SUBJETIVIDADE MODERNA: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA O CRISTIANISMO
Franklin Leopoldo e Silva
I Dada a amplitude do tema, é conveniente que explicitemos o modo como será abordado, de acordo com os limites que hão de se impor nas considerações que se seguem. A relação entre subjetividade e modernidade é vista por vezes de maneira tão intrínseca que nos leva por vezes a pensar que os termos só poderiam ser utilizados em regime de reciprocidade. Ou seja, a subjetividade seria o eixo constituinte do pensamento moderno porque a própria subjetividade somente se teria constituído na modernidade e, ao constituir-se, teria formado a própria época. Por outro lado, a modernidade, pensada a partir do paradigma subjetivo, dele retiraria todo seu sentido, de modo que não se poderia entender, separadamente, nem a modernidade nem a subjetividade. Essa visão parece óbvia porque ela indubitavelmente faz justiça à originalidade do caráter da modernidade e à sua diferença marcante em relação à tradição que a antecede. Por outro lado, talvez coubesse perguntar se ela seria, de fato, completa, isto é, se as linhas aí traçadas permitem que se veja, efetivamente, a paisagem. Ora, conhecer a modernidade pelo seu atributo principal, por aquilo que ela possui de mais próprio e característico, pode não significar, ainda, conhecê-la completamente. Como toda época histórica, a modernidade deve ser pensada nos termos de uma herança: legado a ser questionado até o limite da negação, o que constitui a modernidade é aquilo que ela deve superar, que acredita ter superado, mas que de qualquer modo conserva como referencial que a determina na produção de sua diferença. A modernidade é herança porque recebe aquilo que terá de negar para se afirmar, para constituir seus referenciais positivos e seus próprios princípios. Se esse aspecto de herança não for considerado, é a diferença mesma da modernidade que fica comprometida, na medida em que se fez a partir do modo como tal herança foi assimilada, refletida, infletida e por vezes consumida quase até o esgotamento. O modo como a modernidade teve de se haver com sua herança é relevante para
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que se compreenda o que ela, por sua vez, deixará como legado ao seu próprio futuro. Dentro da modernidade, as possibilidades e os limites do cristianismo não podem ser tratadas separadamente, como se fosse possível distinguir entre condições de possibilidade e limites de realização. No que for possível indicar, tentaremos mostrar que os limites com que se depara uma subjetividade cristã, ou historicamente moldada pelo cristianismo, são também as condições de possibilidade de seu exercício concreto. Nesse sentido, subjetividade, modernidade e cristianismo teriam que ser articulados enquanto representações do devir histórico de modo que se pudesse avaliar como se constituem numa relação que não pode ser considerada apenas linear, mas cujos termos rebatem uns sobre os outros de modo complexo. Ao mesmo tempo em que se configuram assim os rumos do percurso, mostram-se também as dificuldades, que procuraremos contornar por via de uma delimitação, tão necessária como princípio quanto arbitrária em sua realização no que se refere a temas e autores.
II Como a modernidade é uma herança, entender como nela se constitui a subjetividade, o seu sentido e o seu alcance, supõe compreender algo daquilo que herdou na configuração da subjetividade. A linhagem escolhida é aquela habitualmente abordada nos estudos acerca dos antecedentes desse paradigma moderno: o “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates e suas transformações na filosofia grega e no processo de constituição da interioridade cristã na Idade Média.1 Naturalmente, cumpriremos essa etapa considerando apenas o que nos interessa no exame das relações entre subjetividade e cristianismo na modernidade. Vamos nos valer primeiramente dos significados do preceito délfico no âmbito da filosofia grega clássica e helenística, para cuja multiplicidade Courcelle (COURCELLE, 1974) chama a atenção: 1) A idéia de que se deve simplesmente abandonar o estudo da “física” ou na “natureza” porque, como teria dito Sócrates, o que acontece acima de nós nada tem a ver conosco. 2) A idéia de que conhecer-se a si mesmo é inteirar-se de sua própria ignorância e se despojar da presunção do saber originado na opinião. Nesse sentido é que Sócrates é designado pelo oráculo como “o mais sábio”: ele conhece sua ignorância. 3) A idéia de que o homem é o único objeto de saber aponta para a dificuldade do conhecimento de si, contrariando o senso 1 As referências utilizadas aqui serão: COURCELLE, P. (1974); CHENU, M-D. (2006); GILSON, E. (2006).
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comum que vê esse conhecimento como mais fácil do que o das coisas exteriores. 4) Na era helenística, e no que se refere aos sistemas que se seguiram à reação dos socráticos menores a Platão e, principalmente, Aristóteles, a idéia de que o conhecimento é o mais relevante e o objetivo principal não exclui o conhecimento da natureza, antes o requer na medida em que o homem é parte da natureza e mantém com ela relações que precisam ser consideradas. 5) O conhecimento do homem pelo homem, ainda que fundamental, não pode ser obtido sem o conhecimento da divindade, uma vez que a natureza humana depende em vários aspectos da ordenação divina do mundo e dos destinos humanos. Essa seqüência de significados pode ser separada em duas partes: 1) os socráticos menores desprezam qualquer conhecimento que não seja diretamente relativo ao homem; 2) os sistemas helenísticos (epicurismo, estoicismo) admitem o conhecimento da natureza, mas somente porque e na medida em que o homem é parte da natureza. De modo que se pode dizer, de forma muito geral, que o período histórico que vai de Sócrates ao estoicismo romano tem como uma de suas características principais o imperativo do conhecimento de si, afirmado de diferentes maneiras, mas sempre presente. Cícero insistirá no conhecimento de si como fundamento do saber filosófico remetendo à alma racional de Platão e ao papel que ela desempenha na organização da vida individual e coletiva. O conhecimento de si seria a marca da autêntica filosofia – idéia presente no próprio núcleo da formação de Santo Agostinho. O último aspecto ressaltado por Courcelle na enumeração dos significados do preceito socrático (a relação entre o conhecimento de si e o conhecimento de Deus) está presente, em Fílon, a partir do vínculo estabelecido entre criatura e criador. Pelo viés alegórico da interpretação da Bíblia, Fílon é levado a acentuar o conteúdo moral e metafísico do texto – e nisso encontra ocasiões para desenvolver a temática do conhecimento de si a partir da matriz socrática e, de alguma forma, recuperando a significação religiosa que o preceito délfico provavelmente possuía para Sócrates, a julgar pelas indicações da Apologia. Naturalmente, Fílon entende que o conhecimento que a criatura pode ter acerca de si mesma só se pode constituir diante de Deus, posição que define ética e ontologicamente a criatura, e que dá a medida da condição humana, idéia que percorrerá a história do conhecimento de si até a modernidade e a contemporaneidade – como mostram Pascal e Kierkegaard. Como que para acentuar essa filiação, é notável que em Fílon a dificuldade do conhecimento de si apareça alegoricamente no fato de que Adão nomeia todos os animais e plantas, mas não nomeia a si mesmo. Quanto aos gnósticos, é interessante que o mito maniqueísta do nascimento do mundo seja, ao mesmo tempo, a nar-
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rativa da queda da alma, e mais notável ainda que se diga que a alma, apegada ao sensível, sinta-se satisfeita, embora a sua condição equivalha ao abandono de si mesma: uma espécie de exílio que não é sentido como tal porque nele a alma se compraz. Mas Deus não abandona a alma que abandonou a si mesma: a percepção e o intelecto lhe foram dados para que ela almeje algo mais, para que readquira a “consciência de si” e venha a desejar o mundo espiritual, por via de uma avaliação ponderada do estado de exílio inerente à condição sensível. Conhecer-se é conhecer-se em exílio e desejar voltar à terra natal. A vertente cristã do gnosticismo insistirá em que o caminho para o conhecimento de Deus é o conhecimento de si, que é, ele próprio, de origem divina. Observe-se a adaptação do preceito socrático ao ideário cristão: o conhecimento da alma exige despojamento, ascese, para que cada um abandone o erro e o pecado que traz em si. E também já podemos ver algo como uma antecipação da consciência, na medida em que se conhecer é tomar consciência da condição pecadora. O motivo pascaliano da dualidade grandeza/miséria já se desenha de alguma maneira, na medida em que a consciência do pecado (miséria) é também a reminiscência da grandeza (imagem de Deus). Agostinho entende que o conhecimento que a alma pode ter de si mesma repousa na sua constante presença a si, que é também a presença de Deus na alma, o que estaria indicado nas imagens espirituais da Trindade. Essa presença constante é intuição direta: a alma não se conhece por desdobramento entre sujeito e objeto – o que equivaleria à sua materialização. A peculiaridade aqui está em que a alma, ao tentar conhecer-se, já se conhece. Muito já se comentou acerca dessa “antecipação” do cogito para que tenhamos de insistir nisso. O importante é assinalar que a alma, por estar sempre em atividade, está sempre se conhecendo. Nesse sentido, a conversão e o itinerário salvífico ficam muito próximos do conhecimento de si, o que não surpreende, visto que o conhecimento da alma é o conhecimento da presença de Deus na intimidade do homem. Chenu (2006) chama a atenção para o fato de que a expressão “conhece-te a ti mesmo” é o subtítulo da Ética de Abelardo – sem dúvida uma manifestação do que Gilson (2006) denominou “socratismo cristão”. Deixando de lado a questão da justeza de se designar Abelardo como “o primeiro homem moderno” ou de ver nele a “descoberta do sujeito” na proposta de uma moral da intenção, cabe, no entanto, reiterar uma observação. Enquanto os cistercienses interpretavam o preceito socrático na via de uma revelação da fraqueza humana, Abelardo via no “conhece-te a ti mesmo” uma afirmação da dignidade: a possibilidade do discernimento pelo qual o homem consente livremente no bem. A presença de Abelardo no século XII sem dúvida está relacionada com o que poderia ser anacronicamente denominado
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“o despertar da consciência” – de resto, a literatura penitencial dará testemunho dessa interiorização numa certa inflexão do significado do sacramento da confissão. Essa interiorização diminui a força de um certo sobrenaturalismo objetivo que teria vigorado até então, no entender de Chenu (2006). A interiorização dos valores desvincula a atitude religiosa do conteúdo mágico que porventura nela sobreviveria. Tudo isso vai preparando o advento do sujeito através da afirmação da pessoa, que muitas vezes se sobrepõe não apenas à natureza, mas também à norma. Isso faz parte do processo que levará os teólogos do século XIII a afirmarem que a lei de Deus está inscrita no coração e não em pedra. A consciência reivindica seus direitos, sobretudo no domínio da fé – o que de forma alguma significa “subjetivismo”: a certeza, dirá São Tomás, entre outros, emana do ser (do objeto) e é corroborada na consciência. O que o “sujeito” (cognoscente) conhece está nele, segundo o modo do cognoscente (“sujeito”). Esse desempenho da razão revela a autonomia relativa do homem, de forma análoga à que a causalidade segunda revela a autonomia relativa da natureza. Assim come ça a insinuar-se mais fortemente a idéia de que é pela autonomia do intelecto e liberdade da vontade que o ser humano se assemelha a Deus – algo que estará presente em Descartes. Com efeito, como assinala Gilson (2006), a imagem de Deus significa, na Idade Média, que o homem reina sobre o mundo como um representante de Deus, e que a dominação que o homem exerce sobre as coisas é, em princípio, análoga à que Deus exerceria – razão pela qual o homem a exerce por delegação de Deus. E essa analogia se faz por via do intelecto e da liberdade, propriamente o que nos faz imagem de Deus, e que é reforçada quando a imagem se volta para seu modelo e não permanece voltada para si. O cultivo dessa imagem se expressa, ainda segundo Gilson, no “antropologismo” comum a Sócrates e ao cristianismo. O objeto de estudo para o homem é o próprio homem – idéia que, mesmo laicizada, permanecerá até a contemporaneidade, onde podemos encontrá-la no marxismo e no existencialismo. Pode-se dizer que existe uma continuidade entre a eticização da filosofia por Sócrates, por via do preceito délfico, e a cristianização desse mesmo preceito, atendendo igualmente exigências éticas, agora diversamente formuladas. Ser o homem a imagem de Deus significa que o “conhece-te a ti mesmo” é um preceito divino, o que quer dizer que só o cumpriremos plenamente quando o conhecimento se levar até Deus. Transpor a distância entre o homem e Deus é a grande dificuldade – e é duvidoso que a filosofia possa fazer mais do que levar-nos a medir essa distância a partir de nós mesmos. Aí está a origem da idéia pascaliana de que somente Jesus Cristo pode realizar a mediação entre o homem e Deus. Por intermédio de Cristo, conhecemos a Deus e a nós mesmos; e Cris-
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to é a única mediação porque nele está a união misteriosa de homem e Deus. Assim, o preceito socrático está presente em Pascal já de forma inteiramente cristianizada; pois se tentamos nos conhecer sem a mediação de Cristo, o que temos de grandeza nos leva ao orgulho e o que temos de miséria nos leva ao desespero. Conhecendo-nos em Cristo, tomamos consciência da nossa dupla condição, de nossa ambigüidade e, afinal, da causa pela qual jamais poderemos ter de nós mesmos um conhecimento objetivo, analítico, conciliado e justificado. Referimo-nos a Pascal porque nele podemos ver, em pleno contexto do humanismo racionalista fundado por Descartes, as cenas iniciais do drama moderno e o eixo de seu enredo: a secularização. Com efeito, as tentativas de explicar como em Pascal se cruzam a o território palmilhado pelo racionalismo experimental e o abismo no qual mergulha o homem de fé estão destinadas necessariamente ao fracasso, enquanto não se compreender, primeiramente, um outro cruzamento que se dá entre as ambigüidades de uma sacralidade institucionalizada e as ambivalências de uma civilização laica.
III Do ponto de vista que nos interessa, o problema da secularização pode ser abordado através da questão da subjetividade cristã situada num mundo secularizado. Para equacioná-la, temos de considerar de modo sumário as condições de secularização, o que faremos seguindo de perto G. Marramao (1997) e sua genealogia da secularização, no sentido de destacar os aspectos que interessam ao nosso percurso.2 A ampliação semântica do conceito de secularização caminha junto com uma simetria deveras significativa: há uma certa correspondência entre secularização da Igreja e sacralização do Estado. Essa simetria certamente tem a ver com o longo ciclo de aliança entre Igreja e Estado, que começou com Constantino em 313 e teria terminado, segundo Marramao (1997), com o Tratado de Paz de Westfália, em 1648. Mas o processo não pode ser tão exatamente delimitado: o Estado assume responsabilidades religiosas porque busca legitimação; e o caráter institucional da Igreja já se faz presente antes da formulação explícita da noção de cristandade. Com efeito, Agostinho está respondendo a solicitações herdadas já de algum tempo quando usa a expressão Cidade de Deus e não Igreja de Deus: move-se numa linha de absorção do Estado na Igreja e da Igreja no Estado, questão que não se esgota na versão da teologia política do século XVII, mas 2 A partir desse momento, as considerações feitas nesse trabalho estarão referidas aos seguintes textos: MARRAMAO, G. (1997); MARRAMAO, G. (1995); OLIVEIRA, M.A. (1990); PEREIRA, M.B. (1990); SCHILLEBECKX, E. (1994); VATTIMO, G. (1997).
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que chega até o século XX. Pode-se dizer que a separação entre Igreja e Estado se faz para que fiquem bem delimitados o Reino de Deus e o reino do Homem, autonomia recíproca, cuja necessidade a experiência histórica das guerras de religião teria feito sentir intensamente. A ironia da história está em que a autonomia do Estado frente à Igreja implicará a sua sacralização; e a institucionalização da Igreja implicará a sua secularização. Trata-se de um jogo complicado de determinações histórico-políticas cujos desdobramentos são muito complexos para que possamos tratá-los aqui: veja-se, por exemplo, como no contexto da Reforma os dois aspectos por vezes desempenham funções invertidas. Outro aspecto controverso da secularização provém de que, longe de ser o substitutivo histórico da sacralização ou de uma organização teocrática, ela é efeito do cristianismo, na medida em que este teria introduzi valores como individualidade, igualdade, direitos etc. Entretanto, é preciso observar que essa racionalidade que se constrói no contexto de um mundo secularizado é operativa: trata-se de conhecer para dominar. É nesse sentido que se pode falar que a secularização seria também a divinização do homem: essa ambigüidade constitutiva da passagem do teocrático ao laico implicará na sacralização da política, por exemplo, em Carl Shimidt. Com efeito, é possível analisar o fenômeno da ideologização como procedimento de sacralização da dimensão político-ideológica. A partir daí, se poderia concluir também que o “fim das ideologias” seria uma etapa de dessacralização. Analogias e ambigüidades podem se aprofundar se nos remetemos à teoria da História de Löwith (1990), segundo a qual haveria um messianismo intrínseco ao historicismo ocidental. Os pressupostos agostinianos estariam na base da teleologia histórica e da concepção de tempo linear. No processo de secularização, a noção de Providência teria sido substituída pela de Progresso: ainda assim se trataria de uma crença no Progresso como reminiscência do itinerário salvífico orientado providencialmente. A analogia entre redenção pela graça e redenção pelo progresso seria demasiado evidente para que fosse preciso insistir. Outro aspecto que mereceria destaque é a analogia entre Secularização e Gnose: em ambos os casos, teríamos a construção de uma sabedoria pautada pela imanência, com a diferença de que o saber secularizado se constrói contra a sacralidade e não como tentativa de incorporá-la numa perspectiva imanentista. Em todo caso, a história como processo de secularização da modernidade teria a ambição gnóstica e uma análoga chave de explicação. Nesse sentido, a mundanização seria solidária da auto-divinização, que encontra no imanentismo moderno a sua expressão. Já não se trata de uma história guiada pelo Eschaton, mas pela divinização laica, a qual atinge por vezes os níveis exacerbados que se designam por secularismo, entendido como
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potencialização da secularização. Ainda na linha da exploração da ambigüidade sacralização/secularização, caberia perguntar se a política sacralizada ou as religiões politizadas não seriam mecanismos compensatórios para o esvaziamento e o desenraizamento decorrentes da dessacralização da modernidade.3 Com efeito, se aceitarmos que a idéia de Progresso veio a ser o substituto secular da idéia de Providência, teremos de aceitar também que a idéia iluminista de Progresso se teria esgotado devido ao fenômeno de “rotinização” do próprio progresso, entendido como sucessão de descobertas e constante aparecimento do novo, processo que teria como significação e eixo constituinte o ideal emancipatório. Como nota Marramao, o progresso perdeu seu potencial emancipador: já não se descobre o novo como novo sentido e novo valor, mas tão somente se organiza a sucessão de novidades pelo aprimoramento técnico da instrumentalidade. O novo já não significa criação, mas simples substituição compulsória derivada da obsolescência programada. Nesse sentido, as noções de novo mundo e homem novo teriam envelhecido e se esgotado. O tempo do progresso tornou-se o tempo homogêneo da funcionalidade adaptativa, que vem a ser, no máximo, a “rotinização da inovação”. Essa situação alimenta as mais sérias dúvidas acerca da relação entre progresso e emancipação. “É a partir daqui que deveria ser retomada a disputa em torno dessa controversa categoria [secularização]: sobre um cenário de desorientação cósmica e de contingência ética” (MARRAMAO, 1997, p. 118). Desorientação e contingência eram, seguramente, tudo que se queria evitar no momento em que o sujeito reivindica a racionalidade emancipadora que deveria estar presente no reconhecimento de sua modernidade. Dentre os vários documentos que atestam essa pretensão e procuram justificá-la, vale a pena mencionar uma das certidões de origem, a carta dirigida por Descartes “aos senhores Deão e Doutores da Sagrada Faculdade de Teologia de Paris” (DESCARTES, 1980) e que precede as Meditações, visando a explicar aos leitores (e censores) que a elaboração de provas racionais a respeito da existência de Deus, da imortalidade da alma e da existência do mundo é tarefa pertinente, necessária e oportuna, porque permitiria que as verdades
3 Nesse sentido, vale mencionar os cinco sentidos de secularização elencados por Shiner (The meanings of secularization) apud Marramao (MARRAMAO, 1997, p. 101): 1) Secularização como ocaso da religião; 2) Secularização como conformidade ao mundo: homologia entre racionalização na esfera institucional-religiosa e na dimensão social e mundana; 3) Secularização como dessacralização no sentido do desencantamento weberiano; 4) Secularização como descomprometimento da sociedade para com a religião: institucionalização secular da religião ou religião como assunto privado; 5) Secularização como transposição de crenças e modelos de comportamento da esfera religiosa para a esfera secular; religião civil ou visão religiosa das normas sociais.
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afirmadas no âmbito da fé cristã alcançassem a dimensão de universalidade racional e pudessem vir a ser efetivamente aceitas por todos os homens – o que seria o mais valioso serviço prestado à fé e à razão. Se não soubéssemos que o contexto da filosofia de Descartes é o da crise do aristotelismo e da disseminação do libertinismo cético, mal poderíamos avaliar a ousadia desse homem que em toda a sua vida nunca deixou de dar sinais de prudência. Com efeito, o que está dito nessa carta é que se a razão lograr demonstrar as verdades da fé, estas adquirirão um tal grau de segurança que nenhum homem que faça uso da razão se atreverá a colocá-las em dúvida ou a confrontá-las com certezas de outra crença. Estavam certos os juízes da Sorbonne quando não autorizaram o texto: o que Descartes está lhes dizendo é que o notável serviço que pretende prestar à Fé consiste em destituí-la de seus direitos e de sua jurisdição sobre a verdade, em prol da universalidade da razão. Com efeito, se não podemos esperar daqueles que não foram agraciados com a fé que aceitem dos textos sagrados a revelação divina da verdade, podemos, no entanto, exigir que acompanhem, na ordem das pura argumentação racional, a demonstração das verdades que aos crentes é transmitida por revelação. Não se está dizendo que os incréus passarão a crer; o que se espera é que compartilhem racionalmente algo que se lhes está sendo proposto independente da crença. Em outras palavras, o infiel aceitará a verdade cristã na medida em que tal aceitação passe ao largo da fé e com ela não se confunda em momento algum. Então, se há na carta de Descartes alguma pretensão apologética, como se poderia supor em princípio, a partir de seus protestos de serviço à fé, seria muito difícil entender, por outro lado, que tal apologia se destine à conversão, em sentido próprio. Pois Descartes não pretende, repita-se, que o incréu venha a crer, mas que simplesmente concorde com uma demonstração. Tanto é assim que, no caso da demonstração da existência de Deus, o que foi desde logo notado – e não apenas por Pascal – é que, de algum modo, a passagem da realidade formal da idéia de infinito à existência de Deus é exterior à passagem da realidade objetiva da idéia de infinito à sua realidade formal. Esse procedimento, que supõe o sujeito racional, cuja existência já foi intuída no cogito, e não o sujeito da fé, que se constitui na recepção da graça, pode ser dito universal, na exata medida em que a razão em ato, o ato de pensar, a subjetividade em sentido especificamente cartesiano, é anterior a qualquer revelação pela qual o sujeito se constitua em outra dimensão – por exemplo, como sujeito da fé. Essa posterioridade da fé, definida como modo heterônomo de pensar, além dos problemas que coloca em termos das relações entre razão e fé, permite também definir o sujeito pela racionalidade, o que lhe confere a posição
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originária que ele possui em Descartes. Tanto é assim que um dos motivos retóricos mais aparentes na carta (assim como em outros textos de Descartes) é manter-se de acordo como primado da fé no cristianismo, ao mesmo tempo em que afirma inequivocamente o sujeito como centro e fundamento de tudo que se possa saber e fazer. E não é por outra razão que, a partir de Descartes, a filosofia – e particularmente as concepções de sujeito – só acresceram mais e mais dificuldades para responder à pergunta pelo lugar da fé. Pois o sentido cartesiano de humanismo não está apenas em separar fé e razão como uma clarificação de limites de territórios: o que Descartes afirma é a primazia da razão em termos universais – daí que as verdades a serem demonstradas em primeiro lugar sejam Deus e a alma. Assim, é possível dizer que o humanismo tal como se configura em Descartes é necessariamente secular, porque é um homocentrismo ou um antropocentrismo. As conseqüências da instauração desse humanismo como inspiração histórica, ética, científica de modernidade são conhecidas em sua ambivalência e não é o caso de analisá-las aqui. Até porque o que nos preocupa é a relação entre o teor humanista e antropocêntrico da subjetividade em Descartes, o desenvolvimento dessa perspectiva na história moderna, seu sentido e alcance – e as exigências cristãs relativas à posição do homem como sujeito frente a si, à natureza, aos outros e a Deus. A menção a Descartes teve o propósito de indicar que a concepção moderna de subjetividade é humanista no sentido de que a consciência de si se enraíza numa certa concepção de autonomia e numa certa concepção de liberdade. Não é necessário desenvolver tais concepções porque, no ponto da história em que nos situamos, já sabemos por experiência qual foi o resultado histórico da ambição humanista e do racionalismo que a sustentava e, portanto, temos condições de avaliar uma experiência de civilização. O humanismo moderno nada tem de utópico: foi uma perspectiva simples e coerente elaborada a partir da suposição de que a história seria governada por uma racionalidade ética expressa na noção cartesiana de unidade da razão e de totalidade do saber. Tudo se passa como se, no plano das ações, isto é, da liberdade, a história tivesse adquirido autonomia para se desvincular dessa unidade, ou seja, da raiz ético-racionalista do humanismo. Nesse desenrolar de uma autonomia “imprevista” da história, assistimos, então, aos atos do drama moderno, que se encaminharam para uma reposição da interrogação humanista, mas de modo a que a confiança cartesiana já esteja comprometida pela experiência histórica e em seu lugar se tenha instalado a perplexidade de uma modernidade tardia desiludida de si mesma. “Para o homem de hoje, filosofia, arte e religião são realidades que já não são aceitas em seu valor, como era o caso do
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mundo antigo, em que funcionavam como evidências, como realidades cujo valor era indiscutível. Como não pertencentes ao ‘mundo’ em que o homem vive hoje, necessitam de justificação, a menos que sejam capazes de se integrar ao mundo, de perder o que lhes é específico e que justamente as distingue desse ‘mundo’” (VATTIMO, 1997, p. 83). Eis que a própria interrogação, na sua tentativa de se repor, sofre o risco da desintegração de seu próprio caráter interrogante, como se a perda das expectativas tivesse acarretado, em contrapartida, um dogmatismo vazio, mas opressor e paralisante. No contexto da fragmentação, a perda não é sentida como tal porque os simulacros impõem a ditadura da trivialidade – a realidade que gira em falso. Simulacro de identidade subjetiva, simulacros da ética, do sagrado, da certeza, da fé. Assim, entre o início da modernidade e a nossa época (quer estejamos vivendo ou não o fim da modernidade), a história deu-se um processo de desintegração, de simulação e de trivialização, cujo caráter dramático foi assegurado pela solidez da barbárie, a única característica que não participa da “fluidez” do processo civilizatório moderno. É a partir dessa situação que evidentemente precisaria ser descrita de modo muito mais preciso, que se pode examinar a questão das possibilidades e limites para o cristianismo no contexto da subjetividade moderna e contemporânea. “[...] a tarefa da fé no mundo atual não é contestar a autonomia da história, nem ressacralizar a sociedade moderna, mas reconstruir todas as dimensões da existência humana na forma de um espaço de ‘interrogação’ para um além que permaneça aberto. Se devemos lutar contra todas as idolatrias e as novas sacralizações da sociedade atual como sociedade técnica, não é simplesmente porque elas contestam o verdadeiro sagrado da fé, mas porque elas desumanizam o homem” (HERRERO apud OLIVEIRA, 1990, p. 195). A dificuldade de encontrar o lugar da fé no mundo secularizado não provém propriamente da dessacralização. Na linha do que desenvolvemos antes, talvez devêssemos localizar esses obstáculos no curso de uma transformação histórica que leva da totalidade da racionalidade de estilo cartesiano para a unilateralidade da racionalidade contemporânea no seu significado de razão técnica. Nesse sentido, se podemos falar de dessacralização, devemos considerar esse fenômenos é inseparável das falsas sacralizações que a racionalidade funcionalista da sociedade atual produz. Assim, como nos diz Herrero, dessacralização e sacralização simulada convergem para a desumanização – e pelas conseqüências podemos avaliar a força das causas no desenvolvimento do processo. Uma subjetividade alienada cultua os ídolos que a modernidade construiu como instrumentos de justificação histórica e que se tornaram os valores simulados no contexto de uma racionalidade técnica e de uma ética que tende cada vez mais para uma técnica da conduta.
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A cultura moderna traz em sua origem algo como a denúncia da alienação na transcendência; mas agora sabemos que podemos nos alienar na imanência – e esta teria sido a conseqüência a que se teria chegado no percurso histórico da modernidade. Pois se o ser humano pode submergir na sacralização objetiva de um sobrenaturalismo mágico, pode também perder-se na imanência narcísica, que leva à universalização da racionalidade técnica, fascinado por um progresso no curso do qual o próprio sujeito se torna um objeto tecnocientífico. Eis aí uma forma de afastar-se do “espaço de interrogação”, em que se pode construir e reconstruir as “dimensões da existência”, tarefa orientada por um “além que permaneça aberto”. Humanizar a história para corresponder ao sagrado que a habita: talvez fosse essa a forma pela qual um modo de ser cristão da subjetividade poderia fazer dos limites possibilidades, recusando igualmente a sacralização objetiva sobrenaturalizante e a divinização das realidades imanentes ou a auto-divinização. Esse seria o espaço humano de uma fé que aconteceria no mundo sem se configurar como fé no mundo; ao mesmo tempo, é necessário entender que esse acontecer no mundo possui uma dimensão transcendente que, se não se enraíza na história, ao menos é revelada por ela. A história revela a transcendência quando a humanizamos e deturpa o humano quando a sacralizamos. Assim, humanizar a história para realizar a transcendência é tarefa tão necessária quanto paradoxal, porque significa compreender a relação entre subjetividade e história a partir de uma transcendência que se realiza singularmente como processo humano de sacralização.
Referências bibliográficas COURCELLE, P. Connais-toi toi-même de Socrate à Saint Bernard. Paris: Études Augustiniennes, 1974. CHENU, M.D. O despertar da consciência na Civilização Medieval. São Paulo: Loyola, 2006. DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Col. Os Pensadores). GILSON, E. O espírito da Filosofia Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LÖWITH, K. O sentido da história. Lisboa: Edições 70, 1990. MARRAMAO, G. Céu e Terra: genealogia da secularização. São Paulo: Edunesp, 1997. MARRAMAO, G. Poder e secularização. São Paulo: Edunesp, 1995. OLIVEIRA, M. A. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1990. PEREIRA, M. Modernidade e secularização. Coimbra: Almedina, 1990. SCHILLEBECX, E. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. VATTIMO, G. O fim da modernidade. Lisboa: Editorial Presença, 1997.
Franklin Leopoldo e Silva (1947) é natural de São Paulo/SP. Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia, pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor titular da mesma universidade. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia. Atua, principalmente, com os seguintes temas: bergsonismo, história e expressão.
Algumas publicações do autor SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994. SILVA, Franklin Leopoldo e. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1994. SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre. São Paulo: Ed. da UNESP, 2004. SILVA, Franklin Leopoldo e. Felicidade. São Paulo: Claridade, 2007.