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5. OBSERVAR O CONTEXTO COM MUITO CUIDADO
Outro ponto fundamental para uma boa interpretação é a observação do contexto, ou seja, a unidade completa onde está localizado determinado versículo ou versículos.
Isto pode parecer tão simples que alguns chegam a pensar ser tolice gastar tempo para explicá-lo, mas tem sido a causa da maioria dos erros de interpretação cometidos, digamos, pelos leigos e mesmo por vários pregadores com formação teológica.
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No momento em que voltamos a nossa atenção para este ou aquele versículo isolado e nos esquecemos daquilo que vem antes ou vai depois dele, no mesmo texto, corremos o risco de interpretar o texto de forma errada. É algo que tem acontecido, inclusive, com versículos muito conhecidos, aqueles que repetimos e decoramos para que sirvam de ajuda em ocasiões especiais. O perigo das chamadas “Caixinhas de Promessas”, tão conhecidas em nosso meio, neste campo, é evidente. São sempre versículos desvinculados de seus contextos, e levam a interpretações erradas, em muitos dos casos.
Sempre que possível o texto a ser interpretado deve ser lido dentro de seu contexto literário. De preferência, faça a leitura do livro todo onde se encontra o texto em foco, para que seja evitada a interpretação parcial ou incorreta. Inclusive, uma atenção especial deve ser dada às Cartas do Novo Testamento. Como disseram Fee e Stuart, elas devem ser lidas como você costuma ler qualquer outra carta, de uma só vez e não em partes, o que dificultaria ou impossibilitaria a interpretação correta.3
Certa vez, ao ensinar a um grupo de jovens, em uma igreja que visitava, o autor, verificou na sala deles, decorando a parede, um cartaz bastante interessante. Nele havia uma pequena formiga a qual carregava uma enorme maçã, como se isso fosse possível, e podia-se ler em alguma parte da gravura o texto de Filipenses 4.13: “Tudo posso naquele que me fortalece.” A versão pode ter sido outra mas o texto, sem dúvidas, era este.
A mensagem que estava sendo passada era muito clara, mas totalmente fora da realidade e até mesmo contrária à Palavra de Deus. Assim como a gravura continha uma formiga carregando uma maçã, talvez fosse possível usar outra, semelhante, com um ser humano debaixo de um tanque de guerra a carregá-lo, ou, quem sabe, outra pessoa saltando de um prédio de vinte andares, sem ajuda de páraquedas e afirmando a mesma coisa: “Posso todas as coisas naquele que me fortalece”. Contudo, o texto bíblico não está dizendo isto. Essa forma de utilização do texto fora do contexto não passa de um pensamento positivo, sem base bíblica aceitável.
3 FEE, Gordon D. /Douglas STUART. Entendes o que Lês? – Um guia para entender a Bíblia com o auxílio da exegese e da hermenêutica. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 33.
Para que se compreenda a mensagem bíblica, por meio da afirmação “Posso todas as coisas naquele que me fortalece” é necessário que o intérprete leia, pelo menos, mais os três versículos anteriores a este. No texto completo está escrito:
10 Fiquei muito alegre no Senhor porque, agora, uma vez mais, renasceu o cuidado que vocês têm por mim. Na verdade, vocês já tinham esse cuidado antes, só que lhes faltava oportunidade.
11 Digo isto, não porque esteja necessitado, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação.
12 Sei o que é passar necessidade e sei também o que é ter em abundância; aprendi o segredo de toda e qualquer circunstância, tanto de estar alimentado como de ter fome, tanto de ter em abundância como de passar necessidade.
13 Tudo posso naquele que me fortalece.
Não é difícil de notar que nele, Paulo está falando da capacidade recebida de Deus para saber portar-se em qualquer situação. Ele sabia viver na escassez da mesma forma que na abundância. Deus deu a ele a capacidade de suportar qualquer situação.
Convenhamos: o que foi dito até aqui é bem diferente daquilo que se transmite ao apresentar uma formiga carregando uma maçã. Essa figura dá a entender que podemos fazer qualquer coisa. O texto bíblico, dentro de seu contexto, mostra que Paulo podia, ou estava acostumado, a suportar qualquer situação, fosse ela de fartura ou de escassez, o que é muito diferente de poder fazer o que quiser. E sem dúvida, ao aplicarmos para os nossos dias, se desejamos ser fiéis à mensagem bíblica, nossa interpretação terá que soar bem diferente da forma tão usada, como simples pensamento positivo, o qual incentiva as pessoas a conquistarem alguma coisa, a fazerem e não a suportarem as situações diversas e adversas de seu viver.
Se vamos aplicar esse texto, façamo-lo de forma correta, partindo do significado real. Assim como Deus deu a Paulo condições para suportar todo tipo de adversidade, também a nós Ele pode dar, se assim for da sua vontade.
Tenha cuidado, porque este tipo de interpretação, desconsiderando o contexto, é muito pernicioso e acaba enganando o intérprete, que pensa estar sendo bíblico, simplesmente pelo fato de se utilizar de porções da Bíblia.
A observação do contexto é um princípio básico para a boa interpretação. Em qualquer trabalho de interpretação devemos levar em conta o contexto: a) Imediato – Capítulo ou passagem completa; b) Próximo – O livro bíblico completo, no qual se encontra o texto em análise; c) Geral – A Bíblia como um todo.
Há alguns anos passados tive uma conversa muito interessante com um jovem idealista, encantado, na época, pela Teologia da Libertação. Eram os anos dourados desta teologia e o jovem, pensando ter base bíblica, defendia a ideia de que todos os verdadeiros pregadores da mensagem de Cristo deveriam partir para os campos missionários sem levar nada para a própria sobrevivência. Deveriam partir apenas com a roupa do corpo, sem dinheiro ou provisões, dependentes única e exclusivamente da boa vontade daqueles que o haveriam de receber no seu caminho de peregrinação. Para ele, o pregador que não agisse desta forma, não era um mensageiro de Jesus, pois estava indo de maneira diferente da ordenada pelo Mestre.
Ele achava ter inclusive, base bíblica para tal argumento. Usava o texto de Lucas 10.4-7, que diz:
4 Não levem bolsa, nem sacola, nem sandálias; e não saúdem ninguém pelo caminho.
5 Ao entrarem numa casa, digam primeiro: “Paz seja nesta casa!”
6 Se houver ali uma pessoa que ama a paz, sobre ela repousará a paz de vocês; se não houver, a paz voltará sobre vocês.
7 Fiquem na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem; porque o trabalhador é digno do seu salário. Não fiquem mudando de casa em casa.
A sua base, porém, era falsa. Não que alguma parte da Bíblia seja falsa, mas, sim, a maneira como ele lançava mão dela para utilizá-la como base de suas ideias. Para ele notar que a base utilizada era falsa, bastaria fazer uma leitura um pouco mais abrangente, iniciando no versículo 1 desse capítulo 10, indo até o versículo 12. Ela seria suficiente para mostrar que Jesus não estava dando uma fórmula fechada de como devem comportar-se os missionários de todos os tempos e, sim, passando orientações para apenas um pequeno grupo que deveria ir adiante dele nos lugares e cidades por onde Ele mesmo passaria em seguida.
Leia o texto todo, como está na Bíblia:
1 Depois disso, o Senhor escolheu outros setenta e os enviou de dois em dois, para que fossem adiante dele a cada cidade e lugar onde ele haveria de passar.
2 E lhes disse: — A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, peçam ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara.
3 Vão! Eis que eu os envio como cordeiros para o meio de lobos.
4 Não levem bolsa, nem sacola, nem sandálias; e não saúdem ninguém pelo caminho.
5 Ao entrarem numa casa, digam primeiro: “Paz seja nesta casa!”
6 Se houver ali uma pessoa que ama a paz, sobre ela repousará a paz de vocês; se não houver, a paz voltará sobre vocês.
7 Fiquem na mesma casa, comendo e bebendo do que eles tiverem; porque o trabalhador é digno do seu salário. Não fiquem mudando de casa em casa.
8 Quando entrarem numa cidade e ali forem bemrecebidos, comam do que lhes for oferecido.
9 Curem os doentes que nela houver e digam ao povo dali: “O Reino de Deus se aproximou de vocês.”
10 Porém, quando entrarem numa cidade e não forem bem-recebidos, saiam pelas ruas, dizendo:
11 “Até o pó desta cidade, que grudou nos nossos pés, sacudimos contra vocês! No entanto, saibam que está próximo o Reino de Deus.”
12 Eu digo a vocês que, naquele dia, haverá menos rigor para Sodoma do que para aquela cidade.
Se aquele jovem tivesse levado em consideração ao menos o contexto imediato, o capítulo ou passagem completa, teria evitado a má interpretação; e, se conhecesse o contexto próximo, então, o livro da Bíblia em que se encontra o texto, não lhe restariam muitas dúvidas sobre a passagem.
Leia Lucas 22.35-38 e perceba o que o texto diz:
35 A seguir, Jesus perguntou aos discípulos: — Quando eu os enviei sem bolsa, sem sacola e sem sandálias, por acaso faltou-lhes alguma coisa? Eles responderam: — Não faltou nada!
36 Então Jesus lhes disse: — Agora, porém, quem tem bolsa, pegue-a, e faça o mesmo com a sacola; e o que não tem espada, venda a sua capa e compre uma.
37 Pois eu lhes digo que é preciso que se cumpra em mim o que está escrito: “Ele foi contado com os malfeitores.” Pois o que a mim se refere está sendo cumprido.
38 Então lhe disseram: — Senhor, aqui estão duas espadas! Jesus lhes respondeu: — Basta!
Fica bem claro que Jesus está se referindo à ocasião, ou ocasiões, nas quais enviou os seus discípulos a realizarem missões especiais e em condições especiais. O que foi dito aos setenta discípulos, em Lucas 10.1-12, e também aos doze, em Lucas 9.1-6 e Mateus 10.5-15, não são regras fixas para todos os pregadores em todos os tempos. Eram instruções para tarefas imediatas e bem definidas. Se além do contexto imediato e próximo, o jovem mencionado neste exemplo, conhecesse melhor o contexto geral, a Bíblia como um todo, saberia que não há nenhum lugar nela onde Jesus tenha dado uma ordem para que os pregadores atuais partam para os campos missionários, apenas com a roupa do corpo. O contexto geral tira qualquer dúvida. Inclusive, é bom lembrar que se porventura nossos missionários atuais estão passando por dificuldades materiais, nós que os enviamos, cumprindo as ordens de Deus, é que somos culpados.
A igreja que envia deve manter de forma digna seu obreiro por uma questão de amor e para que o Evangelho de Cristo não venha a ser envergonhado. Mandemos missionários, nossos enviados, arautos de Deus, e não mendigos às nações. Tenhamos sempre em mente os ensinos de 1 Coríntios 9.7-14, quanto ao sustento dos que pregam o evangelho. Veja o que este texto nos diz:
7 Quem é que vai à guerra às suas próprias custas? Quem planta uma vinha e não come do seu fruto? Ou quem apascenta um rebanho e não se alimenta do leite do rebanho?
8 Será que eu digo isso apenas como homem? Não é verdade que a lei também o diz?
9 Porque na Lei de Moisés está escrito: “Não amarre a boca do boi quando ele pisa o trigo.” Por acaso Deus está preocupado com bois?
10 Será que não é certamente por nossa causa que ele está dizendo isso? É claro que é por nossa causa que isso está escrito. Pois quem lavra deve fazê-lo com esperança e o que colhe deve fazê-lo na esperança de receber a parte que lhe é devida.
11 Se nós semeamos entre vocês as coisas espirituais, será muito recolhermos de vocês bens materiais?
12 Se outros participam desse direito sobre vocês, não o temos nós em maior medida? Entretanto, não fizemos uso desse direito. Pelo contrário, suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo.
13 Vocês não sabem que os que prestam serviços sagrados se alimentam do próprio templo e que os que servem ao altar participam do que é oferecido sobre o altar?
14 Assim também o Senhor ordenou aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho.
Só para terminar este ponto, será colocado de forma um pouco mais detalhada, a maneira correta de se abordar uma passagem como esta que foi apresentada acima, dentro do seu contexto. Os passos apresentados são os seguintes:
1. Lucas 10.4 – base falsa – (falsa por ter sido isolada do todo);
2. Lucas 10.1-12 – contexto imediato – esclarece o texto;
3. Lucas 22.35-38 – contexto próximo – esclarece ainda mais o texto em foco;
4. A Bíblia toda, principalmente, neste caso, João 13.21-30; texto que mostra a presença de um tesoureiro no próprio grupo de Jesus – contexto geral – ele tira qualquer dúvida.
Se esse esquema tivesse sido levado em conta, o “intérprete” citado teria percebido sem grande dificuldade que em nenhum lugar da Bíblia, Jesus, ou o Pai, dá tais instruções para todos os pregadores de todos os tempos. A observação dos contextos, ainda que seja algo tão simples, precisa ser levada muito a sério. Dela depende em grande parte a boa interpretação.