Mitos, Deuses e Heróis Gregos

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Mitos, Deuses e Her贸is Gregos


Mitos, Deuses e Her贸is Gregos


Claudio Blanc

Mitos, Deuses e Her贸is Gregos

Sindicato dos Padeiros de S茫o Paulo


Supervisão editorial

Editora Avalon

Capa

Olavo Bernardes

Projeto Gráfico

Olavo Bernardes

Revisão

Silvio Siqueira

Claudio Blanc Mitos, Deuses e Heróis Gregos Primeira edição – fevereiro de 2013

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Índice

1. O Mundo Grego 11 2. A Religião dos Gregos 29 3. Cosgomonias 45 4. Deuses 54 5. Heróis 100 Notas 1XX Sobre o Autor 147



À Julia e à Lívia



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1 O Mundo Grego

M

ergulhar no universo dos gregos é assistir à epopeia de um povo de pastores que, em cerca de mil e quatrocentos anos, construiu uma das mais importantes civilizações da História, cujos ecos ainda hoje ressoam em alto e bom som nos alicerces da civilização ocidental. É conhecer uma cultura que se espalhou por todo o mundo antigo, mudando para sempre a face da humanidade. Bravos guerreiros, sob Alexandre, o Grande, os gregos subjugaram o mais poderoso exército do seu tempo e estabeleceram o maior império constituído até então; inspirados filósofos, investigaram os céus, levantaram hipóteses sobre a origem do Cosmos, conceberam o átomo, aperfeiçoaram a matemática e a geometria, deixaram, enfim, sua profunda marca, estabelecendo a pedra fundamental da civilização ocidental. 9


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A Grécia Antiga, porém, não era o que hoje entendemos apenas como o país Grécia. O termo é usado para descrever os povos que falavam grego e que compartilhavam uma religião comum. Geograficamente, a área ocupada por esses povos era bem maior do que a atual península grega. Compreendia, também, regiões de cultura helênica colonizadas pelos gregos antigos: Chipre, a costa egeia da Turquia – então chamada de Ionia –, a Sicília e o sul da Itália, ou Magna Grécia, e colônias espalhadas nas costas das atuais Albânia, Bulgária, Egito, sul da França, Líbia, Romênia, Catalunha e Ucrânia. Os povos que vieram constituir a civilização helênica chegaram à península grega em várias ondas migratórias, a partir do terceiro milênio antes de Cristo. Aqui, receberam grande influência da civilização minóica, estabelecida na ilha de Creta. Creta A civilização minóica se desenvolveu na ilha de Creta entre 2600 e 1375 a.C. Exímios marinheiros, durante cerca de quatro séculos os cretenses prosperaram, negociando com o Egito e a Grécia Continental. A civilização de Creta chegou ao seu apogeu por volta de 1600 a.C., dominando com seus navios e sua cultura o Mar Egeu. Os minóicos se sentiam seguros com a proteção do mar. Viviam em cidades não fortificadas, próximas ao litoral e em terrenos pouco elevados. Foi seu contato com a Grécia continental que introduziu mercadorias, tecnologias e conhecimentos do Egito e das civilizações mais desenvolvidas do Oriente Mé-


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dio na Europa durante a Idade do Bronze. Então, no século 14 a.C., os minóicos deixaram de ser influentes. Os Micênicos Ao mesmo tempo em que a civilização minóica se desenvolvia, chegava ao seu apogeu e decaía, povos arianos de língua indo-europeia se estabeleciam na península grega. As montanhas da Macedônia, ao norte, ainda eram habitada por um povo que mais tarde se fundiu aos futuros gregos, os pelasgos. Mas o centro da península, o Peloponeso, e o extremo sul, a Ática, haviam sido dominados pelos aqueus, os quais os gregos consideravam seus antepassados. Os aqueus eram mais desenvolvidos que os pelasgos e constituíram uma civilização de fato. Pastores de ovelhas e guerreiros, haviam se estabelecido ali a partir de 2.500 a.C. Conheciam o uso da quatriga – uma carruagem de guerra com quatro rodas – e davam mais importância ao homem do que à mulher na sociedade. Seus objetos de culto diferem muito dos objetos das religiões centradas em deidades femininas, como era comum no Oriente Médio e na própria região do Mar Egeu, antes da sua chegada1. O centro dessa civilização foi Micenas, um assentamento no Vale do Peloponeso. A influência da civilização de Creta sobre eles foi fundamental, e Micenas se desenvolveu. A partir de 1600 a.C., durante cinco ou seis séculos, essa civilização se espalhou pela maior parte da Grécia continental, estabelecendo as fundações da futura cultura helênica. Na verdade, foi um aprimoramento da organização 11


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tribal, sob o comando de reis. Sua cultura não se baseava em um único sistema político, mas era compartilhada por vários principados, dos quais Micenas era o mais importante2.

Arte Minóica (Palácio de Cnossos, Creta)

Por conta da influência dos cretenses, os micênicos acabaram conquistando a supremacia comercial do Mar Egeu, em aproximadamente 1400 a.C., contribuindo com a decadência de Creta. Mas com a entrada de um novo povo no palco da Grécia, os dóricos, a cultura de Micenas acabou se extinguindo entre os séculos 12 e 11 a.C. Os Helenos No século 8 a.C., a Grécia, dividida em várias comunidades independentes, começou a emergir da sua Idade das Trevas, como ficou conhecido o obscuro período histórico que


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se seguiu à queda de Micenas. A literatura e a escrita micênicas se perderam, mas, em aproximadamente 800 a.C., os gregos, ou helenos, como esse povo chamava a si mesmo, adaptaram o alfabeto fenício3. Era o começo de uma nova civilização. Os próprios helenos traçaram o início da sua cronologia nessa época, estabelecendo os primeiros Jogos Olímpico, em 776 a.C., como o seu início. Com o desenvolvimento da nova civilização, a população cresceu além dos limites da capacidade da sua terra arável. Povo de destemidos marinheiros, os gregos iniciaram, a partir de 750 a.C., um período de expansão que durou cerca de 250 anos. Expedições de diferentes cidades estabeleceram diversas colônias em lugares tão distantes um do outro como a Espanha e a Ucrânia. A costa do Egeu da atual Turquia, a ilha de Chipre, a costa sul do Mar Negro, a Albânia, a Sicília, a Córsega, o sul da Itália e da França, o nordeste da Espanha, o norte da África e até mesmo a atual Ucrânia, abrigaram colônias gregas, abrindo essas regiões para sua influência. Por volta do século 6 a.C., os helenos tinham expandido sua língua e cultura a uma área bem maior do que o Peloponeso. Embora mantivessem laços religiosos e comerciais, as colônias gregas não eram controladas politicamente pelas cidades que as fundaram. As comunidades independentes era uma característica dos helenos. A polis, como era chamada essa comunidade, se aproxima mais da nossa ideia de Estado do que de cidade. Ela não incluía todos os habitantes da cidade e cercanias. Consistia, antes, dos seus cidadãos: os guerreiros que defendiam a polis. Escra13


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vos, mulheres e artesãos estrangeiros, chamados de méticos, não podiam ser cidadãos. No início, muitas polis eram governadas por reis, os basileus4, mas os registros históricos mostram que a partir do século 7 a.C. elas já eram governadas por aristocratas, ou “pessoas melhores”5. Os aristocratas eram proprietários de terras, suficientemente ricos para possuírem armas, equipamentos de guerra e cavalos – o que os transformava em líderes militares. Com o desenvolvimento do comércio, artesãos estrangeiros se estabeleceram nas cidades, fazendo surgir uma próspera classe mercantil. As tensões sociais resultantes logo afloraram em conflitos. A partir de 650 a.C., os aristocratas tiveram de enfrentar os líderes populistas. Muitos deles foram bem sucedidos em assumir o controle das cidades. Eram os Tyrranoi6, ou tiranos, cujo significado original difere do seu sentido moderno. No século 6, os horizontes da civilização helênica já estavam bem definidos. As cidades de Atenas, Esparta, Corinto e Tebas emergiram como principais centros de influência. Elas controlavam as áreas rurais e pequenas aldeias ao seu redor. Atenas e Corinto tinham se tornado grandes potências marítimas e mercantis. Mas, no campo político, as rédeas estavam nas mãos de duas cidades rivais, Esparta e Atenas.


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A Vida nas Cidades Atenas tinha uma posição privilegiada no mundo grego do século 6 a.C. Em meados do século 7 a.C., o povo da cidade se rebelou, apoiado por uma nova classe intermediária de ricos comerciantes que exigia participação no governo. Através dos esforços de homens como Drácon, Sólon, Pisístrato e Clístenes, a aristocracia perdeu muitos dos seus privilégios e importantes avanços se amalgamaram na vida social e política de Atenas. Essas reformas acabaram culminando no estabelecimento da primeira democracia do mundo. O poder estava, agora, nas mãos de todos os cidadãos do sexo masculino. Em Atenas, o coração da cidade era uma grande praça, a ágora, onde havia um altar dedicado aos doze deuses olímpicos. Cercada de numerosos pórticos e de vários edifícios públicos, da ágora partiam as principais estradas da Ática. Na ágora ficava também o grande mercado de Atenas – o centro nevrálgico da cidade, onde se reuniam os cidadãos para discutir política, tratar de negócios ou assuntos legais7. O dia-a-dia em Atenas era bem simples. A maioria das pessoas tinha casas pequenas, feitas de argamassa fina, branqueadas de cal. As residências maiores tinham vários quartos, dispostos ao redor de um pátio central, para onde todas as janelas se abriam. A família patriarcal praticava, sob a direção do dono da casa, o culto religioso diário e o culto aos antepassados8.

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A ágora da cidade de Atenas (J. Bühlmann, 1881)

Quando algum membro da família morria, o corpo era exposto sobre um leito e depois enterrado. Sobre a sepultura, era erguida uma lápide de pedra, a estela, que, às vezes, era ornada com baixos-relevos representando as ocupações que o morto tivera em vida. No mês de fevereiro era celebrado o dia de finados. Nessa data, cada família deixava lugares vazios à mesa, em homenagem aos mortos. As mulheres só saiam para os festejos religiosos. No resto do tempo, permaneciam em casa, ocupadas com tarefas domésticas. Quando aparecia algum visitante, elas se recolhiam ao gineceu, a parte da residência reservada exclusivamente às mulheres. A maior parte das mulheres de Atenas recebia apenas educação básica. As mais educadas eram as hetairas9, ou cortesãs, que frequentavam escolas especiais. Já os homens passavam a maior parte do tempo fora de casa. Logo cedo, tratavam dos seus compromissos


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e negócios e, em seguida, dedicavam-se aos esportes, às conversas nos ginásios, ao cultivo das artes e às reuniões políticas. Os banquetes à noite eram comuns. Nessas ocasiões, os homens se reclinavam sobre divãs cobertos com almofadas e, apoiando o cotovelo em pequenas mesas, comiam, bebiam e se divertiam ouvindo música, poesia e assistindo a espetáculos de dança. As refeições cotidianas eram, porém, frugais. Quase sempre, consistiam de peixes ou aves, cereais, legumes, frutas, queijo, mel e vinho diluído em água. As roupas dos atenienses também eram muitos simples – outro reflexo de uma das principais características dos gregos: a praticidade. Semelhantes tanto para os homens como para as mulheres, eram panos retangulares de linho, no verão, e lã, no inverno, enrolados ao redor do corpo, preso aos ombros por alfinetes e à cintura por um cordão. Os atenienses, em particular, e os gregos, de modo geral, priorizavam o convívio e a conversa. Um antigo ditado recomendava: “seis horas diárias bastam para o trabalho; as restantes, dedica-as à vida10”. Esparta A cidade que dividia a liderança política da Grécia antiga com Atenas era sua rival Esparta. A aristocracia local garantiu o poder em aproximadamente 650 a.C., através da Constituição de Licurgo, que deu a Esparta um regime militar permanente e uma dupla monarquia. Esparta do-

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minava todas as outras cidades do Peloponeso, exceto Argo e Achaia. Esparta havia sido fundada pelos invasores dórios, que dominaram as populações primitivas. Como eram muito menos numerosos que os vencidos, os dórios tiveram de permanecer sempre bem organizados e militarmente disciplinados. Essa necessidade acabou resultando numa cultura diferente das outras cidades-estados gregas. Desde meados do século 6 a.C., os espartanos haviam se isolado completamente das outras polis, proibindo não só a entrada de estrangeiros na cidade, mas também a saída de seus cidadãos. A partir dessa época, Esparta foi mais um acampamento militar do que propriamente uma cidade. O objetivo da educação espartana era produzir disciplinados cidadãos-soldados dispostos ao sacrifício pessoal e voltados à simplicidade. A vida das pessoas não pertencia a elas, mas à cidade. Os meninos eram obrigados a deixar suas casas aos sete anos. A partir de então, viviam em quartéis supervisionados por uma hierarquia militar, de quem recebiam treinamento severo. Apesar de aprenderem a ler e a escrever na escola, esses conhecimentos não eram tidos como importantes. O principal objetivo era desenvolver a habilidade guerreira. Os meninos andavam descalços, dormiam no chão ou em camas duras e praticavam esportes. Aprendiam a ter orgulho de enfrentar a dor. Música e dança também faziam parte da educação espartana, mas seu caráter era absolutamente militar.


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Propositalmente mal alimentados, os meninos eram estimulados a roubar. Se fossem pegos, porém, eram severamente punidos. Um relato que sobreviveu até nossos dias dá conta de um garoto que havia roubado uma raposa viva, da qual pretendia se alimentar. Quando viu os soldados se aproximando dele, escondeu o animal debaixo das suas roupas. Ao ser interrogado, para não ser punido, ele deixou que a raposa o mordesse de tal forma que o feriu mortalmente, sem, no entanto, permitir que seu rosto traísse qualquer sinal de dor11.

Jovens Espartanos Exercitando-se, (Edgar Degas, c. 1860)

Entre 18 e 20 anos, os rapazes espartanos tinham de passar num difícil teste de resistência, habilidade militar e liderança. Os que passavam se tornavam soldados espartanos, mas aqueles que falhavam viravam perioikos, ou 19


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membro da classe dos mercadores e artesão que, embora pudessem ter propriedades e negócios, não tinham direitos políticos e não eram considerados cidadãos. Os cidadãos de Esparta não podiam sequer tocar em dinheiro. Isso era problema dos perioikos. Os cidadãos continuavam o serviço militar e a viver em quartéis até os sessenta anos, mesmo que fossem casados e tivessem família. Só depois dessa idade os soldados podiam se retirar do exército e viver com os seus. Com as mulheres as coisas não eram muito diferentes, mas paradoxalmente, Esparta era a cidade onde elas tinham mais liberdades em toda a Grécia antiga. Ao contrário das outras cidades-estado gregas, as meninas espartanas recebiam uma educação que ia além das artes domésticas. Seu treinamento não era muito diferente daquele dos meninos. A partir dos sete anos, viviam em quartéis e aprendiam a arremessar dardos, discos, táticas militares e a lutar. O duro treinamento, provavelmente igual ao dos meninos, vinha da crença de que mulheres fortes produzem filhos fortes. Aos 18 anos, elas eram submetidas a um teste de resistência física. As que passavam eram designadas a um marido. As que eram reprovadas, porém, perdiam o direito de cidadania e se tornavam perioikos. As espartanas, diferentemente das outras mulheres gregas, não eram confinadas às suas casas. Em Esparta, elas tinham liberdade de movimento e gozavam de grande liberdade, uma vez que seus maridos não viviam com elas, mas nos quartéis.


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Escravidão Um aspecto fundamental na Grécia antiga era a escravidão, influindo em praticamente todos os aspectos da civilização grega: da vida doméstica à famosa frota naval ateniense. Eram os escravos que forneciam a mão de obra que impulsionava a próspera economia grega. Havia nas cidades gregas, provavelmente, um número de escravos igual ao de cidadãos livres12. Alguns autores afirmam que um quarto da população de Atenas eram escravos13. Eles serviam em todos os lugares: nas casas, lojas, fábrica, minas, navios. Até a força policial de Atenas era constituída de escravos. Suas vidas não diferiam muito das vidas dos gregos mais pobres. Havia diversas maneiras diferentes através das quais se tornava um escravo no mundo grego. Os filhos dos escravos já nasciam nessa condição, mas muitos eram prisioneiros de guerra, escravizados quando sua polis foi tomada. Outros eram abandonados ainda bebês, nas portas das cidades, por pais que não os desejavam. Muitas famílias necessitadas também vendiam seus filhos como uma forma de sobreviver. Em geral, as filhas, menos úteis que os filhos, é que eram vendidas. Os escravos eram tratados de forma diferente, dependendo do trabalho que realizavam. Os domésticos eram, em geral, tidos praticamente como membros da família e podiam participar dos sacrifícios e rituais familiares. Eram supervisionados pela dona da casa, que procurava mantêlos ocupados o tempo todo. No entanto, mesmo os escra21


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vos domésticos não podiam frequentar os ginásios ou a Assembleia Pública. Não podiam usar seu próprio nome, mas apenas aquele dado pelos seus amos. Ao contrário dos escravos domésticos, os designados para trabalhar nas minas ou como tripulantes de navios tinham uma vida dura e perigosa. Dificilmente sobreviviam muito tempo. Quase sempre, esses escravos eram criminosos condenados à morte. A Expansão dos Gregos No período clássico (500 – 338 a.C.), a civilização grega atingiu seu apogeu. As cidades-estados se uniram para enfrentar os persas, os senhores do maior império da época. Os persas haviam tomado várias colônias gregas na Ásia Menor, deflagrando as Guerras Persas (492 – 490 e 480 – 479 a.C.). Os gregos se uniram para por um fim à ameaça. Os atenienses bateram os persas em Maratona, Salamina e Plateia, enquanto os espartanos foram vencidos nas Termóplitas. Afastado o perigo da invasão persa e buscando garantir sua soberania, as cidades gregas se uniram na Liga de Delos, sob a liderança de Atenas. Por conta da liderança da liga, Atenas passou a controlar todo o Mediterrâneo e as rotas de abastecimento da Ásia. Por conta disso, as cidades gregas sentiram-se ameaçadas com o crescente imperialismo econômico ateniense. Corcira, uma colônia da cidade de Corinto, o segundo centro comercial da Grécia, foi apoiada militarmente por Atenas para resolver um conflito com a metrópole. Corinto, por sua vez, pediu ajuda de Esparta. Organizando a Liga do


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Peloponeso, Esparta aliou-se a Corinto, Mégara e Tebas. Foi o começo das guerras do Peloponeso (431 – 421 e 415 – 404 a.C.), que acabou com a vitória de Esparta e seus aliados sobre Atenas. Durante trinta anos, de 404 a 371 a.C., Esparta impôs seu domínio às cidades gregas. A dureza do regime espartano, porém, provocou novas lutas internas. Tebas conseguiu vencer o exército de Esparta e, entre 371 e 362 a.C., impôs seu próprio domínio sobre a Grécia. A hegemonia tebana, por sua vez, provocou novos conflitos, e uma coligação de cidades acabou por enfrentar Tebas e derrotá-la. As cidades gregas ficaram enfraquecidas com a guerra do Peloponeso e as sucessivas lutas que se seguiram, o que levou Felipe da Macedônia a dominar toda a Grécia (338 a.C.). Os macedônios, embora fossem um povo de raça helênica, eram bem menos adiantados. Felipe discordava dos regimes políticos independentes das cidades-estados gregas e conseguiu unir toda a Grécia – exceto Esparta – sob sua coroa. O próximo passo planejado por Felipe era atacar o império persa, mas ele foi assassinado antes de realizar seu intento. Ao filho de Felipe, Alexandre, coube a conquista do império persa. Em dez anos de campanhas fulminantes – entre 333 e 323 a.C. –, Alexandre expandiu a cultura helênica da península grega à Índia.

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Alexandre na Batalha de Isso, 333 a.C. (mosaico romano séc. 1 d.C.)

Quando Alexandre morreu inesperadamente em 323 a.C., sem deixar sucessores, seu império começou a se fragmentar em reinos governados por monarcas todopoderosos. A nova instituição política marcou o fim das cidades-estado gregas, o que fez com que muitos gregos emigrassem para os novos reinos, fundindo sua cultura à oriental. A partir de então, os modos e maneiras helênicos dominaram o mundo.


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Notas do Capítulo

1 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, 2000, p. 150 2 – Um Estudo Crítico da História – Helio Jaguaribe, Paz e Terra, 2001, p. 183 3 – A Shorter History of the World – J.M. Roberts, p. 175 4 – Ibid. 5 – Ibid., p. 177 6 – Ibid. 7 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda, Companhia Editora Nacional, 1977, p. 74 8 – A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes, 2000, p. 15 9 – Greeks - Encyclopædia Britannica, 2006, in www.britannica.com 10 – História da Civilização – Sérgio Buarque de Hollanda, p. 76 11 – Daily Life in Ancient Greece, www.members.aol.com/Donnclass/Greeklife.html 12 – Encyclopedia Britannica Online, 25

in


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13 – Everyday Life in Ancient Greece, 4th Century BC, EyeWitness to History, www.eyewitnesstohistory.com (2001).


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2 A Religião Grega

O

s gregos, como todos os povos antigos, eram profundamente religiosos. Em sua visão, o universo espiritual permeava todos os aspectos da vida. Qualquer atividade tinha uma implicação mística. O historiador Helio Jaguaribe se refere a isso ao afirmar que a religião da Grécia “se mantém dentro dos limites da ideia imanente do divino”1. Através da guerra conquistava-se honra e glória, o que divinizava os homens; as artes e ofícios promoviam conhecimento e sabedoria; o cultivo da terra revelava os mistérios da Vida; a família mantinha estreito contato com os ancestrais mortos. Tudo o que se fazia, por mais corriqueiro que fosse, estava imbuído do sagrado. O mistério que envolve todas as coisas e ações era representado através de mitos, ou “metáforas”, conforme o mitologista americano Joseph Campbell2. Assim, a luz da ciência e da música era Apolo, o conhecimento técnico que conduz à sabedoria, Atena, a mágica que faz a semente brotar, De27


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méter, e os ancestrais a tudo assistiam. Na visão grega, deuses, daemons, demônios e forças da natureza regiam o Cosmos, isto é, a “ordem sagrada das coisas”. A religião dos gregos era um amálgama de diferentes conceitos e práticas. Segundo Hélio Jaguaribe, ela era constituída de cinco níveis distintos. O primeiro era o nível das famílias, isto é, dos deuses domésticos e do culto dos antepassados; o segundo, o nível cívico dos deuses das cidades. Depois havia o nível mitológico do Olimpo, a religião dos mistérios e o nível filosófico3. Tantas camadas teológicas resultaram no fato de os gregos não possuírem um conjunto claro de doutrinas, nem igreja, nem clero. Possuíam, antes, sacerdotes e adivinhos, com funções mais restritas do que um membro do clero de outra cultura teria; possuíam mitos, crenças e visões de mundo que buscavam exclusivamente explicar a profunda experiência humana. Lançavam-se devotadamente na procura pela interrelação com o sagrado, o misterioso. Interagiam com os antepassados e os deuses por meio de rituais. A crença na vida após a morte, o rito do fogo sagrado, as iniciações nos “Mistérios”, onde o segredo da existência era revelado ao aprendiz através da sabedoria expressa nos processos naturais de germinação, crescimento, morte e renascimento – presentes em tudo, da vida das plantas ao ciclo das estações. Os sacerdotes e adivinhos gregos interpretavam presságios e, consultando oráculos, ouviam as mensagens dos deuses – deuses especiais. Embora fossem cultuados em todo o mundo grego irrestritamente, cada cidade tinha seu deus ou deusa nacional, homenageado


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em festivais nos quais os rituais religiosos e sacrifícios se mesclavam com jogos e atuações teatrais4.

Iniciação nos Mistérios (detalhe de afresco romano, sec. 1 d.C.)

Apesar de a religião grega ser a sedimentação final de um processo sincrético que fundiu as religiões indo-europeias com as crenças anteriores da Grande Deusa e, mais tarde, asiáticas e egípcias5, o cerne da sua herança religiosa é composta basicamente pela interação de duas mitologias: a herança pré-homérica da Idade do Bronze e a mitologia olímpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Em seu livro O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, o filósofo Friedrich Nietzsche afirma: “a glória da visão trágica grega está no reconhecimento da reciprocidade dessas 29


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duas ordens de espiritualidade, nenhuma das quais oferece individualmente mais do que uma experiência parcial do valor humano”6. A Religião Doméstica Nos estratos mais antigos da herança religiosa e que veio a constituir a mitologia clássica está a crença na vida após a morte e o culto aos ancestrais. O historiador Fustel de Coulanges relata que “as mais antigas gerações (dos gregos), muito antes ainda da existência dos filósofos, acreditavam já em uma segunda existência passada para além desta nossa vida terrena. Encaravam a morte não como uma decomposição do ser, mas como simples mudança de vida”7. Mas ao contrário da teoria de metempsicose, que sustenta que o espírito evade um corpo para dar vida a outro, ou da moderna crença de que a alma passa a habitar as regiões celestiais depois de uma vida virtuosa, os gregos diziam que a alma permanece na terra, perto dos homens. Acreditavam, também, que a associação entre o espírito e o corpo continuava, mesmo depois do sepultamento. Por isso, os objetos necessários, como roupas e armas, eram enterrados juntos com o morto. “Derramavase vinho sobre o seu túmulo para lhe mitigar a sede; deixavam-lhe alimentos para apaziguar sua fome; degolavamse cavalos e escravos pensando que estes seres, enterrados com o morto, o serviriam no túmulo, como o que haviam feito durante a sua vida”8. As oferendas eram repetidas em dias específicos ao longo do ano. Os túmulos gregos tinham até mesmo um local destinado à imolação da


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vítima e à colocação da sua carne – alimento exclusivo do morto. No seu A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges cita um texto de Píndaro (518 – 438 a.C.) sobre essa antiga crença dos gregos. Trata-se da história de Frixo que, fugindo da Grécia pela madrasta que o queria matar9, morreu em Cólquida. No entanto, mesmo morto, Frixo desejava ardentemente voltar à sua terra natal. Seu espectro apareceu, então, a Pélias e lhe pediu que fosse à Cólquida para dali trazer sua alma de volta à Grécia. “Sua alma sentia sem dúvida a saudade do solo pátrio, do túmulo da família; mas vivendo ligada aos seus restos corporais, evidentemente que não poderia abandonar a Cólquida sem os trazer consigo”10. Essa crença implica da necessidade de se construir uma sepultura, um lugar de repouso para a alma. Do contrário, ela passaria a vagar errante, na forma de larva ou como fantasma, em busca de um local de descanso. Sem receber oferendas e alimentos de que precisa, cedo ou tarde essa alma se torna má e passa a atormentar os vivos, enviandolhes doenças e os assombrando como forma de reivindicar uma tumba. Não era pela dor da perda que se enterrava o morto e se realizava cerimônias fúnebres, mas para apaziguar a alma. Temia-se menos a morte do que a privação da sepultura. Independentemente dos seus atos em vida, os gregos acreditavam que os mortos se tornavam “deuses subterrâneos”, os manes. Os túmulos, com seus altares sacrificais, eram os templos dessas divindades. Coulanges sustenta 31


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que o culto aos mortos é a primeira manifestação de religiosidade não só dos gregos, mas de todos os povos indoeuropeus. “Antes de conceber e de adorar Indra ou Zeus, o homem adorou os seus mortos; teve-lhes medo e dirigiulhe preces. Parece que o sentimento religioso do homem começou com este culto. Foi talvez por ver a morte que o homem pela primeira vez teve a ideia do sobrenatural e quis tomar para si mais do que lhe era legitimo esperar da sua qualidade de homem. A morte teria sido o seu primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou seu pensamento do visível ao invisível, do transitório ao eterno, do humano ao divino”11. Com a evolução da civilização grega, porém, o destino imaginado da alma sofreu alterações. Os gregos conceberam uma região subterrânea, mas infinitamente maior do que o túmulo, aonde todas as almas iam viver juntas, recebendo penas e recompensas conforme a conduta que tiveram em vida. Esse lugar era o Hades, onde os mortos se transformavam em sombras imateriais. Os bons passeavam pelos os Campos Elíseos, mas sem qualquer poder12. Outra corrente sustentava que o espírito imortal teria um destino melhor ou pior, depois da morte terrena, conforme o morto fosse ou não um iniciado na religião dos mistérios. Alguns filósofos sofisticaram esse conceito, associando o destino da alma após a morte às virtudes e qualidades que a pessoa praticou em vida. No período helenístico, essa ideia se popularizou e preparou o terreno para a concepção cristã do Paraíso e do Inferno.


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O Fogo do Lar Além do culto aos antepassados, outro aspecto importante da religião doméstica dos gregos é o culto ao Fogo Sagrado. Toda casa grega possuía um altar, onde o chefe da família tinha a obrigação de conservar acesso o Fogo Sagrado. As chamas deveriam ser alimentadas apenas com a madeira de árvores santificadas. Oferendas de flores, frutos, incenso, vinho eram feitas ao Fogo, enquanto a ele se pedia proteção, saúde, riqueza e felicidade. O Fogo era a divindade soberana do lar, a Providência da família. Era, enfim, um poder tutelar, cuja importância era tão grande que, quando se rezava a um deus qualquer, começava-se e acabava-se com uma prece ao Fogo do Lar. Os Jogos Olímpicos – a mais sagrada celebração de toda a Grécia – eram iniciados com um sacrifício ao Lar. Só depois se sacrificava em honra a Zeus13. O Fogo representava para os gregos o ser invisível e divino que há em nós, a força moral e pensante que anima e conduz nossas ações. Era o Lar quem presidia as refeições. Ele é quem preparava e transformava o alimento. Por isso, antes de comer, depositava-se sobre o altar um pouco de alimento, e antes de beber, vertia-se vinho sobre o Fogo. Era a parte do deus. Também se fazia uma oração no começo e outra no final de cada refeição. Através do alimento, o homem e o deus entravam em comunhão.

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Os Olímpicos Além desses traços da religião grega, há ainda a característica mais notória desse corpo de crenças: a mitologia olímpica, repleta de autoconhecimento humanístico. Fustel de Coulanges distingue “duas religiões” entre os gregos. A primeira tomou seus deuses da alma humana e a segunda da natureza física14. As duas correntes acabaram se amalgamando e se complementando, embora o culto dos deuses do Olimpo e o dos mortos nunca tenham tido nada em comum.

Tétis apelando a Zeus (Stanislaw Wyspianski, c. 1896)


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Com a evolução da religião grega, os deuses concebidos a partir da crença da vida após a morte foram personificados, receberam nomes e forma humana. O Fogo do Lar não fugiu à regra. Encarnado numa divindade feminina, passou a se chamar Héstia. Surgiu também o culto aos heróis. Homens excepcionais eram divinizados como forma de reconhecimento público e exemplo a ser seguido, com templos e sacerdotes a serviço da sua memória. A religião da natureza, personificada nos mitos, também se desenvolveu através dos tempos, modificando pouco a pouco sua literatura e doutrinas. De modo geral, os deuses habitavam o monte Olimpo, inclusive os deuses cósmicos, divindades menores, como as musas e as ninfas, e os mortos divinizados, os heróis. Contudo, os deuses olímpicos eram apenas doze, cada qual com uma área especial de influência, com atributos correspondentes a esse poder. Zeus era a divindade suprema; seus irmãos, Posêidon e Hades, eram senhores do mar e do reino dos mortos; Ares controlava a guerra; Ártemis, as florestas e os animais selvagens; Demeter fazia os grãos brotarem; Hefestos, o deus do fogo, da forja e dos ferreiros; Atena, a deusa do conhecimento; Hera, esposa de Zeus e deusa do casamento e da maternidade; Hermes, o mensageiro dos deuses; Dionísio, o deus do vinho e do êxtase; Apolo, também chamado de Febo, era o deus das artes, da saúde e das profecias; Afrodite, a deusa do desejo. Alguns autores incluem Héstia, a personificação do Fogo do Lar, entre os deuses olímpicos, mas as opiniões são divergentes quanto a isso. 35


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A Religião dos Mistérios A religião dos mistérios representa uma das dimensões mais importantes da religiosidade grega. Tratava-se de ritos de iniciação secretos. Estreitamente ligados às ideias de vida após a morte, de modo geral, pretendiam assegurar uma existência feliz após a passagem terrena15. Havia três principais mistérios na Grécia, os eleusinos, os dionísicos e os órficos. Os mistérios eleusinos eram praticados em honra a Demeter, inicialmente na cidade de Eleusis. Seus ritos fazem referência aos esforços que Demeter empreendeu à procura de sua filha, Perséfone, raptada por Hades. O mistério celebrava a morte como garantia da vida, assim como a semente que “morre” – ou seja, é enterrada e desce aos infernos – para gerar uma nova planta. Os mistérios dionísicos celebravam os poderes de êxtase de Dionísio. De acordo com o mito órfico, o homem era um composto das cinzas de Dionísio e dos Titãs. A alma, o “fator Dionísio”, era divina, mas o corpo, o “fator Titã”, a prendia16. Os mistérios celebravam a imortalidade da alma, ritualizando a morte e a ressurreição de Dionísio17. Esses ritos incluíam a ingestão de carne crua e o casamento sagrado, ou Hiero Gamos. Os mistérios órficos, que teriam sido fundados por Orfeu, eram mais complexos. Joseph Campbell afirma que Orfeu remonta os períodos mais arcaicos da cultura grega18. Os


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mistérios órficos envolviam toda uma literatura e uma visão doutrinária, além dos rituais. Os praticantes deviam seguir um padrão ético elevado, o que aproximava o orfismo do cristianismo. Os órficos acreditavam na metempsicose (isto é, na transmigração da alma de um para outro corpo), e nas punições e recompensas que a alma recebia após a morte, conforme seus méritos em vida.

Morte de Orfeu (Albrecht Durer, 1494)

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Os conceitos órficos acabaram se desdobrando nos ensinamentos de filósofos como Pitágoras – que combinava uma religião mística baseada na crença da metempsicose com uma sofisticada competência matemática – e Platão – que propôs que as essências, isto é, as ideias, representadas precariamente no mundo sensível, são, de fato, a realidade efetiva. A filosofia passou a explorar as concepções religiosas em outro nível, mais racional, que, com o passar do tempo, foi se aproximando cada vez mais daquilo que hoje entendemos como ciência. Conforme o filólogo Werner Jaeger (1888 – 1961), “precisamos interpretar o crescimento da filosofia grega como um processo pelo qual as concepções religiosas originais do universo, a concepção implícita no mito, foram crescentemente racionalizadas” 19 . A Religião das Cidades Assim como o altar doméstico reunia à sua volta os membros da família, também a cidade era uma reunião de homens que tinham os mesmos deuses protetores e cumpriam o ato religioso no mesmo altar. Cada polis tinha o seu hestia patroi20, sua divindade patronal, quase sempre um deus olímpico, como acontecia em Atenas com Atena e em Argos e Samos com Hera. No entanto, apesar dos nomes iguais, as divindades não eram as mesmas. A Hera de Argos tinha atributos diferentes da Hera de Samos. Dessa forma, o hestia patroi era exclusivo de cada cidade. “A urbe que possuía uma divindade sua não queria que esta protegesse os estrangeiros,


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tampouco permitia que a deusa fosse adorada por estes estrangeiros”, escreveu Fustel de Coulanges21. Quase sempre, um templo só era acessível aos cidadãos daquela polis. Para se entrar no templo de Atena, em Atenas, por exemplo, era imprescindível que se fosse ateniense. Cada cidade tinha, também, seu corpo de sacerdotes. Eles, porém, não mantinham qualquer ligação com os sacerdotes de outra urbe. Não havia comunicação ou troca de preceitos ou de rituais. Cada cidade tinha o seu conjunto de orações e práticas, sempre mantidas em segredo. Assim, o nível cívico da religião era totalmente local, particular, em cada cidade. Os cidadãos só respeitavam e honravam os deuses da sua polis, nada temendo ou devendo aos de outra cidade. Para que o deus velasse somente por uma determinada cidade, era indispensável que recebesse seu culto somente dela. Sendo honrados só por essa cidade, esperava-se que o deus fizesse favores somente àquele povo. Do deus cívico, esperava-se proteção. Apenas ele ou ela era invocado em caso de perigo. Os cidadãos garantiam isso através de intermináveis oferendas depositadas no templo do seu hestia patroi. O culto consistia em alimentar o deus com tudo o que lhe agradasse os sentidos: carnes, bolos, vinho, perfumes, vestidos, joias, dança e música. Em troca, a divindade deveria garantir benefícios e proteção. Se a cidade fosse derrotada em uma guerra, a culpa era do deus, que não cumpriu seu dever de defensor da cidade. Frequentemente, tinha seus templos e altares destruídos pelos cidadãos. Se a cidade fosse vencida, a39


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creditava-se que os seus deuses também haviam sido vencidos e, consequentemente, se tornavam cativos. Outra visão atesta que, se a cidade foi vencida, é porque seus deuses a abandonaram, mudando-se dali. Muitos acreditavam, ao tentar invadir uma cidade, que era preciso antes fazer com que o deus abandonasse a cidade. Para tanto, eram empregadas invocações especiais, as quais o deus não poderia resistir. Em muitas ocasiões, em vez de usarem a fórmula para atrair o deus, os gregos preferiam roubar sua estátua. Por isso, os sitiados as escondiam cuidadosamente. Algumas vezes, eles prendiam a estátua do deus protetor com correntes para que ele não desertasse. Havia, também, festas religiosas das quais faziam parte jogos e competições atléticas, procissões e espetáculos musicais e teatrais. Em Atenas, por exemplo, celebrava-se as Panateias, em honra a Atena, e as Dionísicas, em honra a Dionísio. Havia também festas que eram realizadas em santuários pan-helênicos, isto é, comum a todos os gregos. A mais famosa delas eram os Jogos Olímpicos, celebrados de quatro em quatro anos na cidade de Olímpia, em honra a Zeus. Sua importância era tal, que os primeiros Jogos Olímpicos marcavam o início do calendário grego.


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Notas do capítulo Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, Paz e Terra, São Paulo, 2001, p. 324 The Power of Myth – Joseph Campbell, Anchor Books, New York, 1991, p. 67. Um Estudo Crítico da História –p. 325 A Shorter History of the World – J.M. Roberts, Ediouro, Rio de Janeiro, 2000, p. 183 Um Estudo Crítico da História –p. 324 citado em The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 141 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 7 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9 Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix, São Paulo, 1993, p. 157 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 9 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 18 Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 328 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 24 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 127 41


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Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 327 The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Campbell, p. 183 The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books, New York, 1981, i p. 324 The Masks of God – Occidental Mythology, Joseph Campbell, p. 184 citado em Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 330 Um Estudo Crítico da História – Hélio Jaguaribe, p. 325 A Cidade Antiga – Fustel de Coulanges, p. 161


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3 Cosmogonias

H

á dois autores fundamentais na compilação e preservação da mitologia grega. Um deles é Homero (século 8 a.C.), o lendário rapsodo que seria o autor da Ilíada e da Odisseia. Nas duas obras, Homero menciona detalhes do relacionamento entre os homens e os deuses, além de outros aspectos da tradição religiosa grega. Hesíodo (século 8 a.C.), tido como o “pai da poesia didática grega”1, é o outro autor fundamental. O poeta detalha em sua obra Teogonia (cerca de 750 a.C.) os poderes e atributos dos deuses e a cosmogonia mitológica concebida pelos gregos. Mais que uma coleção de histórias fantásticas sobre a origem e a evolução do Universo, trata-se de uma tentativa de se estabelecer uma visão da natureza e da realidade. O Mito de Criação dos Pelasgos No princípio, tudo o que havia era o Caos – a possibilidade de vir a ser do universo. Então, Eurinome, a Deusa de To43


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das as Coisas, emergiu nua do Caos. Como não tivesse onde apoiar seus pés, Eurinome separou o mar do céu, e se pôs a dançar solitariamente sobre as ondas. Ela dançou em direção ao Sul, criando o vento com seu movimento. Dançando e rodopiando, Eurinome segurou o vento e o esfregou entre as mãos, criando a grande serpente Ofião. Eurinome continuou sua dança, girando cada vez mais rapidamente para se aquecer, até que Ofião – o princípio masculino – foi tomado de desejo e se enrodilhou no sagrado corpo da deusa para amá-la. Grávida da semente de Ofião, Eurinome se transformou numa pomba, e botou o Ovo Universal sobre as ondas do mar cósmico. Ao comando da deusa, Ofião se enrodilhou ao redor do ovo, dando sete voltas ao redor dele com seu corpo. Assim, o ovo foi chocado, partindo-se em duas metades. Desse ovo universal, saíram todas as coisas existentes: o sol, a lua, as estrelas, os planetas e a Terra, com seus rios, mares, montanhas, árvores, plantas e criaturas vivas – os filhos da grande deusa Eurinome. Depois disso, Eurinome criou os sete poderes planetários, cada um deles sob o comando de um titã e de uma titânia. Em seguida, nasceu o primeiro homem – Pelasgo, ancestral dos pelasgos. Ele brotou do chão da Arcádia, junto com outros homens, a quem Pelasgo ensinou a construírem choupanas, a cultivar grãos e a fazer roupas de pele de porco2.


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O Mito de Criação Órfico Os seguidores de Orfeu ensinavam que a Noite, uma deusa a quem até mesmo Zeus respeitava profundamente, foi cortejada pelo Vento. Repleta do amor do deus, Noite botou um ovo de prata no útero da Escuridão. Quando o ovo chocou, dele saiu Eros – o deus Amor, que colocou o universo em movimento. Eros tinha os dois sexos, asas douradas e quatro cabeças. A deusa Noite, manifestandose na tríade Noite, Ordem e Justiça, vivia numa caverna com seu divino filho. Eros criou, então, a Terra, o céu e a Lua. Mas era a deusa tripla, mãe de Eros, quem governava o Universo, até que passou o cetro de poder a Urano. O Mito de Criação Olímpico No princípio, Gaia, a Mãe Terra, emergiu do Caos e, enquanto dormia, deu à luz seu filho Urano. Observando a mãe do alto das montanhas, Urano se encheu de desejo e verteu sobre ela uma chuva fértil que a fez se cobrir de filhos: ervas, flores, árvores, animais, aves e insetos. A mesma chuva fez surgir rios, lagos e oceanos. Então, Gaia gerou seus primeiros filhos de forma semi-humana. Briraeu, Giges (ou Egeon) e Coto eram gigantes de cem braços e cinquenta cabeças, os hecatônquiros. Em seguida, a Mãe Terra teve Bronteu, Estérope e Argeu, ciclopes de um lho só, que correspondem ao trovão, ao relâmpago e ao raio3. Urano logo se desentendeu com seus filhos e os aprisionou no Tártaro, um lugar sombrio no Mundo subterrâneo, tão distante da Terra, como esta é do céu. Depois, engra45


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vidou sua mãe-esposa novamente. Dessa vez, Gaia deu à luz os titãs, seis do sexo masculino – Oceano, Ceos, Crio, Hiperião, Jápeto e Crono – e seis, do feminino. Eram seres monstruosos e, à medida que nasciam, Urano os encerrava nas profundezas da Terra. Gaia, como toda mãe, não se conformou com o destino que o filho-marido reservou à sua prole e imaginou uma forma de se vingar de Urano. Do próprio seio, Gaia tirou o aço com o qual, ajudada pelos filhos, forjou uma foice. Com a arma, Gaia incitou os titãs e se voltarem contra Urano. No entanto, eles estavam por demais apavorados para lutar contra seu poderoso pai. O único que tomou a foice e enfrentou Urano foi Crono, o filho caçula. Enquanto Urano dormia, Crono se aproximou sorrateiramente e o castrou, agarrando os genitais com a mão esquerda e os lançando ao mar junto com a foice. Algumas gotas do sangue de Urano caíram sobre Gaia, e ela gerou, ainda, as três Erínias, as Fúrias que castigam os crimes que perturbavam a ordem social e, principalmente, a família: Aleto, Tisífone e Megera. Os titãs libertaram, então, os ciclopes e os hecatônquiros do Tártaro e fizeram de Crono soberano da Terra. Vendo-se como senhor supremo da Terra, Crono tomou como companheira sua irmã Reia e, temendo resistência ao seu poder, tornou a encarcerar os ciclopes e os hecatônquiros no Tártaro.


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A castração de Urano – Giorgio Vasari, c. 1560 (detalhe)

Crono é Destronado A posição de Crono, porém, não era segura. Enquanto agonizava, Urano havia profetizado que Crono seria destronado por um dos seus próprios filhos – exatamente como ele havia feito com o pai. Gaia também previra a mesma coisa. Temendo o mesmo destino de Urano, Crono passou a devorar os filhos que gerou em Reia. Primeiro foi Héstia, depois Deméter e Hera; finalmente, Hades e Poseidon. E como sua mãe Gaia antes dela, Reia se enfureceu com o tratamento que Crono dedicou aos seus filhos. Guardou em segredo sua nova gravidez e, retirando-se para um lugar ermo, na calada da noite, teve Zeus. Reia banhou seu filho no rio Neda e entregou a criança aos cuidados da sua avó. Depois disso, ela enrolou cueiros em uma pedra e a deu ao irmão-marido. Crono pensou tratar de um dos seus filhos e engoliu a pedra sem titubear.

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Gaia por sua vez levou o pequeno Zeus a Lictos, na ilha de Creta, onde o escondeu numa caverna, sob a responsabilidade das ninfas Adrasteia, de sua irmã Io e da cabra Amaltéa. O berço de Zeus foi amarrado numa árvore, assim Crono não o encontraria nem na terra, nem no mar e nem no céu. Alimentado com mel e com o leite de Amalteia, Zeus era protegido pelos curetes, filhos de Reia. Para que Crono não ouvisse os choros da criança sagrada, os curetes batiam suas lanças nos escudos e gritavam enquanto executavam loucas danças de guerra. Zeus cresceu entre os pastores do Monte Ida. Quando chegou à idade adulta, traçou um plano para se vingar do pai. Com essa intenção, foi à procura da titânia Métis, a Prudência. Métis aconselhou Zeus a procurar Reia e a pedir sua ajuda para destronar Crono. E assim ele fez. Reia o colocou a serviço de Crono como seu copeiro e deu a ele uma poção para misturar à bebida do pai. Crono bebeu sofregamente e vomitou – primeiro a pedra que tinha engolido no lugar do filho e, em seguida, os irmãos e irmãs de Zeus. Eles saíram intactos das entranhas de Crono e pediram que Zeus os liderasse numa luta contra os titãs, os seguidores de Crono. Liderados por Atlas, pois Crono já estava velho para comandar uma guerra, durante dez anos os titãs se engalfinharam com Zeus e seus irmãos numa guerra pelo controle do Cosmos. A vitória não pendia a favor de nenhum dos lados. Mas Gaia profetizou que seu neto Zeus venceria a disputa, se ele se aliasse aos ciclopes e hecatônquiros, traiçoeiramente presos no Tártaro por Crono.


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Crono devorando seu filho (Peter Paul Rubens, c. 1630)

Audaciosamente, Zeus desceu ao Tártaro e matou Campê, a monstruosa carcereira dos ciclopes e hecatônquiros. De posse das chaves da prisão, Zeus libertou seus novos aliados e os fortaleceu, alimentando-os com comida e bebida divinos. Em gratidão, os ciclopes deram a Zeus e seus irmãos armas com as quais poderiam vencer a luta. Zeus recebeu o raio; Hades, um capacete de invisibilidade; e Poseidon, um tridente. Os três irmãos se reuniram num conselho de guerra e estabeleceram um plano. Invisível com seu capacete, Hades entrou nos aposentos de Crono e roubou suas armas. Então, surgiu Poseidon, ameaçando-o com o tridente. Distraído por Poseidon, Crono não percebeu Zeus, que o acertou com um raio. Os 49


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hecatônquiros também entraram em cena, arremessando saraivadas de pedras com seus cem braços sobre os titãs que ainda combatiam. Sem conseguir resistir ao ataque de Zeus e de seus aliados, os titãs foram derrotados. Crono e seu exército acabaram encarcerados no Tártaro e vigiados pelos hecatônquiros. Atlas, o líder das forças inimigas, recebeu um castigo exemplar. Por toda a eternidade, ele tinha de sustentar o céu sobre seus ombros. Os três irmãos vencedores dividiram entre si o poder sobre o mundo. A Hades coube o mundo subterrâneo; a Poseidon, o mar; e Zeus passou a reinar sobre o céu. A vitória de Zeus e de seus irmãos marcou o alvorecer de um novo tempo – a era dos olímpicos.


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Notas do capítulo 1 – Hesiod – Encyclopædia Britannica. 2006. Encyclopædia Britannica Premium, in www.britannica.com/eb/article9040276 2 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London, 1984, p. 10 3 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix, São Paulo, 1993, p. 104

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4 Os Deuses

Z

eus, o Pai do Céu, chamado de Júpiter pelos romanos, é o senhor do raio e do trovão. Foi Zeus, depois da vitória sobre seu pai Crono, quem ordenou os corpos celestes, promulgou leis, presidiu sobre juramentos e estabeleceu os oráculos. É ele quem mantém a ordem e a harmonia do mundo. Deus supremo do panteão helênico, Zeus reúne em si todos os atributos divinos. Dispensador do bem e do mal, Zeus era também piedoso. Amante viril, gerou muitos filhos em deusas, musas e mulheres mortais. Sua primeira aventura amorosa foi com Métis, a titânia. Zeus se apaixonou por Métis quando foi pedir a ela a poção que fez Crono vomitar seus filhos intactos. Métis, porém, procurou fugir de Zeus, assumindo diferentes formas. Mas Zeus finalmente conseguiu dominá-la, fez dela sua mulher e a engravidou. Um oráculo de Gaia, a Mãe Terra, previu que a criança seria uma menina e que, mais tarde,


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Métis conceberia um menino, que destronaria Zeus da mesma forma como ele havia destronado Crono, e este Urano. Temendo seu futuro, Zeus seduziu Métis com palavras gentis, convidando-a se deitar com ele. Quando Métis se aproximou, porém, Zeus abriu sua boca e a devorou. Métis passou, então, a viver dentro da barriga do deus, de onde o aconselhava. Atena Depois de ter devorado Métis, Zeus foi acometido de uma terrível dor de cabeça. Seu sofrimento era tanto que o deus urrava de dor e de raiva, fazendo a Terra e o céu tremerem. Percebendo o desconforto de Zeus, Hemes, o mensageiro dos deuses, chamou Hefésto, o deus do fogo, e o persuadiu a abrir uma fenda no crânio de Zeus com seu martelo de ferreiro. Essas trepanações eram comuns na Antiguidade. Os cirurgiões egípcios eram mestres em abrir uma “janela” no crânio através da qual a doença sairia1. E assim fez Hefesto, aliviando imediatamente a dor de cabeça de Zeus. No entanto, não foi doença que saiu através da abertura no crânio do deus, mas a filha que ele havia gerado em Métis, a deusa Atena, que nasceu vestida e armada, dançando uma dança bélica e lançando brados de guerra que estremeceram o firmamento. Embora fosse uma deusa guerreira, Atena – cultuada em Roma como Minerva – não tinha prazer nas batalhas, mas sim na solução das disputas através da lei e de meios pacíficos. Ela trouxe civilização aos homens. Inventou a flauta, a cerâmica, o arado, a rédea, a carroça e o navio. Foi Atena 53


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quem ensinou aos homens a ciência dos números e todas as artes das mulheres. Embora fosse misericordiosa, Atena, guardiã e protetora dos heróis2, nunca perdia uma batalha, mesmo contra Ares, o deus da guerra.

Atena e Heracles (taça ática, c. 470 a.C.)

Muitos deuses e titãs desejavam Atena, mas ela desprezou a corte de todos eles e permaneceu virgem. Mesmo assim, ela acabou tendo um filho. Conta-se que certa vez, Atena pediu a Hefesto, o ferreiro dos deuses, que fabricasse armas para ela. Hefesto concordou, afirmando que faria o trabalho por amor. Atena não percebeu a intenção dissimulada nessas palavras e planejou visitar o deus do fogo


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na sua oficina infernal. Ao saber disso, Poseidon, senhor do mar, armou uma peça contra Hefesto. Disse-lhe que Atena queria ser possuída com selvageria. Hefesto acreditou em Poseidon, e assim que Atena entrou em sua oficina ele tentou violentá-la. A deusa se desvencilhou, mas não conseguiu evitar que Hefesto lançasse seu sêmen sobre sua coxa. Revoltada, ela se limpou com um pedaço de lã, que atirou em seguida no chão. O que Atena não contava é que, ao cair no chão, o sêmen de Hefesto engravidou Gaia, a Mãe Terra. Gaia se revoltou com a afronta e se manifestou, dizendo que não aceitaria qualquer responsabilidade sobre a criança. Movida de misericórdia, Atena adotou o bebê, a quem deu o nome de Erictônio. Para evitar que Poseidon soubesse do sucesso da sua trama, Atena encerrou Erictônio numa arca e o entregou às filhas do rei de Atenas, Cécrope, ele mesmo um filho de Gaia. Com o tempo, Erictônio, o filho adotivo de Atena, se tornou rei de Atenas, o primeiro a introduzir carros de guerra, o uso de dinheiro e as Panateneias, festas em homenagem a Atena. Zeus e Hera Reia havia confiado sua filha Hera, irmã mais velha de Zeus, reverenciada pelos romanos como Juno, aos cuidados das Horas – as divindades que representam as estações do ano –, depois de Hera ter sido vomitada por Crono. Zeus desejava a irmã. Dizem que o amor dele por Hera é muito antigo, do tempo em que Crono ainda reinava sobre o Universo.

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Depois de ter banido Crono, Zeus foi procurar Hera para cortejá-la. Zeus tentou seduzi-la de inúmeras formas, mas sem sucesso. Hera não se deixava impressionar. Finalmente, Zeus assumiu a forma de um passarinho – um cuco – ferido. Compadecida, Hera pegou a frágil criatura e a aninhou entre seus seios para aquecê-la. Foi então que Zeus voltou à sua forma original, e Hera, sentindo-se vexada, aceitou se casar com ele. Todos os deuses trouxeram presentes valiosos ao divino casal. Gaia presenteou a neta com uma macieira de frutos de ouro, que foi replantada no Jardim das Hespérides. A noite de núpcias de Zeus e Hera, em Samos, durou trezentos anos. Hera deu a Zeus três filhos: Ares, o deus da guerra, Hefesto, o deus do fogo, e Hebe, a Juventude. Algumas fontes, porém, sustentam que Hera gerou Hefesto sozinha, através de partenogênese. De acordo com essa versão, Zeus não acreditou na história. O desconfiado marido prendeu Hera numa cadeira mecânica de onde só a libertou depois que ela jurou pelo deus-rio Estige que tinha gerado Hefesto sem a ajuda de nenhum imortal ou mortal. Por ser a esposa do deus supremo, Hera era tida como a protetora dos maridos, mesmo vivendo em eterno conflito com Zeus. Hera não tolerava as infidelidades do esposo e frequentemente perseguia os filhos que ele teve com outras imortais e mortais. A paixão de Zeus era tão grande que o deus não havia poupado nem mesmo sua mãe, Reia. Prevendo os problemas que o desejo desenfreado do filho acarretaria, Reia o repreendeu. Zeus enfureceu-se e ameaçou violentar a mãe. A resposta de Reia veio na forma de


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uma serpente, na qual ela se transformou para se defender do filho. No entanto, Zeus fez valer sua ameaça: transformou-se numa serpente macho, enrodilhou em Reia e a amou. Essa foi sua primeira aventura extraconjugal. Depois, Zeus teve vários filhos com diversas amantes.

Zeus e Hera (Jupiter e Juno), Annibale Carracci, séc. 17

Certa vez, Hera o admoestou pelas suas infidelidades, e Zeus tentou justificar seu comportamento explicando que, quando ele e Hera compartilhavam o leito, a esposa – por ser da natureza das mulheres – tinha muito mais prazer do 57


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que ele. Hera não aceitou a explicação. Para resolver a disputa, os dois resolveram chamar o sábio Tirésias, que, embora nascido homem, já havia sido transformado em mulher e voltado a ser homem. “Se o prazer pudesse ser dividido em dez partes”, declarou o sábio na presença dos deuses, “eu daria nove partes à mulher, e somente uma ao homem”. Hera ficou tão enfurecida com o sorriso triunfante no rosto de Zeus que, como vingança, cegou Tirésias. Zeus, porém, se compadeceu de Tirésias e lhe deu a visão interior, isto é, o dom da profecia, e estendeu sua vida por sete gerações. Mas as disputas de Hera e de Zeus não se resumem somente a problemas de infidelidade. Dizem que o Poder é um dos maiores inimigos dos homens e dos deuses, pois tende a dominar quem o conquistou. O poder de Zeus acabou cegando-o, impedindo-o de ver qualquer coisa além da sua própria glória. Sua petulância se tornou tão intolerável que Hera – com ajuda de Poseidon, Apolo e de todos os outros olímpicos, exceto Héstia, tramou contra o marido. Cercando-o em sua cama, enquanto Zeus dormia, os imortais o amarraram com tiras de couro cru, de forma que ele não pôde se mover. Enfurecido, Zeus ameaçou eliminar a todos, mas os conspiradores haviam colocado o raio, sua arma, fora do seu alcance e apenas riram da situação do deus supremo. Enquanto celebravam a vitória, começaram a discutir quem sucederia Zeus, e conflitos começaram a aparecer. Tétis, a nereida, temendo que a discussão acabasse numa guerra entre os olímpicos, libertou Zeus. Ele, então, voltou sua fúria contra Hera, pois


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havia sido ela que liderara a rebelião. Como castigo, Zeus pendurou a esposa no teto do céu, com uma bigorna presa a cada tornozelo. Temendo Zeus, os outros deuses não se atreveram a tentar libertar Hera. Mas apesar do seu caráter instável Zeus gostava da esposa e, no final, resolveu libertá-la. Para tanto exigiu que os olímpicos jurassem que nunca mais se rebelariam, o que fizeram prontamente. Poseidon e Apolo também foram punidos. Enviados para servir ao rei Laomedonte, construíram para ele a cidade de Tróia3. Poseidon Depois de destronarem seu pai Crono, Zeus, Poseidon e Hades fizeram um sorteio para ver quem iria governar o céu, os mares e o mundo subterrâneo – a Terra seria comum aos três. Tirando a sorte no capacete de Hades, Zeus ficou com o céu, Hades com o mundo subterrâneo e Poseidon com o mar. Poseidon, embora menos poderoso do que Zeus, é igual ao irmão em dignidade. Em seu palácio submarino, Poseidon – venerado pelos romanos como Netuno – mantém estábulos repletos de cavalos brancos que, ao se aproximarem de uma tempestade, fazem-na cessar instantaneamente. Sua consorte é Anfitrite, a personificação feminina do mar. Com ela Poseidon teve três filhos, Tritão, Rodes e Bentesícime (certas fontes sustentam que o casal não gerou filhos). No entanto, Poseidon despertou tanto ciúme na esposa, como seu irmão Zeus provocou em Hera, gerando diversos filhos em diferentes amantes – quase todos 59


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violentos e cruéis. Algumas tradições registram que entre seus muitos rebentos, Poseidon também é o pai de uma das figuras mais conhecidas da mitologia grega, o cavalo alado Pégaso4.

Poseidon e Anfitrite, Jacob de Gheyn II (c. 1565 - 1629)

Ansioso por estender seus domínios à Terra, Poseidon racha ao meio montanhas, formando ilhas com os rochedos rolados para o mar. Por conta da ambição de aumentar seus domínios, Poseidon se desentendeu com muitos deuses. Certa vez enfrentou Atena numa disputa pela Ática. A lenda conta que o senhor do mar se apossou da Ática, fincando seu tridente na acrópole, em Atena. Imediatamente um poço de água salgada se abriu no lugar onde o tridente tocara. Dizem que o poço ainda está lá para ser visto. Tempos depois, durante o reinado de Cécrope, cujas


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filhas criaram o enteado de Atena, Erictônio, Atena tomou posse da Ática ao dar aos homens um presente melhor: ela plantou a primeira oliveira ao lado do poço. Encolerizado com a afronta, Poseidon surgiu rasgando o mar em sua carruagem dourada puxada por cavalos brancos e a desafiou para um combate singular. Zeus, porém, interferiu, ordenando que a disputa fosse resolvida pelo julgamento dos deuses. Como se tratava de um conflito entre seu irmão e sua filha, Zeus se absteve de votar. Os olímpicos se dividiram – todos os deuses apoiaram Poseidon, enquanto as deusas escolheram Atena. Assim, por uma diferença de apenas um voto, Atena teve direito de governar Atenas. Hades Hades, que em Roma era cultuado com o nome de Plutão, governa o mundo subterrâneo, o Tártaro, para onde vão os espíritos dos mortos. Os fantasmas chegam trazendo uma moeda, que piedosos parentes colocaram debaixo da língua do seu cadáver. Com esse dinheiro, eles pagam a Caronte, o barqueiro infernal, para atravessar o rio Estige, de fogo e lava. Os espíritos que não têm a moeda ficam eternamente esperando na margem. Uma vez do outro lado, os mortos passam pelo guardião do Inferno – o cão de três cabeças Cérbero – e entram no reino de Hades. Cérbero abana a cauda para os que entram, mas devora impiedosamente as almas que tentam escapar5.

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Hades e sua consorte Perséfone (taça ática, séc. 5 a.C.)

Na primeira região do Tártaro há um jardim triste, os Campos de Asfódelo, onde as almas esvoaçam sem rumo, como morcegos. Sua única alegria são as oferendas e os sacrifícios de sangue feitos a eles pelos vivos. Quando comem, esses fantasmas se sentem quase vivos de novo. Além desses campos está o Érebo – o Campo da Verdade, onde nem a mentira, nem a calúnia podiam se aproximar – e o palácio de Hades e de sua consorte, Perséfone. Aqui, as almas eram julgadas por três filhos que Zeus gerou em Europa, Minos, Radamanto e Éaco. As almas que não eram nem boas nem más deviam voltar aos Campos de Asfódelo; os fantasmas dos maus eram confinados no campo de punição do Tártaro; e os espíritos dos virtuosos passavam aos jardins dos Campos Elísios. Nessa região, banhada de


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sol e de luz, reinava uma primavera eterna. As almas dos bons que ali habitavam viviam em completo descanso, sempre jovens, sem qualquer perturbação ou dor. Dormiam sobre leitos de flores ou de relva macia. Os heróis que lá chegavam conservavam seus corpos e passavam seu tempo ouvindo os cantos de louvor que os poetas escreviam em sua homenagem. Hades dificilmente deixava seu palácio para visitar o mundo superior. Na verdade, ele mal sabia – e não se importava em saber – o que acontecia nos outros reinos. Seu bem mais precioso é o capacete que o torna invisível, um presente dos ciclopes quando ele e seus irmãos os libertaram do jugo de Crono. Hades também é senhor de todas as pedras e metais preciosos entranhados na terra. Perséfone e Deméter A consorte de Hades é uma das mais antigas e importantes personagens mitológicas. Perséfone, também chamada de Core e, pelos romanos, de Proserpina, era filha de Deméter – irmã de Zeus e deusa da terra cultivada – e sua história remete ao ciclo das plantas, que tanto influenciou as primeiras sociedades agrícolas. Em Roma, Deméter era celebrada como Ceres, nome que originou a palavra cereal. Conta-se que, numa manhã de sol, Perséfone colhia flores numa campina quando, de repente, a terra se abriu, e Hades surgiu numa carruagem reluzente. Hades se apaixonara pela sobrinha e pedira o consentimento de Zeus 63


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para se casar com ela. Zeus sabia que não podia concordar, pois magoaria a irmã se deixasse Hades levar Perséfone para viver com ele no sombrio submundo. Zeus, porém, também temia se desentender com o irmão. Por isso, ele disse a Hades que não poderia consentir, mas também não poderia proibi-lo de tomar Perséfone para si. Hades quis entender a resposta de Zeus como uma permissão e tratou de realizar o seu intento. Passando pela jovem deusa como um raio, Hades agarrou Perséfone e a levou consigo para as regiões infernais. Os berros da jovem encheram o ar, e Zéfiro, o Vento, carregou os gritos de desespero através do mundo. Deméter ouviu as súplicas da filha e, vestida de luto, saiu a sua procura. Ela cruzou rios, mares e montanhas em busca da filha perdida. No décimo dia, encontrou Hecate, a deusa Nutriz que concede o dom da prosperidade material. Hecate a levou a Hélios, o Sol. Hélios, a divindade que tudo vê, contou a Deméter sobre o rapto de Perséfone. Disse, também, que Hades tinha o consentimento de Zeus para fazer o que fez. Sentindo-se traída, Deméter jurou que só devolveria a fertilidade da terra depois que sua filha lhe fosse devolvida. Ela voltou, então, a vagar pelo mundo, proibindo as sementes de brotarem e as árvores de produzir. A mágoa de Deméter devastou a Terra. Os homens aravam os campos e os semeavam, mas nada nascia. As árvores frutíferas secavam. Não havia trigo, uvas ou olivas, e a humanidade começou a padecer. Ao saber disso, Zeus ordenou às moiras – as três irmãs que personificam o Des-


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tino – que fossem ter com Hades e o ordenassem a libertar Perséfone. O deus dos mortos concordou. Hermes, o mensageiro dos deuses e guia das almas, a levou à mãe. Deméter encheu-se de alegria ao ter a filha de volta. Sua felicidade se irradiou pelo mundo, devolvendo a fertilidade aos campos.

Demeter (cópia romana de original grego do séc. 4 a.C.)

Hades, porém, tinha um trunfo escondido. Ele havia determinado que Perséfone poderia voltar à superfície desde que ela não tivesse comido nada no Tártaro. Para garantir que Perséfone retornaria a ele, o apaixonado Hades havia dado a ela uma semente de romã antes que ela partisse. A jovem deusa teve, então, de voltar àquele reino sinistro. 65


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Uma vez mais Deméter se desesperou com a ausência da filha e amaldiçoou a Terra. Vendo aquele estado de coisas, Zeus, que a tudo ordena e harmoniza, interveio. O deus supremo decretou que Perséfone deveria passar um terço de cada ano com sua mãe e o restante do tempo com seu consorte, Hades6. Graciosa e misericordiosa, Perséfone é fiel a Hades. No entanto, ela não lhe deu filhos e, na verdade, prefere a companhia de Hecate à do marido. Tanto Perséfone como Deméter são personificações do grão. Deméter é a velha semente, produzida no ano anterior; Perséfone, por sua vez, é a semente plantada no outono e os brotos nascidos na primavera. O período em que a semente permanece sob a terra corresponde ao tempo que Perséfone passa com Hades no submundo7. Deméter também se apresenta de diferentes formas. A Deméter Negra personifica a terra improdutiva do inverno; a Deméter Verde é a deusa dos brotos; e a Deméter Amarela é a divindade da colheita. Apesar de as sacerdotisas de Deméter terem sido responsáveis por iniciar as noivas e os noivos nos segredos da alcova, a deusa não tinha nenhum consorte. Afrodite Afrodite – a Vênus dos romanos – surgiu das águas, nascida da espuma do mar, e, acompanhada de Amor e de Desejo, cavalgou as ondas numa concha até a Ilha de Chipre. O mundo nunca tinha visto nada como ela: a perfeição manifestada como mulher no apogeu da criação. Bela


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como a existência, seu perfume de fêmea acelerou o tempo, embriagando o vento. Ela caminhou nua pela praia até um rochedo – flores brotando do chão onde seus pés pisavam. Então, ascendeu ao Olimpo, galgando o ar numa revoada de pombos e pardais, e sentou-se no seu trono junto aos outros deuses. As nuvens enrodilharam-se de prazer saudando a deusa do Desejo e da Paixão. Zeus a deu em casamento a Hefesto, o manco deus ferreiro, e logo Afrodite o presenteou com três filhos: Fobos (o Medo), Deimos (o Espanto) e Harmonia. Acontece que nenhum dos três era, na verdade, filhos de Hefesto, mas sim de Ares, o deus da Guerra. Hefesto só descobriu que sua esposa o traía quando os dois amantes se demoraram na cama, e Hélios, o Sol, os surpreendeu ao se erguer numa manhã. Hélios contou a Hefesto o que estava acontecendo, e o deus do fogo planejou um meio de se vingar. Para tanto, o ferreiro do Olimpo fabricou uma rede de caça de bronze, tão fina quanto uma teia de aranha, mas impossível de se quebrar. Secretamente, ele afixou a rede sobre a cama e disse a Afrodite que iria fazer uma viagem até a ilha de Lemnos. Afrodite, é claro, não se ofereceu para acompanhar o marido na viagem, e assim que Hefesto virou as costas, ela correu para os braços de Ares. Os dois se amaram a noite toda no leito da deusa, mas ao amanhecer eles se viram presos na rede de caça – nus e sem poder fugir. Era a hora esperada por Hefesto. O deus do fogo os surpreendeu e chamou todos os olímpicos para testemunhar sua desonra. Encolerizado, Hefesto afirmou que só iria libertá-los depois que Zeus lhe devolvesse os 67


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presentes que havia recebido dele pela mão de sua filha adotiva. Os deuses todos correram para ver a situação dos amantes, mas as deusas, por uma questão de delicadeza, ficaram em suas casas. Apolo perguntou a Hermes se ele se importaria em estar no lugar de Ares. Hermes jurou que não se incomodaria, mesmo que estivesse preso com três redes e com todas as deusas a observá-lo. Mas enquanto Apolo e Hermes riam divertidos, Zeus permanecia grave e contrariado. Tendo uma especial predileção pela filha adotiva, disse que não interferiria, nem devolveria os presentes. Poseidon, por sua vez, procurou contemporizar, apoiando Hefesto. “Já que Zeus se recusa a interferir”, disse ele, “proponho que Ares pague o equivalente aos presentes de casamento para ser libertado”. Hefesto concordou com a ideia, mas impôs uma condição: “se Ares não pagar, então você deve tomar o lugar dele na rede”. Poseidon concordou: “se Ares não devolver os presentes, estou pronto para pagar o debito e me casar com Afrodite”. Assim, os amantes foram libertados. Ares foi para a Trácia, enquanto Afrodite tratou de renovar sua virgindade, banhando-se no mar, como sempre fazia depois de usufruir o amor. Lisonjeada pelo que Hermes havia dito sobre ela, Afrodite foi procurá-lo e ofereceu-lhe uma noite de prazer, da qual resultou em Hermafodito, um ser com os dois sexos. Depois, agradecida pela intervenção de Poseidon, a deusa do Desejo lhe deu dois filhos: Rodis e Herófilo.


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Marte desarmado por Vênus e as Três Graças (Jacques-Louis David, 1824)

Eros Algumas tradições contam que Eros, nascido do ovo universal, foi o primeiro deus, pois sem ele – o Amor – nenhum outro mortal ou imortal poderia ter sido criado. Outras fontes, porém, sustentam que Eros é filho de Afrodite com Hermes, ou Ares ou até mesmo com seu próprio pai adotivo, Zeus. Chamado pelos romanos de Cupido, a imagem universal do deus Amor é a de um menino com asas douradas que voa pelo mundo disparando flechas que incendeiam de paixão o coração dos amantes. Uma versão diferente do nascimento de Amor é contada pelo filósofo Platão, no seu O Banquete.

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O Amor e Psique (William-Adolphe Bouguereau, 1889)

No palácio de Zeus, uma ceia foi preparada para receber a recém-ascendida Afrodite e os deuses abandonaram-se à celebração. Os brindes de néctar eram muitos, e logo estavam todos entregues aos seus desejos. Dionísio embriagava-se de vinho; Hermes trapaceava no jogo de dados; Apolo emanava música com sua lira. Mas a atmosfera lúbrica da festa vinha de Afrodite que enfeitiçava a todos, enchendo-os de lascívia. Recurso, filho de Prudência, também estava no banquete e bebeu como nunca. Embriagado, cambaleou até o jardim do palácio, deitou-se na grama


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e dormiu. No entanto, não estava só. Entorpecido daquele jeito, não percebeu que Pobreza esmolava no jardim as sobras do banquete. Ela viu Recurso adormecido e achou que poderia tirar vantagem da situação. Pensou um pouco e achou que seria proveitoso ter um filho dele. E, como uma lua no cio, deitou-se nua ao seu lado, beijando-o e despindo-o, e os dois saciaram-se um com o outro. E assim, desse encontro no jardim de Zeus, Pobreza concebeu Amor, aquele que quer para si o bom e o belo. Por causa da sua origem, a natureza de Amor é ambígua. Como a mãe, ele é sempre pobre, necessitado, carente e sem lar. O tempo todo na estrada, desabrigado, acompanhado de sua eterna amiga, Necessidade. Mas como o pai, Recurso, tem muito a oferecer. Decidido, enérgico, cheio de trunfos e possibilidades. Paradoxal, está entre a sabedoria e a ignorância; o sofrimento e o êxtase. Busca a reconciliação dos opostos, renovando-os, criando uma coisa nova dessa união. Nem mortal nem imortal, no mesmo dia germina, vive, morre e de novo ressuscita. E por não ser nem homem nem deus, Amor passou, então, a ser o mensageiro entre imortais e mortais, habitando o coração dos homens. Amor nem enriquece nem empobrece, porque aquilo que consegue sempre lhe escapa 8. Tal é a natureza de Eros. Hermes O infiel Zeus gerou filhos em muitas ninfas – as descendentes dos titãs –, deusas e, depois da criação do homem, até mesmo em mulheres mortais. Com Maia, a mais jovem 71


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das sete filhas de Atlas, as Plêiades, Zeus teve um filho excepcionalmente esperto e eloquente: Hermes, também venerado pelos romanos como Mercúrio. Quando Hermes nasceu, sua mãe o enrolou com faixas, como se fazia com os bebês gregos. No entanto, o pequeno deus cresceu com velocidade estonteante. Assim que Maia terminou de envolvê-lo, ele já era um menino, e, tão logo a mãe virou as costas, Hermes escapuliu em busca de aventura. A primeira coisa que fez o futuro deus dos ladrões foi roubar. Sua vítima foi Apolo, de quem subtraiu doze vacas, cem novilhas e um touro. Para não ser apanhado, Hermes amarrou ramos de carvalho nos rabos do gado. Assim, a manada roubada foi apagando seus rastros na medida em que caminhava. Hermes também sacrificou duas novilhas aos deuses do Olimpo e com suas tripas fez cordas para um instrumento que inventou. Apolo descobriu o roubo, mas foi enganado pelo truque de Hermes. Sem poder encontrar as pegadas que levariam ao seu gado, Apolo se viu obrigado a oferecer uma recompensa a quem lhe entregasse o ladrão. Os sátiros – lúbricas entidades da natureza, meio bodes, meio homens – atenderam ao chamado de Apolo e se espalharam em grupos pelos quatro cantos do mundo. Mas não tiveram sucesso. Muito tempo se passou até que um desses grupos de sátiros passou pela Arcádia e ouviu uma intrigante música, vinda da entrada de uma caverna. A ninfa Cilene, que estava ali perto, contou-lhes que o som vinha de um instrumento inventado por uma criança extraordinária, da qual ela estava cuidando. Amarrando as tripas das novi-


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lhas sobre uma carapaça de tartaruga, Hermes havia fabricado a primeira lira. Vendo duas peles de novilhas sendo curtidas fora da caverna, os sátiros desconfiaram de que tinham achado o gado roubado. Nesse instante, Apolo apareceu. Furioso, entrou na caverna, acordou Maia, contou-lhe do roubo e exigiu que Hermes devolvesse seu gado. Maia apontou para o menino, que dormia tranquilamente em seu berço, com as faixas ainda enroladas ao redor do seu corpo, e perguntou indignada como Apolo ousava acusar uma criança de roubo. Mas Apolo já havia reconhecido as peles das novilhas. Ele pegou Hermes pelas mãos e o levou ao Olimpo, onde o acusou formalmente de roubo, mostrando as peles como evidência. Como Maia, Zeus também não quis acreditar que seu filho recémnascido fosse um ladrão. Apolo, porém, tanto fez e insistiu que Hermes acabou confessando. “Venha comigo”, disse o deus-menino, “e eu lhe devolverei o gado. Sacrifiquei apenas duas novilhas, mas o fiz em honra aos deuses do Olimpo, realizando o primeiro holocausto jamais feito”. Os dois deuses voltaram ao Monte Cilene, onde ficava a caverna em que Hermes vivia com a mãe, e o deus pegou sua lira de carapaça de tartaruga. Apolo quis saber o que era aquele estranho objeto, e, em reposta, Hermes tocou uma canção. Em seguida, levou Apolo ao local onde havia escondido o gado. Mas Apolo tinha ficado tão fascinado com a lira que ofereceu seu gado em troca do instrumento, o que Hermes aceitou imediatamente. Enquanto Apolo se divertia com a lira, Hermes cortou caniços e com eles fez uma flauta de pã. Ouvindo o novo 73


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instrumento, Apolo se encantou de novo. Ansioso para possuir a flauta, Apolo ofereceu seu cajado de ouro em troca dela. Hermes, porém, não aceitou de pronto. Disse que sua flauta valia mais do que o cajado de ouro, mas concordou em trocá-la se Apolo lhe desse também o dom da profecia. “Isso eu não posso fazer”, respondeu Apolo. “No entanto, minhas velhas amas, as Trias, ensinarão você”. Assim, o cajado de ouro de Apolo passou às mãos de Hermes. Depois, Apolo voltou com o menino para o Olimpo e contou a Zeus o que acontecera. O deus supremo não pôde deixar de se divertir e, orgulhoso, elogiou o filho. “Então faça de mim seu arauto e eu serei responsável pela segurança da propriedade divina e nunca direi mentiras, apesar de não poder prometer dizer sempre toda a verdade”, pediu Hermes. Zeus concordou. “Sua tarefas também incluirão proteger os tratados, o comércio, os ladrões e os viajantes em qualquer estrada do mundo”, determinou o Zeus, presenteando o filho com um chapéu para protegêlo da chuva e sandálias com asas, que o fariam veloz como Zéfiro, o Vento. Hades também o convidou para ser seu arauto, convocando os moribundos ao tocar suas frontes com o cajado de ouro.


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Atena e Hermes (Bartholomäus Spranger, c. 1585)

Logo depois, Hermes foi ter com as Trias, que lhe ensinaram a ver o futuro observando como pedregulhos se depositavam no fundo de uma vasilha de água. O inventivo Hermes aperfeiçoou o método, criando um jogo de ossos e a arte de adivinhação através deles. Ajudado pelas Moiras, Hermes também inventou o alfabeto, a astronomia, a escala musical, os pesos e as medidas, além do boxe e da ginástica. A ele também é associado o planeta Mercúrio (o nome do deus na mitologia latina), por causa da rápida velocidade com que orbita o sol e da dificuldade em se observá-lo9.

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Apolo Com Leto, divindade da Noite, filha do titã Céu e de Febe, Zeus teve Apolo e Ártemis. Leto precisou fugir da fúria de Hera por toda a Grécia. Buscando um lugar onde pudesse dar à luz seus filhos, Leto acabou encontrando um abrigo. Sua irmã Astéria, por ter resistido às investidas de Zeus, fora transformada numa ilha flutuante. Foi nessa ilha que Apolo e Ártemis nasceram. Durante nove dias e nove noites, Leto esteve em trabalho de parto, dilacerada por dores terríveis. Todas as deusas estavam ao seu redor naquele momento difícil, menos Ilícia, a deusa dos partos felizes, retida pela conversa de Hera. A esposa traída estava possuída de ciúme doentio, pois sabia que a bela Leto daria à luz um filho poderoso. As outras deusas, porém, enviaram Íris – a deusa do arco-íris – para trazer Ilícia, prometendo dar à divindade dos partos felizes um cordão de ouro se ela viesse sem demora. Quando Ilícia chegou, Ártemis, a irmã gêmea de Apolo já havia nascido e ajudava a mãe no parto do irmão. Finalmente, quando Apolo nasceu, Zeus desceu do Olimpo para receber seus rebentos. A Apolo, o deus supremo deu uma mitra de ouro, uma lira e uma carruagem puxada por cisnes brancos. Mas enquanto os imortais se regozijavam com o nascimento, Hera ardia de ciúme e raiva. A vingativa deusa dirigiu a ira de Píton, uma gigantesca serpente incumbida de guardar o oráculo de Gaia, contra a infeliz Leto. Píton não a deixava em paz, perseguindo Leto até os confins da terra. Apenas quatro dias depois do seu nascimento, Apolo se armou com um arco e flechas feitos para


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ele por Hefesto e foi em captura do inimigo mortal da sua mãe. Ao chegar no monte Parnaso, onde a serpente o espreitava, Apolo feriu Píton com uma saraivada de flechas. O monstro buscou refúgio no oráculo de Gaia, em Delfos, mas Febo, como Apolo era chamado em Roma, o seguiu até lá e o matou impiedosamente. Depois de se purificar do contato com a serpente, Apolo se apoderou do oráculo e nele consagrou um tripé onde uma sacerdotisa se sentava e recebia as mensagens divinas. Certa vez, Febo desdenhou de Eros, que passava o dia flechando o coração de homens e imortais. Disse que aquilo não passava de uma brincadeira. Eros, então, feriu o deus com uma das suas flechas da paixão e, ao mesmo tempo, flechou Dafne – uma ninfa da montanha, companheira da sua irmã Ártemis – com uma seta de aversão. Movido de amor e desejo, Apolo tentou abordar a solitária ninfa, mas Dafne fugiu como uma gata que escapa da chuva. Apolo suplicou em vão que parasse, pois quem a perseguia era o deus da luz, filho do próprio Zeus, que desvendava o futuro aos homens. Apolo chegou mesmo a alcançá-la, mas Dafne pediu ajuda a Gaia. Imediatamente, a terra se abriu, e a ninfa desapareceu nas entranhas da Grande Mãe. No lugar onde Dafne desapareceu, surgiu um loureiro – que passou a ser a árvore privilegiada por Apolo.

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Apolo Perseguindo Dafne (detalhe) – Carlo Maratti, 1681

Dafne não foi a única experiência amorosa infeliz de Febo. O deus, porém, teve muitas outras amantes, as quais não lhe resistiram. Ao contrário, deram-lhe muitos filhos, entre eles Orfeu, o fundador dos Mistérios Órficos, e Asclépio, o deus da medicina. Certas lendas o colocam até mesmo com pai de Pitágoras. Como presidisse o cortejo das Musas, Apolo teve muitas amantes entre elas. Mas o deus da luz não se limitava a amar somente mulheres. Uma vez, ele se apaixonou por Jacinto, um adolescente dono de estonteante beleza, filho do rei Amiclo, de Esparta. Um dia, Apolo lançava discos às margens de um rio. Movido pelo ciúme, o Vento Oeste, que também se apaixonara pelo jovem príncipe espartano, desviou o disco e o fez atingir o crânio de Jacinto, matando-o. Desconsolado, Apolo o transformou na flor jacinto.


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Outro amante do deus foi o mortal Ciparisso. O jovem matou sem querer um gamo de chifres dourados consagrado às ninfas e, desconsolado pelo sacrilégio que cometeu, acabou se suicidando. Comovido, Febo o transformou em cipreste. Apolo era também o deus da música10. Certa vez, Atena inventou uma flauta de dois tubos e se pôs a tocar na assembleia dos deuses. Apesar de a música agradar a todos, Hera e Afrodite, suas rivais, riam-se divertidas. Atena desceu ao mundo, então, e tocou a flauta nas margens de um rio, observando o reflexo do seu rosto nas águas. Percebendo o quanto parecia ridícula soprando aqueles tubos com as bochechas inchadas, a deusa jogou a flauta fora e voltou ao Olimpo. Marsias, um mortal que passava por ali, achou a flauta e começou a tocá-la. Talvez porque o instrumento estivesse imbuído da sabedoria da deusa, ou talvez porque Marsias tivesse sido inspirado, a música que saiu da flauta encantou homens e feras. Os camponeses ignorantes começaram a dizer que Marsias tocava melhor que o próprio Apolo – um boato que o incauto flautista não cuidou de desmentir. Quando aquela afronta chegou aos ouvidos do deus, ele desceu imediatamente à terra e desafiou Marsias para uma competição. Quem vencesse poderia infligir o castigo que bem entendesse ao perdedor. No entanto, nenhum dos músicos conseguia superar ao outro. Apolo resolveu propor outro desafio: eles teriam de tocar com as flautas invertidas e ao mesmo tempo cantar. Marsia não conseguiu vencer seu desafiante. O vingativo deus da música puniu Marsias exemplarmente: esfo79


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lou o músico vivo e pendurou sua pele num pinheiro, próximo da nascente do rio que desde então leva o nome do infeliz flautista. Os atributos de Febo-Apolo como deus da luz, da música, da harmonia que rege a natureza, da profecia, da inspiração poética, da medicina o tornam uma das mais importantes divindades do panteão grego. É provável que, originalmente, ele não fosse um, mas muitos deuses que acabaram se fundindo. Há indicações de que Apolo tenha sido um deus solar originário da Ásia, cujo caráter teria se amalgamado ao de um deus campestre do norte da Grécia, a divindade principal dos dórios. Ártemis Quando Ártemis, a divindade lunar, deusa das florestas e da caça, cultuada em Roma como Diana, era ainda criança, seu pai Zeus lhe perguntou o que ela queria de presente. “Dê-me eterna virgindade”, pediu ela, “tantos nomes quanto meu irmão Apolo, arco e flechas como os dele, a tarefa de trazer a luz, uma túnica de caça que chegue aos meus joelhos, sessenta ninfas do oceano como damas de honra e vinte ninfas do rio para cuidar dos meus cães de caça, todas as montanhas do mundo e apenas uma cidade que me honre, pois pretendo viver nas montanhas a maior parte do tempo”. Zeus riu e concedeu seus pedidos. Mas em vez de apenas uma cidade, ele lhe deu trinta e, além disso, a fez guardiã das estradas e dos portos.


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Em seguida ela foi ao Oceano, escolher as ninfas que a acompanhariam, e visitou os ciclopes. Deles, ela recebeu um arco de prata e flechas. Pã, o deus dos pastores e dos rebanhos, também presenteou a jovem deusa. Deu-lhe dez cães de caça rápidos como o pensamento e capazes de vencer até mesmo leões. Ártemis, a eterna virgem, desejou ser livre dos caprichos dos homens. Certa vez, o deus-rio Alfeu se apaixonou por ela e a perseguiu por toda a Grécia. Quando ele estava quase a alcançando, Ártemis sentou-se às margens de um rio e cobriu seu rosto com lama, ordenando às suas ninfas que fizessem o mesmo. Dessa forma. Alfeu não pôde mais distinguir quem era a deusa e a deixou em paz. Em outra ocasião, foi um mortal que ousou perturbar Ártemis. Actéon a surpreendeu nua, banhando-se num rio. Não bastando isso, o incauto Actéon, em vez de se retirar, aproveitou o prazer de observar a nudez da deusa. Ártemis, percebendo a presença do homem, transformou-o num cervo e fez com que seus cães o estraçalhassem. A severa Ártemis exigia a mesma castidade das suas ninfas. Quando seu pai seduziu uma delas, Calisto, Ártemis percebeu e a transformou num urso, atiçando sua matilha de cães de caça contra ela. Calisto teria sido despedaçada, se Zeus não tivesse intercedido. No momento em que os cães se atiravam sobre ela, Zeus a levou os céus e a transformou numa constelação11.

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Diana (Artemis) Como Personificação da Noite - Anton Mengs c. 1765

Ares O “deus que ama o sangue”, filho legítimo do casamento de Zeus e Hera, é dotado de uma coragem cega e brutal, cheio de fúria sanguinária. Na Ilíada, Homero conta que Zeus definiu o próprio filho com estas palavras: “de todos os deuses que habitam o Olimpo, você é o mais odioso, uma vez que você não ama outra coisa senão a discórdia, a guerra, os combates. Você tem o espírito intratável e indócil da sua mãe, Hera, que muito me custa reprimir com palavras”12. De fato, a não ser por Afrodite, sua eterna amante, em quem Ares gerou Harmonia, Hades, que se apraz ao receber as almas dos guerreiros mortos em bata-


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lha, e sua irmã Eris, a Discórdia, Ares era odiado por seus pares olímpicos. O deus da guerra, chamado de Marte em Roma, combatia a pé ou num carro de guerra puxado por quatro cavalos. Nas batalhas, era auxiliado por quatro demôniosescudeiros: seus dois filhos, Deimos, o Espanto, Fobos, o Terror, e ainda Éris e Enio, o “destruidor de cidades”. Era também acompanhado das Queres, lúgubres divindades, sedenta do sangue dos guerreiros agonizantes. Ares representava a força bruta, aquela que se opõe à coragem inteligente e refletida, personificada no panteão olímpico por Atena. Assim, Ares e Atena estavam sempre numa luta constante. Mas é Atena quem sempre sai vencedora – isto é, a inteligência sobre a força desmedida –, como aconteceu na guerra de Tróia. Homero conta que Ares lutou ao lado do príncipe troiano Heitor. Numa batalha, Ares atacou o herói grego Diomedes. Ele não contava, porém, que Atena, tornada invisível pelo capacete de Hades, estava ao lado de Diomedes, protegendo-o. Atena desviou o golpe de Ares e dirigiu a lança do mortal contra o deus, ferindo-o. Ares soltou um grito pavoroso, que paralisou os dois exércitos combatentes, e se retirou da batalha, fugindo para o Olimpo. Zeus recebeu o filho queixoso e permitiu que Apolo lhe preparasse uma beberagem que lhe acalmasse as dores.

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Detalhe de O Combate de Marte e Minerva (Jacques-Louis David, 1824)

Em outra ocasião, Ares enfrentou Heracles, por conta de uma luta que o herói travou contra Cicno, filho do deus. Destino havia determinado que Heracles não seria morto por ninguém. Era Cicno, portanto, quem deveria padecer na contenda, e Ares não aceitou. Cheio de fúria, armou-se e saiu para defender o filho. Atena tentou chamá-lo de volta à razão, lembrando que nem mesmo os deuses podem interferir nas decisões de Destino. Ares, naturalmente, não a escutou. Estava, como de costume, cego de raiva. Durante a luta, Heracles o feriu na coxa, e o deus fugiu vergonhosamente. Ares também foi o primeiro réu a ser julgado por assassinato. Conta-se que o deus da guerra surpreendeu Halirrócio, filho de Poseidon, tentando violentar sua filha Alcipe.


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Como não poderia deixar de ser, Ares o matou. Poseidon, porém, levou o caso ao tribunal dos deuses. Ares alegou que agira em defesa da sua filha. E como não havia testemunhas, os deuses o absolveram. Hefesto O deus ferreiro, sobre quem Hesíodo afirma ser “entre todos os filhos do Céu, o mais habilidoso em qualquer arte”13, era feio, coxo e mal-humorado. Hesíodo conta que Hera, por ter se desentendido com Zeus, o concebeu sozinha, sem se unir ao marido ou a qualquer outro mortal ou imortal. Mas Hefesto, cultuado em Roma como Vulcano, era tão fraco e feio ao nascer que Hera, tentando se livrar do embaraço, o jogou do alto do Olimpo – afinal, o infanticídio não era uma prática incomum na Grécia antiga. Hefesto, porém, sobreviveu à queda. Ele caiu no mar e foi salvo por Eurinome e Tétis. As duas deusas cuidaram dele numa caverna submarina, onde Hefesto montou sua primeira oficina. Grato à bondade das amas, o deus lhes fabricava joias e objetos úteis de presente. Nove anos se passaram assim. Um dia, Hera encontrou Tétis e não pôde deixar de notar o belo broche que a nereida usava. “Onde você conseguiu essa rara joia?”, quis saber a rainha dos imortais. Tétis hesitou, mas acabou contando toda a história. Fosse pelo interesse nos dons do filho, fosse por ter se arrependido, Hera quis, então, se reconciliar com Hefesto e o trouxe de volta ao Olimpo, onde montou para ele uma nova oficina, muito maior e

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melhor equipada que a anterior. Além disso, ela providenciou arranjos para casar o filho com Afrodite.

Apolo na Oficina de Vulcano (Diego Velásquez, 1630)

Ao que parece, mãe e filho se entenderam perfeitamente bem. Tanto que Hefesto ousou reprovar Zeus, quando o deus supremo pendurou Hera pelos pulsos do Olimpo, por ocasião da revolta dos deuses, liderada por Hera. Irado, Zeus jogou Hefesto do Olimpo pela segunda vez. O deus passou um dia todo caindo e, ao atingir o chão, quebrou as duas pernas. Passada sua fúria, Zeus o perdoou e o trouxe de volta ao Olimpo. Hefesto, apesar de imortal, ficara coxo com a queda. A partir de então, ele só podia andar com muletas de ouro que ele mesmo fizera para si.


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Dionísio Quase sempre, pensa-se em Dionísio – o Baco romano – apenas com o deus do vinho. Na verdade, a metáfora que ele abrange é muito maior. Dionísio é, também, um deus das árvores e da vegetação, o que consequentemente encerra nessa divindade os mistérios da vida e da morte. Patrono das árvores frutíferas – foi Dionísio quem descobriu todas elas –, os agricultores sempre colocavam uma estatua de Dionísio em seus pomares e ofereciam ao deus preces pedindo frutos em abundância. E entre todas as árvores, o pinheiro era a que mais o representava14. Dionísio era também o deus protetor dos maridos – do homem comum que cumpre seu ciclo de existência, deixando sua marca no trabalho e em outras ações e atitudes humanas – e do êxtase místico – um atributo relacionado aos efeitos do vinho. Como outros deuses da vegetação, Dionísio teve uma morte violenta, mas foi trazido à vida novamente. Nos seus ritos, os fieis representavam o sofrimento, a morte e a ressurreição do deus. Dionísio trazia em seu mito e ritual a doutrina da imortalidade da alma – era a versão grega do deus egípcio Osíris e do sumério Tamuz. O culto de Dionísio era uma parte importante dos Mistérios Órficos. De acordo com o mito órfico, o homem foi criado a partir das cinzas de Dionísio e dos titãs. A alma, isto é, Dionísio, era divina, mas o corpo, representado pelos titãs, a mantinha presa. A alma só seria libertada através de práticas ascéticas15. 87


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Dionísio era, como muitos olímpicos, filho bastardo de Zeus com Sêmele, uma mortal fulminada pelo ciúme de Hera. A esposa de Zeus, ao saber que Sêmele daria um filho ao seu marido, apareceu à mortal transfigurada numa velha. Hera elogiou sua avançada gravidez e sugeriu maliciosamente que Sêmele pedisse ao seu amante que ele se mostrasse a ela em toda a sua glória. A infeliz mortal não suspeitou da perfídia de Hera e aceitou o conselho. Primeiro fez Zeus jurar que a atenderia; depois pediu. Numa intensidade apocalíptica, Zeus se transformou em luz e raios. Sêmele não suportou a visão e tombou fulminada. Mas a criança em seu ventre não morreu. Hermes retiroua do útero da mãe morta e a costurou na coxa de Zeus, pois ainda faltava algum tempo para ela nascer. No devido tempo, Dionísio veio ao mundo. (Em outra ocasião, Dionísio desceu aos infernos para resgatar Sêmele e a levou ao Olimpo, onde ela foi imortalizada). Hera, porém, continuou a nutrir seu ódio pelo filho do marido. Numa antiga versão cretense do mito de Dionísio, Zeus teve de se ausentar e preparou Dionísio para ficar em seu lugar. Assim que ele partiu, Hera imaginou uma forma de se livrar do bastardo indesejável. A deusa ludibriou Dionísio com palavras doces e o entregou aos titãs, os quais o desmembraram ainda vivo e o devoraram. Atena, porém, vendo o que havia acontecido ao seu irmão, guardou seu coração. Quando Zeus voltou ao palácio, Atena contou a ele o que havia acontecido e entregou-lhe o coração de Dionísio. Como vingança, Zeus torturou os titãs até a morte. Desolado, Zeus encerrou o coração de Dioní-


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sio numa arca que, por sua vez, colocou num templo construído em honra do filho. Logo depois do seu sepultamento, Dionísio ergueu-se dos mortos e ascendeu aos céus, onde assumiu seu lugar, à direita de Zeus pai.

Detalhe de Baco (Caravaggio, 1593/4)

Héstia Filha de Reia e de Crono, Héstia – ou Vesta, na mitologia romana – é a personificação da antiga divindade protetora do lar, o Fogo do Lar. Héstia é a única entre os deuses olímpicos que nunca participou de guerras e disputas. Como Ártemis e Atena, Héstia não teve consortes ou amantes. Ela resistiu a todas as propostas feitas a ela. Dizem que 89


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depois que Crono foi destronado, Poseidon e Apolo vieram propor se casar com ela. Os rivais se exaltaram, e Héstia, para pôr um fim à disputa, jurou por Zeus que permaneceria virgem para sempre. Por conta de ter preservado a paz entre os olímpicos, a partir de então, Zeus a premiou com a primeira vítima de qualquer sacrifício público.

Detalhe de Sacrifício à Deusa Vesta (Sebastiano Ricci, início séc. 18)

Como deusa do Fogo do Lar, Héstia também personifica a proteção e misericórdia que os lares das pessoas representam. Ela era cultuada em todas as casas gregas como a mais branda, caridosa e elevada entre os deuses olímpicos.


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A Revolta dos Gigantes Depois de Zeus, Hades e Poseidon terem destronado Crono eles puderam assumir a ordem do Universo e estabelecer suas harmonias. Mas os que os olímpicos não esperavam era uma revolta dos antigos inimigos. A raiva que os gigantes – filhos de Gaia fecundada pelo sangue de Urano, quando Crono o mutilou – nutriam por Zeus e seus irmãos por terem prendido seus irmãos, os titãs, no Tártaro, não podia ser mitigada. Sem qualquer aviso, os 24 gigantes se ergueram no cume das montanhas mais altas e bombardearam o Monte Olimpo com rochas e enormes árvores em chamas. Os imortais se viram presas da ameaça dos gigantes. Hera profetizou que os gigantes não poderiam ser mortos por nenhum deus, apenas por um único mortal vestindo uma pele de leão; e até mesmo Heracles, o mortal em questão, não poderia fazer nada a não ser que os olímpicos se tornassem invulneráveis pelo efeito de certa erva que crescia num lugar secreto. Zeus ordenou Atena que fosse chamar Heracles, enquanto ele mesmo iria procurar a tal erva. Para que os gigantes não o vissem, o deus proibiu que Hélios – o Sol –, Eos – a deusa que descerra as pálpebras do dia – e Selene – a Lua – de brilharem, enquanto ele empreendia a busca. Sob a luz das estrelas, Zeus encontrou a erva da invulnerabilidade e a trouxe de volta aos céus. Finalmente, os olímpicos estavam prontos para o combate. Heracles disparou a primeira seta contra Alcioneu. O líder dos gigantes tombou ferido, mas não morreu. Ergueu-se furioso e prosseguiu a batalha, pois havia sido atingido na 91


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sua terra natal, Palena, onde nada poderia afetá-lo. Atena mandou, então, que Heracles arrastasse o gigante para outras terras, onde poderia ser morto. O herói combateu o gigante até a Trácia, onde o matou com sua clava. Entrementes, o gigante Porfírio havia empilhado montanhas e rochedos, formando uma grande pirâmide, através da qual chegou aos céus, onde os olímpicos combatiam. Imediatamente, Porfírio avançou sobre Hera – os dedos de pedra a estrangular a deusa. Eros, indo ao socorro de Hera, atirou uma de suas flechas no fígado de Porfírio. O gigante foi, então, tomado de lascívia e, em vez de liquidar Hera, tentou possuí-la. Foi quando Zeus entrou em cena, descarregando sobre Porfírio a fúria de todos os raios do céu. Porfírio caiu neutralizado. No entanto, como Hera havia predito, nenhum deus conseguiria abater qualquer gigante. Porfírio se ergueu novamente, mas foi apenas para ser atingido por umà flechada letal de Heracles. O herói se virava de um lado para outro disparando setas sem parar, ajudando os deuses a abater os gigantes. Elfiates, que havia instigado em seus irmãos o ódio contra os olímpicos, tinha derrubado Ares. O deus da guerra jazia de joelhos, prestes a receber o golpe de misericórdia, quando Apolo o salvou, cravando uma flecha no olho esquerdo de Elfiates. Heracles terminou por abater o gigante com outrà flechada. Perdidos com a morte dos seus líderes, os invasores fugiram, perseguidos pelos deuses. Atena lançou uma enorme rocha sobre Encélado. O gigante ficou sepultado sobre a


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gigantesca laje, a qual veio a ser a Sicília. Até hoje, seus habitantes dizem que quando Encélado se vira em sua tumba, a ilha toda treme. Poseidon fez a mesma coisa com Polibotes. O deus do mar perseguiu o gigante até Cós, onde fincou seu tridente na terra, arrancando um enorme pedaço da ilha. Poseidon lançou, então, a rocha sobre Polibotes, matando-o e formando a ilhota de Nisiros. Os gigantes que restaram tentaram se abrigar em Batos, mas foram alcançados e executados por seus perseguidores com a ajuda de Heracles. Todos os deuses haviam participado da luta, exceto Héstia e Demeter, que permaneceram aflitas assistindo sua família derrotar os terríveis gigantes16. A guerra estava ganha. Os olímpicos se cobriram de glórias. Agora, poderiam restabelecer a ordem do Cosmos, que tinha sido abalada. Assim imaginavam. No entanto, um perigo ainda maior iria logo ameaçá-los novamente. Tífon Gaia, a Mãe Terra, chorou a morte de seus filhos, e sua mágoa se solidificou em raiva. Buscando apaziguar sua dor na vingança, Gaia deitou com Tártaro – o elemento primordial do mundo17 – e gerou seu filho mais novo, Tífon. Nada havia sido criado, até aquele momento, tão monstruoso e poderoso quanto Tífon. Meio homem, meio serpente, sua força rivalizava com a do próprio Zeus. Era enorme: sua cabeça tocava as estrelas, e seus braços se 93


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estendiam do nascente ao poente. Dos seus ombros, erguiam-se centenas de cabeças de serpentes, todas sibilando gigantescas línguas de fogo, enquanto os milhares de olhos do monstro dardejavam chamas. Suas muitas vozes produziam sons que os deuses compreendiam, mas também rugiam, mugiam, latiam, baliam e sibilavam com uma intensidade que fazia as montanhas ruírem18. Tífon se voltou para o Olimpo, buscando assumir o controle do Cosmos. Vendo-se ameaçados por aquela criatura apocalíptica, os deuses fugiram para o Egito, onde, para se disfarçar, assumiram a forma de animais. A corajosa Atena foi a única que ficou para enfrentar o monstro, acusando Zeus de covardia. As palavras da filha trouxeram o deus supremo de volta a si. Zeus assumiu sua forma verdadeira e lançou um raio sobre Tífon, seguido de um golpe da mesma foice usada para castrar Urano. Tífon fugiu para o Monte Casio, com Zeus nos calcanhares. Quando o deus alcançou seu inimigo, os dois se engalfinharam. Tífon se enrodilhou em torno de Zeus, o desarmou e cortou com a foice os tendões das suas mãos e pés. Em seguida, enrolou os tendões em uma pele de urso e levou seu prisioneiro para uma caverna, deixando-o sob a guarda de sua irmã Delfines – como ele, meio cobra, meio mulher. Zeus fora derrotado. Com os tendões cortados, não podia se mexer. Os deuses ficaram ainda mais desanimados. Tífon poderia, agora, controlar o Cosmos. Mas Hermes e Pã – o deus dos pastores e dos rebanhos – não aceitaram a derrota. Os dois entraram secretamente na caverna onde Zeus jazia prisioneiro, e Pã, com um grito terrível, assustou


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Delfines. Aproveitando a distração da monstruosidade, Hermes pegou os tendões de Zeus da pele de urso e os reimplantou em seu pai. Em seguida os três fugiram para o Olimpo.

Zeus combatendo Tífon (detalhe de ânfora grega, c. séc. 5 a.C.)

Mal se recuperou dos ferimentos, Zeus retornou à luta. Cruzando os céus num carro de guerra puxado por cavalos alados, o deus supremo voltou a atacar Tífon com seus raios. O monstro, por sua vez, atirava montanhas inteiras sobre Zeus. A batalha dilacerava Gaia – a Mãe Terra –, rasgando o chão, abrindo vales e moldando uma nova paisagem na deusa. Finalmente, Zeus conseguiu ferir Tífon gravemente. Buscando sobreviver, Tífon se refugiou na Sicília. Mas foi em vão. Zeus o liquidou, esmagando-o sob uma enorme laje de pedra, que veio a ser o Monte Etna19.

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Notas do Capítulo

1 – Ortopedia Brasileira – Momentos, Crônicas e Fatos – Claudio Blanc e Mânlio Napoli, SBOT, São Paulo, 2000, p. 10 2 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 150 3 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London, 1981, p. 16 4 – Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix, São Paulo, 1993, p. 262 5 – Theogony – Hesíodo, Online Medieval and Classical Library Release #8, 2006, in http://omacl.org/Hesiod/theogony.html, versos 767 - 774 6 – Crete & Pre-Helenic Myths and Legends – Donald A. Mackenzie, Studio Editions, London, 1995, pp. 178-180 7 – The Golden Bough – James G. Frazer, Gramercy Books, New York, 1981, vol. II pp. 44-48 8 – Os Pensadores vol. III – Diálogos, Platão, Abril Cultural, São Paulo, 1972, p. 41 9 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder, Helicon, Oxford, 1997, p. 132 10 - Theogony – Hesíodo, versos 75-103


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11 - Greek Myths – Robert Graves, p. 34 12 – citado in Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, p. 67 13 – Theogony – Hesíod versos 924-929 14 - The Golden Bough – James G. Frazer, vol. I pp. 321 15 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph Campbell, Arkana, New York, 1991, p. 183 16 - Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London, 1981, p. 46 17 - Dicionário da Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix, São Paulo, 1993, p. 282 18 – The Masks of God: Occidental Mythology – Joseph Campbell, p. 23 19 – Greek Myths – Robert Graves, p. 47

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5 Heróis

O

s heróis gregos são figuras emblemáticas, muitas vezes baseadas em lendários homens de ação – reis, líderes, guerreiros, poetas, músicos, atletas. Alguns deles, como Heracles, foram divinizados e elevados à condição de imortais. A disposição que os levou a realizar seus feitos era observada como um ideal a ser buscado. Os heróis são imagens que modelam decisivamente a vida das pessoas, inspirando-as e orientando-as – mesmo hoje, uma época em que os mitos foram reduzido a estereótipos. Ser um herói é o que todos almejam – no Brasil moderno ou na Grécia clássica –; tornar-se herói é, simbolicamente falando, a realização maior que um homem ou uma mulher podem atingir no seu ciclo de existência. É uma iniciação – a grande iniciação. As aventuras vividas pelos heróis em suas sagas se baseiam na fórmula representada nos rituais de passagem – os


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ritos que iniciam uma pessoa nas diversas fases da vida, como o bar mitzvá judaico ou a primeira comunhão dos católicos –, isto é, separação, iniciação, retorno. “Um herói vindo ao mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios a seus semelhantes”1. As narrativas dos mitos e lendas de praticamente todas as culturas – grega, romana, egípcia, suméria – obedecem quase sempre ao padrão que o mitologista norte americano Joseph Campbell (1904 – 1987) chamou de Ciclo do Herói. Na imensa maioria das histórias, o ponto inicial da trama é a falsa estabilidade em que o protagonista se encontra. De repente, são detonados acontecimentos que levam o herói rumo a seus maiores potenciais, numa viagem que vai da luz de volta à luz, através da sombra da sua alma. É a jornada pela qual Psique passou para reconquistar o amor do deus Eros, ou que Jasão empreendeu para se apoderar do Velo de Ouro. Logo no início das histórias, o mundo do protagonista é virado de cabeça para baixo por um erro vindo de desejos e conflitos reprimidos. Isso faz com que o personagem perca totalmente o controle da situação. Outras vezes é um acontecimento externo, como uma tragédia, que coloca em movimento um processo que fará do protagonista um herói. Campbell chamou esse momento de Separação, o começo da descida rumo ao reino da noite, do desconhecido. 99


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A partir de então, a instabilidade é constante e a tensão cresce à medida que uma crise se soma à outra, desafiando o protagonista a superá-las, num crescendo que culminará no clímax da história. Essa parte da epopeia Campbell batizou de Descida. É quando surge o Guia para orientar o protagonista. Esse guia pode ser qualquer coisa que conduza o herói na sua aventura: um artigo de jornal, uma situação ou uma pessoa. No mito do Minotauro, o guia que aparece para Teseu é Ariadne, que lhe propõe que se case com ela em troca de um meio para voltar das trevas: um novelo de lã que, desenrolado na entrada do labirinto, permitiria a Teseu segui-lo de volta à luz, depois de ter matado o monstro. A jornada inicia seu período mais crítico com a entrada do protagonista no reino da noite, onde tudo é absolutamente desconhecido. Isso é marcado com o surgimento de um novo personagem, que é o guardião do Limiar entre os reinos da luz e da sombra, os reinos do conhecido e do desconhecido: o Antagonista. A batalha que se trava entre eles leva o protagonista ao que Campbell chamou de Iniciação. Embora inimigos, o protagonista e o antagonista são dois aspectos opostos da mesma verdade, cuja união oferece a complementação daquilo que o herói é verdadeiramente. Esse encontro, portanto, busca completar o personagem foco, pois o antagonista é e possui o que o herói não é e não tem. Esses valores serão adquiridos através do conflito. As dificuldades aumentam exigindo que o protagonista busque meios para responder a elas, até que a tensão –


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física, psicológica, do ambiente – acaba por esgotá-lo: o ponto onde tudo parece perdido. É quando Tífon corta os tendões de Zeus e aprisiona o deus numa caverna, ou quando Ares, derrotado em combate pelo gigante Elfiates, está para receber o golpe de misericórdia. Nesse momento agentes externos interferem para o bem do herói, ou então o protagonista consegue encontrar um reservatório de energia psíquica que lhe dá recursos até então desconhecidos para superar a crise, para dar a resposta mais eficiente, para vencer ou renunciar. Quando Zeus jaz prisioneiro de Tífon, Hermes e Pã surgem para libertá-lo; antes que Elfiates matasse Ares, uma flecha de Apolo derruba o gigante – e o herói vence. É o que Campbell chamou de Iniciação. Na história de Heracles, essa iniciação pode ser representada pela pele de leão – sua armadura e símbolo. Quando o herói enfrentou o Leão de Nemeia, dentro do covil da fera, e as armas do herói se mostram inúteis. A clava não teve efeito contra os duros ossos do animal, as flechas mal roçaram a pele impenetrável. Heracles teve de bloquear uma das saídas da cova e lá entrar para combater com as mãos nuas, terminando por estrangular o leão. Depois, a iniciação: Heracles tira a pele e faz dela sua armadura. É por isso que o herói é sempre representado envolto na pele do Leão de Nemeia: sua recompensa, seu principal trunfo. Ela representa a força do antagonista que ele conquistou, aquilo que foi buscar ao fazer a jornada e que o transforma em herói. É esse o sentido do ato canibal, comum entre os antepassados dos índios brasileiros, de devorar o inimigo para absorver suas forças.

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Depois do triunfo há o Retorno, a volta para a posição inicial da história, onde tudo se conhece e se controla. Agora, porém, o protagonista é um herói, achou, como Jasão, um tesouro e volta para casa libertar o seu povo do jugo do tirano usurpador. É, portanto, essa estrutura narrativa que reflete a força do herói. Assim, a figura do herói é cultuada como uma metáfora dos valores encarnados por uma sociedade e uma inspiração e orientação para os homens e mulheres dessa cultura.

Herói e Heroína (detalhe de afresco de Jacques Iverny, c. 1420)


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Os Doze Trabalhos de Heracles

H

Eracles, uma das figuras mais ricas e complexas da mitologia ocidental, é hoje mais lembrado pelo seu nome romano, Hércules. Suas lendas, contadas e recontadas em todo o mundo greco-romano, estiveram em constante evolução desde a época pré-helênica até o final da Antiguidade. Talvez Heracles tenha sido uma figura histórica, um civilizador que introduziu modos e conceitos entre os povos que vieram a formar os gregos, ou talvez tenha sido um guerreiro ou líder militar que realizou proezas que o tornaram lendário. Essa hipótese, porém, se perde nos séculos, sem poder ser provada. Heracles havia nascido de uma das muitas aventuras amorosas de Zeus. Sua mãe, Alcmena, rainha de Tebas, era um mulher de beleza sem igual; e além de bela, Alcmena permeava com sua graça todos que dela se aproximavam. Zeus havia decidido gerar um herói tão forte e virtuoso como jamais houvera e resolveu que Alcmena seria a mãe ideal para seu filho. Mas a rainha era esposa virtuosa e não trairia Anfitrião, seu marido, nem mesmo com Zeus. E para cumprir seu intento, mais uma vez o deus supremo lançou mão de um estratagema. Quando o rei estava longe de casa, travando uma guerra, Zeus se transfigurou em Anfitrião e, sob essa forma, entrou no seu palácio. Todos os receberam como o senhor de Tebas e nem mesmo Alcmena desconfiou. A rainha ficou feliz em receber notí103


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cias de que sua campanha tinha sido bem sucedida e partilhou seu leito com o marido, recebendo em si o entusiasmo da vitória que seu suposto senhor trazia para casa. A noite de amor durou três dias, pois Zeus havia ordenado a Hélios, o Sol, que não se erguesse a não ser depois de transcorrido esse tempo. Depois de usufruir da união com a mortal, Zeus partiu, e Anfitrião chegou em seguida. Alcmena surpreendeu-se ao ver o marido de volta tão rapidamente. E espantou-se mais ainda quando Anfitrião disse não se lembrar nada dos carinhos que dedicara à esposa na (longa) noite anterior. O rei, por sua vez, também se alarmou quando soube que Alcmena já conhecia todos os incidentes da campanha que acabara de empreender. Desconfiado, Anfitrião foi consultar Tirésias, o vidente. O velho cego lhe revelou o estratagema de Zeus. Anfitrião ficou enfurecido. Buscando vingança, mandou amarrar Alcmena numa estaca em meio a uma pilha de lenha. No entanto, quando o rei ordenou que a pira fosse acesa, uma forte chuva desabou, apagando as chamas. Anfitrião entendeu a vontade de Zeus e desistiu da vingança. Calou e aceitou o filho que o deus gerara em sua esposa. Tomou-o como seu e o chamou de Palemon. Zeus zelava, de fato, para que o filho fosse um prodígio, um homem perfeito. A seu pedido, Atena o escondeu numa fenda, na muralha de Tebas, e casualmente convidou Hera para dar uma caminhada. Sem que Hera desconfiasse, Atena a levou até onde estava o pequeno Heracles. Ao ver o bebê abandonado, Hera ficou condoída e, estimula-


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da por Atena, ofereceu seu peito, que ainda tinha leite, ao menino. Heracles sugou com tanta força, que o leite de Hera jorrou no espaço, criando a Via Láctea. Ao perceber o estratagema, já era tarde. Heracles havia sido alimentado com seu leite sagrado e agora ele se tornaria o homem mais forte do mundo. Hera, porém, não aceitou a criança. A deusa estava decidida a destruir mais aquele bastardo – além de tudo, ela se sentia humilhada por sua rival ser uma mortal. Quando Heracles tinha oito anos, Hera buscou realizar sua vingança. Ela fez aparecer duas serpentes na cama do menino. Mas em vez de se tornar vítima, Heracles, revelou seu dom de herói. Agarrando as serpentes, ele estrangulou as duas. A tentativa falhou, mas Hera não desistiria da vingança.

Heracles estrangulando as serpentes (gravura florentina, c. 1600)

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Assistido pelos mais ilustres mestres, o menino teve a melhor educação que se poderia ter. Lino, filho do deus Apolo, ensinou a Heracles a arte das letras; Eurito, um arqueiro tão bom que era considerado filho de Apolo, o arqueiro divino, ensinou o futuro herói a manejar essa arma; e com Eumolpo, um músico que rivalizava com o próprio Orfeu, Heracles aprendeu a tocar cítara e a cantar. Dizem que Heracles também aprendeu filosofia e astronomia, mas não se sabe quem foram seus professores. Além disso, era versado na interpretação de augúrios. Apesar da educação voltada para as artes e literatura, Heracles se revelou mesmo um guerreiro e um arqueiro como jamais houvera outro. O próprio rei Anfitrião, seu pai adotivo, ensinou o enteado a conduzir o carro de guerra. E foi durante sua educação que a natureza ariana de Heracles aflorou pela primeira vez. Uma vez, Lino zombou dele por ter escolhido um tratado sobre culinária para estudar. Enfurecido, o adolescente Heracles arremessou sua lira na cabeça do mestre. Heracles, porém, não conhecia sua força, e a violência do golpe acabou matando o tutor. Anfitrião puniu seu enteado, mandando-o trabalhar como pastor, nas montanhas, onde ficou até completar dezoito anos. Naquela região, havia um leão atacando as ovelhas e fazendo vítimas até mesmo entre os aldeões. A fera, chamada de Citaeron, espalhara pânico e destruição para além do reino de Anfitrião, até Téspia. Depois de cumprir o castigo determinado por Anfitrião, Heracles quis acabar com


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a ameaça do leão Citaeron e foi em busca do seu covil. No caminho, ele se hospedou no palácio do rei Téspio, senhor do reino da Téspia, onde foi muito bem recebido. Tendo ouvido falar do prodigioso filho de Zeus, Téspio fizera planos para Heracles. O rei tinha cinquenta filhas e temendo que alguma delas se cassasse com alguém sem valor, resolveu que cada uma delas teria um filho de Heracles. Assim, Téspio fez com que Heracles passasse cinquenta noites em seu palácio, cada uma delas em companhia de uma das suas filhas. Algumas versões, porém, dizem que Heracles possuiu as cinquenta filhas de Téspio numa só noite. Apenas uma delas recusou Heracles e permaneceu virgem, servindo como sacerdotisa no templo do herói até a morte. Assim, Heracles gerou cinquenta e um filhos nas princesas de Téspia. A mais velha delas, Procris, e a mais nova lhe deram gêmeos. Esses netos de Téspio não morreram. Quando chegou o tempo de sua passagem para o outro mundo, dormiram um sono profundo, eterno. Seus corpos não se corromperam e nem foram enterrados. Depois dessa aventura, Heracles finalmente deixou o palácio de Téspio e foi abater Citaeron, o que não lhe custou muito trabalho. Seja como for, esse foi seu primeiro feito heroico. Ao voltar para o palácio do seu padrasto, Heracles cruzou com uma embaixada de um reino próximo, Orcomeno. Os membros da comitiva desdenharam do rapaz e informaram que estavam indo a Tebas, cobrar um tributo devido por um antigo crime. Seu rei Climeno havia sido morto numa disputa com os tebanos. Ergino, filho de Climeno, 107


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vingou a morte do pai sitiando e derrotando Tebas. Então, exigiu que a cidade pagasse um tributo anual de cem bois durante trinta anos. Do contrário, Ergino cortaria as orelhas, o nariz e as mãos de todos os tebanos. Heracles estava cheio de si depois de ter matado o leão e de ter sido celebrado como herói em Téspia e, ao ser informado das intenções dos orcomenianos, resolveu expressar em nome de todos os tebanos – inclusive de seu rei, Anfitrião – que eles não aceitariam imposições. E Heracles fez isso não com palavras, mas com ação. Ele cortou o nariz, as orelhas e as mãos de todos os membros da comitiva e os mandou de volta, como uma mensagem viva do que aconteceria aos orcomenianos se voltassem a cobrar tributos dos tebanos. Ao saber do que aconteceu à sua embaixada, Ergino, rei de Orcomeno, exigiu que os tebanos lhe entregassem Heracles. O herói, porém, conclamou Tebas a resistir. Ele percorreu os templos da cidade e recolheu todas as armas, escudos, armaduras e capacetes que haviam sido ofertados aos deuses como espólio de guerra. Com esse equipamento, armou e treinou os cidadãos de Tebas – e bem a tempo. Ergino já ordenara que seu exército marchasse sobre Tebas. Não contava, porém, que enfrentaria um homem de força sem igual, filho do próprio Zeus. Heracles e seus homens emboscaram as forças de Ergino num desfiladeiro. Derrotados, os orcomenianos bateram em retirada, mas Heracles os perseguiu e matou Ergino à flechadas. Os tebanos exultaram. Finalmente tinham se livrado do jugo de Orcomeno. No entanto, a vitória teve seu preço.


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Entre as baixas de Tebas estava o padrasto de Heracles, o rei Anfitrião. Depois de bater as forças de Ergino, Heracles entrou em Tebas como herói. Ele, que havia sido banido como um criminoso, condenado a viver entre os pastores numa aldeia distante, retornava agora em triunfo. O novo rei, Creon, lhe deu o título de Protetor da Cidade e a mão da sua filha mais velha, Megara. Sua lenda começava a ser solidamente construída, e Heracles cuidou de acrescentar mais andares ao seu templo de fama.

O Grande Hércules (Hendrick Goltzius, c. 1595)

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Depois de gerar filhos em Megara – algumas fontes falam de dois, outras de oitos –, chamados Alcaides, Heracles se voltou contra os eubeus, tradicionais inimigos de Tebas. Como não poderia deixar de ser, o herói os derrotou, mas horrorizou toda a Grécia com o castigo que impôs a Piraecmus, rei de Eubeia: fez com que dois cavalos o puxassem até desmembrar seu corpo, o qual deixou insepulto às margens do rio Heracleio. Os 12 Trabalhos de Heracles O barbarismo de Heracles chocou não só o mundo civilizado, mas também os deuses – exceto, claro, Ares e seus pares. A velha raiva de Hera pelo filho bastardo de Zeus se acendeu de novo. Os excessos de Heracles justificavam uma intervenção divina, especialmente porque ele era um herói, um exemplo para todos os gregos. Hera o puniu, então, com a loucura. Tomado de uma fúria cega, Heracles viu inimigos em sua própria família e matou seus próprios filhos, cujos corpos ele queimou numa enorme pira, deixando suas almas para sempre sem lar. Quando recuperou a razão, Heracles se fechou dentro de si mesmo. Deprimido, retirou-se para uma câmara escura e sem janelas, onde permaneceu trancado e sem nenhum contato com o mundo exterior durante vários dias. Ao sair do retiro, foi purificado pelo rei Téspio – o rei-sacerdote em cujas filhas Heracles tinha gerado cinquenta e um filhos. Depois, Heracles viajou até Delfos, consultar o oráculo de Apolo, buscando saber o que poderia fazer para compensar a hediondez que havia praticado.


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O oráculo de Delfos ficava num promontório, cercado por bosques sagrados. Depois de sacrificar um bode para Apolo à entrada do templo, Heracles foi recebido pelos sacerdotes do deus e fez sua pergunta. Então, foi conduzido até o interior do templo, onde a pítia aguardava. Um dos sacerdotes sussurrou a pergunta do herói no ouvido da sacerdotisa, e a mulher se preparou para encontrar o deus. Sentou-se num banco de carvalho entalhado colocado sobre uma fenda na rocha, por onde vazavam vapores. Logo, ela entrou em transe. Ergueu-se e começou a dançar uma coreografia louca, falando, vez por outra, frases soltas que pareciam não fazer sentido. No entanto, os sacerdotes prestavam cuidadosa atenção ao que ela dizia. De repente, a pítia parou e caiu – só não se estatelou no chão porque um dos sacerdotes a segurou a tempo. O mais velho dos sacerdotes se certificou de que a sacerdotisa estava bem e foi até Heracles interpretar a confusa mensagem de Apolo. Em vez de Palemon, o nome que recebera de Anfitrião, a pítia lhe havia dado um novo nome, Heracles, isto é, “Gloria de Hera”, e o instruía a ir a Tirinto, onde deveria servir ao rei Euristeu por doze anos, realizando qualquer missão ou tarefa que ele lhe desse – custasse o que custasse. Em troca ele se tornaria imortal. Heracles, que já estava abatido, ficou ainda mais desanimado. Seu orgulho o impedia de servir a um homem sabidamente inferior a ele; por outro lado, Heracles jamais desobedeceria à vontade dos deuses, expressa pelo oráculo.

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Mas o herói não estava só; tinha a simpatia dos olímpicos – menos de Hera. Ao partir para sua longa jornada, Heracles recebeu de Apolo um arco e flechas guarnecidas com penas de águia; de Hermes, uma espada; de Hefesto, um peitoral dourado; Poseidon lhe deu uma parelha de cavalo; Zeus, um escudo que jamais se partiria; e Atena lhe ofereceu um manto. Além disso, Atena o abençoou com a promessa do gozo dos prazeres simples, e Hefesto, com a proteção contra os perigos da guerra. Heracles partiu, então acompanhado de seu escudeiro, o sobrinho Iolau, expiar as ofensas que seu orgulho o levaram a cometer contra o Cosmos – a Ordem Harmoniosa das Coisas2.

Os 12 Trabalhos de Heracles (Pietro da Cortona, meados séc. 17)


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O Leão de Nemeia Euristeu decidiu que daria dez trabalhos impossíveis de serem realizados a Heracles. A primeira tarefa que o rei exigiu de Heracles, mal o herói chegou a Tirinto, foi matar e esfolar o leão de Nemeia – uma fera enorme, cuja pele não podia ser violada por nenhuma arma. Sem demora, Heracles foi para Nemeia, mas tantos haviam sido mortos pelo leão, que o herói não encontrou ninguém na região. Também não encontrou rastros da criatura – nem nos arredores das aldeias, nem nas montanhas. Um dia, depois de muito procurar, Heracles surpreendeu a fera voltando ao seu covil. O leão – presas lambuzadas de sangue – andava pesado com a recente vítima que devorara. Heracles disparou uma saraivada de flechas, mas elas mal roçaram a pele dura do leão. Desembainhando a espada que Hermes lhe dera, Heracles investiu de novo. O herói golpeou o leão diversas vez. A arma, porém, quebrou, sem ferir a fera. E num instante Heracles estava atacando novamente, dessa vez com a clava. A bordoada que Heraces desferiu na cabeça do leão o atordoou um pouco – o bastante para que ele entrasse no seu covil. Então, Heracles despiu o peitoral que recebeu de Hefesto e pôs de lado o escudo que Zeus lhe dera. Dali em diante, suas armas eleitas seriam mesmo o arco e flechas e a clava de madeira de oliveira; sua armadura, ele estava prestes a conquistar. Fechando uma das entradas da caverna que servia de covil ao leão, Heracles entrou de mãos nuas para buscar a fera. Sabia que a única forma de vencer era estrangulando o animal. E assim fez. Durante a luta, o leão arrancou um 113


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dos dedos de Heracles, mas o herói apertou ainda mais as mãos, até que finalmente estrangulou o oponente. Vitorioso, Heracles levou a carcaça a Tirinto e a depositou aos pés do rei. Euristeu ficou apavorado. Jamais esperava que Heracles voltasse vivo e, temendo pela sua segurança e de sua capital, proibiu-o de entrar em Micenas novamente. Dali por diante, ele deveria exibir os frutos dos seus trabalhos do lado de fora das muralhas da cidade. A Hidra de Lerna O segundo trabalho que Euristeu confiou a Heracles foi destruir a Hidra de Lerna, um monstro gerado por Tífon – o arqui-inimigo dos deuses – e Equidna – uma criatura meio mulher e meio serpente. Quando a hidra nasceu, Hera decidiu usá-la na sua vingança contra Heracles, e a criou. Heracles mal descansou da sua primeira missão e já partia para Lerna, uma fértil região no litoral, bem perto da cidade de Argos. Há anos, a hidra aterrorizava Lerna. O covil da besta – um estranho ser com enorme corpo de cachorro dotado de centenas de cabeças de serpentes venenosas, sendo que uma delas era imortal – ficava numa árvore na nascente do rio Amimone. De lá, a fera assombrava o enorme manguezal de Lerna – o túmulo de muitos viajantes desavisados. O veneno destilado pelas milhares de presas tinha tal potência que até mesmo o hálito da hidra era fatal. Heracles só venceria com a ajuda dos deuses. E ele a tinha.


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Atena – a gentil senhora das vitórias – esperava Heracles em Lerna, pronta para dirigir suas ações. Quando o herói chegou em seu carro de guerra, conduzido pelo sobrinho Iolau, a deusa lhe mostrou onde era o covil da hidra. Ela também instruiu Heracles sobre a melhor forma de combater o monstro. Seguindo o conselho de Atena, Heracles atacou a criatura com uma saraivada de setas incandescentes. A hidra saiu da sua cova sob a árvore – as cabeças de cobra cuspindo peçonha, matando todas as coisas vivas que ainda restavam a seu redor. Heracles prendeu a respiração e atacou a aberração com sua clava – em vão. Para cada cabeça que o herói esmagava, duas ou três outras surgiam no lugar, vomitando ainda mais pestilência. Para piorar ainda mais as coisa, Hera fez um gigantesco caranguejo sair do mangue em auxílio à hidra. A criatura agarrou os pés de Heracles com suas pinças, tentando desequilibrá-lo. Heracles esmagou a carapaça do caranguejo com sua clava, mas não conseguiria vencer a hidra sem ajuda. Gritando por Iolau, Heracles prendeu a respiração de novo e voltou a atacar o monstro, esperando que o sobrinho viesse em seu socorro. Ioulau ateou fogo a um bosque adjacente e, munido de tochas, entrou no combate. Enquanto Heracles esmagava as cabeças com a clava, Ioulau cauterizava o ferimento com a tocha. Assim, sem o sangue para nutri-las, as cabeças pararam de se reproduzir. Heracles e seu escudeiro foram abrindo caminho naquela selva ululante de cabeças de serpentes, até que finalmente restou apenas uma – a imortal, parte da qual era de ouro. Acossada, a hidra se tornou ainda mais feroz, 115


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lançando veneno e sibilando. Heracles decepou a última cabeça e a enterrou, ainda cuspindo peçonha, debaixo de uma grande pedra. Depois, abriu a carcaça do monstro e mergulhou a ponta de suas flechas na sua bile. A partir de então, um mínimo arranhão das suas já letais setas seria mortal. Mais uma vez, Hera lamentou a vitória do seu desafeto. Em homenagem ao caranguejo esmagado por Heracles, ela colocou sua imagem nas estrelas, como a constelação de Câncer. Hera também advertiu Euristeu para não contar aquele trabalho como completado, pois Iolau tinha ajudado Heracles.

Herácles contemplativo depois de abater a hidra (Ludovico Caracci, fin. séc. 18)


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A Corça de Cirineu Euristeu ordenou, então, que Heracles lhe trouxesse viva a maravilhosa corça do Monte Cirineu. Era um animal raro: veloz como o pensamento, seus cascos eram de bronze e seus chifres, de ouro. No entanto, quem capturasse a corça estaria cometendo um sacrilégio, pois o animal era consagrado à Ártemis. Certa vez, quando a deusa caçadora ainda era criança, ela viu cinco corças pastando próximo a um regato. O sol dardejava em seus cascos de bronze, e a luz refletida pelo ouro dos chifres cegava quem tentasse distinguir as criaturas por trás daquele brilho. Desejandoas, Ártemis perseguiu as corças e as capturou com as próprias mãos – todas menos uma, a qual Hera havia feito a corça fugir para o Monte Cirineu, planejando usá-la em seu plano contra Heracles. Como temesse ferir a corsa, o herói perseguiu sua presa pacientemente durante um ano. Com Heracles em seu encalço, o animal fugiu para o norte longínquo, para a terra dos hiperbóreos – os quais muitos acreditam ser os celtas. Sem descanso, a corça continuou a fuga, voltando para a Grécia. Ao chegar às margens do rio Ládon, na Arcádia, o animal estava exausto. Heracles teria, agora alguma chance de capturar a veloz corsa. Enquanto o animal corria, Heracles trespassou suas pernas dianteiras com uma flecha. A corça não foi ferida, pois Heracles fez a seta passar entre os ossos e os tendões, sem derramar sequer uma gota de sangue. O herói colocou a corça sobre os ombros e partiu para Tirinto, mas Ártemis surgiu em seu encalço. Estava irada por ele ter capturado um animal 117


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consagrado a ela. Heracles a apaziguou, dizendo que ele não tivera escolha e que a culpa era de Euristeu. Ártemis, inspirada por Atena, acabou deixando que o herói levasse a corça para Tirinto e cumprisse mais um desafio. O Javali de Erimanto Nas encostas cobertas por florestas do Monte Erimanto havia um javali que espalhava a ruína entre os pastores. A brutalidade da besta parecia ser uma punição divina, algum capricho de Ares, senhor dos javalis3. E foi no terceiro ano da servidão de Heracles que Euristeu resolveu ordenar que o herói capturasse o javali de Erimanto e o trouxesse vivo a Micenas. No caminho para Erimanto, Heracles passou pela Élida, assombrada pelo bandido Sauro. O “Lagarto” emboscava os viajantes nas estradas, os roubava e assassinava. Heracles aproveitou sua passagem por aquela terra para livrá-la de Sauro – a quem liquidou facilmente. Em seguida, hospedou-se na casa do centauro Folo, seu velho amigo. Os centauros – seres monstruosos e brutais, metade homem e metade cavalo – viviam nas montanhas e se alimentavam de carne crua. Essas criaturas haviam sido geradas pela lubricidade de Ixion. Esse rei mortal, depois de ter assassinado brutalmente a esposa, se arrependeu e foi perdoado por Zeus. Mas ao ser recebido no Olimpo, Ixion, bêbado, tentou violentar Hera. Zeus fez uma nuvem assumir a forma da deusa, e foi essa nuvem que Ixion possuiu, nela gerando os centauros.


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Folo, porém, não era descendente de Ixion, mas de Sileno – o filho do deus dos pastores Pã – e de uma ninfa5. Ele recebeu Heracles na sua casa e o serviu com hospitalidade: para o herói carne assada; para ele, crua. Folo desculpou-se, porém, por não servir vinho. Ele explicou que só havia uma jarra, mas não poderia abri-la porque era comunal – um presente de Dionísio para todos os centauros. Heracles insistiu, dizendo para Folo não temer. No entanto, quando o anfitrião abriu a jarra e serviu seu conteúdo, os centauros farejaram o aroma do forte vinho e, enraivecidos, armaram-se e correram até a casa de Folo. Enquanto Folo se escondia assustado, Heracles recebeu os centauros à flechadas. O herói os teria derrotado imediatamente, mas Néfele, a Nuvem, intercedeu em favor de seus netos e fez cair uma pesada chuva, prejudicando a pontaria de Heracles. Os centauros fugiram, com Heracles em seu encalço, e se refugiaram no palácio de Quíron, seu rei. Quíron, o mais sábio de todos os centauros, um imortal, filho de Crono, que havia ensinado diversas artes a deuses e heróis, era velho amigo de Heracles. Mas Heracles estava cego de fúria e perseguiu os centauros até a casa de Quíron. Uma das suas flechas – envenenada com a bílis da hidra de Lerna – trespassou o braço do centauro Elato, e cravou no joelho de Quíron. Como Quíron era imortal, o veneno da hidra não o matou. Sua imortalidade não impediu, porém, que ele padecesse de dores lancinantes. Quíron, que tinha ensinado a medicina ao próprio Asclépio – o deus dessa arte –, não podia nem se curar, nem morrer.

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(Depois, quando Zeus perdoou Prometeu por ter roubado o fogo do céu e o entregado aos homens, Quíron aceitou substituir Prometeu no Hades. Assim ele se livrou das dores terríveis o ferimento de Heracles lhe causara) Apesar de Folo não ter participado da luta, ele se sentiu culpado por ter oferecido o vinho comunal dos centauros a Heracles, começando, assim, a disputa. Consternado, Folo cuidou de enterrar seus congêneres. Mas ao retirar uma flecha envenenada do corpo de um deles, Folo deixou acidentalmente a flecha cair, trespassando seu pé. Contaminado com o poderoso veneno, o centauro morreu em seguida. Heracles, que já havia partido em busca do javali de Erimanto, retornou para se encarregar do funeral do amigo, realizando uma cerimônia magnífica em sua homenagem. Capturar o javali vivo foi uma tarefa difícil – mesmo para Heracles. O herói desentocou o animal assustando-o com berros. Em seguida, Heracles o perseguiu, levando a fera Monte Erimanto acima, até uma funda ravina, cheia de neve. Com as patas afundadas na neve, o javali ficou impedido de correr. Heracles aproveitou o momento e pulou sobre o dorso do animal, agarrando-o e o imobilizando com correntes. Depois, colocou-o sobre os ombros e o levou de volta a Micenas. Ao chegar na cidade, Heracles ouviu falar da expedição dos Argonautas, que partiam, liderados pelo herói Jasão, em busca do Velo de Ouro. Heracles foi tomado pelo impulso de se juntar a eles e sem esperar por outras ordens


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de Euristeu – o qual havia covardemente se escondido com medo do herói –, deixou o javali na entrada do mercado4 e seguiu com os Argonautas em busca de aventura. A Estrebaria de Áugias O quinto trabalho que Euristeu deu a Heracles foi limpar a estrebaria do rei Áugias em apenas um dia. Áugias, rei de Élis, no Peloponeso, filho de Hélios, o Sol, era o homem que possuía o maior rebanho da terra. Por decreto divino, seus animais não ficavam doentes nunca, além de serem extremamente férteis. Há anos sua estrebaria não era limpa, e, embora os animais fossem imunes às doenças produzidas pela sujeira, o esterco acumulado veio a espalhar uma pestilência fatal através de todo o Peloponeso. Euristeu divertia-se antecipando a humilhação de Heracles: o filho de Zeus teria de encher cestos mais cestos de estrume e carregá-los nos ombros. Heracles se comprometeu com Euristeu a realizar a missão em apenas um dia, mas, ao chegar a Élis, pediu a Áugias a décima parte do seu rebanho como pagamento pelo trabalho. A reação de Áugia foi incredulidade. O rei não acreditava que Heracles fosse capaz de remover a sujeira de seus rebanhos, mesmo que levasse a vida inteira se dedicando à tarefa. Por isso, Áugias concordou com o preço pedido por Heracles. Mandou que seu filho mais velho, Fileu, servisse de testemunha do trato. Fileu pediu que Heracles jurasse que cumpriria a missão no prazo estabelecido. O herói jurou – a primeira e única vez em sua vida que Heracles se submeteu a um juramento. 121


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Ajudado pelo sobrinho Iolau, Heracles lançou mãos à obra. Primeiro eles abriram duas frestas nos muros da gigantesca estrebaria e em seguida desviaram os rios Alfeu e Peneu de maneira que suas águas corressem através da estrebaria, arrastando toda a imundície acumulada. Dessa forma, Heracles cumpriu a tarefa em um dia e, além de tudo, sem sequer sujar as mãos. Entrementes, Áugias soube que Euristeu havia ordenado a Heracles que ele realizasse aquele trabalho. Quando o herói apareceu para reclamar seu pagamento, o rei, sentindo-se ludibriado, se recusou a pagá-lo e até negou que tivesse feito um trato com ele. Heracles não se deu por vencido e exigiu que o caso fosse julgado por um tribunal. No entanto, quando Fileu testemunhou em favor de Heracles, seu pai se ergueu enfurecido do trono e, dizendo que o trabalho tinha, na verdade, sido feito pelos deuses-rios Alfeu e Peneu e não por Heracles, baniu o filho e o herói de Élis. Euristeu, por sua vez, afirmou que Heracles estivera a serviço de Áugias e fôra ajudado por Iolau e não contou aquela tarefa entre as dez que exigiria de Heracles. Os Pássaros de Estinfalo Junto ao Pântano de Estinfalo havia um bando de aves monstruosas consagradas a Ares que se alimentavam de carne humana. Seus bicos, garras e asas eram de bronze; suas penas, setas mortais que disparavam contra homens e animais, vitimando-os. O excremento das aves era igualmente mortal, destruindo as plantações e poluindo


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rios e fontes. Euristeu desejou que Heracles livrasse a região do Pântano de Estinfalo daquela ameaça. Ao chegar ao seu destino, Heracles se viu impedido de cumprir a missão: os pássaros eram muito numerosos para serem abatidos à flechadas. O herói quedou-se pensativo na extremidade do pântano, sem saber ao certo o que fazer. E, mais uma vez, os deuses intercederam por ele. Atena apareceu a Heracles e lhe entregou um par de címbalos de bronze feitos por Hefesto. Heracles soou os címbalos, os quais produziram um som tão alto que os pássaros assassinos se ergueram tontos de pavor numa revoada infernal. Heracles aproveitou para abater um grande número deles à flechadas. O restante fugiu para Ilha de Ares, no Mar Negro, onde os Argonautas os encontraram, tempos depois.

Hércules abatendo os pásaros de Estinfalo (Albrecht Dürer)

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O Touro de Creta Para provar a seus irmãos seu direito ao trono, Minos, o rei de Creta (e criador da pederastia), disse que era capaz de fazer aparecer do mar o touro mais majestoso que jamais surgira. Orando a Poseidon, Minos prometeu ao deus sacrificar o magnífico touro, tão logo ele surgisse. Poseidon fez o que Minos lhe pedira, mas o rei, ao ver criatura tão majestosa, resolveu se apossar do touro e sacrificou um animal inferior ao deus. A ganância de Minos o impediu de ver Poseidon não se deixaria enganar facilmente. Enfurecido, o deus do mar lançou um maldição sobre Minos. Primeiro, Poseidon fez a esposa de Minos, a rainha Pasifae, se apaixonar perdidamente pelo touro surgido do mar. A pobre mulher pediu a Dédalo, o inventor de Minos, que a ajudasse a consumar sua paixão. Dédalo construiu uma vaca, dentro da qual Pasifae entrou para ser coberta pelo touro de Poseidon, gerando assim uma criatura hedionda – um homem com cabeça de touro, o Minotauro. Em seguida, para completar sua vingança contra Minos, Poseidon transformou o belo touro branco que fizera sair do mar numa criatura ensandecida. O animal se tornou uma ameaça a Creta. Soltando fogo pelas ventas, passou a destruir pomares, plantações, animais e pessoas. O sétimo trabalho de Heracles era destruir o Touro de Creta. Ao chegar à ilha, Minos ofereceu toda ajuda possível a Heracles, mas ele escolheu agarrar o touro à unha – o que conseguiu depois de uma batalha titânica. Como fez com a corça de Cerineu e o javali de Erimanto, Heracles levou o touro de Creta vivo para Micenas e o entregou ao rei. Eu-


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risteu, então, dedicou o animal à deusa Hera e soltou o magnífico touro branco. Mas Hera odiou a homenagem. Não poderia se comprazer numa oferenda vinda a ela através de um feito glorioso de Heracles, o odiado bastardo de Zeus. Marcando a terra com sua fúria, ela fez o touro correr por toda a Grécia, espalhando terror e destruição por onde passava, até que o herói Teseu o capturou e o levou a Atenas, onde ofereceu o touro em sacrifício à deusa Atena. As Éguas de Diomedes Podargo, Lâmpon, Xanto e Deino eram animais demoníacos. Éguas carnívoras, com afiados cascos de bronze e presas de leão. Seu dono, Diomedes, filho de Ares e rei da Trácia, tinha o odioso costume de alimentar suas éguas com a carne dos estrangeiros que se atreviam a entrar no país. No oitavo ano a serviço de Euristeu, Heracles foi incumbido de roubar esses animais de Diomedes e levá-los vivos para Micenas. Heracles zarpou para a Trácia com um grande número de voluntários, visitando no caminho seu velho amigo Admeto, rei de Feres, na Tessália, e companheiro de Heracles na expedição dos Argonautas. Quando chegou, o herói encontrou a cidade de luto – as lamentações das carpideiras ecoando por toda a parte. Soube, então que a rainha, Alceste, havia morrido. Encontrando Admeto sufocado de dor pela perda da esposa, Heracles se comoveu e resolveu descer aos infernos em busca de

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Alceste, de onde a trouxe de volta, mais bela e mais jovem do que nunca. Finalmente, Heracles chegou à Trácia e imediatamente roubou as éguas de Diomedes. Enquanto ele as levava para seu navio, para embarcá-las a Micenas, os súditos de Diomedes o atacaram. Heracles deixou os animais aos cuidados de Abdero, um dos filhos do deus Hermes, e se preparou para combater os habitantes do país. Ele contava com poucos homens e teria de usar astúcia em lugar de força. Rapidamente, Heracles mandou cavar um canal, fazendo com que o mar invadisse a planície por onde os homens de Diomedes avançavam, alagando-a. Fugindo das águas, os inimigos se puseram em retirada, e Heracles e seus homens aproveitaram para persegui-los. O próprio Heracles se encarregou de Diomedes. Derrubando-o com um golpe de clava, Heracles o arrastou até seu navio e o deu como repasto às suas próprias éguas. Euristeu teve seu desejo realizado, mas a um preço alto: a morte do filho de Hermes. Enquanto Heracles lutava contra Diomedes, Abdero havia sido morto e devorado pelas éguas. O Cinturão de Hipólita Admetes, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera, desejou um prêmio raro e especial, o cinturão de Hipólita, rainha das amazonas, dado a ela pelo próprio Ares. Euristeu encarregou, então, Heracles de trazê-lo à filha. O herói partiu acompanhado de uns poucos voluntários, entre eles seu sobrinho Iolau e Teseu, o grande herói ateniense que havia matado o minotauro.


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As amazonas eram um povo guerreiro, descendente de Ares, composto exclusivamente de mulheres. Em sua capital, Temiscira, às margens do rio Termódon, na Capadócia, os homens eram impedidos de entrar, a não ser uma vez por ano, quando as amazonas se uniam aos gargarenos, seus vizinhos. Das crianças que nasciam desse encontro, elas mantinham as meninas; os meninos, elas os matavam ou os entregavam aos pais. Dizia-se que essas filhas de Ares, costumavam suprimir o seio direito para melhor poder manejar o arco. Por isso eram chamadas de amazonas, isto é, “mulheres sem um seio”. Poderosas, as amazonas haviam fundado várias cidades e chegaram a invadir a Ática para vingar a morte de Antíope, irmã da sua rainha, Hipólita, assassinada por Teseu. Conta-se que todos os anos, os atenienses ofereciam sacrifícios aos manes, ou espíritos, das inimigas tombadas nesse combate. Quando Heracles chegou a Temiscira, Hipólita o recebeu pacificamente. Ela foi visitá-lo em seu navio, ancorado no rio Termódon, buscando descobrir o que Heracles viera fazer em seu reino. O herói não ocultou nada. Enquanto ele explicava sua missão, Hipolita o observava e ficou encantada pelo corpo forte de Heracles. Ela lhe disse que daria o cinturão de Ares a ele, como prova de amor. Mas as coisas não seriam assim tão fáceis para Heracles. Hera havia se transfigurado em uma amazona e, enquanto Heracles e Hipólita se amavam, ela espalhou o boato entre as mulheres guerreiras de que o herói viera raptar sua rainha. Enfurecidas, as amazonas se armaram, montaram seus cavalos e atacaram o barco de Heracles. Achando que 127


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Hipólita tinha armado tudo para atacá-lo de surpresa, Heracles a matou imediatamente e arrancou seu cinturão. Em seguida, armou-se com o machado de guerra de Hipólita e saiu para combater as amazonas. Apesar de as guerreiras serem em grande número, Heracles e seus homens as massacraram e puseram as sobreviventes em fuga. Assim, o herói pôde levar o prêmio de Admetes de volta a Micenas.

Heracles e Hipólita (Luca Penni, 1ª metade séc. 16)


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O Gado de Gerião Gerião era o ser mais forte de todo o mundo. Era um gigante de três cabeças, seis braços e três torsos unidos na cintura. Gerião vivia numa ilha longínqua na Espanha, Erícia, e possuía enorme rebanho de gado vermelho, tão belo quanto raro. Essa imensa riqueza era guardada por um dos filhos de Ares, Eurícion, e pelo cachorro de duas cabeças Ortro, irmão de Cérbero, o cão de guarda do inferno. Euristeu cobiçava o gado de Gerião e, convencido de que Heracles poderia satisfazer também esse seu desejo, mandou que o herói o roubasse. Heracles partiu, então, à Espanha, enfrentando e destruindo diversos monstros por onde passou. Ao chegar a Tartesso, Heracles separou a África da Europa, cavando um profundo canal, e erigiu duas gigantescas colunas, uma em cada continente – as Colunas de Heracles. Mas o calor escaldante o perturbou. Irritado, o filho de Zeus armou seu arco com uma flecha envenenada e disparou contra Hélios, o Sol. Irado com a insolência, Hélios ordenou que Heracles se acalmasse, o que o herói fez prontamente, desculpando-se pelo mau humor. Hélios não quis ser menos cortês do que Heracles e abrandou a intensidade dos seus raios. Ainda por cima, emprestou a Heracles a taça de ouro em forma de lírio que, quando Hélios desce do céu, o conduz por baixo da terra até o ponto onde ele deve subir novamente. Foi navegando nessa taça que Heracles chegou a Erícia. Em busca do gado de Gerião, Heracles subiu num promontório. Ortro, porém, farejou o herói e o atacou, apenas 129


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para ter suas duas cabeças esmagadas pela clava de Heracles. Alertado pelos latidos de Ortro, Eurícion correu em seu socorro, mas seu destino foi o mesmo que o do cão. Heracles reuniu o gado vermelho e estava começando a embarcá-lo na taça de Hélios quando Gerião, avisado por outros pastores, surgiu e o desafiou para uma luta até a morte. Heracles armou seu arco e, posicionando-se de frente para o flanco do gigante, disparou uma única flecha que varou os três corpos de Gerião. Então, Hera se manifestou, buscando ajudar Gerião. Heracles, porém, não se deixou intimidar pela figura divina. Ele a flechou no seio direito, ferindo-a e a fazendo fugir. Parte do caminho, Heracles venceu usando a taça de Hélios, a qual devolveu na primeira oportunidade. Pelo trajeto da Espanha à Grécia, Heracles fundou diversas colônias, entre elas as cidades de Pompeia e Herculano, na Itália. Quando cruzou os Pirineus, Heracles cortejou a princesa Pirene, que empresta seu nome às montanhas. Suas façanhas entre s gauleses foram eternizadas nas canções dos seus melhores bardos, e o herói passou a ser cultuado também entre aquele povo. Heracles precisou igualmente enfrentar, ao longo do caminho, inimigos que desejavam o raro gado de Gerião. Numa das batalhas, ele se viu sem flechas e desarmado. Ajoelhando-se em desespero – lágrimas correndo pelo rosto –, ele pediu socorro ao seu pai. Zeus o ajudou prontamente, fazendo cair uma chuva de pedras.


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Continuando a tanger o gado até a Grécia, sempre se envolvendo com os habitantes das regiões por onde passava, Heracles finalmente se aproximou da Grécia. Mas Hera fez valer sua vingança, mandando um gigantesco moscardo que enlouqueceu o gado, dispersando-o por todo o país. Depois de muito esforço, Heracles conseguiu reunir a maior parte do rebanho e o levou até Micenas. Os Pomos de Ouro Heracles havia realizado suas dez missões em oito anos e um dia, mas Euristeu não considerou o segundo e o quinto trabalhos – a derrota da hidra de Lerna e a limpeza dos currais de Áugias –, pois Heracles havia recebido ajuda. Por isso, ele estabeleceu mais duas tarefas para Heracles realizar antes de liberá-lo de seus serviços. Euristeu temia Heracles. Sabia que o humilhava e não se sentia seguro com relação à atitude do herói depois que sua expiação terminasse. Pensou, então, em dois trabalhos impossíveis de se realizar. O primeiro era uma clara provocação à Hera, cujo ódio a Heracles o colocara naquela situação. O filho mortal de Zeus teria de roubar uma das maçãs de ouro que cresciam no Jardim das Hespérides. A árvore havia sido o presente de casamento que Gaia, a Mãe Terra, dera a Hera. Ela gostou tanto do presente que o plantou no seu jardim divino, guardado pelas filhas da Noite, as ninfas Hespérides. As maçãs de ouro também eram vigiadas por um filho de Tífon: o dragão de cem cabeças Ládon.

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Heracles confrontando um dragão (Antonio Tempesta, c. 1608)

No entanto, ninguém sabia onde era o Jardim das Hespérides. Heracles foi buscar conselho com as ninfas do deusrio Erídano, que também não sabiam dizer, mas lembraram ao herói que Nereu, o velho do mar, conhecia todos os segredos do céu, da terra e das águas. Nereu, filho de Ponto, o Mar, e de Gaia, já era ancião quando Poseidon começou a governar os mares. Heracles decidiu capturar o velho para obrigá-lo a dizer onde ficava o misterioso jardim. Ele esperou Nereu dormir, agarrou-o e o amarrou, dizendo que só o soltaria quando ele revelasse o caminho para as maçãs de ouro. Como outras divindades marinhas, o velho do mar podia se transmutar numa série de criaturas – e foi o que fez, tentando escapar. Ele se transformou num leão, mas as correntes que Heracles havia usado para prendê-lo estavam apertadas demais; então, Nereu assumiu a forma de uma enorme serpente – igualmente sem


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resultado–; finalmente o velho virou uma labareda. Heracles, porém, não se deixou intimidar, e Nereu foi obrigado a revelar o segredo. Heracles viajou até os confins do Ocidente, até encontrar os portões de ouro do jardim. Ao seu lado, Atlas, o titã, sustentava a abóbada celeste. O dragão Ládon guardava a entrada do jardim, e Heracles perguntou a Atlas qual era a maneira pela qual ele conseguiria roubar as maçãs. Para sua surpresa, Atlas se ofereceu para ir buscá-las, desde que Heracles ficasse no seu lugar, sustentando o firmamento. O herói concordou e assumiu o lugar do titã. Atlas voltou pouco depois, com as maçãs, mas tinha gostado da sua liberdade e, tentando estendê-la ao máximo, disse que queria ir ele mesmo entregá-las a Euristeu. Heracles estava numa situação delicada: não podia simplesmente largar o céu... Pediu apenas que Atlas sustentasse um pouco o firmamento, enquanto ele conseguia um apoio para não machucar a cabeça. Atlas voltou a segurar o fardo, mas Heracles se apossou das maçãs e, com um irônico adeus ao titã, partiu para entregá-las a Euristeu. O rei, temendo a ira de Hera, tratou de consagrar os frutos a Atena, a qual, agindo de acordo com sua dignidade emblemática, as devolveu às hespérides. A Captura de Cérbero Decidido a se livrar de Heracles, Euristeu lhe deu a última e mais difícil tarefa: capturar Cérbero, o cão de três cabeças que guarda a entrada do inferno. Antes de partir, o filho de Zeus buscou purificação e viajou a Eleusis, onde 133


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pediu para ser iniciado nos Mistérios. Depois de ter sido purificado pelo sangue que derramara ao longo de suas aventuras, Heracles pôde finalmente descer ao reino de Hades. Hermes, o guia das almas, e Atena o acompanharam na jornada. Intimidado pela presença de Heracles, Caronte atravessou-o em seu barco através do rio de fogo e lava, o Estige.

Heracles capturando Cérbero (gravura renascentista)

Ao entrar no Tártaro, Heracles foi direto ao palácio de Hades, o senhor dos mortos, e lhe disse o que queria. Hades, admirando a bravura daquele mortal, concordou, desde que Heracles capturasse Cérbero de mãos limpas. Isso não foi difícil. Heracles agarrou o monstruoso cão e o sacudiu com tanta violência, que Cérbero passou a segui-


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lo como se fosse seu novo dono. E foi assim que Heracles apareceu no palácio de Euristeu, com Cérbero a segui-lo. No entanto, ao ver o cão de três cabeças de Hades, Euristeu ficou tão aterrorizado que ordenou que Heracles o devolvesse ao seu legitimo dono6. Heracles havia finalmente cumprido sua penitência. Tinha conquistado a imortalidade e estava livre agora para voltar a Micenas. Os trabalhos a Euristeu haviam terminado, mas ainda teria muitas aventuras para viver.

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Os Argonautas

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izem que o poder é um dos maiores inimigos do homem sábio, pois depois de conquistado ele se volta contra seu detentor, enchendo-o de cobiça, deixandoo ainda mais sedento de poder, impedindo-o de distinguir o certo e o errado. O rei Pelias, embora filho de um imortal, não foi exceção. O rei Pelias, filho de Poseidon, era um homem poderoso, mas cobiçava ainda mais poder. Mesmo velho, ainda tencionava estender seu domínio sobre toda a Tessália. E pensando que o fim justifica os meios, usurpou o trono da próspera cidade de Iolco, governado pelo seu meio irmão Aeson, a quem manteve prisioneiro. Depois, Pelias assassinou tantos aliados de Aeson quanto conseguiu deitar mão. Alcimede, esposa de Aeson, tinha um filho, Jasão, legítimo herdeiro do trono de Iolco. Ostentando luto e dor, ela fingiu que a criança tinha morrido e, em segredo, a entregou a Quíron, o sábio rei dos centauros, para que ele a criasse. Alcimede temia que Pelias matasse o menino se soubesse de sua existência. Mas Pelias, desconfiou e consultou um oráculo que o avisou para ter cuidado com o homem que surgisse vestindo apenas um pé de sandália. Quíron iniciou Jasão em todas as artes civilizadas, e quando seu mestre disse que já não havia mais nada a lhe ensinar, ele partiu de volta a Iolco, reclamar o que era seu por


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direito. Jasão chegou às margens do Anauro e estava prestes a entrar na cidade, mas ao ver uma pobre velha que implorava aos passantes para ajudá-la a atravessar o rio, Jasão ofereceu para carregá-la à outra margem, sem saber que a velha era a deusa Hera. Ao sair do rio, Jasão havia perdido um pé do seu par de sandálias. A deusa agradeceu a ajuda e o abençoou, sabendo o que esperava pelo jovem. Na cidade, Jasão, acompanhando um grupo de príncipes aliados, juntou-se a Pelias num sacrifício a Poseidon. Mas quando o rei viu aquele jovem com um só pé de sandália, temeu. Perguntou, então, a Jasão o que ele faria se fosse confrontado com o homem que traria a sua queda. Sem perceber a intenção de Pelias, Jasão respondeu que o mandaria em busca do Velo de Ouro. O tosão de lã de um carneiro de ouro alado sacrificado a Zeus – um emblema de sabedoria e iluminação que conferia poder e prosperidade – era consagrado num templo florestal de Zeus, na longínqua Cólquida. Havia tantos perigos no caminho que buscar o velo era uma missão quase impossível de ser cumprida. Pelias quis, então, saber quem era aquele rapaz e o que fazia em seu reino. Jasão revelou ser o filho do rei Aeson e que viera reivindicar o trono que era seu por direito. Pelias, conhecendo a ilegitimidade de sua própria posição, consentiu, mas colocou uma condição para abdicar em favor do príncipe: Jasão deveria lhe trazer o Velo de Ouro. Ele achava que dessa forma poderia se livrar do sobrinho.

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Jasão, porém, tratou de garantir o seu sucesso. Em vez de partir sozinho, convidou os maiores heróis da Grécia antiga para acompanhá-lo na aventura. Ao todo, cinquenta deles, entre os quais Heracles, os gêmeos Castor e Polideuces – filhos de Zeus e de Leda –, Atalanta – a caçadora virgem – e o próprio Orfeu atenderam ao chamado de Jasão. A pedido do jovem, Argos, o armador, construiu uma nau de cinquenta remos, o Argo. A própria Atena, a patrona das artes e ofícios, dirigiu a construção do navio. Dizem que foi a deusa que forneceu a peça da proa da embarcação, um tronco de carvalho sagrado do templo de Zeus em Dodona, o qual conferiu à embarcação o dom da palavra e da profecia. Hera também abençoou a expedição. A deusa tinha uma cisma com Pelias, pois ele não a honrara, negligenciando os sacrifícios a ela. E assim, os tripulantes do Argo, agora chamados de argonautas, partiram numa manhã de outono, rumo à ilha de Lemnos7, sua primeira parada. Quando chegaram, foram recebido com uma oferenda de alimentos e vinho, enviada pela rainha Hipsipile. Os argonautas souberam, então que a ilha era habitada exclusivamente por mulheres. As lemnianas haviam faltado com seus sacrifícios a Afrodite, e a deusa as castigou, fazendo com que cheirassem tão mal que seus maridos passaram a recusá-las. Um ano antes da chegada dos argonautas, eles abandonaram as esposas e foram viver com concubinas que sequestraram na Trácia. Iradas, as mulheres de Lemnos se rebelaram e mataram todos os homens da cidade. Agora, com a chegada dos argonautas, Hipsipile achou que seria uma boa oportuni-


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dade de repovoar a população masculina e ofereceu seu trono e sua cama a Jasão, o líder da expedição. Embora Jasão não tenha aceitado a coroa, compartilhou de bom grado o leito de Hipsipile. Assim fizeram também os outros argonautas com o restante das mulheres de Lemnos. Ao que parece, o cheiro das lemnianas não era assim tão mau. Após duas semanas na ilha, os argonautas finalmente partiram, deixando em Lemnos uma geração de futuros heróis. Depois de alguns dias no mar, Jasão aportou o Argo na ilha de Misia e mandou alguns homens à terra, para se reabastecerem de água e alimentos. Entre eles estavam Heracles e seu servo Hilas. O jovem se afastou do grupo, indo a um regato ali perto buscar água. As ninfas do riacho se encantaram com Hilas, e o puxaram para o fundo de suas águas. Enquanto isso, os homens que haviam desembarcado já estavam a bordo do Argos novamente, e Hilas tardava. Heracles decidiu ir a sua procura e, se embrenhando na mata, também ele demorava a voltar. Jasão foi obrigado a ordenar a partida, deixando Heracles e Hilas para trás8. Sem encontrar seu servo, Heracles voltou a Micenas, para terminar de cumprir seu termo servindo o rei Euristeu. Em busca do caminho para Cólquida, onde deveriam encontrar o Velo de Ouro, os argonautas pararam em Salmidesso, onde foram recebidos pelo rei-profeta Fineu. O próprio Apolo, o deus da profecia, havia concedido esse dom ao rei. Mas Fineu começou a revelar as deliberações dos deuses aos homens, o que irritou profundamente os imortais. Além de cegá-lo, Zeus infestou suas terras com 139


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criaturas imundas, enormes aves com cabeça de mulheres, as harpias. Todas as noites, quando Fineu se sentava para jantar, as criaturas tomavam o céu, invadiam o palácio, roubavam a comida e cobriam a mesa do rei com excrementos. Impedido de comer, Fineu definhava cada vez mais.

Jasão resgatando Fineu (Bernard Picart, 1731)

O rei propôs revelar o caminho a Cólquida se os argonautas o livrassem das harpias. Dois tripulantes do Argo, Calais e Zetes, os filhos alados de Boreas, o Vento do Norte, se lançaram ao ar, assumindo a missão. Os irmãos perseguiram as harpias e mataram muitas delas à flechadas. As que


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sobreviveram, fugiram para tão longo que nunca mais voltaram a incomodar Fineu. Agradecido, o rei revelou, então, o caminho a Cólquida e como cruzar as Simplegades, as ilhas que se entrechocam.

O Argos passando pela Simpleglades (B. Picardt, 1731)

A única forma de chegar a Cólquida era passando através das Simplegades – dois enormes rochedos que batiam um no outro sempre que uma embarcação tentava navegar entre eles. Fineu disse a Jasão que se ele fizesse com que um pássaro voasse entre as rochas, precipitando-as, quando elas começassem a se afastar novamente, eles poderiam remar a toda velocidade e passar antes que as 141


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ilhas se entrechocassem pela segunda vez. Foi o que os argonautas fizeram. O Argo passou quase intacto, tendo apenas um pequeno pedaço da popa atingido, quando as pedras voltaram a se chocar. Cólquida Cólquida era um reino bárbaro, localizado nos confins do mundo civilizado. O rei Eteu e seus súditos não toleravam estrangeiros e os sacrificavam aos deuses os poucos ousados (ou desavisados) aventureiros que entravam no país. O único estrangeiro a ser poupado por Eteu foi Frixo, e mesmo assim, em condições especiais. Frixo chegou ao país montado num carneiro alado de lã dourada. Frixo fugia de sua madrasta que o perseguia e como encontrara refugio em Cólquida, sacrificou o carneiro em agradecimento a Zeus. Depois, Frixo pendurou a lã de ouro no alto de uma árvore, numa floresta sagrada, e encarregou Eteu de guardá-la. Jasão foi recebido com reservas por Eteu; mas o rei não ousou fazer nada contra os argonautas – os maiores heróis de toda a Grécia. Ao ouvir do capitão do Argo o motivo que trazia os arganautas ao seu reino, Eteu concordou em ceder a eles o Velo de Ouro. Ele temia a tripulação do Argo, mas não queria, também, que aquele objeto sagrado saísse dos bosques das suas terras. Por isso ele concederia o tosão em troca de alguns favores, que eram, na verdade, praticamente impossíveis de se realizar. Jasão se sentiu desencorajado ante a dificuldade das tarefas. Ele não sabia, porém, que Atena e Hera, suas benfeitoras, tramavam


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em seu favor. As duas deusas pediram que Eros, o deus Amor, cravasse uma das suas flechas de amor na princesa Medeia, filha de Eteu, iniciada nas ciências ocultas por sua tia Circe, a feiticeira. Cega de paixão por Jasão, Medeia propôs ajudá-lo a realizar as tarefas impossíveis ordenadas pelo pai, se ele se cassasse com ela. Jasão aceitou. Primeiro, o líder dos argonautas teria de arar um campo com touros que soltavam fogo pelas ventas. Medeia deu a ele um unguento que o protegeria das chamas. Assim, Jasão pôde prender a parelha de bois no arado e arar o campo. Em seguida, Jasão semeou as sementes de dragão que Eteu lhe dera. O que o herói não sabia é que cada semente germinava num guerreiro armado quase que instantaneamente. Quando deu por si, Jasão estava cercado por todo um exército inimigo. Mais uma vez, foi Medeia quem o salvou. Dessa vez, a princesa não usou mágica, mas a inteligência. Seguindo sua sugestão, Jasão atirou uma pedra no meio do exército. O guerreiro atingido pensou que tinha sido atacado por seu vizinho e revidou, espalhando uma briga entre as fileiras. No final, os guerreiros deram cabo uns dos outros sem que Jasão precisasse fazer qualquer outra coisa. Embora Jasão tivesse cumprido as missões que Eteu havia lhe dado, o rei não quis entregar o Velo de Ouro e planejou um meio de liquidar os argonautas. Mais uma vez, foi Medeia quem livrou os heróis do perigo. À noite, ela levou Jasão até a árvore de onde pendia a lã dourada. Um dragão de fogo guardava o local, mas Medeia o fez dormir

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com sua magia. E naquela mesma madrugada, ela fugiu com os argonautas, levando consigo o Velo de Ouro9.

Jasão encontra o Velo de Ouro (B. Picart, 1731)

Percebendo a fuga, Eteu lançou sua frota em perseguição do Argo. Na escaramuça, Atalanta foi gravemente ferida. Os homens de Eteu ganhavam vantagem. Medeia, então, matou seu próprio irmão, Apsirto, esquartejou o cadáver e começou a arremessar pedaços do corpo no mar. Para não deixar seu filho insepulto – e, consequentemente, seu manes sem um lar – Eteu ordenou que os barcos abando-


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nassem a perseguição e recuperassem as partes de seu filho. Em seguida, Medeia curou Atalanta.

Medeia esquartejando Apsirto (René Boyvin e Leonard Thiry, 1563)

Mas a viagem de retorno não foi fácil. Zeus, em punição pelo crime de Medeia, rasgou o céu e o mar com tempestades. A nau perdeu o rumo. Foi Argo, que tinha o dom da fala e da profecia, que avisou sua tripulação que eles deveriam buscar purificação pelo assassinato de Apsirto com Circe, a feiticeira, tia de Medeia. Depois de passarem algum tempo em Ea, a ilha onde vivia Circe, executando rituais de expiação, os argonautas partiram novamente.

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O Argo passou pelo pequeno arquipélago de Sireno – um lugar fantasmagórico, pontuado com as carcaças de navios naufragados. Os heróis navegavam atentos às traiçoeira rochas. De repente, uma música doce e hipnotizante começou a encher o ar. Eram as sereias que viviam naquelas ilhas; seu canto tirava os marinheiros de si e os fazia mergulhar no mar, onde as águas os tragavam. Ao ouvir a estranha música, Orfeu, patrono de todos os músicos e poetas, começou a tocar sua lira e o fez tão maravilhosamente que as sereias se calaram para ouvir aquele som celestial. O Argo pôde, então, passar através do arquipélago. Ao se aproximarem de Creta, os argonautas foram atacados por Talo, um gingante de bronze. Talo era o último representante da raça de bronze, antecessora dos homens atuais, e servia a Minos, o rei de Creta, vigiando a cidade. Talo tinha uma única veia que ia do pescoço ao tornozelo, protegida por uma cavilha. Quando Talo avistou o Argo surgindo no horizonte, começou a arremessar pedras enormes contra a embarcação. De novo, Medeia se interpôs; com sua mágica ela fez com que a veia de Talo se rompesse, e o gigante sangrou até morrer. Finalmente, o Argo retornou a Iolco. Os argonautas cobriam a Tessália de glória com seus feitos. O povo os saudava nas ruas, e os rapsodos já começavam a dar forma épica às suas aventuras, narrando suas histórias em versos nas praças dos mercados de toda a Grécia. Todos se rejubilavam, exceto Pelias. Apesar de Jasão ter voltado com o Velo de Ouro, o rei relutava em abdicar o trono de Iolco. Foi Medeia quem resolveu a questão, livrando-se de Pelias.


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Ela disse às filhas do rei que poderiam tornar seu pai jovem de novo, se elas cortassem o seu corpo e o fervessem num caldeirão com ervas mágicas. Para provar que isso era possível, ela desmembrou um carneiro, que cozinhou numa poção. Depois de um tempo, o animal pulou para fora do caldeirão. Não era mais um carneiro, de fato, e sim um cordeiro de poucos dias. As filhas de Pelias fizeram o mesmo com o pai. Médeia, porém, não adicionou as ervas mágicas, e Pélias encontrou, dessa forma, seu fim. Jasão não pôde, entretanto, assumir o trono. Acasto, filho de Pélias, acusou-o e a Medeia de assassinarem o rei. Os dois foram condenados ao exílio e se estabeleceram em Corinto, onde receberam asilo do rei Creonte. Ali, Jasão buscou fortalecer seus laços com o rei. O rumo dos acontecimentos havia mudado, e Jasão, esquecendo que fora graças a Medeia que ele conquistara o Velo de Ouro, agora via na companheira a fonte de seus problemas. Ele não hesitou, então, em se casar com Gláucia, filha de Creonte e princesa de Corinto. Mas Medeia não aceitou calada a traição de Jasão. Fingindo concordância, ela deu a Gláucia um vestido de casamento. Quando a infeliz mulher vestiu o presente, o vestido se agarrou à sua pele e ardeu em chamas. Creonte correu para ajudar a filha e morreu ele também consumido pelo fogo. Cega de raiva, Medeia ainda matou os filhos que tivera com Jasão e fugiu para Atenas. A traição de Jasão havia lhe trazido a ruína. Ajudado por Peleu, pai de Aquiles, o herói da Guerra de Tróia, ele reconquistou o trono de Iolco, mas havia perdido o favor de 147


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Hera por ter quebrado sua promessa a Medeia. Jasão terminou seus dias infeliz, sem amigos e amaldiçoado pelos deuses. Certa noite, quando dormia saudoso sob a popa do Argo, a madeira apodrecida cedeu e caiu sobre ele, matando-o instantaneamente. Quanto a Medeia, dizem que ela nunca morreu. Tornou-se uma imortal e reina nos Campos Elíseos, onde se casou com o herói Aquiles10.


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Notas do Capítulo

1 – O Herói de Mil Faces – Joseph Campbell, Cultrix/Pensamento, São Paulo, 1997, p. 36 2 – Todos os Nomes da Deusa – J. Campbell, Editora Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro, 1997, p. 92 3 – The Hutchinson Dictionary of Symbols – Jack Tresidder, Helicon, Oxford, 1997, p. 28 4 – Argonautica – Apollonius Rhodius, Online Medieval and Classical Library Release #27b, 2006, versos 122 - 132 – In http://omacl.org/Argonautica/ 5 – Dicionário de Mitologia Grega – Ruth Guimarães, Cultrix, São Paulo, 1993, p. 155 6 – Greek Myths – Robert Graves, Penguin Books, London, 1984, pp. 142 - 172 7 - Argonautica – Apollonius Rhodius, versos 592 – 608 8 – Argonauts – Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Argonauts

2006,

in

9 – The myth of Jason, the Argonauts and the Golden Fleece – Myth Web, 2006, in http://www.mythweb.com/heroes/jason/ 10 – Greek Myths – Robert Graves, p. 215

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Sobre o Autor Claudio Blanc é escritor e tradutor, autor de cerca de 600 artigos sobre História, Ciência, Literatura e Filosofia, publicados em revistas como Discovery Magazine, Filosofia Ciência & Vida, Revista do Explorador e Grandes Líderes da História. É autor de Uma Breve História do Sexo, O Lado Negro da CIA e de O Homem de Darwin. Entre seus livros infanto-juvenis estão Histórias Sopradas no Tempo e De lenda em Lenda se Cruza Fronteiras, indicado como Alta-

mente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Claudio Blanc também assina a tradução de 35 obras nos mesmos campos de conhecimento sobre os quais escreve, entre elas os bestsellers Fumaça e Espelhos, de Neil Gaiman, e O Relatório da Cia – como será o mundo em 2020?


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Direito reservados: Sindicato dos Padeiros de S達o Paulo, 2013 Este artigo pode ser reproduzido para fins educativos; a fonte deve ser citada


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