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Revista do Instituto Humanitas Unisinos

Nº 421 - Ano XIII - 04/06/2013 - ISSN 1981-8769

Arie Lewin:

E MAIS

A arte de possibilitar a auto-organização

A administração e a gestão contemporâneas. Racionalidades e desafios

Thommaz Wood Jr: Pensamento crítico como alternativa para fugir da instrumentalização

José Ricardo Ayres: Em busca da totalidade de sentido das experiências de saúde e doença

Yeda Swirski de Souza:

A relação entre as novas racionalidades, a cultura e a sociedade

Luiz Gustavo Cunha Barbato: Segurança da informação e a privacidade na internet

Juliana Durayski: Tomas um mate? A cultura do consumo do chimarrão


Editorial

A administração e a gestão contemporâneas. Racionalidades e desafios

O

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s processos da gestão contemporânea e suas respectivas racionalidades estão em debate na edição da IHU On-Line na semana em que a Unisinos lança a sua Escola de Gestão e Negócios. Participam da discussão, Arie Lewin, professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, Thomaz Wood Jr., professor titular da Fundação Getúlio Vargas – SP e coordenador do GV Pesquisa, Carlos Eduardo Lessa Brandão, conselheiro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, Yeda Swirski de Souza, decana da Escola de Gestão e Negócios da Unisinos, Patrícia Martins Fagundes Cabral, coordenadora do MBA em Gestão Empresarial – Unisinos POA e Patrícia Kunrath Silva, mestre e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Completam a edição mais as entrevistas com Luiz Astorga, tradutor

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Instituto Humanitas Unisinos Endereço: Av. Unisinos, 950, São Leopoldo/RS. CEP: 93022-000 Telefone: 51 3591 1122 – ramal 4128. E-mail: humanitas@unisinos.br. Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).

do livro Questões disputadas sobre a alma (São Paulo: É Realizações, 2013), de Tomás de Aquino, Luiz Gustavo Cunha Barbato, professor na Unisinos, sobre segurança da informação e a privacidade na internet, José Ricardo Ayres, professor na USP, acerca das crises das práticas de saúde e Juliana Durayski, professora na Unisinos, sobre a cultura do chimarrão. Também podem ser lidas uma reportagem sobre um gestor que aprendeu a administrar o seu negócio na “escola da vida”, e o artigo “Gigantesco retrocesso. Governo cede a ruralistas e ‘põe fim’ à demarcação de terras indígenas”, que apresenta uma síntese da recente Análise de Conjuntura publicada pelo sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A todas e a todos uma ótima semana e uma excelente leitura!

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IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU ISSN 1981-8769. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas – Residência Conceição.

REDAÇÃO Diretor de redação: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br), Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br) e Ricardo Machado MTB 15.598 (ricardom@unisinos.br). Revisão: Isaque Correa (icorrea@unisinos.br).

Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Agência Experimental de Comunicação da Unisinos – Agexcom. Editoração: Rafael Tarcísio Forneck Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Patricia Fachin, Luana Nyland, Natália Scholz, Wagner Altes e Mariana Staudt


TEMA DE CAPA | Entrevistas 5

Thomaz Wood Jr.: Pensamento crítico como alternativa para fugir da instrumentalização

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Arie Lewin: A arte de possibilitar a auto-organização

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Carlos Eduardo Lessa Brandão: Transparência e responsabilidade na governança corporativa

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Yeda Swirski de Souza: A relação entre as novas racionalidades, a cultura e a sociedade

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Patrícia Martins Fagundes Cabral: O desafio da autonomia como um valor

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Patrícia Kunrath Silva: O olhar antropológico sobre as construções simbólicas na gestão contemporânea

Índice

LEIA NESTA EDIÇÃO

DESTAQUES DA SEMANA 23

Reportagem da semana: O talento e a vontade de aprender

25

Livro da Semana

25

Luiz Astorga: A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla

30

Artigo da Semana

30

Cesar Sanson: Gigantesco retrocesso. Governo cede a ruralistas e “põe fim” à demarcação de terras indígenas

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Destaques On-Line

IHU EM REVISTA Agenda de eventos

36

Luiz Gustavo Cunha Barbato: Segurança da informação e a privacidade na internet

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José Ricardo Ayres: Em busca da totalidade de sentido das experiências de saúde e doença

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Juliana Durayski: Tomas um mate? A cultura do consumo do chimarrão

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Publicação em destaque

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Retrovisor

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Tema de Capa

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Destaques da Semana

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IHU em Revista SÃO LEOPOLDO, 00 DE XXX DE 0000 | EDIÇÃO 000


Para professor Thomaz Wood Jr., a consciência dos gestores sobre o próprio trabalho é fundamental para entender que interesses estão defendendo Por Ricardo Machado

“U

m gestor com grande capacidade de realização, mas sem pensamento crítico, pode virar um pistoleiro de aluguel, correndo o risco de servir interesses escusos”, considera o professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas – FGV, Thomaz Wood Jr, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Na reflexão de Thommaz, a contemporaneidade exige uma visada mais ampla dos gestores, sobretudo porque os consumidores estão mais conscientes e buscam mais informações sobre as condições de trabalho dos empregados das companhias e dos fornecedores. “Ter uma relação conflituosa com a comunidade pode impedir planos de expansão. A Nike, há alguns anos, a Zara e a Apple recentemente tiveram problemas por causa de más condições de trabalho em fornecedores. O caso ocorrido em Bangladesh, com mais de mil vítimas fatais, serve de lembrete dramático para as empresas sobre sua responsabilidade social na condução dos negócios. Para esse e outros casos, não há

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solução simples, mas não se pode ignorar o problema”, sustenta. O professor também pondera o discurso de que as “as pessoas são a verdadeira fonte de vantagem competitiva”, considerando que nem sempre tal afirmativa é verdadeira e que há casos em que os modelos de negócios e gestão são menos dependentes dos empregados das empresas. Thomaz Wood Jr. é graduado em Engenharia Química pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, e realizou mestrado e doutorado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas – FGV/SP. É professor titular da FGV/SP, onde coordena o GV Pesquisa. Tem experiência na área de Administração, com ênfase em Estratégia e Planejamento, atuando principalmente nos seguintes temas: mudança organizacional, identidade organizacional e indústrias criativas. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre os temas que estuda. Confira a entrevista.

Há dois fenômenos paralelos, que aconteceram em função das mudanças econômicas e institucionais das últimas décadas no Brasil. Um fenômeno é a mudança da chamada “ecologia organizacional”. Antes da abertura econômica e das mudanças da década de 1990, nossa economia era dominada por três tipos de empresas: as estatais, as multinacionais estrangeiras e as empresas privadas nacionais. De lá para cá, privatizações, fusões, aquisições, reestruturações e terceirizações transforma-

ram este quadro. Algumas cadeias produtivas mudaram radicalmente. Surgiram as organizações sociais. As empresas de serviços ganharam espaço. O empreendedorismo também ganhou espaço. As organizações adotaram novos modelos de gestão, com estruturas mais flexíveis. Enfim, a ecologia empresarial mudou bastante. O outro fenômeno, que é decorrência deste primeiro, é o que chamamos de hibridização. Veja, por exemplo, o caso dos grandes bancos

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IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de “pós-globalização” no cenário brasileiro? O que mudou na cultura organizacional das empresas? Thomaz Wood Jr. – A questão é muito interessante, porém traz um desafio, porque o Brasil apresenta grande diversidade em termos de traços e dinâmicas culturais. Em nosso país, como em muitos outros, fazer generalizações sobre cultura organizacional é muito arriscado. Mas, vamos correr alguns riscos.

Tema de Capa

Pensamento crítico como alternativa para fugir da instrumentalização

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privados que operam no Brasil. A indústria se consolidou por meio de sucessivos processos de fusão e aquisição. Hoje, se tiramos um retrato de uma dessas organizações, identificaremos “fragmentos” de todas as partes que a constituíram, misturados e embaralhados: sistemas, processos, pessoas, estilos de gestão etc. O resultado é caótico. E, como faltam conhecimentos e competências para lidar com este nível de complexidade e diversidade, a situação gera impactos negativos em termos de clima organizacional, produtividade, qualidade dos serviços, qualidade de vida no trabalho e muitos outros fatores. Obviamente, isso não aconteceu somente com os bancos. Muitas empresas, em muitos setores, apresentam este quadro. Em termos de traços culturais, o que observamos é que, mesmo com as mudanças na ecologia organizacional e com os processos de hibridização, alguns traços tradicionais da cultura organizacional brasileira se mantiveram, tais como a alta distância do poder, o personalismo, o formalismo, a postura de espectador e o foco no curto prazo. Entretanto, ganharam espaço a orientação para resultados e a ênfase no planejamento. Também na dimensão cultural, temos forte presença de híbridos, com a convivência, eventualmente em um mesmo ambiente organizacional, de características diferentes e frequentemente conflitantes. E não é fácil ou trivial lidar com esta realidade. IHU On-Line – Das mudanças organizacionais que o senhor percebe na gestão contemporânea, quais estão relacionadas às novas tecnologias? Thomaz Wood Jr. – Penso que as mudanças nas organizações são fruto de diversos vetores, que frequentemente atuam juntos: mudanças nos sistema de regulação, aumento da competição, mudanças demográficas ou no perfil dos consumidores, pressões de organizações sociais e de outros grupos de interesse e, naturalmente, pressões por mudanças vindas de grupos dentro da própria organização. A tecnologia, apesar de ocupar enorme espaço na mídia e no

imaginário popular, é apenas um vetor que se soma e interage com os demais citados. Naturalmente, em algumas indústrias as mudanças tecnológicas tem papel importante na geração de rupturas. Veja o que ocorreu na indústria fonográfica e que está em curso na mídia e na indústria editorial. Em outros casos, de indústrias mais tradicionais, o efeito é menor, podendo a tecnologia, se bem empregada, facilitar novos negócios, aumentar e eficiência de processos e elevar a produtividade. Toda empresa precisa estar atenta às oportunidades e riscos oferecidos pela evolução tecnológica, seja a tecnologia relacionada à informática, às possibilidades de automação ou à racionalização de processos, à biotecnologia ou às novas tecnologias associadas à questão da sustentabilidade. Porém, é preciso evitar transformar a tecnologia em fetiche. Penso que é preciso vê-la no contexto mais amplo dos sistemas sociotécnicos que compõem as organizações. Em uma pesquisa realizada há alguns anos, sobre a implantação de sistemas integrados de gestão, verificamos que as chamadas razões substantivas para implantação (o que de fato poderia agregar valor para as empresas) dividiam espaço com razões mais prosaicas, tais como a tendência das empresas seguirem umas às outras (se o meu concorrente implantou, então eu também preciso implantar) e razões “políticas” (como o interesse do diretor de tecnologia de patrocinar um grande projeto e, assim, ganhar espaço na empresa). Além disso, todas as decisões e trabalhos desses projetos ficavam envolvidos em um cenário irrealista de ficção científica. Naturalmente, as frustrações, os atrasos e os prejuízos foram, em muitos projetos, consideráveis. IHU On-Line – Em que aspectos as tecnologias impactam nas racionalidades da gestão? Thomaz Wood Jr. – As organizações são, em tese, a expressão do uso racional de meios e recursos, uma forma de atingir os maiores resultados possíveis com o menor esforço possível. Este é o principio de racionalidade

que permeia a existência de qualquer empresa. O que vem mudando, pouco a pouco, é a forma de ver e medir resultados. A perspectiva tradicional focava essencialmente resultados financeiros: o lucro econômico, o valor das ações etc. Esta perspectiva vem se sofisticando com a agregação de indicadores financeiros mais precisos e mais úteis para a gestão do desempenho da empresa. No entanto, o mais importante é que uma nova perspectiva vem ganhando espaço: uma perspectiva mais ampla, que continua considerando a dimensão financeira, porém agrega também os resultados relacionados a outros grupos de interesse: os clientes, as comunidades que sofrem impacto da empresa, e os funcionários da própria empresa e de seus fornecedores. Além disso, esta nova perspectiva tende a olhar para horizontes maiores de tempo, evitando a armadilha de gerar resultados de curto prazo e comprometer o futuro. Esta é uma grande mudança que está em curso e que muda bastante a forma de perceber e conduzir as atividades empresariais. Note que esta mudança não está ocorrendo devido a uma visão idealista ou à generosidade dos executivos e empresários, mas em função de mudanças sociais e econômicas maiores. Hoje, ter o nome entre as campeãs de reclamações no Procom prejudica os negócios da empresa e desvaloriza sua marca. Ter uma relação conflituosa com a comunidade pode impedir planos de expansão. A Nike, há alguns anos, a Zara e a Apple recentemente tiveram problemas por causa de más condições de trabalho em fornecedores. O caso ocorrido em Bangladesh, com mais de mil vítimas fatais, serve de lembrete dramático para as empresas sobre sua responsabilidade social na condução dos negócios. Para esse e outros casos, não há solução simples, mas não se pode ignorar o problema. Quanto à tecnologia, em termos de impacto nas “racionalidades da gestão”, o papel não me parece tão relevante quanto o desta outra mudança comentada. De fato, ao considerar o impacto da tecnologia, fica-se diante de um paradoxo curio-

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IHU On-Line – Como funciona a relação interpessoal na gestão contemporânea? Quais são os avanços e os limites? Thomaz Wood Jr. – Acredito que as mudanças das últimas décadas trouxeram ganhos em termos de vida profissional e relações interpessoais no trabalho, mas também impuseram uma lógica desafiadora para os indivíduos. Vejamos primeiramente os ganhos. Creio que foram criadas as condições para o que alguns teóricos chamam de carreiras sem fronteiras, com a possibilidade de maior mobilidade entre funções, áreas, especialidades, empresas e até países. Muitos profissionais hoje são capazes de reinventar suas carreiras. Tenho muitos alunos, com 30 a 40 anos de idade, migrando de carreiras técnicas para carreiras administrativas, saindo de empresas para montar seus negócios próprios e até trocando a vida executiva pela vida acadêmica. Além disso, ambientes organizacionais mais abertos, com maior transparência e comunicação mais fluida, fazem com que comportamentos abusivos venham mais facilmente à tona e sejam expostos. Tal condição inibe desvios. Antes, por exemplo, os casos de assédio moral e sexual eram encobertos e, em muitos casos, a vítima terminava demitida. Hoje, ainda ocorrem casos, mas há menor tolerância com os desvios e muitas empresas já têm políticas explícitas para coibir abusos. Estamos longe do ideal, mas algum avanço houve. Por outro lado, evoluímos na direção de um sistema de mercado mais aberto, no qual as empresas estão mais sujeitas a mudanças, ao humor

dos clientes e às ações dos concorrentes. Isso cria uma pressão forte sobre a organização e os indivíduos. É preciso estar permanentemente atento, agir proativamente e responder prontamente às ameaças. Isso seria tolerável se tivéssemos bons modelos de gestão e executivos competentes, capazes de gerenciar a interface entre ambiente e organização. Não é o que temos. Então, o que se testemunha são ambientes organizacionais caóticos e paranoicos, nos quais os indivíduos trabalham longas horas, mas a produtividade é baixa. Tal condição pode deteriorar o ambiente organizacional, desgastar as relações e provocar alto nível de estresse nos indivíduos. IHU On-Line – O que o senhor chama de “cultura do management”? Thomaz Wood Jr. – Para entender o significado da cultura do management, pode ser útil recorrer à conhecida parábola da caverna, de Platão1. Segundo a parábola, na caverna são mantidos alguns prisioneiros, imobilizados por correntes. Incapazes de olhar para fora da caverna, eles têm apenas a visão da parede a sua frente. Nessa parede são projetadas, por uma pequena fogueira, imagens de outros homens, que estão além do alcance da vista dos prisioneiros. Então, a realidade, para os prisioneiros, se restringe ao mundo das sombras. E será malsucedido quem tentar convencê-los do contrário. A cultura do management é um conjunto de pressupostos e valores que incluem: primeiro, uma leitura simplória e uma crença acrítica no livre mercado; segundo, uma visão dos indivíduos como empreendedores de 1 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Criador de sistemas filosóficos influentes até hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A República e o Fédon. Sobre Platão, confira e entrevista “As implicações éticas da cosmologia de Platão”, concedida pelo filósofo Prof. Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU On-Line, de 04-09-2006,disponível em http://migre.me/uNq3. Leia, também, a edição 294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, intitulada Platão. A totalidade em movimento, disponível em http://migre.me/uNqj. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – No âmbito global, qual a importância das pessoas dentro dos processos de gestão e que posicionamento ocupam nas estratégias de negócios internacionais? Thomaz Wood Jr. – Nos últimos anos, disseminou-se o discurso de que as “pessoas são a verdadeira fonte de vantagem competitiva” para as empresas. É uma conversa atraente e popular, mas é uma meia verdade. Algumas empresas de fato dependem muito da qualificação e do engajamento de sua mão de obra, mas outras têm modelos de negócios e de gestão menos dependentes do “fator humano”. De fato, algumas empresas operam em condições tão favoráveis de localização, acesso a recursos, ou ainda sob sistemas de proteção legal, que mesmo com uma péssima gestão ainda geram lucros. Por quanto tempo, não se sabe. Ainda assim, é sempre desejável ter quadros qualificados, especialmente em postos de liderança, nos quais são tomadas as decisões que importam. Pesquisas indicam que existe em todo o mundo uma lacuna de profissionais qualificados. Mesmo em países com alta taxa de desemprego, as empresas têm dificuldades para contratar os profissionais que necessitam. O Brasil é um dos países onde, segundo pesquisa da consultoria ManpowerGroup, os executivos mais percebem dificuldades para contratar. As principais razões para o não preenchimento de vagas são: falta de interessados, falta de compe-

tências técnicas específicas e falta de experiência. Para as empresas o quadro é preocupante. A falta de talentos pode prejudicar a produtividade, reduzir a competitividade e frear projetos de expansão. O quadro é ainda mais grave para as empresas que têm planos de internacionalização, o que demanda gestores bem qualificados, com competências sofisticadas de criação e condução de negócios em ambientes institucional e culturalmente diversos.

Tema de Capa

so. De um lado, a tecnologia deveria contribuir substantivamente para a realização da racionalidade organizacional, maximizando resultados e minimizando o uso de recursos. Processos automatizados podem gerar mais valor, aumentando a produtividade e reduzindo desperdícios. Entretanto, a tecnologia parece vir frequentemente embalada em uma aura mágica, como se tivesse poderes sobrenaturais. Em muitos contextos, os projetos têm mais imagem do que substância, como se voltássemos a estágios civilizatórios primitivos, operando um tipo de reencantamento da experiência humana.

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si mesmos; terceiro, as ideias expressas por slogans relacionados a modas gerenciais, tais como excelência, qualidade total, foco no cliente etc.; quarto, o culto de executivos-heróis; e, quinto, uma forte crença de que as melhores técnicas de gestão são capazes de aperfeiçoar qualquer atividade humana organizada. A cultura do management são as sombras das cavernas empresariais de hoje. Quem está dentro de uma delas, como na parábola de Platão, não nota nada de excepcional. Os visitantes às vezes estranham um pouco, mas como geralmente eles vêm de cavernas parecidas, logo se acostumam. Os prisioneiros julgam o mundo pelas sombras que veem. E as empresas estão ficando exímias em projetar as “sombras certas”, procurando obter os efeitos desejados em seus “prisioneiros” ou funcionários. O que gera preocupação é que a cultura do management, que é reducionista e incapaz de resolver questões importantes mesmo no mundo corporativo, extrapolou as fronteiras empresariais e está influenciando todo tipo de organização. É como se tivéssemos nos metido em uma grande caverna, no qual o prisioneiro que escapa de uma pequena câmara cai em outra maior. IHU On-Line – Quais são os desafios na gestão de recursos humanos? Thomaz Wood Jr. – A gestão de recursos humanos tornou-se, nos últimos anos, uma das principais portas de entrada para o que há de mais superficial e inconsistente em termos de gestão. Isso se deve à conjugação de dois fatores. De um lado, a função teve que sair do seu antigo gueto, aproximando-se da linha de frente dos negócios. Com isso, precisou adquirir novas competências. E parece não ter tido muito sucesso. Por outro lado, a gestão de recursos humanos parece ter perdido capacidade de atrair bons quadros. A demanda mais desafiadora, combinada com a fragilidade técnica e teórica resultou em um quadro preocupante. Como evoluir? Penso que é necessário realizar um esforço de capacitação, que compreenda tanto os fundamentos humanistas dados por

disciplinas como a psicologia, a sociologia e a antropologia, quanto visões mais complexas das dinâmicas organizacionais, de forma que os profissionais da área sejam capazes de compreender as mudanças em curso e de agir como protagonistas dessas mudanças. Complementarmente, é preciso superar a praga que temos denominado de pop-management, a literatura de aeroporto, que mistura negócios e autoajuda, e cria uma agenda fictícia e uma realidade paralela. Em suma, é preciso nutrir o velho e bom senso crítico e tratar das questões reais. IHU On-Line – Que papel a imprensa especializada, especificamente para o nicho de carreiras e negócios, ocupa na construção das subjetividades dos gestores? Thomaz Wood Jr. – A disseminação da cultura do management, a partir dos anos 1990, foi acompanhada pelo desenvolvimento do que chamamos de indústria do management, que compreende as empresas de consultoria, as escolas de negócios, os gurus de gestão e a mídia de negócios. Estes “pilares” foram os responsáveis pela popularização das ideias de gestão e das modas gerenciais. Eles criaram uma realidade artificial, cuja linguagem, modelos e conceitos passaram a influenciar a forma como executivos e profissionais passaram a ver e analisar sua realidade organizacional e o mundo ao redor. Entre eles, mídia de negócios se destacou por ser um amplificador de tendências. Conforme nos declarou um diretor de redação há alguns anos, a mídia de negócios não cria ondas, mas ela identifica e as amplia, além de surfá-las. Durante muitos anos, a mídia de negócios e, dentro dela, as revistas e cadernos voltados para carreiras e negócios, influenciaram as agendas executivas. A mensagem passada costumava ser simples: se é bom para a GE, é bom para a sua empresa, como se fosse possível generalizar a partir de um caso único. A lógica era a mesma das revistas de autoajuda: conheça o regime da supercelebridade e fique magra e linda em quatro semanas. Hoje, entretanto, vejo um forte declínio na capacidade de influên-

cia da mídia de negócios. Um ciclo parece ter se completado. A única revista que vejo sendo comentada é The Economist, que é uma publicação séria e trata de temas mais amplos do que negócios. As demais parecem rumar para a irrelevância. No ambiente acadêmico, no qual convivo, raramente vejo algum colega comentar um texto de revista de negócios. Se o fazem, é de forma um pouco constrangida. No ambiente empresarial, no qual também convivo, só vejo executivos comentando textos de revistas de negócios quando é sobre eles mesmos ou sobre a empresa na qual trabalham. Enfim, elas parecem ter se situado um pequeno degrau acima dos press releases. É uma pena! IHU On-Line – Que desafios se impõem na contemporaneidade na formação dos novos gestores? É mais importante instrumentalizá-los ou formá-los criticamente? Thomaz Wood Jr. – Uma orientanda minha recentemente concluiu uma pesquisa com mais de 700 alunos de cursos de formação executiva: os populares MBAs. Uma das revelações da pesquisa foi que os alunos ainda valorizam muito a formação em disciplinas técnicas, tais como finanças, marketing etc., as hard skills. Naturalmente, isso revela um foco que vai além do meramente instrumental. Focaliza fundamentos e conceitos, além da prática. Por outro lado, defendo fortemente a necessidade de estimular e desenvolver o pensamento crítico, com doses elevadas de humanismo. Sem isso, você pode até ter uma ótima tripulação, capaz de manter e conduzir admiravelmente o barco, só que ela não saberá para onde ir. Em suma, as duas coisas são fundamentais. Um gestor com grande capacidade de realização, mas sem pensamento crítico, pode virar um pistoleiro de aluguel, correndo o risco de servir interesses escusos. Um gestor com pensamento crítico, porém sem ferramentas ou instrumentos, atuando em uma organização, vai engrossar a tropa dos “leões de reunião”, ótimos nas discussões, mas incapazes de fazer trabalho real.

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Para Arie Lewin, professor da Duke University, o desafio da gestão contemporânea é administrar a auto-organização dos empregados Por Ricardo Machado | Tradução: Ana Carolina Azevedo

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ocado em pesquisas para entender como funciona o trabalho offshoring – atividades realizadas remotamente com empregados, às vezes, de várias partes do mundo –, o professor Arie Lewin respondeu por e-mail a perguntas da IHU On-Line sobre as racionalidades da gestão contemporânea e falou sobre o papel do Brasil na globalização. Para ele, a gestão contemporânea precisa ter em conta a auto-organização dos empregados. “O maior desafio é a formação de nível médio a sênior dos gerentes na nova arte de possibilitar a auto-organização. Isso implica na necessidade de aprender a gerenciar atenção em vez de comando e controle”, destaca. “Pequenas empresas iniciantes de tecnologia empresarial aprenderam a se organizar na web e obter talentos em qualquer lugar do mundo”, complementa.

1 Offshoring é o modelo de realocação de processos de negócio de um país para outro. Ele inclui qualquer processo de negócio como produção, manufatura e serviços. Processos intensamente suportados por tecnologia da informação são candidatos naturais ao offshoring. Ou seja, offshoring é quando uma empresa passa a produzir em outros países , por motivos tributários e/ou outros, o que antes era produzido no próprio país, com intuito de tornar-se mais competitiva. (Nota da IHU On-Line) EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

Arie Lewin é professor de estratégias e negócios internacionais na Universidade de Duke e diretor do Centro Internacional de Educação para Negócios e Pesquisas (Ciber, na sigla em inglês). Entre outras atividades, foi editor-chefe da revista Journal of International Business Studies, de 2002 a 2008, e fundador do Program Director for Decision, Risk and Management Science at the National Science Foundation, de 1986 a 1988. Além disso, é professor convidado de várias universidades do mundo, como a Erasmus University, na Holanda, e a Hitotsubashi University, no Japão. Autor de centenas de artigos, o professor Lewin escreveu dezenas de livros, dentre os quais citamos Next Generation Offshoring: The Globalization of Innovation (2007). Confira e entrevista.

mados white collar) e buscando essas funções em provedores (no país e fora, ou seja, offshore), bem como do trabalho em organizações de serviço compartilhado em offshoring interno. 2. Dos avanços na comunicação e nas tecnologias de TI, que possibilitaram este processo de modularização de offshoring e reduziram drasticamente a infraestrutura de comunicações e de movimentação e compartilhamento de arquivos de dados grandes. 3. Do surgimento e crescimento dos prestadores de serviços ao redor do mundo. A concorrência entre prestadores de serviços serviu para “comoditizar” os processos (e, dessa maneira, reduzir continuamente a prestação do serviço); ao mesmo tempo, ela compete com novas ofertas de serviços, como a terceirização de serviços jurídicos.

4. Da adoção de empresas de rede social como intraorganização, o que aumenta muito a medida com que os empregados de todos os níveis colaboram remotamente, incluindo funcionários de outras empresas, como parceiros de aliança e prestadores de serviços (por exemplo, desenvolvedores de software). 5. Do declínio no número e na proporção de jovens adultos provenientes de economias desenvolvidas, que iniciam carreiras nas áreas da ciência, tecnologia, engenharia e matemática – STEM (na sigla em inglês)2. 2 STEM: acrônimo em inglês de science, technology, engineering e mathematics que serve para designar as disciplinas acadêmicas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Este termo é utilizado, sobretudo, nos Estados Unidos para abordar determinados tratamentos sobre temas relacionados com as ciên-

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IHU On-Line – Quem é a nova geração Offshoring1 e como o senhor pensa a inovação global? Arie Lewin – A nova geração de offshoring é o resultado de vários esforços por parte: 1. Das empresas, que estão aprendendo e adotando gradualmente a prática de modularizar os processos técnicos e administrativos (empregos de escritório, também cha-

Tema de Capa

A arte de possibilitar a auto-organização

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Isso tudo acaba conduzindo as empresas a procurarem trabalho no resto do mundo, ou seja, offshore. A Duke University Offshoring Research Network [Rede de Pesquisa em Offshoring da Duke University] estimou a escassez de trabalhadores de STEM no ano de 2004 em cerca de 170 mil; esse número contém o declínio das referidas carreiras nas empresas norte-americanas de cerca de 40 mil. IHU On-Line – Considerando as economias emergentes, qual o potencial dos clusters de talento, sobretudo na indústria criativa e nas tecnologias de informação e comunicação? Arie Lewin – A procura de talentos de STEM consiste na demanda das economias desenvolvidas (por exemplo, a escassez nos EUA, em 2004, de cerca de 170 mil) e das necessidades internas das economias emergentes. O Brasil, por exemplo, não tem muito potencial para atender ao mercado internacional, principalmente por duas razões: alta demanda interna e falta de talento de STEM com proficiência adequada na língua inglesa. A China e a Índia têm o maior potencial mundial de satisfazerem a procura global por talento de STEM. No entanto, a menos que cada país faça grandes investimentos na ampliação das capacitações das universidades (que formam pós-graduados de mestrado e doutorado), é improvável que essas duas economias emergentes satisfarão a demanda. Ao contrário do que se imagina, tanto a China como Índia estão passando por um dreno de estudantes que buscam formações avançadas em áreas de STEM nas universidades ocidentais. Estima-se que a China tenha cerca de 1,8 milhões de estudantes com alta formação em STEM em países ocidentais, compondo a diáspora do talento de STEM na China. A China reconhece o impacto negativo do crescimento da diáspora do talento de STEM no futuro de seu desenvolvimento econômico, especialmente porque seus objetivos nacionais estão transformando o desenvolvimento econômico em atividacias, a educação, a força de trabalho, a segurança nacional ou a imigração. (Nota da IHU On-Line)

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“As mudanças mais importantes são as novas oportunidades que os gestores têm em desagregar seus projetos de organização e criar novas estruturas” des de maior valor, representadas por indústrias criativas e pelas tecnologias de informação e comunicação. No entanto, a menos que a China e outras economias emergentes concebam políticas integrativas que atraiam os talentos de STEM na diáspora para seus países de origem e, além disso, criem mudanças institucionais, que, por sua vez, criem as oportunidades e incentivem atividades criativas empresariais, tais iniciativas não conseguirão construir comunidades internas de talentos de STEM. IHU On-Line – O que seriam exatamente esses clusters de talento? Arie Lewin – Clusters de talento podem aparecer de muitas maneiras. Por exemplo, clusters biotecnológicos de STEM podem ser encontrados nos arredores da Universidade de Cambridge em Massachusetts e de Cambridge no Reino Unido; no sul da Dinamarca, e no Research Triangle Park (RTP), na Carolina do Norte. O Vale do Silício da Califórnia inclui muitos clusters, principalmente de tecnologia da informação, inovação digital, redes sociais, profissionais e conteúdo de mídia digital. Os clusters estão frequentemente ligados a universidades como Stanford e a Universidade da Califórnia, em Berkeley, que abastecem o Vale do Silício. A RTP está ligada a três universidades – Duke University, NC State University e University of North Carolina.

Na China, as cidades Dalian, Xian e Xangai têm clusters voltados para o desenvolvimento de software e jogos (nas áreas do design e da codificação de videogames). Um novo fenômeno é o dos talentos de STEM organizados em torno de clusters acerca de plataformas de corretagem da web, como o talento freelance, que alega ter 3 milhões de membros registrados. O projeto ORN identificou mais de 120 plataformas da web que ligam o talento de STEM com empresas que têm projetos em andamento. A ORN estima que, em 2010, havia cerca de 50 milhões de inscritos nesses sites. Claro, deve ter havido uma sobreposição significativa nas inscrições. No entanto, isso tudo representa um novo fenômeno ligado ao novo estilo de vida – que é encontrar trabalho para a demanda – através desses sites de corretagem de talento. IHU On-Line – Que mudanças as novas tecnologias trazem às racionalidades da gestão? Arie Lewin – As mudanças mais importantes são as novas oportunidades que os gestores têm em desagregar (ou modularizar) seus projetos de organização e criar novas estruturas que se fundam em atividades domésticas (offshore ou local) com as atividades e processos fornecidos por provedores terceirizados e espalhados ao redor do mundo. Os avanços no domínio das tecnologias de comunicação e informação possibilitam essas novas formas de organização. Paralelamente, essas novas formas de organização apresentam novas demandas aos gestores médios e até mesmo aos mais experientes. Eles enfrentam o desafio de gerenciar uma organização que depende cada vez mais de um processamento auto-organizador, que substitui a liderança de comando e controle. IHU On-Line – A que o senhor se refere quando fala nas “formas da nova organização” e na “gestão estratégica em tempos de desordem decrescente”? Arie Lewin – Essas novas formas surgiram de diversas maneiras. Primeiramente, as empresas estão começando a perceber que uma SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


IHU On-Line – Dentro desse contexto, quais sãos os desafios da gestão global na contemporaneidade? Arie Lewin – O maior desafio é a formação de nível médio a sênior dos gerentes na nova arte de possibilitar a auto-organização. Isso implica a necessidade de aprender a gerenciar atenção em vez de comando e controle.

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fundamentais exigem que as empresas envolvam-se em saltos estratégicos, pulando de uma vantagem temporária para a próxima e, dessa maneira, vivendo “no limite”. A indústria de smartphones é uma dessas. Indústrias como a Apple, Samsung, Google e outras estão envolvidas neste tipo de competição. Sob tais condições, aquelas que contribuem com a supercompetitividade podem tornar-se fonte de desvantagem competitiva, como é o caso da Apple hoje atualmente. IHU On-Line – Como pensar a hipercompetividade tendo em vista a preservação dos direitos dos trabalhadores e a preservação ambiental, por exemplo? Arie Lewin – A hipercompetitividade ou as dinâmicas hipercompetitivas não necessariamente afetam a sustentabilidade ou os direitos dos trabalhadores. É verdade que as mudanças que venho discutindo estão afetando a definição de trabalho e das profissões. Mas, muitas vezes, isso somente representa uma resistência arraigada a reconhecer a necessidade de mudança, que tem consequências muito mais pesadas no trabalho. É evidente que as pessoas precisarão estar dispostas a “reinventarem-se” várias vezes durante suas carreiras, e que os governos precisarão pensar em novas estratégias que permitam tal adaptação. Enquanto alguns países (como a China) tornam-se líderes quando mudam (tecnológica e socialmente), outros países não podem isolar-se dessas alterações. Na fabricação, o advento e a rápida adoção das tecnologias de

impressão 3D (a saber, construções personalizadas em massa de um item por vez) podem tornar-se condutores principais da fabricação insourcing nos países de alto custo. Se essa tendência vingar, as implicações que a China vai sentir, por exemplo, serão muito significativas. Da mesma forma, o advento do gás natural como fonte de energia está mudando as decisões de localização das empresas químicas, pois afeta não somente o aquecimento global, mas também setores importantes, como o de transportes (automóveis, caminhões e navios). IHU On-Line – Os avanços tecnocientíficos nos permitem pensar em novas subjetividades nas relações entre as pessoas envolvidas na gestão? Arie Lewin – Não há nenhuma dúvida de que, nos próximos 50 anos, vamos testemunhar o aproveitamento das tecnologias digitais e de web em ferramentas de organização, o que conduzirá o modo como trabalhamos e com quem trabalhamos. As organizações se tornarão muito mais flexíveis a fim de reconfigurarem suas atividades de uma maneira muito mais oportuna. Também vamos testemunhar mudanças na configuração das instituições nacionais; ao invés de fazer as pessoas serem dependentes de serviços sociais da regulamentação governamental, as pessoas terão maiores responsabilidades, mas com os governos garantindo condições equitativas, expectativas de aprendizagem, enquanto também criam a infraestrutura necessária para a formação. Fica cada vez mais claro que os menos favorecidos são pessoas que não tiveram oportunidade de aprenderem, de adquirirem novas competências e capacidades. As oportunidades de menor qualificação ou trabalho manual vão continuar a diminuir em todo o mundo, priorizando a aprendizagem e a criação de conhecimento e aquisição e renovação de habilidades de maior valor agregado. A Coreia do Sul é, provavelmente, o exemplo prototípico da dinâmica atual que acredito estar em andamento e que irá pavimentar o caminho da discussão no assunto.

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IHU On-Line – O que significa a hipercompetividade global e que respostas a esse tema as organizações devem dar à sociedade? Como os pesquisadores têm tratado este tema? Arie Lewin – A hipercompetitividade é um conceito muito superestimado e utilizado excessivamente na gestão estratégica. Experimentamos mudanças tecnológicas e organizacionais em todas as épocas, e os gerentes sentem constantemente como se estivessem gerenciando em tempos de mudança crescente. Na verdade, condições de hipercompetitividade são raras. Condições

“É evidente que as pessoas precisarão estar dispostas a ‘reinventaremse’ várias vezes durante suas carreiras”

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quantidade crescente de seus empregados realizam seus trabalhos através de colaborações na web. Em outras palavras, muito do trabalho é feito remotamente, em conjunto com alguém que está distante. A maior empresa do Vale do silício descobriu que 54% dos seus empregados trabalham remotamente, seja dentro da empresa, mas geograficamente dispersos, ou à distância, junto do fornecedor ou prestador de serviços. Esta empresa descobriu que cerca de 50% do espaço para escritórios não era utilizado. Quanto mais as empresas implementarem redes sociais dentro de si mesmas, mais descentralizados serão os locais onde o trabalho é realizado. Pequenas empresas iniciantes de tecnologia empresarial aprenderam a se organizar na web e obter talentos em qualquer lugar do mundo. As grandes empresas estão percebendo que será necessário fazer o mesmo. Nas palavras de um vice-presidente sênior de fabricação, “devemos aprender a identificar um engenheiro em qualquer lugar do mundo, e aprender a trabalhar com este engenheiro de maneira remota”.

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Transparência e responsabilidade na governança corporativa Para conselheiro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, a sociedade contemporânea exige posicionamentos responsáveis das empresas Por Ricardo Machado

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ais do que pensar o papel das empresas em nossas sociedades, os gestores contemporâneos precisam ter em conta fatores externos ao negócio, como a interferência das atividades das empresas nas comunidades. Nesse sentido, um dos conselheiros do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC, Carlos Eduardo Lessa Brandão, destaca que as empresas precisam ser transparentes e ter responsabilidade sob a sociedade civil. “A sociedade vem, cada vez mais, demandando maior responsabilidade por parte das organizações, especialmente as empresas. Nesse sentido, o autêntico desejo de informar as diversas partes interessadas da organização sobre fatos positivos e negativos, financeiros e não financeiros, evidencia uma postura de maior transparência, necessária para aumentar o grau de confiança nos relacionamentos”, ava-

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IHU On-Line – O que é exatamente governança corporativa? Carlos Eduardo Lessa Brandão – Governança Corporativa é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre os proprietários do capital, Conselho de Administração, Diretoria e órgãos de controle. As boas práticas de Governança Corporativa convertem princípios em recomendações objetivas, alinhando interesses com a finalidade de preservar e otimizar o valor da organização, facilitando seu acesso a recursos e contribuin-

lia Carlos Eduardo, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Carlos Eduardo Lessa Brandão é membro do Conselho de Administração do IBGC, do Conselho de Stakeholders da Global Reporting Initiative, do Conselho Deliberativo do ISE – BM&F Bovespa e do Comitê Técnico da Global Initiative for Sustainability Ratings. Por 18 anos atuou como executivo em desenvolvimento de negócios e investimentos em grandes empresas. Formado em Engenharia Civil, é mestre em planejamento energético e doutor em História e Filosofia da Ciência pela UFRJ, com MBA Executivo em Finanças pelo IBMEC e ADP pela London Business School. Além disso, atua como professor convidado da FGV e da FIA e é consultor em governança e sustentabilidade. Confira a entrevista.

do para sua longevidade. A boa governança corporativa leva a um ambiente de negócios mais confiável, contribuindo para uma sociedade mais justa. IHU On-Line – Por que a transparência do comportamento social das organizações se tornou um fator importante na gestão contemporânea e qual a relação disso com as novas tecnologias? Carlos Eduardo Lessa Brandão – A sociedade vem, cada vez mais, demandando maior responsabilidade por parte das organizações, especial-

mente as empresas. Nesse sentido, o autêntico desejo de informar as diversas partes interessadas da organização sobre fatos positivos e negativos, financeiros e não financeiros, evidencia uma postura de maior transparência, necessária para aumentar o grau de confiança nos relacionamentos. As novas tecnologias ligadas à informação aumentam ainda mais a necessidade de uma postura proativamente transparente. IHU On-Line – Qual o lugar da sustentabilidade na governança corporativa? SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


IHU On-Line – Por que é importante estabelecer um diálogo entre Estado, sociedade civil e setor privado tendo em conta o bem-estar social? Que estratégias indicam um caminho possível? Em uma sociedade de comunicação global e considerando as organizações brasileiras, como podemos pensar todos esses aspectos em uma perspectiva mundial? Carlos Eduardo Lessa Brandão – Os desafios locais, regionais e globais estão ganhando maior importância, tornando cada vez mais necessária a colaboração entre os três setores da sociedade visando soluções efetivas. As organizações com essa preocupação aumentarão suas chances de entender melhor o contexto em que atuam e de definir os tipos de parcerias que alinhem seus interesses com os da sociedade. IHU On-Line – Até onde há espaço para o protagonismo das pessoas

“A sociedade vem, cada vez mais, demandando maior responsabilidade por parte das organizações, especialmente as empresas” na gestão? E qual o papel das empresas na promoção desta postura de diálogo e autonomia? Carlos Eduardo Lessa Brandão – Empresas são formadas por pessoas, e liderança é fundamental. Isso tanto no topo como em outros níveis hierárquicos. O Conselho de Administração das empresas, como guardião do objeto social e do sistema de governança, tem o papel de orientar e supervisionar a relação da gestão da organização com as demais partes interessadas, incluindo os colaborado-

res. As regras, responsabilidades e políticas devem ser claras, transparentes e acessíveis e cada colaborador deve estar ciente do seu papel para poder fazer sua contribuição. IHU On-Line – Como podemos pensar a racionalidade da administração diante de todo esse contexto, sobretudo levando em conta as novas tecnologias? Carlos Eduardo Lessa Brandão – É fundamental que as organizações repensem constantemente seu sistema de governança, de modo a aumentarem as chances de tomar decisões de melhor qualidade. IHU On-Line – Na sociedade atual, qual deve ser o papel da formação dos novos gestores? Eles devem estar preparados para qual cenário? Que competências são esperadas? Carlos Eduardo Lessa Brandão – A complexidade crescente do ambiente dos negócios demandará que os gestores busquem atualizar constantemente seus conhecimentos de modo a entender o papel e as limitações de cada tipo de organização na sociedade: Estado, sociedade civil e setor privado. No caso das empresas, é fundamental que os gestores incorporem considerações de ordem social e ambiental na definição dos negócios e nas operações.

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Carlos Eduardo Lessa Brandão – As questões sociais e ambientais e seus impactos de curto, médio e longo prazo estão impactando as estratégias das organizações – por outro lado, as organizações também geram impactos sociais e ambientais. Entender a relação desta dinâmica com a estratégia da organização é função dos Conselhos de Administração, órgão fundamental da governança corporativa.

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A relação entre as novas racionalidades, a cultura e a sociedade Para a decana da Escola de Gestão e Negócios da Unisinos, professora Yeda Swirski de Souza, a forma de pensar a gestão está ligada ao contexto social Por Ricardo Machado

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e acordo com Yeda Swirski de Souza, que concedeu entrevista por e-mail à IHU On-Line, as racionalidades da gestão contemporânea dizem respeito a valores que são considerados importantes no atual contexto, permeado também pelas inovações tecnológicas. “Novas tecnologias de informação e comunicação coevoluem com negócios que competem pela inovação e customização, estruturas organizacionais mais flexíveis e formas de organização do trabalho que privilegiam sinergia e colaboração entre equipes e organizações”, explica. Para ela, as novas tecnologias e os processos de administração configuram duas hélices de um mesmo eixo. “Hoje, dificilmente a gestão poderia ser pensada de forma separada das novas tecnologias, assim como dificilmente pensamos nosso cotidiano sem eletricidade. Acredito que a questão já vai para além do impacto, uma vez que gestão e tecnologia não conseguem mais se discriminar em fenômenos separados para que possamos

IHU On-Line – Como podemos pensar o papel do gestor na contemporaneidade? Yeda Swirski de Souza – Contemporaneidade remete de imediato à noção de conectividade. Certamente, a possibilidade de conectividade oportunizada pelas tecnologias, seja em nível de relações sociais seja em nível das organizacionais, marca de

observar o impacto de um sobre o outro. O desenvolvimento tecnológico com evoluções e rupturas acompanha a história da humanidade e sempre impactaram os projetos de gestão”, sustenta a pesquisadora. Yeda Swirski de Souza é professora e pesquisadora nas áreas de Comportamento Organizacional e Estratégia junto ao PPG de Administração da Unisinos. Dedica-se a projetos de pesquisa sobre empreendedorismo internacional e sobre o desenvolvimento de capacidades de empresas para negócios internacionais. Representa o Offshoring Research Network para a América Latina. Graduou-se em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde também fez mestrado em Administração. Fez doutorado em psicologia na PUCRS. Coordenou o Programa de Pós Graduação em Administração da Unisinos e foi editora da revista BASE. Atualmente é decana da Escola de Gestão e Negócios da Unisinos. Confira a entrevista.

forma indiscutível a contemporaneidade. De qualquer forma, essa condição não é por si só determinante para que o papel do gestor ganhe características uniformes e universais. O papel do gestor pode ganhar características diferentes e isso depende de fatores como o contexto organizacional, o propósito do projeto a ser realizado, as características do ambiente

externo em seus aspectos políticos e culturais. Uma boa metáfora para pensar o papel do gestor é a do arquiteto. Nesse sentido, o trabalho do gestor começa com a criação de projetos que possam prover algum nível de felicidade para pessoas. Eu sei que essa afirmativa é muito abstrata, mas trata-se do fundamento da gesSÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


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IHU On-Line – Podemos pensar em uma nova racionalidade da gestão? Que racionalidade seria esta? Yeda Swirski de Souza – Devemos pensar em uma nova racionalidade. Não há certezas sobre qual racionalidade deve orientar a gestão em seus diferentes níveis. Essa discussão tem sido estimulada no principal evento internacional da área, que é o Academy of Management. A chamada deste ano estimula uma discussão sobre os sistemas econômicos e sua adequação para a construção de sociedades melhores. Além disso, consolidam-se uma cultura e uma atitude social que têm como valor a sustentabilidade social e ambiental. Essa atitude social vem se tornando também intrínseca a toda ação em gestão. Organizações, sejam elas públicas ou privadas, compõem, integram ou são atores em um sistema social e, desse modo, tendem a se comportar em sintonia com as mentalidades em seu contexto. Nova racionalidade em gestão é correlativa a novas mentalidades no campo da cultura e sociedade. IHU On-Line – Qual a importância da formação para pensarmos modelos de gestão comprometidos tanto com a sustentabilidade quanto com o direito dos trabalhadores? Yeda Swirski de Souza – A educação é uma responsabilidade para com o futuro. Sustentabilidade social e ambiental, como dizia antes, fazem parte de valores culturais e sociais contemporâneos. Transmitir esses

valores a uma nova geração é o compromisso atual. Acredito que precisamos transmitir às novas gerações o sentido de que há chance de se construir uma sociedade melhor e isso depende de cada um se tornar também uma pessoa melhor. Em nosso país há esforços a serem empreendidos em todos os níveis. Modelos de gestão são sempre pontuais e contingenciais, e não serão suficientes para assegurar o futuro. IHU On-Line – É razoável pensarmos em “colonialismo de ideias”? Qual o protagonismo do Brasil para pensar a gestão e os desafios da gestão na atualidade? Yeda Swirski de Souza – Gestão e Negócios, como área do conhecimento, desenvolveu-se no Brasil muito recentemente. O sistema de pós-graduação tem cerca de quarenta anos. A pesquisa na área e a produção científica original e focada em singularidades do país e da América Latina já mostram alguma produção, mas há muito a ser feito ainda nesse sentido. Percebo nova postura entre os pesquisadores brasileiros no que se refere às relações internacionais e ao protagonismo do Brasil nos negócios e na produção do conhecimento. O Brasil é um ator econômico central na cena econômica internacional e isso estabelece relações muito mais horizontais do que a histórica relação colonialista. IHU On-Line – Como funcionará a Escola de Gestão e Negócios da Unisinos e que papel ela ocupará no contexto atual? Yeda Swirski de Souza – A Escola de Gestão e Negócios da Unisinos tem como missão a articulação das ofertas nas áreas de Economia, Administração e Ciências Contábeis em seus diferentes níveis. Trata-se de um movimento cujo fim é o de buscar excelência na formação de pessoas, na pesquisa e nos projetos aplicados. Estamos como universidade nessa caminhada já faz anos.

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IHU On-Line – No contexto atual, em que medida as novas tecnologias impactam na gestão e nos negócios? Yeda Swirski de Souza – Precisamos de centenas de páginas para esboçar uma resposta a essa questão. Hoje, dificilmente a gestão poderia ser pensada de forma separada das novas tecnologias, assim como dificilmente pensamos nosso cotidiano sem eletricidade. Acredito que a questão já vai para além do impacto, uma vez que gestão e tecnologia não conseguem mais se discriminar em fenômenos separados para que possamos observar o impacto de um sobre o outro. O desenvolvimento tecnológico com evoluções e rupturas acompanha a história da humanidade e sempre impactaram os projetos de gestão. Penso que a perspectiva para analisar as relações entre tecnologias e gestão e negócios é a de entender como essas dimensões coevoluem e configuram novas formas organizacionais. Por exemplo, a revolução industrial, com sua plataforma tecnológica, evoluiu com negócios que competem em volume de produção, modelos burocráticos de organização e abordagens fordistas e tayloristas de organização do trabalho. Novas tecnologias de informação e comunicação evoluem com negócios que competem pela inovação e customização, estruturas organizacionais mais flexíveis e formas de organização do trabalho que privilegiam sinergia e colaboração entre equipes e organizações.

“Não há certezas sobre qual racionalidade deve orientar a gestão em seus diferentes níveis”

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tão. Organizações devem ter um fim para além de si mesmas e esse fim é social. Ou seja, o projeto de organizações e o trabalho do gestor materializam-se em objetos tangíveis tais como uma estrada, uma escola, um avião, um cinema, etc. O bom projeto otimiza e potencializa o talento de equipes e os recursos possíveis. Ainda, o gestor, como bom arquiteto, deve acompanhar as ações de execução do projeto e facilitar o seu melhor andamento.

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O desafio da autonomia como um valor Coordenadora do MBA em Gestão Empresarial da Unisinos, Patrícia Martins Fagundes Cabral, aborda as subjetividades na gestão contemporânea Por Ricardo Machado

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riar uma cultura que incorpore a autonomia como um valor é um desafio substancial: requer tempo, reflexão (por exemplo, ressignificar o “erro”), e sobretudo clareza de informações e transparência de limites, porque a autonomia pressupõe a consciência das nossas possibilidades e das nossas limitações na ação”, defende Patrícia Martins Fagundes Cabral, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. O atual contexto sociotecnológico, para a professora da Unisinos, promoveu mudanças significativas na gestão contemporânea e em suas racionalidades. “Muitas mudanças do cenário podem ser apontadas: a tendência de estruturas organizacionais mais enxutas e menos centralizadas; uma maior diversidade geracional nos ambientes de trabalho, por conta do aumento do tempo de vida profissional dos trabalhadores; as transformações sociotecnológicas que imprimem uma característica mais global, diversificada e descentralizada

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IHU On-Line – Que papel ocupa a gestão por competência nos processos administrativos contemporâneos? Patrícia Martins Fagundes Cabral – Este é um tema atual e recorrente nas organizações que entendem que a efetiva gestão do capital humano impulsiona resultados organizacionais sustentáveis. Uma organização adota Gestão por Competências quando a sua orientação estratégica está embasada na identificação e na gestão dos atributos que visam assegurar a sua sustentação (sobrevivência) e/ou a sua diferenciação (essência) no cenário competitivo no qual se insere. A Gestão por Competências não pode estar desvinculada dos princípios,

da informação, do comportamento, das relações de poder. Estes e outros tantos fenômenos contemporâneos contribuem para novos desafios na liderança e na gestão de pessoas”, explica. Patrícia Martins Fagundes Cabral é doutora em Psicologia, com tese sobre Liderança e Processo Grupal, pela PUCRS; mestre em administração de empresas pela PUC-Rio; e graduada em psicologia pela Unisinos. É professora adjunta da Unisinos, vinculada ao PPG em Gestão e Negócios. Coordena o MBA em Gestão Empresarial – Unisinos POA e o MBA Liderança Estratégica (Banco do Brasil – in company). Possui experiência nas áreas de Psicologia do Trabalho e Recursos Humanos, atuando em consultoria nas áreas de desenvolvimento de liderança e de equipes, comportamento organizacional e gestão de pessoas. Confira a entrevista.

valores, missão e visão da organização e deve valorizar a capacidade de adaptar e/ou regenerar situações. Isto é, trata-se de um processo essencialmente dialógico, em que a dimensão pragmática, tangível, que se expressa em métricas e metas, deve existir com a capacidade autopoiética, auto-organizadora, adaptativa, transformadora (própria de organismos vivos, tais como as pessoas e as organizações), para que o “propósito” não se esvazie no “modelo”. A mecanização da Gestão por Competências é uma das disfunções mais comuns de se perceber na prática organizacional e em seus processos administrativos, o que, em minha percepção, deturpa fortemen-

te a concepção de Gestão por Competências preconizada por reconhecidos autores como Zarifian1 e Le Boterf2. 1 Philippe Zarifian: sociólogo francês, pesquisador e professor da Universidade Marne-la-Vallé (França), doutor em Economia pela Universidade Paris I. Sua área de pesquisa é a sociologia do trabalho. Escreveu inúmeros livros, entre os quais A quoi sert le travail? (Para que serve o trabalho). Paris: La Dispute, 2003, Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2001 e O modelo da competência: trajetória histórica, desafios atuais e propostas. SENAC, 2003. Na edição 167 da IHU On-Line, de 05-12-2005, Gestão empresarial. Desafios e perspectivas de uma nova aprendizagem, concedeu a entrevista A gestão do conhecimento fornece bases para compreender fenômenos técnico ou sociais. (Nota da IHU On-Line) 2 Guy Le Boterf: é professor associado da Universidade de Sherbrooke, no CaSÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


nadá, consultor internacionalmente reconhecido e criador da metodologia Agir e reagir com competência nas situações. Le Boterf é doutor em ciências humanas e sociologia e dedica-se a pesquisas voltadas às competências coletivas. (Nota da IHU On-Line) EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

antes de ser desdobrada nos processos e práticas. Demanda para tanto: a) articulação às diretrizes estratégicas; b) sustentação nas Políticas e Práticas de Gestão de Pessoas e coerência entre elas e a noção de competências adotada pela organização; c)metodologia de construção/ implementação condizentes com a realidade e a cultura organizacional; e d) a formação de gestores para efetivamente se apropriarem de seu papel na gestão de pessoas, como foco na mobilização de pessoas para este propósito. IHU On-Line – O que mudou na gestão de pessoas e equipes e quais são os papéis dos líderes nesse processo? Patrícia Martins Fagundes Cabral – Muitas mudanças do cenário podem ser apontadas: a tendência de estruturas organizacionais mais enxutas e menos centralizadas; uma maior diversidade geracional nos ambientes de trabalho por conta do aumento do tempo de vida profissional dos trabalhadores; as transformações sociotecnológicas que imprimem uma característica mais global, diversificada e descentralizada da informação, do comportamento, das relações de poder. Estes e outros tantos fenômenos contemporâneos contribuem para novos desafios na liderança e na gestão de pessoas. De modo geral, observa-se uma convergência para a ideia do papel da liderança como mobilizadora dos propósitos da organização e como facilitadora do processo de planejamento

e de tradução prática das estratégias. Na teoria da Liderança Transformacional, é destacado o carisma do líder, que deve ser inspirador, estimulando a participação e a autonomia dos liderados. Isto é, o foco da liderança muda do controle para a influenciação, em uma lógica de que é possível controlar tarefas, processos... mas não, efetivamente, comportamento humano. Nessa perspectiva neocarismática, os líderes transformacionais são aqueles capazes de prestar atenção às preocupações e necessidades de desenvolvimento de cada um de seus liderados, alinhando-os às demandas organizacionais.

Liderança como processo Contudo, a perspectiva da liderança como um processo, como uma construção de sentido tecida no contexto organizacional, que vai além da compreensão do indivíduo-líder e representa uma evolução recente nos estudos sobre liderança. Para Ram Charan3, um dos fatores mais estratégicos para o sucesso e expansão da organização reside na capacidade dos líderes atuarem fortemente na gestão de pessoas, identificando e desenvolvendo novos líderes (formais e informais) na dinâmica organizacional. Ou seja, viabilizar um processo de aprendizagem organizacional mais amplo requer a consolidação da liderança como competência coletiva. E isso demanda não só o trabalho dos líderes com suas equipes, mas a relação entre líderes de um mesmo nível hierárquico bem como uma relação de conectividade entre todas as lideranças, independentemente da posição hierárquica que ocupam na organização. IHU On-Line – Em que medida a autonomia das pessoas ajuda nesse modo de condução da organização e

3 Ram Charan (1939): é um consultor de origem indiano-ameicana consultor de grandes companhias nos Estados Unidos. É autor de diversos livros sobre negócios, entre e eles Leadership in the Era of Economic Uncertainty. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – É possível pensar que mecanismos como o da gestão por competência se apropriam das emoções das pessoas? Como? Patrícia Martins Fagundes Cabral – Parece que as pessoas devem se apropriar da gestão por competências cognitivamente, emocionalmente, atitudinalmente e, para isso, é preciso gerar significado no modelo de gestão, tanto na dimensão individual como na coletiva. Para tanto, hoje se discute estrategicamente dinâmicas de engajamento que consideram a questão da transparência, clareza de informações e confiança nas relações como fatores-chave para o estabelecimento do vínculo no trabalho. Penso que se o modelo “se aproria” da emoção das pessoas, está conferindo a elas um lugar de objetização, não de protagonismo. E como referi acima, vejo esta “mecanização” como um “convite” à distorção da Gestão por Competências. A Gestão por Competência é uma escolha estratégica que precisa ser compreendida e internalizada

“Tendência de estruturas organizacionais mais enxutas e menos centralizadas”

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Antes de tudo, é preciso compreender que a competência é contextual, ou seja, ela não existe a priori: a competência é a mobilização de conhecimentos, habilidades e atitudes articuladas e mobilizadas em um determinado contexto, até se traduzirem em uma ação de resultado na circunstância que se apresenta. Nesse sentido, um atributo/ característica pode ser interpretado como competência em um cenário e como incompetência em outro; a velocidade na tomada de decisão pode ser um exemplo ilustrativo disso. Tal como a linha tênue que distingue o remédio do veneno: dependendo da dose e da circunstância em que a substância é administrada, “cura” ou “mata”.

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em que medida atrapalha? Quais são os limites e os desafios? Patrícia Martins Fagundes Cabral – Próprio de um contexto complexo, há nas organizações uma tensão dialógica entre as lógicas da centralização / controle e da descentralização / autonomia. E este tensionamento já sugere uma evolução para além do pensamento mecânico. A exigência das organizações contemporâneas com o trabalhador desloca-se do compromisso para o engajamento. Nesse deslocamento, por um lado, o trabalhador deixa de ser instado a obedecer acriticamente; por outro, é demandado a ser mais autônomo e a assumir os riscos e responsabilidades inerentes à autonomia. Nesse processo, enquanto o trabalhador exterioriza sua subjetividade e individualidade, também interioriza bases e estruturas coletivas, o que podemos entender no princípio da autoeco-organização, referido por Morin4. Nessa mesma linha, Zarifian analisa que uma das mutações principais ocorridas no mundo do trabalho, que justifica a emergência do modelo de competências para a gestão organizacional, é a noção de incidente, ou seja, acontecimentos imprevistos, não programados, que perturbam o desenrolar rotineiro do sistema de produção e ultrapassam a capacidade habitual de assegurar a sua autorregulação. Isso implica que a competência não pode estar contida nos procedimentos pre4 Edgar Morin (1921-): sociólogo francês, autor da célebre obra O Método. Os seis livros da série foram tema do Ciclo de Estudos sobre “O Método”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos em parceria com a Livraria Cultura, de Porto Alegre, em 2004. Embora seja estudioso da complexidade crescente do conhecimento científico e suas interações com as questões humanas, sociais e políticas, se recusa a ser enquadrado na sociologia e prefere abarcar um campo de conhecimentos mais vasto: filosofia, economia, política, ecologia e até biologia, pois, para ele, não há pensamento que corresponda à nova era planetária. Além de O Método, é autor de, entre outros, A religação dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand do Brasil, 2001). Confira a edição especial da IHU On-Line sobre esse pensador, intitulada Edgar Morin e o pensamento complexo, de 10-09-2012, disponível em http://bit.ly/OBYvRy. (Nota da IHU On-Line)

“Há nas organizações uma tensão dialógica entre as lógicas da centralização/ controle e da descentralização/ autonomia” definidos das tarefas, exigindo das pessoas a capacidade de mobilizar recursos para resolver situações novas, o que pressupõe a autonomia.

Desafios Quais os desafios disso tudo? Elenco alguns, de meu ponto de vista: 1) principalmente diante da diversidade geracional, ainda há uma leitura (nada dialógica) de que cabe ao líder o “controle das situações”, o que é difícil de conjugar com autonomia dos liderados; 2) desenvolver a autonomia dos liderados requer foco das lideranças em gestão de pessoas: identificar talentos, desenvolver potenciais, avaliar, dar feedback... enfim, delegar sem desenvolver / avaliar competências capazes de responder ao desafio, beira à perversidade; e 3) criar uma cultura que incorpore a autonomia como um valor é um desafio substancial: requer tempo, reflexão (por exemplo, ressignificar o “erro”), e sobretudo clareza de informações e transparência de limites, porque a autonomia pressupõe a consciência das nossas possibilidades e das nossas limitações na ação.

te, são produtoras e são produtos deste contemporâneo relacional. IHU On-Line – De que maneira a formação acadêmica pode contribuir no sentido de promover uma maior consciência e crítica sobre o próprio trabalho dos gestores? Patrícia Martins Fagundes Cabral – Em um mundo onde a tecnologia democratiza o acesso à informação, a formação acadêmica tem uma importante contribuição ao propiciar um ambiente de acesso ao conhecimento (e ao autoconhecimento) a partir da reflexão crítica, da vivência e da interação. Na formação de gestores, em especial, é importante problematizar a transição paradigmática que vivemos: como, por exemplo, as transformações tecnológicas, econômicas, sociais, reverberam nas relações de trabalho, sobretudo nas relações de poder. Assim, o diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento, a transdisciplinaridade é condição-chave para lidar com a complexidade contemporânea. Na prática, isso significa, por exemplo, que não é possível construirmos conhecimento e desenvolvermos ações em gestão de pessoas sem interligar saberes antes restritos, fragmentados e alocados em áreas distintas: recursos humanos, psicologia do trabalho, pedagogia empresarial, etc. O objeto de estudo, no caso “Gestão de Pessoas”, é um só: que pode e deve ser enriquecido à medida que diferentes contribuições, de diferentes “disciplinas” exploram suas peculiaridades e se articulam no desafio de lidar com sua complexidade.

Leia mais... >> Patrícia Martins Fagundes Cabral

IHU On-Line – Qual a relevância das novas tecnologias no contexto relacional contemporâneo? Patrícia Martins Fagundes Cabral – A relevância está justamente em possibilitar a interatividade, em gerar as conexões que, recursivamen-

é co-autora dos Cadernos IHU Ideias número 120, intitulada “A dimensão coletiva da liderança’, disponível em http://bit.ly/13iyZt4

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Doutoranda em antropologia sustenta que os desafios às racionalidades na administração estão ligados aos processos de subjetivação “institucionalmente mediados e performados”

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O olhar antropológico sobre as construções simbólicas na gestão contemporânea Por Ricardo Machado

A

contribuição da antropologia para pensar os processos de gestão está no mapeamento das ações dos gestores, de modo a compreender a racionalidades que estão relacionadas à apropriação das subjetividades dos empregados. “A captação de profissionais que se destaquem no mercado, que se identifiquem com suas ‘culturas’, ‘comprando’ a organização – e assim a colocam como ‘produto’ no ‘mix de marketing interno’ – e pagando nesta transação com o máximo do seu potencial de produção, criatividade e dedicação”, considera Patrícia Kunrath Silva, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Ela, entretanto, destaca que tais táticas buscam mascarar aspectos coercitivos das relações de trabalho. “Partindo da lógica de ‘pertença’ a uma organização, da necessidade de ‘vestir a

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ganizacionais”, “públicos internos” e estratégias de gestão e motivação de funcionários desde construtos simbólicos mediados por performances, rituais e processos identitários (sociais e profissionais). IHU On-Line – Em que medida as estratégias de marketing das organizações dão a ver tal racionalidade? Patrícia Kunrath Silva – Contemplo um aparente paradoxo em certas estratégias de marketing, especialmente aquelas voltadas para o interior das organizações, ou o marketing interno (também conhecido como endomarketing). Por um

lado, temos uma crescente flexibilização das leis trabalhistas, enfraquecimento do poder sindical e terceirização de serviços, enquanto que, por outro lado, parece se multiplicar o número de organizações que buscam atuar sobre um discurso humanista de seus negócios, em que as pessoas seriam a “alma” e o diferencial das corporações. Dessa forma, atentam para a captação de profissionais que se destaquem no mercado, que se identifiquem com suas “culturas”, “comprando” a organização – e assim a colocam como “produto” no “mix de marketing interno” – e pagando nesta transação com o máximo do

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IHU On-Line – Que contribuições um olhar antropológico pode dar à análise das racionalidades na gestão contemporânea? Patrícia Kunrath Silva – Um olhar antropológico, partindo da premissa de trabalho de campo calcado no método etnográfico, observação participante e entrevistas qualitativas, nos permite realizar uma análise em profundidade das racionalidades vigentes na gestão contemporânea. A partir de um cruzamento da teoria antropológica com a produção de campos como o da Administração de Empresas, Comunicação Social e Recursos Humanos, é possível pensar as “culturas or-

camiseta’ e sentir-se responsável pelos resultados dela, o trabalhador passa agora ser tratado como um ‘colaborador’, o gestor como um ‘líder’ e a sociedade como ‘consumidora’, sobretudo da imagem organizacional”, complementa. Patrícia Kunrath Silva é graduada em Publicidade e Propaganda com ênfase em marketing, com experiência profissional no Brasil e na Alemanha. Realizou mestrado em Antropologia, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, onde atualmente é doutoranda. Seu foco de trabalho são as construções simbólicas e subjetivas acerca do terceiro setor e possui um olhar crítico às noções de desenvolvimento propagadas midiaticamente. Confira a entrevista.

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seu potencial de produção, criatividade e dedicação. IHU On-Line – Como podemos pensar as análises dos sistemas simbólicos relacionados à gestão contemporânea? Patrícia Kunrath Silva – A antropologia social nos fornece uma série de instrumentos teóricos e metodológicos que permitem pensar criticamente os sistemas simbólicos no interior das instituições. A partir destas referências e, a meu ver, com especial atenção a contextos e cenários macroeconômicos e políticos, tais como o de um mercado que se pretende global, de livre concorrência, podemos analisar e entender como discursos e práticas são articulados para o aprimoramento e manutenção de lógicas de consumo e de produção. Estas articulações entram em ação pautando categorias identitárias (“o líder”, o “empreendedor”, o “proativo”) valoradas na lógica empresarial contemporânea e permeando as estratégias de gestão. IHU On-Line – Em que medida tais estratégias de comunicação impactam na produção de sentido nos gestores, trabalhadores e na sociedade? Patrícia Kunrath Silva – Tais estratégias parecem ocultar certos caracteres coercitivos nas relações de trabalho, outrora explicitamente manifestos. Partindo da lógica de “pertença” a uma organização, da necessidade de “vestir a camiseta” e sentir-se responsável pelos resultados dela, o trabalhador passa agora ser tratado como um “colaborador”, o gestor como um “líder” e a sociedade como “consumidora”, sobretudo da imagem organizacional. Observa-se uma crescente preocupação com a chamada “Responsabilidade Social Corporativa”, o florescimento de “negócios sociais”, um esfumaçamento das disposições de hierarquias e a operacionalização de lógicas de dádiva – “recompensa e reconhecimento” – nas mais diversas relações profissionais e mercadológicas. IHU On-Line – Como podemos pensar o conceito de “desenvolvi-

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mento” das organizações, sobretudo aquele divulgado na imprensa? Patrícia Kunrath Silva – Pensando a partir de perspectivas de antropólogos e sociólogos como Gustavo Lins Ribeiro1 e Arturo Escobar2, parece-me que a ideia de desenvolvimento disseminada atualmente ainda está diretamente ligada aos preceitos da modernidade, à lógica capitalista, desconsiderando muitas vezes as idiossincrasias locais e aplicando a diferentes grupos o mesmo padrão eurocentrado de desenvolvimento. Considero um tanto problemático crer que estas experiências tenham de fato um “impacto positivo na sociedade”. O conceito de “desenvolvimento” é manejado para justificar ações dentro de um campo de poder pungente do sistema atual, acabando muitas vezes por subjugar grupos inteiros. IHU On-Line – Como as novas tecnologias podem ajudar a pensar os processos atuais de gestão? Houve mudanças significativas? Patrícia Kunrath Silva – As novas tecnologias têm sido acionadas não somente por departamentos das organizações e empresas, mas também – e, talvez, principalmente – por seus distintos públicos a fim de fiscalizar ações, propagar denúncias e qualificar produtos e serviços. Seja por meio de redes sociais, sites na internet, blogs, etc., gestores, profissionais e consumidores estão tendo que assimilar uma reestruturação espaço-temporal e uma polifonia tornada pública por meio destas tecnologias. As mudanças são significativas no sentido de que se criam novas esferas de mediação e troca de informações, já não 1 Gustavo Lins Ribeiro: mestre em Antropologia pela Universidade de Brasília (1980) e doutor pela City University of New York (1988). É professor titular do Departamento de Antropologia e professor do Centro de Pesquisas sobre as Américas da Universidade de Brasília. Foi Diretor do Instituto de Ciências Sociais (2007-11) e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (200002) da UnB. (Nota da IHU On-Line) 2 Arturo Escobar (1952): nasceu na Colômbia e é um antropólogo que leciona na Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Suas áreas de interesse estão relacionadas a ecologia política, antropologia do desenvolvimento, movimentos sociais e ciência e tecnologia.

tão passíveis – embora ainda sim – de censura, extremamente difusas e muitas vezes sem controle direto de gestores e diretorias. IHU On-Line – O que as ações voltadas para o terceiro setor revelam sobre as racionalidades da gestão contemporânea? Patrícia Kunrath Silva – De um lado, nos últimos anos vêm ganhando força programas de Responsabilidade Social Corporativa, o chamado Investimento Social Privado e os institutos e fundações de voluntariado e filantropia – embora as categorias acionadas variem bastante. Para as empresas, esta estratégia pode ser pensada no âmbito de gestão de imagem e correspondência a essa “fiscalização social”. Surgem consultorias, agências e departamentos específicos para tais fins. De outro lado, para trabalhadores e estudantes passam a ser cada vez mais valoradas experiências de voluntariado expressas em seus currículos. Muitas organizações do terceiro setor apropriam-se de estratégias de gestão institucionais, antes características das empresas do segundo setor, utilizando ferramentas e “discursos motivacionais” em um processo de venda e “consumo institucional” – como proponho chamar o processo de “identificação e compra” de uma instituição por parte de seu público interno, passando pela sua (re) apropriação e atribuição de significado pelos sujeitos. IHU On-Line – Qual a importância de um olhar crítico dos gestores sobre o próprio trabalho e quais são os desafios que se impõem? Patrícia Kunrath Silva – Embora pareça inerente a qualquer gestor o senso crítico, não podemos perder de vista que a gestão e as organizações servem a propósitos bastante específicos com uma lógica, em certa medida, ainda bastante distante da que embasa os estudos e produções no campo das Ciências Sociais. Os desafios que se impõem aparecem no sentido de buscar um aprofundamento analítico a fim de possibilitar leituras críticas que resultem em proposições práticas no que tange a uma conscientização de processos de subjetivação “institucionalmente mediados e performados”.

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Destaques da Semana

MERCADO PRIMAVERA: À frente do negócio há quase 27 anos, Nildo garante que administrar é “fácil”, basta ter os pés no chão.

Reportagem da Semana

O talento e a vontade de aprender Por Ricardo Machado

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próprio negócio, patrão de si mesmo, ele dispara: “É muito importante saber lidar com uma criança de 7 anos e com um vovô de 80 anos para que a pessoa se sinta bem atendida e tenha vontade de voltar”, ensina Arnildo Dilli, o Nildo, que há quase 27 anos, administra seu pequeno mercado no bairro Santo Antônio, da cidade de Montenegro, no interior do Rio Grande do Sul. Em 1986, quando começou o negócio em sociedade com

a irmã e o cunhado (a parceria durou até 1995), tinha 26 anos de idade e o mercado que comprou já existia há 27 anos. “Quando comprei esse comércio pensei – ‘27 anos é uma eternidade’–, mas mês que vem eu estarei aqui durante todo esse tempo. Passou muito rápido”, conta. Mercados globais, técnicas de gestão e protocolos internacionais de administração são termos que não residem no vocabulário do dono do

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Do lado de trás do balcão está o professor. Impunha na mão esquerda uma cuia e no rosto um sorriso fácil de quem gosta do que faz. Fala com a propriedade de quem diz ter alcançado tudo o que queria, quando tudo o que queria era simplesmente ser feliz. Como se espera de um professor, tem a lição na ponta da língua, não porque é profundo conhecedor da teoria, ao contrário, mas devido à prática de mais de 25 anos no ramo. À frente do

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mercado Primavera. Porém, não subestime a capacidade de gestão de Nildo, afinal ele administra sozinho seu negócio e sobreviveu a turbulências como a instabilidade monetária do início da década de 1990. “É preciso ter sempre os pés no chão. Tendo isso em mente, é muito fácil administrar. Faço tudo automaticamente, sei o que comprar e só compro o que eu vou vender. Não adianta eu comprar coisas na promoção que não vou conseguir vender no meu mercado. Isso é mal negócio”, explica.

Sonho de infância O menino ingênuo que nasceu em uma antiga localidade no interior de Montenegro, onde atualmente fica a cidade de Brochier, admirava o dono da “venda” do bairro de infância em que morava sempre que ia à missa. Nascido na roça, Nildo estudou até a quinta série e deixou de ir à escola quando já tinha 14 anos. Seguiu trabalhando no campo até que adquiriu o mercado. Da vida difícil da infância e da juventude aprendeu que gostar do que se faz é mais importante que qualquer outra coisa. “Para manter um comércio, é preciso primeiramente gostar deste tipo de trabalho e, em segundo lugar, não escolher os dias para trabalhar”, revela o comerciante que diariamente abre as portas de seu mercado às 7 horas e fecha às 19 horas. “Logo que comecei tive que largar o futebol, que era uma coisa que eu gostava, mas garanto: se não fosse bom eu não estaria aqui até hoje”, relata. Aluno atento aos ensinamentos da escola da vida, como ele mesmo diz, Nildo tem suas lições na ponta da língua. “O mais importante de tudo é

ter na mão o negócio. Tem que saber o que comprar e vender aquilo que pode dar um retorno. Com o tempo, a gente se sente em casa e o negócio vai crescendo automaticamente”, ensina.

Dificuldades Nesses 26 anos e 11 meses à frente do mercado Primavera, Nildo conta que o período mais complicado foi no início da década de 1990, quando a instabilidade financeira do país tornou todas as coisas mais difíceis. “A pior época de todas foi a da inflação descontrolada. Nós comprávamos um item em um dia e na semana seguinte estava muito mais caro. Nunca estávamos com os pés no chão, não tinha como prever. Se tivesse continuado daquele jeito, talvez eu tivesse desistido”, conta. Aproximadamente, um ano depois da implantação do Real como sistema monetário, em 1995 Nildo passou a administrar seu negócio sozinho, quando a irmã e o cunhado venderam suas partes no negócio e começaram a se dedicar a outras atividades. “Depois de 1994 ficou melhor a questão financeira, pois o dinheiro passou a ter valor. Uma pessoa com uma moedinha de 5 centavos consegue comprar uma bala. O dinheiro ainda tem valor há 19 anos”, considera. Apesar de não ter considerado fácil o período inflacionário da década de 1990, Nildo é categórico ao descrever qual momento é o mais complicado na gestão do negócio. “O momento mais difícil é quando você tem que dizer ‘não’ para uma pessoa”, avalia.

Conquistas Atualmente o gestor do mercado Primavera tira de letra seu trabalho.

De trás do balcão cuida dos quatro corredores com prateleiras recheadas de itens de alto a baixo, tem sempre uma brincadeira ou uma história para interagir com quem entra apressado em busca de alguma coisa para comprar. Entre um chimarrão e outro, Nildo desdobra em palavras e lembranças sua história e se emociona ao falar da maior conquista de sua vida: sua mulher e seu filho, Pedro de sete anos. “Eu vim do nada e agora tenho o meu comércio, minha casa, meu carro. Tenho, acima de tudo, minha esposa e meu filho”, conta com os olhos azuis cobertos por uma fina e transparente camada da lágrima que resiste à gravidade e não se desprende das vistas. “Me sinto realizado”, complementa. A contribuição inconsciente de Nildo ao debate da gestão contemporânea, focada em mercados globais e internacionalização dos negócios, reside na mais elementar questão de todas: saber lidar com as pessoas. “O que a vida me ensinou foi conhecer muito as pessoas e com o tempo aprender a respeitá-las e guardá-las no coração”, pondera. Talvez o sucesso do mercado Primavera esteja, justamente, em nunca ter perdido a vocação de ser um local familiar às várias gerações que há mais de 50 anos cruzam a porta do venda localizada na esquina das ruas 14 de Julho e Cel. Antônio Inácio, em Montenegro. Entender a gestão global passa, também, pela lição do escritor Fiódor Dostoiévski, que assim diz: “Se você quiser conhecer o mundo, comece por sua aldeia”. Para quem tem vontade de aprender, o professor está lá, detrás do balcão com uma cuia na mão esquerda e um sorriso no rosto.

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AQUINO, Santo Tomás de. Questões disputadas sobre a alma (São Paulo: É Realizações, 2013)

A disputatio de Santo Tomás de Aquino: uma síntese dupla Obra do Aquinate continua atual porque os problemas que corrige são atemporais, assegura o tradutor Luiz Astorga. Técnica de discussão aristotélica tem origem na maiêutica de Sócrates e suscitou diversas polêmicas e escândalos Por Márcia Junges

“A

disputatio, e em particular a empreendida por Santo Tomás, que me parece elevá-la a seu cume, resulta de uma perfeita adaptação e depuração da técnica de discussão aristotélica, que por sua vez se origina na maiêutica socrática”, pontua Luiz Astorga na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Tradutor dessa obra para a língua portuguesa, Astorga menciona que “é difícil encontrar nesta obra uma questão que não tenha sido causa ou efeito de debates acalorados, fossem filosóficos, fossem teológicos”. Ele acrescenta que a doutrina metafísica de Santo Tomás é uma síntese em duplo sentido: “é tanto uma mescla de diversas doutrinas, em especial a de Aristóteles e a de Platão (a deste sobretudo por intermédio

1 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre dominicano, teólogo, distinto expoente da escolástica, proclamado santo e cognominado Doctor Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Católica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo com a visão aristotélica do mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo redescoberto na Idade Média, na escolástica anterior. EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

de Proclo, do De causis, do Pseudo-Dionísio Areopagita e de Boécio) quanto, ademais, é sua superação”. Bacharel em Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, Luiz Augusto Astorga iniciou seu ofício atual como autodidata. Tradutor e estudioso da obra de Santo Tomás de Aquino, concluiu Pós-Graduação em Filosofia pela Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro e obteve Mestrado summa cum laude em Filosofia pela PUC de Santiago do Chile, onde atualmente conclui doutorado. Foi bolsista da Comisión Nacional de Investigación Científica y Tecnológica de Chile (CONICYT), assim como de sua própria universidade. Confira a entrevista.

Luiz Astorga – Creio que o primeiro desafio que se impõe a quem traduz a escolástica2 é não perder de Em suas duas “Summae”, sistematizou o conhecimento teológico e filosófico de sua época: são elas a Summa Theologiae, a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU On-Line) 2 Escolástica: linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade, por assim dizer, responsá-

vel pela unidade de toda a Europa, que comungava da mesma fé. Esta linha vai do começo do século IX até ao fim do século XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Este pensamento cristão deve o seu nome às artes ensinadas na altura pelos escolásticos nas escolas medievais. Estas artes podiam ser divididas em Trivium (gramática, retórica e dialéctica) e Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). A escolástica resulta essencialmente do aprofundar da dialética. Confira a edição 342 da revista IHU On-Line, de 06-09-2010, intitulada Escolastica. Uma filosofia em dialogo com a

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IHU On-Line – Quais foram os principais desafios e as peculiaridades em se traduzir as Questões disputadas sobre a alma, de Santo Tomás de Aquino?1

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vista o contexto de uma obra e seus pressupostos. É verdade que isso se aplica à tradução de toda e qualquer filosofia, mas a escolástica primava pelo respeito redobrado de seus praticantes ao estado de uma questão, a tal ponto que vários argumentos apresentados de modo anônimo numa discussão podiam facilmente remeter-se aos autores ou escolas que os promoviam. Sendo este um trabalho de Santo Tomás, agrega-se também a peculiaridade de que raramente o Doutor Comum esgotava num único tratado suas explicações de um tema: embora os argumentos que movia pudessem se repetir ao longo de distintas obras, sempre garimpamos acréscimos enriquecedores em suas várias iterações. Por isso, cada assunto tratado pelo Aquinate tem o potencial de criar um contexto por si mesmo, que se soma ao do próprio debate com seus oponentes. Em segundo lugar, é evidente que a responsabilidade de traduzir as Questões disputadas sobre a alma já constitui por si mesma um desafio. Trata-se de um texto que concentra distinções filosóficas muito sutis, que por sua vez têm profundas e imediatas consequências para a antropologia, a teoria do conhecimento, a moral, e também para a adequada manifestação da conveniência entre a natureza humana e a escatologia cristã revelada. Por fim, creio que tradução de Santo Tomás exige buscar um equilíbrio entre o desejo de desenvolver a riqueza de suas explicações e a obrigação de respeitar a impressionante simplicidade com que ele as dá. Portanto, visto que é inevitável a adaptação de seu discurso aos hábitos e fórmulas de nossa língua (mais do que apenas à sintaxe), recorremos às notas onde quer que um afastamento do texto se fizesse conveniente. Estas se somam às notas explicativas, que por sua vez compõem com as demais referências um total de quase quinhentas. IHU On-Line – Como pode ser compreendido o método escolástico da disputatio? Luiz Astorga – A disputatio, e em particular a empreendida por Santo modernidade, disponível em http://bit. ly/11mcjbi. (Nota da IHU On-Line)

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Tomás, que me parece elevá-la a seu cume, resulta de uma perfeita adaptação e depuração da técnica de discussão aristotélica, que por sua vez se origina na maiêutica socrática. Creio que se trata do método mais eficaz já desenvolvido para resolver uma quaestio, um tema disputado. Tomemos por modelo a maneira tomista de tratar a disputatio. Ela se inicia pela apresentação do problema de que se vai tratar, o que é feito, de modo geral, em termos breves e precisos: “investiga-se se a alma é o mesmo que suas potências”, por exemplo. “E parece que sim.” (Note-se que quase sempre, na disputatio tomista, se se diz sim nessa apresentação, é porque a posição defendida será não, e vice-versa, embora haja nisto matizes.) Segue-se então a apresentação de argumentos pelos quais, no caso de nosso exemplo, se deveria dizer que “sim”. Normalmente temos, em seguida, alguns argumentos contrários aos anteriores, que já quase sempre antecipam a resposta que será dada. Passa-se então à referida solução central (o corpus) do problema. Por fim, dá-se réplica a cada um dos argumentos antes movidos. É um método muito propício para erradicar confusões, tergiversações e desvios do gênero.

Dedicação à verdade Ocasionalmente, pode ser difícil reter na memória os argumentos que se confrontarão com as réplicas, especialmente após a passagem pelo corpus. Por isso sempre sugiro que, numa disputatio, se leia primeiro o título e o “sim” ou “não”; depois, que se salte ao corpus; só então, havendo-se já entendido a explicação central, que se alterne um argumento e sua réplica, sucessivamente. Um detalhe: Santo Tomás era tão dedicado à verdade, que era muito comum que sua versão dos argumentos de seus adversários fosse mais clara e bem desenvolvida que as deles próprios. Onde pudesse haver razão nas afirmações de seu oponente, lá ele estaria para expô-la do melhor modo possível. Em nossa disputatio, há ocorrências disso. IHU On-Line – Que temas desta disputa filosófica suscitaram polêmicas e escândalos?

Luiz Astorga – Não seria um exagero dizer que a sua vasta maioria o fez. Nas duas primeiras questões, por exemplo, se defende que a noção da alma como forma do corpo não exclui postulá-la como algo subsistente por si. Recebem-se objeções de viés predominantemente platônico, mas habilmente respaldadas por passagens de Aristóteles3. A problemática imagem da alma como “um marinheiro num navio” deveria ser refutada sem sacrificar-se sua sobrevivência após o inevitável naufrágio da carne. Foi ponto de árduo debate esta harmonia entre a correta concepção do indivíduo humano – com corpo e alma – e a incorruptibilidade desta alma. Ademais, a própria moral se veria necessariamente mutilada se o ser humano se extinguisse de todo: o pecado, que em sua instância mais fundamental é cometido contra uma Pessoa de dignidade infinita, não poderia receber castigo proporcional durante uma existência finita. Já a terceira questão é um exemplo perfeito de polêmica que chegou a escândalo. Não foi à toa que seu tema, a unidade do intelecto possível, deu nome ao opúsculo mais veemente que escreveria Santo Tomás, cuja mansidão era uma segunda natureza quase invencível. Parece-me que poucas posições filosóficas do medievo foram tão estranhas ao senso comum quanto a ideia de que o intelecto em que se assentam as formas das coisas que conhecemos seria um só para todos nós, e creio que ela só foi postulada por Averróis4 devido à sua 3 Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um dos maiores pensadores de todos os tempos. Suas reflexões filosóficas — por um lado originais e por outro reformuladoras da tradição grega — acabaram por configurar um modo de pensar que se estenderia por séculos. Prestou inigualáveis contribuições para o pensamento humano, destacando-se nos campos da ética, política, física, metafísica, lógica, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia, história natural e outras áreas de conhecimento. É considerado, por muitos, o filósofo que mais influenciou o pensamento ocidental. (Nota da IHU On-Line) 4 Ibn-Rushd (1126-1198): filósofo e físico árabe, mais conhecido na tradição latina pelo nome de Averróis, um dos maiores conhecedores e comentaristas de Aristóteles. Aliás, a própria metafísica de Aristóteles foi redescoberta na Europa graças aos árabes e os comentários de Averróis muito contribuíram para a recepção do SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


IHU On-Line – Em que consistem a riqueza e atualidade da gnosiologia e da metafísica do Aquinate? Luiz Astorga – Quanto a esta pergunta, recomendo expressamente o prólogo da obra, que considero leitura muito recompensadora. Após a suposta “morte” da metafísica clássica – talvez o maior flagrante delito do enterro de um vivente –, cada vez mais as ciências particulares se viram afastadas do eixo unitivo que as articula e hierarquiza. De lá para cá, tem crescido de modo assustador o número de praticantes das ciências que se veem a procurar soluções para perguntas fora do âmbito de seu ofício, ou a negar peremptoriamente a existência de rea-

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IHU On-Line – Por que problemas relativos à angelologia são também enfrentados e resolvidos nessa obra? Luiz Astorga – Porque a completa compreensão de algo passa inevitavelmente por sua distinção daquilo que ele não é. Portanto, não basta diferenciar a alma humana daquela dos animais, mas cabe também mostrar que, embora imaterial e subsistente, ela não é por isso uma “substância separada” em sentido pleno, que é como designamos a natureza angélica. Se o homem é o horizonte entre o sensível e o inteligível, é também o ponto médio entre o bruto e o anjo. A alma é coprincípio da essência humana, não uma essência completa por si mesma, suficiente para as operações que lhe competem realizar. Ela é subs-

tância incompleta sem o corpo, e sua condição natural é a da união com ele. Ao contrário, o que entendemos por anjo é uma essência à qual não cabe a união com o corpo: ela é pura forma, e é completa desse modo.

Natureza angélica Não nos deve surpreender a presença dos anjos numa obra filosófica, pois para Tomás os anjos não são um âmbito de estudo exclusivo da Sagrada Doutrina. Pode ser filosófico o estudo sobre como um ente desprovido de matéria realizaria suas operações volitivas e intelectivas, e sobre quais outras características poderíamos deduzir da definição que lhe demos. O Tratado das Substâncias Separadas é exemplo disso: quase todos os capítulos desta obra (infelizmente inacabada) mostram, sem recorrer à autoridade das Escrituras, como se deduzem certas características de sua condição imaterial; mostram, também, que postular uma dimensão imaterial intermediária entre Deus e o homem era a regra entre os sábios pagãos, não a exceção. É claro que Tomás leva sempre em conta o dado revelado, e que o que este nos diz sobre a natureza angélica está suposto em seu discurso; não obstante, até aproximadamente o antepenúltimo capítulo, seus argumentos se baseiam quase que exclusivamente na razão natural (mesmo aqueles com que se defende a existência destas criaturas). Apenas nos últimos capítulos começava a despontar sua perfeita complementação teológica, que era a finalidade da obra, pois neles teria lugar a explicação de atributos que só podemos afirmar pela luz da Revelação. IHU On-Line – Em que sentido Santo Tomás de Aquino realiza uma fusão na perspectiva filosófico-teológica da sabedoria platônica e aristotélica? Luiz Astorga – A doutrina metafísica de Santo Tomás, sempre subjacente e mais ou menos explícita nas obras de sua Sacra Teologia (porque em verdade ele é antes de tudo um teólogo sacro, mais que um filósofo sistemático), é uma síntese, em seu duplo sentido: é tanto uma mescla de diversas doutrinas, em especial a de Aristóteles e a de Platão (a deste so-

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pensamento aristotélico. Averróis também se ocupou com astronomia, medicina e direito canônico muçulmano. (Nota da IHU On-Line) 5 Alexandre de Afrodisia (aproximadamente 200 a. C.): comentador de Aristóteles, que foi discípulo de Hermínio e de Aristocles de Messina, os quais puderam transmitir-lhe sua tendência platonizante e estoica. Ocupou a cátedra peripatética em Atenas. Seus comentários a Aristóteles foram muito influentes até o Renascimento. (Nota da IHU On-Line) 6 Temístio (317-387): filósofo da Antiguidade tardia que, como poucos, seguiu somente a filosofia aristotélica e assim se contrapôs aos outros filósofos de sua época, que tomavam o pensamento de Aristóteles como um apêndice do pensamento de Platão, e que ficaram conhecidos como neoplatônicos. (Nota da IHU On-Line)

lidades sobre as quais não versa sua especialidade, ou ainda a “refutar” certas noções e fundamentos que, em verdade, são pressupostos de sua própria ciência. Isso não é de se admirar, uma vez estando soterrada a ciência que atendia a essas questões. Ademais, a esta dificuldade adiciona-se outra, de caráter oportunista. Esse terreno de desordem epistemológica é favorável à invasão de ideologias, que parasitam a autoridade dos experimentos científicos, mas que, uma vez expostas em sua fragilidade, se refugiam imediatamente no relativismo. Por exemplo, a tendência atual a identificar o pensamento e a sensação certamente se enquadra nessa categoria, embora vários cientistas que hoje a adotam como pressuposto não sejam eles mesmos ideólogos. Fazem-no diante de certa unanimidade que, sem apresentar credenciais, fez da comunidade científica o seu hospedeiro. E claro está que esta identificação indireta entre homem e animal tem como efeito calculado a negação da moral. Estas e outras modas de pensamento, porém, raramente constituem novidade: são muitas vezes a reciclagem de desvios metafísicos extremamente antigos, cuja abundância é proporcional ao desconhecimento das – ou desinteresse pelas – discussões que os iluminam. Portanto, creio que este livro é vivamente atual em sua importância. Sem contradição alguma, trata-se de uma obra atual porque os problemas que corrige são atemporais.

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profunda sinceridade filosófica, posta diante de um problema aristotélico aparentemente insolúvel, no qual se confrontavam Alexandre de Afrodísia5 e Temístio6. Há hoje certa tendência a dizer que Averróis não haveria postulado tal posição, mas ela não me parece possuir fundamento suficiente; creio que Santo Tomás estava correto ao identificá-la naquele grande comentador. A oposição que fez aos averroístas latinos valeu-lhe insultos, revoltas de alunos, boicotes e até interrupções de suas aulas. Questões como a décima quinta, por sua vez, têm consequências teológicas diretas, pois a capacidade da alma para compreender fora do corpo é condição fundamental para o julgamento de uma pessoa por suas próprias ações. É difícil encontrar nesta obra uma questão que não tenha sido causa ou efeito de debates acalorados, fossem filosóficos, fossem teológicos.

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bretudo por intermédio de Proclo7, do De causis, do Pseudo-Dionísio Areopagita8 e de Boécio9) quanto, ademais, é sua superação. Sobre a base em boa parte integral da filosofia aristotélica, o Aquinate remata seu edifício metafísico com a doutrina da participação platônica, que lhe serve de cúpula. Diria que, com respeito à doutrina aristotélica, ele a leva a suas últimas consequências (a consequências a que o mesmo Aristóteles não pôde chegar), nas quais ela se encontra com a doutrina da participação platônica, conforme acolhida por Tomás. Assim o faz na Suma contra os Gentios, por exemplo. E, curiosamente, naquele mesmo Tratado das Substâncias Separadas, por pouco não diz o Aquinate que não há diferença essencial entre Platão e Aristóteles: é que, do alto de seu pensamento mais maduro, ele pode vê-los do ângulo de sua própria síntese: a acabada doutrina do ser, e da distinção real entre o ser e a essência.

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IHU On-Line – Qual é a relevância e a atualidade da discussão do Aquinate sobre a duplicidade da substância humana, entre material e espiritual? Luiz Astorga – Pode dizer-se que, com respeito a uma doutrina metafísica, relevância e atualidade são quase o mesmo, ainda que vistas de ângulos distintos; como disse, as soluções

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7 Proclo Licio Diadoco (410 d. C. – 487 d. C.): filósofo neoplatônico cujo mérito foi desenvolver a corrente de pensamento baseada em Platão, iniciada por Plotino e depois expandida por Porfírio e Jâmblico. Proclo combina os seus próprios pontos de vista com os de seus mestres – Plutarco, Siriano, Porfírio e Jâmblico. (Nota da IHU On-Line) 8 Pseudo-Dionisio (Dionisio, o areopagita): nome dado ao autor de uma série de escritos que exerceram grande influência sobre o pensamento medieval. Acreditou-se por muito tempo que o autor desses escritos fosse discípulo de São Paulo. Hoje se considera que as obras de referência foram redigidas no final do século IV ou começos do V sob a influência neoplatônica e especialmente a base de fragmentos de Proclo. Por tal motivo costuma-se chamar a seu autor o Pseudo-Dionisio, e às vezes Dionísio, o místico. (Nota da IHU On-Line) 9 Anício Mânlio Torquato Severino Boécio (480-524): filósofo, estadista e teólogo romano que se notabilizou pela sua tradução e comentário do Isagoge de Porfírio, obra que se transformou num dos textos mais influentes da filosofia medieval europeia. (Nota da IHU On-Line)

metafísicas são sempre atemporais, pois versam sobre o que há de mais fundamental na realidade. Pois bem, a insistência de Santo Tomás em que é parte da essência humana ser composto de corpo e alma como dois coprincípios dá resposta não só a certa tendência sempre latente no próprio cristianismo a um hiperespiritualismo de tonalidade platônica (ou antes neoplatônica), mas também à sua retomada já fora do âmbito da Escolástica, com Descartes10, Malebranche11 e outros. Mas por outro lado também dá resposta a um, digamos, “hipercorporalismo” que o materialismo moderno traz consigo (na esteira do pré-socratismo, do estoicismo, etc.): e também responde a isto porque, se de fato o homem é um composto essencial de corpo e alma, também é verdade que o corpo se ordena também essencialmente à alma. E isto em quatro sentidos. Em primeiro lugar, como em todos os animais, a alma humana é a enteléquia da geração, e o princípio organizador e ordenador do corpo. Em segundo lugar, a alma humana é intelectual, e portanto a ordem do corpo a ela é de classe particular, distinta da que se dá nos demais animais. Em terceiro lugar, por intelectual, a alma humana é incorruptível e portanto imortal: ela sobrevive à mor10 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), posição filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line) 11 Nicolas Malebranche (1638-1715): filósofo francês. Sua principal obra é De la recherche de la vérité (Da procura da verdade), onde trata da natureza do espírito humano e do que o homem deve fazer para evitar o erro nas ciências. Foi publicada em três volumes, o primeiro em 1674 e os outros dois em 1675. Malebranche critica os filósofos que estudam as relações da alma com o corpo, sem considerar sua união com Deus. Segundo ele, o enfraquecimento das relações da alma com Deus foi consequência do pecado original, que fortaleceu a relação alma-corpo. (Nota da IHU On-Line)

te do corpo, diferentemente do que se dá com os brutos, cuja alma é inseparável da matéria. E em quarto lugar, por fim, falando agora em termos de Sacra Teologia, a alma humana (e com ela o composto humano) está ordenada a Deus como ao fim último. IHU On-Line – Por que Questões disputadas sobre a alma é considerada uma obra prima? Luiz Astorga – Já apontamos o leitor para a excelência de seu conteúdo, para sua atualidade, e para o caráter crucial das questões filosóficas que nela se encontram coligidas, sobre as quais se articularam polêmicas numerosas. Creio que seja também relevante o fato de ser uma disputatio, que a meu ver é o modo mais cristalino de se defender ou refutar qualquer posição. Mas há um aspecto realmente belo da escolástica que se sobressai em Tomás (e o faz certamente nesta obra), que é o modo quase arquitetônico pelo qual uma exposição se constrói sobre a solidez da anterior. Aqui, as primeiras questões tratam de estabelecer o que é a alma e a faculdade que nela a faz propriamente humana. As seguintes (sétima e oitava) tratam de situar a alma em sua posição própria na hierarquia da criação. Passa-se então à explicação de como a alma, enquanto ato do corpo, o organiza e lhe dá capacidades e operações. As últimas questões, inauguradas pelo argumento que estabelece sua imortalidade, tratam daquilo que lhe compete após sua separação do corpo, seja em sua disposição para o juízo de seus atos, seja no que lhe pode caber como consequência desse juízo. Naturalmente, há outras qualidades que ainda se poderiam ressaltar, mas creio que o próprio leitor apreciará a oportunidade de identificá-las em primeira mão.

Leia mais... >>Confira a edição da revista IHU OnLine sobre a filosofia escolástica. • Edição 342, de 06-09-2010, Escolastica. Uma filosofia em dialogo com a modernidade, disponível em http:// bit.ly/11mcjbi

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Artigo da Semana

Gigantesco retrocesso. Governo cede a ruralistas e “põe fim” à demarcação de terras indígenas Por Cesar Sanson

“A

desautorização da Funai como órgão responsável pela política de demarcação de terras para os povos indígenas e, por extensão, povos tradicionais, como quilombolas, significa um retrocesso gigantesco nas políticas públicas indigenistas com consequências imprevisíveis. Décadas de esforços para dotar a legislação brasileira de instrumentos de defesa dos povos indígenas foram jogados por terra”. O comentário é de Cesar Sanson, docente na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, em artigo para a IHU On-Line. O texto é uma síntese da

1 O dia 8 de maio de 2013 entrará para a história como uma data que registra um gigantesco retrocesso na política indigenista brasileira. Na audiência realizada pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, na Câmara dos Deputados, a ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann, falando para uma plateia de ruralistas, anunciou drásticas mudanças na política de demarcação das terras indígenas. A ministra – para satisfação dos fazendeiros e empresários do agrobusiness, homens brancos e acima dos 50 anos que a ouviam – disse que “a Funai é um órgão envolvido com os interesses indígenas, e que, portanto, ela não é imparcial, colocando sob

11 Disponível em http://bit.ly/19tFw7z (Nota da IHU On-Line)

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Conjuntura da Semana publicada no sítio do IHU em 20-05-20131. A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia. Eis o artigo.

suspeição a competência da instituição para desenvolver as atribuições que estão sob a sua responsabilidade”. Ato contínuo, após efusivos aplausos, anunciou que até o final deste semestre será definido um novo marco regulatório para os processos de demarcações das terras indígenas. Era tudo os que os ruralistas queriam ouvir. Daqui para frente, a demarcação de terras indígenas, que já vinha patinando – em dois anos, Dilma homologou menos áreas em média do que seus antecessores no cargo –, ficará inviabilizada. O governo irá submeter à Embrapa os estudos em andamento pela Funai para demarcação de terras indígenas e os Ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e das Cidades devem passar a opinar sobre as demarcações. Dos

três ministérios, dois estão nas mãos de ruralistas. Com o anúncio da ministra terminava aí o desfecho de uma agressiva ofensiva iniciada pela bancada do agronegócio para inviabilizar a demarcação de terras indígenas. Não contentes, porém, a bancada ruralista conta ainda com a pá de cal, a PEC 215, para acabar de vez e enterrar qualquer tentativa que territórios sejam retomados pelos indígenas. Mais triste ainda: dias depois, diante da indignação das organizações ligadas ao movimento indígena, a ministra Gleisi Hoffmann disse que “o governo não pode e não vai concordar com minorias com projetos ideológicos irreais”. A demarcação das terras indígenas, um direito constitucional, virou um “projeto ideológico irreal” e SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


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5 http://bit.ly/ZXGksH

O modelo econômico brasileiro em curso é altamente dependente da exploração de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas e minerais para exportação (soja, etanol, pecuária, minérios...). Logo, o Estado brasileiro se torna anti-indígena assim como o agronegócio, porque o seu modelo vai na contramão do modo de vida indígena. A tensão no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, envolvendo a Secretaria Geral da Presidência e os indígenas, particularmente os Munduruku, é emblemático da idiossincrasia entre o projeto do governo e o que querem os indígenas. Na queda de braço, além da força política, o agronegócio acaba sendo favorecido pelo modelo econômico do governo: “O econômico é o único compromisso do atual governo. Nada pode impedir que os propalados progresso e desenvolvimento avancem sobre novas áreas, desconhecendo totalmente os direitos dos povos que há séculos ali vivem e convivem, se assim o governo definir como essenciais ao desenvolvimento”, afirma nota6 da Comissão Pastoral da Terra – CPT. Entre os ruralistas e os indígenas, por razões políticas e econômicas o governo decidiu ficar com os primeiros. O retrocesso em torno da demarcação das terras indígenas, somado ao que aconteceu no “abril indígena” e no canteiro de obras de Belo Monte, revelou ainda outro aspecto. O irrisório apoio de organizações tradicionais da esquerda, ou pretensamente da esquerda. O PT e a CUT não se manifestaram. Ficaram silenciosos. O PCdoB já demonstrou que é anti-indígena, pois, sempre que a pauta da questão indígena está em jogo, o partido fica do lado das forças mais atrasadas. Dentre os partidos, mais à esquerda, como PSOL e PSTU, os protestos foram tímidos. Restou no firme e incansável apoio à luta indígena o Conselho Indigenista Missionário – Cimi e algumas organizações não governamentais. Fica a pergunta: Será que os povos indígenas não fazem parte – ou não cabem – do projeto de Nação da esquerda brasileira?

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2 http://bit.ly/14ApvJi 3 http://bit.ly/12e73Eo 4 http://bit.ly/12it7zi

Tribunal Federal – STF. Já o terceiro é a aprovação da PEC 215, com a qual a CNA e os ruralistas finalmente teriam o poder nas próprias mãos para decidir acerca da não demarcação das terras indígenas no país. Vencida a primeira batalha, os ruralistas devem avançar para os próximos pontos da estratégia. Caso avancem – o que é bastante possível considerando que o governo Dilma não oferece resistências à sanha voraz do agronegócio –, significará o fim definitivo da demarcação de terras indígenas. Restariam aos indígenas ainda sem territórios viverem em guetos e à custa de políticas sociais compensatórias. Esse é o projeto dos ruralistas: “A classe produtora é a favor do indígena e sabemos que eles precisam de amparo social e não de terras”, diz o diretor da Federação da Agricultura e Pecuária (Famasul) do Mato Grosso do Sul, Ruy Fachini5. O cerco dos ruralistas deu certo. Contou, porém, com a enorme condescendência do governo. O governo cede por duas razões: uma de ordem política e outra de ordem econômica. Razões políticas: O governo Dilma Rousseff tornou-se refém da bancada ruralista. Necessita dela para avançar em seus projetos. A bancada ruralista chantageia, joga pesado, barganha. Sabe como enredar o governo porque joga de forma unitária, classista, não titubeia na defesa dos seus interesses. Há análises que interpretam que o maior partido no Brasil é o “partido dos ruralistas”. Há outra razão da subserviência do governo às demandas dos ruralistas. Na ótica do governo, afrontar os ruralistas é empurrá-los para o apoio a outras candidaturas. Nas articulações políticas visando 2014 não é bom tê-los como inimigos, avalia o Palácio do Planalto. Sabe-se que o apoio dos ruralistas foi importante para a vitória de Dilma Rousseff em estados da região centro-oeste. As articulações para reeleição de Dilma contam com o apoio senão de todos, ao menos de parcela significativa dos ruralistas. Razões econômicas: A “afinidade” do governo com os ruralistas se dá também em função do seu modelo econômico desenvolvimentista.

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os povos indígenas tornaram-se “minorias” que devem se calar. Ao qualificar a luta indígena como “projeto ideológico irreal”, o governo assumiu o discurso ruralista. Sobre isso diz Egydio Schwade2, um dos fundadores do Cimi: “É humilhante ver uma ministra do nosso governo propor a revisão das demarcações de terras indígenas dos últimos 25 anos. Seria para ampliar esses territórios já livres do capitalismo? Infelizmente não! Será para anexá-los ao agronegócio, abri-los para a exploração capitalista da mineração, ou cobri-los com as águas de lagos hidrelétricos”. A decisão do governo de desautorização da Funai como órgão responsável pela política de demarcação de terras para os povos indígenas e, por extensão, povos tradicionais, como quilombolas, significa na análise de assessores dos movimentos sociais ligados à luta indígena um estrago gigantesco nas políticas públicas indigenistas e com consequências imprevisíveis. Décadas de esforços para dotar a legislação brasileira de instrumentos de defesa dos povos indígenas foram jogados por terra. Ganhou o “jogo pesado” dos homens do agrobusiness, como destaca Egon Heck3, missionário do Cimi. A ofensiva ruralista vem de longe. Após a vitória no Código Florestal, a bancada ruralista escolheu como alvo o fim da demarcação das terras indígenas, que, em sua opinião, atrapalha o desenvolvimento do agronegócio brasileiro. Segundo o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Cleber Cesar Buzatto4 a estratégia da bancada ruralista e da Confederação Nacional da Agricultura – CNA possui três vértices principais. O primeiro, visando o executivo, pede a “suspensão” de todos os procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas que estejam em curso. Esse já foi atingido com a fala da ministra Gleisi Hoffmann. O segundo busca tornar lei a Portaria 303 da Advocacia Geral da União – AGU, a arena dessa luta é o Judiciário, especialmente o Supremo

6 Cf. http://bit.ly/10vw37G

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Destaques On-Line Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line no período de 27-05-2013 a 03-06-2013, disponíveis nas Entrevistas do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Megaeventos e “uma limpeza urbana injustificada” Entrevista especial com Sônia Fleury, psicóloga, coordenadora do Programa de Estudos da Esfera Pública, da Fundação Getúlio Vargas – FGV Confira nas notícias do dia de 28-05-2013 Acesse o link http://bit.ly/10DPGMc

Entrevista especial com Guilherme Dutra, biólogo, diretor do programa marinho da Conservação Internacional – CI no Brasil Confira nas notícias do dia de 30-05-2013 Acesse o link http://bit.ly/17Dw1UY

A reestruturação urbana do Rio de Janeiro irá remover “cerca de 30 mil pessoas, dando prioridade para investimentos empresariais e negócios”. Para Sonia Fleury, “trata-se de um processo decisório, autoritário, fechado, não transparente e simbolicamente muito violento”. Ao comentar os dados do documento “Megaeventos e violação dos direitos humanos no Rio de Janeiro”, publicado recentemente, a entrevistada assinala haver uma “concentração das obras do PAC em certas áreas da cidade, que não são exatamente nas quais as pessoas estão morando”.

“O Brasil tem avançado muito pouco na agenda de proteção dos ecossistemas marinhos. Hoje, menos de 1,6% de nossa Zona Econômica Exclusiva – ZEE encontra-se em algum tipo de unidade de conservação”, assinala Guilherme Dutra. Para ele, a oferta de mais de 170 blocos de petróleo em áreas onde a biodiversidade ambiental é pouco conhecida, oferecida na 11ª Rodada de Licitações da Agência Nacional de Petróleo – ANP, “põe em risco não somente a biodiversidade, mas também os serviços que dependem dela, como a pesca, o turismo, a fixação de carbono, a proteção da costa”.

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Leilão da Petrobras. “O governo tem uma agenda econômica inflexível e, outra social, frágil e compensatória”

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Planejamento marinho e a dependência do petróleo

Entrevista especial com Marcelo Calazans, sociólogo, coordenador do Programa Regional da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional – FASE no Espírito Santo, membro da Rede Deserto Verde e da Rede LatinoAmericana contra Monocultivo de Árvores Confira nas notícias do dia de 29-05-2013 Acesse o link http://bit.ly/1ay13tj A 11ª Rodada de licitações para exploração de petróleo em blocos de terra e mar, que ocorreu no dia 14-05-2013, “reabre de forma voraz, sob ritmo acelerado e sem limite, o ciclo de injustiça ambiental implicado na expansão do modelo energético e societário estimulado pelo governo, em pacto com as gigantescas corporações petroleiras e seus complexos associados, interessados na exploração de um valiosíssimo bem comum, que é o petróleo”, avalia Marcelo Calazans.

A tecnologia e a aposta na minimização da insustentabilidade Entrevista especial com Jefferson Gomes, engenheiro mecânico, professor da Divisão de Engenharia Mecânica-Aeronáutica do Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, e gerente executivo do Departamento Nacional do Senai para Tecnologia e Inovação Confira nas notícias do dia de 01-06-2013 Acesse o link http://bit.ly/13pyaNC “O ser humano por si só é insustentável”. Por isso, assinala Jefferson de Oliveira Gomes, não se pode tratar o conceito “sustentabilidade como algo que está simplesmente restrito ao tripé: econômico, social e ambiental”. O engenheiro mecânico aposta no uso e desenvolvimento da tecnologia para “minimizar” a insustentabilidade que está agregada ao modo de vida do homem.

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Entrevista especial com René Gertz, historiador, professor nos Departamentos de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS Confira nas notícias do dia de 02-06-2013 Acesse o link http://bit.ly/ZEqxWu Desde 2003 o tema do neonazismo “ocupa algum lugar na imprensa brasileira”, mas os dados apresentados não conferem com o que acontece na realidade, diz o historiador gaúcho. Crítico às matérias publicadas na imprensa gaúcha, ele assegura que “há razões para ser cético em relação aos ‘neonazistas virtuais’”.

“A transgenia está mudando para pior a realidade agrícola brasileira” Entrevista especial com Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo, membro do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Incra Confira nas notícias do dia de 03-06-2013 Acesse o link http://bit.ly/19C1dlY “Existem abordagens contraditórias. De um lado há unanimidade quanto à importância dos avanços científicos e do potencial da engenharia genética para o futuro da humanidade. De outro lado, há uma grande divisão relativamente aos resultados obtidos até o presente momento”, pontua o engenheiro agrônomo.

Destaques da Semana

Neonazismo no RS: “que há de verdade ou mentira em tudo isso?”

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Eventos do Instituto Humanitas Unisinos – IHU programados para a semana de 04-06-2013 a 10-06-2013

Data: 04-06-2013 Evento: Segurança da Informação e Sociedade

Palestrante: Prof. Dr. Luiz Gustavo Cunha Barbato (Unisinos) Horário: 19h30min às 22h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Mais informações: http://bit.ly/YEYt4Z

Data: 06-06-2013

IHU em Revista

Agenda de Eventos

Evento: Tomas um mate? Análise da cultura de consumo do chimarrão em um contexto urbano Palestrante: MS Juliana Durayski (Unisinos) Horário: 17h30min às 19h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Mais informações: http://bit.ly/174Agb2

Data: 10-06-2013 Evento: Novas tecnologias, ecologia profunda e novos direitos Palestrante: Prof. Dr. Fábio Corrêa Souza de Oliveira (UFRJ) Horário: 19h30min às 22h Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU Mais informações: http://bit.ly/ZIzeyk

Data: 10-06-2013 Evento: Painel final Techne Brincriação 2013

Apresentação e exposição dos conceitos de jogos submetidos e Mostra de visitação pública Horário: 19h30min às 22h Local: Corredor frente ao IHU (bloco G da área de humanas da Unisinos) Mais informações: http://bit.ly/143mmBw

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Segurança da informação e a privacidade na internet “Se a privacidade com relação às redes sociais já é um problema, imagina ter acesso direto à fonte das informações?”, questiona Luiz Gustavo Cunha Barbato Por Graziela Wolfart e Márcia Junges

S

egundo o professor Luiz Gustavo Barbato, a maioria das ferramentas que pode ser gratuitamente obtida na internet está preparada para explorar as falhas existentes nos softwares e quem as utiliza não precisa ser um gênio da computação nem sequer ter muito conhecimento, pois a inteligência já está embutida na própria ferramenta. Dessa forma, explica ele, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “quem as utiliza pode também ser considerado usuário, ou seja, são usuários atacando usuários. Nessa linha de raciocínio, a constante atualização dos softwares é extremamente importante para a correção das falhas seguida da correta configuração para evitar a exposição não desejada a dados e informações”. Ao refletir sobre os crimes cometidos na internet, Barbato defende que “da mesma forma que a sociedade tenta prevenir e recuperar jovens desvirtuados no mundo das drogas, também temos que fazer o mesmo com aqueles que estão com seus conhecimentos aguçados, porém sendo subutilizados ou até mesmo sem objetivos e perspectivas de vida. Precisamos canalizar a sede de uso de conhecimento em algo benéfico à sociedade como um todo, incluindo as empresas e órgãos governamentais. É nesse ponto que temos que atuar, trazendo as novas gerações para os locais adequados”.

IHU On-Line – Qual é a importância estratégica da segurança da informação na sociedade contemporânea? Luiz Gustavo Cunha Barbato – As novas tecnologias estão mudando padrões de comportamento ou até mesmo intensificando-os. As redes sociais

Luiz Gustavo Cunha Barbato irá ministrar a palestra “Segurança da Informação e Sociedade” no próximo dia 04-06, das 19h30 às 22h na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. A atividade integra o I Seminário em preparação ao XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que acontece de 21 a 24-10-2014 (mais informações em http://bit.ly/17XdPlT). Bacharel em Ciência da Computação pela Faculdade de Administração e Informática de Santa Rita do Sapucaí-MG, Luiz Gustavo Barbato é mestre e doutor em Computação Aplicada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais de São José dos Campos-SP (INPE) na área de Segurança de Sistemas de Informação. Trabalha nessa mesma área desde o ano 2000 em atividades envolvendo administração de redes e sistemas, projeto de arquitetura segura de redes, testes de penetração em redes e aplicações, revisões de códigos de aplicações, forense computacional, análise de artefatos maliciosos, desenvolvimento seguro de software, dentre outras atividades. Atualmente, faz parte do time global de segurança de sistemas de informação da Dell e do corpo docente da Unisinos. Confira a entrevista.

são exemplos claros de que as pessoas não estão se preocupando muito com privacidade em dois aspectos: o primeiro é que elas mesmas publicam informações a seus respeitos não importando muito quem terá acesso e as respectivas consequências, e o segundo aspecto é que aceitam os

termos de uso impostos pelas empresas fornecedoras de tais serviços que usam os dados para diversos fins. Estrategicamente falando, segurança da informação está diretamente relacionada à privacidade, pois esta é violada pelo acesso e uso indevido das informações que podem ser protegidas SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


IHU On-Line – Quais são os maiores desafios no planejamento e execução da segurança da informação? Luiz Gustavo Cunha Barbato – O maior desafio, a meu ver, é o entendimento correto e prático da segurança da informação, pois uma vez que esteja identificado o que realmente precisa ser protegido, independentemente de normas, padrões, etc., o planejamento para se diminuir os riscos fica bem mais tranquilo. Mas infelizmente o fator comercial envolvido em serviços de segurança prestados por algumas empresas de consultoria intensifica a complexidade visando ganhos financeiros. E, no final, o investimento, que deveria ser baixo, se transforma em utilizações de recursos não necessários. IHU On-Line – Quais foram as principais mudanças que ocorreram nessa área nos últimos anos? Luiz Gustavo Cunha Barbato – Uma das principais mudanças é a postura dos profissionais de segurança e áreas correlatas, saindo do estereótipo de vilões que existiam no intuito de vigiar e bloquear tudo para consultores, mesmo internos, que trabalham para encontrar as melhores soluções com menores riscos de segurança visando viabilizar o negócio da empresa. Entretanto, infelizmente ainda há pensamentos e ações retrógrados.

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IHU On-Line – Em que medida a conscientização dos usuários também é importante nesse tema? Luiz Gustavo Cunha Barbato – Conscientização é primordial em qualquer estratégia de segurança, pois as pessoas são as peças que interagem com os sistemas computacionais, mas a conscientização deve ser feita de forma mais criativa. Textos longos, termos muito técnicos, coisas sem cores, chatas de serem lidas não causam os efeitos esperados. A área de segurança deve trabalhar mais próxima do departamento de marketing da empresa para criar campanhas parecidas com às das vendas de produtos. Outro ponto é que as pessoas estão mais questionadoras. Portanto, é necessário explicar as razões das ações, o porquê das coisas. Dessa forma, se técnicas audiovisuais conseguirem ser utilizadas para transmitir informações com fundamentos, creio que as mensagens seriam melhores aceitas, absorvidas e digeridas. IHU On-Line – Qual é a importância da atualização e da manutenção das configurações para a segurança dos usuários e das empresas? Luiz Gustavo Cunha Barbato – As estatísticas mostram que as principais formas de comprometimento a sistemas computacionais são facilitadas por falhas de desenvolvimento e configuração de softwares. Os sistemas não são invadidos somente através da descoberta de senhas de usuários. Muito pelo contrário, a maioria das ferramentas que pode ser gratuitamente obtida na internet está preparada para explorar as falhas existentes nos softwares e quem as utiliza não precisa ser um gênio da computação nem sequer ter muito conhecimento, pois a inteligência já está embutida na própria ferramenta. Dessa forma, quem as utiliza pode também ser considerado usuário, ou seja, são usuários

atacando usuários. Nessa linha de raciocínio, a constante atualização dos softwares é extremamente importante para a correção das falhas seguida da correta configuração para evitar a exposição não desejada a dados e informações. IHU On-Line – Quais são as penalidades para os crimes virtuais cometidos? Há uma legislação/regulamentação específica? Luiz Gustavo Cunha Barbato – Vínhamos tentando reestruturar nossa legislação para enquadrar crimes cibernéticos há um bom tempo. Entretanto, fatos recentes impulsionaram a aprovação da lei 12.737 que, inclusive, foi apelidada de Lei Carolina Dieckmann1. É um passo importante, embora ainda pequeno, pois as penas ainda são brandas, chegando somente até um ano de detenção. Eu ainda acredito que o cerne da questão seja outro. Da mesma forma que a sociedade tenta prevenir e recuperar jovens desvirtuados no mundo das drogas, também temos que fazer o mesmo com aqueles que estão com seus conhecimentos aguçados, porém sendo subutilizados ou até mesmo sem objetivos e perspectivas de vida. Precisamos canalizar a sede de uso de conhecimento em algo benéfico à sociedade como um todo, incluindo as empresas e órgãos governamentais. É nesse ponto que temos que atuar, trazendo as novas gerações para os locais adequados. A universidade tem papel fundamental nesse processo. 1 A Lei Carolina Dieckmann é o apelido que recebeu a Lei Brasileira 12.737/2012, sancionada em 3 de dezembro de 2012 pela presidente Dilma Rousseff, que promoveu alterações no Código Penal Brasileiro, tipificando os chamados delitos ou crimes informáticos. A legislação é oriunda do Projeto de Lei 2793/2011, apresentado em 29 de novembro de 2011, pelo Deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que tramitou em regime de urgência e em tempo “record” no Congresso Nacional, em comparação com outros projetos sobre delitos informáticos que as casas de leis apreciavam. O Projeto de Lei que resultou na “Lei Carolina Dieckmann” foi proposto em referência e diante de situação específica experimentada pela atriz, em maio de 2011, que supostamente teve copiadas de seu computador pessoal 36 fotos em situação íntima, que acabaram divulgadas na internet. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – E o que se prevê para os próximos anos em termos de segurança da informação? Luiz Gustavo Cunha Barbato – A minha maior preocupação é com relação à comercialização e uso não adequado de equipamentos capazes de ler mentes em conjunto com as estatísticas de falhas de segurança em software, ou seja, alguém poder explorar uma vulnerabilidade no software que comunica com esses equipamentos e ter acesso a dados da mente das pessoas? Ficção ou realidade? O que eu posso dizer é que alguns equipamentos EEG (eletroencefalograma) já estão sendo comercializados para fins não médi-

cos e estamos só no começo da popularização dessa tecnologia. Há até sites que ensinam como construir tal equipamento. Se a privacidade com relação às redes sociais já é um problema (em minha opinião), imagina ter acesso direto à fonte das informações?

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pela segurança. E nós, profissionais da área, temos que usar nossos conhecimentos em prol de uma sociedade mais segura.

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Em busca da totalidade de sentido das experiências de saúde e doença Na visão de José Ricardo Ayres, as propostas de humanização nasceram como resposta à manifestação da crise das práticas de saúde nas expressões de insatisfação e descrédito que os usuários passaram a manifestar em diferentes espaços de escuta Por Graziela Wolfart

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o analisar o caso da crise das práticas de saúde, o médico e professor da USP José Ricardo Ayres explica que este continua sendo um setor de atividade produtiva de grande vitalidade, um campo simbólico de forte penetração e poder e uma fonte de bens altamente visados e valorizados, a ponto de ter se tornado uma espécie de ícone do exercício da cidadania, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. “Ter acesso a serviços e insumos de saúde é visto pelos cidadãos como um indicador de seu bem-estar e oferecer esse acesso é cada vez mais tido como dever do estado. A crise de que se trata aqui é da ordem do desencontro entre o que se promete e o que de fato se logra alcançar”. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que “nós somos muito mais que ‘planejadores’ de nossas vidas. Estamos mergulhados na vida em dimensões que extrapolam nosso consciente e nossas capacidades de analisar e planejar. Filosofias diversas e fecundas nos mostram, contudo, que estamos sempre dando um sentido, consciente e pré-consciente, a este estar na vida, e sempre nos deixamos interpelar pela vida respondendo com um projetar-se em direção a ela e projetar para ela, o que, em termos sintéticos, podemos designar como a busca de ser feliz. Nesse sentido, a busca pela compreensão dos projetos de felicidade de indivíduos e populações me parece ser um elemento fundamental para que possamos

IHU On-Line – Quais são os principais elementos que caracterizam a crise das práticas de saúde contemporâneas, pensando em seu processo histórico?

acessar aquela totalidade de sentido singular dos processos de saúde-doença”. José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres fala sobre “Tecnologias e Humanização nas práticas de cuidado em saúde” nesta segunda-feira, dia 3 de junho, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU, das 17h às 19h. A palestra faz parte do I Seminário em preparação ao XIV Simpósio Internacional IHU – Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea, que acontece de 21 a 24 de outubro de 2014 (mais informações em http://bit.ly/17XdPlT). José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres graduou-se em Medicina pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e obteve os títulos de mestre e doutor em Medicina, área de concentração Medicina Preventiva, pelo DMP-FMUSP, onde trabalha como docente. É pró-reitor adjunto de Extensão Universitária da USP. Sua área de interesse é a Saúde Coletiva, com ênfase na atenção primária em saúde. É autor de Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde (CEPESC-IMS/ UERJ-ABRASCO, 2009); Sobre o risco: para compreender a epidemiologia (Hucitec, 2008 3ª. Ed.); também editado em espanhol (Acerca del riesgo. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2005); e de Epidemiologia e emancipação (Hucitec, 2002, 2. edição). Confira a entrevista.

José Ricardo Ayres – Em primeiro lugar, é preciso caracterizar o que estamos chamando de crise, porque essa palavra é frequentemente associada a descrédito, decadência, ruína

e não é disso, absolutamente, que se trata no caso da crise das práticas de saúde. Este continua sendo um setor de atividade produtiva de grande vitalidade, um campo simbólico SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


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demais –, que é a das pessoas, de cada um de nós que busca a atenção à saúde. No Brasil as ações de atenção à saúde são, para início de conversa, de difícil acesso para a maior parte dos brasileiros, apesar de seus grandes centros disporem de uma notável capacidade científico-tecnológica. Então essa é uma primeira questão, a de um progresso de disponibilidade tecnológica que não corresponde ao progresso de disponibilização efetiva. Em nosso país a situação melhorou de forma substantiva com a construção do Sistema Único de Saúde – SUS, mas ainda é problemática, especialmente por que este ainda é subfinanciado, por ainda não se ter concretizado o ideal de fazer da iniciativa privada um setor de fato suplementar e por não se ter atingido um grau e maturidade no controle social capaz de fazer o sistema se aprimorar na velocidade desejada, tanto na perspectiva técnica quanto gerencial. Mas mesmo nos países mais ricos e com sistemas

de saúde sólidos e públicos, como o inglês, as dificuldades são grandes e, em linhas gerais, são bastante parecidas com o que nos referimos acima como a incapacidade de atender às necessidades de saúde das pessoas. Essa incapacidade pode ser resumida como uma leitura de tais necessidades e uma resposta a elas que não faz sentido para as pessoas, que não impacta seu bem-estar de modo significativo e que acarreta uma sobrecarga de custos de diversas ordens (na rotina, nos gastos, nas relações interpessoais, no estado mental) e de efeitos adversos e riscos, sobrecarga que sobrepuja os benefícios efetivamente alcançados. IHU On-Line – Como definir hoje as complexas necessidades de saúde de indivíduos e populações? José Ricardo Ayres – Complexidade é mesmo a ideia central aqui. As necessidades de saúde são complexas. E são complexas porque são muitas e variadas. Também porque são dinâmicas, vão se transformando, até por força das próprias tecnologias que são criadas e apresentadas ao público. Para dar um exemplo desse aspecto, lembremos que há poucos anos uma pessoa que procurava um serviço de saúde com uma queixa de dor de cabeça esperava que, com algumas perguntas, o profissional de saúde pudesse identificar seu problema e lhe prescrever um analgésico; hoje ela já se pergunta se não seria indicado realizar uma tomografia e se não seria necessário que se prescrevesse também um antidepressivo. Mas, especialmente, as necessidades são complexas porque elas se configuram como tal em totalidades práticas singulares, isto é, elas só ganham sentido para as pessoas no conjunto de situações físicas, mentais, relacionais, que essas pessoas vivem em seu cotidiano e no modo como, nessas situações, determinadas condições são percebidas como vantajosas ou desvantajosas, confortáveis ou desconfortáveis, desejáveis ou indesejáveis. Ora, nesse sentido, o magnífico e admirável progresso das ciências e das tecnologias materiais nelas baseadas caminha, em certo sentido, na

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IHU On-Line – Quais as limitações que se apresentam às práticas de saúde quando postas em contraste com o expressivo desenvolvimento científico e tecnológico contemporâneo? José Ricardo Ayres – Vamos focar aqui na perspectiva mais relevante, a que deve prevalecer – sem, claro, desqualificar a relevância das

“No Brasil as ações de atenção à saúde são, para início de conversa, de difícil acesso para a maior parte dos brasileiros, apesar de seus grandes centros disporem de uma notável capacidade científicotecnológica”

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de forte penetração e poder e uma fonte de bens altamente visados e valorizados, a ponto de ter se tornado uma espécie de ícone do exercício da cidadania, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Ter acesso a serviços e insumos de saúde é visto pelos cidadãos como um indicador de seu bem-estar e oferecer esse acesso é cada vez mais tido como dever do estado. A crise de que se trata aqui é da ordem do desencontro entre o que se promete e o que de fato se logra alcançar. Na perspectiva das pessoas, a assistência se torna cada vez mais incapaz de responder às suas necessidades, ou porque é de difícil acesso, ou porque opera de forma fragmentária e descontextualizada, mostra-se com frequência pouco resolutiva e até lesiva e é muitas vezes oferecida de forma fria e indiferente, quando não mesmo hostil e violenta. Na perspectiva dos profissionais ela apresenta, em seu conjunto, um cotidiano desgastante, com recursos precários, situações de assistência complexa, baixa remuneração, dificuldades no relacionamento com a clientela, coerções administrativas ao seu modo de atuar e exigências sempre crescentes de atualização científica e técnica. Do ponto de vista do estado, a atenção à saúde representa uma pressão orçamentária enorme e crescente, com o alto custo dos procedimentos e tecnologias e a crescente demanda por elas, além da complexidade de administrar política e economicamente as pressões do setor produtivo, seja de bens materiais, seja de serviços, e da demanda social – caracterizada, até, por um expressivo movimento de judicialização dessas demandas, muitas vezes instada por interesses escusos de profissionais e empresas.

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direção inversa à que seria necessária. As chamadas ciências da saúde se especializam, tornam-se capazes de abstrações analíticas cada vez mais poderosas, fragmentam e aprofundam o conhecimento de partes cada vez mais específicas de seus objetos de estudo. Com base nelas, produzem-se tecnologias também cada vez mais poderosamente capazes de manejar estes objetos específicos. Nesse processo, tais ciências e tecnologias tornam-se, portanto, cada vez menos interessadas nas totalidades e sentidos práticos que caracterizam concretamente as experiências da saúde e da doença e, assim, menos capazes de agir nesse plano. Não se quer, com essa constatação, “demonizar” o desenvolvimento científico e tecnológico, até porque não faria qualquer sentido julgar um processo social e histórico de modo prescritivo, para determinar o que ele deveria ter produzido ou deixado de produzir. O que podemos é, a cada momento, julgar criticamente o que não se está produzindo e precisa ser produzido. É nesse sentido que podemos afirmar que há uma complexidade intrínseca às necessidades de saúde e às formas de responder satisfatoriamente a elas que tem ficado à margem do desenvolvimento científico-tecnológico ou, muitas vezes, ligado a ele de forma contraditória, sendo visada por este desenvolvimento e, nesse mesmo movimento, negada e tornada invisível. IHU On-Line – Em que medida as propostas de humanização e integralidade no cuidado em saúde têm se apresentado como estratégias para enfrentar a crise e construir alternativas para a organização das práticas de atenção à saúde no Brasil? José Ricardo Ayres – Exatamente na medida em que tais propostas têm buscado produzir conhecimentos e práticas interessados nas totalidades de sentido das experiências de saúde e doença, em um modo de produzir atenção à saúde capazes de lidar com essas totalidades. Trata-se de propostas que, guardadas as especificidades que estão na raiz de um e outro movimento de ideias,

“O magnífico e admirável progresso das ciências e das tecnologias materiais nelas baseadas caminha, em certo sentido, na direção inversa à que seria necessária” são profundamente solidárias no diagnóstico que fazem da situação e nos caminhos em que apostam para sua solução. Pode-se dizer, de modo sintético, que as propostas de humanização nasceram como resposta à manifestação da crise das práticas de saúde nas expressões de insatisfação e descrédito que os usuários passaram a manifestar em diferentes espaços de escuta, formalizados institucionalmente ou não. Já as propostas na direção da integralidade, incorporada à Constituição brasileira de 1988 na forma de um princípio norteador das ações do SUS, expressam mais imediatamente a percepção da crise por parte de profissionais e formuladores de política, ao analisarem a atenção à saúde desde uma perspectiva mais sistêmica. Ambas as correntes confluem e concordam no essencial, que é esta urgência de reconstruir saberes e práticas de saúde na direção da construção de respostas técnica, ética e politicamente adequadas às necessidades das pessoas em sua singularidade, inseparavelmente individual e coletiva. IHU On-Line – Quais os principais desafios filosóficos e práticos no sentido da humanização das práticas de saúde?

José Ricardo Ayres – Assim como é impossível julgar prescritivamente o passado, também é difícil prescrever para o futuro. Os desafios vão se configurando na medida em que vamos experimentando as situações concretas de prática e que os próprios construtos filosóficos e práticos vão sendo produzidos e incorporados (ou não) ao cotidiano das ações de saúde. Desde onde posso enxergar o contexto atual das práticas de saúde, em particular o contexto brasileiro, arriscaria resumir como principal desafio filosófico o de pensar a atenção em saúde não em uma perspectiva estritamente instrumental, isto é, quais meios para atingir determinados efeitos do ponto de vista funcional, mas, sem desconsiderar essa dimensão, retomar, em novas bases, as perguntas sobre a existência: O que é saúde? O que é doença? O que é viver? O que é, enfim, cuidar da saúde? Acho que este “giro filosófico” tem implicações epistemológicas e metodológicas: Que e como conhecer a saúde na perspectiva da Integralidade e da Humanização? Parece que, nesse aspecto, é preciso reconhecer e explorar construções que vêm de fora do leque mais tradicional das ciências aplicadas à saúde e, nesse sentido, as filosofias de base hermenêutica e as metodologias compreensivas das ciências sociais me parecem ter muito a contribuir. Por outro lado é preciso também romper com a cisão, implícita na própria formulação da pergunta, entre teoria e prática. Vejo como fundamental desenvolver uma filosofia prática acerca do agir em saúde capaz de se debruçar e produzir mediações conceituais para pensarmos e agirmos de modo mais eficaz, ético e democrático no plano mais imediato das ações de saúde. É nesse sentido que venho trabalhando intensamente no conceito de Cuidado. Talvez com essa mediação conceitual consigamos nos preparar melhor para transformar as práticas no sentido anteriormente apontado de colocar o desenvolvimento científico e tecnológico efetivamente a serviço da construção de práticas de saúde mais significativas e potentes para as pessoas. Nos termos conceituais em que temos desenvolviSÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


A responsabilidade pelo cuidado Responsabilizamo-nos pelo Cuidado quando participamos efetivamente da construção dos projetos de EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

felicidade dos indivíduos e comunidades a serviço dos quais colocamos nossa expertise técnica (que é o modo como nos cabe participar dessa construção). De outro lado, sabemos que estamos Cuidando quando percebemos a confiança que nos é aberta para participar dessa construção. Abrir-se a um outro, expor nossas condições concretas, nossos valores, nossos afetos, implica exposição, vulnerabilidades, receios. Por isso, compartilhar projetos de felicidade é sempre um movimento de abertura em relação ao outro que denota extrema confiança (que é indissociável de responsabilidade – quem confia se responsabiliza pelas consequências de um ato; quem se responsabiliza confia em que essas consequências valem a aposta no ato). Conectando estes termos/ conceitos – projetos de felicidade, responsabilidade, confiança –, tenho buscado chamar a atenção para o fato de que nossas identidades, de profissionais de saúde e de pacientes, ou usuários de serviços e ações de saúde, precisarão assumir radicalmente sua perspectiva relacional. Ou seja, para que possamos compreender e singularizar as situações de saúde e

agir em relação às necessidades que daí decorrem, nós, médicos, enfermeiros, psicólogos, etc., precisaremos ser a cada vez outros. Isso porque se exigirá de nós, como dado profissional de saúde, um mesmo conjunto genérico de conhecimentos e habilidades técnicas, mas, ao mesmo tempo, será necessário que diversifiquemos quais saberes e habilidades serão interpelados pelas exigências do Cuidado e quais modos de lançar mão deles serão mais adequados às necessidades de saúde que se nos apresentam como desafio. E se vamos precisar abandonar uma identidade fixa de um mero aplicador de conhecimentos definidos a priori, é quase intuitivo perceber que serão também muito diversos os modos como se expressarão para nós as identidades dos pacientes, que tendemos a homogeneizar, quando os reduzimos a meros objetos de aplicação do conhecimento científico e intervenção técnica. IHU On-Line – O que sua experiência profissional mais tem lhe ensinado ao longo dos últimos anos sobre a humanização nas práticas de cuidado em saúde? José Ricardo Ayres – Seja como professor, como pesquisador, como médico de atenção primária ou como sanitarista, o que carrego de maior aprendizado é que humanização (integralidade e Cuidado) é um movimento que depende radicalmente de diálogo. Compreender essa ação-chave, tanto na perspectiva da produção do conhecimento quanto na da intervenção prática, só pode ocorrer na “fusão de horizontes” eu-outro. Compreender é coapreender. Para isso é importante o olhar atento, a sensibilidade aos afetos, o toque físico, que ao mesmo tempo informa e aproxima. Mas é essencialmente através do diálogo que podemos alcançar a comunidade ética, política e técnica que nos tornará cada vez mais humanos nas práticas de saúde e na vida em geral, na medida em que o compartilhamento que o diálogo produz nos permita entender e favorecer, a cada vez, a abertura ao devir, a busca da felicidade e o encontro que somos.

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IHU On-Line – Qual a importância dos elementos “projeto de vida”, “construção de identidade”, “confiança” e “responsabilidade” como traços das interações entre profissionais de saúde e pacientes? José Ricardo Ayres – Mais que projeto de vida, eu gosto da expressão projeto de felicidade. É que projeto de vida remete a uma dimensão, digamos, mais pragmática, é uma expressão muito associada no senso comum a certo planejamento, a uma definição consciente de objetivos a serem concretamente alcançados. Mas nós somos muito mais que “planejadores” de nossas vidas. Estamos mergulhados na vida em dimensões que extrapolam nosso consciente e nossas capacidades de analisar e planejar. Filosofias diversas e fecundas nos mostram, contudo, que estamos sempre dando um sentido, consciente e pré-consciente, a este estar na vida, e sempre nos deixamos interpelar pela vida respondendo com um projetar-se em direção a ela e projetar para ela, o que, em termos sintéticos, podemos designar como a busca de ser feliz. Nesse sentido, a busca de compreensão dos projetos de felicidade de indivíduos e populações me parece ser um elemento fundamental para que possamos acessar aquela totalidade de sentido singular dos processos de saúde-doença, à qual já nos referimos diversas vezes nesta entrevista, e que é o coração do Cuidado. Daí vem a relevância dos demais aspectos que você destaca em sua pergunta. Para acessar esses projetos de felicidade, é preciso assumir que nossa responsabilidade é Cuidar, e não apenas definir objetos tecnocientíficos e intervir sobre eles.

“É essencialmente através do diálogo que podemos alcançar a comunidade ética, política e técnica que nos tornará cada vez mais humanos, nas práticas de saúde e na vida em geral”

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do o conceito de Cuidado, isso significa conciliar sempre mais êxito técnico e sucesso prático na produção das ações de saúde.

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“Tomando chimarrão, a partir do momento em que se compartilha uma cuia, se compartilham os sonhos, as ideias”, reflete Juliana Durayski Por Graziela Wolfart

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a próxima quinta-feira, dia 06-06, é dia de tomar um bom chimarrão e de refletir sobre a cultura de seu consumo. A palestra “Tomas um mate? Análise da cultura do consumo do chimarrão em um contexto urbano” será ministrada pela mestre em Administração Juliana Durayski, em mais uma edição do evento IHU ideias, promovido pelo IHU. Na entrevista que concedeu por telefone para a IHU On-Line, Juliana adianta aspectos do tema que abordará em sua fala, inspirada na dissertação de mestrado. Para ela, há vários significados em tomar um mate no contexto urbano. “Significa resgatar a origem, a questão do campo, o sagrado, um momento

IHU On-Line – Qual o significado de tomar um mate no contexto urbano?

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Juliana Durayski – Tem vários significados. Tomar um chimarrão no contexto urbano significa resgatar a origem, a questão do campo, o sagrado, um momento que foi realizado antigamente pelos índios e que é realizado no campo, nas estâncias, para trazer um pouco dessa vida para a cidade. O chimarrão representa socialização, está ligado a várias questões afetivas, como a alegria, relaxamento, paz, tranquilidade, saudade. Tomando chimarrão não se está sozinho. Quando se vai para o parque, o chimarrão vai junto. Ele é uma companhia para as pessoas. IHU On-Line – Em que medida o mate contribui para a socialização? Juliana Durayski – No ambiente de trabalho percebi que o chimarrão é uma maneira de as pessoas conversarem, de aproximar departamentos. É

uma maneira de “quebrar o gelo” das relações formais. Nos parques isso também acontece. O chimarrão não é o objetivo principal dos encontros. Ele é usado como um pretexto. Percebo que o chimarrão é a graça do encontro. Quando a pessoa quer encontrar alguém, quer conversar, usa o chimarrão como bengala. O convite “vamos tomar um chimas?” representa o mesmo que “vamos conversar, trocar ideias?” IHU On-Line – Qual o papel do chimarrão em um ambiente de negócios ou trabalho? Ele ajuda ou atrapalha? Juliana Durayski – Ao longo de minha pesquisa percebi que o chimarrão, além de ter esse motivo de socializar, acaba funcionando como uma espécie de calmante, por mais que ele tenha substâncias que deem

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IHU On-Line – O que representa a cultura do consumo do chimarrão de modo geral? Juliana Durayski – O chimarrão tem uma importância social, econômica e cultural para o estado do Rio Grande do Sul. Para se ter ideia, em relação à questão econômica, a demanda da erva-mate está aumentando cada vez mais. É uma questão cultural porque é uma herança indígena. Os índios já tomavam chimarrão, depois passou pelos jesuítas até chegar na civilização atual. O chimarrão é tomado em diversos contextos. Por exemplo, em Porto Alegre é tomado em parques, em ambientes de trabalho e nas casas das pessoas.

que foi realizado antigamente, pelos índios, e que é realizado no campo, nas estâncias, para trazer um pouco dessa vida para a cidade. O chimarrão representa socialização, está ligado a várias questões afetivas, como a alegria, relaxamento, paz, tranquilidade, saudade. Tomando chimarrão não se está sozinho. Quando se vai para o parque, o chimarrão vai junto. Ele é uma companhia para as pessoas”. Graduada em Publicidade e Propaganda com ênfase em Marketing pela ESPM, Juliana possui especialização em Econegócios pela UFRGS e é mestre em Administração pela Unisinos. Atualmente é funcionária da universidade, atuando como auxiliar de pesquisa. Confira a entrevista.

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Tomas um mate? A cultura do consumo do chimarrão

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energia. As pessoas do campo, até hoje, acordam cedo e fazem um chimarrão porque ele dá ânimo, dá “gás”. O chimarrão no trabalho dá energia e ajuda a socializar. As pessoas fazem uma pausa para o chimarrão. Ele não atrapalha no trabalho, pelo contrário. Há pessoas que argumentam que não tomam porque mexem com papel e têm medo de virar e sujar. Outra questão interessante diz respeito à figura do “fazedor” do chimarrão, o cevador, que é quem o prepara. Geralmente a pessoa adquire esse status. Não se trata de um status econômico ou de cargo, e sim o de “fazedor do chimarrão”. É ele quem abre os trabalhos. Toda empresa tem um. No IHU deve ter. IHU On-Line – Como a hierarquia social se estabelece em uma roda de chimarrão? Juliana Durayski – Não percebi isso. Tomando chimarrão, a partir do momento em que se compartilha uma cuia, se compartilham os sonhos,

“O chimarrão é a graça do encontro. Quando a pessoa quer encontrar alguém, quer conversar, usa o chimarrão como bengala” as ideias. Não percebi uma hierarquia, inclusive na empresa. O chimarrão é algo que não pode ser comprado pronto, como em outras culturas, de outros estados, como é o caso do acarajé. O chimarrão precisa de uma pessoa que o faça. O chimarrão não discrimina.

IHU On-Line – Mas não tem aquela cultura no ambiente familiar de que quem faz o chimarrão é a mesma pessoa que serve e “controla” a sequência em uma roda de mate? Essa pessoa geralmente é o dono da casa... Juliana Durayski – Percebi que geralmente nas casas há o fazedor de chimarrão e é essa pessoa que o serve. No entanto, hoje temos muitos atos profanadores. Por exemplo, não necessariamente a pessoa que faz o chimarrão é a que serve. E mesmo no ambiente de trabalho às vezes a roda é “furada”, não se segue a tradição de passar o chimarrão pela direita. Em alguns momentos esse sagrado é resgatado nas conversas, nas observações. Exemplos disso é quando se usam expressões como “apura esse mate, que ele não é microfone” ou: “tem que roncar”. Então, esses aspectos do sagrado são mantidos. E se a tradição se mantém é porque ela guarda algo de especial. É como se ela estivesse se reinventando sem perder a essência.

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Confira uma das publicações mais recentes do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

IHU ideias Os riscos e as loucuras dos discursos da razão no campo da prevenção

EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

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A edição 188ª do Caderno IHU ideias traz a publicação do Prof. Dr. Luís David Castiel, pesquisador titular do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, intitulada Os riscos e as loucuras dos discursos da razão no campo da prevenção. Nessa publicação o pesquisador vale-se do termo “protocologista”, segundo ele “um neologismo que, de forma caricatural, designa um imaginário adepto incondicional dos protocolos que, de alguma maneira, se dedica a produzir, lidar ou seguir protocolos no âmbito de suas práticas de pesquisa ou de planejamento, gestão ou intervenção na saúde, seja na esfera coletiva ou na individual. Dá tanta importância a este modo de pensar e organizar a ponto de empregá-lo para orientar sua própria vida”. Para Castiel, as anomalias “não podem ser excluídas porque pertencem à racionalidade organizacional dos processos tecnológicos e dos sistemas sociais contemporâneos. Parece que a principal resposta sociocultural disponível é a de ensejar um pânico moral e instituir a reatividade fóbica ao risco. Se assim for, esta situação conduz a tentativas irrealistas de controle, de modo que as estratégias de mediação neste contexto estarão sempre fadadas ao esgotamento, uma vez que a configuração geral das operações não tem possibilidades de integração. Haveria um desajuste primordial na gênese das causas que afeta a viabilidade de controlar, reduzir ou evitar as consequências”. Os Cadernos IHU ideias podem ser adquiridos diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus da Unisinos, ou pelo e-mail humanitas@unisinos.br. A partir de 27 de junho de 2013 esta edição estará disponível na íntegra, no site do IHU, em formato PDF. Mais informações podem ser obtidas no link bit.ly/LGK9BC ou pelo telefone (51) 3590 4888.

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Publicação em destaque

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Retrovisor Releia algumas das edições já publicadas da Revista IHU On-Line

Anistia. Memória e justiça Edição 358 - Ano - XI - 18-04-2011 Disponível em http://bit.ly/gq9ypN Países como Argentina, África do Sul, Chile e Espanha, entre outros, têm, no que se refere à anistia, à memória e à justiça dos crimes cometidos durante os regimes ditatoriais que assolaram seus povos, uma experiência diferente da nossa, no Brasil. Mais de 40 anos depois do golpe militar de 1964, ainda não conseguimos desatar este nó. Esta edição da revista IHU On-Line volta a debater o tema neste início do governo da presidenta Dilma Rousseff. Contribuem para o debate os seguintes entrevistados: Cecília Coimbra, Castor Ruiz, Edson Teles, Jair Krischke, José Carlos Moreira Filho, José de la Fuente, Nora Hochbaum, Paulo Abrão e Reyes Mate.

Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas possibilidades de emancipação Edição 327 - Ano - X - 03-05-2010 Disponível em http://bit.ly/JwXRSa Inspirada pelo livro Crisi dell’economia globale. Mercati finanziari, lotte sociali e nuovi scenari politici (Crise da economia global. Mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos. Verona: Ombre Corte/Uninomade, 2009), organizada por Andrea Fumagalli e Sando Mezzadra, esta edição da IHU On-Line analisa as características peculiares da atual crise financeira, que é uma crise da globalização tal como a conhecemos até hoje, a partir e sob a perspectiva das mudanças do mundo do trabalho. Contribuem para a discussão Andrea Fumagalli, Carlo Vercellone, Christian Marazzi, Federico Chicchi e Stefano Lucarelli.

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O direito achado na rua. Alguns apontamentos

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Edição 305 - Ano - IX - 24-08-2009 Disponível em http://bit.ly/NXjd0s O direito moderno é normativamente inadequado e institucionalmente ineficiente, advertia o jurista português Castanheira Neves. Por isso, “esse direito tem de ser encontrado em outro lugar, lá na rua onde vive e sofre o povo daquela inadequação e ineficiência, porque, afinal de contas, é dele a origem e causa de ser, tanto da lei como do Estado”, afirma Jacques Alfonsin, procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado, em entrevista concedida à IHU On-Line e publicada nesta edição. Trata-se de reconhecer no povo a “comunidade aberta dos intérpretes da Constituição”. Contribuem para a discussão Jacques Alfonsin, Jose Geraldo de Sousa Junior, Roberto Efrem Filho, José Carlos Moreira da Silva Filho e Lenio Streck.

SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013 | EDIÇÃO 421


♦ ♦ ♦ ♦ ♦ GAEL, Juliet. Miss Brontë, um romance (São Paulo: Editora Larousse, 2011) Minha dica de leitura é o livro “Miss Brontë, um romance” da autora norte-americana Juliet Gael. A obra é uma biografia ficcional da autora inglesa Charlotte Brontë. As irmãs Brontë, Charlotte, Emily e Anne são responsáveis por alguns dos maiores clássicos do romantismo inglês como Jane Eyre e O Morro dos Ventos Uivantes, dentre outros, e a escritora Juliet Gael concentra-se na vida pacata, mas dura, das moças na cidade vitoriana de Haworth. O foco do livro é o mundo de imaginação construído por Charlotte e sua vontade imensa de ser escritora, em uma época em que as mulheres estavam praticamente vedadas da vida intelectual. Como o título já nos revela, a obra também aborda seus relacionamentos afetivos, como o mal sucedido romance com o editor londrino George Smith, e seu casamento com o pároco Arthur Bell Nicolls. Recomendo o livro não só aos fãs do romantismo inglês e das irmãs Brontë, mas a todos os interessados em uma narrativa ao mesmo tempo leve e preocupada com a questão da literatura produzida por mulheres. Adriana Amaral, professora do PPG em Comunicação da Unisinos.

IHU em Revista

Sala de Leitura

♦ ♦ ♦ ♦ ♦ ABUSKE, Irineu. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30 (São Paulo: Paulinas, 2001)

EDIÇÃO 421 | SÃO LEOPOLDO, 4 DE JUNHO DE 2013

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Após assistir ao filme O Ritual (de Mikael Hafstrom, 2011, com Anthony Hopkins), e em função de todo o debate envolvendo a bênção com imposição de mãos feita pelo Papa Francisco após a missa de Pentecostes na Praça de São Pedro no último dia 19 de maio, fiquei intrigada e fui buscar mais informações sobre a prática do exorcismo na Igreja em nossos dias. E me deparei com um excelente livro do Pe. Irineu Rabuske, intitulado “Jesus Exorcista”. O autor faz um estudo exegético e hermenêutico do Evangelho de Marcos, capítulo 3, versículos de 20 a 30, em que Jesus é acusado de expulsar demônios pelo poder de Belzebu, o maior dos demônios. O objetivo do livro é analisar a atividade pública do Jesus histórico, que consiste em libertar as pessoas oprimidas por espíritos impuros. Segundo a obra, nos evangelhos sinóticos atesta-se que Jesus imprimiu um significado especial em seus exorcismos: eles são o sinal de que o Reino de Deus está se aproximando. Excelente material para refletir sobre a prática contemporânea do exorcismo e do que representa o bem e o mal. Graziela Wolfart, jornalista, trabalha no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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