A PAIXÃO DE JACOBINA: UMA LEITURA CINEMATOGRÁFICA
Marinês Andrea Kunz
Introdução Este artigo tem como objetivo analisar a representação de Jacobina Maurer na narrativa fílmica A paixão de Jacobina, de Fábio Barreto. Primeiro, discute-se o contexto dos acontecimentos, para que melhor se compreenda o surgimento do conflito. Depois, apresenta-se breve relato da história com o intuito de perceber como a narrativa fílmica se relaciona com a versão histórica. Por fim, é analisada a narrativa fílmica, cujo ponto de partida é o termo paixão, a partir do qual é instaurada a representação da protagonista. Palavras-chave: mucker, cinema, história, representação. 1 Jacobina Maurer: trajetória de vida Wenn der Satan irgend eine Teufelei ausheckt, dann braucht er allemal ein Weibsbild dabei!1 João Jorge Klein
Jacobina Mentz, a protagonista dos fatos ocorridos no Morro Ferrabrás, em Sapiranga/RS, nasceu em junho de 1842, em Novo Hamburgo. Seus pais, colonos alemães, chegaram ao Brasil nos primeiros anos da imigração alemã, marcados por seu envolvimento, na Alemanha, com o grupo pietista da Igreja Luterana, o qual não se conformava com as novas orientações da instituição e acusava-a de desviar-se dos ensinamentos bíblicos. O avô de Jacobina, Libório Mentz, coordenou o grupo descontente, que se mudou para o povoado de Tambach, onde fundaram nova igreja e não permitiam que seus filhos freqüentassem a escola. Nesse período, o patriarca e a família emigraram para o Brasil. Em Novo Hamburgo, ele construiu uma igreja e organizou
1 “Quando Satanás trama qualquer diabrura, aproveita-se sempre de uma mulher.”
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um coral, participando, assim, ativamente das atividades religiosas da comunidade, sem envolver-se em novos conflitos. André Mentz, pai de Jacobina, faleceu quando a menina tinha nove anos, deixando a mãe com oito filhos. Quando criança, Jacobina freqüentou aulas por um ou dois anos, sendo alfabetizada de forma rudimentar em alemão. A língua portuguesa, no entanto, ela não falava nem entendia. Depois, até casar-se com João Jorge Maurer, auxiliou a mãe nos trabalhos da casa, de quem, provavelmente, sofreu grande influência, reforçada pela ausência paterna. O casamento de Jacobina e João Jorge ocorreu em 26 de abril de 1866, em Novo Hamburgo. De sua família, somente o irmão Francisco não foi adepto dos mucker. Já o noivo, filho de imigrantes alemães, nascera no Brasil, no dia 28 de fevereiro de 1840, em São José do Hortênsio. Após oito anos, a família mudou-se para a comunidade de Padre Eterno, interior de São Leopoldo, na época. No início da Guerra do Paraguai, João Jorge serviu na Guarda Nacional, em Porto Alegre, mas, em seguida, aprendeu o ofício de marceneiro. Jacobina e João Jorge, após viverem um ano em casa da mãe da moça, mudaram-se para Sapiranga, junto ao morro Ferrabrás, local denominado então de Leonerhof, onde Maurer havia comprado um lote de terras. Ele sustentava a família trabalhando como agricultor e como marceneiro. Tiveram seis filhos, sendo que a última nasceu em maio de 1874, isto é, próximo ao último combate, que ocorreu em 2 de agosto, ocasião em que a criança morreu. Mais tarde, João Jorge conheceu o curandeiro Buchhorn, do qual aprendeu o ofício, e, em 1868, começou a atender os doentes em sua própria casa. Em 1872, ele já era conhecido na região e recebia clientes até de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre (AMADO, 2002). Com ervas, preparava remédios que eram comprados pelos doentes, os quais pagavam em dinheiro, em mantimentos ou em produtos agrícolas, conforme suas condições financeiras. Maurer, no entanto, não enriqueceu, podendo apenas abandonar a agricultura e a marcenaria. Com o tempo, ele passou a ser chamado de Wunderdoktor, que significa doutor maravilhoso ou milagroso. Para melhor compreensão desse fenômeno, deve-se destacar que havia a carência de médicos em toda região de imigração, pois apenas em São Leopoldo se encontrava atendimento especializado. Essa situação, agravada pela distância e pela precariedade do transporte, levava as pessoas a buscarem outras alternativas na luta pela sobrevivência. Jacobina sofria de desmaios, que a deixavam inconsciente e insensível à dor e dos quais acordava sem lembrar de nada. Aos poucos, esses desmaios tornaram-se mais prolongados. No mesmo período, teria circulado pela colônia um livro sobre sonambulismo, que se tornou popular entre os colonos e em que
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se afirmava que esse fenômeno era fruto de forças sobrenaturais. As pessoas vítimas desse mal teriam o poder da vidência, podendo, com isso, prever fatos, diagnosticar doenças e indicar tratamentos médicos. Tal obra dava credibilidade à atividade de Jacobina, que, paulatinamente, passou a exercer o papel principal no Ferrabrás. No início, ela apenas auxiliava João Jorge no tratamento dos doentes, mas aos poucos os foi consolando com leituras e interpretações de trechos da Bíblia. Com o tempo, nas reuniões religiosas na casa de Maurer, essas interpretações tornaram-se mais livres, o que passou a desagradar os representantes religiosos. O grupo foi-se tornando maior, e, entre os participantes, muitos se destacavam na área religiosa e no apoio ao bom funcionamento das reuniões. Já os opositores ao grupo afirmavam que Jacobina havia nomeado apóstolos, acusação que, contudo, não foi comprovada, pois, enquanto apenas um mucker confirma essa versão, os demais a negam (AMADO, 2002). Os mucker, a partir de 1873, adotaram comportamento mais reservado, gerando grande polêmica.2 Não permitiram que seus filhos freqüentassem a escola, desligaram-se das igrejas – católica e luterana –, deixaram de beber, fumar, jogar e participar de atividades sociais. Vieram, inclusive, a doar bens e a desprezar o uso do dinheiro, de forma que até perdoaram muitos de seus devedores. Um ano antes, já não haviam comparecido às eleições municipais (AMADO, 2002). Tudo isso provocou a ira dos demais, uma vez que também atrapalhava os negócios da região. Passaram, então, a sofrer deboches e agressões. Lúcio Schreiner – membro do Partido Conservador, advogado em São Leopoldo, subdelegado de polícia, irmão do delegado João Jorge Schreiner e primo de Jacobina –, no período das eleições, tentou aproximar-se de João Jorge, com o intuito de conquistar seu apoio à própria candidatura. No entanto, o partido de oposição também contava com ele, de modo que se negou a apoiar Schreiner, mantendo-se neutro, a fim de não ter inimizade com ninguém. Lúcio, ao contrário do irmão, não se elegeu vereador, mas assumiu o cargo de delegado. Conforme Janaína Amado (2002), todas as autoridades eleitas naquela época se opuseram aos mucker, como, por exemplo, o subdelegado Cristiano Spindler. Em 1871, depois que os cultos na casa dos Maurer se tornaram mais intensos e com maior número de adeptos, a
2 Dickie (1998) defende a idéia de que, após o inquérito ocorrido em 1873, os mucker, que até então se consideravam uma alternativa pacífica e livre às Igrejas Católica e Luterana, passaram a defender sua relação direta com Deus – por meio da inspiração de Jacobina – e sua concepção de transformação do mundo diante dos inimigos.
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igreja3 iniciou sua ofensiva contra o movimento. Tanto padres como pastores pregavam contra as atividades religiosas do grupo. Esses ataques por parte dos religiosos foram intensificados quando os mucker se afastaram da igreja. Escreviam, inclusive, artigos em jornal e exigiam uma atitude por parte das autoridades políticas e policiais. No ano de 1873, o pastor Boeber organizou um abaixo-assinado contra os mucker, o que legitimou as ofensivas do delegado Lúcio Schreiner. Com isso, as autoridades religiosas uniram-se às civis, o que levou a população, de um lado, a ridicularizar os mucker, provocando-os muitas vezes, e, de outro, a temê-los, como se fossem representantes do diabo (AMADO, 2002). A partir de então, a crise na colônia agravou-se. As autoridades civis tomaram inúmeras atitudes contra os mucker. Primeiro, foi realizada uma busca por armas, na casa dos Maurer e dos adeptos mais influentes, mas o suposto material bélico não foi encontrado. O subdelegado de Sapiranga intimou Maurer a um depoimento, mas ele se negou a comparecer. Diante disso, o delegado Schreiner denunciou-o junto ao Chefe de Polícia do Estado. Maurer e alguns companheiros foram, então, presos, sem demonstrar resistência, e, no dia 22 de maio de 1873, deitada inconsciente na carroça, Jacobina também foi levada a São Leopoldo. De lá, o casal foi enviado a Porto Alegre, sendo que Jacobina ficou internada na Santa Casa. Contudo, como nada contra eles ficou provado, foram liberados no dia 13 de junho de 1873. No período em que os líderes estavam presos, seus adeptos reuniram-se em casa daqueles para a comemoração de Pentecostes. Entretanto, o subdelegado Spindler interrompeu o encontro e obrigou os participantes a assinarem declarações de bem-viver. Apesar de não concordarem, os mucker acataram a ordem. Novamente em suas casas, os mucker foram intimados pelo subdelegado e pelo inspetor de quarteirão, João Lehn, a não darem seguimento às reuniões religiosas. Na ocasião, as instalações passaram por nova revista, sendo então encontradas vinte e duas armas. A partir daí, o grupo cresceu muito, o que levou à construção de um prédio maior, ao lado da casa. A população criou a fantasia de que a construção seria semelhante a uma fortaleza, o que não se confirmou, já que foi erigida por meio de mutirão e de doações dos membros. As relações entre a população e os mucker foram agravadas quando Jacob Kramer, opositor do grupo, comerciante e al-
3 Jacobina destituiu as Igrejas oficiais da legitimidade da mediação com Deus, já que tinha contato direto com o Espírito Natural que lhe indicava, durante sua letargia, o que e como deveria ser feito. Os mucker não mais as reconheciam como suas representantes (DICKIE, 1998).
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coólatra, desapareceu, tendo sido encontrado morto dias depois. Mesmo sem encontrarem vestígios de violência, espalhou-se a notícia de que teria sido assassinado pelos mucker. Além disso, o sogro do subdelegado, Pedro Hirt, que sofria de hipocondria, suicidou-se, após uma visita de Maurer, cuja influência teria sido a causa da tragédia. Após alguns meses, o inspetor Lehn foi atacado em frente a sua residência por dois homens a cavalo, que o feriram gravemente. Logo a autoria do atentado foi atribuída aos mucker, revoltando a comunidade. O delegado prendeu, então, trinta e três mucker, os quais foram levados a São Leopoldo. No entanto, o subdelegado Spindler se mostra contrário a essa prisão, por considerá-la arbitrária. Com as arbitrariedades policiais, perseguições e saques de que foram vítimas, os mucker procuraram as autoridades civis em busca de seus direitos, mas nunca foram atendidos. Decidiram, então, dirigir-se diretamente ao Imperador do Brasil, levando um abaixo-assinado, em que narravam também os fatos. Esse documento foi escrito em alemão por João Jorge Klein – denominado por Schupp “o Misterioso” –, cunhado do casal Maurer, para que fosse traduzido para o português, no Rio de Janeiro. Entretanto, o documento chegou às mãos do subdelegado de polícia em São Leopoldo, que rebateu as acusações, o que foi endossado pelo delegado. Depois, foi remetido ao Ministro da Justiça, que indeferiu o pedido. Com isso, os mucker afastaram-se mais ainda da vida social, passando a realizar seus próprios batizados e casamentos, como o de Henrique Guilherme Gaelzer e de Maria Sehn. As autoridades locais (AMADO, 2002) sempre assumiram atitude contrária aos mucker e não defenderam seus direitos quando estes foram atacados e humilhados. Também foram responsáveis por diversas arbitrariedades contra eles e tentarem macular sua reputação diante das autoridades civis da Província. Estas, por sua vez, demonstraram, inicialmente, maior neutralidade diante dos fatos, não lhes atribuindo importância excessiva e buscando sempre a conciliação entre as partes. Colocaram-se, inclusive, contra as atitudes da polícia local, como no caso da prisão dos trinta e três mucker, libertando-os. Moacyr Domingues assegura que, inicialmente, “nem Jacobina, nem seu marido, nem seus mais ardorosos companheiros desejavam entrar em luta com pastores, padres, vizinhos. Queriam evitar o confronto: retraíam-se, evitavam o revide às provocações” (DOMINGUES, 1977, p. 136). O autor cogita, ainda, a possibilidade de que o rompimento com as igrejas católica e luterana possa ter ocorrido justamente com o intuito de se verem livres das perseguições. Os mucker, no entanto, aos poucos, passaram a adquirir armamentos e construíram a casa nova, em forma de mutirão, com
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as contribuições em dinheiro por parte dos adeptos. Em 26 de setembro de 1873, caiu um meteorito nas proximidades, causando grande espanto. Esse fato foi configurado por Jacobina como sinal do fim dos tempos. Com isso, ela assumiu a liderança, sendo “identificada com a revelação divina” (AMADO, 2002, p. 229). A diminuição da importância de Maurer no grupo iniciou-se durante sua viagem ao Rio de Janeiro, quando passou a ser considerado, pelos adeptos, fraco diante da magnitude dos fatos. Rodolfo Sehn tomou seu lugar como ouvidor das revelações de Jacobina durante seus transes e também passou a ser seu auxiliar. Essa troca de funções foi interpretada pelas autoridades e pela população como adultério, fruto da imoralidade reinante entre os mucker. Na ocasião, Jacobina também teria anunciado a troca de marido e de esposa entre os casais. Janaína Amado (2002) explica que não há comprovação do adultério e defende a idéia de que ele não ocorreu, tendo sido a calúnia difundida pelos padres jesuítas e pelos pastores. Maria Amélia Schmidt Dickie (1996) acredita que essa acusação de promiscuidade sexual era comum contra movimentos de dissidência religiosa. Luppa, ex-integrante do grupo de Jacobina, acusa-a de adultério, e Martin Kassel confirma a troca de mulheres. No entanto, afirma a autora, o filho de Luppa foi o delator do esconderijo de Jacobina, e a esposa de Kassel, que era católica, pressionava o marido para deixar de freqüentar o Morro Ferrabrás. Assim, “estes eram depoimentos interessados em justificar sua própria atitude e que encontravam justificativa na desqualificação de Jacobina e de todo o grupo” (DICKIE, 1996, p. 421). Muitas mudanças ocorreram, nesse período, no cenário das autoridades civis. Depois de ser ameaçado pelos mucker, que se sentiam prejudicados em seus direitos, o subdelegado Cristiano Spindler abandonou o cargo e a localidade, fugindo para Santa Maria, onde residiam seus parentes. Com essa fuga, os mucker, em documento enviado ao Presidente da Província, exigiram a devolução de suas armas apreendidas, e este lhes deu ganho de causa. Além disso, Lúcio Schreiner afastou-se do cargo de delegado, tendo sido substituído por Guilherme Haertel. Por fim, também o chefe de polícia, Luiz José de Sampaio, que tentava contemporizar a situação, foi afastado do cargo, sendo substituído por Abílio Álvaro Martins e Castro, conhecido por sua severidade. Instaurou-se, em 30 de abril de 1874, um clima de guerra na colônia, com o assassinato de Jorge Haubert, órfão de pai e mãe e afilhado de Jorge Robinson, mucker da confiança de Jacobina. Esse crime também foi atribuído aos mucker, uma vez que Haubert havia se tornado seu inimigo. Foram acusados Jorge Robinson e Carlos Einsfeldt, sendo este levado a Porto Alegre,
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onde foi julgado após a batalha final, mas de cujo veredicto não se tem notícia. No dia 16 de maio de 1874, o delegado recrutou para o serviço militar os mucker Cristiano Richter e Henrique Guilherme Gaelzer, então já casado com Maria Sehn. Para ser solto, este precisava apresentar a certidão de casamento, documento de que não dispunha, uma vez que haviam sido casados apenas por Jacobina. Assim, ele foi obrigado a servir. A morte da família de Martim Kassel, que teve a casa incendiada, constituiu-se em importante desencadeador da tragédia. Ele e a esposa haviam abandonado os mucker para tornar a freqüentar sua religião: ele, a igreja luterana; e ela, a católica. Sobreviveram apenas ele, Martim, que não estava em casa, e seu enteado, que conseguiu fugir pela janela. O patriarca havia saído de casa para comunicar às autoridades que na noite anterior dois homens haviam batido à porta e depois fugido. Durante o trajeto, dormiu em casa de um conhecido, quando então incendiaram sua casa. Novamente, os mucker foram acusados, em especial Cristiano Kassel, primo da vítima. O pânico entre a população, principalmente entre os opositores dos mucker, espalhou-se rapidamente. Na tentativa de resolver o problema, o presidente da Província enviou o chefe de polícia, Abílio Álvaro Martins e Castro, a São Leopoldo, acompanhado de dez praças da Cavalaria da força policial, como intuito de descobrir os culpados. Entretanto, ele não obteve êxito. A imprensa, tanto de São Leopoldo como de Porto Alegre, nesse período, intensificou sua campanha contra os mucker, sobretudo o jornalista Karl von Koseritz, diretor do Deutsche Zeitung, autor de artigos contra o grupo. Segundo M. Dreher, Arauto de uma germanidade que criaria o “teuto-brasileiro”, Koseritz voltou-se contra o obscurantismo e difundiu a imagem do descendente teuto obscurantista, retrógrado, oposto do teuto esclarecido da ilustração por agarrar-se à religião: o Mucker, elemento que deveria ser destruído, pois punha em perigo tudo o que de bom e belo a cultura e a ciência alemãs haviam produzido e poderiam levar ao Brasil (DREHER, 1998, p. 139).
K. von Koseritz estava ligado à elite econômica e cultural da colônia, que era contrária aos mucker. E estes combatiam os valores mais defendidos pelo jornalista, ou seja, a escola, a política, o comércio e a vida social (AMADO, 2002), o que fazia com que permanecessem, assim, em lados opostos. Além disso, como K. von Koseritz era maçom, e os mucker condenavam a maçonaria, atacava-os, destacando o quanto eram imorais e perigosos. Na noite de 25 de junho de 1874, os mucker atacaram alguns de seus principais inimigos, matando-os e incendiando
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suas casas, sem roubar nada. Muitos colonos reuniram-se, uns nas casas dos outros com medo dos ataques. No dia seguinte, os moradores reagiram, sendo que cerca de oitenta homens atacaram, saquearam e incendiaram várias casas abandonadas dos mucker. Os ataques continuaram nos dias subseqüentes. A violência foi tamanha que o coronel Genuíno de Sampaio os denunciou à justiça por roubo, assassinato e incêndio. Com isso, foram enviados a São Leopoldo soldados e armas. Todo o contingente militar ficou sob o comando do coronel Genuíno Sampaio. Acompanhado de 98 homens, o coronel seguiu para o Ferrabrás (AMADO, 2002) e, em Campo Bom, encontrou-se com mais reforços. No dia 28 de junho, as tropas atacaram os mucker, que os receberam a tiros, obrigando-as a fugir.4 A derrota agitou ainda mais a região e a capital. Foram reunidos cerca de 500 homens, entre militares e moradores da região. Contudo, o grupo carecia de organização, pois muitos eram indisciplinados, outros desertaram e muitos não possuíam armamento adequado. Enfim, desde a Guerra do Paraguai, a Guarda Nacional estava decadente e o exército, desorganizado – ambos consideravam a luta contra os mucker uma tarefa indigna. Os integrantes da Guarda Nacional até saquearam e incendiaram moradias vazias dos mucker e de outros colonos, o que provocou o repúdio da população às tropas. As forças do capitão Santiago Dantas, no dia 11 de julho de 1874, juntaram-se às tropas do coronel Sampaio. O segundo ataque ocorreu a 19 de julho, quando foi incendiada a casa dos Maurer e foram mortos homens, mulheres e crianças, vítimas de saques e violações por parte dos soldados. Logo foi comunicada a vitória, e, em São Leopoldo, houve comemorações. Contudo, vários mucker haviam fugido, inclusive Jacobina. Na madrugada, ouviram-se tiros supostamente disparados pelos mucker, ocasionando grande confusão entre as tropas, que passaram a atirar na direção dos disparos. Nesse momento, Genuíno Sampaio foi ferido na perna, vindo a falecer, o que acarretou preocupação para as autoridades de São Leopoldo e da capital. Foi organizado novo ataque, sob o comando do capitão Santiago Dantas. Carlos Luppa, um mucker traidor, denunciou o esconderijo de Jacobina. O combate ocorreu a 2 de agosto de 1874, quando os dezessete mucker sobreviventes foram mortos pelas tropas. João Jorge Maurer já havia fugido após o segundo combate, com a autorização de Jacobina (AMADO, 2002). Em 1875, foram encontrados dois corpos em adiantado estado de
4 Todos os fiéis deveriam acreditar no testemunho de Jacobina e engajar-se com palavras e ações, o que conduziu ao sacrifício da própria vida, até porque a morte era considerada como ressurreição (DICKIE, 1998).
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decomposição, sendo reconhecidos como João Jorge Maurer e seu irmão. As crianças mucker sobreviventes foram entregues a famílias alemãs, e os que tinham idade para servir foram recrutados. Entre os adultos, 23 mucker foram julgados, dos quais sete foram condenados a 23 anos e quatro meses de prisão, inclusive João Jorge Klein. Em 1883, contudo, todos os condenados foram absolvidos (AMADO, 2002). Muitos se mudaram para Nova Petrópolis e Lajeado, enquanto outros procuraram retomar suas vidas, sendo sempre perseguidos e humilhados. M. Dreher assim avalia o massacre dos mucker: Qual a utopia do grupo? Ela é muito simples e singela: sonha com terra, com justiça, com direito à religião, com roça comunitária, com solidariedade. Ousa ser diferente da sociedade que não a consegue tolerar, pois, tolerando-a, dá margem à crítica social. Quis poder ser diferente em meio a uma sociedade que buscava o “progresso” de um von Koseritz. Nossa sociedade não tolera o sonho do movimento popular (1998, p. 140-141).
2 O contexto do conflito Quando se estuda a história de Jacobina Maurer, é necessário voltar os olhos para o Brasil e para o Rio Grande do Sul do século XIX. Em virtude da invasão de Portugal por Napoleão Bonaparte, a família real muda-se para o Brasil, em 1808, o que possibilita a criação da Imprensa Régia, de Museus, de Bibliotecas e da Academia de Artes. Em 1815, a instalação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por D. João, colabora para o sentimento de nação junto aos portugueses e luso-brasileiros. Assim, em 1822, um ano depois do regresso de D. João para Portugal, D. Pedro I, o príncipe regente, proclama a Independência do Brasil, em 7 de setembro. A Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, nessa época, era pouco povoada e tinha áreas praticamente desabitadas. Predominava aqui a pecuária, e a agricultura iniciada pelos açorianos havia praticamente desaparecido (ROCHE, 1969). Além disso, o comércio era muito limitado, devido à inexistência de crédito e às péssimas condições de transporte. Então, o governo brasileiro iniciou o povoamento do Sul do Brasil, incentivando a imigração de trabalhadores europeus. M. Dreher (1999) aponta como fatores para tal iniciativa: o desejo de branqueamento da população (de 3.615.000 pessoas, apenas 23% eram brancas); a criação de uma classe média com capacidade de consumo, para integrar-se ao comércio mundial, seguindo os interesses ingleses; a produção de alimentos, roupas, calçados e arreios, para as tropas imperiais localizadas no Uruguai; a povoação de áreas montanhosas, para impedir o
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trânsito de tropas da região do Prata; o aumento das tropas do exército, além da construção e conservação de estradas. Em razão dos problemas de ordem social e econômica, ocasionados pelo Bloqueio Continental imposto por Napoleão Bonaparte, os alemães se dispunham a emigrar para o Brasil. No país de origem, suas propriedades rurais eram pequenas para abrigar todos os filhos, e quando apenas um filho herdava a terra, os demais dependiam dele para sobreviver. Lá, a industrialização era ainda incipiente e não absorvia a mão-de-obra excedente (DREHER, 2003). Assim, sem terra, estavam a serviço dos donos da terra, não lhes restando alternativa, conforme avalia Dreher (1988). Assim, buscam outra terra, para construir novo destino. O Major Schaeffer foi, primeiramente, o agente direto da campanha para trazer os imigrantes alemães. Muitos dos benefícios prometidos nem sempre foram cumpridos aqui no Brasil, tais como liberdade de culto, viagem paga pelo governo brasileiro, fornecimento de terra e animais, além de ajuda em dinheiro nos dois primeiros anos (ROCHE, 1969). No dia 25 de julho de 1824, os primeiros imigrantes chegam a São Leopoldo, pois a região destinada à colonização eram as “duas fazendas imperiais, a Feitoria Velha e a Estância Velha. [...] A região [...] estava coberta de mata e estendia-se para o norte [...] as três primeiras picadas na mata: Dois Irmãos (Baumschneis), Bom Jardim (Berghanerschneis) e São José do Hortêncio (Portugieserschneis)” (CEM, 1999, p. 62-63). Contudo, apenas os primeiros imigrantes receberam terras sem atraso, enquanto os que chegaram em dezembro daquele ano tiveram dificuldades em instalar-se. Muitos dos que vieram depois tiveram que esperam durante meses (ROCHE, 1969). Em virtude de questões políticas, no ano de 1830, a colonização é paralisada: os grandes proprietários de terra relacionavam a imigração à abolição da escravatura, o que constituía uma ameaça. O parlamento cortou as verbas destinadas à promoção da vinda de imigrantes europeus. Entretanto, já estava em vigor a lei que permitia às províncias organizarem seu próprio processo imigratório, dando continuidade à iniciativa do governo imperial. Cada província recebeu trinta e seis léguas quadradas de terras devolutas para a colonização a partir de 1848 (ROCHE, 1969). Os imigrantes, aos quais não era permitido ter escravos, tornar-se-iam proprietários definitivos dos lotes apenas após cinco anos, medida que visava ao desenvolvimento da agricultura. A partir de 1850, ficaram restritas ao governo imperial as decisões sobre terras devolutas, sendo que estas só poderiam ser adquiridas por meio de pagamento, e não mais pela doação. Contudo, (ROCHE, 1969) somente em 1870, o governo imperial passa a interferir diretamente na colonização do Estado.
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Entretanto, de 1874 a 1889, foi reduzido o contingente de imigrantes: vieram em torno de 5413, isto é, 386 por ano, em média. Isso ocorreu em função do desinteresse do governo provincial pela imigração, o que levou à redução do crédito concedido ao financiamento da colonização, apesar dos esforços de K. von Koseritz e de Haensel, deputados na época. Tal decisão acarretou reflexos diretos também na vida da colônia, pois as “escolas, já pouco numerosas, não recebem senão subvenções ínfimas” (ROCHE, 1969, p. 114). Além disso, a população de origem germânica foi discriminada por parte da luso-brasileira. Como as colônias foram firmadas em zonas florestais, os luso-brasileiros não se interessavam em se instalarem em tais regiões. Com isso, os colonos, que desenvolviam a agricultura de subsistência, puderam garantir o isolamento do grupo e a conseqüente manutenção da língua e do espírito de germanidade. Os assentamentos eram organizados em Picadas ou Schneise no meio da floresta: A demarcação dos lotes obedecia a critérios de natureza topográfica. Numa das extremidades, o rio ou seu afluente servia de limite. O lote estendia-se encosta acima, até encontrar-se com outro, que subia de outro vale. Nos topes dos morros ficava localizada a linha, picada ou travessa. A geografia determinava, assim, o tamanho de cada uma das comunidades que se estabeleciam (DREHER, 1999, p. 54).
Nessa picada, era organizada a vida da comunidade, onde se encontravam a igreja, a escola, o cemitério, a moradia do professor e do padre ou do pastor, bem como a casa comercial e o salão comunitário, onde ocorriam as festas. Com o objetivo de serem auto-suficientes, os pequenos proprietários de terra produziam o que podiam, desde milho, feijão, batata, arroz, mandioca e aimpim, frutas e hortaliças. Criavam gado, porcos, galinhas, ovelhas e gansos. Essa variedade possibilitava fartura à mesa (DREHER, 1999). A produção agrícola era escoada pela “venda”. Havia, ainda, outros estabelecimentos que forneciam serviços e produtos não-manufaturados pelos agricultores, como ferrarias, serrarias, moinhos, marcenarias, carpintarias, sapata ri as, funilarias e alfaiatarias, além do alambique, que produzia a cachaça. Os imigrantes eram bastante heterogêneos quanto às profissões, à origem e mesmo quanto ao nível cultural. Reuniram-se, em geral, respeitando suas afinidades e mantiveram, por isso, costumes trazidos da pátria-mãe, o que favoreceu seu isolamento. Sobre isso, Aurélio Porto escreve: Culpa nos cabe, e grande, desse isolamento secular que o alheiou, pelas dificuldades da língua, da nossa gente. Atiramo-los à mata impérvia, sem meios de comunicação, sem
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Marinês Andrea Kunz intercâmbios de qualquer espécie intelectual e moral, e mandamos que trabalhasse, exigindo-lhe somente fosse um ótimo agricultor (PORTO, 1996, p. 223).
Somente em 1846, São Leopoldo foi elevada à condição de município. As estradas que levavam às picadas eram precárias e somente transitáveis por homens e animais, o que dificultava muito o escoamento da produção excedente até o centro mais urbanizado. Apenas em 1852 é criada nessa cidade a navegação a vapor (AMADO, 2002). A partir de 1845, São Leopoldo se expandiu com a chegada de novos imigrantes e a melhoria do sistema de comunicações. Segundo J. Amado: A ‘sociedade igual’ que habitara a colônia até 1845 estava cindida em 1874. Quando a febre de terras começou a baixar e o governo passou a emitir regularmente (a partir de 1869), o novo panorama fundiário já estava cristalizado; era irreversível. [...] Em 1874, os verdadeiros donos de São Leopoldo eram os comerciantes. Eles tinham se transformado nos mais ricos, poderosos e influentes habitantes da ex-colônia (2002, p. 84).
Também é importante analisar o sistema escolar, que é igualmente fundamental quando se trata da história de Jacobina, L. Kreutz afirma que até “1850, os católicos teuto-brasileiros criaram 10 escolas e os evangélicos 14” (1994, p. 34). Enquanto isso, o Estado criou, em São Leopoldo, uma escola pública, cujo professor não falava português. Na província toda, havia, até 1850, apenas 51 escolas públicas. De 1850 a 1875, mais 40 escolas foram criadas entre teuto-brasileiros católicos. “De 1850 a 1875, estas escolas de língua alemã tiveram crescimento significativo. Em 1875 somavam um total de 99 escolas, sendo 50 católicas e 49 evangélicas, contra um total de 252 escolas públicas, das quais 85 não funcionavam por falta de professores” (KREUTZ, 1994, p. 35). Percebe-se, assim, a necessidade da iniciativa comunitária para a manutenção da formação escolar nas colônias, uma vez que o governo não organizou suficientemente o sistema escolar. Outro aspecto importante na história da colonização é a religião, tendo em vista que a maioria dos alemães eram luteranos e vieram para um país católico. Tiveram, a princípio, apenas a permissão de realizarem seus cultos em casas sem aspecto de templo, proibição que, sendo transgredida, implicava multa e punição. Os não-católicos também eram prejudicados em seus direitos políticos, pois somente cidadãos católicos podiam concorrer a cargos políticos. Os casamentos não-católicos também não eram considerados válidos, uma vez que somente a Igreja Católica exercia esse ofício. Apenas em setembro de 1861 (DREHER,
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2003), foi aprovada a lei que regulamentava os casamentos oficiados por ministros não-católicos e reconhecidos pelo Estado. Casamentos mistos também eram proibidos, de modo que filhos dessas uniões deveriam ser criados segundo a religião católica. Somente em 1889, com a Proclamação da República, os protestantes passaram a ter os mesmos direitos que os católicos, pois até então viviam na marginalidade (RAMBO, 2002). Entre 1824 e 1864, nenhuma instituição alemã enviou pastores ao Rio Grande do Sul, o que levou ao surgimento dos “pseudopastores”, ou seja, leigos que assumiam as atividades pastorais (DREHER, 2003). Esses pastores, no entanto, nem sempre eram respeitados, pois sendo considerados empregados, estavam sujeitos à demissão, uma vez que eram remunerados pelos membros da comunidade. Cada comunidade sustentava a si mesma e entre elas havia pouco contato, por inexistência de organização que integrasse os diversos núcleos. A situação dos pseudopastores foi regulamentada em 1863, quando o governo aprovou sua nomeação mediante uma ata de eleição realizada na comunidade em que ele iria atuar. Em 1864, na Europa, algumas entidades começaram a se preocupar com essa situação no Rio Grande do Sul. Por iniciativa do Conselho Superior Eclesiástico, foram enviados pastores, liderados por Hermann Borchard. Esses pastores fundaram, em 1868, um Sínodo, que perdurou até 1875. Só existia, então, uma Conferência Pastoral, que não resolvia o problema. Apenas no ano de 1886 foi criado o Sínodo Rio-grandense. As comunidades luteranas foram prejudicadas por uma série de fatores, entre os quais o caso mucker, o qual “[...] levou a que, na opinião pública brasileira, os evangélicos fossem identificados com os fanáticos do Ferrabraz” (DREHER, 2003, p. 54). Os católicos afirmavam que a causa da tragédia estava nos luteranos, aos quais era concedida a liberdade de ler a Bíblia em alemão. Os imigrantes católicos, por sua vez, não tiveram tantos problemas, embora a igreja também enfrentasse dificuldades e não atendesse devidamente os novos membros. O bispado de Porto Alegre só foi criado em 1848, dependendo até então do Rio de Janeiro (AMADO, 2002). Entre os poucos padres que atuaram aqui, até 1845, estão os jesuítas espanhóis. Como não falavam alemão, esses padres limitavam-se a fazer visitas, quando, então, realizavam batismos e casamentos, o que levava muitos a viverem em concubinato, antes de ser celebrada a união oficial. Somente em 1849 chegaram os primeiros padres. Até então (AMADO, 2002), a minoria católica da colônia (33,3%) conseguiu construir apenas três capelas. Mesmo sem padres, mantinham viva sua religião, por meio de orações e do ensino religioso realizado em casa. As associações e as escolas contavam com um ministro instituído na comunidade. Essa organização
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leiga sofreu grande choque com a vinda dos padres alemães ordenados, os quais condenavam a proximidade dos católicos com os luteranos, bem como a laicização dos ofícios religiosos. A partir desse retrospecto, percebe-se que as condições de vida – cultura, economia e religiosidade – no século XIX não eram favoráveis aos imigrantes, especialmente aos luteranos. Estes, além da marginalidade advinda do fato de serem imigrantes, sofriam, ainda, preconceito religioso no país oficialmente católico. Esse conjunto de fatores propiciou o surgimento do grupo de Jacobina, mas também foi o responsável por sua eliminação, pois não o aceitava, uma vez que não se enquadrava no ideal desejável. 3 A paixão de Jacobina A narrativa fílmica A paixão de Jacobina foi dirigida por Fábio Barreto e lançada, em 2002, no Festival de Cinema de Gramado, sem, no entanto, concorrer a nenhum prêmio. O filme é a adaptação para o cinema da consagrada obra Videiras de cristal, de Luiz Antônio de Assis Brasil, cuja primeira edição data de 1990. O diretor havia dirigido também a transposição do romance O quatrilho, de José Clemente Pozenato, para a grande tela, o qual concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro. As gravações causaram grande alvoroço na região, que se movimentou no sentido de auxiliar e participar do evento, já que a última película sobre os fatos surgira em 1979. Paralelamente, também foi filmado um documentário sobre o Vale do Sinos e a saga dos mucker, em que são apresentados descendentes de Jacobina Maurer. Esse documentário foi apresentado no cinema, antes do filme. Tudo isso reviveu o mito, provocando reflexões, além de causar grande expectativa no público da região, quanto à versão e à qualidade do filme. Esta narrativa fílmica diferencia-se da anterior por diferentes motivos, entre os quais se destaca a participação de atores “globais” nos papéis mais importantes, sendo que os habitantes da região tomaram parte apenas como figurantes. Sabe-se, pois, que os elementos extrafílmicos influenciam a recepção do filme. O enunciador fílmico5 situa o início das ações desde a infância de Jacobina, passando por sua adolescência, até o desfecho trágico, em 1874, de modo que o período de tempo narrado é bastante abrangente. Contudo, o primeiro aspecto significativo que salta aos olhos é o título, do qual se destaca o lexema “paixão”, que significa, de um lado, sentimento levado a alto grau de
5 Tratando-se de uma narrativa, analogamente ao texto narrativo literário em que há o narrador, o filme caracteriza-se pela presença da entidade enunciativa, ou seja, aquela que dá a conhecer os fatos e organiza, tal qual o regente de uma orquestra, as diferentes linguagens das quais o cinema se vale.
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intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão, ou seja, próximo da obsessão, do fanatismo e da cegueira; de outro, remete ao martírio de Jesus Cristo, tendo em vista que Jacobina é figurativizada como Cristo-mulher. Ambos os significados são construídos ao longo da narrativa. Já na primeira cena, a idéia começa a ser construída, quando a mãe de Jacobina não permite que os filhos saciem sua fome com o feijão, encontrado em uma casa destruída e abandonada. Nessa cena, o plano inicial, em que o enunciador fílmico mostra os pés descalços de Jacobina e de seus irmãos, durante a jornada pelo mato, com a mãe (Figura 1), merece destaque. Ficam evidentes, assim, as privações e os sacrifícios aos quais Jacobina estava habituada, bem como a educação severa que moldou seu caráter obstinado. As palavras da mãe não deixam díúvidas, ao afirmar que não quer ver chorando seus filhos, os quais devem se acostumar a seguir os princípios. Se, por um lado, essa estratégia imagética funciona como argumento que depõe a favor da protagonista, caracterizando-a como merecedora de respeito e de credibilidade, revela, por outro, uma determinação que, muitas vezes, assusta por sua intensidade e irredutibilidade. Elemento circular na narrativa aparece também na cena. Jacobina pergunta por que razão há guerra, ao que a mãe simplesmente responde: “Sempre foi assim e sempre será assim”. No final do conflito, Elisabeth Carolina igualmente pergunta: “Por quê? Por quê?”. O delegado Lehn responde: “Não tem por quê. Sempre foi assim. Sempre será”. Essas situações revelam que a humanidade tende a criar conflitos e cometer injustiças de toda ordem, para os quais não há explicação racional, como no caso do massacre dos mucker. Elemento importante da cena é, também, a cruz que a menina recolhe no local e leva consigo na vida adulta. Tal apego à cruz revela a intensa religiosidade da protagonista já na infância, ou seja, ela provém de um lar em que os valores religiosos são cultivados e seguidos à risca. Apesar da fome, em meio à fuga durante a guerra do Paraguai, Jacobina demora-se em observar a cruz, provocando o chamado da mãe, momento em que resolve levar o objeto consigo. É por meio do ponto de vista da menina que o enunciador fílmico mostra o objeto ao espectador, enfatizando a relação da protagonista com o crucifixo (Figura 2). A narrativa fílmica mostra Jacobina doente já na adolescência. Assim, no percurso a caminho da casa de Maurer, que já então era curandeiro, antes do casamento – contrariamente à versão histórica dos fatos –, a mãe proíbe Jacobina de comentar com os outros a visita, pois o Pastor Boeber condena tais consultas, o que revela a oposição radical da igreja protestante a essa prática médica. Fica evidente que a oposição do pastor vem de longa data, o que é sintomático nessa narrativa, uma vez que ele
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é proposto como um dos articuladores mais ferrenhos da tragédia mucker. A moça, que exibe olhar perdido e anda de modo desajeitado, considera o Ferrabrás lindo e, com uma espécie de premonição, sente que já esteve no local, sensação que João Jorge afirma também ter sentido. Isso é um indício do destino dessas personagens, que começa a ser preparado após o parto da filha, quando Jacobina tem visões de incêndios e ataques de tropas do exército, e quando ouve Jesus dizer que lhe reserva uma grande missão. Ao longo da história, esse poder premonitório de Jacobina é evidenciado, sendo que ela percebe antecipadamente divrsos fatos, como a relação de Elisabeth e do delegado Lehn,6 por exemplo. A partir de então, Jacobina mostra-se mais alienada do mundo em que vive, comportamento que tende a tornar-se mais intenso depois que ela tem a visão de Cristo, que lhe confere a missão de levar Sua palavra a todos, nomeando-a Seu anjo. Ela se despe e se oferece a Jesus, passando a usar somente uma túnica branca e a manter sempre solto o longo cabelo loiro, como o simulacro de uma imagem angelical estereotipada – loira e de olhos azuis –, bem como do próprio Jesus. Para ser pura e somente espírito, ela renuncia aos prazeres da carne, revelando pureza e abnegação. Na medida em que se identifica com a obsessão, a paixão passa a revelar-se quando, diante de todas as contrariedades – assassinatos, expulsão da igreja, preconceito, iminência da morte –, Jacobina se mantém firme em seus propósitos e inabalável em sua missão. Tal obstinação é evidenciada pelo delegado, que, ao observar as tropas do exército subirem ao Ferrabrás, comenta que a batalha não será tão simples quanto parece, pois muitos dos soldados estavam preocupados mais com sua vida do que com a causa e que “Não sabem o que são fanáticos alemães”. Além disso, durante conversa com o primo Franz, que a alerta quanto ao perigo que correm, ela afirma já saber que eles a destruirão. Por isso, também alerta seus seguidores, na véspera do ataque final, e deixa livres os que porventura quiserem ir embora. No entanto, a imagem do grupo, em que eles se dão as mãos em sinal de apoio irrestrito, evidencia, do mesmo modo, a irredutibilidade diante das decisões tomadas, o que tem como conseqüência o massacre de todos os mucker. No texto introdutório ao filme, a relação de Jacobina com Jesus Cristo é anunciada: “história de uma paranormal que incorpora Jesus Cristo, através de trechos da bíblia”, ao mesmo tempo em que não deixa dúvidas quanto à mediunidade da pro6 Neste filme, o inspetor J. Lehn é representado como delegado, e L. Schreiner e C. Spindler não aparecem. Além disso, ele assume papel mediador entre as autoridades e o grupo de Jacobina, contrariamente ao que a história narra.
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tagonista. A idéia de Cristo-mulher é reforçada pelo citado trecho bíblico em que Jesus incita seus discípulos a levarem seus ensinamentos ao povo, ou seja, Mateus 10. 34-38: “Não penseis que vim trazer paz à terra, mas a espada [...] Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim [...] E quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim”. Jesus, no texto bíblico, declara que sua vinda provocará a ira entre as pessoas, pois os que crerem ficarão contra os descrentes, levando, inclusive, à separação dos membros da mesma família. Sua intenção é preparar os discípulos para as conseqüências a que conduzirão seus ensinamentos. Entretanto, na narrativa fílmica, esse trecho passa a ter uma conotação mais agressiva, ou seja, não serve apenas como advertência quanto aos sacrifícios que seus adeptos teriam que suportar, mas assume também nítido tom de ameaça, por parte de Jacobina, àqueles que a atacam. Isso fica mais evidente no fragmento em que, do alto da figueira, ela recita esses versículos e quando pede a Deus força para vencer seus inimigos. A estratégia narrativa que preside a essa construção imagética conota valores negativos, como vingança e violência. Ao longo da narrativa, inúmeros signos estabelecem semelhanças entre Jacobina e Jesus. Quanto ao aspecto físico, além dos cabelos longos e soltos, dos pés descalços e da túnica, Jacobina passa a usar, em vários momentos, uma coroa, que, ao invés de ser de espinhos, é de flores. Ela também recita trechos bíblicos e faz curas milagrosas, como a de Robinson, cujas chagas ela beija e cujas muletas ela recolhe, forçando-o a andar (Figura 3). Quando retorna da Santa Casa de Porto Alegre, Jacobina chega a Sapiranga montada em um cavalo, com um manto branco na cabeça e uma coroa de flores, momento em que o Delegado e o médico comentam sua semelhança com Jesus, uma vez que seu retorno evoca a entrada de Cristo em Jerusalém, evento comemorado no Domingo de Ramos. Tal qual Jesus, Jacobina nomeou doze discípulos e praticou, também, o ósculo, mas beija seus apóstolos na boca, sempre com os olhos arregalados, como um ritual sagrado. Entre eles, como na Bíblia, não deixou de haver um Judas, que delatou as atividades no Ferrabrás: o comerciante Nadler. Após descoberto durante o velório de um dos adeptos de Jacobina que fora assassinado, o comerciante paga a traição com a vida. Apesar de ter consciência de que o fim só poderia ser evitado com a dissolução do movimento e a rendição, Jacobina não recua. Quando seu primo Franz tenta dissuadi-la de seus propósitos, ela responde que não pode fugir a seu destino, ou seja, a sua paixão, quando será purificada, juntamente com todos os que a apoiarem e com ela perecerem. Ela age à semelhança de Jesus, que convoca os discípulos a partirem com ele para Jerusalém, prometendo vida a quem se sacrificar por ele:
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Marinês Andrea Kunz Se alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrá-la-á (Mateus 16: 24-25).
Jacobina, então, anuncia que, por ocasião de Pentecostes, o sinal da purificação aparecerá no céu, o que de fato se realiza por meio da queda de um meteorito. A partir daí, a confiança das pessoas se renova e o movimento ganha nova força. Durante um culto, ela chega a perguntar ao público se alguém ali duvida de que Jesus fala por meio dela. Como Jacobina previra, a destruição se dá pelo fogo, o que converge para uma interpretação apocalíptica do fogo de Pentecostes. A paixão de Jacobina se consuma, então, através de sua morte no incêndio, ao lado de seu grande amor, Franz. A expressão que ostenta, pode-se dizer fanática, de quase prazer, representa a aceitação de seu destino e a convicção na salvação de sua alma. No entanto, a ambigüidade constitui a principal característica de Jacobina proposta pelo filme, pois, se por um lado sua aparência se mostra angelical, sobretudo quando retratada em meio à natureza, rodeada de borboletas, por outro é também sensual (Figura 4). A sensualidade já transparece na cena em que, nua, ela aceita ser o anjo de Jesus. Além disso, o pastor Boeber aponta para esse aspecto e, ao vê-la em seu novo traje, comenta que ela parece uma prostituta, ao asseverar: “Não basta ser honesta. É necessário parecer honesta.” Essa observação revela a primazia do parecer sobre o ser. Por fim, durante um culto, o Pastor Boeber adverte a comunidade, ao enfatizar que os mucker tentam enganar as pessoas com “as malhas da sensualidade”. Por meio do olhar de Franz, destaca-se a sensualidade de Jacobina, quando a chuva, durante o velório de um de seus adeptos, molha sua túnica, deixando transparecer seu corpo. Nesse momento, Jacobina se deita voluptuosamente sobre o caixão rodeado pelos homens, enquanto as mulheres permanecem mais afastadas, atrás do grupo (Figura 5). Essa atitude de Jacobina é totalmente inverossímil se considerarmos o severo contexto moral e religioso da época em que os fatos ocorrem. Igualmente importante na configuração da personagem é a visita de Jacobina a seu irmão Francisco. Além de não freqüentar seus cultos, Francisco é duro com a irmã, ao afirmar: “Jacobina, eu te conheço, eu sou teu irmão. Eu cresci contigo, sei das tuas loucuras, dos teus delírios. Tu podes enganar aos outros, a mim não. [...] Andas te comparando com Jesus Cristo? Não tens senso de ridículo.” Também declara que é sorte a outra irmã morar longe, o que exclui da narrativa o cunhado Klein, acusado, muitas vezes, de ser o mentor intelectual de Jacobina. Tal descrédito e crítica por parte do irmão, criado nas mes-
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mas condições e com os mesmos valores, depõem contra Jacobina e sugerem que seja falsa. No início, Jacobina é representada como bondosa, pois acolhe os menos privilegiados que chegam, em busca de auxílio, ao Ferrabrás, onde todos vivem em harmonia, trabalhando e compartilhando tudo. Todas as decisões competem a ela, não sendo questionada nem mesmo pelo marido, que é submisso às vontades da esposa. Apenas quando Franz se une ao grupo, desgostoso, Maurer se retira. Assim, ela assume o papel de líder capaz do grupo, inclusive dos homens. Além de Jacobina, também as autoridades policiais, políticas e religiosas são objeto de análise do enunciador fílmico. As reuniões desse grupo se dão na casa do Pastor Boeber, organizador da resistência ao movimento. O delegado Lehn, ao contrário, tenta aplacar os ânimos de ambos os lados, porque sua amante, cunhada de Jacobina, pertence ao grupo mucker. Já os políticos estão mais preocupados com as conseqüências do conflito para seus partidos: liberais e conservadores. Os primeiros afirmam que a origem de toda essa situação é o abandono dos colonos por parte dos conservadores. Já o representante dos conservadores argumenta, em um primeiro momento, que a morte de Jacobina não seria positiva para a região, uma vez que a morte muitas vezes reforça o mito. Depois de Pentecostes, contudo, sugere o fim da seita e esclarece que muda de opinião conforme se alteram as contingências dos fatos, o que desacredita a autoridade diante do espectador. Pastor Boeber se encarrega de liderar a elaboração de um abaixo-assinado, enquanto os outros resolvem prender parte dos adeptos e enviar Jacobina para a Santa Casa, em Porto Alegre. Ao final, uma das autoridades sugere a morte de Jacobina, para acabar com os problemas, pois a safra agrícola e o progresso da região poderiam ser prejudicados. Com tais cenas, o enunciador fílmico critica o sistema religioso, político e econômico, mostrando o descaso das autoridades com o bem-estar das pessoas envolvidas. Evidencia-se que estavam mais preocupadas com a repercussão dos fatos, com suas carreiras e os eventuais prejuízos econômicos do que com o julgamento correto das ocorrências e a adoção das medidas adequadas. Isso é reforçado pela cena em que, na Santa Casa, Jacobina declara à enfermeira que o Estado e a Igreja é que desejam sua permanência no hospital, não Deus. Assim, são apontadas a falta de caráter, a manutenção dos interesses próprios e a desonestidade. As autoridades se caracterizam pela mentira, uma vez que o parecer – legalidade e honestidade – não confere com o ser. O enunciador fílmico também não se furta de revelar como a comunidade encara e avalia Jacobina e seus adeptos, por exemplo, na cena em que crianças cantam, em cantiga de roda,
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que vão fazer lingüiça de Jacobina.7 Paralelamente, o texto revela, ainda, que alguns dos crimes não foram cometidos pelos mucker, mas por desordeiros que se aproveitaram da situação. É relatado, por exemplo, o assassinato de um adepto mucker e de seus cavalos, pelo qual, no entanto, os membros de Jacobina foram responsabilizados. O fato de que, inicialmente, Jacobina vivia pacificamente e, inclusive, mandava que as armas fossem enterradas, é patente na narrativa. No entanto, com o aumento da violência, os mucker passam a reagir, sendo, então, caracterizados como vingativos e capazes de crimes bárbaros, pois atacam seus próprios dissidentes mucker, como o casal Kassel. Também atentam contra a vida do Delegado Lehn e de sua esposa, mas somente ela falece. Tudo isso se dá sob o comando de Robinson, o fiel protetor de Jacobina, que a acompanha onde quer que vá. O episódio que envolve a morte do comerciante Nadler – pelo corte da aorta e a retirada do sangue –, atribuída aos mucker e caracterizada pelo médico como um ritual primitivo, reveste-se de extrema violência e requintes de crueldade. Como nada existe nos documentos que se refira a práticas desse tipo, essa passagem, que tem como objetivo primeiro conferir relevo aos mucker, acaba por engendrar sérias conseqüências no tocante aos valores negativos atribuídos aos mucker. Diferenciando-a das pessoas comuns, a narrativa fílmica, afinal, propõe a imagem de Jacobina cercada por uma aura mística. Privilegiada por Jesus Cristo e agraciada com um dom divino, já que o Messias fala por meio dela, para que ela cumpra a missão de levar Sua palavra a todas as pessoas, Jacobina assume uma expressão que conota permanentemente transe, como se estivesse incorporada por um espírito. Incompreendida pela sociedade, ela é morta, por meio do fogo, em conformidade com o que antevia, em seu transe apocalíptico, contrariamente aos documentos históricos. Considerações finais A narrativa fílmica A paixão de Jacobina é uma obra de ficção e, em vista disso, não tem qualquer compromisso com os dados históricos. Representa, pois, Jacobina Maurer por meio do tema da paixão, ao tratar a personagem histórica como uma representante de Jesus Cristo, conferindo-lhe uma aura mística. É possível, portanto, que possa arriscar-se a enveredar por opções semânticas que levam ao místico, sem se preocupar tanto
7 Miguel Noé, ao registrar os relatos de seu pai, faz menção a caso semelhante: “A agitação já havia atingido as crianças. Elas ouviam tudo de seus pais. Quando elas eram portadoras de uma faca, diziam orgulhosas: ‘– Com esta faca queremos fazer lingüiça de Jacobina!’” (NOE, apud DOMINGUES, 1977, p. 391).
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com a exatidão dos fatos, ou seja, sem se prender ao extrato histórico, o que não implica, contudo, adesão por parte do público. Nessa perspectiva, distancia-se da história e da própria ficção literária que, a priori, lhe serve de base. Aproveita, para esse fim, elementos da história, mas em uma leitura nova e, por vezes, inverossímil, como no caso da cena em que Jacobina se deita sensualmente sobre o caixão do mucker esquartejado. Da mesma forma, na cena em que festejam a vitória sobre as tropas do exército, Robinson traz Jacobina sentada sobre seus ombros. Além disso, levando em conta a educação rígida na família de Jacobina e os costumes do colono alemão, também não é verossímil a denúncia da paixão de Jacobina por seu primo, no dia do casamento, na frente da noiva e dos demais convidados. Introduz personagens inusitados, como o primo Franz, o qual não faz parte da história de Jacobina Maurer, tampouco é personagem da narrativa de Assis Brasil. Outros sequer são mencionados, como, por exemplo, as autoridades policiais, que ficam reduzidas à imagem do delegado Lehn. Também o número de filhos do casal Maurer não condiz com a realidade, já que na narrativa teve apenas uma. Além disso, o filme informa que Maurer já era curandeiro antes do casamento, o que não procede. Da mesma forma, instaura a imagem pouco convincente da colônia, por meio da caracterização dos ambientes e dos colonos alemães nessa narrativa. O espectador percebe os núcleos urbanos como cenários, dada a perfeição de tudo: flores, canteiros, caminhos. Já os colonos, em geral, usam roupas aparentemente novas, confeccionadas com bons tecidos, além de seus cabelos estarem sempre bem penteados. Exemplo claro disso é Maurer, que atende os doentes e cultiva as plantas medicinais impecavelmente vestido, como se fosse a uma festa. Contudo, na realidade, os colonos só usavam, e ainda usam, roupas melhores aos domingos, quando vão à igreja ou a uma festa – a roupa domingueira. No dia-a-dia, o agricultor veste-se de modo simples, com roupas muitas vezes já puídas, e usa chapéus de palha, para proteger-se do sol e da chuva. Na cena em que os desafetos dos mucker fazem, sem muita convicção, uma manifestação em frente à delegacia, usam madeiras bem serradas e instrumentos agrícolas ainda novos. Nesse sentido, a narrativa fílmica peca quanto ao realismo da encenação, pois o artificialismo não convence o espectador que conhece o contexto. Outro exemplo do artificialismo da narrativa é a cena em que Carolina entra na sapataria para verificar se a encomenda estava pronta, e o sapateiro mostra a marca do sapato – Azaléia. Essa cena não se justifica pela trama narrativa, constituindo fraco elo entre a ações, servido apenas para dar evidência a um dos patrocinadores do filme.
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Por fim, a narrativa fílmica renovou o interesse pela história nunca esquecida de Jacobina. Embora a represente com pendores místicos, também lança o questionamento a respeito das autoridades policiais, civis e religiosas, bem como sobre a própria população. Enfim, esta é uma entre as tantas Jacobinas representadas na história, na literatura e no cinema. É, talvez, um lampejo a iluminar a imagem perdida dessa personagem ao mesmo tempo polêmica e encantadora... Referências AMADO, Janaína. A revolta dos mucker. São Leopoldo: Unisinos, 2002. BARRETO, Fábio. A paixão de Jacobina. 2002. CEM anos de germanidade no R.G.S. – 1824-1924. Tradução de Arthur Blásio Rambo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1999. DICKIE, Maria Amélia Schmidt. Afetos e circunstâncias. São Paulo: USP, 1996. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. _______. A irmã da bruxa: liderança religiosa feminina e perigo. Horizontes antropológicos – Religião, Porto Alegre, Ed. da UFRGS, ano 4, n. 8, jun 1998, p. 72-86. DREHER, Martin Norberto. O movimento Mucker na visão de dois pastores evangélicos. In: Peregrinação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. _______. O imigrante alemão e sua utopia. Estudos Leopoldenses – Série história. São Leopoldo, Unisinos, v. 2, n. 2, 1998, p. 131-147. _______. O desenvolvimento econômico do Vale do Rio dos Sinos. In: Estudos Leopoldenses – Série história. São Leopoldo, Unisinos, v. 3, n. 2, 1999, p. 49-70. _______. Igreja e germanidade. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2003. DOMINGUES, Moacyr. A nova face dos muckers. São Leopoldo: Rotermund, 1977. KREUTZ, Lúcio. A escola teuto-brasileira católica e a nacionalização do ensino. In: _______. Nacionalização e imigração alemã. São Leopoldo: Unisinos, 1994. _______. O imigrante teuto-brasileiro católico e sua utopia. Estudos Leopoldenses – Série história, São Leopoldo, Unisinos, v. 3, n. 2, 1999, p. 70-85. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Traduzido por Emery Ruas. Porto Alegre: Globo, 1969. v. 1. _______. O milenarismo Mucker revisitado. In: DREHER, Martin N. (Org.) Populações rio-grandenses e modelos de igreja. Porto Alegre: EST; São Leopoldo: Sinodal, 1998.
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ANEXOS
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Figura 2
Figura 3
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MarinĂŞs Andrea Kunz
Figura 4
Figura 5
Marinês Andrea Kunz (1970) é natural de Montenegro/RS. Possui graduação em Licenciatura em Letras – Português/Alemão e mestrado em Ciências da Comunicação, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É doutora em Lingüística e Letras, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professora titular e coordenadora do Curso de Letras do Centro Universitário Feevale. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária. Atua principalmente nos seguintes temas: semiótica, ideologia, discurso, história, ficção e narrativa fílmica. Algumas publicações da autora KUNZ, Marinês Andrea. A hora da estrela: espelho contra espelho. In: SARAIVA, Juracy. Narrativas verbais e visuais: leituras refletidas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 43-65. KUNZ, Marinês Andrea; MARTINS, Rosemari Lorenz (Orgs.). Leitura: Refle-
xões teóricas e experiências possíveis. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2007. KUNZ, Marinês Andrea. A leitura do texto literário. In: MOURA, Eliana Perez
Gonçalves de (Org.). Educação, cultura e trabalho, Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2006. p. 79-88. KUNZ, Marinês Andrea. Mosaico discursivo: a representação de Jacobi-
na Maurer em textos históricos, literários e fílmicos. Novo Hamburgo: Editora Feevale, 2006.
N. 90 Os índios e a História Colonial: lendo Cristina Pompa e Regina Almeida – Profa. Dra. Maria
Cristina Bohn Martins N. 91 Subjetividade moderna: possibilidades e limites para o cristianismo – Prof. Dr. Franklin Leo-
poldo e Silva N. 92 Saberes populares produzidos numa escola de comunidade de catadores: um estudo na
perspectiva da Etnomatemática – Daiane Martins Bocasanta N. 93 A religião na sociedade dosindivíduos: transformações no campo religioso brasileiro – Prof.
Dr. Carlos Alberto Steil N. 94 Movimento sindical: desafios e perspectivas para os próximos anos – MS Cesar Sanson N. 95 De volta para o futuro: os precursores da nanotecnociência – Prof. Dr. Peter A. Schulz N. 96 Vianna Moog como intérprete do Brasil – MS Enildo de Moura Carvalho