REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Nº05
NOVEMBRO/2013 A ABRIL/2014
ISSN 2317-112X
www.ufjf.br/secom/A3
EXPANSÃO
UFJF aumenta a publicação científica e a inserção internacional PESQUISA
A ciência e a necessidade de preservar papéis e acervos digitais ESPECIAL
Das redes sociais para as ruas
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EDITORIA L
UFJF estreita laços e se firma entre as melhores da América Latina A
universidade é feita de pessoas. Alunos, professores, funcionários das áreas técnica e administrativa, gente que passeia pelo campus, corre, anda de bicicleta, solta pipa... É esta a comunidade que, de forma presencial ou não, se mantém unida por laços de afeto, que criam um lugar de pertencimento e de identidade. A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) é este espaço onde as pessoas se reconhecem, em especial pelos vínculos da memória. Por isso mesmo esta edição da “A3” revela os perfis do primeiro reitor da instituição, o advogado e professor Moacyr Borges de Mattos, traz um belo ensaio fotográfico sobre o genial engenheiro e professor Arthur Arcuri, responsável pelo projeto do campus, e ainda uma resenha sobre os 50 anos de teatro do jornalista, dramaturgo, diretor e professor José Luiz Ribeiro. São pessoas assim que constroem a reputação da instituição e fazem com que alguém simples e anônimo tenha orgulho de estampar no peito a marca da UFJF. Se a história gera pertencimento, dados da produção científica da Universidade apontam para o futuro e revelam que a instituição já está entre as 60 melhores da América Latina. De 2006 a 2012, a UFJF praticamente triplicou o número de artigos publicados em periódicos de relevância nacional e internacional. Apenas em 2012, a instituição publicou 619 artigos, 38,4% a mais do que em 2011; nesse período, o índice brasileiro cresceu 6,7%. Nossa matéria de capa revela os bastidores dessa performance, mostrando como uma universidade do interior consegue se capitalizar e se tornar cada vez mais competitiva, num cenário em que a disputa pelos cérebros mais produtivos, e pelos investimentos que eles atraem, é cada vez mais intensa. As tensões políticas dos últimos meses também estão presentes no cardápio diversificado de opções de leitura. É assim que nossas fontes tentam compreender o outono brasileiro, que levou milhares de pessoas às ruas,
revelando a força mobilizadora das redes sociais, e o descontentamento, em especial dos jovens, com o modelo político tradicional e os meios de comunicação convencionais. Poderemos pensar em novas formas de representação? E qual a sua legitimidade? São questões inquietantes, que revelam a ruptura de paradigmas e sinalizam o desejo de mudança. Ou será o de convívio, como nos mostra a reportagem sobre a conservação de documentos em papel? Entre os muitos assuntos de destaque, que levam à reflexão sobre as questões contemporâneas, temos a discussão sobre o gerenciamento de resíduos da construção civil, um problema cada vez maior para os centros urbanos, e para o qual a UFJF apresenta soluções. A articulação da Universidade com a sociedade também é patente na preparação de jovens atletas do programa Minas Olímpica, que reúne histórias emocionantes de vontade e superação. E os desafios da educação na era do excesso de informação e tecnologia nos mostram o quanto é preciso repensar o processo de ensino-aprendizagem. Para embalar todos esses conteúdos, nada melhor do que a bela trajetória do Centro Cultural Pró-Música/UFJF, que há mais de 40 anos escreve a história da cidade pelo trabalho diário da educação musical, e é responsável pelo reconhecido Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que completou, este ano, sua 24ª edição, atraindo centenas de estudantes do Brasil e do exterior para a cidade de Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, que ganha, assim, mais um atributo, capaz de inseri-la no calendário de eventos culturais de reconhecimento internacional. Certamente, a incorporação do Centro Cultural pela UFJF garante a expansão do trabalho singular idealizado por seus fundadores e agrega valores fundamentais à missão da UFJF de “espargir luzes”.
Boa leitura! Christina Ferraz Musse
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ÍND ICE
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www.ufjf.br/secom/A3 6 - VOZ DO LEITOR
REVISTA DE JORNALISMO CIENTÍFICO E CULTURAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
O prédio da Reitoria da UFJF, sob a visão do acadêmico Enrique Pedretti Cunha, ilustra o espaço destinado aos leitores
REITOR Henrique Duque de Miranda Chaves Filho VICE-REITOR José Luiz Resende Pereira
7 - EXPANSÃO
UFJF alcança reconhecimento internacional com o aumento expressivo de sua produção científica. Em um ano, houve crescimento de 33% de artigos indexados no Scopus, ficando entre as que mais avançam no número de publicações científicas do Brasil
CONSELHO EDITORIAL Alexander Moreira (Faculdade de Medicina) Anderson Ferrari (Faculdade de Educação) Cristiano José Rodrigues (Faculdade de Comunicação) Edimilson de Almeida Pereira (Faculdade de Letras) Heloísa D’Avila (Instituto de Ciências Biológicas) João Queiroz (Instituto de Artes e Design) Jorge Mtanios Iskandar Arbach (Faculdade de Engenharia) Marcelo do Carmo (Instituto de Ciências Humanas) Paulo Monteiro Vieira Braga Barone (Instituto de Ciências Exatas) Paulo Nepomuceno (Faculdade de Engenharia) Paulo Roberto Figueira Leal (Faculdade de Comunicação) Robert Willer Farinazzo Vitral (Faculdade de Odontologia) Suzana Quinet (Faculdade de Economia)
10 - PESQUISA
UFJF e UFRRJ mapeiam parasitos de aves encontrados na Mata Atlântica, visando assegurar a sobrevivência das espécies e avaliar efeitos do desmatamento em seu desenvolvimento
14 - PROFISSÕES
2013 foi declarado pela ONU como o Ano Internacional da Estatística. Largamente aplicada nas ciências naturais, sociais, administração pública e privada, é hoje uma das profissões mais bem pagas do Brasil
16 - REPENSAR A UNIVERSIDADE
COMISSÃO EDITORIAL Anne Marie Autissier (Universidade de Paris VIII) Antônio Fernandes de Carvalho (Universidade Federal de Viçosa) Cícero Inácio da Silva (Software Studies no Brasil) Cláudio Soares (Fapemig) Luiz C. Wrobel (School of Engineering and Design – Brunel University Middlesex, UK) Luis Felipe Feres Pereira (University of Wyoming – USA) Márcio Simeone Henriques (Universidade Federal de Minas Gerais) Sofia Gaio (Universidade Fernando Pessoa – Portugal)
ISSN 2317-112X
REVISTA A3 Rua José Lourenço Kelmer, s/nº – Campus Universitário Bairro São Pedro – CEP: 36036-900 – Juiz de Fora - MG Telefones: (32) 2102-3967 / 3968 / 3997 E-mail: revistaa3@secom.ufjf.br Impressão: Gráfica Brasil Tiragem: 10 mil exemplares
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20 - PESQUISA
No Laboratório de Conservação e Restauração de Papéis da UFJF o trabalho minucioso de seus restauradores preserva cerca de 300 obras de artistas nacionais e estrangeiros, além da coleção do escritor juiz-forano Murilo Mendes
Foto: Márcio Brigatto
EXPEDIENTE Editora-chefe Christina Ferraz Musse Editora Oseir Cassola Reportagens Bárbara Duque; Carolina Nalon; Flávia Lopes; Guylherme Morais; Kátia Dias; Raul Mourão; Valéria Borges Costemalle; Zilvan Martins Colaboradores Alexander Moreira; Ana Beatriz da Fonseca; André Pires; Cícero Inácio da Silva; Fernando Lobo; Frederic Guerrero-Solé; Gerson Guedes; Isabela Lourenço; Jorge Arbach; Mariana Musse; Marcos Olender; Raul Magalhães; Roberto Gondo; Rodrigo Barbosa; Coordenação de Criação Fred Belcavello Fotógrafos Alessandra Rizza; Márcio Brigatto; Natália Ferreira Ilustração Cléber “Kureb” Horta; Joviana Marques; Zé Zorzan Marketing Valéria Borges Costemalle Projeto Gráfico Cléber “Kureb” Horta Revisão Rafael Costa Marques Produção Juliana Araújo; Taís Marcato
Docentes precisam reavaliar didáticas e estratégias diante de um novo perfil de aluno, cada vez mais interconectado e habituado ao ambiente hipertextual. Na UFJF, houve aumento de quase 15% nas notas de alunos em uma mesma disciplina ministrada via plataforma Moodle, em comparação com a forma expositiva tradicional
24 - TESES
Tese revela que a cobertura do Programa Saúde da Família se amplia em Minas Gerais, mas não interfere significativamente na redução de internações e mortes evitáveis
28 - OLHAR ESTRANGEIRO
O twitter como ferramenta importante de comunicação e debate político nas eleições é o tema do artigo do professor da Universidade Pompeu Fabra (UPF-Espanha), Frederic Guerrero-Solé
ÍNDICE 30 - ENCONTROS POSSÍVEIS
56 - PERFIL
34 - ESPECIAL
58 - INICIAÇÃO CIENTÍFICA
39 - POLÍTICA
59 - LITERATURA
Após doar todo o seu acervo para a UFJF, o norte-americano William Woodward esteve na instituição e em entrevista exclusiva à “A3” falou sobre a historiografia da Psicologia
A descrenca nas instituições e a busca de novas formas de participação política levaram um milhão de pessoas às ruas no outono brasileiro de 2013. Fermentado pelas redes sociais, as manifestações se expandiram pelo país, revelando que a sociedade não precisa mais de intermediários que falem por ela
Em artigo assinado pelo professor Roberto Gondo Macedo, a importância do papel da Sociedade Brasileira dos Pesquisadores e Profissionais de Comunicação e Marketing Político (Politicom) no momento atual
40 - PESQUISA
Pesquisadores criam Plano de Gerenciamento de Resíduos que prevê destinação correta dos restos de obras gerados em Juiz de Fora (MG) e que chegam a mil toneladas por dia
Na homenagem ao 1° reitor da UFJF, Moacyr Borges de Mattos, que completaria cem anos em setembro de 2013, a trajetória de um homem que, com seu legado, transformou a história de Juiz de Fora (MG) e região
Programa de Educação Tutorial da UFJF estreita vínculos com a comunidade e põe em prática projetos de extensão, como de eficiência energética e produção de documentários, voltados para alunos de escolas públicas, e o Só-Riso, para gestantes e crianças
No artigo “Um mergulho na história de um artista único”, o secretário-adjunto de Comunicação da UFJF, Rodrigo Barbosa, revela a história de paixão e fé pelo teatro de José Luiz Ribeiro, que completa 50 anos dedicados ao teatro, e lança livro sobre a trajetória de sucesso
60 - LANÇAMENTOS
Nos destaques dos lançamentos da Editora UFJF, um flipbook sobre administração pública
43 - MUNDO DIGITAL
61 - MÚSICA
44 - DISSERTAÇÕES
62 - ENSAIO FOTOGRÁFICO
No artigo “A neutralidade da rede ganhou as ruas”, o coordenador do grupo de Software Studies no Brasil, Cicero Inacio da Silva, aborda o “junho de 2013” no País
Estudo defendido em 2013 retrata como, em Juiz de Fora (MG), associações mutuais de imigrantes forjavam direitos sociais inexistentes oficialmente e influenciaram futuras iniciativas de seguridade adotadas pelo governo
O Coral da UFJF prepara o lançamento do terceiro CD, e o professor do IAD, André Pires, revela como surgiu este grupo na instituição
Em uma seleção de fotos que registra a vida pessoal e profissional de Arthur Arcuri, o professor Marcos Olender homenageia o arquiteto que teria feito cem anos em 2013
47 - ALÉM DA PALAVRA
Confira mais uma criação primorosa do designer gráfico Jorge Arbach
48 - EXTENSÃO
Foto: Márcio Brigatto
Foto: Acervo Alice Arcuri
Cem crianças participam atualmente de dois programas gratuitos no Complexo Esportivo da UFJF. Além das modalidades esportivas, aprendem a incorporar valores como disciplina e trabalho em equipe
66 - LEIA-ME 52 - CULTURA
Em tributo ao jornalista e memorialista Dormevilly Nóbrega, a “A3” destaca um dos seus textos, o “Galeria Pio X - hora legal”, que aborda a sirene acionada todos os dias às 12h e que hoje é patrimônio de Juiz de Fora (MG)
Ao completar dois anos, a incorporação do Centro Cultural Pró-Música pela UFJF aposta na internacionalização e repercute, no campus, o sucesso do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, que atraiu 80 mil pessoas para os concertos e mil para os cursos A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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Voz do Leitor
Prédio da Reitoria da UFJF (Campus Juiz de Fora), retratado pelo acadêmico do curso de Arquitetura e Urbanismo, Enrique Pedretti Cunha. A técnica utilizada foi “lápis de cor sobre papel”
Esta seção é reservada para ser o seu espaço. Contribua para que aprimoremos a nossa publicação. Envie sugestões, críticas e temas de pesquisas, dissertações e teses que gostaria de ver nas nossas páginas. Também abrimos espaço para trabalhos autorais, desenhos e fotos. Aguardamos a sua contribuição. E-mail: revistaa3@secom.ufjf.br EXCELÊNCIA DO LEITE “Parabenizo a equipe da revista “A3” pela qualidade da pauta e da programação visual, demonstração de profissionalismo e competência. Com certeza, já é uma referência em jornalismo científico, tecnológico e cultural. Particularmente, na edição de número 4, gostei da forma que a revista abordou os estudos da UFJF sobre identidade, segurança e valorização dos produtos lácteos, que contou com o apoio do Polo de Excelência do Leite. Airdem Gonçalves de Assis (gerente executivo do Polo de Excelência do Leite)
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MOBILIDADE URBANA “Imagens e textos de ótima qualidade fazem da revista “A3” já uma referência em seu segmento, apesar de ainda tão jovem. Ao ter o prazer de conhecer a equipe responsável pela publicação, a minha admiração cresceu, pois vi com que dedicação, carinho e competência conversam sobre as melhores decisões para a revista. Na última edição, de número 4, destaco a matéria que deu origem à manchete, “As cidades para os pedestres”, pela urgência dessa discussão, tão essencial à qualidade de vida de todos. Também gostei, especialmente, da abordagem da seção Encontros Possíveis, “O eterno conflito entre ciência e religião: um mito?”, pois é um tema geralmente visto à luz do senso comum e, raramente, com opiniões embasadas, como ocorreu na “A3”. Letícia de Sá Nogueira (professora universitária)
AMPLIANDO CONHECIMENTO “Importante e eficiente, a iniciativa da UFJF, através da revista “A3”, na divulgação de destaques de sua produção cientifica, cumprindo o papel social da Universidade de integração, ampliando o conhecimento da comunidade como um todo, incluindo aqueles que não tem qualquer participação universitária. Parabéns!” Lucia Adélia Cezar Reis (empresária)
A obra da 4ª Capa é do artista plástico e pró-reitor de Cultura da UFJF, Gerson Guedes. Intitulada “A história da UFJF”, foi criada em 2006, com a técnica acrílica sobre tela e mede 1,8m de largura por 1m de altura
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Aumento da produção científica amplia reconhecimento internacional da UFJF Com crescimento de 33% de artigos indexados no Scopus em um ano, a Universidade está entre as que mais avançam no número de publicações científicas do Brasil Márcio Brigatto Fotos
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os últimos anos, a Universidade Federal de Juiz de fora (UFJF) apresentou um crescimento de publicações científicas internacionais quatro vezes mais acelerado que a média nacional. Esse resultado se apoia no número de artigos indexados na maior base de dados do mundo da literatura científica: Scopus. Referência utilizada também por rankings internacionais de universidades e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). De acordo com os dados filtrados no Scopus, a Universidade obteve um crescimento superior ao da América Latina e Ibero-américa. Em seis anos – 2006/2012 – a UFJF cresceu 289% o número de artigos – e esse crescimento tem acelerado –, enquanto o Brasil elevou 70%. Apenas em 2012, a UFJF publicou 619 artigos, 38,4% a mais em relação a 2011; nesse período o Brasil cresceu 6,7%. Esses dados têm ajudado a melhorar, ano após ano, o patamar da Universidade em rankings internacionais como Scimago Institutions Rankings. Na versão 2013, a UFJF já figura entre as 60 melhores universidades da América Latina.
Inserir os resultados do trabalho acadêmico na comunidade científica internacional, pensando de forma colaborativa, é um meio eficaz para fomentar o desenvolvimento. “Na área acadêmica, o diálogo internacional tem efeito mais profundo, permitindo que as transformações ocorram mais rapidamente por meio da produção conjunta de novos produtos, novas filosofias e novas tecnologias. Estamos vivendo uma grande revolução da produção do conhecimento científico”, destaca o pró-reitor de Pós-graduação da UFJF, Fernando Aarestrup. Para um dos pesquisadores da UFJF que teve maior número de artigos citados (indexados no Scopus), Sócrates Dantas, esse crescimento qualitativo da Universidade nos últimos anos é reflexo de investimentos da Administração Superior em pesquisa, associados a recursos oriundos de projetos individuais conseguidos por meio de agências de fomento e grandes projetos institucionais. Em 2011, a UFJF captou R$ 9,3 milhões no CT-Infra da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), estando no seleto grupo das dez universidades do país que captaram mais de R$ 9 milhões.
A decisão institucional de investir na contratação de professores com alta qualificação, também colaborou para o crescimento apresentado. Hoje mais de 75% do total de docentes da UFJF são doutores. “Acordamos tardiamente para a Pós-graduação Stricto Sensu, entre 2006/2012 foram autorizados pela Capes 19 programas de mestrado e 11 doutorados, do total de 35 e 15 existentes. Ou seja, este crescimento é consequência de uma série de ações da UFJF”, ressalta Sócrates. A publicação científica, hoje, é o maior parâmetro para pontuação de alunos, professores e programas de pós-graduação. O pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-membro do Conselho Técnico-Científico da Capes, Jair de Jesus Mari, lembra que na década de 80 era comum que a tese fosse depositada nas prateleiras, não havia exigência de publicação científica. “Isso mudou muito. A publicação em revistas de qualidade garante que o artigo produzido passe por uma avaliação externa, permitindo revisão do método e do conteúdo da produção, essencial para garantir qualidade.”
2011 (445) 2006(159)
2008(220)
2007(200)
2009(272)
2010 (329)
2012 (616)
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Ilustração: Joviana Marques
Bárbara Duque Repórter
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VANTAGENS INSTITUCIONAIS
João Queiroz, parecerista de revistas internacionais e professor da UFJF, ressalta que a alta produção conduz a um aumento dos critérios para a publicação, principalmente aquelas de maior peso, indexadas em plataformas importantes
As revistas científicas possuem um corpo de pareceristas que avaliam, de acordo com a área de cada especialista, a qualidade e a relevância dos artigos a serem selecionados para publicação. Quanto mais respeitada mundialmente a revista, mais rigorosa é a seleção dos textos. Nas melhores revistas, menos de 10% dos trabalhos submetidos para avaliação são selecionados para publicação.
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“A avaliação dá a oportunidade ao autor de revisar o trabalho, incluir informações e refinar outras, tornando-o mais completo. O avaliação leva em conta elementos como: originalidade; impacto na comunidade, em determinado período; consistência estrutural”, esclarece o parecerista de diversas revistas internacionais e professor da UFJF, João Queiroz.
Vivenciar um ambiente no qual existe uma efervescência criativa e inovadora permite a graduandos e a pós-graduandos pensarem de forma ousada, extrapolando os limites regionais, buscando interfaces com pensadores do mundo todo. “Por meio da produção do conhecimento, o aluno passa a analisar o saber disponível, a pensar novas maneiras de utilizar aquele conhecimento, estimulando a inovação, a consciência crítica, o que potencializa o desempenho científico com vistas a impactar positivamente a condição de vida das pessoas”, diz Aarestrup. Uma das principais ferramentas para inserir os alunos de graduação na pesquisa tem sido o Programa de Iniciação Científica, outra iniciativa de grande sucesso e crescimento na UFJF. Todo este esforço foi reconhecido em 2011, quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) conferiu à UFJF o “Prêmio Destaque do Ano na Iniciação Científica”, na categoria Mérito Institucional, por ser a universidade com maior índice de egressos do programa titulados na pós-graduação. “Familiarizar-se com o processo de produção do conhecimento contribui para que o aluno tenha capacidade de selecionar as pesquisas mais relevantes em sua área de atuação. Percorrendo este caminho, ele pode mais facilmente transferir o conhecimento adquirido para outras questões práticas que o ajudarão a solucionar problemas locais e globais”, afirma Jesus Mari. Além do investimento em bolsas de iniciação científica, outras importantes iniciativas da UFJF contribuem para o avanço das pesquisas, como o apoio financeiro para traduções de artigos e visitas de pesquisadores estrangeiros. Assim como a implementação de diversos programas de apoio e incentivo aos pesquisadores, com o intuito de viabilizar o aumento da produção das publicações e indexações de artigos, o fortalecimento de grupos de pesquisa e da divulgação científica, facilitando a participação e a organização de eventos científicos, criando cada vez mais um ambiente propício às atividades acadêmicas na Universidade. Segundo o reitor da UFJF, Henrique Duque, o crescimento expressivo da presença da Universidade no cenário das publicações científicas é reflexo do progresso da instituição, da valorização de seus profissionais, do trabalho – e da qualidade do trabalho – de seus pesquisadores. “A política adotada nos concursos para o quadro docente e o investimento no
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aumento e diversificação dos programas de pós-graduação também são fatores a serem considerados e comemorados. Nossa tarefa contínua é a de proporcionar condições de infraestrutura e ambientes de trabalho e pesquisa que favoreçam a manutenção deste crescimento e o aperfeiçoamento da qualidade da nossa produção científica e acadêmica. Um exemplo é o investimento de R$ 3 milhões que estamos fazendo em nossos laboratórios.” Em 2012, a UFJF investiu R$ 530 milhões em infraestrutura, como construção e reforma de prédios, laboratórios e compra de equipamentos.
EM BUSCA DO EQUILÍBRIO Não resta dúvida de que todo esse investimento em ciência deve ter como intuito primordial promover o desenvolvimento social e econômico, portanto, há de ser feito de forma responsável e prevendo resultados que contribuam para saltos importantes no conhecimento e, consequentemente, para melhorar a vida da sociedade. O incentivo à produção em escala tem sido alvo de críticas, fundamentadas por um efeito que surgiu recentemente, chamado “salame”. Trata-se de, por uma necessidade essencial de publicar em larga escala, o pesquisador fragmentar sua pesquisa em diversos artigos menores com subprodutos para ganhar em quantidade, o que pode prejudicar a qualidade. No entanto, há um crescente reconhecimento da importância de avaliar mais a qualidade (medida, por exemplo, pela qualidade da revista na qual o trabalho foi publicado e pela quantidade de vezes que um determinado artigo é citado por outros pesquisadores) do que a quantidade. O uso de critérios de qualidade, por exemplo a indexação em bases internacionais como a Scopus, é fortemente utilizado na avaliação da produção científica. De outro lado, como ressalta Queiroz, a alta produção conduz a um aumento dos critérios para a publicação, principalmente aquelas de maior peso, indexadas em plataformas importantes. “Ao mesmo tempo, acho que se deve ter cuidado para não uniformizar demais os critérios de mensuração, especialmente quando se compara a produção entre diferentes áreas – um protocolo experimental em etologia cognitiva pode exigir muito mais tempo do que experimentos em neuroimunologia, e o tempo exigido para a tradução criativa de um autor complexo pode ser enorme.” Detalhes como este devem fazer parte de uma constante revisita aos critérios de qualificação, já que
Sócrates Dantas, um dos pesquisadores da UFJF que teve maior número de artigos citados (indexados no Scopus), ressalta que o crescimento é consequência de uma série de ações da Universidade
nenhum processo avaliativo é perfeito. O Brasil vivencia um processo de expansão da quantidade de produção científica, porém, deve se ater a outros desafios fundamentais para elevar a qualidade do que é produzido. Um fator importante, destacado pela pró-reitora de Pesquisa da UFJF, Marta D’Agosto, é estimular o
desenvolvimento de outros produtos resultantes da pesquisa, “precisamos investir também em formação de recursos humanos e no desenvolvimento de patentes, que signifiquem novos produtos para a sociedade, rompendo a fronteira do conhecimento”.
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De olho nas aves
O pesquisador Erik Daemon (terceiro em pé à esquerda) em trabalho de campo com especialistas, alunos de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado
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Pesquisa entre UFJF e UFRRJ possibilita mapear parasitos das aves encontrados em fragmentos da Mata Atlântica, visando assegurar a sobrevivência dessas espécies e avaliar os efeitos do desmatamento em seu desenvolvimento Bárbara Duque Repórter
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Márcio Brigatto Fotos
arrapatos, ácaros, pulgas e protozoários são alguns parasitas alvos dos estudos desenvolvidos por pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Por meio de uma concorrência nacional entre universidades e centros de pesquisa promovida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o grupo da UFJF, liderado pelos pesquisadores Erik Daemon e Marta d´Agosto, teve aprovado seu projeto para identificar parasitoses em aves. Composto por doutores e especialistas reconhecidos por seus trabalhos em parasitologia animal, esse grupo tem conseguido com muita sinergia realizar um trabalho dinâmico, em rede, contribuindo para os avanços tecnológicos nacionais e interligados às principais questões preservacionistas mundiais. Alunos de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado estão envolvidos neste projeto que valoriza o treinamento de recursos humanos especializados na área de parasitologia básica, com ênfase nas espécies diretamente envolvidas nos ciclos silvestres. Em um primeiro momento, a proposta foi avaliar parasitoses do Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o que limitava a pesquisa aos animais mantidos pelo órgão em Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira. O intuito é analisar as infestações de parasitos externos (ectoparasitos) – que podem ocorrer na pele, em penas, nas vias respiratórias e até em ninhos – e parasitos do sangue (hemoparasitos).
A proposta foi submetida ao Programa Nacional de Incentivo à Pesquisa em Parasitologia Básica da Capes em 2010, sendo aprovada após algumas adequações. Motivado pela riqueza do trabalho e a possibilidade de conhecer minuciosamente o estado sanitário das aves, obtendo resultados de notória relevância, o estudo foi ampliado. Devido à sua indiscutível importância, o grupo de espécies analisado multiplicou, ressaltando que permanece inalterado o propósito de auxiliar o Ibama no processo de reinserção das aves apreendidas no habitat mais propício a cada espécie. As análises, hoje, estão sendo feitas também em aves silvestres de ocorrência em fragmentos de Mata Atlântica da Zona da Mata Mineira. A região foi escolhida pela riqueza de sua fauna e por ser responsável por uma grande parcela da produção agrícola e pecuária do país.
ESTUDOS INCENTIVADOS Segundo a lista de aves divulgada pelo Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos em 2011, o Brasil apresenta 1.832 espécies, isso equivale a aproximadamente 57% do registrado em toda a América do Sul. Como 13% dessas espécies são endêmicas do Brasil, o país é considerado estratégico para investimentos em conservação. Desta forma, estudos para proteger esse patrimônio nacional são amplamente incentivados. O risco que a infestação de parasitos pode causar à saúde do hospedeiro, levando à morbidade e até à mortalidade das aves, é bastante conhecido. Porém, são
fundamentais estudos mais precisos sobre o diagnóstico, o tratamento, o controle e as profilaxias das zoonoses associadas aos parasitos de aves, visando assegurar a sobrevivência de espécies, muitas vezes, em risco de extinção. Outro fator que motiva a pesquisa são as questões ambientais. Os dados levantados servirão de base para avaliar os efeitos do desmatamento – e outras alterações provocadas pelo homem – no desenvolvimento dessas espécies. “Percebemos que em alguns fragmentos menores, resultados de um desmatamento acentuado, o prejuízo causado pelos parasitos é maior, visto que a quantidade de alimento é bem mais restrita; as aves ficam debilitadas e, portanto, mais suscetíveis aos males provocados pelas parasitoses”, pondera Daemon. Sobre esse ponto, o pesquisador do grupo da UFRRJ, Carlos Luiz Massard, ressalta que as aves silvestres, de diferentes espécies, representam sim, do ponto de vista ecológico, um fator importante para o conhecimento das alterações climáticas e ambientais. “As ferramentas utilizadas nesse estudo possibilitarão diagnosticar agentes patogênicos nestes hospedeiros em condições naturais, bem como, a possível veiculação de ectoparasitos que podem ser transportados, através das aves, entre propriedades rurais, a média e longa distância.”
CAPTURA Após aprovados e estabelecidos os objetivos e a metodologia do projeto, a equipe deu início à importante parte que consiste em desenvolver A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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trabalhos de campo no território pré-estipulado. Esta etapa começou em janeiro de 2013 e deverá terminar em meados de 2016. A equipe seleciona a área a ser estudada e, após a devida autorização concedida pelo Sisbio (sistema de atendimento à distância que permite a pesquisadores solicitarem autorizações para coleta de material biológico e realização de pesquisa em unidades de conservação federais e cavernas), desloca-se inteira para o local por cerca de uma semana. Os pontos de captura compreendem desde propriedades privadas, com a anuência dos proprietários, assim como áreas pertencentes à União. Os locais são escolhidos em função do tamanho dos fragmentos de mata e das características das regiões limítrofes. O objetivo é conseguir o maior número de amostras possível. Os pesquisadores armam redes de captura, resgatam o animal cuidadosamente para que os exames possam ser realizados e, finalizadas catação e coleta de sangue, devolvem a ave de forma segura para a natureza. Todo o processo demora cerca de 20 minutos. Os animais coletados passam por cadastramento, no qual são registradas todas as características morfológicas; em seguida pela pesagem e sessão de fotos – para viabilizar uma posterior identificação. O processo de catação consiste em retirar os ectoparasitos aderidos à superfície corporal e penas do animal. Antes de serem devolvidos à natureza, os pesquisadores recolhem o material sanguíneo para levar ao laboratório (ver infográfico na página 13). É observada nas aves também a presença de sinais clínicos decorrentes das infecções como prostração, palidez, paralisia, falta de coordenação motora, flacidez muscular, penas eriçadas. Os ectoparasitos coletados são levados ao laboratório de Artrópodes Parasitos/UFJF e identificados sob microscópio estereoscópico. Quando necessário, são utilizados recursos mais detalhados para uma identificação mais aprofundada. São calculadas, então, as prevalências, além de correlacionar as ocorrências desses parasitos com as variáveis ecológicas das espécies hospedeiras. “Um conhecimento adequado da fauna parasitária associada com as aves é fundamental para o diagnóstico correto das espécies de parasitos de uma determinada região, primeiro passo para a formulação de medidas de controle em casos de doenças transmissíveis que ameacem a saúde coletiva humana e o manejo sustentável da biodiversidade”, destaca o pesquisador da UFRRJ, João Luiz Horacio Faccini.
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ESPECIALISTAS O trabalho desenvolvido de forma multidisciplinar e multi-institucional agrega vantagens importantes para o projeto. Poder desfrutar de melhor estrutura física e tecnológica – como rede de laboratórios e equipamentos, especialistas em segmentos distintos e recursos humanos que estão sendo formados em linhas de pesquisas que se complementam – viabiliza resultados mais ricos e úteis à manutenção da biodiversidade. É por meio da microscopia óptica, eletrônica e técnicas de biologia molecular, que as equipes das duas universidades aprofundam o diagnóstico dos ectoparasitos e hemoparasitos encontrados. Esses resultados também deverão cumprir algumas atividades acadêmicas, como a elaboração de material didático-pedagógico, a publicação de artigos científicos e de divulgação, além de terem seus resultados apresentados em palestras e simpósios relacionados ao tema, visando educar agentes de saúde, estudantes de graduação e pós-graduação e indivíduos da sociedade em geral.
RESULTADOS ALCANÇADOS O estudo já contribuiu para o resultado de três dissertações de mestrado no programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas, Comportamento e Biologia Animal da UFJF, defendidas em fevereiro deste ano. Atualmente, mais um trabalho de mestrado do mesmo programa, está em andamento, juntamente com outro de iniciação científica. Os recursos do projeto auxiliam dois doutorandos da UFRRJ e uma pós-doutoranda que desenvolve seus trabalhos na UFJF. A perspectiva é que, em 2014, pelo menos mais dois alunos ingressem em programa de doutorado e vinculem suas teses ao projeto. Além dos alunos ligados diretamente ao projeto, a equipe conta com mais 12 integrantes voluntários em diferentes graus de formação acadêmica. Um artigo já foi enviado para publicação em revista da área de Parasitologia e três encontram-se em fase de preparação. Entre as coletas realizadas no Centro de Triagem de Animais Silvestres (Cetas) da unidade do Ibama em Juiz de Fora, foram analisados, até o momento, dados de 273 aves. Vale ressaltar a parceria produtiva com o órgão, que viabiliza
Trabalho de campo
P E SQUISA
tais coletas, com a colaboração de profissionais como o chefe da Base Avançada do Ibama em Juiz de Fora, Aurélio Augusto de Sousa Filho, e o analista Ambiental também baseado na cidade, André Santos Neves. Como resultado do trabalho em campo, foram examinadas 312 aves nas seguintes localidades de Juiz de Fora: Sítio Malícia, na Mata do Krambeck; bairro Graminha; Granja Passarada; e Sítio Vista Alegre, no bairro Caeté. Além destes pontos de coletas, mais sete localidades estão em processo de autorização para serem visitadas.
PES QUISA
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3 Após a pesagem, são feitos exames morfológicos, cadastrando os animais com suas dimensões padrão
Equipe instala redes de neblina em grande perímetro para captura das aves que serão analisadas
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Acondicionadas em sacos plásticos contendo algodão embebido em éter, por 3 minutos, começa a retirada dos ectoparasitos (externos)
Esse processo termina com a catação, ou seja, os remanescentes são retirados pela inspeção visual
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5 As amostras coletadas (ecto e hemo) são levadas para análises em biologia molecular no laboratório. Encerrado o processo (cerca de 30 min), as aves são soltas
Para análise dos hemoparasitos (sangue) é feita punção na veia, retirando quantidade de sangue inferior a 5% do tamanho da ave
MAIS
Erik Daemon de Souza Pinto Doutor em Ciências Veterinárias pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Professor associado III da UFJF. erik@acessa.com http://www.comportamento.ufjf.br http://lattes.cnpq.br/9233854312952989 Marta Tavares D’Agosto Doutora em Ciências Veterinárias pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (URFRJ) Pró-reitora de Pesquisa e professora associada III da UFJF marta.dagosto@ufjf.edu.br http://www.comportamento.ufjf.br http://lattes.cnpq.br/3613543137874919
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P RO FI SSÕES
Muito além dos números Flávia Lopes Repórter
Márcio Brigatto Foto
Estatística vem ganhando espaço entre profissões do futuro e já figura no ranking das mais bem pagas do país
Ângela Mello Coelho: “Há muitas vagas disponíveis no mercado, mas faltam profissionais qualificados”
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á relatos de que os primeiros estudos e aplicações dos fundamentos da estatística tenham surgido no início do século XVII, motivados por apostadores de jogos de azar, cansados de ver suas fortunas minguarem a cada jogada infeliz. De lá para cá, muita coisa mudou, e a ciência tem exercido uma profunda influência na maioria dos campos do conhecimento. Métodos estatísticos vêm sendo utilizados para o aprimoramento de produtos agrícolas, para a medição da eficácia de vacinas e medicamentos em geral, no controle de tráfego, na qualidade e na produtividade das empresas e, principalmente, para embasar planejamentos governamentais. Para chamar a atenção para este importante campo da ciência, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou 2013 como o Ano Internacional da Estatística, com o intuito de sensibilizar o público para o seu impacto sobre todos os aspectos da sociedade e também de apresentá-la como profissão, sobretudo, entre os jovens.
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Pouco alardeada, a ocupação ganhou holofotes após figurar entre as mais bem pagas do Brasil, segundo estudo divulgado no início de julho de 2013, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base nas profissões de nível técnico e superior que mais criaram empregos e tiveram os maiores ganhos salariais entre 2009 e 2012 em todo o país. Entre as 48 carreiras de nível superior avaliadas, a estatística apresentou a segunda melhor remuneração média no país: R$ 5.416 por mês, perdendo apenas para os médicos, com ganho médio mensal de R$ 6.940. No ranking geral das melhores carreiras, em que foram avaliadas taxa de ocupação, jornada e cobertura previdenciária, ela também ocupa os primeiros lugares do ranking, ficando com a sexta posição. Na avaliação da coordenadora do curso de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Ângela Mello Coelho, o interesse pela profissão vem crescendo, o que pode ser observado internamente pelo aumento das pessoas que ingressam no Bacharelado
de Ciências Exatas e optam pela Estatística. Porém, segundo ela, ainda há grande evasão, como acontece na maior parte dos cursos da área de Exatas, e nem todas as vagas são preenchidas. “Hoje enfrentamos um grande problema, pois há muitas vagas disponíveis no mercado, mas faltam profissionais qualificados. Por conta disso, muitas pessoas de outras áreas acabam migrando para preencher este espaço. No nosso departamento, por exemplo, temos professores das áreas da matemática, engenharia, economia.” A coordenadora destaca que a maior parte dos profissionais formados nos cursos já sai empregada, quando não opta por permanecer no universo acadêmico em programas de pós-graduação. Ainda de acordo com Ângela, outro fator que agrava o preenchimento destes postos de trabalho é o fato de que muitos veem a profissão com receio, por puro desconhecimento. “Infelizmente, a estatística não é trabalhada nas escolas da forma como deveria. As pessoas só percebem sua importância, quando começam
PRO FIS S ÕES
a realizar pesquisas acadêmicas, em que as estatísticas são fundamentais.” Para levar o conhecimento da profissão aos estudantes, o Departamento de Estatística está realizando visitas em escolas da região e organizou palestras para explicar aos alunos do ensino médio a rotina de trabalho vivenciada pelo estatístico. Além disso, os professores do departamento realizaram eventos ao longo de 2013, como parte das comemorações do Ano Internacional da Estatística, como palestras, minicursos, exposições e a organização da Semana da Estatística, que ocorreu em outubro de 2013.
APLICAÇÃO NO DIA A DIA As primeiras aplicações do pensamento estatístico surgiram para atender as necessidades do Estado, na formulação de políticas públicas, a partir de dados demográficos e econômicos. A abrangência da estatística foi ampliada no começo do século XIX para incluir a acumulação e a análise de dados de maneira geral. Hoje é largamente aplicada em ciências naturais, sociais, inclusive na administração pública e privada. Para o professor do Departamento de Estatística que realiza trabalhos na área de saúde coletiva, Ronaldo Rocha Bastos, “a estatística é uma forma diferente de raciocinar”. Segundo ele, sua principal função é “quantificar as incertezas. Na saúde coletiva, a estatística tem uma função importante, como, por exemplo, identificar quais fatores podem estar relacionados a determinada doença, avaliar a eficácia de vacinas e até prever com antecedência a ocorrência de enfermidades em determinada localidade. Sem uma análise estatística de dados, qualquer avaliação é apenas uma opinião”. Bastos também destaca a importância de iniciar a formação para a estatística de maneira mais precoce, já nos primeiros anos escolares. “Não deveríamos deixar o ensino desse campo apenas para a universidade. Precisamos chamar a atenção desde cedo para essa ciência que está
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tão presente em nossas vidas. Se o indivíduo não conhece alguns princípios da estatística pode acabar trabalhando dados incorretamente ou sendo vítima dessa manipulação.” Também professor do Departamento de Estatística, Lupércio França Bessegato faz coro quanto à necessidade de se pensar o ensino desta área de conhecimento já na educação básica. “Em um mundo com cada vez mais informações, as pessoas precisam dispor de mecanismos para avaliá-las. Tanto se fala em transparência e disponibilização de dados na rede; é preciso saber analisá-los para o próprio exercício efetivo da cidadania.” O estatístico também é atualmente o mais capacitado para trabalhar com uma das principais novas tendências da sociedade da informação: o big data. O fenômeno consiste em um conjunto de soluções para lidar com dados digitais em larga escala, o que é fundamental no processo para a tomada de decisões. Bessegato destaca, ainda, a importância da atuação do estatístico nos processos de controle de qualidade, para avaliação de confiabilidade, desempenho, modelos estocásticos, análises de riscos e, principalmente, redução de custos. “O que vai definir a frequência de troca de peças de um avião, por exemplo, é uma análise estatística.”
PESQUISAS E AVALIAÇÃO Quando um resultado de eleição sai bem diferente das pesquisas realizadas, um dos problemas pode ser a escolha da amostra – outra área com forte atuação do estatístico. O também docente do Departamento de Estatística, Marcel de Toledo Vieira desenvolve trabalhos principalmente na seleção de amostras que serão utilizadas em variadas pesquisas. Segundo ele, o principal objetivo é criar modelos que reduzam as margens de erro e os custos de uma pesquisa. “Procuramos um grupo mínimo que possa apresentar o resultado mais confiável possível. Se selecionada uma boa amostra,
Assista ao vídeo produzido para o Ano Internacional da Estatística bit.ly/A3_videoestatistica http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4785520J7
podemos conseguir resultados bem confiáveis até mesmo com três mil pessoas para um universo como a população brasileira.” Outro campo no qual a UFJF vem se destacando é relativo à utilização da estatística na área educacional, com o trabalho desempenhado pelo Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (Caed). Nesta área, o professor da Estatística e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Tufi Machado Soares, também coordenador de Pesquisa do centro, tem realizado estudos longitudinais - método que analisa as variações nas caraterísticas dos mesmos elementos amostrais em um longo período de tempo - do efeito de variáveis de alunos, docentes e escolas sobre desempenho dos estudantes em avaliações educacionais em larga escala. Além disso atuam na análise de classificação e do valor agregado das escolas. Segundo o docente, análises deste tipo são fundamentais para se conceber políticas educacionais e traçar estratégias para a melhoria dos resultados. Porém, de acordo com ele, a realização dessas análises ainda se encontra em estágio bastante incipiente. “É impossível traçar uma política educacional sem a utilização intensiva da estatística. Mas os governos, principalmente estaduais e municipais, não estão utilizando essa ferramenta como deveriam. Aí corre-se o risco de repetir erros, já que não houve a preocupação de avaliar a eficácia das ações.” Dentre os estudos já realizados, Soares destaca análises sobre repetência e outros fatores que levaram ao abandono em escolas públicas de Minas Gerais; determinantes do desempenho escolar; inconsistências na aprendizagem de leitura e matemática nos anos iniciais do ensino fundamental; análise longitudinal ao longo de cinco anos para avaliação do crescimento escolar de alunos, entre outras. “É fundamental entender os fatores que levaram a determinada situação e somente a partir de estudos estatísticos é possível conhecer a realidade e corrigir os problemas.” Uma área que, ao contrário do que parece à primeira vista, vai muito além dos números.
Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) www.caed.ufjf.br http://www.caed.ufjf.br/
Ângela Mello Coelho bit.ly/A3_lattes_AngelaMelloCoelho
Marcel de Toledo Vieira bit.ly/A3_lattes_MarceldeToledoVieira
Lupércio França Bessegato bit.ly/A3_lattes_LupercioFRancaBessegato
Ronaldo Rocha Bastos bit.ly/A3_lattes_RonaldoRochaBastos
Tufi Machado Soares bit.ly/A3_lattes_tufimachadosoares
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Novas tecnologias impõem desafios a docentes
Foto: Natália Ferreira
Flávia Lopes Repórter
Estudos apontam que ganho na formação on-line pode ser muitas vezes superior ao da presencial
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disseminação do uso das Tecnologias de Informação e Comunicação ocasiona uma evolução sem precedentes e faz com que a sociedade em rede tenha que repensar suas certezas e práticas adotadas e tidas como bem sucedidas até então. As mudanças impõem desafios ao professor, que precisa reavaliar suas didáticas e estratégias diante de um novo perfil de aluno, cada vez mais interconectado e habituado ao ambiente hipertextual, não linear. Pesquisas apontam aumento no rendimento dos educandos que lidam com recursos tecnológicos nos processos de aprendizagem. Blogs, jogos,
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webaulas e webconferências são grandes aliados na hora de despertar o interesse dos estudantes. Estas e outras iniciativas começam a aparecer com mais frequência em salas de aula. Mas, na avaliação de especialistas, são incipientes em um cenário em que a tecnologia avança velozmente. Pesquisa realizada pelo núcleo de ensino da Universidade Estadual Paulista (Unesp) aponta que o uso de recursos tecnológicos educativos melhoraram em 32% o rendimento dos alunos em matemática e física em comparação aos conteúdos trabalhados de forma expositiva em sala de aula. Na Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), estudos indicam aumento de quase 15% nas notas dos estudantes em uma mesma disciplina ministrada via plataforma Moodle, em comparação com o método expositivo tradicional. Os resultados chamam a atenção e atraem professores para a necessidade de reformular suas docências. Porém, na maioria dos casos, o uso mais comum das tecnologias na educação hoje é sua inclusão apenas com um “verniz de modernidade”, reforçando práticas tradicionais. Na avaliação da professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e
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pesquisadora na área de Educação e Tecnologias, Maria Helena Bonilla, um dos grandes desafios para os educadores é repensar seus modelos de ensino e entender os usos sociais das novas
mente irá vencê-las. Eles devem desenvolver ou tornar o computador, notebook ou o tablet seus parceiros no exercício do magistério.”
tência educacional. Mas se ele atua em redes, por meio de chats, fóruns, wikis e participa de colaboração on-line, vai conquistando segurança de que é possível uma educação de qualidade.” Ainda conforme ele, o ganho na formação on -line pode ser muitas vezes superior ao da presencial. “O aluno no presencial está acostumado a uma zona de conforto, em que pode estar disperso. No on-line, precisa dar conta do que o professor falou, ler e interagir com os colegas. Isso desenvolve competências que gostaríamos que todos os alunos tivessem no presencial. No ambiente virtual, o aluno precisa ser criativo, ser leitor e também autor.”
FORMAÇÃO DOCENTE NA UFJF
tecnologias, trazendo as potencialidades dessas ferramentas para a definição de novos caminhos. “Todo mundo usa redes sociais, mas em muitas escolas elas são proibidas. Por que não fazer dela um ato pedagógico?” O sociólogo e doutor em Educação, Marco Silva, autor, entre outras obras, do livro “Formação de professores para docência online” faz coro e destaca que nem todos os docentes estão acostumados a esta realidade e muitas vezes ficam indignados em relação ao uso de tablets e smartphones em salas de aula. “Se o professor quiser competir com essas tecnologias, dificil-
ROMPENDO PRECONCEITOS Para Silva, a principal preocupação dos professores diante desse novo perfil de aluno deve ser com sua formação continuada, para que contemplem a inclusão digital e a “inclusão cibercultural”. Em sua avaliação, é necessário saber construir uma “presencialidade virtual”, mesmo em relação a disciplinas presenciais. “Muitos professores têm preconceitos e não acreditam que estar on-line possa ter consis-
Com foco na formação dos docentes, a UFJF desenvolve, desde 2011, ações no sentido de repensar as práticas atuais e visualizar novas maneiras de tornar o ambiente educacional mais próximo da realidade dos futuros profissionais. As ações tiveram início a partir da criação da Coordenação de Inovação Acadêmica e Pedagógica no Ensino Superior (Ciapes), vinculada à Pró-reitoria de Graduação (Prograd), e do desenvolvimento do projeto piloto “Ações formativas para a docência no ensino superior”. Segundo o pró-reitor de Graduação da UFJF, Eduardo Magrone, a iniciativa foi adotada para repensar o perfil do docente e acompanhar iniciativas bem-sucedidas desenvolvidas na Universidade, que pudessem servir de incentivo a outros professores. “A ideia é, cada vez mais, estabelecer uma sintonia entre o perfil do nosso aluno que cola grau e as demandas da sociedade e do mundo do trabalho.” O objetivo do curso piloto, conforme a coordenadora do Ciapes e professora da Faculdade de Educação (Faced) da UFJF, Adriana Bruno, foi a criação de um projeto de ensino inovador para ser implantado posteriormente em sala de aula. “Nosso foco no curso foi trabalhar com a docência no ensino superior e não especificamente com as tecnologias da informação e comunicação. Mas vivemos imersos na cultura digital e, dessa forma, as tecnologias vêm ao encontro das necessidades dos professores e dos estudantes.” Ela destaca que as mídias e as tecnologias são parte de tais ações e precisam ser problematizadas e incorporadas a qualquer ação profissional. A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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“A docência não se reduz ao uso de tecnologias ou a estratégias didáticas, mas hoje não podemos debater docência apartada das tecnologias da informação e comunicação.” Convergente às idéias de Silvia e Helena Bonella, Adriana desctaca que hoje é produzida a denominada “educação híbrida” em que presencialidade e virtualidade complementam-se, integram-se.” O projeto piloto contou com a participação de 93 professores da UFJF em estágio probatório, entre janeiro de 2012 e março de 2013. De acordo com Adriana, foi estabelecido esse perfil de docentes para o piloto pelo fato de muitos deles possuírem mais tempo disponível para dedicação às ações propostas e também por apresentarem um olhar “de fora” e chegarem com novas ideias à instituição. “Também buscamos com o projeto trabalhar melhor a formação docente em geral, pois os cursos de pós-graduação, principais ‘certificadores’ para ingresso de professores nas universidades brasileiras, são voltados para a formação de pesquisadores em seus campos específicos, não à formação de professores.” Os próximos passos contemplarão toda a Universidade. “Queremos oferecer um `cardápio` amplo e múltiplo para que cada professor escolha sua trajetória formativa. Não podemos pensar em um único foco de formação diante de perfis tão diferentes.” O projeto também vai ao encontro da Lei 12.772/12, que torna obrigatória a realização de ações formativas na recepção de docentes nas universidades federais. Esse cenário implica na necessidade de redimensionarmos as propostas da Ciapes para atender esta demanda específica, sem deixar de atender também aos demais docentes da Universidade.”
ADAPTAÇÃO À LINGUAGEM
Victor Sartini, que já fez dois cursos a distância, aproveita momentos como a hora do almoço para assistir videoaulas
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Uma das professoras que desenvolve projetos iniciados no curso e hoje colhe os frutos das iniciativas implantadas em suas didáticas de ensino é a professora do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFJF, Carla Malaguti. Ela dividiu sua disciplina (Fisiologia Médica I) entre aulas presenciais e ministradas via plataforma Moodle e diz que notou um grande crescimento no interesse dos alunos, que passaram a participar mais e contribuir intensamente com as discussões. “Percebi que essa geração não consegue ficar muito tempo sentada em uma cadeira assistindo ao professor. Se as aulas não eram mais dinâmicas, havia muito desinteresse. Tive que
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me adaptar à linguagem deles e o resultado foi impressionante. Também tenho aprendido muito com os alunos .” Segundo ela, um dos indicadores mais evidentes é o aumento das notas na comparação com a mesma disciplina ministrada só de forma presencial, que passou de uma média de 85 para 96,5 (aumento de 13,5%). “Mas o que mais me impressionou foi o crescimento da participação dos alunos nas discussões. Eles sentem-se mais motivados e interessados em trazer novos temas. É uma competição muito positiva.” Ainda conforme Carla, houve uma mudança também em seu papel. “Antes eu era o centro, agora atuo mais como mediadora, lançando as questões centrais, que são trabalhadas de forma mais aprofundada que nas aulas presenciais.” A docente aponta, ainda, mudança na forma como os alunos se colocam no processo de ensino-aprendizagem. “Eles são responsáveis pelo próprio aprendizado. Há uma troca muito maior.”
ACOMPANHAR O NOVO PERFIL A união entre aulas presenciais e a distância também foi a opção adotada pelo professor e diretor da Faculdade de Direito da UFJF, Marcos Vinício Chein Feres, ao ministrar a disciplina Fundamentos do Direito aos alunos de Administração, Ciências Contábeis, Economia, Geografia, Serviço Social, além dos estudantes da própria faculdade. A escolha, segundo Feres, foi feita para acompanhar o novo perfil de aluno que já entra no ensino superior com habilidades diferentes. “Não podemos passar um conteúdo crítico, trabalhando só de forma tradicional. Precisamos fazer um processo de mudança para adaptar a aula a um aluno que é multitarefa e produto de uma sociedade digital. Foi preciso chegar perto deles para entender essa nova realidade e as necessidades deles.” O professor, que ministra a disciplina para uma turma de 120 pessoas, juntamente com outros docentes (que às vezes estão juntos em sala para mostrar essa integração), também trabalha com a exibição de vídeos e discussão. “Queremos
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que o aluno não só aprenda, mas possa experienciar situações diferentes e ver de que forma o Direito está presente em seu dia a dia.” De acordo com Feres, os resultados variam conforme as turmas, mas é mais produtivo que o do modelo tradicional, com participação mais ativa nas discussões. “A gente percebe que quem está emocionalmente envolvido aprende muito mais e buscamos esse envolvimento maior. É um projeto que sempre depende de quem faz junto e o papel do aluno é muito importante.” A produção de videoaulas, disponibilizadas na
Das 760 videoaulas arquivadas no sistema da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), 150 foram produzidas por professores da UFJF, a maioria do Instituto de Ciências Exatas, o que coloca a instituição como a segunda maior produtora de videoaulas do país, das mais de 30 cadastradas, somando 3.500 acessos por mês internet e acessíveis a qualquer hora do dia, é outra aposta da UFJF para ampliar o ambiente de sala de aula. Atualmente, das 760 videoaulas arquivadas no sistema da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), 150 foram produzidas por professores da UFJF, a maioria do Instituto de Ciências Exatas (ICE), o que coloca a instituição como a segunda maior produtora de videoaulas do país, das mais de 30 cadastradas, somando 3.500 acessos por mês. Um dos responsáveis pelo projeto, o professor do Departamento de Ciência da Computação (DCC) do ICE, Eduardo Barrére, conta que a participação da Universidade vem desde a fase de elaboração e desenvolvimento sendo, portanto, a primeira instituição a aderir ao projeto, no final de 2009 (não considerando a Cederj, idealizadora).
As videoaulas não são simples aulas gravadas colocadas na rede. O conceito vai além disso e prioriza, principalmente, a interatividade. Simultaneamente, com o vídeo, o aluno tem uma apresentação de slides disponíveis que avançam de acordo com o assunto abordado e um roteiro para a navegação. Se uma videoaula tem meia hora e ele não tem tempo ou não tem interesse no conteúdo completo, basta olhar no roteiro o tópico em que tiver dúvida. Ao selecionar determinado assunto , o vídeo e os slides avançam até aquele ponto. Para Barrére, a grande vantagem é produzir soluções instantâneas, sem a necessidade de grandes recursos, para problemas identificados ao longo das aulas. “Não procuramos fazer vídeos com grandes produções, gravados em estúdio e editados. Queremos que o professor possa criar um material complementar para auxiliar nas principais deficiências encontradas ao longo das aulas.” Ainda de acordo com o professor, o feedback é muito positivo. “Nas provas costumo colocar 10% das questões sobre algum conteúdo disponibilizado em formato de vídeo e o índice de acertos normalmente é bem alto. Quando não usamos esse material, os alunos costumam reclamar.” Para ele, a videoaula é uma forte tendência que deverá permanecer. “Precisamos ampliar os espaços de aprendizagem.” O licenciando em Computação pela modalidade EaD Victor Sartini já fez dois cursos a distância e diz que é a forma com a qual mais se identifica. “A principal vantagem é a mobilidade, pois não preciso ficar preso a um horário em sala de aula.” Trabalhando oito horas por dia, o estudante diz que muitas vezes chega a assistir as videoaulas no horário de almoço do trabalho. “O que acho mais interessante nessa modalidade é o fato de nós mesmos conseguirmos esclarecer dúvidas e chegar aos fóruns ou trabalhos com questionamentos mais elaborados.” Vários olhares estão percebendo estas demandas. E não existe uma forma única. “Há uma inquietação do ponto de vista educacional, pois as mudanças estão nas ruas. A sociedade é outra e é preciso antentar para isso nas salas de aula”, destaca Adriana Bruno.
“Formação de professores para docência online”, Marco Silva (Loyola, 2012) Videoaulas ICE/UFJF: http://www.ufjf.br/ice/video-aulas Rede Nacional de Ensino e Pesquisa: www.rnp.br
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Foto: Márcio Brigatto
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Antes que vire pó real ou virtual Raul Mourão Repórter
Responsável por garantir parte do que conhecemos atualmente, a restauração de papéis exige preparo técnico e teórico, e acervos digitais precisam enfrentar mudanças constantes de tecnologia
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e você coleciona a revista “A3” ou ao menos deseja conservar este exemplar por mais anos com algum grau de integridade, lá vão três dicas: prefira guardá-la em armário de metal em ambiente sem excesso de umidade; não deixe sobra de material orgânico sobre as folhas; não dobre páginas. Isso inclui seu diploma, fotos, livros. E quando na lista estão obras de expoentes das artes plásticas e da literatura, como Picasso, Miró, Albert Camus, Ismael Nery e Manuel Bandeira? Produções de todos eles passaram pelo Laboratório de Conservação e Restauração de Papéis do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em um trabalho que é símbolo da luta contra a degradação do tempo e a favor da preservação da informação e de expressões artísticas. O espaço dedicado ao setor, no museu, funciona como um microuniverso da interdisciplinar Ciência da Restauração. Manuais de química
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estão ao lado de catálogos de arte, papel japonês é tão fundamental quanto cera de abelha, assim como aquarelas e lápis de cor são materiais necessários para restauração junto a pinças e hidróxido de cálcio. O trabalho requer, entre outras habilidades, aprofundamento teórico e técnico. “Durante muito tempo, o profissional da área foi relegado aos porões de instituições, hoje, ocupa espaços em universidades, produz ciência”, afirma o restaurador do Mamm, Aloisio Arnaldo Nunes de Castro, autor do livro “A trajetória histórica da conservação-restauração de acervos em papel no Brasil” (lançado pela Editora UFJF e Funalfa). Tanta especialização, variedade de material e equipamentos é para dar conta do acervo com cerca de 300 obras de artistas nacionais e estrangeiros e mais de três mil livros e periódicos do Mamm. E ainda atender demandas externas ocasionais. A maior parte da coleção do museu era do escritor juiz-forano Murilo
Mendes (1910-1975), amante e crítico de arte, que atuou como arquivista na década de 1920. “A memória é uma construção do futuro, mais que do passado”, escreveu o poeta. “Preservar os registros da história e das experiências vividas ou construídas pela sociedade ou pelas organizações constitui uma atividade essencial para o aprendizado e para a geração de conhecimento”, acrescenta o doutor em Ciência da Informação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), José Carlos Grácio. Para manter informação e arte em suporte de papel, é essencial conservar o receptáculo, composto por uma variedade de fibras, desde algodão, linho e bambu a madeira, acrescidas de outros componentes. Quanto melhor a qualidade do papel, mais tempo ele pode durar. A tendência é que se torne pó, explica Aloisio Nunes. O processo é acelerado por agentes físicos e orgânicos: excesso de umidade, traças, fungos, acidez, poluição, poeira, luminosidade e
Foto: Natália Ferreira
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Professor Howard Besser, da Universidade de Nova York (EUA): “O papel vai durar mais que o digital se não fizermos nada. Devemos aprimorar o processo de preservação”
você, leitor. Sim, o homem é o maior preservador e destruidor da memória. E os critérios sobre o que guardar alteram-se ao sabor das idiossincrasias de cultura, tempo e gestão. Na Alemanha do regime nazista, a arte moderna era ridicularizada e condenada. Até meados do século XX, prevalecia a visão heroica, oficial, sobre a história. O que hoje negamos?
ETAPAS DO RESTAURO A escolha sobre o que valorizar, a descoberta da composição do material e o combate a agentes externos são fases da restauração e conservação. As obras chegam a diferentes estágios de integridade ao laboratório do Mamm, que, ao longo de quase dez anos, tornou-se referência entre universidades brasileiras. “Às vezes, a peça está com perda de pigmento, fissura, ondulação, em suporte inadequado, com manchas ou atacada por micro-organismos. De acordo com a situação, é preciso resgatar valores estéticos e informacionais”, lista Aloisio Nunes. O primeiro passo é abrir uma ficha técnica para descrever a peça e elaborar o diagnóstico sobre seu estado. Em seguida, a obra passa pela limpeza mecânica, que envolve o uso de trinchas ou mesmo microscópio para remover a sujeira superficial. A fim de identificar a composição do material, como o tipo de tinta, o laboratório já firmou parceria com o Departamento de
Química da UFJF, que emprega técnica de espectroscopia Raman, método que usa radiação eletromagnética sem interferir na estrutura do objeto. Se preciso, a obra é banhada, no laboratório, em solução alcalina para reduzir o grau de acidez do papel e amenizar o tom amarelado, permitindo, em alguns casos, sobrevida de até cem anos. Os ácidos que compõem o suporte, em reação química, geram substrato usado por fungos como alimento e contribuem para a decomposição da peça, tornando-a menos resistente, quebradiça. Nesse caso, as famosas orelhas de livro, que danificam as fibras, podem ser as primeiras a se romperem. Antes de o material ser imerso, os restauradores verificam o índice de acidez (pH).
Gravuras, xilogravuras ressecadas, com ondulações, vão aos poucos estendendo as fibras. Após esse revigoramento, a obra começa a ser reconstituída. Pode ganhar obturações, novas fibras, remendos, retoques Nem todo material pode ser banhado devido à fragilidade em que se encontra. Alguns exemplares passam pela câmara de umectação acoplada à mesa de sucção – tipo de bolha em
que o objeto é reidratado e exposto a vapor de solução alcalina. “É a única máquina em Minas Gerais”, frisa Nunes. Gravuras, xilogravuras ressecadas, com ondulações, vão aos poucos estendendo as fibras. Após esse revigoramento, a obra começa a ser reconstituída. Pode ganhar obturações, novas fibras, remendos, retoques. Livros geralmente são recompostos com cola neutra e recosturados. “Pelo aspecto, dá para saber se um deles está com grau de acidez alto. Muitas páginas precisam passar por velatura (junção de folha ou fibras ao suporte) com papel japonês, de melhor qualidade”, diz o conservador e restaurador de acervo bibliográfico e documental Lauro Bohnenberger, no Mamm há 13 anos. Em seguida, são preparados invólucros para acondicionar as peças. O papel usado é o mais neutro possível, ou seja, com reserva alcalina. Servirá para proteger a obra contra poeira e poluição, que fixam sujeira e micro-organismos, e contra a transferência de acidez entre as peças, explica Nunes. O armário não pode ser de madeira, pois ela libera gases que podem alterar a composição do papel. Até a gordura da mão, em reações, consegue fixar ou modificar compostos. Do fichamento à entrega para exposição ou acondicionamento em reserva técnica, passam-se dias ou meses. Todo o cuidado é imprescindível para lidar com um bem cultural público. A intervenção deve seguir princípios técnicos, éticos e filosóficos, estipulados em documentos nacionais e internacionais. A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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Foto: Márcio Brigatto
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Restaurador Aloísio Nunes de Castro reidrata gravura em câmara acoplada a uma mesa que também suga o excesso de umidade; é o único aparelho em Minas Gerais
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PES QUISA
“O modelo do profissional da conservaçãorestauração modificou-se de uma maneira contundente. Somos cada vez mais cobrados em relação ao nosso nível de qualificação, formação e experiência”, afirma a professora da Pósgraduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Yacy-Ara Froner, orientadora de Nunes no doutorado.
PRESERVAÇÃO DIGITAL Enquanto a restauração de papéis vem se constituindo como ciência há mais de um século, a preservação digital ainda está firmando sua base. Aclamada como a solução para a armazenagem e o fim das pilhas de papel, o repositório digital apresenta vantagens e desvantagens. Conseguimos ler livros produzidos há mil anos, mas daqui a 50 ou 200 anos teremos condições fáceis de reproduzir o DVD com fotos salvas, abrir o arquivo de música em MP3 ou acessar a conta no Facebook? O tema foi discutido no seminário “Preservação de Acervos em Papel”, realizado, em junho de 2013, pelo Mamm, com a presença de um dos mais renomados especialistas da área, o professor da Universidade de Nova York, Howard Besser (EUA). “O papel vai durar mais que o digital se não fizermos nada. Devemos aprimorar o processo de preservação”, alerta o profissional. Ao passo que a capacidade de guardar dados aumenta de forma exponencial, a vida útil do suporte digital é inferior a formas de registro rústicas, como a argila, de acordo com estudo do professor da Universidade da Carolina do Sul (EUA), Andrew Conway. Um papiro pode durar cinco mil anos; mas um CD, apenas 15. Na preservação digital, diferentemente do modelo tradicional, o suporte deixa de ser prioridade. Conforme Besser, não importa manter conservado um celular ou uma câmera fotográfica, no museu, mas sim o arquivo digital gerado, além de oferecer acesso ao
conteúdo. Isso exige trabalho constante de transferência de dados para novos suportes, devido à obsolescência tecnológica. O que estava no disquete é copiado para CD, DVD ou para as “nuvens” (repositórios digitais na internet) com o cuidado de não perder dados. A mudança abrange ainda novos meios de visualização com características diferentes dos programas ou equipamentos originais. Filmes da década de 1920, produzidos para um tipo de película e tela, alteram-se para serem exibidos em aparelhos de TV atuais.
“Entender as manifestações recentes no Brasil é também saber o que foi postado nas mídias sociais. Temos que guardar esse tipo de publicação. Aparentemente hoje pode não ter importância, mas, daqui a 30 anos, sim” (Howard Besser, professor da Universidade de Nova York - EUA) Sob o risco de os dados ou a forma serem perdidos, Besser questiona: “Quem vai salvar os arquivos? E como?”. Quando a preservação implica a produção de grandes instituições ou de toda a internet, pode requerer até bilhões em recursos financeiros, para armazenamento, programas (softwares), capacitação, gestão, pesquisa e monitoramento constante. O pesquisador sugere que entidades compartilhem investimentos e instrumental teórico e técnico. Nos Estados Unidos, há o Internet Archive (Arquivo da Internet), organização que guarda cópias de páginas de internet do mundo todo, conteúdo audiovisual e programas de computador, desde 1996, permitindo acesso pela web. É possível encontrar versões do portal da UFJF, do governo de Papua-Nova Guiné, na Oceania, ou de um blog. É como uma biblioteca de Alexandria, iniciativa do século I a.C a 48
d.C, que mantinha toda a produção cultural do mundo antigo. “Entender as manifestações recentes no Brasil é também saber o que foi postado nas mídias sociais. Temos que guardar esse tipo de publicação. Aparentemente hoje pode não ter importância, mas, daqui a 30 anos, sim”, diz Bresser, alertando para o risco de páginas serem cotidianamente censuradas. Pelo menos, 222.400 vídeos populares foram removidos do Youtube em alegação de direitos autorais ou outras razões, conforme o projeto YouTomb. “Não devemos salvar somente trabalhos clássicos, como os de Virgílio (poeta da Roma Antiga), Obama, Lula ou Dilma, mas também arquivos marginais ou do dia a dia. Vídeos instrucionais de empresas podem nos dizer como treinamos os trabalhadores. E produções caseiras dão a ideia do tipo de relações familiares que estabelecemos”, acrescenta. Outro ponto em relação à preservação digital é o acesso a arquivos pessoais e, em especial, de pessoas falecidas. O Google lançou, somente em abril, o serviço de Gerenciamento de Contas Inativas, que permite ao usuário indicar quem poderá receber seus dados ou excluir sua conta automaticamente após um período informado. No Facebook, familiares podem solicitar o cancelamento do perfil ou a transformação dele em memorial, que não poderá mais ser alterado. Como frisou a assessora em Preservação do Conselho Nacional de Arquivos, Adriana Cox Hollós, a saída não é imprimir tudo, a fim de criar novos acervos em papel. E acrescenta: “A democracia requer elaboração e implementação de políticas de informação que possibilitem meios para ampla produção, distribuição e uso dela, e incluam uma política de arquivos digna desse nome. Menos de 9% dos 5.564 municípios brasileiros possuem arquivos públicos formalmente constituídos. Isso com relação ao documento analógico, em papel. O que dizer em relação ao digital?”
MAIS Aloisio Arnaldo Nunes de Castro Restaurador do Laboratório de Conservação e Restauração em Papéis do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm/UFJF), doutor em Preservação da Imagem pelo Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. bit.ly/18TWE4V
Internet Archive: http://archive.org The Moving Image Archiving Program: www.nyu.edu/tisch/preservation Assista à entrevista de Howard Besser à “A3” : www.youtube.com/TVUFJF
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Saúde da Família: ainda um patinho feio Cobertura do Programa Saúde da Família se amplia em Minas Gerais, mas não interfere significativamente na redução de internações e mortes evitáveis
Raul Mourão Repórter
Márcio Brigatto Fotos
Artesanado e saúde: médica Rita Bastos no projeto do posto de saúde do bairro Parque Guarani, em Juiz de Fora (MG)
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pesar da expansão, em Minas Gerais, do programa Estratégia Saúde da Família, que, entre outras ações, disponibiliza equipes médicas em bairros, ainda 74.700 pessoas morreram devido a causas que poderiam ter sido amenizadas ou mesmo, em algumas situações, não terem acontecido. Parte do total está relacionada às chamadas Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP), ou seja, doenças que poderiam ter o risco de hospitalização desnecessária reduzido, se tivessem sido tratadas ou prevenidas na atenção básica. Mas, nesses casos, levaram o paciente à internação e à morte em 2010. “Alguns desfe-
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chos são inevitáveis, podem estar relacionados a outros fatores externos e até à idade avançada – sinal de mais longevidade. Mas chama a atenção o aumento de óbitos em comparação a 2000, quando foram 60.300 mortes (ou 4,8% das internações analisadas)”, afirma a médica de família Rita Maria Rodrigues Bastos. Os resultados fazem parte da tese, apresentada pela profissional, em 2013, no doutorado do Programa de Pós-graduação em Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Em 24 das 28 regionais de saúde (grupos de municípios sob gestão compartilhada), os óbitos em razão das causas pesquisadas subiram. Na
de Governador Valadares, no Vale do Rio Doce, mais que dobraram, saindo de 3,1% para 6,7%. A elevação também pode ser creditada ao modelo de financiamento, ao atendimento de emergência e urgência, ao padrão antigo que priorizava hospitais e até à cultura de determinados pacientes em buscar auxílio após o caso se agravar, segundo a superintendente de Atenção Primária à Saúde em Minas Gerais, Lizziane Pereira. “Há muitas iniciativas no Estado no sentido de valorizar a atenção primária. E é preciso analisar detalhadamente cada motivação dos óbitos.” O estudo aponta outros resultados e sinaliza o quanto é possível poupar vidas e recursos finan-
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para avaliar a atenção básica, sob a orientação da professora da Faculdade de Medicina, Maria Teresa Bustamante Teixeira, e coorientação do professor do Departamento de Estatística, Luiz Cláudio Ribeiro, ambos da UFJF. “Estudei cada doença da lista e me perguntei: ´Resolveria esses problemas na atenção primária?` Realmente sim, se diagnosticados e tratados oportunamente.” Nos bairros, há unidades com equipes de saúde da família, que atendem até 3.500 pessoas, e as tradicionais.
MENOS INTERNAÇÕES E LEITOS
ceiros. Algumas doenças tiveram acréscimo no nível de internação (ver quadro acima), como as infecções do rim e do trato urinário, que subiram da sétima causa mais frequente, em 2000, para a terceira mais usual entre as hospitalizações estudadas. Apenas entre 2009 e 2011, foram gastos R$ 8,4 milhões com 19 mil internações por esse tipo de infecção na faixa etária de 40 a 59 anos. “Se somarmos o custo dos outros 18 grupos de doenças, cujas internações são potenciamente evitáveis daria outro estudo”, resume Rita. Nos dez anos avaliados (2000 a 2010), a quantidade de dias de internação hospitalar também subiu de cinco para 5,2 dias. Embora a diferença pareça pequena, ela é significativa estatisticamente. Em Coronel Fabriciano, no Vale do Rio Doce, o número passou de 5,3 dias para 6,5. “O aumento aponta para a possibilidade de que os indivíduos têm sido hospitalizados em condições de maior gravidade. Chegando mais graves, ficam mais dias. O custo é mais alto, e o paciente pode passar por procedimentos invasivos.”
AVALIAR A ATENÇÃO PRIMÁRIA A médica comparou a expansão da cobertura do programa Estratégia Saúde da Família, no Estado, em dez anos, para verificar se a iniciativa contribuiu para reduzir as taxas de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP). São 19 grupos de doenças e quase 200 tipos na lista brasileira dessa categoria de hospitalização, como pneumonia, diabetes e rinite. Desse modo, o índice é um avaliador indireto do serviço prestado na atenção primária: quanto menos internações, mais eficaz foi o trabalho para evitá-las. Os casos são registrados no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS). Assim como outros indicadores, o ICSAP tem restrições, mas sinaliza aspectos importantes, como os apresentados na pesquisa. O estudo de Rita Bastos é o primeiro no Estado a usar o índice com foco em todas as regionais de saúde
Ao avaliar o total de internações sensíveis à atenção primária, os números absolutos são positivos. Houve queda de 8,5% no Estado: de 1,25 milhão, em 2000, para 1,14 milhão, em 2010 (ver quadro na página 26). Entretanto, é preciso considerar que, segundo o DataSus, entre 2006 e 2010, “houve redução de 10,2% no número de leitos hospitalares no Estado (35.794 em janeiro de 2006 para 32.156 em dezembro de 2010), assinalando queda na cobertura de internação hospitalar, já que a população, entre 2000 e 2010, cresceu 9,5%”, ressalta Rita. As principais quedas nas internações estão relacionadas à hipertensão arterial, asma e úlceras gastrointestinais. Para outras, os índices se mantiveram estáveis, como diabetes mellitus, desnutrição e infecções cutâneas. A pesquisadora atribui a melhora dos índices ao preparo da atenção primária em lidar com essas enfermidades e a programas federais, estaduais e municipais focados nesses grupos, como o Hiperdia, de tratamento da hipertensão. “Com um mínimo de organização desse nível de atenção à saúde, obtém-se resposta satisfatória”, afirma a médica. “A partir de um sistema interligado, em redes, com sinergia, conseguimos dar uma resposta pró-ativa, com uma atenção contínua e integral”, acrescenta a superintendente Lizziane Pereira. Além das redes de atendimento, são também exemplos de intervenção os grupos de trabalho terapêuticos sobre tabagismo, hipertensão, caminhada e a inclusão de biblioteca, aulas de culinária para diabéticos e outras iniciativas em postos de saúde. Na unidade do bairro Jardim Esperança, na Zona Sudeste de Juiz de Fora, um grupo de caminhada orientada reúne-se, duas vezes por semana, há cerca de sete anos. “O médico falou que meus ossos estão todos bons. Minha pressão é estável há anos e me sinto disposta”, conta a aposentada Amélia Cardoso, 76 anos, participante do projeto. A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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As mais altas reduções de internação ocorreram em quatro regionais: Belo Horizonte; na região metropolitana de Sete Lagoas; Ituiutaba, no Triângulo Mineiro; e Coronel Fabriciano, no Vale do Rio Doce. A capital deixou de hospitalizar cerca de 15 cidadãos a cada mil habitantes para internar aproximadamente 8,5. As que amargaram os maiores acréscimos, no período, embora não significativos estatisticamente, foram somente Juiz de Fora, na Zona da Mata, e Januária, no Norte do Estado (ver mapa na página 27). Em 2000, a regional juiz-forana, que abrange 37 municípios, aparecia na 25ª posição entre as 28 pesquisadas com 17,64 ICSAP por mil habitantes. Mas, em 2010, saltou para o 7º lugar, com 18,69 hospitalizações a cada mil indivíduos, mesmo tendo expandido a cobertura de saúde da família. E ainda que tenham reduzido seus índices, Leopoldina e Ubá alternaram-se, em 2000 e 2010, como as primeiras e segundas regionais com mais casos. Nesse período, ambas saíram da mais alta faixa de 30 a 33 internações a cada mil habitantes para cerca de 23 a 26 situações.
QUALIDADE NÃO ACOMPANHA EXPANSÃO Apesar de o total de internações ter diminuído, em todo o Estado, principalmente entre doenças crônicas, as análises estatísticas que fazem correlação com a expansão da Estratégia Saúde da Família mostram que a redução não foi significativa. “As iniciativas governamentais visando à consolidação da atenção primária em Minas Gerais não se mostraram efetivas para a diminuição das internações por condições sensíveis no período estudado”, conclui Rita Bastos. Somente em uma das 28 regionais houve correlação representativa: na de Manhumirim, que reúne 36 cidades na Zona da Mata. No período analisado, a cobertura populacional do programa, em Minas, passou de aproximadamente 40% para 70%. Em 2013, alcançou 75,3%. O resultado pode “sustentar a hipótese de que a expansão da cobertura sem a qualidade necessária não provoca impacto sobre as ICSAP. E a diminuição das internações não minimiza a gravidade de que ainda ocorram hospitalizações por algumas patologias imunopreveníveis (sarampo, caxumba, febre amarela, tétano e outras). Todo ano tem campanha de vacinação, mas ainda há casos de internação”. Para uma Atenção Primária adequada, Rita lista, entre outras demandas, a necessidade de melhorar a infraestrutura; gestão; equipamen-
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Grupo atendido pelo Estratégia Saúde da Família realiza caminhada supervisionada no Jardim Esperança, em Juiz de Fora
tos; remuneração; relação com outros níveis de atenção à saúde (secundário e terciário), além de promover atendimento interdisciplinar; mais ações educativas; e qualificação profissional. “É frequente a falta de bloco de receita e formulário para pedido de exame.” Não é raro encontrar reclamações sobre ausência de estrutura mínima mesmo em cidades de médio e grande portes. Em Juiz de Fora, na unidade do bairro Santa Cecília, localizado na Zona Sul, chega a faltar álcool para esterilizar materiais e agulha.
“Não fechamos a unidade porque temos jogo de cintura. E ainda cortamos a sobra de lenço de papel (usado para cobrir macas) para virar papel toalha, em falta. Papel higiênico não temos mesmo. O medicamento Prolopa contra Mal de Parkinson não vem há três meses”, desabafa um profissional, que preferiu não se identificar. Os atrasos se devem a entraves burocráticos, explica a Assessoria de Comunicação da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora. A reposição levaria entre uma semana e um mês.
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Ao mesmo tempo, mais fatores interferem na qualidade do serviço, tais como educação, vulnerabilidade social, criminalidade e uso de drogas. “Às vezes, a pessoa é internada por pneumonia grave porque não comprou antibiótico, não conseguiu exame ou demorou a obtê-lo”, diz Rita, acrescentando o caso de um paciente que não pôde manter o tratamento com oxigênio, pois não conseguia pagar o consumo de energia elé-
trica do equipamento. A mudança ainda passaria pela compreensão do cidadão sobre a atenção básica. Profissionais da área relatam casos de agressão, danos a carros, arrombamentos e mesmo reclamação contra a ausência de equipe para participar de capacitação ou ação preventiva, como caminhada. “O poder público tem se esforçado para melhorar a atenção primária. Falta muito. Espero que a pesquisa contribua
para o processo de gestão da Estratégia Saúde da Família, no qual confio”, destaca Rita. Como comparou o médico e escritor Moacyr Scliar, seria a transformação do Patinho Feio do sistema de saúde em “um cisne que a todos encanta”.
MAIS Rita Maria Rodrigues Bastos Doutora em Saúde pelo Programa de Pós-graduação em Saúde pela UFJF, professora da Faculdade de Ciências Médicas e de Saúde de Juiz de Fora (Suprema) bit.ly/Rita_lattes Leia a tese em: bit.ly/tese2013
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O L HAR ESTR ANGEI RO
O debate político no Twitter Frederic Guerrero-Solé* Tradução: Mariana Musse
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s eleições ao Parlamento da Catalunha de 25 de novembro de 2012, marcadas pela aposta na via soberanista do partido governante, Convergència i Unió (CiU), e pela consequente polarização da campanha entre os favoráveis e os contrários ao direito de decidir, ficaram conhecidas como as eleições da eclosão do Twitter como meio de comunicação política e espaço de debate político na Catalunha. Candidatos, partidos, demais atores da política catalã, meios de comunicação e jornalistas usaram a rede de microblog de forma intensiva para lançar mensagens políticas, enquanto outros para informar sobre o desenvolvimento da campanha eleitoral. No contexto marcado pela falta de crédito da classe política e seu distanciamento da cidadania, um fenômeno que parece se estender a muitas democracias ocidentais, as redes sociais se converteram, em pouco tempo, em um dos objetivos estratégicos dos políticos; não só pelo fato de que com um custo mínimo permitem que suas mensagens cheguem a um grande número de cidadãos, mas também porque são um meio que aproxima os políticos de seus eleitores – que podem participar do debate político – e o que poderia ajudar na superação da atual “desafeição da cidadania”.
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Se a primeira campanha do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, colocou em primeiro plano a eficiência do uso dos meios sociais como o Facebook ou MySpace, a segunda elevou o Twitter a ferramenta de comunicação política. Neste sentido, o Twitter experimentou um enorme crescimento em âmbito mundial, com mais de 200 milhões de usuários ativos em 2012. Além da sua utilização como instrumento de comunicação política, ele assumiu um papel de grande importância nos últimos movimentos sociais em todo o mundo, como na Primavera Árabe, no 15-M espanhol e no Occupy Wall Street norte-americano. No caso das eleições catalãs, as webs dos partidos, o Facebook, os blogs e as plataformas próprias criadas pelos partidos dominaram o cenário em 2010. E, como aconteceu no caso dos EUA, em 2012, o protagonismo ficou por conta do Twitter. O autor deste artigo acompanhou exaustivamente as atividades do Twitter durante a campanha eleitoral de novembro de 2012. Esse acompanhamento incluiu o recolhimento de tweets com a principal hashtag da campanha - #25N -, uma marca neutra que foi utilizada por todos os partidos e pelos principais meios de comunicação do país, assim como da hashtag #debatTV3, utilizada durante o debate televisionado pela
O LH A R ES T R A NGEIRO
Televisió de Catalunya – a TV nacional catalã – no dia 18 de novembro, entre os sete candidatos dos partidos com representação parlamentar. Durante a transmissão, #debatTV foi trending topic mundial com mais de 160 mil mensagens que continham a hashtag. Ambas as marcas podem ser qualificadas como neutras, já que não foram propostas por opção política em particular. No total, foram analisadas mais de 138 mil mensagens de #25N e cerca de 79 mil de #debatTV3. Neste artigo, apresentamos algumas conclusões da pesquisa que, apesar de partir da realidade e do conteúdo político e social da Catalunha – com a particularidade acrescentada e anteriormente mencionada da aposta pela soberania do partido governante, que acabou polarizando a campanha –, os resultados podem ser estendidos a outros sistemas democráticos multipartidários como o caso do brasileiro. Além disso, os dois casos retratados se complementam pelo fato de que #25N esteve em mensagens ao longo de toda a campanha, enquanto que #debatTV3 somente apareceu nos dias 18 e 19 de novembro, usadas em sua maioria no Twitter como uma segunda tela ao longo da transmissão do debate pela TV. Algumas das principais perguntas em que se baseiam essa investigação, e que pretendem dar respostas às questões que mais têm interessado aos acadêmicos que analisam a rede de microblog são: a influência dos diferentes atores que participam do debate político; a relação entre a presença no debate, a importância do partido político e os resultados eleitorais; além do comportamento dos cidadãos nos debates políticos. Se considerarmos que os principais parâmetros para calcular a influência dos usuários na rede são o número de seguidores (followers), a atividade, o número de retweets e as menções – tanto do usuário de Twitter como do nome real do usuário –, em uma primeira análise podemos concluir que os usuários com mais seguidores, mais ativos, com mais retweets e mais mencionados não coincidem. Apesar disso, encontramos uma correlação negativa em ambos os casos entre o número de seguidores e a atividade, e uma correlação positiva entre o número de seguidores e os retweets recebidos. Outro aspecto que deve ser destacado é que as celebridades, principalmente as que fazem parte do mundo da TV, têm um grande impacto no debate político. No caso da hashtag #25N, o usuário mais “retuitado” foi o de um personagem de uma série de ficção do canal T5, @Sr_Colmenero, e, no caso da hashtag #debatTV3 foi o do publicitário Risto Mejide (@ristomejide), famoso por suas intervenções como jurado do programa “Operación Triunfo”. Nos dois casos, as mensagens eram ou humorísticas ou insultantes e desqualificatórias. O interessante é que @junqueras, líder político do partido Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), partido que mais deputados ganhou nas eleições, foi o político mais influente nos dois casos. Ainda assim, é arriscado estabelecer uma relação entre a influência do Twitter e os resultados eleitorais. O caso paradigmático das eleições catalãs foi Solidaritat per la Independència (SI), talvez o partido mais ativo e um dos que mais retweets e menções recebeu, mas que, no entanto, não conseguiu representação parlamentar. Este é somente um exemplo que mostra a
dificuldade em utilizar o Twitter e as redes sociais como observatório para produzir resultados eleitorais. A natureza dos partidos, de seus líderes e de seus seguidores, que participam das escolhas sobre quais meios de comunicação serão utilizados para que as mensagens cheguem a seus eleitores, acabam influenciando de maneira decisiva no uso de uma rede de microblog como o Twitter. Prova disso é que Artur Mas, líder do principal partido catalão, Convergencia i Unió (CiU), não tinha até o momento das eleições uma conta no Twitter. Contudo, para além das relações diretas que podemos obter através da influência dos partidos e de seus líderes no Twitter, em nossa pesquisa, encontramos uma característica do comportamento dos usuários, que nos ajuda a organizar e compreender a rede formada por eles mesmos. A homofilia, tendência dos indivíduos de se unirem a outros indivíduos que compartilham determinadas características em comum, é uma propriedade muito conhecida nas redes sociais. Nos agrupamos com pessoas com as quais parecemos. Em nossa investigação estendemos esta propriedade ao ato de “retuitar” (retweet). Selecionando os 250 usuários mais “retuitados” (a maioria políticos, jornalistas e meios de comunicação), calculamos a interseção dos usuários que os “retuitam”. O resultado que obtivemos, depois de filtrar os valores da interseção, foi a organização destes 250 usuários mais influentes, segundo sua ideologia política. Este é um resultado de grande transcendência, uma vez que confirma que não só nos unimos a indivíduos que se parecem conosco, mas também com aqueles com quem parecemos – nesse caso politicamente – e “retuitamos” ao mesmo grupo de usuários. Dessa forma, podemos chegar a conclusões sobre a ideologia de certo usuário-político (conhecido ou não) empregando este cálculo das interseções de “retuitadores”. Em síntese, a análise do comportamento dos usuários do Twitter em discussões políticas, um campo novo mesmo que intensamente explorado nos últimos anos, nos permite chegar a conclusões sobre como se estrutura a rede em termos ideológicos, assim como se diferenciam de maneira muito clara as preferências dos cidadãos sem que seja necessário nos determos propriamente no conteúdo das mensagens. Por outro lado, a análise nos mostra como a lógica do meio se impõe. É, por exemplo, o caso da influência causada pelas celebridades na rede, que certamente são atores que devem ser levados em conta pelos políticos se estes pretenderem ter um maior impacto no Twitter. A Catalunha enfrentará, nos próximos anos, um processo que pode levála ou não à independência da Espanha. As redes sociais como o Twitter desempenharão um papel de grande relevância. Os políticos catalães, como os de todas as democracias modernas devem compreender qual é a dinâmica própria do meio de comunicação que utilizarão se realmente almejam influenciar no debate político, e pesquisas como esta, nas quais se pode compreender qual é essa dinâmica, podem ser de grande utilidade para melhorar a efetividade da comunicação política através das redes sociais.
*Professor doutor da Universidade Pompeu Fabra (UPF-Espanha)
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O pesquisador norte-americano William Woodward esteve em Juiz de Fora em 2013, quando oficializou a doação do seu acervo particular para o Núcleo de História e Filosofia da Psicologia Wilhelm Wundt da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
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“Psicólogos deveriam sair da torre de marfim e se conectar com instituições que trabalham por justiça social” Valéria Borges Repórter
Ana Beatriz da Fonseca Tradução Márcio Brigatto Foto
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m dos nomes mais conhecidos do mundo no campo da historiografia da Psicologia, o americano William Woodward, esteve na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em junho de 2013, quando oficializou a doação do seu acervo particular para o Núcleo de História e Filosofia da Psicologia Wilhelm Wundt (NUHFIP) da Universidade. Na oportunidade, inaugurou biblioteca e participou de palestras e seminários do Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Ele fundou e dirigiu por 30 anos o primeiro Programa de Pós-Graduação em História da Psicologia nos Estados Unidos (EUA), e é um dos pioneiros da assim chamada nova historiografia da Psicologia. Em entrevista exclusiva concedida à “A3”, conduzida pela jornalista da Secretaria de Comunicação (Secom) da UFJF, Valeria Borges e com a participação dos professores de Psiquiatria da Faculdade de Medicina, Alexander Moreira; do Departamento de Psicologia, Saulo de Freitas Araújo; e do Departamento de Ciências Sociais, Raul Magalhães, o especialista abordou temas polêmicos e inovadores. Confira trechos da entrevista a seguir.
- A3: Quais foram os principais desafios para o estabelecimento da Psicologia como uma disciplina cientifica? - William Woodward: Se libertar como disciplina independente das ciências instituídas, como a Medicina e a Filosofia, particularmente, na Alemanha e na França. A Psicologia começou a se institucionalizar independente das profissões maternas de Filosofia, Medicina e Educação, e houve crises. Falamos da crise na Psicologia por volta de 1900, na Europa, quando os filósofos tentaram mantê-la dentro da Filosofia. Houve uma batalha na Psicanálise se ela deveria ficar na instituição médica, na qual tendia a permanecer neste país, os Estados Unidos (EUA), ou se ficaria na instituição científica dentro da universidade. Nos Estados Unidos, temos escolas independentes de Psicanálise, do lado de fora do sistema universitário, em detrimento da mesma. Mas todo estudante de Psicologia aprende que esta é uma disciplina independente, que dá a ele a oportunidade de trabalhar como psicólogo. Então, ela ganhou status e independência nos Estados Unidos e, eu acredito, na Europa. Não posso falar pelo Brasil.
“O psicólogo tem que se tornar consciente do mundo político e se tornar ativista. Um exemplo seria o aquecimento global, psicólogos poderiam, potencialmente, ajudar a educar o publico sobre os perigos coletivos que enfrentamos”
- Quais são as principais transformações ocorridas nas ultimas décadas? - Nas últimas décadas, a Psicologia Clínica ficou realmente importante. Houve uma feminização da força de trabalho e, agora, 70% dos PHDs nos Estados Unidos são mulheres. Há uma diversidade de aplicações dessa ciência. Pense no tópico de abuso doméstico e familiar. Todo mundo sabe que o assédio existe e que precisa haver proteção contra bullying. Essa consciência de proteger o cidadão contra violência, acho que data dos últimos 20 anos, e está diretamente correlacio-
nado com a entrada das mulheres na profissão. A Psicanálise tem menos influência e as terapias cognitivas mais. No diagnóstico do paciente, hoje em dia, se gasta menos tempo com ele na terapia e mais tempo fazendo o diagnóstico. Infelizmente, houve proliferação de terapias com medicação, tem literatura especializada que cultua os remédios. O uso excessivo de medicamentos é preocupante. Quando se tem filhos, se você é um pai jovem, você tem uma escolha de uns cem tipos de manuais diferentes sobre como criar crianças. Eu acho isso bom, tem muita psicologia popular no comércio e muita consciência sobre o auto-aperfeiçoamento, através da literatura. Vejo isso na Europa, vejo isso nos Estados Unidos e, estou “adivinhando” que isso existe na América Latina. - A Psicologia gerou novas oportunidades de emprego? - Sim. Eu trabalhei no campo da História da Psicologia dos séculos XIX e XX, e claramente, entramos numa profissionalização pesada que inclui uma proliferação de empregos de serviços psicológicos na sociedade. Nós temos assistenA3- Novembro/2013 a Abril/2014
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tes sociais que trabalham com psicólogos nos tribunais, ajudando crianças a serem reabilitadas ou colocadas em lares adotivos. Buscamos a correção das crianças ao invés de encarceramento, por exemplo. Todo mundo tem direito à educação numa sociedade democrática. Nos últimos 20 anos, temos uma tremenda pressão no sentido de medição, prestação de contas e privatização da educação. Temos uma perigosa privatização das prisões, no sentido de que estamos fazendo dinheiro, quanto mais prisioneiros tivermos, mais dinheiro é ganho em alguns setores da economia, e o mesmo está acontecendo com a educação. Aonde isso nos levará? Privatizando o que costumava ser um bem social para fazer dinheiro? Nós podemos até sentir o impacto na educação superior. Agora estamos sentindo a burocracia chegando até nós, mais e mais, querendo saber como estamos usando nosso espaço e como usamos nosso tempo para produzir, mas como se mede a qualidade dos estudantes que nós educamos e a experiência educacional? Acho que estamos em perigo de irmos muito longe com a prestação de contas e que executivos não deveriam estar comandando o sistema educacional em busca de lucros. Devemos defender o papel de governo e a liberdade nas instituições de educação.
“A Psicologia tem que aprender a olhar a estrutura social, abrir suas portas para as teorias sociais e as teorias políticas”
- Fale um pouco sobre a situação atual da Psicologia nos Estados Unidos. Como avalia o status da Psicanálise Freudiana? - Os dados nos Estados Unidos nos dizem que a Psicologia é a maior graduação das universidades, muitos estudantes estão se formando nesta ciência. Você vai de Psicologia fisiológica à social, aconselhamento, Psicologia da saúde. As pessoas estão entrando na indústria de seguros, nos bancos, com um curso básico de Psicologia. Ela está sendo ensinada para praticamente todo mundo. Isso é bom, porque esse campo de estudo é parte da consciência do século XX, comumente denominado século de Freud. O que isso sugere? As pessoas estão cientes do inconsciente, pessoas pelo mundo afora estão
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conscientes da sexualidade infantil. Há mais consciência da importância da identidade com a mãe e o com o pai para a formação da criança. Ocorreu uma real disseminação dos ensinamentos da psicanálise na sociedade. Mas como uma profissão, a Psicologia não é psicanalítica no meu país, e eu diria que na Europa também não. Acredito que a Psicanálise está mais fortalecida na América do Sul. Eu sou um grande admirador deste método terapêutico, mas a minha mulher é uma psicóloga, PHD, e me diz que a Psicanálise é apenas um pequeno setor entre psicólogos e que o campo foi dominado pelos diversos tipos de Psicologia cognitiva. Isso é só um exemplo das várias escolas. Como na Medicina, você precisa de um clínico geral para te encaminhar para o especialista certo. E é um perigo se você não encontra o profissional certo para as suas necessidades. Mas eu diria que a Psicanálise na América do Norte tem sido assimilada. Já na Europa, tem sido compartimentada parte das terapias humanísticas.
“No diagnóstico do paciente, hoje em dia, se gasta menos tempo com ele na terapia e mais tempo fazendo o diagnóstico. Infelizmente, houve proliferação de terapias com medicação. O uso excessivo de medicamentos é preocupante”
- E o desenvolvimento futuro da Psicologia? - Nós temos que ouvir os economistas, os pensadores sociais e os políticos, e prestar mais atenção aos poderes do mundo corporativo, ao mecanismo das seguradoras, pois estamos sendo controlados cada vez mais. O psicólogo tem que se tornar consciente do mundo político e se tornar ativista. Um exemplo seria o aquecimento global, psicólogos poderiam, potencialmente, ajudar a educar o público sobre os perigos coletivos que enfrentamos. As ciências, os ecologistas, nos dizem que estamos caminhando para um colapso social e natural, psicólogos deveriam, pelo menos, se informar sobre o assunto e ajudar as pessoas a superarem o desespero
profundo, e nos ajudar, coletivamente, a nos mobilizar para usarmos nossos recursos, para encararmos um drama coletivo. À medida que acabam os recursos naturais, como nas zonas de guerra, é onde vemos o pior cenário do comportamento humano. Devíamos estudar a Síria, saber o que está errado, o que podemos fazer para atenuar os conflitos. Psicólogos também deveriam pesquisar sobre como promover a paz, reduzir os conflitos. Se pudéssemos, de alguma maneira, levar isso aos políticos, para os papéis de ação governamental, seria uma ajuda. Temos organizações não-governamentais, as Nações Unidas, instituições às quais poderíamos oferecer nossas habilidades. Mas a maioria de nós continuará a fazer trabalho individual ou terapias ou pesquisas, é aí que ficamos confortáveis. Então, encorajo mais ações coletivas e a prestar atenção à crise política que enfrentamos com a diminuição dos recursos naturais do planeta.
“Todo mundo sabe que o assédio existe e que precisa haver proteção contra bullying. Essa consciência de proteger o cidadão contra violência, acho que data dos últimos 20 anos, e está diretamente correlacionado com a entrada das mulheres na profissão”
- Especificamente, no que diz respeito à dinâmica da interação entre o individuo e a sociedade, como a Psicologia americana, do último século, que usualmente considera só os indivíduos como unidades básicas de análise, lida com as teorias de psicólogos como Vygotsky e Alexander Luria, que apontam para a interação linguística, ação sabidamente individual, como um elemento básico que molda a mente individual. Qual é a recepção de Vygotsky na sociedade americana? - Estou muito entusiasmado com a recepção de Vygotsky e Luria. Eles oferecem uma abordagem cultural para a Psicologia e, no entanto, focam, parcialmente, nas crianças. Como podemos
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encarar nossas crianças, dando suportes para que elas possam se elevar? Ensinem a elas uma língua (estrangeira), deem a elas oportunidades para viajar e deixem-nas irem mais alto em seu desenvolvimento. Isso é promissor, e é verdade que a Psicologia do século XX tem sido individualista. Até no campo Social estudamos atitudes de indivíduos no coletivo. Estudamos dinâmica de grupo e seu efeito no individuo, mas o foco da analise não é a sociedade, nem as classes dentro da sociedade, então, acho que a Psicologia tem que aprender a olhar a estrutura social, abrir suas portas para as teorias sociais e as teorias políticas.
- A Sociologia no século XX produziu alguma contribuição teórica para a Psicologia? - A Sociologia e a Psicologia dividem uma disciplina chamada Psicologia Social que fica no meio do caminho entre ambas. A Escola de Chicago de Sociologia (EUA), na virada do século XX teve impacto sobre conceitos como representação social, interação social e comportamento social. Estamos mais conscientes de grupos culturais e étnicos e a dinâmica destes grupos. Certamente, o ensino nas universidades inclui cultura racial e poder, temos estudos da diáspora africana, sobre a Ásia, sobre os nativos americanos, etnia está em todos os lugares. E o ponto de corte
“Comecei a ensinar Psicologia Política porque achei que era uma coisa que estava faltando entre nossos estudantes, e fiquei surpreso ao notar que existe uma inocência no comportamento político”
Comecei a ensinar Psicologia Política porque achei que era uma coisa que estava faltando entre nossos estudantes, e fiquei surpreso ao notar que existe uma inocência no comportamento político. Pessoas tendem a votar no candidato baseado no comprimento do seu cabelo ou na maneira como se veste ou, agora, temos a cor da pele como um fator, como no caso do nosso presidente (Barak Obama), tremendo racismo, direcionado inconscientemente a um indivíduo. Isso são bases muito primitivas para se tomar uma decisão política. Por outro lado, temos a internet, e aqueles que são alfabetizados neste meio sabem da política de saúde, da política estrangeira, sabem distinguir entre liberais e conservadores e podem formar decisões.
das disciplinas, em termos de teoria, nós temos estudos nas metodologias de êxodos. Tem um grande brasileiro, Paulo Freire, que foi um fundador nessa disciplina. Não sei como ele foi recebido no Brasil, mas sei que foi para outro país, onde é conhecido no campo da Educação por trazer novos métodos de ensino aos pobres. A concepção da sua teoria é que ampliando as bases da educação, promove-se a democracia. Quando educamos as classes baixas, você os ajuda a superar a pressão. Eu gostaria de pensar que aquela teoria também educa a elite. A elite aprende que tem poder vindo das massas e eles moderam sua posição de uma exploração econômica total para uma negociação entre as uniões e os patrões, conseguindo assim um acordo. Estou esperançoso que as teorias pós-coloniais e
feministas são novas versões de teorias sociais, produzindo um efeito transformador através de amplas áreas do chamado mundo desenvolvido, mas o desafio real é no mundo que ainda está em desenvolvimento. Qual o caminho que a China vai tomar com a teoria feminista? Será que eles serão tolerantes? Será que vai sair algo de bom da exploração da África pela China e pelos Estados Unidos? Ou será que continuaremos a ter escravidão indireta empobrecendo o terceiro mundo? Como a China vai lidar com esse problema? Não acho que sabemos a resposta. Estamos vendo uns sinais perigosos, mas é aí que psicólogos e a Ciência Social podem fazer seu melhor. Sair da torre de marfim e de alguma forma conectar com as agências, as instituições que estão trabalhando por justiça social. - Quais contribuições o estudo de história e filosofia da Psicologia podem gerar para a ciência, para a prática clínica, e para a sociedade? - Percebi na minha prática de ensino que se você ensina a teoria bem, isso pode se tornar uma ferramenta para viver a vida. Treino meus alunos para se tornarem independentes intelectualmente. Sejam homens ou mulheres, nós começamos a pensar no que é necessário para assumir uma identidade profissional. Isso é quase uma teoria porque meu objetivo é ensinar que você deve equilibrar uma identidade profissional com uma identidade pessoal. Minha disciplina no século XIX era chamada de ”Higiene Mental”, produzindo mentes limpas. Depois se tornou moderno, sob William James, e eles ensinaram “Caráter”. Eu não uso essas palavras, mas eu estou ensinando Caráter. Quem ensinou Caráter no século XIX? Filósofos morais, eu espero que eles tenham tido caráter. Como vivemos nossa vida, agora, isso é uma noção filosófica? Sócrates concordaria com isso? Como vivemos nossa vida é uma tarefa moral, sim. Praticar honestidade é importante. Então, quando eu falo que tem uma crise planetária, eu acho que devemos ser honestos, precisamos de mais discussões abertas. Alguns diriam que estamos numa crise moral sobre o aborto, então vamos discuti-la. Mas, talvez devêssemos ser tolerantes.
MAIS William Woodward (http://911blogger.com/topics/prof-william-woodward) Núcleo de História e Filosofia da Psicologia Wilhelm Wundt da UFJF (http://www.ufjf.br/nuhfip/)
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As múltiplas vozes das ruas Manifestantes tomam as ruas movidos por sensação geral de descrença nas instituições e na busca de novas formas de participação política
Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)
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Flávia Lopes Repórter
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inguém esperava. Num mundo turvado por aflição econômica, cinismo político, vazio cultural e desesperança pessoal, aquilo apenas aconteceu. Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos do desprezo universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos. Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança desvaneceu-se.” O trecho acima poderia muito bem ser uma análise dos movimentos que tomaram as ruas de todo o Brasil, em junho de 2013. Mas foi escrito pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, na abertura de seu livro “Redes de Indignação e Esperança” (Zahar, 2013), no qual faz uma ampla pesquisa acerca das causas e consequências dos protestos que ocorreram em todo o mundo, anteriores aos brasileiros, como a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, os Occupy nos Estados Unidos, entre outros. Movimentos que trazem em comum não apenas o desejo de mudança, mas uma sensação geral de descrença nas instituições e a busca de novas formas de participação política. As mobilizações no Brasil tiveram início a partir de atos contra o aumento das tarifas de transporte público em grandes cidades brasileiras em junho de 2013, quando grupos de ativistas organizaram-se para reivindicar redução dos preços e melhoria da qualidade dos serviços prestados à população. Mas os atos ganharam corpo e visibilidade nacional dias depois, sobretudo, após violenta repressão policial aos manifestantes, transformando-se em uma onda irrefreável de protestos por todo o país. Mais de um milhão de brasileiros foi às ruas. A maioria, jovens. No dia 20 de junho, 300 mil pessoas protestaram no Rio de Janeiro, 110 mil em São Paulo e, em Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, 15 mil, com uma pauta de reivindicações ampla e variada, demonstrando o grande grau de insatisfação da população em diversos outros temas que ultrapassavam a questão do transporte público. Atos que foram transmitidos ao vivo, por meio de câmeras, tweets e páginas do Facebook, protagonizados por milhões de atores.
A REDE COMO FERMENTO Um dos fatores que mais contribuíram para inflar os movimentos, na avaliação de especialistas, foram as redes sociais. “As pessoas ganharam uma nova consciência de seu poder autônomo e sua habilidade de pensar e se comunicar conjuntamente”, avaliou o filósofo francês e um dos principais estudiosos da cultura virtual contemporânea no mundo, Pierre Lévy, em entrevista exclusiva à “A3” ao analisar os protestos no país (ver entrevista na página 38).
“A conversa na internet é transversal e não mais se limita ao grupo que está promovendo. À medida que a mensagem passa pela timeline e toca as pessoas há uma identificação” (Henrique Antoun, professor da UFRJ) Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos autores do recém lançado “A Internet e a rua - Ciberativismo e mobilização nas redes sociais” (Sulina, 2013), Henrique Antoun, a conversação nas redes e a convocação da população por meio destas foi o que “fermentou” o movimento. “Hoje temos que falar dos grupos que se formam e dos processos de comunicação. Não foi só o MPL (Movimento Passe Livre) que fez o movimento. A conversa na internet é transversal e não mais se limita ao grupo que está promovendo. À medida que a mensagem passa pela timeline e toca as pessoas há uma identificação.”
A sociedade reunida em movimentos e ações coletivas, explica o professor, não precisa mais que “intermediários” falem por ela. Em sua avaliação, o que mais revoltou a população, além da repressão policial, foi o silêncio da mídia. “A internet gerou uma mídia livre impulsionada por milhões de blogueiros e pelas redes sociais, que se revelou um imenso espaço público no qual qualquer um tem voz e pode falar por si mesmo. Hoje há vídeos, fotos e mesmo transmissão ao vivo em todo lugar. Esse silêncio não é mais possível. Há uma vigilância distribuída, que não cabe mais apenas ao Estado e à mídia.” Além dessa liberdade, a internet trouxe celeridade aos processos de comunicação. Para o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), Fábio Malini – que divide a autoria do livro “A Internet e a rua (...)” com Antoun – a onda de protestos certamente aconteceria sem a internet e as redes, mas com “velocidade e intensidade diferentes”. “As redes permitiram que a informação circulasse com maior velocidade, muito em função da comoção e emoção produzida pelas ferramentas digitais através dos movimentos das ruas. Elas (redes) tiveram um papel predominante no esclarecimento, condução, articulação, mobilização e construção de narrativas, com uma multiplicidade de intermediários.” A multiplicação de novos mediadores com papel predominante é outro ponto destacado por Malini. “Os diferentes ‘ninjas’ (em uma referência ao grupo Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação, que ganhou evidência durante as manifestações) passaram a fazer streaming (transmissões ao vivo), gravação de vídeos, fotografias. Houve uma circularidade dessas informações em alta velocidade, o que provocou um nível de empoderamento muito grande dos grupos em um ciclo que se autoalimenta.” Para o pesquisador e professor da Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal de Juiz de Fora, Wedencley Alves, “esses movimentos de inconformismo da juventude chegaram porque tiveram forte encaminhamen-
Fotos: Agência Brasil
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Foto: Valter Campanato (Agência Brasil)
to numa cultura de redes, numa cultura “viral” em que informações, ou mais precisamente discursos, são capazes de produzir identificações em tempo muito acelerado.” Ele chama a atenção, no entanto, para as particularidades do caso brasileiro. “Lógico que aqui as questões são outras, os contextos são outros. Mas chegariam da mesma forma como ocorreram em países muito mais bem resolvidos do ponto de vista socioeconômico e político como na Alemanha e na Suécia.”
“Elas (redes) tiveram um papel predominante no esclarecimento, condução, articulação, mobilização e construção de narrativas, com uma multiplicidade de intermediários” (Fábio Malini, professor da Ufes)
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No entanto, segundo o docente, a força que os protestos assumiram no Brasil foi muito mais decorrente das cenas de violência policial, principalmente, contra jovens da classe média. “Como comparação podemos tomar os protestos do MPL, a partir de quando se difundiram as imagens das intervenções violentas da PM paulista, e as passeatas imediatamente posteriores, que chegaram a levar centenas de milhares de pessoas às ruas. Estas cenas tiveram um efeito de combustível em pólvora, possivelmente, porque vivemos numa cultura em que isso é mais possível do que antes.” Conforme Alves, estes jovens que vão às ruas são pessoas que se identificam com o discurso de inconformismo, independentemente do contexto de cada país, que lhes chegam via redes e mídias tradicionais. “Curiosamente, estes discursos assumem formas bem distintas daqueles de outros tempos e isso que é um pouco espantoso e traz desafios a quem reflete sobre eles. São falas instantâneas, de características linguísticas muito típicas de uma cultura de mensagens curtas e imediatas, e sem muita reflexividade, nem história. Não podemos esquecer que, em certo momento, tínhamos verdadeiros tweets, em que cada jovem ou grupo protestava contra alguma coisa que lhe dizia respeito, ou mesmo que achava importante dizer, mesmo que fosse
somente para participar das passeatas.” Para o professor, a impressão é de que havia naqueles “tweets” urbanos um pouco do anseio de ser ouvido. “De quebrar o silêncio, e dizer qualquer coisa, mesmo sem saber o quê. Até porque é possível que o desejo desta geração esteja no verbo do que no objeto.”
“MOVIMENTO NÃO É FILHO DA INTERNET” O coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCSO) da UFJF, Dmitri Cerboncini Fernandes, não é tão otimista ao avaliar o papel da internet e das redes sociais nos protestos. Para ele, as redes nada mais são do que a forma de se entrar em comunicação na atualidade. “Há uma fetichização, em minha opinião, sobre o papel das redes sociais. É como se falássemos que o telefone ou qualquer outra invenção de época tivesse sido o desencadeador de guerras, revoluções, mudanças. Há uma dinâmica social que sempre se valerá dos meios disponíveis, e, neste caso, os meios disponíveis encontrados, que foram formatados e que, por sua vez, formataram as manifestações mundiais, foram as redes sociais.”
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Fabio Rodrigues Pozzebom (Agência Brasil)
“Estes movimentos de inconformismo da juventude chegaram, porque tiveram forte encaminhamento numa cultura de redes, numa cultura “viral” em que informações, ou mais precisamente discursos, são capazes de produzir identificações em tempo muito acelerado” (Wedencley Alves, professor da UFJF) O professor diz ainda não acreditar em um “projeto emancipador” que provenha de tais meios. “Como qualquer meio, ele serve ao que for, tanto ao poder constituído quanto ao contrapoder. É preciso sempre saber virar o feitiço contra o feiticeiro, e este é mais um caso em que parece que isso, ao menos momentaneamente, aconteceu.” O cientista político e professor da Facom, Paulo Roberto Figueira Leal, também é cauteloso ao atribuir às redes sociais o sucesso dos movimentos. “É um ambiente que potencializa e, é evidente o protagonismo da juventude nele. Mas os movimentos não são ‘filhos’ da experiência da internet. É uma plataforma que tem contradições e as verdadeiras questões não são determinadas por ela.” Leal também aponta um “determinismo tecnológico” e uma supervalorização das redes ao
avaliar os processos ocorridos no país. “O uso social que as pessoas dão a essas ferramentas é que são importantes. É um equívoco imaginar que o movimento eclodiu porque há redes. Grandes fenômenos ocorreram anteriormente sem a existência das redes sociais.” O docente, no entanto, reconhece o papel dessas ferramentas na articulação, sem que passe por alguma instituição. “Talvez se o movimento fosse de um grupo específico não tivéssemos tantas e tão distintas pautas. Talvez isso explicite o tipo de mobilização. Vemos outro tipo de relação e de manifestação. Trata-se de outro arranjo, com menos unidade temática. Mas o que não as tornam menos legítimas.”
IGUAIS, MAS DIFERENTES Apesar das semelhanças quanto aos atos, os movimentos, na avaliação do cientista político Paulo Roberto Leal, são bastante distintos dos europeus e americanos, já que esses países traziam um componente de instabilidade econômica e política. “No Brasil, apesar de vivenciarmos um crescimento mais baixo, essa situação não se aplica. Não tivemos um dado novo de acentuada piora econômica ou política. Estamos em um contexto de experiência democrática em crescimento e essa é a causa mais provável das manifestações. As pessoas buscam aprimorar essa experiência. Não vivenciamos uma crise gravíssima, mas vivemos em uma sociedade bem desigual. Não há uma crise de democracia, mas as pessoas esperam que ela avance mais.” Ainda segundo ele, um dos traços mais evidenciados nos processos é o anti-institucional. “Há uma recusa à política institucional e isso é resultado de um novo contexto com o qual a juventude tem se relacionado. Um movimento
que passa a não ser identificado por partidos, sindicatos, associações.” O professor Fernandes faz coro e aponta fatores externos e internos que explicam os protestos mundiais. “Eles devem ser comparados, pesados e relacionados dentro da especificidade de cada país, mas sem se perder a noção de totalidade do sistema do capital.” Para ele, diferentemente dos Estados Unidos e dos países europeus, que entraram de cabeça em mais uma das crises cíclicas do capitalismo, o Brasil ainda tinha alguma “lenha para queimar”. “Houve um nítido aumento do poder de consumo da população brasileira na última década, o que se reverteu, por outro lado, em mais demanda por serviços estatais, que aqui sempre foram péssimos e muito caros. Se a economia andava mais ou menos bem, os serviços estatais básicos – saúde, transporte, educação – quase todos ineficientes e corrompidos por uma lógica liberal, de que ‘quem tem paga, quem não tem que se vire’ iam de mal a pior, o que desencadeou os protestos de junho por aqui.”
“Há uma fetichização, em minha opinião, sobre o papel das redes sociais. É como se falássemos que o telefone ou qualquer outra invenção de época tivesse sido o desencadeador de guerras, revoluções, mudanças” (Dmitri Cerboncini Fernandes, professor da UFJF)
O futuro do movimento ainda é incerto, bem como as mudanças reclamadas pelos manifestantes. Apesar do distanciamento em relação ao auge dos protestos, as questões ainda não estão claras para a maioria dos pesquisadores. Para Wedencley Alves, é preciso entender que a política por si não é culpada nem inocente dos males de cada país. “Ela reflete o jogo de forças na sociedade. Se direitos trabalhistas são ameaçados é porque o Congresso está vocalizando grupos sociais que se beneficiariam com estas ameaças. Portanto, a luta se dá antes, na sociedade.”
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(Paulo Roberto Figueira Leal, professor da UFJF) Já Fernandes se coloca de forma mais pessimista. “Todo esse processo trouxe para as ruas uma grande parte da população completamente despolitizada, os “consumidores” das notícias desses jornais e redes de televisão e de rádio que, se por um lado, tinham a noção de que as coisas no serviço público iam de mal a pior, e que a corrupção é regra no mundo das grandes corporações e da política, e não exceção, por outro não tinham uma agenda política clara, consistente.” Em sua avaliação, os políticos, percebendo que as coisas voltavam ao “normal”, logo se acomodaram e tornaram às suas “negociatas”. “Como uma herança benéfica, no entanto, valeu pelo ímpeto de politização de umas poucas pessoas, que aprenderam que política é algo que as toca diretamente, e não uma coisa distante e imutável. Mas de ganhos reais, talvez tenham sido os vinte centavos mesmo.” Para o professor da Ufes, Fábio Malini, no entanto, a principal tendência é de que os movimentos funcionem como uma espécie de eletrocardiograma, com pontos de pressão alta e baixa ao se medir os acontecimentos do dia a dia. “Acredito que irão ressurgir como picos de rede, uma vez que já existe um ambiente estruturado e propício a novos movimentos. Muitas questões irão se acumulando para depois eclodir um novo pico. As respostas não são tão rápidas e as contradições permanecem. Os problemas estão em nossas timelines diariamente.” Que eles não fiquem adormecidos por tanto tempo e que as múltiplas vozes das ruas não calem seus gritos.
“O Brasil está no meio de uma transição cultural” A reposta do filósofo Pierre Lévy ao convite para a entrevista para a “A3” é quase instantânea, via Twitter. Mas tem uma condição: quatro perguntas e pelo próprio Twitter. Ou seja, difícil arrancar uma análise mais ampla que o conteúdo ajustável ao limite de 140 caracteres da rede social. Mas nem por isso ela é superficial. Autor de importantes obras como “As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática” (1990); “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço” (1994); “Cibercultura” (1997); “O que é o virtual?” (1998); entre outros, é um dos principais pesquisadores dos efeitos que a internet e as redes sociais ocasionam em diversos setores da sociedade. Segundo ele, que atualmente mora no Canadá e leciona na Universidade de Ottawa, há hoje um desgaste do padrão baseado em um centro distribuidor de conteúdos. A principal aposta passa a ser a de um modelo em que todos têm a possibilidade de transmitir informações (modelo todos-todos). “As pessoas ganharam uma nova consciência de seu poder autônomo e sua habilidade de pensar e se comunicar conjuntamente.”
Foto: http://pierrelevyblog.com/
“Os movimentos não são ‘filhos’ da experiência da internet. É uma plataforma que tem contradições e as verdadeiras questões não são determinadas por ela”
- Pesquisas de opinião pública revelaram que todas as instituições foram afetadas pelas manifestações. É sinal de que a democracia representativa está superada? - A democracia representativa não está superada, mas precisa ser ampliada pela inteligência coletiva no meio digital. - As redes sociais deram voz à população. Essa forma de manifestação está consolidada? - As pessoas ganharam uma nova consciência de seu poder autônomo e sua habilidade de pensar e se comunicar conjuntamente. - Passados três meses, é possível identificar o que levou a esse movimento e será possível prever novos protestos?
- As pessoas querem o desenvolvimento humano: saúde, educação, infraestrutura, transparência... As pessoas querem também um pouco de respeito (do Governo) por sua capacidade de pensar por si mesmas. - Menos de dois meses após a eclosão dos protestos, um deputado condenado pela Suprema Corte brasileira foi absolvido pelo Parlamento. Isso é sinal de que voltamos ao período pré-manifestações? - Soa como um “salto para trás”. Mas maus hábitos não podem ser apagados da noite para o dia. Podemos dizer que o Brasil está no meio de uma transição cultural.
MAIS “Redes de indignação e esperança”, Manuel Castells (Zahar, 2013) “O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária”, André Lemos e Pierre Lévy (Paulus, 2010) “A Internet e a rua – Ciberativismo e mobilização nas redes sociais”, Henrique Antoun e Fábio Malini (Sulina, 2013) Versão para download: ainternetearua.com.br/download/a-internet-e-a-rua-online-pdf Leia a íntegra da entrevista com os professores da UFJF, Dmitri Fernandes e Wedencley Alves: http://bit.ly/RevistaA3_EntrevistasManifestacoes Assista ao professor do Departamento de Ciências Sociais, Raul Magalhães, no programa Recortes Possíveis bit.ly/RevistaA3_RecortesPossiveis_RaulMagalhaes
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Fotos: Fernando Frazão José Cruz Valter Campagnato Fábio Rodrigues Pozzebom Marcelo Camargo Tomaz Silva (Agência Brasil)
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Politicom: comunicação, democracia e estratégias políticas
Roberto Gondo Macedo*
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Sociedade Brasileira dos Pesquisadores e Profissionais de Comunicação e Marketing Político (Politicom) expressa seu respeito por Minas Gerais e em especial por Juiz de Fora, onde foi realizado, em outubro de 2013, o XII Congresso Brasileiro de Comunicação e Marketing Político, organizado por docentes da Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade Federa de Juiz de Fora (UFJF). Em um período político marcado por positiva expressão nacional, com inúmeros protestos nos últimos meses, estar em um Estado de expressividade histórica na República nacional e com evolução política gloriosa foi um feliz momento para fomentar debates sobre o período que o país viveu desde a redemocratização nos anos 80. O tema do Congresso desse ano, uma análise da consolidação democrática brasileira e perspectivas no cenário da América Latina, expressa com precisão o sentimento da diretoria da entidade em promover debates contributivos para a tríade: comunicação, democracia e desenvolvimento. O Colóquio Binacional Brasil-México de Comunicação Política, que antecedeu o Congresso Brasileiro, também expressou o amadurecimento da entidade para a promoção contínua de eventos em caráter internacional. O Brasil apresenta uma representativa mudança comportamental, no que tange desenvolver o senso cidadão e participativo nas decisões políticas em todas as esferas do poder. Usar o tempo científico para traçar panorama e diagnóstico de pontos positivos e negativos do sistema político, sob os prismas eleitoral e social é estratégico e necessário para efetiva contribuição na maturidade e consolidação democrática. Vários pontos cruciais estão sendo discutidos nos últimos meses: reforma política, posicionamento do país frente aos desafios econômicos internacionais e um novo formato de gerenciamento público, com mais transparência e participação popular. Para que essa participação da população
seja contínua, é necessário que o desejo de mudança se transforme em hábito saudável e sustentável para a mudança real e melhoria do sistema político, visto que nada se resolverá de maneira imediatista, unilateral e em curto espaço de tempo. Ser cidadão é sentir-se envolvido pelo sentimento democrático de participação, iniciando pelo contexto regional e compreendendo que da escala local, os impactos ecoam para esferas maiores do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário. A Politicom, desde sua concepção no cenário acadêmico, compreendeu o seu papel na promoção de espaços para debates democráticos, que propiciassem aliar pesquisas da área comunicacional pública e política, como áreas correlatas que versam acerca do eixo sociedade, democracia e cidadania. Outro destaque é a interação com profissionais da área, que atuam como consultores políticos e podem promover troca de conhecimentos teóricos com empíricos. A parceria com a Associação Brasileira dos Consultores Políticos (Abcop) é um exemplo dessa ação conjunta em prol do fortalecimento do debate. Desde sua criação em 2001, por incentivo da Cátedra Unesco de Comunicação para o desenvolvimento regional, a Politicom alinha cada vez mais seu discurso e práticas e investe em atividades como colóquios binacionais em contexto Ibero-americano, que fortalecem a regionalidade, e premiações para alunos de graduação no Festival Politicom. Todos estão convidados a participar dos nossos grupos de pesquisa, submetendo artigos ou contribuindo nos debates com demais pesquisadores, comparecendo nas mesas com renomados da área e sendo mais um agente multiplicador dessa temática fundamental para a continuidade sustentável do sistema político brasileiro.
* Pós-doutor em Desenvolvimento e doutor em Comunicação Social pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP); professor do Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie; presidente da Politicom; diretor do Instituto Gestão do Conhecimento (IGC)
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Construção civil sustentável UFJF cria Plano de Gerenciamento de Resíduos que prevê destinação correta dos restos de obras gerados em Juiz de Fora e que chegam a mil toneladas por dia
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s cidades brasileiras têm até agosto de 2014 para planejar e executar os planos que constam na Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). As exigências estão previstas na Lei Federal nº 12.305/10 e os municípios que não cumpri-las podem ficar impedidos de receber recursos da União direcionados ao setor. A legislação estabelece diretrizes para a efetiva redução dos impactos ambientais gerados pelos resíduos domiciliares, do comércio, da saúde e também os provenientes de limpeza urbana e da construção civil, entre outros. O prazo de menos de um ano parece pequeno para a implementação de todas as normas desta Política Nacional. Contudo, Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, está
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à frente de muitos municípios porque já tem formatado um dos documentos mais complexos desta Lei: o Plano Integrado de Gerenciamento de Resíduos de Construção Civil (PIGRCC), elaborado em 2010 pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a pedido e em parceria com a Prefeitura. “Somente agora a maioria das cidades brasileiras está formulando seus planos de Gerenciamento Integrado de Resíduos da Construção Civil. Se levarmos em consideração que cerca de 50% dos resíduos sólidos gerados nos municípios são provenientes desse setor, Juiz de Fora está com meio caminho andado por já ter elaborado seu plano”, destaca o coordenador do trabalho e professor da Faculdade de Engenharia da
Zilvan Martins Repórter Márcio Brigatto Fotos
Pedro Kopschitz (pesquisador e professor da UFJF): “O cenário ideal seria a geração mínima de resíduos. Na Europa e nos Estados Unidos já se constrói há tempos com pré-fabricados, o que minimiza em mais de 50% a geração de resíduos”
UFJF, Pedro Kopschitz. O estudo contou com apoio técnico de profissionais da Prefeitura, sob a coordenação do engenheiro Heber de Souza Lima. O professor da Faculdade de Engenharia, Mario Nalon de Queiroz também fez parte da equipe técnica que elaborou o documento. O Plano define normas de triagem, descarte, manejo e reciclagem adequados de restos da construção civil, tanto por parte dos grandes geradores, quanto para os pequenos. Para cumprir essas metas, constatou-se a necessidade de construir pontos para recebimento de pequenas quantidades de resíduos e uma usina de reciclagem para onde as grandes construtoras enviariam seu entulho. Ações de conscientização da população também
PES QUISA
constam no documento final, além do projeto de uma lei municipal. Essa legislação é necessária para fiscalizar o que determina a Resolução nº 307 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que estabelece diretrizes para a gestão dos resíduos da construção civil. O estudo para a formatação do Plano começou com um diagnóstico que estimou a quantidade de resíduos da construção civil produzido na cidade. Segundo estimativas da UFJF e da Prefeitura, Juiz de fora produz entre 700 a mil toneladas/dia desse tipo de resíduo. O número significa, em volume, de 150 a 220 caçambas diariamente. O diagnóstico levantou, ainda, de que forma é feito hoje o descarte dos resíduos da construção civil no município. O estudo apontou que esse tipo de material encontrase espalhado em diversos pontos, descartado irregularmente em terrenos baldios, córregos e encostas. No caso dos grandes geradores, como as construtoras, o descarte hoje é feito de duas maneiras: no Centro de Tratamento de Resíduos (CTR), localizado próximo ao bairro Dias Tavares, ou em área indicada pela administração municipal. Devido à distância de cerca de 20 quilômetros do Centro da cidade até o CTR, os empresários do setor de transporte de entulho alegam ser inviável economicamente realizar o descarte no local. Assim, as cerca de 20 empresas do ramo fazem o despejo em outra área liberada pela Prefeitura, no bairro Cidade do Sol, em uma pedreira desativada.
ECOPONTOS PARA PEQUENOS GERADORES O modelo de gerenciamento de resíduos da construção civil adotado em algumas cidades,
como na capital mineira Belo Horizonte, funciona dando-se tratamento diferenciado aos denominados grandes e pequenos volumes. O Plano de Juiz de Fora segue esse modelo. E para atender aos pequenos produtores de resíduos do município será necessário construir 15 Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes de Resíduos (URPVs) ou ecopontos. A busca pelos terrenos para alocar essas unidades foi uma tarefa extensa do plano, pelo fato de a cidade ser territorialmente grande e por não existirem muitas áreas públicas disponíveis. Segundo Kopschitz, na hora de definir esses locais, a maior preocupação foi cobrir todas as regiões de Juiz de Fora potencialmente geradoras de resíduos, privilegiando, principalmente, as localidades com o maior número de pequenos geradores. “As URPVs serão receptoras dos pequenos volumes (até 1 metro cúbico) que, posteriormente, serão transportados para a usina. Além do ganho ambiental, as URPVs trazem outros benefícios. A Prefeitura, por exemplo, deixará de gastar recursos financeiros com a remoção diária de entulho descartado irregularmente. Quando elaboramos o Plano constatamos que eram gastos cerca de R$ 100 mil por mês para a remoção. A quantia seria suficiente para a operação de todos os 15 ecopontos. Ou seja, recursos públicos sendo aplicados dentro da lógica sustentável.”
GANHOS COM AGREGADOS RECICLADOS Para o recebimento dos resíduos gerados pelas grandes construtoras, o plano municipal propõe a construção de uma usina de reciclagem que teria capacidade para atender até 40 toneladas
No desenho, a representação de como seriam as Unidades de Recebimento de Pequenos Volumes de Resíduos (URPVs), receptoras de pequenos volumes (até 1 metro cúbico) da construção civil
Ilustração: Joviana Marques
por hora de resíduo, o que equivale a 320 toneladas/dia. A Prefeitura ainda não definiu o local onde ela será construída, mas já existem duas possibilidades: no terreno onde funciona hoje a usina de triagem de lixo doméstico reciclado, na Zona Norte, ou no antigo aterro sanitário, no bairro Salvaterra, próximo a uma das entradas da cidade. A Usina receberia apenas os resíduos Classe A, aqueles que podem ser reciclados e transformados em agregados como areia e brita. O Plano estabelece que a Prefeitura deve priorizar a aquisição desses materiais reciclados, tecnicamente já utilizados e aprovados em aplicações como base de estrada, meio-fio e tijolos. “A viabilidade de implantação da usina é confirmada não somente pelo apelo ecológico, mas também por proporcionar resultados financeiros positivos. Além do poder público e as empresas privadas reduzirem seus custos com aquisição de agregados mais baratos que os do mercado, o município aumenta sua arrecadação tributária e gera novos empregos diretos e indiretos com a implantação da usina”, destaca o coordenador do trabalho. No momento, a atual administração municipal busca recursos junto aos órgãos competentes para viabilizar o empreendimento.
CONSCIENTIZAR E LEGISLAR Pedro Kopschitz ressalta que o PIGRCC foi elaborado de forma a abranger e envolver toda a sociedade e a cadeia produtiva, desde a compra de materiais e técnicas de aplicação em obras, até o transporte e o descarte adequado dos resíduos e a sua reciclagem, quando possível. “O poder público não pode interferir em todo o ciclo e nem é esse o seu papel. Mas cabe-lhe atuar montando uma estrutura para o Plano, na conscientização e na fiscalização, estabelecendo regras e disciplinando os geradores. Para isso, propusemos a criação de uma lei municipal que exigiria das construtoras, por exemplo, um Projeto de Gerenciamento de Resíduos para cada obra com tamanho acima de 500 metros quadrados ou com previsão de geração de volume total de resíduos acima de 60 metros cúbicos - o equivalente a 15 caçambas de retirada de entulho -.” Campanhas de conscientização também estão previstas no Plano como prêmios para as empresas que cumpram exemplarmente as regras municipais vigentes, selo de qualidade ambiental, com metas estabelecidas, e até A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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P E SQUISA
Moldagem e produção de blocos de alvenaria feitos com resíduos de construção civil Classe A, que são aqueles que podem ser reciclados
a criação de um “brechó da construção”, com comércio de peças, equipamentos e componentes de obras em condições de uso, como portas, cerâmicas, pisos, grades e aparelhos sanitários.
BUSCA PELO MODELO IDEAL Para Kopschitz, o plano proposto pela UFJF à cidade é uma solução de socorro para uma realidade que está em processo de mudança. “O cenário ideal seria a geração mínima de resíduos e a tecnologia está evoluindo nessa direção. Em alguns países da Europa e nos Estados Unidos
já se constrói há tempos com pré-fabricados, o que minimiza em mais de 50% a geração de resíduos.” Indagado por que o Brasil ainda produz tanto resíduo de construção civil, o professor dá algumas explicações. Primeiro porque somos um país em crescimento, com um déficit habitacional de cerca de 5,5 milhões de moradias, segundo o último censo do IBGE. Existe a necessidade permanente de construção de habitações, aeroportos, escolas, hospitais e obras de infraestrutura, sendo o setor caracterizado por baixa produtividade e pouco uso de tecnologias modernas e limpas. Outro fator está na nossa base produtiva que é ainda a mão de obra, executando serviços praticamente artesanais.
“O Brasil sempre foi rico em bons serventes, pedreiros e carpinteiros. Era mais barato fazer todo o serviço no canteiro de obras. Contudo, a mão de obra qualificada está escassa hoje. As empresas não suportarão esse gargalo por muito tempo. A solução, que já acontece apenas em grandes obras, é investir em equipamentos e tecnologias mais eficientes em todos os sentidos. Finalmente, há que se evoluir para projetos mais detalhados e que pensem em todo o ciclo de vida da obra, da concepção ao seu fim, passando pela construção, uso e manutenção. Nem todos os recursos naturais são renováveis”, finaliza o engenheiro.
MAIS Pedro Kopschitz Xavier Bastos Doutor em Engenharia Civil Professor do Departamento de Construção Civil Faculdade de Engenharia - UFJF http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4785520J7
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Mario Nalon de Queiroz Mestre em Engenharia Civil Professor do Departamento de Construção Civil Faculdade de Engenharia - UFJF http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4293291E6 Para acessar o PIGRCC: http://www.ufjf.br/pares/projetos-de-extensao/
MUNDO DIGITA L
A neutralidade da rede ganhou as ruas ?
Ilustração: Anonymous
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Cicero Inacio da Silva*
D
epois de passado o turbilhão que abalou as bases da estrutura política e social brasileira no mês de junho de 2013, talvez tenha chegado o momento de iniciar um debate mais longo e moderado sobre o que as manifestações ocorridas no Brasil deixarão como legado. Não foi a primeira vez que um movimento em escala nacional foi ativado por meio de determinadas ferramentas midiáticas que amplificaram as vontades da nação brasileira e acabaram desempenhando um papel central em decisões políticas. A mais recente delas foi o impedimento do ex-presidente Fernando Collor de Mello que, instado pelas manifestações dos denominados “caras pintadas”, que foram às ruas contra o seu governo, acabou renunciado e saindo, ao menos naquele momento, da cena política nacional. Um dos grandes atores daquele movimento foi, obviamente, a televisão, que cobria em tempo real as manifestações que aconteciam em praça pública pelo país. Além disso, havia ampla cobertura da mídia impressa e do rádio. Os manifestos recentes, que culminaram em milhares de pessoas saindo às ruas para protestar contra algo, a princípio “não específico”, têm uma diferença básica. Pela primeira vez, eles foram organizados por meio de ferramentas até então “estranhas” e, porque não dizer, ignoradas pelos representantes das classes políticas do Brasil. A maioria dos manifestantes do “junho de 2013” saíram às ruas para inicialmente protestar contra o aumento das tarifas de ônibus na cidade de São Paulo.
Contudo, convém chamar a atenção que esse “chamamento” à luta foi basicamente articulado nas redes sociais disponíveis no Brasil. Ou seja, se em várias cidades ao redor do globo diversas manifestações foram articuladas, a sua quase totalidade foi organizada por meio das redes sociais que, de certa maneira, serviram como “meio” para que a grande massa de descontentes com os tópicos tratados pelos movimentos também pudesse se manifestar. Todavia, um fator “diferencial” no caso das manifestações é que os processos que as iniciaram não foram veiculados inicialmente pela mídia tradicional, como a TV, o rádio e a mídia impressa. Eles começaram a existir em suportes e ferramentas que permitem que uma determinada pessoa publique um chamamento e o compartilhe com sua rede de “amigos” ou “colegas” que também fazem parte dessa “comunidade”. Nesse sentido, o que precisa ser comemorado é que a “neutralidade da rede” venceu, pois sabemos até agora que os manifestantes foram às ruas identificados com as causas que geraram alguma forma de descontentamento que os levou a protestar. Foram os usuários das redes que manifestaram nas ruas sua desilusão com a desfaçatez na política, com o medo da volta da inflação e contra “o que está aí”. No entanto, não custa alertar que essa “neutralidade” tem um preço. E será que a classe política e econômica, depois do “junho de 2013”, vai querer pagar por ele?
*Coordenador do grupo de Software Studies no Brasil
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DI SSERTAÇÕES
A outra perspectiva do direito social
Diretoria da Sociedade Alemã de Beneficência, em 1905, uma das três principais etnias de imigrantes da região, com maior número de associados e mais antiga. As associações supriam a falta de políticas de seguridade públicas, e continuaram atuando mesmo depois de o Governo de Getúlio Vargas instituir legalmente alguns direitos sociais (Foto: Arquivo do Instituto Teuto-Brasileiro)
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DIS S ERTAÇÕES
Estudo retrata como associações populares de Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, forjavam direitos sociais inexistentes oficialmente e influenciaram futuras iniciativas de seguridade adotadas pelo governo Bárbara Duque Repórter
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raçar o perfil das associações de apoio mútuo amplo e pluriclassista e suas possíveis influências na sociedade foram os objetivos iniciais da dissertação Direitos Sociais em perspectiva: seguridade, sociabilidade e identidade nas mutuais de imigrantes em Juiz de Fora (1872-1930), na Zona da Mata Mineira”. O trabalho, defendido em 2013 no programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pelo pesquisador Antonio Gasparetto Júnior, apontou a importância dessas organizações no sentido de garantir direitos sociais aos cidadãos – neste caso, especificamente de imigrantes –, regalias que ainda não eram instituídas legitimamente pelas entidades governamentais. O objetivo das associações era manter unidos e seguros os grupos de imigrantes que se instalaram na cidade. Segundo Gasparetto, este é o primeiro trabalho acadêmico extenso sobre associações mutuais, que enfoca os grupos de imigrantes de Minas Gerais. Outros estudos optaram ou por uma abordagem ampla, generalista, sobre o assunto, ou por apontamentos muito específicos. Neste trabalho de investigação, que teve inicio em 2008, durante a graduação, quando o autor fazia parte do Programa de Iniciação Científica da UFJF, a proposta foi analisar o cotidiano dessas sociedades, fazendo correlações entre elas, detectando pontos afins, e diversos, além da influência que exerceram nas futuras normas de assistência social implantada pelo Estado. Foram identificadas as estratégias usadas por essas associações para superar as adversidades vividas naquele momento. Tais organizações eram alternativas de auxílio para os associados, para suprir a ausência de políticas públicas, que dessem seguridade aos trabalhadores, principalmente, imigrantes. Para a pesquisadora da UFJF e orientadora da dissertação, Cláudia Viscardi, Gasparetto realizou um trabalho bastante maduro, com um volume de pesquisa além do habitual e com um texto de excelente qualida-
de. Com destaque para o ineditismo das fontes empíricas. “Pelo fato de que o mutualismo imigrante sempre foi marginalmente abordado, este estudo teve a importância de trazer à luz essas organizações associativas entre os estrangeiros no Brasil. Fato este que mostrou como foram fundamentais não só pela assistência pública, mas também por serem espaços de criação, recriação e consolidação de identidades de grupos.” Um ponto importante salientado no trabalho foi que, apesar de as associações suprirem de certa forma a falta de políticas de seguridade públicas, elas continuaram atuando, mesmo depois de o Governo de Getúlio Vargas, iniciado em 1930, instituir legalmente alguns direitos sociais. Somente a partir da década de 40 as associações começaram a se fragilizar. Essas organizações de socorro mútuo eram comuns em diversas esferas da sociedade, prioritariamente no contexto urbano. Conforme palavras de João Massena, fonte do trabalho que foi contemporâneo das associações, “esse movimento foi fruto de um desequilíbrio ou de uma fraqueza social”. Segundo destacado, as associações de imigrantes foram mais duradouras tendo em vista que os indivíduos comungavam da mesma origem cultural em terras distantes das de sua proveniência. O reforço das identidades étnicas precedeu, inclusive, a proteção social, focadas em seguridade, lazer e instrução. Além dos planos como o de auxílio médico, aposentadoria e falecimento, preocupavam-se com a instrução e a formação moral. Cada sócio contribuía com mensalidades e usufruía dos recursos necessários nos momentos de carência. Dentre as atividades instrutivas, mantinham escolas, atividades culturais, contribuindo com o desenvolvimento moral e intelectual e uma formação básica para entrar no mercado de trabalho. Promoviam também atividades recreativas para os associados, e criaram robustas bibliotecas.
ITALIANOS, ALEMÃES E PORTUGUESES A Sociedade Alemã de Beneficência (1872), a Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro Umberto I (1887) e a Sociedade Auxiliadora Portuguesa (1891) foram os objetos do estudo, pois representavam as três principais etnias de imigrantes da região, com maior número de associados e mais longevas. “Arquivos importantes, até então inexplorados, serviram de base para um trabalho detalhado e inédito. A Casa D’Itália – prédio hoje tombado, localizado no Centro de Juiz de Fora –, por exemplo, possui um acervo vastíssimo ao qual quase ninguém havia tido acesso até então. Para completar esse mosaico de informações, foi necessário um trabalho de garimpo, recorrendo às notícias de jornais da época, visto que as fontes originais nem sempre respondiam a todas as dúvidas”, afirma Gasparetto. O resultado do trabalho salienta ainda a importância da influência dos imigrantes na cultura de Juiz de Fora. Ressalta as lastimáveis perdas, inclusive patrimonial, que esses povos tiveram durante os anos seguintes. Os primeiros imigrantes chegaram a Juiz de Fora na segunda metade do século XIX para a construção da estrada União Indústria, que ligava a cidade ao Rio de Janeiro. O trabalho descrito procurou paralelamente fazer também um resgate dessas memórias. Seus líderes, por exemplo, eram os mais letrados, e com mais posses, podendo, dessa forma, dedicar, sem precisar de remuneração, a esse tipo de atividade, além de ter maiores influências na sociedade. Havia muito investimento humano e financeiro para manter as mutuais. A orientadora destaca que, pelos levantamentos, o saber técnico foi fundamental. “Era necessário A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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DI SSERTAÇÕES
Sede da Sociedade Italiana de Beneficência e Mútuo Socorro Umberto I. A entidade, criada em 1887, e que influenciou a cultura de Juiz de Fora, tinha como líderes os homens mais letrados e com mais posses, o que os possibilitava se dedicar sem precisar de remuneração (Foto: reprodução da “Revista Em Voga”- 2001)
tempo para dedicar à gestão, visto que quase todos os cargos eram voluntários. Os líderes empenhavam recursos para evitar as falências. Só assim elas proliferaram.”
O PROCESSO Gasparetto iniciou a pesquisa na graduação, quando recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas (Fapemig) e o prêmio de
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melhor trabalho em Ciências Humanas do ano de 2010, no Seminário de Iniciação Científica organizado pela UFJF. No mesmo ano entrou para o programa de pós-graduação em História e, para dar continuidade às investigações, contou com suporte da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Iniciando a contribuição científica do trabalho, foi publicado, além de artigos em revistas especializadas e participações em congressos, um capítulo do livro “Às margens do Caminho Novo”,
com parcerias, que mostra a cidade por meio de grupos excluídos da sociedade, escrevendo sobre os imigrantes e suas associações. O livro e um CD paradidático também desenvolvido por Gasparetto, sobre a história de Juiz de Fora, foram lançados no final de 2011. A dissertação foi contemplada pela Lei Murilo Mendes (da Prefeitura de Juiz de Fora) e será publicada em formato de livro em março de 2014.
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E XTEN SÃO
Passo a passo olímpico
Raul Mourão Repórter Márcio Brigatto Fotos
Desenvolvido no Complexo Esportivo da UFJF, projetos possibilitam que cem crianças e adolescentes pratiquem esportes, principalmente atletismo, e aprendam a incorporar valores como disciplina e trabalho em equipe
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uem chegar à Faculdade de Educação Física e Desportos (Faefid) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) pode se surpreender com a movimentação de crianças e adolescentes na pista de atletismo. Mais de cem jovens atletas, entre 7 e 18 anos, de 16 escolas de Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, praticam dez provas do esporte: da tradicional corrida ao arremesso de dardo (ver quadro abaixo). Divididos em grupos, alguns treinam salto em altura, enquanto outros testam os discos para o lançamento. Ao mesmo tempo, colegas dão voltas na pista, e outros enfrentam a corrida com barreiras. Não dá para ficar parado, faça chuva ou sol, os atletas mirins e pré-mirins treinam entre três e seis vezes por semana durante duas horas por dia. Os jovens esportistas participam de dois programas gratuitos: o Minas Olímpica – Geração Esporte, em parceria com a Secretaria de Estado de Esportes e da Juventude de Minas Gerais; e o Centro Regional de Iniciação ao Atletismo (Cria) da UFJF. Os mais novos, de 7 a 13 anos, integram o núcleo da UFJF do Minas Olímpica, cujo objetivo é promover a saúde e a inclusão social por meio da iniciação esportiva com foco na aquisição de habilidades motoras. São 97 núcleos em todo o Estado de Minas Gerais com diversos esportes – o da UFJF, voltado principalmente ao atletismo, funciona há dois anos. Os alunosatletas aprendem a melhorar a coordenação motora, a cuidar do corpo e conhecem táticas e regras do esporte. Quando começam no projeto, a criança e o adolescente passam por várias provas do atletismo. Nos primeiros dias, saem em disparada, perdem força, fôlego, e, no dia
seguinte, quase nem sentem a panturrilha. Mas tudo é questão de treinamento. Em um dia típico de atividades, as duas horas de treino são divididas entre aquecimento, alongamento muscular, exercícios de coordenação motora, flexibilidade, força e velocidade, como correr entre os vãos de uma escada estendida no chão. Em seguida, cada grupo desenvolve técnicas específicas das provas do atletismo. A aluna com mais tempo de projeto – dois anos –, Luana Carolina de Jesus, 8 anos, conta que aprendeu, entre outros ensinamentos, a não sair desesperada na corrida, controlar o ritmo e acelerar um pouco nas curvas. O método trouxe medalhas para a garota, penduradas no quarto da mãe, como motivo de orgulho. “Gosto de fazer de tudo, não quero parar”, resume a menina. Os ensinamentos vão se acumulando. Imagine a bagagem de conhecimento tático e de consciência corporal que Luana e seus 99 colegas terão quando completarem 18 anos? Para auxiliar nesse desenvolvimento, os participantes também ocasionalmente jogam futebol, vôlei e basquete, orientados por professores e estudantes da Faefid. A diversidade de exercícios chamou a atenção de dois irmãos italianos Leonardo e Riccardo Petrone, 12 e 11 anos, de Bolonha, no Norte da Itália. Acompanhados da mãe brasileira, Rosane, passaram as férias de um mês e meio, entre julho e setembro, treinando no projeto. Além de novos exercícios, os garotos, que também se dedicam ao atletismo, ultrapassaram as diferenças de idioma. “Lancio del giavellotto” tornou-se “lançamento de dardo” e “salto in lungo” virou o nosso “salto em distância”, listam os garotos.
DA PISTA PARA AS SALAS DE AULA Os alunos ainda são incentivados a incorporar valores do esporte, como disciplina, jogo limpo e trabalho em equipe. O esforço na pista é refletido em sala de aula, conforme a professora Ana Paula Marques, que também é diretora da Escola Municipal Presidente Tancredo Neves, localizada no bairro São Pedro, Zona Oeste de Juiz de Fora, que possui mais de 50 participantes no programa.“Há melhora notável no comprometimento com a escola, na alimentação e no desenvolvimento físico e intelectual. A relação do colégio com o projeto é tão forte que, às vezes, acompanhamos treinos e competições.” Se preciso, monitores do programa vão às escolas saber como os alunos estão se comportando e promovem atividades esportivas que chegam a envolver 200 crianças. “Já que não temos tradição no atletismo como no Quênia e na Jamaica, talvez seja o estabelecimento de ensino uma boa opção para o incentivo à participação em massa e consequente identificação de talentos. Entretanto, faltam espaço, materiais, professores qualificados e tempo disponível nas escolas”, afirma o mestrando em Educação Física pela UFJF Arthur Bossi, em artigo sobre o atletismo em colégios.
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Participante dos projetos, Ludmila Calixto, conquistou o vice-campeonato mineiro no salto em distância
CRIA A partir do desenvolvimento do núcleo do Minas Olímpica, a equipe local da UFJF decidiu criar o Centro Regional de Iniciação ao Atletismo, o Cria. Nesse caso, o foco é identificar e estimular o esporte de alto rendimento e formar equipes para competições. Até três dias (terças, quintas e sábados) a mais de treinamento são disponibilizados para 40 adolescentes se aperfeiçoarem em uma prova específica. Com isso, o aluno que completou 14 anos e não pode ficar mais no Minas Olímpica, devido ao limite de idade, mas já está experiente, pode continuar nos treinos até os 18 anos. É o caso do bicampeão mineiro nos 3.000 metros, em 2013, Robison Gomes da Silva Júnior, 16, nos Jogos Escolares de Minas Gerais (Jemg) e no Campeonato Mineiro de Atletismo. Presente nos treinos de segunda a sábado, o adolescente repete um mantra entre atletas: “A dor e o cansaço são passageiros, desistir é para sempre. Minha meta neste ano é chegar aos 9min10s contra os 9min30s que já consegui.” Além do primeiro lugar nos 3.000 metros, os participantes dos projetos conquistaram a mais alta posição no arremesso de peso, disco e dardo nos Jemg. Todos os mais bem colocados acompanharão Robison Júnior nos Jogos Escolares da Juventude, de abrangência nacional.
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Ao todo, foram 17 medalhas na etapa estadual. E, no Campeonato Mineiro Mirim e Pré-mirim, em 2012, obtiveram 25, com nove esportistas na primeira posição. Ludmila Calixto, 15, ganhou o vice-campeonato mineiro no salto em distância, com 4,73 metros, e em altura, atingindo 1,50 metro. “Não esperava esse resultado, estava disputando com meninas de 16 e 17 anos.”
A PISTA COMO LABORATÓRIO A iniciativa local ganha especificidades próprias por estar vinculada a uma instituição de ensino superior, que permite conjugar pesquisas e formar recursos humanos, e por possuir um complexo esportivo ampliado e modernizado. Com investimentos de R$ 17 milhões do Ministério do Esporte, captados pela Administração Superior da UFJF, foi possível refazer a pista de atletismo e instalar tecnologia de padrão internacional. Com melhor infraestrutura, os projetos ainda atraíram e organizaram eventos, como etapas regionais e estaduais de campeonatos e a própria Corrida Infantil da Universidade. Já a Secretaria de Estado de Esportes envia anualmente R$ 30 mil para o núcleo, aplicados no pagamento de lanche, bolsas de monitoria e parte do material esportivo.
Uma das frentes de pesquisa é a identificação de crianças e adolescentes com talento para o atletismo, que podem se tornar esportistas de alto rendimento, desenvolvida por professores e alunos da Faefid. Os estudos trabalham com a interseção de uma série de dados, tais como altura, percentual de gordura corporal, tempo de treinamento e a comparação entre idade biológica e cronológica. “Enquanto existem vários estudos que apontam o potencial de um adulto, que possui características e limites melhor definidos, há poucas investigações que focam o biotipo infanto-juvenil, em constante mudança”, explica o professor da Universidade de Coimbra, em Portugal, António Figueiredo. O pesquisador português co-orienta a dissertação de Phelipe de Castro, do Mestrado em Educação Física da UFJF, que incluiu a linha de pesquisa Estudos de Jovens Atletas. “Serão aplicados testes físicos, questionários e coletadas medidas antropométricas em jovens de atletismo com idade entre 12 e 14 anos de diversas equipes de Minas Gerais e São Paulo. A partir dessa caracterização, analisaremos a influência dos diferentes estágios maturacionais (idade biológica) nas variáveis coletadas e do tempo de treinamento nos resultados analisados”, afirma o aluno. Outras duas dissertações ainda acompanharão a modificação de desempenho dos jovens ao longo de um ano, a cargo dos mestrandos
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A corrida com obstáculo está entre as modalidades praticadas por mais de cem jovens, entre 7 e 18 anos, de 16 escolas de Juiz de Fora (MG)
Ramon Cruz e Jefferson Verbena. De modo geral, os estudos giram em torno de objetivos como o de encontrar o ponto de equilíbrio entre idade biológica e resultado correspondente. “Um adolescente de 12 anos, mas em estágio maturacional de 14, teria que apresentar, de forma ideal, resultados da idade biológica”, ressalta o orientador da pesquisa e coordenador dos programas, professor Jorge Perrout. Já o estudo do mestrando João Paulo Nogueira investigará as estratégias empregadas pelos jovens de 14 a 17 anos em corridas de meio-fundo (800 metros e 1.500 metros) em competições nacionais. “Quero verificar se, por exemplo, os adolescentes começam a corrida um pouco mais acelerados ou não, se o comportamento da estratégia é parecido com a do adulto, além de pontuar as características de preparação dos participantes, como o tempo de
treinamento e variáveis fisiológicas.” Estudos preliminares com alunos do projeto Minas Olímpica já apontam alguns resultados. O levantamento socioeconômico realizado pela equipe do núcleo local mostrou um desafio do projeto na cidade: chegar à população das classes D e E. Dos 58 participantes frequentes e com pelo menos um ano de projeto, 98% pertencem às classes B e C (renda familiar entre R$ 1.147 e R$ 5.241). “Talvez, nos programas de iniciação ao esporte sejam reproduzidos os mesmos padrões de exclusão da sociedade, em que os menos favorecidos não têm acesso a vários bens sociais. Deve, também, ser estudado o fluxo de crianças, com atenção às que não permanecem ou têm presença flutuante nos núcleos. Seria interessante avaliar se esse comportamento está associado ao nível socioeconômico”, comentam os autores do
estudo, coordenado por Perrout. E em uma pesquisa com 43 meninos e meninas, de 13 anos, em média, os autores concluíram que os adolescentes pesquisados “apresentam uma série de hábitos inadequados de hidratação, o que pode influenciar negativamente o desempenho em treinamentos e competições, sendo necessária intervenção educativa”.Em outro trabalho, com 56 jovens de 11 anos em média, a equipe constatou que há influência positiva quanto à massa corporal e estatura do esportista no desempenho do arremesso de peso. Constatou ainda que testes baseados em modalidades tradicionais do atletismo (corrida, salto e arremesso) podem ser efetivos para detectar jovens talentos. Pelo menos cem alunos dos projetos estão na expectativa de serem reconhecidos.
MAIS Programa Minas Olímpica ( www.esportes.mg.gov.br/esportes/minas-olimpica) Centro Regional de Iniciação ao Atletismo – Cria (www.ufjf.br/faefid) Orientadores: professor Jorge Perrout; instrutores Jefferson Verbena, João Paulo Nogueira, Phelipe de Castro e Ramon Cruz; monitores Fernando Prata, Kelly Santana e Renato de Souza
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CULT UR A
A música rompe barreiras de língua, idade e época
Kátia Dias e Guylherme Morais Márcio Brigatto Fotos
Apresentação da Orquestra Barroca no Cine-Theatro Central
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CULT U R A
Ao completar dois anos, a incorporação do Centro Cultural Pró-Música pela UFJF aposta na internacionalização e reverbera, no campus, o sucesso do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, atraindo 80 mil pessoas para os concertos e mil para os cursos
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e fosse pelo cenário histórico e arquitetônico seria o das cidades mineiras Ouro Preto, Tiradentes ou São João del-Rei a sediar o Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. Esse privilégio, porém, coube a Juiz de Fora, localizada na Zona da Mata de Minas Gerais, que hoje abraça sua vocação para a arte com a chancela da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Escolhida para tornar as composições coloniais brasileiras conhecidas no país e no mundo, o município se firmou como referência graças ao Centro Cultural Pró-Música, que, ao longo de seus 42 anos, transformou-se na força catalisadora de um turbilhão de atividades na área. Pela terceira vez sob o selo da UFJF, desde a incorporação oficial do Pró-Música, em 2011, o festival chegou à 24ª edição, aquecendo a programação cultural em ruas, praças, igrejas e teatros. O inverno ganhou atmosfera cult, quase europeia, atraindo 80 mil pessoas com concertos em espaços fechados, como o Cine-Theatro Central e o Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm), e ao ar livre, como a Praça Cívica do Campus da UFJF e o Parque Halfeld, no centro da cidade. No rastro do último festival, entre 14 e 28 de julho de 2013, um novo CD chega ao mercado: o “Requiem de Mozart”, com interpretação do Coral Calíope do Rio de Janeiro, a cargo do maestro Júlio Moretzsohn; e da Orquestra Barroca PróMúsica, sob a regência de Luís Otávio de Sousa Santos, violinista formado pelo Conservatório Real de Haia, Holanda. A distribuição gratuita
começa em dezembro para mais de três mil admiradores do evento. “Analisado pela crítica paulista como um universo em expansão, o festival, principal produto do Centro Cultural, reafirma, com isso, seu poder de transformação social, econômica e artística”, ressalta o diretor da instituição, Júlio César de Sousa Santos. Para endossar suas palavras, fica a constatação da diretora-fundadora, Maria Isabel de Sousa Santos, de que esta foi a primeira vez, na América Latina, que o “Requiem de Mozart” foi interpretado e gravado integralmente com instrumentos de época.
Pela terceira vez sob o selo da UFJF, o festival chegou à 24ª edição, aquecendo a programação cultural em ruas, praças, igrejas e teatros, com concertos em espaços fechados, como o Cine-Theatro Central e o Museu de Arte Murilo Mendes, e ao ar livre, como a Praça Cívica da UFJF e o Parque Halfeld, no centro de Juiz de Fora Para o professor do curso de Música da UFJF e do festival, Rodolfo Valverde, o evento também se tornou referência brasileira na oferta de oficinas de qualidade com renomados professores do país e do exterior, tanto em instrumentos modernos quanto antigos. “Além disso, brinda a cidade com ótimos concertos durante seus 15
dias de realização. Poucas cidades no país têm a oportunidade de receber intérpretes e programas de nível tão elevado em um período tão curto de tempo.” Da música às artes plásticas foi um pulo, já sendo parte integrante do festival uma exposição na Galeria Renato de Almeida, no Pró-Música. Em ação que envolveu a Pró-reitoria de Cultura e o Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, a mostra “O que você vê é música” trouxe obras de docentes e alunos do IAD para explorar as possibilidades visuais a partir da linguagem sonora.
VALORES MULTIPLICADOS Em 2013, o festival se enveredou pelo Campus da UFJF, com concertos na concha acústica da Praça Cívica. A Orquestra Sinfônica Pró-Música comandou o espetáculo, junto com as orquestras de Câmara e de Jazz, sob a batuta de Nerisa Aldrighi e Sylvio Gomes. “Encontraram a receptividade de um público que, neste ano, contou com o fato de o mês de julho se integrar ao semestre letivo, com alunos, docentes e funcionários se misturando à comunidade em geral para conferir as apresentações”, observa o pró-reitor de Cultura, Gerson Guedes. Afora a banda do Exército, a última apresentação, no campus, com tal peso e qualidade aconteceu há 20 anos, quando a Orquestra Filarmônica de Moscou se apresentou na Praça A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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CULT UR A
Alejandro Souza, 11 anos, participou do festival pela sétima vez, mas foi a primeira na qual tocou com a Orquestra do Pró-Música
Cívica. Acompanhada da família, a dentista Alessandra Mantini prestigiou o concerto de 2013, comemorando o retorno de eventos desse tipo à UFJF. “Eu não estava presente em 1993, mas meu pai e avós vieram. É ótimo que essa cultura esteja voltando.” Aos 11 anos, o estudante de violino Alejandro Souza participou do festival pela sétima vez, mas foi a primeira na qual tocou com a Orquestra do Pró-Música. Filho de pai boliviano e mãe brasileira, o jovem se encantou pela música e se apaixonou pelo violino aos 6 anos, vendo a irmã tocar o instrumento. A oportunidade para se aprimorar veio com a oferta de uma bolsa do Pró-Música e, a partir daí, a paixão só aumentou. Em áreas fechadas, conferiram brilho ao festival o francês Marc Hantai; a Orquestra Sinfônica Heliópolis (SP); a Camerata Antiqua de Curitiba (PR); o Grupo de Percussão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); o Grupo Anima (SP); As Flautas de São Paulo (SP); a Camerata Fukuda (SP); e a Orquestra Sinfônica de Barra
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Mansa (RJ). O encerramento, no Cine-Theatro Central, teve o toque da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com o maestro Fabio Mechetti.
MILAGRE EM EXPANSÃO Com o festival, a cidade vive, em julho, uma atmosfera de cultura que vai além dos locais de concerto: 750 visitantes, estudantes em busca de aperfeiçoamento musical, selecionados a dedo nas inscrições para o festival, chegam com seus instrumentos musicais, prontos para abrir uma nova página em suas histórias pessoais e profissionais. Só no primeiro dia de inscrições abertas na internet para os 60 cursos oferecidos (37 instrumentos), foram mais de 200 acessos de todo o país. “A seleção é difícil, mas necessária para manter
a qualidade. Os alunos precisam estar à altura dos professores que convidamos a cada ano”, explica Maria Isabel, que tem em sua lista de coordenadores personalidades como Paulo Bosísio no setor de cordas; Sérgio Dias no de orquestras; e Homero Magalhães Filho no de vozes. O diretor Sousa Santos ressalta, também, o impacto econômico que o festival traz para hotéis, restaurantes e comércio. “Em números oficiais, contratamos em torno de mil diárias de estadia, duas mil refeições/dia, ao longo da realização dos concertos, cursos e oficinas”, explica, constatando ainda um contingente de outros 400 alunos que se hospedam por conta própria.
CULT U R A
A “ALMA DO FESTIVAL” Em entrevista exclusiva à “A3”, o diretor artístico do Festival de Música Colonial Brasileira e Música Antiga, Luís Otávio de Sousa Santos, que também é regente da Orquestra Barroca, falou um pouco sobre sua carreira na Europa e a evolução do festival entre outros temas. Confira trechos da entrevista - Muitas pessoas referem-se a você como sendo a “alma do festival”. - “Alma” é uma palavra forte, mas poderia ser um emblema, porque saí de Juiz de Fora muito cedo, aos 16 anos, para a Europa. Todas as vezes que voltei foram para trabalhar e passar a experiência adquirida lá, onde morei por 18 anos. Eu sempre trazia os meus colegas – músicos importantes com os quais trabalhei – para o festival. Todo esse amadurecimento do evento se deu muito em função das minhas realizações no exterior. Essa internacionalização do festival, o nome que ele tem no exterior, é sempre porque eu levava o nome da cidade e a realização. - O quanto os estudos na Europa, berço do barroco, o influenciaram? - Acho que, na música erudita, é muito importante, em um determinado momento, o estudante ter contato com a fonte, que é o “Velho Mundo”. Só de conhecer e andar nas ruas, os lugares onde ela foi feita, já dá uma bagagem importante, que vai influenciar na interpretação. Acho que é uma ponte. A música leva o aluno para um outro mundo. É muito importante ter um pouco dessa ligação para poder contextualizar. Tem que saber que uma música de Bach foi feita em Leipzig (Alemanha), a de Vivaldi em Veneza (Itália), há tantos anos... Todo esse invólucro que a gente dá na música ajuda a torná-la mais convincente. - Poderia traçar um paralelo entre os festivais de Juiz de Fora, Campos do Jordão e Europa? - Hoje, até o ranking da crítica especializada, que se dedica só à música erudita, coloca o festival de Juiz de Fora como um dos mais importantes do Brasil. O de Campos do Jordão (SP) está sempre na frente por ter um orçamento milionário e, portanto, são convidados artistas e orquestras que têm cachê muito
maior. Mas penso que a importância do festival de Juiz de Fora é maior por causa da abrangência. O de Campos do Jordão é reduzido ao número de bolsistas: só 150. O de Juiz de Fora tem mais de 700 e já chegou a ter mil alunos. E com a abrangência desde a iniciação musical, com violino e flauta doce para crianças, até o ensino especializado de ponta, como é o caso dos instrumentos antigos, que é uma especialização da formação do músico. Isso tem um peso até maior que o de Campos do Jordão. E a longevidade: são 24 anos. A maioria dos festivais não tem essa idade. É o peso da importância, da abrangência e da idade. - Esse foi o primeiro festival com a presença de professores dos Estados Unidos? - É bom esclarecer isso. O festival já vem trazendo nomes internacionais há muitos anos. Principalmente, da Europa, porque a tônica do festival é a música antiga e os melhores estão lá. Este ano, tentamos abrir um pouco esse leque de internacionalização para os Estados Unidos, até porque, com a incorporação da UFJF, a gente quer tentar ter um link também com as universidades americanas, que estão muito ligadas a essa parte de performance. A Europa ainda segue um sistema mais antigo, as universidades pegam a parte mais acadêmica e secular. A performance é mais estudada nos conservatórios. Agora está mudando até para seguir um pouco o modelo americano. Então, essa nova internacionalização segue mais para a parte de conhecimento moderno. Pretendemos dar um gás maior com os professores que vêm de lá junto com os de música antiga que vêm da Europa. - Nesse festival ocorreu a primeira gravação do “Requiem de Mozart” na América Latina com instrumentos de época. Qual a dimensão disso? - Em termos de progressão, porque já é o 14º CD da Orquestra Barroca, é a discografia mais vasta de um só grupo no Brasil. Nem as orquestras sinfônicas têm uma discografia tão grande, com 14 CDs consecutivos. E a tônica, porque somos o único grupo do gênero, na formação do gênero no Brasil, todas as gravações são inéditas de música colonial brasileira restaurada para gravação e obras europeias de peso interpretadas pelo grupo brasileiro. O “Requiem” segue essa linha do ineditismo. É a primeira gravação feita na América Latina, com produção brasileira e instrumentos de época . O “Requiem” é uma peça muito conhecida. Todo mundo tem um pouco disso na cabeça; já foi até trilha sonora de filme. Então, tem uma importância muito grande trazer uma peça tão conhecida com essa ótica histórica, da época. A3- Novembro/2013 a Abril/2014
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P ERFI L
Legado do primeiro reitor da UFJF transformou a história de Juiz de Fora e região
Zilvan Martins Repórter
Exposições e lançamento de selo personalizado marcaram as homenagens a Moacyr Borges de Mattos que faria cem anos em setembro
Fotos: acervo de família
Reitor Moacyr Borges de Mattos assina o ato de federalização da Faculdade de Serviço Social à UFJF, em 1961
Solenidade de inauguração do prédio da Reitoria, em 28 de maio de 1966, que contou com a presença do Presidente Castelo Branco
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PERF IL
“O
cargo de reitor não tem termos de comparação com mandatos políticos. Ele deve ser político, mas não de forma ideológica, e sim para saber fazer acordos.” Essa definição do perfil da autoridade máxima na hierarquia acadêmica é do professor Moacyr Borges de Mattos, primeiro reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), nomeado pelo presidente Jânio Quadros (1961) e reconduzido pelo presidente Castelo Branco (1964-1967). Foi com esse pensamento que durante dois mandatos consecutivos, entre 1961 e 1967, administrou a Universidade. Esse legado histórico foi relembrado durante o mês de setembro de 2013, em Juiz de Fora (Zona da Mata Mineira), com exposições e homenagens aos seus cem anos de nascimento, comemorados no dia 5 desse mesmo mês. Coube a Moacyr Borges de Mattos tirar a proposta de criação da UFJF do papel e conseguir recursos para construí-la. Sua nomeação aconteceu um ano após a fundação da Universidade. Em 1960, o então presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961) enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei criando a UJF – Universidade de Juiz de Fora, agregando as já existentes faculdades particulares de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, Ciências Econômicas e Engenharia. Somente em 1965 a Universidade de Juiz de Fora passou a denominar-se Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Borges de Mattos disse que estava “em uma situação de alguém que tinha que montar um trem”. Porém, tinha que colocar os trilhos e as peças da composição ao mesmo tempo. “Moacyr Borges de Mattos foi o maestro que harmonizou na mesma orquestra histórias e características tão distintas como as que compunham as faculdades de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e Ciências Econômicas. Foram a sua habilidade e capacidade administrativa os atributos que permitiram que estas faculdades se unissem e fizessem nascer a nossa Universidade. Hoje, pouco mais de 50 anos depois, podemos olhar para este momento, examinar a trajetória que se seguiu e dizer com absoluta convicção e imensa alegria: o seu trem, professor Moacyr Borges de Mattos, ganhou trilhos sólidos, traçado seguro, incorporou novos vagões e locomotivas, povoou as vidas e os sonhos de milhares de jovens, transformou nossa cidade, nossa região e
contribui de forma decisiva ao desenvolvimento do nosso país”, afirma o atual reitor da UFJF, Henrique Duque. Formado em Direito na turma de 1935, pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, Borges de Mattos faleceu aos 94 anos, em 31 de dezembro de 2007. Sua atuação profissional se dividiu entre o exercício da advocacia como consultor jurídico em várias instituições e empresas e o exercício do magistério em instituições de ensino de Juiz de Fora. Na UFJF, atuou como professor catedrático durante 43 anos e também como diretor da Faculdade de Direito. “O doutor Moacyr era um intelectual de visão administrativa. Tinha um espírito comunitário acendrado, mas nunca foi um político. Essas particularidades foram fundamentais naquele momento em que ele tinha a missão de unir as cinco faculdades existentes em Juiz de Fora e criar a UFJF”, relembra o advogado e professor aposentado da UFJF, Paulo Medina, genro de Borges de Mattos. Em seu currículo, uma lista de atividades e ações que transformaram a história de Juiz de Fora e que, por isso, deixou seu nome escrito nela. Era tão visionário que a linha administrativa e educacional escolhida por ele na época de criação da Universidade foi fundamental para que a UFJF alcançasse seu atual nível de qualidade. Foi responsável pela construção do prédio que sediou a reitoria por muitos anos, na Rua Benjamim Constant, no Centro da cidade, onde funciona hoje o Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm). Em 1963, conseguiu do então prefeito de Juiz de Fora, Adhemar Resende de Andrade, a doação de um terreno de 831.610 metros quadrados, no valor de 6 milhões de cruzeiros, onde seria erguida a Universidade. O acordo era que a UFJF construísse ali também uma escola de ensino médio para a Prefeitura. E, em 10 de junho de 1967, data em que o primeiro reitor inaugurou o Restaurante Universitário (RU) do Centro, ele entrega também a Escola de Nível Elementar, hoje Escola Municipal Santana Itatiaia. Durante seu segundo mandato, inaugurou o primeiro Hospital Universitário (HU), em agosto de 1966. Na ocasião, a unidade foi instalada na área física do antigo sanatório Dr. Villaça, situado ao lado da Santa Casa de Misericórdia, no Centro de Juiz de Fora.
Inauguração do primeiro Hospital Universitário, na Avenida Rio Branco, ao lado da Santa Casa de Misericórdia
ESTÍMULO À CULTURA E AO ESPORTE
Moacyr Borges de Mattos traçou um caminho seguido por outros reitores e fez com que a UFJF se tornasse uma parceira de peso na construção da vida cultural de Juiz de Fora. Criou eventos que se tornaram oficiais no calendário da Instituição e da cidade. Em 1963, aconteceu o I Festival de Arte da Universidade, conhecido como “Semeador de beleza e cultura”, organizado com o apoio do então professor de Filosofia, Irven Cavalieri, nomeado chefe do recém-criado Departamento de Educação e Cultura, outro legado do primeiro reitor. O festival, que deu novo impulso à cultura do município, oferecia, durante uma semana, oficinas, concursos, apresentações artísticas e premiações. Ele também organizou o Coral Universitário, em 1966, e criou as Olimpíadas Universitárias.
SELO PERSONALIZADO
Em 5 de setembro de 2013, dia do centenário do primeiro reitor da UFJF, o Conselho Superior da Universidade realizou uma sessão solene alusiva aos cem anos de nascimento do professor Moacyr Borges de Mattos. Para perpetuar seu centenário, foi lançado pela UFJF e pelos Correios um selo personalizado composto por duas partes: a bandeira do Estado de Minas Gerais tremulando ao vento, compondo o plano secundário e emoldurando as montanhas do mesmo, e a vinheta contendo a expressão “Cem anos do Reitor Moacyr Borges de Mattos”.
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INICIAÇÃO CIE NTÍFI C A
Estreitando laços com a comunidade
Isabela Lourenço* Márcio Brigatto Foto
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econhecidos pela produção na iniciação científica e pelo impacto no ensino de graduação, os grupos ligados ao Programa de Educação Tutorial (PET) da Universidade Federal de Juiz e Fora (UFJF) também têm se destacado pela participação em projetos de extensão, completando, assim, a tríade na qual se propõem a atuar. Com isso, alunos de escolas públicas aprendem técnicas de eficiência energética, a produzir documentários e outros formatos audiovisuais; e gestantes e crianças ganham acesso a informações sobre saúde bucal, enquanto os bolsistas ampliam o impacto social de suas pesquisas pelo contato direto com a comunidade local.
EFICIÊNCIA ENERGÉTICA O projeto Eficiência Energética nas Escolas é desenvolvido desde 2011 pelo PET Engenharia Elétrica. A iniciativa estimula a participação em propostas de melhorias ambientais e energéticas na região, além de criar vínculos com alunos do ensino fundamental e médio. Cerca de 300 estudantes já participaram da iniciativa, que desenvolve mostra de trabalhos, palestras, oficinas, além de premiar a equipe vencedora. Segundo a bolsista e coordenadora discente Mirele Kollarz, a extensão contribui para a formação humana dos futuros engenheiros: “Os petianos assumem responsabilidades, como gestão de pessoas, trabalho em equipe e capacidade de comunicação. Adicionalmente, ao interagirem e darem suporte aos alunos, convivem com a realidade educacional da cidade e da região”.
Projeto Só-Riso: cinco bolsistas em conjunto com alunos de Odontologia acompanham gestantes e crianças na primeira infância, realizando, em média, 120 atendimentos por ano
PRODUÇÕES AUDIOVISUAIS Outro exemplo de sucesso é o projeto Núcleo de Produções Audiovisuais do PET Comunicação. Em 2012, ganhou apoio da Fapemig e formará esse ano a primeira turma de alunos do ensino médio de escolas públicas, sob a coordenação da professora doutora colaboradora Soraya Ferreira. Conceitos básicos do audiovisual são apresentados semanalmente, em conjunto com atividades práticas, por meio de oficinas preparadas pelos petianos para dez alunos de três colégios de Juiz de Fora. Uma das líderes do projeto, a bolsista Franciane Moraes enfatiza a formação crítica dos estudantes. “Acredito que eles estarão mais aptos a pensar sobre aquilo que assistem, e consumirão o audiovisual com consciência de como é produzido.” As oficinas também ajudam a construir o conceito de que eles têm voz e podem produzir mesmo com limitações técnicas.
*Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET) da Faculdade de Comunicação (Facom) da UFJF
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SÓ-RISO Já o projeto Só-Riso, desenvolvido há 14 anos, é uma das marcas do PET Odontologia. Cinco bolsistas em conjunto com alunos da graduação acompanham gestantes e crianças na primeira infância, realizando, em média, 120 atendimentos por ano. Para a tutora Rosângela Ribeiro, o grande mérito é “dar aos alunos a oportunidade de conhecer a realidade da população e de contribuir positivamente para a sua transformação”. Mais que um mero atendimento, o projeto desenvolve seminários apresentados pelos alunos e fornece orientação individual e coletiva sobre saúde bucal. Para a bolsista Raphaela Marques, o destaque é o aprendizado social: “A atenção odontológica para estes grupos não é oferecida nas disciplinas no curso e, assim, temos a oportunidade de conhecer a real estrutura de saúde do município”.
PET ELÉTRICA: Mirele Kollarz mirele.kollarz@engenharia.ufjf.br PET FACOM: João Mateus joaocunha13@hotmail.com PET ODONTO: Raphaela Ferreira Marques raphinhafm@hotmail.coma
L IT ER AT UR A
Um mergulho na história de um artista único Rodrigo Barbosa*
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ma história de paixão e fé pelo teatro e o registro histórico da trajetória de um artista que há 50 anos ininterruptos se dedica aos palcos e à dramaturgia tornam especial o livro “José Luiz Ribeiro: 50 ANOS DE TEATRO”, lançado em novembro de 2013, com patrocínio da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Uma edição de arte, em formato especial e com 216 páginas, conta uma história recheada de crença na força transformadora da arte, no teatro como momento de encontro e comunhão de sonhos e ideias e, especialmente, no talento criativo de um artista único. Único porque José Luiz Ribeiro encenou seu primeiro espetáculo teatral, “Brasil, Espaço 63”, aos 21 anos, em 1963, com mais de cem atores em cena, e nunca mais parou. Único porque, de lá para cá, José Luiz produziu e dirigiu 172 espetáculos, escreveu mais de 90 peças teatrais, formou centenas de atrizes e atores, recebeu dezenas de prêmios por seu trabalho e encena, até hoje, mais de 120 apresentações, entre adultas e infantis, por ano. O mergulho nesta história, fartamente ilustrada a partir de um significativo acervo fotográfico, começa antes da criação daquela que viria a ser a “marca” mais conhecida de Zelu (como também é chamado): o Grupo Divulgação. O livro conta a história da formação cultural do menino, filho de imigrantes portugueses, que nasceu em Juiz de Fora (MG). Passeia pela saudosa Fafile (Faculdade de Filosofia e Letras), onde José Luiz cursou Jornalismo e conheceu sua companheira de toda vida: Maria
Lúcia Campanha da Rocha. Retrata o momento cultural e político efervescente dos anos 60, com o Teatro Universitário, os movimentos artísticos e o embate com a ditadura e contra a censura. Professor da UFJF, José Luiz foi autor da ideia e responsável direto pela transformação do antigo casarão da Faculdade de Direito no Forum da Cultura, na rua Santo Antônio, ao final do mandato do reitor Gilson Salomão, em 1972. Esta passou a ser a “casa” do Grupo Divulgação e dos sonhos de Zelu e um bando de idealistas. O livro conta – e mostra, com belas imagens – esta história. “José Luiz Ribeiro: 50 anos de teatro” relembra episódios memoráveis como a excursão pelo Rio São Francisco, na Barca da Cultura, ou a encenação de “Diário de um Louco”, de Gogol, que recebeu vários cortes da Censura e levou José Luiz a tapar a boca do personagem principal com um lenço branco, nos momentos de suas falas censuradas, como forma de denúncia. Com texto de apresentação de Jota Dângelo, expoente do teatro mineiro, o livro escolheu um caminho narrativo que tem as imagens como fio
José Luiz já produziu e dirigiu 172 espetáculos, escreveu mais de 90 peças teatrais, e encena, até hoje, mais de 120 apresentações, entre adultas e infantis, por ano
condutor da história, costuradas por textos de José Luiz, que oferecem ao leitor a oportunidade de compreender e se apaixonar pela incrível aventura deste homem de teatro. Um projeto de Ieda Alcântara e Osvaldo Alvarenga, exmembros do Grupo Divulgação, a publicação tem projeto gráfico de Tadeu Costa, a participação na edição dos jornalistas José Santos e Guilherme Rocha e textos de Malu Ribeiro, Márcia Falabella, Rodrigo Barbosa e Thereza de Azevedo Leite. Um comovente registro de um dos mais belos capítulos da epopeia cultural brasileira no período – e que acontece aqui, na nossa aldeia, nesta surpreendente Juiz de Fora. E que permanece vivo e ainda sendo escrito.
* Secretário adjunto de Comunicação e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF
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L A NÇAMENTO S
Entre as novidades da Editora UFJF, flipbook sobre administração pública
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inema independente, a violência desencadeada pela guerra na Argélia e administração pública são temas abordados em livros lançados recentemente pela Editora UFJF. A novidade fica por conta da obra “Administração pública contemporânea: política, democracia e gestão”, organizada por professores da Faculdade de Administração e Ciências Contábeis (Facc), que vem no formato flipbook e é disponibilizado gratuitamente. Além deste, também já está disponível neste formato o livro “Os direitos educacionais das crianças e dos adolescentes adoentados: orientações para escolas, famílias e hospitais (http://www.editoraufjf.com.br/images/author/cartilha_os_direitos_educacionais.pdf). Em breve, a Editora disponibilizará mais duas cartilhas em flipbook. Para o diretor da Editora UFJF, Antenor Salzer Rodrigues, existe a tendência de lançamentos em outros formatos, que não o impresso. Segundo ele, o Conselho Editorial tem debatido o tema, para atender a demanda de docentes. “Teremos que abrir espaço para essas novas mídias, mas sem negligenciar a impressa.” Confira lançamentos recentes da Editora.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA CONTEMPORÂNEA: POLÍTICA, DEMOCRACIA E GESTÃO http://editoraufjf.com.br/images/admpub
OS CONDENADOS DA TERRA (Frantz Fanon. Tradução: Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães – R$ 50)
(Organizadores: Marcos Tanure Sanabio, Gilmar José dos Santos e Marcos Vinicius David) O livro apresenta temas sobre administração pública na perspectiva da formação de quadros qualificados, implantação, efetivação das políticas e na transformação da gestão pública. Além disso, revitaliza os conteúdos da administração pública, esquecidos nos bacharelados de Administração a partir da década de 1990, e permite uma fusão entre técnicas e processos de gerenciamento público e discussões políticas no campo das ciências sociais.
(Organizador: Alfredo Suppia – R$ 40) Segunda reimpressão atualizada do livro publicado em 1961. Trata-se de um grande clássico do terceiromundismo, obra capital e testamento político de Frantz Fano. Nesta nova edição, a psiquiatra e psicanalista Alice Cherki - que escreveu o prefácio - e o historiador da Argélia contemporênea Mojammed Harbi - que assina o posfácio -, ressaltam a importância contemporânea do pensamento de Frantz Fanon.
MAIS A Editora UFJF está situada na Rua Benjamin Constant 790, no prédio do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) - Juiz de Fora/MG. Tel: (32) 3229-7646 E-mail: secretaria@editoraufjf.com.br. Site: www.editoraufjf.com.br
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CINEMA(S) INDEPENDENTE(S): CARTOGRAFIAS PARA UM FENÔMENO AUDIOVISUAL GLOBAL
Fundamental para pesquisadores sobre cinema, o livro é uma iniciativa inédita no Brasil. A obra traz uma coletânea de perspectivas e abordagens organizadas em torno de três eixos principais: história e emergência de autores e gêneros no cinema independente americano; análises do fenômeno “cinema e audiovisual independente” no Brasil; e o cinema independente balcânico ou do leste europeu.
MÚS IC A
Atual formação, regida pelo maestro Guilherme Oliveira
Coral da UFJF prepara lançamento do terceiro CD
entrelaçadas com canções populares brasileiras do século XX. Os poetas mineiros Murilo Mendes e Ângela Leite de Souza comparecem, musicados por mim. Um samba de Ary Barroso ombreia com os hinos à morte e à vida de Jesus (Motetos) e de “Che” Guevara (Soy loco por ti, América). Gil, Milton, Capinam, Titãs. O erudito e o popular, o antigo e o novo se harmonizam sem conflitos. Em junho de 2004, o coro participou do Concurso Sudamericano de Interpretación Coral na Argentina e recebeu dois prêmios do júri oficial mais o prêmio de vencedor do certame concedido pelo júri popular. Ao retornar a Juiz de Fora, trouxemos na bagagem um quarto prêmio: medalha de ouro para o melhor regente. Orgulho de ser UFJF... Em 2006, o reitor Henrique Duque propôs ao Conselho Universitário o reconhecimento oficial do Coral da UFJF, o qual passou finalmente a existir de direito. Em 2010, na contingência de deixar as funções de maestro do grupo, fui sucedido por dois regentes de inegável e reconhecido mérito: Fernando Vieira (2010-2011) e Guilherme Oliveira, o atual regente (2012-2013). É com o maior orgulho que acompanho, a cada apresentação pública, a sua trajetória ascendente. O jovem maestro Guilherme Oliveira, hoje com 27 anos, deu continuidade ao trabalho de um grupo já amadurecido, e com farta bagagem. Integrou-se nele, formando um amálgama feliz, equilibrado e respeitoso. O resultado pôde ser apreciado no show “Cantorias”, título homônimo do terceiro CD do coro, em fase de preparação. Seu lançamento virá – parodiando o Imperador D. Pedro I – “para o bem de todos e felicidade geral” de tantos quantos vierem a ouvi-lo. Bravos!
* Professor doutor do Departamento de Música do Instituto de Artes e Design da UFJF
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Foto: Rizza
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onvidado a escrever um artigo para a “A3” sobre o Coral da UFJF, exultei. Impossível recusar a oportunidade de repartir com a comunidade acadêmica uma bela história de amor à música. Tudo começou em 1959, quando um pequeno grupo de cantores (sopranos, contraltos, tenores e baixos) se reuniu sob a regência de Victor Giron Vassalo com o intuito específico de cantar no casamento de um casal amigo. Durante a preparação para ilustrar musicalmente aquela liturgia matrimonial, entretanto, os integrantes desse grupo pretensamente provisório foram, eles próprios, se apaixonando entre si. Decidiram continuar seus ensaios em casas particulares, no início, na Igreja da Glória, e no Colégio Santa Catarina posteriormente, sob o nome de Coral Pio XII. Em 1966, uma articulação entre o maestro Victor Vassalo e o reitor Moacyr Borges de Mattos promoveu a migração do Pio XII para a UFJF, o qual foi rebatizado como Coral da Universidade Federal de Juiz de Fora. Em 1973, no 1º Concurso Nacional de Corais na Televisão (MEC-TV Globo), foi classificado em segundo lugar. Após o falecimento do regente-fundador, a maestrina Ana Maria Ramos assumiu a direção do Coral da UFJF por quatro anos. Sob sua orientação foram multiplicadas as abordagens cênicas e abraçado prioritariamente o repertório popular. Em 2000 minha própria história se cruzou com a do Coral Universitário. Passamos a abordar obras de todos os gêneros musicais, e já no ano seguinte o coro gravou seu primeiro CD, “À moda da casa”, com canções de músicos juiz-foranos, em arranjos meus para coro a capella. O segundo CD ampliou o escopo do repertório: “Tear” tece fios da origem mais variada. Algumas peças do repertório mineiro do século XVIII estão
André Pires*
ENSAI O FOTO GR ÁFI CO
Arthur Arcuri: uma pequena foto-biografia Marcos Olender*
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professor Arthur Arcuri nasceu em 26 de fevereiro de 1913. Era o filho caçula de Pantaleone Arcuri, imigrante italiano que instalou na cidade de Juiz de Fora (MG), em 1895, uma companhia que, no momento do nascimento de Arthur, já era a principal indústria da construção civil da região.
2 - Verso do cartão postal 1 - Cartão postal com a foto de Arthur Arcuri, aos 6 meses, em agosto de 1913
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E N SAIO FOTO GR Á FICO
3 – Arthur Arcuri (primeiro à esquerda) com a mãe, Christina Spinelli Arcuri, e o pai, Pantaleone, em setembro de 1921
Em agosto daquele ano, sua mãe, Christina, enviaria para seu pai, que estava em Nápoles (Itália), dois postais com as primeiras imagens que conhecemos dele (fotos 1 e 2). Pelas fotografias podemos conhecer um pouco mais da sua vida em família (3 e 4), da sua formação em Engenharia, iniciada em Belo Horizonte (5) e concluída no Rio de Janeiro, das relações profissionais e de amizade que constrói com algumas das principais personagens do cenário arquitetônico brasileiro (6). Mas a fotografia não só registra a sua trajetória como é fundamental na própria construção desta. É a partir dela que Arthur se integra ao mundo das artes. Como disse em depoimento à Divisão de Memória da Funalfa, em Juiz de Fora, em 1982: “A fotografia foi elemento que me despertou o interesse pela arte. Porque realmente a fotografia, pondo de lado, o lado técnico dela, é uma escola formidável para ensinar o indivíduo a ver as coisas”.
4 – Arthur Arcuri (primeiro à direita) ao lado do pai Pantaleone, no Jardim de Inverno do Palace Hotel de Poços de Caldas, em março de 1934
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5 – Na Escola de Engenharia da, então, Universidade de Minas Gerais, hoje UFMG, em dezembro de 1932
6 – Em pé (da esquerda para a direita), arquiteto Marcos Jaimovitch, engenheiro Nelson Assad e Arthur Arcuri; sentados, os arquitetos Oscar Niemeyer, Galdino Duprat e Estelita em Juiz de Fora, em março de 1950
É a fotografia que o leva a se dedicar à arquitetura, da qual tinha se afastado ao optar pela engenharia, por entender que “entre um mau engenheiro e um mau arquiteto, o que causa o menor dano à coletividade é o mau engenheiro”. E é, “esse contato com a fotografia, o estudo da estética e a seriedade como lidei com o problema da composição e o resto das coisas, [que] me fizeram refém da arquitetura”, como afirmou em depoimento ao projeto “Diálogos Abertos”, da UFJF.
7 – Interior da residência do médico João Villaça, em 1948
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8 – Residência do médico Antonio Carlos Pereira em Juiz de Fora, em 1951
9 – Residência de Luiz Stelling em 1952
Arquitetura esta que se torna, também, um dos objetos principais das suas lentes, ávidas por registrar obras significativas, ao redor do mundo e do nosso país, que pudessem servir de inspiração a sua própria produção – também fotografada por ele (fotos 7, 8, 9 e 10) – ou de subsídios e imagens para as aulas de história da arte (11) que, desde o início da década de 1960, ministrava na Universidade Federal de Juiz de Fora, instituição que ajudou a criar e da qual foi responsável pela implantação. Por fim, fica perpetuada pela fotografia também a sua jornada à frente do Museu Mariano Procópio, de 1983 a 1997, coroando uma vida dedicada à cultura (12 e 13). *Doutor em Arquitetura e Urbanismo pelo UFBA; mestre em História Social pela UFRJ; graduado em Arquitetura e Urbanismo pela UFRJ; professor do Departamento de História da UFJF
10 – Residência de Romeu Arcuri em 1949
11 – Artur Arcuri em Luxor, Vale dos Reis (Egito), em frente ao túmulo de Ramsés VI, em janeiro de 1971
*Fotos: Acervo Alice Arcuri
12 – Arthur Arcuri em seu gabinete no Museu Mariano Procópio em 1989
13 – Arthur Arcuri no interior do Museu Mariano Procópio em 1989
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LE IA-M E
Galeria Pio X: hora legal
Ilustração: Joviana Marques
Dormevilly Nóbrega*
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ias passados, como nos acontece comumente, fomos procurados por mãe aflita, pedindo socorro no tocante ao dever que seu filho teria de entregar, dia seguinte, no colégio. Dizia a jovem mãe, depois de criticar os professores pelas tarefas que propõem aos pequenos estudantes, algumas consideradas estabanadas: – A professora de meu filho, menino de dez anos somente, quer que ele explique por que a sirene da Galeria Pio X toca precisamente ao meio-dia, quando todo mundo tem relógio, especialmente os relógios de agora, de grande precisão. Prestadas as informações suficientes para que a criança cumprisse a missão escolar, fomos rever anotações antigas, com o intuito de prestar homenagem ao criador daquela galeria e fundador do “Amparo do Lar Feminino” – Alaf, associação filantrópica: Sr. Artur de Oliveira Vieira. Em 4 de janeiro de 1923, reproduzindo notícia publicada no “Jornal do Comércio” local, o “Correio de Minas” também lamentava que o padre Luiz Koester, superior provincial da Congregação do Verbo Divino, houvesse determinado a suspensão do tiro da hora legal, ao meio-dia, ainda que justificando sua atitude. O público e o comércio já estavam habituados ao tiro de um morteiro dado pela Academia de Comércio para assinalar a hora oficial do meio-dia para o acerto dos relógios, sem ter necessidade de ir à praça da estação da estrada de ferro, onde o relógio da torre era mantido com hora certa, evitando muitas vezes enormes caminhadas. Os jornais lembravam que “se os interessados quisessem, remediar-se-ia
o mal, adquirindo uma sirene, que não produz os inconvenientes do tiro de morteiro, é mais durável e cujo apito forte se percebe melhor que o tiro. Aí fica a ideia que submetemos à consideração do comércio e mais classes interessadas”. Vinte dias depois, os jornais informavam que o Sr. Artur Vieira pretendia construir uma galeria comercial, que seria denominada Galeria Cruzeiro, ligando a Rua Halfeld à Rua Marechal Deodoro, “no trecho compreendido entre o Cine Paz e o prédio que foi da Casa Guedes”. A fachada, às ruas Halfeld e Marechal Deodoro, seria de sobrado. O projeto era da firma Mancebo & Bacarini e as obras foram orçadas em 400 contos de réis. Em 8 de janeiro de 1927 era entregue ao público a galeria ligando as duas ruas, faltando ainda a construção final na Rua Marechal Deodoro. Desde então, graças à visão e ao arrojo do Sr. Artur Vieira, sua galeria, que recebeu o nome de Galeria Pio X, passou a oferecer, por uma potente sirene, a hora oficial do meio-dia, sem o perigo dos tiros de morteiro. Quase vinte anos depois, o mesmo “Correio de Minas”, em grande reportagem destacava: “Na época em que o Sr. Artur Vieira idealizou a Galeria Pio X e meteu mãos à obra, talvez não tenha faltado quem o considerou um pouco arrojado. Realmente, há bem mais de dez anos, só uma firme determinação e uma grande confiança poderiam animar a tal empreendimento. Quem tinha razão era o Sr. Artur Vieira. Ele sabia que o trabalho perseverante, a energia, a força de vontade conduzem à vitória”.
* Extraído do livro “Revendo o passado - memória juiz-forana” do historiador, jornalista e colecionador Dormevilly Nóbrega. A sirene - tombada como patrimônio do município até hoje é acionada em Juiz de Fora (MG) ao meio-dia. O acervo do Dormevilly se encontra no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) da UFJF
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‘A história da UFJF”, do artista plástico e pró-reitor de Cultura da UFJF, Gérson Guedes, que utilizou a técnica acrílica sobre tela (1,80m x 1m)