante interessante, que aponta para uma leitura singular da política institucional por parte dos descendentes de escravos. Eric Foner (1990) apontou um fenômeno semelhante para o Sul dos Estados Unidos. Lá, o período conhecido como reconstrução (1863-1877), em que a ocupação do Sul pelo exército da união, que em alguma medida garantiu o exercício de direitos de cidadania aos libertos, foi apresentado no discurso político oficial como um período extremamente negativo, de corrupção e anarquia generalizados. Ainda assim, a fala de libertos e seus descendentes o apresentavam, em oposição à versão oficial, como um período de maior participação, maior respeito e menos violência. No Brasil do Sudeste, muitas falas de descendentes de escravos apontam características peculiares à era Vargas, que responderiam a uma agenda política caudatária da experiência da escravidão que escapava até mesmo aos mestres da propaganda getulista. Para alguns filhos e netos de escravos, quem realmente libertou seus antepassados foi Getúlio, que teria vindo responder a uma série de demandas ainda pendentes dos tempos da escravidão (RIOS 2001, cap. 5; GOMES e MATTOS 2000). Dentre as demandas, apareceu com destaque uma queixa recorrente contra a expulsão de posseiros e parceiros que reagiam queimando suas próprias roças, em um movimento ainda pouco estudado. Aparecem ainda como um caminho bastante produtivo o estudo das associações e as manifestações culturais de libertos, sua organização, difusão e, especialmente, as possibilidades de inclusão por elas geradas. Parte do campesinato egresso da escravidão foi bastante ativa na organização de festas populares, exercendo um significativo papel de aglutinador tanto de libertos como da população rural. Participaram como lideranças, e muitas vezes ainda o fazem, de momentos muito significativos da vida no campo – como os Arturos, por exemplo (GOMES e PEREIRA, 1988). Eram, portanto, interlocutores políticos em potencial nada desprezíveis. A pesquisa em andamento de Martha Abreu vem apontando para a importância que ainda hoje as festas e ritmos populares de origem africana possuem como aglutinadores e organizadores de famílias de descendentes de escravos (ABREU, 2006/2007).
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Conclusão As preocupações com o período pós-abolição vem se constituindo como um campo importante de estudos da nossa historiografia atual. Isto é em parte caudatário de uma revisão anterior, já bastante discutida, da própria historiografia da escravidão. Esta destacou temas relevantes para aprofundar nosso conhecimento do período escravista. A partir dos anos 1980, passamos a discutir em profundidade a família escrava, as negociações, a vida cultural e comunitária, a mulher e a infância, as estratégias para obtenção de alforria e de enriquecimento, a busca por justiça, os significados e expectativas de liberdade. O escravo que emergiu desta revisão, bastante mais articulado, trouxe um ganho significativo para nos aproximar das tensões inerentes à escravidão em nosso país. Este personagem forçou nossas indagações sobre como teria enfrentado as décadas que se seguiram ao 13 de maio. Tanto nossa revisão historiográfica da escravidão quanto a preocupação com o período pós-emancipação dialogaram, e dialogam, em maior ou menor medida, com as preocupações de historiadores de outros países. Isto reafirma o caráter comparativo que estes estudos assumiram, pelo menos desde 1947, quando Frank Tannembaum publicou Slave and citizen, a mais famosa tese comparativa sobre as diferenças dos sistemas escravistas e seu legado. Um outro elemento bastante evidente nas últimas décadas chama também a atenção dos pesquisadores para a história de africanos e afrodescendentes. A demanda articulada dos movimentos políticos negros vem conseguindo ampliar o interesse no estudo da história África e das populações surgidas da diáspora. A influência destes movimentos nas preocupações acadêmicas não é nova. Já Florestan Fernandes registra um forte envolvimento político com estes movimentos em sua obra. Também não é um fenômeno brasileiro unicamente. As demandas políticas de movimentos negros nas Américas e na Europa também contribuem para politizar fortemente a pauta dos acadêmicos. Os estudos sobre o período pós-emancipação se colocam também bastante expostos a questionamentos e injunções da política atual. Também aí, no sentido de que é um dos campos de estudo mais permeáveis à influência das posições políticas atuais, a questão não é recente. Tannembaum, ao escrever no imediato pós-guerra, fez de seu pequeno livro uma poderosa denúncia dos males do racismo em seu país e das terríveis conseqüências desta prática que, no caso da Segunda Guerra, o mundo de então começava a se dar conta. Creio ser saudável que reconheçamos os profundos vínculos que unem os movimentos políticos aos nossos interesses e estudos. Vínculos que costumam ser bastante produtivos, de parte a parte, quando cada lado mantém independência e respeito mútuos.
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Ana Maria Lugão Rios (1960) nasceu na cidade de Natal (RN). É graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre na mesma área pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em História pela University of Minnesota, atualmente é professora adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Possui experiência na área de História, com ênfase em História da América, atuando principalmente com os seguintes temas: escravidão, abolição, história oral, memória e pós-abolição. Algumas publicações da autora RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania na pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RIOS, Ana Maria Lugão; MATTOS, Hebe. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, p. 179-198, 2004. RIOS, Ana Maria Lugão. The politics of kinship. Compadrio Among Slaves. In: Nineteenth Century Brazil. The History of the Family, v. 5, p. 297-298, 2000.