JUSTIÇA CRIMINAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS

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COORDENADOR SHEYNER YASBECK ASFORA

JUSTIÇA CRIMINAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS ORGANIZADORES JOSÉ IDELTÔNIO MOREIRA JÚNIOR ARTHUR ASFORA LACERDA GUILHERME PINTO DO NASCIMENTO

1º EDIÇÃO

REVISTA CIENTÍFICA


JUSTIÇA CRIMINAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS


CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE Editor-chefe da Associação da Revista Eletrônica a Barriguda - AREPB ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 28.151.313/0001-60 Acesse: www.abarriguda.org.br CONSELHO CIENTÍFICO Adilson Rodrigues Pires Alessandra Correia Lima Macedo Franca Alexandre Coutinho Pagliarini André Karam Trindade Arali da Silva Oliveira Bartira Macedo de Miranda Santos Belinda Pereira da Cunha Carina Barbosa Gouvêa Carlos Aranguéz Sanchéz Chirlaine Cristine Gonçalves Cleide Calgaro Clóvis Eduardo Malinverni da Silveira Constantino Cronemberger Mendes Dyego da Costa Santos Elionora Cardoso Emanuel Neto Alves de Oliveira Fabiana Faxina Francisco de Assis Cardoso Almeida Gisela Maria Bester Glauber Salomão Leite Gustavo Rabay Guerra Ignacio Berdugo Gómez de la Torre Jaime José da Silveira Barros Neto Javier Valls Prieto José Ernesto Pimentel Filho Juliana Gomes de Brito Ludmilla Albuquerque Douttes Araújo Lusia Pereira Ribeiro Marcelo Alves Pereira Eufrásio Marcelo Weick Pogliese Marcílio Toscano Franca Filho Niédja Marizze César Alves


Olard Hasani Paulo Jorge Fonseca Ferreira da Cunha Raymundo Juliano Rego Feitosa Ricardo MaurĂ­cio Freire Soares Sanchita Bhattacharya Talden Queiroz Farias Valfredo de Andrade Aguiar Filho Vincenzo Carbone


SHEYNER YASBECK ASFORA COORDENADOR JOSÉ IDELTÔNIO MOREIRA JÚNIOR ARTHUR ASFORA LACERDA GUILHERME PINTO DO NASCIMENTO ORGANIZADORES

JUSTIÇA CRIMINAL E DIREITOS FUNDAMENTAIS

1ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB CAMPINA GRANDE – PB


2018 ©Copyright 2018 by Coordenação do Livro SHEYNER YASBECK ASFORA Organização do Livro JOSÉ IDELTÔNIO MOREIRA JÚNIOR ARTHUR ASFORA LACERDA GUILHERME PINTO DO NASCIMENTO Capa ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE Editoração VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diagramação ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA

O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores. Data de fechamento da edição: 22-062018 Y29j

Asfora, Sheyner Yasbeck. Justiça criminal e direitos fundamentais. 1ed. /Coordenação, Sheyner Yasbeck Asfora. Organizadores, José Ideltônio Moreira Júnior, Arthur Asfora Lacerda, Guilherme Pinto do Nascimento. – Campina Grande: AREPB, 2018. 178 f. ISBN 978-85-67494-29-6 1. Direito Penal. 2.Direitos fundamentais. 3.Justiça criminal. I. Yasbeck, Asfora Sheyner. II. Moreira Júnior, José Ideltônio, Lacerda, Arthur Asfora. III. Nascimento, Guilherme Pinto do. IV. Título. CDU 343.1

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) Ficha Catalográfica Elaborada pela Direção Geral da Revista Eletrônica A Barriguda - AREPB Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.


O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Científica e selo editorial ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito. A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar a perspectiva científica e participativa do ensino jurídico, promovendo a interdisciplinaridade, valorizando os contextos locais, a criatividade e as possibilidades culturais. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem à atitude ética, criativa e propositiva dos futuros profissionais. Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar novo paradigma de pesquisa e ensino do Direito se motivaram para construir projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como periódico científico, editora e centro de pesquisa. Nosso

sincero

reconhecimento

e

agradecimento

a

todos

que

contribuíram para a consolidação de A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa. Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO 8 GUILHERME PINTO DO NASCIMENTO

I. A IMPORTÂNCIA DA LEI 13.245/16 COMO RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA AO CARÁTER INQUISITÓRIO DO CPP DE 1941 11 WALDIR MIGUEL DOS SANTOS JÚNIOR, JOSÉ ROMEU RODRIGUES JÚNIOR E MÔNICA MARQUES RODRIGUES

II. A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA COMO FUNDAMENTAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA: NECESSIDADE DE UM REQUISITO OBJETIVO 28 RENAN PALMEIRA DA NÓBREGA

III. A

INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA

PREVIDENCIÁRIA 42

JOSÉ IDELTÔNIO MOREIRA JÚNIOR

IV. INFLUÊNCIA DA OPINIÃO PÚBLICA E MIDIÁTICA NA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HABEAS CORPUS Nº 126.292 57 DEIVID WILLIAM DOS PRAZERES E DIEGO AUGUSTO BAYER

V. NOVOS EFEITOS DA CONDUÇÃO COERCITIVA NO BRASIL: UMA ANÁLISE PÓS-SÉRGIO MORO 69 ISABELLA OLIVEIRA LIRA E AÉRCIO DE SOUZA MELO FILHO

VI. (DES) CRIMINALIZAÇÃO DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO ÂMBITO INTERNACIONAL: DESAFIOS E IMPASSES DE UMA ALDEIA GLOBAL 84 LOUISE AMORIM BEJA E MILENA BARBOSA MELO

VII. O

CRESCENTE INTERVENCIONISMO PENAL DITADO PELA INFLUÊNCIA MIDIÁTICA

DOS TELEJORNAIS: UM DEBATE À LUZ DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL 98

GABRIEL FERREIRA DOS SANTOS E GISIANE MACHADO DA SILVEIRA

VIII. O

INTERESSE DA MÍDIA NO PROTAGONISMO DO DIREITO PENAL ENTRE OS

INSTRUMENTOS DE POLÍTICA CRIMINAL 109

VICTOR LUIZ DE FREITAS SOUZA BARRETO

IX. A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA 123 RONALDO PINHEIRO RODRIGUES E ALEXANDRE CÉSAR DOS SANTOS

X. O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NO SISTEMA PRISIONAL DO ESTADO DO AMAPÁ POR TRÁFICO DE DROGAS: AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO E TRABALHO COMO POSSIBILIDADE DE (RE) INSERÇÃO SOCIAL 123 LUCIDÉA PORTAL MELO DE CARVALHO


APRESENTAÇÃO Atualmente, vivenciamos um período bastante conturbado no cenário sócio-político-jurídico brasileiro, onde nos deparamos com graves e constantes ferimentos e invasões dos nossos direitos fundamentais, sobretudo quando falamos da liberdade, contraditório e ampla defesa. Passados os anos tortuosos de regime militar, em que a simples alegação unilateral de subversão bastava para o cometimento de atrocidades, aparentemente superamos tal fase com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a instituição da democracia, que deveria garantiu legalmente uma vasta gama de direitos fundamentais. No entanto, é de se salientar que a mera positivação – apesar de possuir sua importância como passo embrionário de consolidação de direitos – não implica, necessariamente, sua concretização e efetivação na prática, notadamente num período no qual o ativismo judicial mitiga cada vez mais o texto constitucional. Inspirando-se nesse contexto é que floresce a presente obra, por meio dos trabalhos acadêmicos apresentados e aprovados durante o VIII Encontro Brasileiro dos Advogados Criminalistas (EBAC), organizado pela Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (ABRACRIM), realizado na cidade de João Pessoa, Paraíba, nos dias 01 de 02 de junho de 2017, que teve como tema o mesmo nome dado ao livro: ―Justiça Criminal e Direitos Fundamentais‖. No evento, capitaneado pelo advogado criminalista paraibano Sheyner Asfóra, presidente da ABRACRIM-PB e Secretário-Geral da ABRACRIM nacional, observamos uma série de diálogos e debates sobre o atual estado da arte da justiça criminal brasileira, principalmente os desafios encarados pela advocacia criminal e a supressão constante dos direitos fundamentais dos próprios advogados e de seus representados/constituintes. Os artigos retratam o sistema de justiça criminal sob a ótima daqueles que ocupam o lado menos confortável da mesa de audiência: o advogado criminalista. São artigos de criminalistas provenientes de todas as regiões do Brasil, revelando preocupação geral da advocacia criminal no resguardo aos direitos fundamentais, conquistados depois de muito tempo de luta e


sofrimento, mas que se veem mitigados e flexibilizados por fatos não normativos, que culminam em graves lesões a tais garantias. Não se pode mais aceitar, como é tratado ao longo do livro, o sistema prisional brasileiro falido e que se encontra muito distante de cumprir sua função ressocializadora; o inquérito policial arbitrário, que não respeita os preceitos constitucionais; prisões preventivas consubstanciadas no critério genérico e subjetivo do clamor social; a influência midiática direta na tomada de decisões no âmbito judiciário, deixando a criteriosidade e tecnicidade de lado; conduções

coercitivas

escancaradamente

abusivas;

o

encarceramento

desenfreado e desnecessário, sobretudo quando se fala das camadas mais pobres da população; ou a não utilização de institutos jurídico-penais que evitam a imposição desnecessária de sanção penal. Os advogados criminalistas estão nas trincheiras de combate aos excessos e arbitrariedades, cometidas por quem quer que seja. A obra, além de levantar questões interessantíssimas de desrespeitos aos direitos fundamentais, escancara a realidade inquietante pela qual estamos passando, sobretudo em razão da influência da grande mídia, que com seu poder manipulador consegue impregnar na cabeça da grande massa a ideia de que a prisão consegue resolver os problemas da nação, mesmo que essa seja consubstanciada apenas em indícios e versões produzidas exclusivamente pelo acusador. Assim, ―Justiça Criminal e Direitos Fundamentais‖ se trata de uma obra extremamente atualizada, e que nos artigos que a compõe aborda assuntos relevantíssimos, sendo sua leitura de grande valia para todos aqueles que integram a justiça criminal, sobretudo para evitar que mais violações aos direitos fundamentais sejam cometidas, e aquelas que o foram sejam cessadas. Aproveitemos a leitura. Guilherme Pinto do Nascimento Junho/2018


1 A IMPORTÂNCIA DA LEI 13.245/16 COMO RESISTÊNCIA DEMOCRÁTICA AO CARÁTER INQUISITÓRIO DO CPP DE

1941

W ALDIR MIGUEL DOS SANTOS JÚNIOR JOSÉ ROMEU RODRIGUES JÚNIOR MÔNICA MARQUES RODRIGUES

INTRODUÇÃO

O tema proposto para enfrentamento neste artigo é o desgastado Inquérito Policial e suas barreiras à construção de um processo penal efetivamente democrático. Necessário entender que a investigação preliminar não é local para antecipação de culpa, mas sim de colheita de elementos mínimos para que o titular da ação penal tenha suporte para iniciá-la. Analisa-se como o modelo inquisitório manteve-se presente até os dias de hoje. Sustentou-se na exposição de motivos do Código de Processo Penal a vantagem e a praticidade da investigação inquisitiva para o Estado, indicandose, no entanto, que tal modelo não se conforma com as exigências nascidas a partir de 1988. O investigado não pode mais continuar sendo visto e tratado como mero objeto da investigação, com o afastamento da aplicação dos princípios

constitucionais

do

contraditório

e

da

ampla

defesa

independentemente da autoridade policial estar realizando ato de investigação ou ato de prova. Foi justamente nesse sentido que o artigo se preocupou em analisar a lei 13.245/16, que alterou o art. 7º da lei 8.906/94 no sentido de tentar extinguir, definitivamente, com o argumento de algumas autoridades policiais, que pelo fato de o inquérito policial ser um procedimento sigiloso, nos termos do art. 20


do CPP, o advogado estaria impedido de acessar os autos do mesmo. Nesse aspecto, o artigo trabalhará a importância dessa mudança legislativa, ocorrida no ano anterior, com importante mecanismo de suavização de matriz notadamente inquisitória. A investigação criminal, a partir da Lei 13.245/16, passa, então, pela oxigenação dos princípios e garantias fixados na Constituição Federal/88 e no Pacto São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em setembro de 1992, assegurando ao investigado não apenas o direito de ser assistido pelo seu Defensor, inclusive, de apresentar suas razões e quesitos a respeito do objeto da apuração. Na missão de compreender a importância da investigação criminal o artigo não descurará da importância do advogado na missão que lhe foi dada pela Constituição.1 No paradigma do Estado Democrático de Direito, o Inquérito Policial como espécie de investigação, deve-se espelhar no modelo constitucional de processo, definido como base principiológica uníssona. Nesse aspecto o artigo trabalhará com os princípios da ampla defesa e contraditório já na investigação. Por fim, o artigo trará em sede de considerações finais os resultados conclusivos da proposta temática posta a debate.

I. A LEI 13.245/16 E A ATUAÇÃO DO ADVOGADO CRIMINALISTA NA FASE DE INVESTIGAÇÃO

A Lei 13.245/16 surge para ampliar o rol dos direitos dos Advogados, previstos no art. 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), especificamente no âmbito da atuação durante a fase inquisitorial. É importante destacar que a investigação criminal é regida pelo Código de Processo Penal de 1941, com o verbete de Inquérito Policial2 gestado entre

1

Nesse sentido o teor do artigo 133 da Constituição em que ―o advogado é indispensável à administração da justiça‖. 2 Conforme denuncia Leonardo Marinho Marques o termo Inquérito Policial chega a ser inconstitucional , uma vez que este expediente foi criado em 1871, quase nada alterado em 1941, para incorporar a tecnologia inquisitória da formação de culpa antecipada.(Prefácio do livro: A adequação da Investigação Policial ao Processo Penal democrático.Lumen Juris , 2016, p. 5)


1841 a 1871, período conservador e autoritário, e, portanto, totalmente defasado em relação à atual ordem jurídica imposta a partir da Constituição de 1988. Naquele período ditatorial, donde mais tarde emergiu o atual CPP, a atuação da polícia judiciária na coleta das informações e elementos probatórios era marcada pelo ferrete da arbitrariedade, subjugando o sujeito passivo à mera condição de simples objeto da investigação. À guisa de exemplo, vejamos o que dispõe o art. 14, do CPP: O ofendido ou seu representante legal e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

Hodiernamente a situação não mudou muito e a todo o momento assistimos o sigilo no inquérito policial ser violado, servindo aos interesses de um inconcebível pré-julgamento indesejável, patrocinado pelos deploráveis interesses da espetacularização midiática, subvertendo a própria finalidade da que é tão-somente a fase preliminar de apuração do ilícito penal. Assevera Aury Lopes Júnior a respeito (2006): ―Quase sempre o segredo é utilizado como forma de limitar a intervenção do sujeito passivo e quase nunca para limitar a publicidade abusiva e prejudicial dos meios de comunicação, sempre dispostos a montar um bizarro espetáculo com plena conivência dos policiais‖. (LOPES JÚNIOR, 2006, p. 330)

Lamentavelmente, guiado pelas mãos de interesses inconfessáveis e até mesmo pelo vil sentimento de vaidade que assola o ser humano, o inquérito virou pop star, saltou da condição de investigação preliminar para ocupar os holofotes da exagerada publicidade que deixa feridas incuráveis na dignidade daquele contra quem se volta a incipiente atuação repressiva. Esqueceram-se do óbvio, como bem pontuado por

Fauzi Hassan

Choukr: ―o indiciado de hoje não é, necessariamente, o denunciado de amanhã‖. (CHOUKR, 2006, p. 111). Tudo isso, aliado ao uso desregrado da condução coercitiva, tão em voga, que sequer resiste a uma filtragem constitucional, ressaltando apenas a espetacularização da fase inquisitorial, assumindo o caráter de ―lixamento‖ público, sem que haja acusação formal.


É inconcebível, na vigência do estado democrático de direitos, permitir que qualquer pessoa seja brutalmente conduzida à delegacia de polícia, a pretexto de ser ouvida, sem ao menos lhe conceder a oportunidade de comparecimento espontâneo. A presunção é inerente à própria condição de ser humano, não sendo qualidade do processo, ou seja, na investigação criminal a presunção de inocência já está vigorante. A presunção de inocência revela em primeiro lugar uma regra de tratamento, que favorece do indiciado ao réu, desde a investigação preliminar até, e inclusive, o julgamento do caso penal nos tribunais superiores (por tribunal superior entende o órgão judicial com competência em todo território nacional). Todos os imputados (indiciados e acusados) devem ser tratados como se inocentes, fossem, até que se advenha certeza jurídica da culpabilidade oriunda de uma sentença penal irrecorrível. Em segundo lugar, a presunção representa uma regra probatória que exprime através da máxima latina que orienta a apreciação da prova: in dubio pro reo (CASARA, 2015, p. 33)

Dessa forma, o saudoso autor paulista Rogério Lauria Tucci (2004, p. 280) também em uma feliz colocação sobre o princípio constitucional da não culpabilidade expõe que ―é direito do cidadão, envolvido numa persecução penal, a não consideração prévia de não culpabilidade, isto é, de não poder ser tido como culpado até coberto pela coisa julgada do decisum condenatório‖. Há uma indesejável resistência dos Órgãos repressivos do Estado de fazer uma leitura da legislação federal sobre o filtro da nova ordem constitucional e, neste espaço, surgem absurdos como a condução coercitiva que atenta ao primado constitucional do direito a não produção de prova contra si mesmo ―nemo tenetur se detegere‖, sob o qual, o interrogatório estabelece a natureza jurídica de meio de defesa. Eugênio PACELLI preleciona que: ―(...) a condução coercitiva do acusado para fins exclusivos do interrogatório não é mais admitida, cabendo a ele a opção entre exercer ou não a autodefesa ativa, podendo, por isso mesmo, deixar de comparecer ao referido ato, já que o direito ao silêncio implica o direito a não participação no ato, e não o mero direito de emudecer diante do juiz‖. (OLIVEIRA, 2015, p. 361)


A realidade nos mostra, portanto, que o investigado, invariavelmente, é conduzido coercitivamente à delegacia policial, com ampla cobertura midiática e, lá, ao seu lado, estará o advogado impávido, porém, totalmente incapaz de exercer com qualidade a defesa técnica, pois sequer terá acesso aos elementos do caderno investigativo. Assim, a investigação criminal foi conduzida sem qualquer participação do investigado ou da Defesa e, neste cenário, a Lei 13.245/16 se mostra com louvável tentativa de ruptura com a arcaica legislação de origem, mirando-se nas diretrizes da Constituição Federal/88. O que muda com a novel legislação (Lei 13.245/16)? Muda quase tudo. Ao ampliar o rol de direitos dos Advogados (Lei 8.906/94), inserindo duas poderosas prerrogativas, as quais, nada mais são do que direitos assegurados ao cidadão: XIV - examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital; XXI - assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos; § 10. Nos autos sujeitos a sigilo, deve o advogado apresentar procuração para o exercício dos direitos de que trata o inciso XIV. § 11. No caso previsto no inciso XIV, a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências. § 12. A inobservância aos direitos estabelecidos no inciso XIV, o fornecimento incompleto de autos ou o fornecimento de autos em que houve a retirada de peças já incluídas no caderno investigativo implicará responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade do responsável que impedir o acesso do advogado com o intuito de prejudicar o exercício da defesa, sem prejuízo do direito subjetivo do advogado de requerer acesso aos autos ao juiz competente‖.

A lei trouxe importantes avanços ao regular a atividade dos aparelhos de controle repressivos, assegurando ao investigado a condição de sujeito de direitos, por meio das novas prerrogativas conferidas à atuação da Defesa.


A investigação criminal, a partir da Lei 13.245/16, passa, então, pela oxigenação dos princípios e garantias fixados na Constituição Federal/88 e no Pacto São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em setembro de 1992, assegurando ao investigado não apenas o direito de ser assistido pelo seu Defensor, inclusive, de apresentar suas razões e quesitos a respeito do objeto da apuração. E, mais, impôs penalidade de nulidade absoluta em caso da inobservância ao direito do investigado de ser assistido por Advogado, maculando por completo todo o procedimento subsequente. É desarrazoado imaginar que o investigado tenha que prestar depoimento ou ser interrogado, sem o prévio conhecimento acerca dos fatos objeto da apuração e, neste sentido, é imprescindível assegurar ao seu Defensor o acesso aos elementos que constituem o objeto do expediente investigativo. Não podemos mais repetir os erros do passado e tratar o advogado criminalista como figura decorativa. Na Inquisição a defesa praticamente não existia, advogados eram personagens meramente figurativos, já que eram escolhidos pelos inquisidores. Como bem explica Green (2011, p. 106) ―esses advogados eram escolhidos a dedo e não deviam fazer nenhuma sugestão ao cliente, a não ser aconselhar a confessar; a única obrigação do advogado era abandonar a pessoa considerada pertinaz ou herege, teimosa, isto é, alguém que não confessava‖. A insistência infundada é característica comum do procedimento inquisitório (EYMERICH, 2009, p. 18). ―Se uma denúncia parece desprovida de qualquer aparência de verdade, o inquisidor não deve riscá-la de seu livro por causa disso; porque o que não é desvelado em um momento poder ser em outro.‖ Infelizmente,

tal

característica

contém

uma

contemporaneidade

assustadora, vez que com o aumento da criminalidade e a gana de se combater a impunidade, ―ou fazer justiça‖, mostra como a legislação aderiu ao procedimento inquisitório, principalmente para aplicar o Direito Penal do Inimigo. A investigação criminal, como se sabe, nada mais é que o expediente utilizado para apurar a materialidade e autoria do ilícito penal, mediante a coleta de informações e elementos de prova e, nesta perspectiva, interessa


muito ao investigado a efetiva participação neste procedimento, na medida em que tais elementos serão utilizados para a formação da opinio delicti. Infelizmente, a prática nos tem mostrado que o inquérito policial tem sido recebido como verdade quase absoluta, verdadeira presunção de veracidade e, invariavelmente, a fase processual se resume à repetição do que é produzido na fase inquisitorial, a pretexto de dar uma roupagem de prova judicializada, tão somente para justificar o provimento final condenatório. Neste sentido, é lapidar a observação de Leonardo Augusto Marinho Marques: ―Em termos concretos, nenhuma garantia constitucional retira da penumbra inquisitória o expediente de formação da culpa. As garantias processuais não atenuam o problema da prova produzida, antecipadamente, em absoluto sigilo. Os referenciais que sustentam a culpa já foram cuidadosamente selecionados pelo investigador. Perpetuando a lógica indutiva, as premissas estão ali para confirmar a responsabilidade penal. Enfim, há um prenúncio de culpa no ar que não desaparece com instauração do processo penal supostamente garantista. (MARQUES, 2012, p. 163)

Assim, a ―verdade‖ que se busca na investigação criminal tanto mais será fidedigna, quanto mais respeitar os direitos assegurados ao investigado e, para tanto, desponta de fundamental importância delimitar o jus puniendi, como o controle da atuação dos agentes repressivos nos exatos limites das balizas dos direitos e garantias individuais. Felipe Martins Pinto é incisivo ao pontuar sobre o tema: ―Na verdade, o jus puniendi somente consistirá em mecanismo de proteção da sociedade se, no desenvolvimento processual, forem respeitados os direitos e garantias individuais, sob pena de se constituir, a pretexto de tutelar a sociedade, um instrumento de acossamento e arbítrio.‖ (PINTO, 2016, p. 175).

O grande alcance da alteração implementada na investigação criminal foi assegurar ao investigado a condição de sujeito de direito, franqueando o pleno acesso ao objeto da investigação, nos termos regulados, taxando de nulidade absoluta o procedimento em caso de inobservância e, ainda, franqueando espaço para sua participação. Waldir Miguel dos Santos Júnior preleciona que:


―Na perspectiva democrática, a investigação não pode negar que a defesa tenha acesso aos autos da investigação, uma vez que nessa perspectiva o investigado deixou de ser objeto da investigação para ser sujeito de direito. À defesa técnica, com amplo acesso a autos da investigação tal possibilidade é fundamental para uma adequação constitucionalmente da investigação ao processo penal democrático.‖ (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 100)

E,

no

ponto,

mostra-se

ainda

de

particular

relevância

a

responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade dos agentes responsáveis em face do descumprimento dos preceitos fixados na nova legislação. A novel lei, portanto, mostra-se fundamental para adequar o Código de Processo Penal à Lei Maior, na espécie alusiva à investigação criminal, atribuindo necessária proteção ao sujeito passivo, como se infere da lição de Norberto Bobbio: O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. (BOBBIO, 2004, p. 43)

Destarte, o efetivo cumprimento da nova legislação dependerá da atuação combativa do advogado criminalista para que se possa permitir uma mudança de paradigma na fase inquisitorial, adequando-se de vez o inquérito policial com a atual ordem constitucional. II. Da imprescindibilidade do contraditório e da ampla defesa na fase de investigação

Apesar de a Constituição da República Federativa do Brasil consagrar a garantia da ampla defesa e do contraditório desde o texto oriundo do poder constituinte originário, ainda hoje, no interior de algumas delegacias é negado ao advogado o acesso aos autos da investigação policial que se encontra em curso. Nesse sentido, necessário fazermos alusão ao artigo 5º do texto constitucional:


LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Da dicção do diploma legal, extraímos duas conclusões: a ampla defesa não é exclusividade do processo judicial (ou administrativo) e também não é necessário que seja réu em processo, pois os acusados são em geral.3 Posto isso como marco compreensivo, temos que entender qual o teor da ampla defesa e do contraditório. Como nosso foco é a persecução penal (investigação e processo) vamos dimensionar o processo penal, mas não quer dizer que a ampla defesa e o contraditório seja exclusividade desse. A ampla defesa em processo penal quer abranger a conjugação de dois tipos de defesas: Autodefesa: que é o direito do sujeito passivo ser ouvido (direito de audiência) expondo a sua versão dos fatos. Tendo sempre direito de estar presente perante o Estado (autoridade policial ou judicial, a própria audiência de custódia que vem sendo implementada Brasil afora é um ingrediente desse direito). A autodefesa é facultativa, pois o sujeito passivo pode perfeitamente entender, que é mais eficaz naquele caso concreto, permanecer em silêncio. E a própria CR/88 no art. 5ºLXIII ao compreender que é O Estado quem deve provar a imputação que ele mesmo iniciou, dá ao sujeito o direito de permanecer calado (direito ao silêncio ou não incriminação Nemo tenetur se detegere) ou seja, o direito de não produzir prova contra si mesmo. Já a defesa técnica é obrigatória, pois o direito é extremamente complexo e técnico, e, muitas das vezes até excludente. Então, precisamos tentar equilibrar a balança (já que o Estado, ao imputar responsabilidade penal a alguém, faz munido de órgãos preparados, como a polícia e o Ministério Público). A defesa técnica, nesse sentido, é exercida por advogado ou Defensoria Pública. Contraditório: já o contraditório é composto de basicamente quatro elementos: informação (possibilidade do sujeito-passivo saber que contra ele 3

Devemos entender como todo aquele que é sujeito passivo de algum tipo de responsabilização) ou seja, integra, sindicância administrativa, qualquer tipo investigação


se movimenta uma futura responsabilização penal). Reação: possibilidade de reagir àquela movimentação. Não surpresa: não ser surpreendido com fatos desconhecidos por ele, e, por fim, influência: ter seus argumentos considerados no conteúdo decisório. Quando falamos em investigação não podemos exercer o contraditório de maneira plena, pois o objeto da investigação é justamente dar azo para que o Ministério Público tenha elementos concretos para formular a denúncia. Mas, também conforme leitura do art. 5º LV não é correta a afirmação de que na investigação não têm a presença da ampla defesa e do contraditório. A ampla defesa e o contraditório só se dão por meio do advogado, pois é ele o profissional capaz de estabelecer um diálogo com a parte contrária em nível igualitário. Nesse sentido, vale a pena citar a belíssima lição de Carlos Henrique Soares, sob a estreita relação do advogado no processo constitucional: É agente garantidor da legitimidade da decisão judicial, uma vez que o mesmo é juridicamente capaz de estabelecer um diálogo técnicojurídico que permite a construção do provimento em simétrica paridade, garantindo o contraditório e a ampla defesa, bem como o controle da jurisdição.[...] É o agente garantidor da democracia, da cidadania e da soberania, bem como de direitos fundamentais (SOARES, 2004, p. 173)

No paradigma do Estado Democrático de Direito, o Inquérito Policial como espécie de investigação, deve-se espelhar no modelo constitucional de processo, definido como base principiológica uníssona.4 Dessa feita, necessário é compreender o princípio acusatório como norte no processo penal democrático. Um

devido

processo

legal

constitucionalizado

é

totalmente

incompatível com o sistema inquisitorial adotado no Código de Processo Penal, que, conforme lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2009, p. 222) 4

Nesse sentido necessário a nota explicativa de Flaviane de Magalhães Barros e Felipe Daniel Amorim Machado: ―interpretação constitucionalmente adequada passa pela noção de que o modelo constitucional do processo é uma base principiológica uníssona, na qual os princípios que o integram são vistos de maneira codependentes. Ou seja, ao desrespeitar um dos princípios afetam-se, também de forma reflexa, os outros princípios fundantes. Contudo, todos os princípios têm o seu conteúdo específico e diferenciado. Em outras palavras, tais princípios são vistos como codependentes no sentido de que, apesar de cada um possuir seu espectro de atuação próprio, eles formam uma base uníssona indissociável, na qual a observância a um principio é uma condição para o respeito aos demais.‖ (BARROS; MACHADO, 2011, p. 20-21)


―este sistema não foi recepcionado pela Constituição, o que deveria ter sido declarado‖. Nesse aspecto, é óbvio que com a promulgação da Constituição da República de 1988, na ânsia de se estabelecerem garantias constitucionais, antes resistidas pelas forças preponderantes, houve progressos e fracassos. Assim, podem-se indicar alguns pontos cinzentos entre a investigação e os princípios constitucionais, por exemplo, como adequar princípios como contraditório e ampla defesa aos procedimentos investigatórios? Difícil dar a essa indagação tom conclusivo, mas é possível encaminhar alguns nortes que se devem trilhar com base no paradigma do Estado Democrático de Direito: primeiramente, não se pode admitir que investigações sejam dirigidas pela polícia de forma clandestina. A grande diferença de uma perspectiva do Estado Democrático de Direito a respeito da atuação investigativa para apuração de fatos pretensamente ilícitos é justamente que a partir do momento que a esfera de direitos dos indivíduos passa a ser atingida não pode o Estado pretender uma atuação clandestina. (BARROS, 2009, p. 263)

Na perspectiva do Estado Democrático de Direito dentro da base principiológica uníssona as investigações não podem anular a ampla defesa e nem o contraditório. (BARROS; MACHADO, 2011) Nesse sentido, é interessante analisar a teoria do processo como procedimento em contraditório do italiano Elio Fazzalari. Esse processualista explicitou que o processo não é uma mera sequência de atos praticados pelas partes ou pelo juiz, mas, sim, pela presença do direito ao contraditório (SANTOS JÚNIOR, 2013, p. 42). Sua essência está na ―simétrica paridade‖. (FAZZALARI, 2006, p. 80) Ainda que a Teoria do Processo como procedimento em contraditório, de Elio Fazzalari (2006), não seja marco teórico deste trabalho, por tudo aqui construído, a investigação não pode anular processualidade5. Por essas razões é muito difícil apontar a natureza jurídica do inquérito policial, pois este é um procedimento que pode decidir a existência ou não do processo. Importante indicar a concepção de procedimento em Fazzalari, pois assim se tem uma

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Aqui entendida como o devido processo legal, contraditório e ampla defesa.


noção da dificuldade de se afirmar que o procedimento instaurado no inquérito seja processo, segundo a teoria fazzalariana: A estrutura do procedimento se obtém quando se está diante de uma série de normas até reguladora de um ato final, frequentemente um provimento, mas pode tratar também de um simples ato, cada uma das quais reguladora de uma determinada conduta (qualificando-a como direito ou como obrigação, mas que enuncia como pressuposto da sua própria aplicação o cumprimento de uma atividade regulada por uma norma [...] O procedimento se apresenta, pois, como uma sequencia de atos, os quais são previstos e valorados pelas normas. (FAZZALARI,2006, p. 113)

Já o processo exige a qualidade do contraditório6, daquele cujo ato final é destinado, mais que isso, deve esse ser necessariamente construído também por este sujeito que irá sofrer as consequências do ato. Em sede de inquérito, tarefa das mais difíceis, pois a resposta passa, necessariamente, por se responder a uma pergunta crucial: qual o provimento do inquérito? O relatório do delegado de Polícia? A denúncia ou seu recebimento pelo juiz? O Inquérito Policial termina com o relatório, mas esse relatório não é um fim em si mesmo, e sim um meio para outro que é a denúncia, e este tem outra finalidade, o recebimento ou não da denúncia. Enfim apontar a natureza jurídica da investigação não é objetivo desde trabalho, mas, sim, adequá-lo ao processo penal democrático. Por seguir a lógica inquisitória, a investigação é realizada de forma unilateral pela autoridade, em que a concentração de funções vem acompanhada da concentração máxima de poder. A inquisitoriedade é autoritária por natureza e desconhece a proposta democrática de poder compartilhado entre instituições e controlado pelos destinatários. Nos procedimentos investigatórios para se garantir a aplicação da referida base principiológica, é necessário garantir o contraditório, devido à finalidade da investigação, deve-se analisar como se dará o contraditório7.

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Nesse aspecto necessário explicar que para Aroldo Plínio Gonçalves o contraditório é: ―O contraditório não o ‗dizer‘ e o ‗contradizer‘ sobre matéria contravertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa é a sua matéria, o seu conteúdo possível. O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igualdade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação.‖ (GONÇALVES, 2012, p. 109) 7 Assim, há que se distinguir o contraditório prévio de antemão do sucessivo ou postergado. (NUNES, 2012)


Obviamente, para se potencializa-lo não se pode dissociá-lo da ampla defesa que se inicia na investigação, não existe ampla defesa em um Estado democrático de Direito que afaste a defesa da investigação. Introduzir uma investigação defensiva no Brasil é muito complexo, uma vez que não temos nem mesmo uma instituição pública8 implementada nesse sentido. O advogado tem como primado o respeito à lei, zelando pelo seu cumprimento seja no julgamento de inocentes ou culpados. Todo ser humano tem direito de ser julgado de acordo com as regras do jogo. Inocentes e culpados. Por isso, não podemos descuidar de nossa tradição inquisitorial, adoção até hoje do código de processo penal brasileiro, demarcarmos de uma vez por todas desde a investigação, o sistema acusatório, como princípio inicial constitucional de interpretação. Deve-se, nesse sentido destacar Geraldo Prado (2006) que acata ―por sistema acusatório normas e princípios fundamentais ordenadamente dispostos e orientados a partir do principal princípio, qual seja, aquele do qual herda o nome de acusatório‖. (PRADO, 2006, p. 104) Demarcar funções é fundamental para construir um modelo de Estado que realmente tenha ganhos democráticos, o que somente poderá ser conseguido a partir de um princípio unificador. Na perspectiva democrática, a investigação não pode negar que a defesa tenha acesso aos autos do Inquérito, uma vez que nesse sentido o investigado deixou de ser objeto para ser sujeito de direito. A defesa técnica deve ter amplo acesso aos autos da investigação, essa prerrogativa é fundamental para uma interpretação constitucionalmente ao processo penal democrático. Dentro dessa perspectiva, o caráter inquisitório do CPP não pode ser superado por uma leitura isolada de uma lei. A incompatibilidade da investigação policial é fundada exclusivamente na tradição inquisitória, uma vez que tal perspectiva foi resultado de toda uma herança inquisitiva. No Brasil está demarcada por características do paradigma do Estado Social e, portanto,

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Em várias comarcas do país ainda não há Defensoria Pública.


contrários aos postulados do Estado Democrático de Direito e do modelo constitucional de processo. Desde que a investigação policial brasileira entrou em vigor, percebese que ela sofreu grande influência da inquisitoriedade europeia, sendo mecanismo de blindagem do poder dominante e que o investigado nesse contexto era como mero objeto da investigação. E a legislação processual penal deixa esse propósito bem evidente na exposição de motivos, uma vez que foi mantida com o fim de ser mais enérgica e menos garantidora de direitos ao investigado, visto que ele poderia tumultuar a atividade investigativa. Utilizava-se da investigação como meio de obtenção da verdade sem qualquer participação do investigado. Assim, com os avanços democráticos, o direito à presença e defesa por um advogado é uma mensagem constitucional que se impõe, seja em procedimento administrativo, seja em processo propriamente dito. No processo penal é uma exigência justamente por estar em jogo um dos direitos mais caros do ser humano, o direito a liberdade. O direito ao acesso ao advogado é um direito de todo cidadão quando tiver ameaçado seu direito de livremente ir e vir.

CONCLUSÃO

É importante ressaltar que o inquérito policial atual, originário de uma ordem jurídica arcaica, que ainda não passou pelo filtro dos princípios constitucionais em vigor, tem provocado sérios danos à dignidade do investigado. Percebemos, portanto, que o inquérito policial não pode ser essa ilha desgarrada da atual ordem jurídica, onde reina toda sorte de arbitrariedades, pois a prova produzida neste ambiente será irremediavelmente contaminada por um pré-julgamento que perpassará toda ação penal. É inconcebível, na vigência do estado democrático de direito, permitir que qualquer pessoa seja brutalmente conduzida à delegacia de polícia, a pretexto de ser ouvida, sem ao menos lhe conceder a oportunidade de comparecimento espontâneo. Assegurar ao investigado os elementares direitos na investigação criminal é, sobretudo, pugnar pela correta apuração dos fatos, sem desprezar


nenhuma das possibilidades possíveis de investigação e, por outro lado, impondo o segredo à publicidade, e não, ao sujeito passivo, enfim, respeitando a dignidade da pessoa humana, fundamento basilar do estado democrático de direito. Há uma indesejável resistência dos órgãos repressivos do Estado de fazer uma leitura da legislação federal sob o filtro da nova ordem constitucional e, neste espaço, surgem absurdos como a condução coercitiva que atenta ao primado constitucional do direito à não produção de prova contra si mesmo (nemur tener si detegere), sob o qual, o interrogatório estabelece a natureza jurídica de meio de defesa. Temos que mudar este estado de coisas absurdas que acontecem na fase inquisitorial e, para tanto, necessário uma ampla conscientização dos novos e atuais agentes investidos da autoridade de condução do inquérito policial. Nesse contexto, na investigação não cabe nenhuma presunção de culpa, nenhum juízo de valor antecipado. O processo penal democrático propõe a construção compartilhada da decisão, permitindo às partes promover a livre interpretação do direito, bem como desenvolver ampla argumentação a partir dessa livre interpretação. A presunção de inocência ganha relevância na investigação para estabelecer limite a esta. A investigação preliminar não pode ser entrave para construção do Estado Democrático de Direito, mas, sim, mais um mecanismo de sua implementação de direitos e garantias fundamentais e não há outra saída, a não ser adotarmos a técnica acusatória de divisão de funções e despreocupação com a fala autorizada. Abandonando, de uma vez por todas, desde a investigação à técnica inquisitória de centralização e produção autocráticas do conhecimento. Neste ínterim, a função investigatória no processo penal democrático visa a não sacralizar a fala autocrática da autoridade (policial, judicial, Ministério Público), mas visa certamente a reunir elementos mínimos para que a acusação possa nortear a produção da prova, evitando que indícios frágeis sejam elementos únicos de denúncias infundadas, daí a importância da distinção entre indícios e prova.


É imprescindível resgatar a serenidade na fase preliminar, afastando de vez os arroubos e as precipitadas exposições midiáticas, que tanto mal causam ao sujeito passivo, e, o pior, disseminam uma cultura equivocada do direito penal como sendo a panaceia da sociedade. Assim, até que se possa romper com o atual Inquérito Policial, a nova lei deve ser recebida com louvor e, sobretudo, que os Advogados exijam o seu efetivo cumprimento, pois somente assim, será possível uma mudança cultural do ranço inquisitorial enraizado na investigação criminal.

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procedimento em contraditório à jurisdição democrática. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 22, 2013, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo: CONPEDI, 2013. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=de65a3fb6d48ee7ch>. Acesso em: 09 abr. 2017. Soares, Carlos Henrique. O advogado e o processo constitucional. Belo Horizonte. Del Rey, 2004. TUCCI, Rogerio Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.


2 A GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA COMO FUNDAMENTAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA: NECESSIDADE DE UM REQUISITO OBJETIVO

RENAN PALMEIRA DA NÓBREGA

INTRODUÇÃO

O presente artigo científico aborda o estudo da garantia da ordem pública como circunstância para a decretação da prisão preventiva. O tema abordado, apesar de estar inserido em nosso odenamento jurídico há décadas, merece ser apreciado com maior profundidade e crítica, pois, hodiernamente, com a divulgação em massa das informações pelos meios de comunicação, muitas das prisões estão ocorrendo com o escopo de dar uma satisfação à população, e não, pela aplicação da norma jurídica penal e processual penal. Ressalta-se o contexto histórico, qual seja, a Ditadura Vargas e suas influências sofridas pelo Integralismo, no qual esta lei foi criada e suas implicações práticas e finalísticas. Cogita-se, então, acerca da real e premente necessidade de modificação jurídica para expurgar fundamentações vagas dos decretos preventivos, bem como da necessidade de cumprir as orientações de tratatos internacionais em que presam pela dignidade da pessoa humana, do julgamento justo, da prisão por verdadeira necessidade. Prima facie, explana-se acerca da prisão preventiva: definição, pressupostos e circunstâncias. Em segundo momento, aborda-se o conceito de ordem pública, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência.


Mostrar-se-á, outrossim, os riscos pelos quais passa a sociedade em admitir caráter tão subjetivo para a decretação de mandado constritivo e far-seá uma breve análise com o Direito Comparado. Por fim, haverá um paralelo entre o Direito Processual Penal brasileiro e seu viés nos Direitos Humanos, por considerações finais, vislumbra-se a necessidade premente de uma reforma legislativa, extraindo todo e qualquer subjetivismo das hipóteses de uma possível fundamentação em um decreto de prisão preventiva. Utilizou-se o método dedutivo, pois partiu-se de premissas gerais com a utilização da lei e da doutrina, pesquisa qualitativa com abordagem documental e bibliográfica.

I. PRISÃO PREVENTIVA

Para melhor compreender o tema abordado, faz-se mister explanar, mesmo que de forma superficial, a ideia do que é

o conceito de prisão

preventiva, sua natureza jurídica e sob quais circunstâncias ela ocorre. É possível classificá-la e conceituá-la da seguinte forma: é uma prisão cautelar, pois visa garantir a eficácia de um futuro provimento jurisdicional, o qual poderá tornar-se inútil em algumas hipóteses, se o acusado permanecer em liberdade. Dentre as prisões de natureza processual, é a que se reveste de maior importância; pode ser decretada por um juiz em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, desde que ocorra antes do trânsito em julgado. Diferentemente da prisão temporária, a preventiva não possui prazo determinado em lei para a sua duração, possui caráter rebus sic stantitibus, ou seja, ela deve se protrair no tempo, enquanto houver os motivos ensejadores de sua decretação. No entanto, não pode ser mantida ad aeternum, é necessário fazer uma interpretação lógico-sistemática pautada no princípio da razoabilidade para avaliar o excesso de prazo para o término da instrução. Ressalta-se que apesar de haver os prazos fixados em determinadas leis para a conclusão procedimental, hoje é adotado pela maioria dos tribunais brasileiros, os prazos impróprios para este tipo de situação, e o seu não cumprimento não acarreta sanção alguma se forem descumpridos.


O magistrado pode decretá-la de ofício, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente de acusação, ou mediante representação policial. Faz-se mister comprovar e fundamentar a sua necessidade, bem como é necessário preencher seus dois requisitos estabelecidos em lei e mais uma das circunstâncias que a autorizam. São pressupostos que juntos formam o fumus comissi delicti: I. Prova da existência do crime (materialidade); II. Indício suficiente de autoria; são circunstâncias: a) garantia da ordem pública; b) garantia da ordem econômica; c) conveniência da instrução criminal; d) garantia de aplicação da lei penal, todas previstas no Art. 312 do Código de Processo Civil (CPP). Entende-se como prova da existência do crime a certeza de que ocorreu uma infração penal. Por indício suficiente de autoria, compreende-se a suspeita fundada de que o indiciado ou réu é o autor da infração penal. Dessa forma, mesmo sem haver prova cabal da autoria, o magistrado, utilizando-se do in dubio pro societate, pode decretar a custódia provisória. A garantia da ordem econômica visa impedir que o agente, causador de seriíssimo abalo à situação econômico-financeira de uma instituição financeira ou mesmo de órgão do Estado, permaneça em liberdade. A conveniência da instrução criminal visa coibir a perturbação do escorreito desenvolvimento da instrução criminal, garantindo assim a existência do devido processo legal, no seu aspecto procedimental. A garantia da aplicação da lei penal tem por escopo assegurar a finalidade útil do processo penal, que é proporcionar ao Estado o seu ius puniendi, aplicando a sanção devida a quem é considerado autor da infração penal. Quanto à garantia da ordem pública,

trataremos com maior

profundidade no decorrer do presente artigo. Ademais, o mandado constritivo deve ser fundamentado, explicitando em quais fatos se baseia para extrair tal conclusão, mesmo que de forma concisa, o que não implica dizer a mera repetição dos termos legais, pois desta forma ensejaria nulidade ou constrangimento ilegal, in verbis, Art. 5º da nossa Carta Magna:


LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

Importante salientar que a redação atual vigente no Art. 312 do Código de Processo Penal Brasileiro, veio se contrapor à sua antiga redação – que impunha ao magistrado a obrigatoriedade de cercear a liberdade daquele que respondesse a processo criminal, cujo tipo penal tivesse pena em abstrato superior a dez anos -, fazendo com que o magistrado analise o caso concreto, tendo a prisão preventiva como sendo a exceção, devendo analisar o fumus comissi deliciti e periculum libertatis como causas precípuas para a expedição de mandado constritivo de liberdade. Ademais, vale esclarecer que o atual Art. 319 do CPP, veio oferecer um leque de opções ao juiz para que pudesse aplicar isolada ou cumulativamente, em substituição à preventiva, desde que o acusado preencha as causas condicionantes do Art. 282, II do CPP. Tal fundamento tem que expor os requisitos de admissibilidade, preenchendo o requisito do fumus boni juris (prova do crime e indício suficiente de autoria) e o periculum libertatis (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal), que constituem a pedra de toque de toda prisão processual, e afastar a possibilidade de aplicação de medias cautelares diversas da prisão preventiva. São condições de admissibilidade os crimes dolosos punidos com reclusão ou punidos com detenção, se o indiciado for vadio ou de identidade duvidosa (STJ, HC 103.523/PR, 6ª T., Rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 10.2.2009, Dje, 2.3.2009); se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos de lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (Art. 313, IV do CPP). Logo, não cabe a preventiva em caso de crime culposo, contravenção penal, crime afiançável ou em caso de o acusado ter agido sob a égide de umas das causas da exclusão de ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito), ou sob as causas de exclusão da culpabilidade (coação moral irresistível ou erro de proibição).


A medida da prisão preventiva é tão extrema, que mesmo provando a existência do crime, seja a parte objecti, seja a parte subjecti, a medida odiosa não poderá ser decretada se não for necessária. Resumidamente, para decretação da prisão deve o delito ser grave – normalmente são todos os que envolvem violência ou grave ameaça à pessoa – associado à repercussão causada em sociedade, gerando intranquilidade, além de se estar diante de pessoa reincidente ou com péssimos antecedentes, provoca um quadro legitimador da prisão preventiva. Tanto o STJ, súm. n. 9, quanto o Supremo Tribunal Federal (STF) (HC 69.026-2, Rel. Min. Celso de Mello, DJU, 4.9.1992), entendem que a prisão provisória não ofende o princípio constitucional da presunção de culpabilidade, o que não implica dizer que a prisão preventiva é um caso banal e pode ser tratado como um instituto jurídico qualquer, senão vejamos o entendimento do STJ: ―a prisão processual, medida extrema que implica sacrifício da liberdade individual, deve ser concebida com cautela em face do princípio constitucional da presunção da inocência, somente cabível quando presentes razões objetivas, indicativas de atos concretos suscetíveis de causar prejuízo à ordem pública (e econômica), à instrução criminal e à aplicação da lei penal (CPP, art. 316; CF, art. 93, IX)‖ (cf. STJ, HC 9.896/PR, rel. Min. Hamilton Carvalhido, 6ª T., DJU, 29 nov. 1999). Dessa forma, observa-se que a prisão preventiva é a medida extrema do Direito Penal, logo, deve ser aplicada conforme o estrito cumprimento da norma, e não de forma discricionária pelos magistrados, sob os auspícios da garantia da ordem pública, caráter tão subjetivo e controverso, como veremos a seguir. II. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA

Superada as principais explanações acerca da prisão preventiva, para que possamos tomar noção de sua importância e de que ela deveria ser medida extrema e de exceção, podemos adentrar, propriamente dito, no tema do artigo e explorar com maior profundidade o tema. Inicialmente tratar-se-á da questão etimológica, o significado de cada palavra, segundo os dicionários vigentes. A posteriori falar-se-á do contexto histórico em que foi criado o Código de Processo Penal e as influências


sofridas pelas correntes ideológicas facistas, bem como, será analisado com maior profundidade o conceito do que seja ordem pública. Outrossim, tratar-seá do tema, em comparação com alguns países alienígenas.

II.I ETIMOLOGIA

Segundo o Houaiss, ORDEM SIGNIFICA: Disposição organizada e ordenada das coisas, seguindo uma categoria, o lugar que lhes convém: ordem alfabética; Regras, leis, estruturas que constituem uma sociedade; Regra oral ou escrita proferida por uma autoridade: ordem de despejo; Ação de comandar; comando: não cumpriu minhas ordens; Posição ocupada numa hierarquia; categoria, mérito: ordem militar; Disposto em fileira, renque: respeite a ordem da fila; Lei geral proveniente do costume, da autoridade; lei relativa a assunto particular: é preciso manter a lei e a ordem; Órgão que congrega certas classes de profissionais liberais, defendendo seus direitos e assegurando a disciplina da profissão: ordem dos advogados; Condição de tranquilidade, paz: o protesto aconteceu em ordem; Boa administração das finanças de um Estado ou de um particular; Taxonomia. Divisão da classificação de plantas e animais, intermediária entre a classe e a família. [Religião] Sacramento da Igreja católica, conferido pelo bispo e que dá ao ordinando poderes para exercer as funções eclesiásticas; [Religião] Sociedade religiosa cujos membros fazem voto de viver sob certas regras: ordem religiosa. [Arquitetura] Forma e disposição das partes salientes de uma construção, particularmente das colunas e do entablamento, que distinguem diferentes maneiras de construir; coluna. Etimologia (origem da palavra ordem): do latim ordo.ordinis. Público – Adjetivo que se refere ao povo em geral: interesse público; relativo ao governo de um país: negócios públicos; Manifesto, conhecido por todos: rumor público; A que todas as pessoas podem comparecer: reunião pública. Público – do Latim publicus, ―relativo ao povo‖, de populus, ―povo‖, possivelmente derivado do Etrusco. Também adquiriu o significado de ―aberto a toda a comunidade‖, em oposição a ―privado‖.


Segundo o dicionário jurídico (GUIMARÃES, 2007, p. 429), Ordem – significa Disciplina; classe, categoria, organização, boa disposição e equilíbrio entre partes de um todo. À ordem, cláusula que, em títulos de crédito, indica que podem eles ser transmitidos por endosso. Pública: conjunto de princípios éticos, jurídicos, políticos, econômicos e sociais que, no interesse geral, regem a convivência entre os cidadãos, levando a uma situação de segurança e tranquilidade. A grosso modo, entende-se por ordem pública a paz e a organização no meio social, sem conturbação do cotidiano corriqueiro da sociedade. No entanto, mister se faz analisar com maior propriedade seu desenvolvimento histórico para que se possa compreender o tempo na sua maior plenitude.

II.II CONTEXTO HISTÓRICO

Importante observarmos que o nosso Código de Processo Penal é da década de 1940, e por isso sofreu a influência fascista que inspidou a Carta Constitucional de 1937. Para se ter a real importância do que uma ideologia pode trazer como consequência

negativa,

observa-se

que

o

nazismo

alemão

que

é,

indubitavelmente, o episódio mais lembrado quando se fala em fascismo. Os regimes de Mussolini na Itália e de Franco na Espanha também foram marcantes. O Brasil teve sua própria teoria nacionalista de inspiração fascista, que recebeu o nome de Integralismo. Este chegou ao Brasil na primeira metade do século XX, e foi coimado por Plínio Salgado, chegando a criar um partido político chamado Ação Integralista Brasileira (AIB), em 7 de outubro de 1932, iniciando sua atividade durante o primeiro governo de Getúlio Vargas e o apoiou na implantação do Estado Novo. (Tourinho Filho, 2010) O fascismo pode ser entendido como sendo, nas palavras da mestra Camila Betoni: ―... uma conduta política extremamente autoritária, marcada pelo nacionalismo, pela militarização dos conflitos e por uma preocupação obsessiva com a ideia de decadência de uma comunidade ou nação. Hostil às formas modernas de democracia, o fascismo recorre a violência, criando um inimigo – interno e/ou externo – que deve ser exterminado para garantir a segurança e supremacia de um grupo considerado superior. Apesar de


manifestar algumas variações – a depender da época e do lugar onde aparece – o fascismo apresenta algumas características típicas que se repetem‖. (http://www.infoescola.com/historia/fascismo/) Dessa forma, é possível compreender melhor a aplicação e interpretação legislativa após levar em consideração o contexto histórico que propiciou a criação de determinada norma. Portanto, compreendemos a inclusão do inciso I do Art. 312 do Código de Processo Penal, para que dessa forma, seja realizada prisões com respaldo em critérios vagos, conforme veremos a seguir, e fazer de sistemas totalitaristas.

II.III CONCEITO

Apesar de ser uma expressão de conceito indeterminado, fluida, sem qualquer consistência, cabe expor algumas definições doutrinárias: É expressão de tranquilidade e paz no seio social (NESTOR TÁVORA, 2012, p. 581). Normalmente, entende-se por ordem pública a paz, a tranquilidade no meio social (TOURINHO TILHO, 2009, p. 627). É a hipótese de interpretação mais ampla e flexível na avaliação da necessidade

da

prisão

preventiva.

Entende-se

pela

expressão

a

indispensabilidade de se manter a ordem na sociedade, que, como regra é abalada pela prática de um delito (NUCCI, 2011). Várias situações podem trazer ordem pública. Dessa forma, a medida extrema fica ao sabor da maior ou menor sensibilidade do magistrado, de ideia preconcebidas a respeito de pessoas, de suas concepções religiosas, sociais, morais

políticas,

que

o

fazem

guardar

tendências

que

o

orientam

inconscientemente em suas decisões. Por mais que haja uma análise e definição analítica, como apontada por Nucci (2011), a ordem pública é vista, segundo o seguinte prisma: gravidade concreta da infração mais repercussão social mais periculosidade do agente. Esta circunstância permanece com seu caráter subjetivo, senão vê-se o entendimento do eminente Des. Amilton Bueno de Carvalho, um dos pontos altos do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (rectius: da nossa


Magistratura), analisando-a, observou com extrema propriedade: ―Ordem pública é um requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação, facilmente enquadrável em qualquer situação‖ (voto vencedor no Recurso em Sentido Estrito n. 70006880447, 5ª Câm. Do TJRS, j. Em 29-102003) Foi julgado pelo STF, em HC 95.685/SP, 2ª T., de Relatoria da Ministra Ellen Gracie: ―A periculosidade do agente, desde que aferida a partir das circunstâncias em que o crime foi cometido, é suficiente para fundamentar o decreto de prisão preventiva‖ Quanto à gravidade do delito, seja ela ele considerada de forma abstrata (todo latrocínio é grave) ou, como prefere a jurisprudência, de forma concreta (analisando as peculiaridades do delito, tais como o emprego de violência excessiva, torpeza, selvageria etc.). Em relação a este fundamento, os tribunais têm rechaçado a decretação da prisão única e exclusivamente com esteio na gravidade delitiva em abstrato (MOUGENOT, 2012, p. 477). Várias são as possiblidades que podem se enquadrar como ordem social, a saber: ―comoção social‖, ―perigosidade do réu‖, ―crime perverso‖, ―insensibilidade moral‖, ―os espalhafatos da mídia‖, ―reiteradas divulgações pela rádio ou televisão‖, ―credibilidade da justiça‖, ―idiossincrasia do juiz por este ou aquele crime‖, quase tudo ajusta-se à expressão tão genérica.

No entanto, com o esplêndido entendimento do STJ, julgando o Habeas Corpus n 28.943/MA: ―A comoção social causada na comunidade local foi o único fundamento invocado pelo magistrado para determinar a prisão do paciente. Mesmo considerando o impacto que provocam em pequenas localidades fatos dessa natureza, não se pode prescindir da demonstração da necessidade da custódia, sobrelevando-se sempre o princípio constitucional que determina, em regra, que a prisão ocorra somente após o trânsito em julgado da condenação‖ (Bol. AASP n.2431)

Prisão preventiva, nesses casos, não passa de uma execução sumária. O réu é condenado antes de ser julgado, uma vez que tais situações nada têm de cautelar. (TOURINHO FILHO, 2009)


Diante das várias notícias jornalísticas, fica a critério do juiz distinguir, segundo seu bom senso, a diferença entre estardalhaço indevido sobre um determinado crime, inexistindo abalo real à ordem pública, da situação de divulgação real da intranquilidade da população, após o cometimento de grave infração. Indubitavelmente surgem os seguintes questionamentos: como sabe o juiz que a ordem pública está perturbada a não ser pelo noticiário? O que caracteriza a perturbação da ordem pública? É o fato de a notícia ser mais ou menos extensa, sob pena de essa circunstância ficar a critério da mídia? Na maior parte das vezes, é o próprio Juiz ou o órgão do Ministério Público que, como verdadeiros ―sismógrafos‖, mensuram e valoram a conduta criminosa proclamando a necessidade de ―garantir a ordem pública‖. Já prelecionava o livro clássico , ―dos delitos e das penas‖: ― O acusado não deve ser encarcerado senão na medida em que for necessário para impedi-lo de fugir ou de ocultar as provas do crime‖ (BECCARIA, 1764) Além do subjetivismo desta circunstância, é mister frisar o escopo futurista da medida, como menciona o magistério de Binder (2000): [...]certas fórmulas que alguns Código de Processo Penal utilizam para justificar a prisão preventiva, como 'evitar o cometimento de novos crimes' ou fundando-se na 'periculosidade do autor', estes, além de serem critérios puramente subjetivos – porque toda apreciação sobre o futuro é, em última instância, indemonstrável, implicam a utilização da prisão preventiva como medida de segurança (BECCARIA, 1764, p. 200. Introducción, cit., p. 200).

Não necessariamente precisa a união do trinômio aventado para a decretação da preventiva, pois uma pessoa primária, sem qualquer antecedente, pode ter sua preventiva decretada, porque cometeu delito muito grave, cohcando a opinião pública (ex.: planejar meticulosamente e executar o assassinato dos pais). Logo, a despeito de não apresentar periculosidade (nunca cometeu crime e, com grande probabilidade, não tornará a praticar outras infrações penais), gerou enorme sentimento de repulsa por ferir as regras éticas mínimas de conivência, atentando contra os próprios genitores.


Os crimes hediondos e equiprados não devem provocar a automática decretação de prisão opreventiva, uma vez que, embora graves, podem ser cometidos por agentes sem periculosidade não gerar repercussão social. Outros

dois

elementos,

que

vêm

sendo

considerados pela

jurisprudência, atualmente, dizem respeito à particular execução do crime (ex.: premeditados meticulosamente, com percurso criminoso complexo; utilização de extrema crueldade etc.) e ao envolvimento com organização criminosa. Portanto, cabe ao juiz verificar todos os pontos de afetação da ordem pública, buscando encontrar, pelo menos, um binômio para a sua decretação (ex.: gravidade concreta do crime

mais péssimos antecedentes do réu;

envolvimento com organização criminosa mais repercussão social; particular execução do delito mais gravidade concreta da infração penal etc.). Com a finalidade de impedir que o agente, solto, continue a delinquir, ou de acautelar o meio social, garantido a credibilidade da justiça, em crimes que provoquem grande clamor popular. Deve-se analisar o perigo social decorrente da demora em se aguar o provimento definitivo e a brutalidade do delito que provoca comoção no meio social. STJ ―... quando o crime praticado se reveste de grande crueldade e violência, causando indignação na opinião pública, fica demonstrada a necessidade da cautela‖ (RT, 656/374) Há corrente em contrário que afirma que neste último caso, não se vislumbra o preciculum in omra, porque a prisão preventiva não seria decretada em virturde de necessidade do processo, mas simplesmente em face da gravidade do delito, caracterizando-se afronta ao estado de inocência. Nesse sentido, já decidiu o STF: ―a repercussão do crime ou clamor social não são justificativas legais para a prisão preventiva‖ (STF, ANO, p.) Capez, (2006, p.265) entende que não pode ser decretada prisão preventiva sem os requisitos da tutela cautelar; no entanto, tanto no primeiro, quando no segundo caso, evidencia-se o periculum in omra autorizador da custódia. A garantia da ordem pública, por não guardar nenhum interesse de ordem processual, não deveria constituir-se em hipótese autorizadora dessa medida cautelar. A função da coação nessa circunstância somente atende ao interesse coletivo e jamais ao processual, uma vez que em nada interferirá quanto à eficácia do resultado final do processo penal de natureza condenatória. (MOSSIN, 2005, p. 626; MANOELE LTDA, 2005).


Marques (1965), doutrinando a respeito da matéria enfocada, defende a pertinência da prisão preventiva na seguinte construção mental: Desde que a

permanência do réu, livre e solto, possa dar motivo a novos crimes, ou cause repercussão danosa e prejudicial ao meio social, cabe ao juiz decretar a prisão preventiva como garantia da ordem pública. Nessa hipótese, a prisão preventiva perde seu caráter de providência cautelar, constituindo antes, como falava Faustin Hélie, verdadeira medida de segurança. A potesta coercendi do Estado atua, então, para tutelar não mais o processo condenatório a que está instrumentalmente conexa, e sim, como fala o texto do Art. 312, a própria ordem pública. No caso, o periculum in mora deriva dos prováveis danos que a liberdade do réu possa causar – com a dilação do desfecho do processo – dentro da vida social e em relação aos bens jurídicos que o Direito Penal Tutela (MARQUES, 1965, p.50). Logo, vê-se quão frágil e perigoso é a prisão preventiva quando tem como

fundamentação

única

e

excluvivamente

a

garantia

da

ordem

pública.Pode-se constatar tal afirmação se baseando em experiências de demais países, como de demonstra a seguir.

III. DIREITO COMPARADO

É sabido que não se deve comparar uma mesma situação para realidades totalmente diferentes. Todavia, nesta seara, não se deve apenas comparar a realidade brasileira com os demais países, mas deve-se também seguir os demais exemplos. Como ponto de partida, analisa-se quão perfeito é o Código Processual do Peru, ao admitir a preventiva tão somente quando houver peligro de fuga oupeligro de obstaculización (Art. 268, alínea c). Dessa maneira, o legislador, habilmente, protege a sociedade, sem, contudo, desamparar o indivíduo que está sendo acusado de cometer determinado delito, outrossim, inibe interpretações vagas por parte do magistrado, para que não se cometa absurdos jurídicos. Em outro sentido, há países signatários de convenções e tratados internacionais de Direitos Humanos que respeitam tais compromissos assumidos, é o que comprova-se, ao ler o Art. 1º do Código Processual Penal da Colômbia: ―Art. 1º Dignidad


humana. Todos los intervinientes em el proceso penal serán tratados con el respecto debido a la dignidad inherente al ser humano‖. Comprova-se que o legislador e, por força de lei, os demais órgãos estatais devem seguir o respeito à dignidade da pessoa humana, observando todos os trâmites do Processo Penal. Dá-se importância significativa a tal garantia que pode ser comprovado o compromisso assumido até pela posição geográfica no Código de Processo Penal, em que tais direitos são tratados quando da abertura da norma processual. Esse pensamento é uma ideologia dos países europeus que na sua recomendação nº. 83, convencionou: ―nenhum acusado deve ser sujeito a prisão preventiva, a não ser que as circunstâncias tornem tal prisão estritamente necessária‖ (Comitê de Ministros do Conselho da Europa, 1980). Observando-se a legislação nos demais países, em que permanecem o respeito aos direitos humanos, aplicando-se critérios iminentementes objetivos, constata-se que é perfeitamente possível reformar a legislação pátria brasileira tornando as prisões preventivas menos obtusas e mais justas. CONCLUSÃO

O presente artigo teve o objetivo de explanar acerca da imprecisão do termo ordem pública e quais suas implicações como circunstância para a decretação de uma prisão preventiva. Após uma explicação sobre a prisão, sua importância como instituto do Direito Penal, é possível argumentar que deve ser dada importância a cada uma de suas fundamentações, visto que a prisão é extrema ratio e, como tal, deve ter sua fundamentação e aplicação pautadas no estrito cumprimento da lei. Ocorre que por trás da legislação existe um contexto histórico que serviu de bojo para sua criação. Como foi visto, a ideologia fascista, mais precisamente, o integralismo, no Brasil, deu subsídio para que fosse criado o Código de Processo Penal. Como não poderia ser diferente, a introdução de tal circunstância, a garantia da ordem pública, como motivo ensejador de resguardar o status libertatis veio respaldar as mais arbitrárias prisões. Verificou-se também que em legislação alienígena, fundamentação para a prisão preventiva é mais restrita a aspectos objetivos e, por isso minimizam


as prisões com bases em achismos e valorações pessoais dos magistrados, que são, indubitavelmente, influenciados por suas vivências, seja no tempo ou no espaço. Isso dá margem a um mesmo crime ser visto em uma cidade do interior como gravíssimo, tendo por consequência a prisão cautelar, enquanto, em uma capital, o mesmo delito, sob as mesmas circunstâncias, não enseja tal prisão, o que, por si só, é um contrassenso para a aplicação do Direito. Dessa forma, não é outra a argumentação senão o desrespeito a direitos e garantias fundamentais de cada cidadão, fazendo-se necessário uma modificação na legislação prática para expurgar inexoravelmente a garantia da ordem pública como circunstância para a decretação da prisão preventiva, sob pena de ferir diuturnamente a Lex Mater brasileira.

REFERÊNCIAS BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal, Saraiva, 6ª ed. 2011. CAPEZ, Fernado. Curso de Processo Penal, Saraiva, 13ª ed, 2006. FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Prática de Processo Penal, Saraiva, 32ª ed, 2010. ______. Manual de Processo Penal, Saraiva, 12ª ed, 2009. GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário Técnico Jurídico, Rideel, 9ª ed, 2007. MOSSIM, Heráclito Antônio, Comentários ao Código de Processo Penal, Manoele ltda, 2005 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. Revista dos Tribunais, 8ª ed, 2011. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito processual Penal. Jus.


3 A INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

JOSÉ IDELTÔNIO MOREIRA JÚNIOR

INTRODUÇÃO

O presente artigo possui o escopo de analisar a aplicabilidade da inexigibilidade de conduta diversa no crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, do Código Penal), em especial, as figuras descritas no caput e no seu inciso ―I‖ do parágrafo primeiro. O instituto da inexigibilidade de conduta diversa é tido pela doutrina majoritária como causa supralegal de exclusão de culpabilidade, ante a ausência de previsão normativa no direito penal brasileiro. No caso concreto, a situação se apresenta quando o empregador, diante de dificultosa situação financeira que lhe incide, recolhe a contribuição previdenciária do empregado e não a repassa para os cofres da União (mais precisamente, da Previdência Social). Há diversos julgados nos tribunais (federais e superiores) com decisões que trafegam entre a absolvição e a condenação, mas sem deixar de reconhecer a possibilidade da sua aplicação no direito penal e, em especial, ao tipo objeto deste trabalho. No primeiro capítulo, far-se-á breves apontamentos acerca da contribuição previdenciária, versando sobre a obrigatoriedade de recolhimento e repasse da contribuição, e especialmente do tipo penal da apropriação indébita previdenciária. O segundo capítulo, será destinado à análise da teoria da inexigibilidade de conduta diversa, notadamente sua origem, aplicabilidade e natureza jurídica. O terceiro capítulo traz o núcleo principal do presente trabalho, o qual analisará a incidência da teoria da inexigibilidade de conduta


diversa no crime de apropriação indébita previdenciária e suas peculiaridades e como vem sendo aplicado. O método adotado na presente pesquisa envolve bibliografia de literatura jurídica e jurisprudência. Segundo Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. O método de abordagem utilizado na pesquisa é o Dedutivo. Segundo Oliveira (2003), dedutivo ―... é o que parte do geral e, a seguir, desce ao particular. O raciocínio dedutivo parte de princípios considerados verdadeiros e indiscutíveis para chegar a conclusões de maneira puramente formal‖. No método jurídico de interpretação utilizado na pesquisa, o sociológico, ―o direito evoluciona e se transforma constantemente, porque se desenvolve no tempo e se modifica constantemente, com inteira e completa independência das vontades individuais e de acordo com as diversas manifestações do espírito popular‖ (GIRALDO ÁNGEL, apud OLIVEIRA, 2003). É exploratória e explicativa, quanto aos objetivos, buscando encontrar mais informações sobre o tema ora apresentado, pois ―tem como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo explícito ou a construir hipóteses‖ e ainda, ―tem como preocupação central identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a ocorrência dos fenômenos [...]‖ (GIL, p.41, 2002). Em tempos de recessão econômica, o tema representa uma necessária reflexão acerca do grau de reprovabilidade da conduta do agente, quando o administrador, empresário ou responsável tributário, por vezes, fica entre a manutenção do seu meio de trabalho e de outros e a obrigação de cumprir um comando normativo, sob pena de responder criminalmente. Para tanto, a discussão se funda em saber quais os limites de sua aplicação, ou seja, qual o grau de dificuldade financeira deve ser considerada para que a inexigibilidade de conduta diversa possa excluir a culpabilidade do agente e, por conseguinte, absolve-lo da prática do crime descrito. Trabalhar-se-á, para tanto, os mais eloquentes expoentes do tema a fim de se demonstrar a real possibilidade da aplicação do instituto e sua contribuição à dogmática penal, notadamente na esfera de estudo da teoria do crime.


I. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DO RECOLHIMENTO E REPASSE DA CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA E DO TIPO PENAL DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA

A seguridade social passou por um longo processo de transformação. Nas cartas magnas de 1824 e 1891 se limitavam a dispor sobre a organização do Estado, só havendo que se falar em previsão constitucional à ordem social na Constituição Federal de 1934, ainda que situada topograficamente em conjunto com a ordem econômica. Apesar

da

evolução

do

assistencialismo

nas

bíblias

políticas

subsequentes, apenas na Constituição Cidadã (1988) a ordem social ganha espaço próprio. Conforme pondera Correia (2013, p. 4437), ―é de se notar ainda que a previsão da ordem social na Constituição de 1988 é extremamente mais rica do que as anteriores, contendo previsões mais consentâneas com o ordenamento social na atualidade‖. O

sistema

brasileiro

de

contribuição

encontra

embasamento

constitucional no art. 201, onde se encontra disposto, em suma, sua estrutura. Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a [...]

Trata-se de norma inédita no ordenamento jurídico pátrio. Observa Correia (2013, p. 4.566) que Previdência Social, nos moldes legais atuais, ―somente começou a ganhar fôlego no Brasil nos anos 60 (mais especificamente com a edição da Lei Orgânica da Previdência Social, ou seja, a Lei n. 3807, de 26 de agosto de 1960)‖. Preceituam os supramencionados doutrinadores que ―embora tenha caráter contributivo, fica bastante claro que não há previdência social sem a correspondente concessão de benefícios de proteção social‖ (2013, p. 4.570). A previdência se presta justamente para garantir ao segurado, quando de sua futura impossibilidade laborativa, um sustento que lhe garanta a


subsistência. Com base nisso, imperioso conceituar o que vem a ser a Previdência Social. Martins (2001, p. 298) apud Dias (2011, p. 19) conceitua: É a Previdência Social o segmento da Seguridade Social, composta de um conjunto de princípios, de regras e de instituições, destinando a estabelecer um sistema de proteção social, mediante contribuição, que tem por objetivo proporcionar meios indispensáveis de subsistência ao segurado e a sua família, quando ocorrer certa contingência prevista em lei.

A fim de contextualizar as expressões, necessária se faz a diferenciação delas. Martins (2005, p. 48) apud Dutra (2011, p. 4), esclarece: A Seguridade Social engloba um conceito amplo, abrangente, universal, destinado a todos que dela necessitem, desde que haja previsão na lei sobre determinado evento a ser coberto. É, na verdade, o gênero do qual são espécies a Previdência Social, a Assistência Social e a Saúde (…). A Previdência Social vai abranger, em suma, a cobertura de contingências decorrentes de doença, invalidez, velhice, desemprego, morte e proteção à maternidade, mediante contribuição, concedendo aposentadorias, pensões, etc. A Assistência Social vai tratar de atender os hipossuficientes, destinando pequenos benefícios a pessoas que nunca contribuíram para o sistema (ex. renda mensal vitalícia) A Saúde pretende oferecer uma política social e econômica destinada a reduzir riscos de doenças e outros agravos, proporcionando ações e serviços para a proteção e recuperação do indivíduo.

Nesse contexto, agrega-se a obrigação inerente ao empregador, ou melhor, e mais abrangente tecnicamente falando, ao responsável tributário, qual seja, de recolher (ou reter) a contribuição previdenciária e, posteriormente, repassá-la aos cofres previdenciários da União. Trata-se, como dito, de uma obrigação elementar para o custeio do sistema previdenciário. Tão elementar que o legislador, preocupado com a eficácia das leis previdenciárias, criou normas visando reprimir a conduta do responsável tributário de não recolher aos cofres da União. O delito da apropriação indébita previdenciária ganha nova roupagem com o advento da Lei nº. 9.983/2000, onde é tido como conduta criminosa a que deixa de repassar para as contas da Previdência Social as contribuições previdenciárias. Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. § 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:


I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

Quanto ao verbo nuclear do caput do tipo penal (―deixar de repassar‖), na lição de Bitencourt (2012, p. 288), ―tem o sentido de não transferir, não recolher, ou não pagar à previdência social as contribuições recolhidas ou descontadas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional‖. Deve haver, primeiramente, a retenção para, posteriormente, ser possível a ausência do repasse, para que haja assim o enquadramento correto no tipo. Ainda segundo o citado autor, é pressuposto para o crime que o sujeito ativo tenha descontado de pagamento feito ao segurado (empregado), pois este pressuposto ―deixa o sujeito ativo na posse do valor correspondente, e não recolhendo, no prazo legal, apropria-se indevidamente de valores pertencentes à previdência‖. E ainda compara com a figura penal anterior (art. 95, ―d‖): A figura anterior não mencionava expressamente que o desconto tivesse sido feito, embora parte da doutrina e da jurisprudência sustentassem essa necessidade. Assim, a partir da atual lei, somente se concretiza a apropriação previdenciária quando for descontada a contribuição do segurado e o empregador deixar de repassá-la à previdência.

Cumpre salientar que o presente trabalho dará maior enfoque justamente na prática mais corriqueira desta figura penal, qual seja, a conduta do empregador que retém a contribuição do empregado, mas deixa de repassá-la para a Previdência Social (caput e parágrafo 1º, inciso I), entre outras figuras assemelhadas e previstas na norma. Nucci (2014, p. 1.052) entende que ―deixar de recolher significa não arrecadar ou não entregar à previdência social o que lhe é devido. O objeto é a contribuição ou outra importância destinada à previdência‖. No tocante à figura do inciso I, do parágrafo primeiro, imperioso atentar que se trata de norma penal em branco, que deve ser complementada pela Lei nº. 8.212/1991 e pelo Decreto 3.048/1999. Importante a lição pregada por Prado (2009, p. 326), acerca do núcleo do tipo (art. 168-A, §1ª, I, CP):


É a locução verbal deixar de recolher, que, nos moldes do texto, expressão ato de omitir, de abster-se de efetuar a entrega do valor arrecadado ao INSS, no prazo determinado pela legislação previdenciária. Também aqui se trata de delito omissivo próprio ou puro. O recolhimento efetuado pelo responsável tributário se perfaz, ordinariamente, junto à agência bancária conveniada com o INSS. Os termos contribuição, outra importância, previdência social, segurados e terceiros figuram como elementos normativos jurídicos, provenientes do Direito da Seguridade Social. Outra importância, no sentido do texto, é expressão que deve ser buscada entre aquelas constantes do artigo 27 da Lei 8.212/1991 e que se limita aos descontos extraídos do pagamento efetuado a segurados, terceiros ou arrecadados do público, como por exemplo, o desconto parcelado de benefício pago indevidamente pelo INSS a segurado-empregado, quando a empresa, por determinação do órgão previdenciário, efetua a dedução do salário, mas não recolhe a importância aos cofres da aludida autarquia. Segurados, para o tipo penal em exame, são os empregados que prestam serviços de natureza urbana ou rural à empresa, observando-se que a pessoa jurídica não é segurada, mas apenas contribuinte. Terceiros são as empresas ou cooperativas que exercem atividade econômica a serviço do responsável tributário, sujeita à dedução da contribuição social, como por exemplo, as empresas cedentes de mão-de-obra, cooperativas, etc. Arrecadada do público significa a contribuição oriunda dos concursos de prognósticos e também aquela incidente sobre a receita bruta decorrente da realização de espetáculos desportivos.

Completa o supracitado doutrinador de direito penal econômico, lecionando que a consumação se perfaz no momento em que o responsável tributário, já tendo deduzido o valor da contribuição previdenciária do salário do empregado, não a repassa aos cofres previdenciários no prazo legal. Apontamento pertinente faz Dias (2011, p. 55), ao sustentar que seria imprescindível para a o exercício da ação penal o esgotamento da esfera administrativa do processo no qual se discutem a existência e o valor devido pelo contribuinte. No tocante às legitimidades ativa e passiva, merece razão, sem demérito dos demais doutrinadores com entendimento diverso, a corrente de pensamento defendida por Baltazar Júnior9 e Dias10, que ao concluírem pela 9

Baltazar Júnior (2014, p. 152) pondera que enquanto estava em vigência o art. 95 da LOCSS, a infração penal em estudo era classificado como próprio, ou seja, apenas o administrador da empresa poderia cometê-lo, nos termos do revogado §3º da norma. Todavia, na legislação atual, o crime é comum, ―podendo ser cometido por qualquer pessoa, incluindo agentes públicos e empregadores domésticos‖. O autor ainda cita a possibilidade, em tese, da figura do partícipe no crime de apropriação indébita previdenciária, colocando como exemplo a responsabilização ―dos membros do conselho de administração, desde que demonstrado que concorreram para o resultado‖. Explica que poderá ocorrer tal hipótese de forma comissiva, ―através de participação moral‖, que consiste em persuadir o autor principal (geralmente o sócio-gestor da empresa) com o propósito criminoso ou insuflar o (propósito) preexistente. A


classificação de crime próprio, admitem que apenas aqueles que atuam de alguma forma como responsáveis tributários, sejam de direito público ou privado, poderão ser sujeito ativo do crime. Como sujeito passivo, figura a União, tendo vista que desde a criação da RFB (Lei nº. 11.457/2007), o Instituto Nacional da Seguridade Social (INSS) deixou de ser o órgão arrecadador, servindo tão somente para o pagamento dos benefícios. BALTAZAR JÚNIOR (2014, p. 157) admite, todavia, a possibilidade de o segurado ser vítima, de modo secundário, sempre que a ausência do recolhimento das contribuições causar diminuição no valor dos benefícios. DIAS (2011, p. 62) reconhece e explicita a possibilidade de o trabalhador ser vítima do ilícito, o que não deixa de prestigiar princípios norteadores da Carta Magna, como o da Dignidade da Pessoa Humana. No tocante à expressão ―prazo legal‖, imperioso atentar que se trata de norma penal em branco, que deve ser complementada pela Lei nº. 8.212/1991 e pelo Decreto 3.048/1999.

II. A TEORIA DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE

É certo que a teoria da inexigibilidade de conduta diversa peregrina junto ao progresso da culpabilidade. Nesse diapasão cumpre-se tecer algumas sucintas considerações acerca do terceiro substrato do crime – a culpabilidade – antes de se adentrar na teoria da inexigibilidade de conduta diversa propriamente dita. A culpabilidade é o limite do direito de punir do Estado. Nas palavras de Greco (2011, p. 89):

participação material, pela qual o partícipe se insinua no processo de causalidade física, não é possível aqui, uma vez que se cuida de delito omissivo. Poderá ocorrer, ainda, a participação por omissão, quando houver dever jurídico de agir por parte do omitente. É o caso do membro do Conselho de Administração, a quem compete fiscalizar a gestão dos diretores (Lei 6404/76, art. 142, III). Traz, lado outro, entendimento jurisprudencial assentando tal impossibilidade (HC 538, Castro Meira, 1ª T., u., DJ 13.10.95). 10 Dias (2011, p. 62), em obra que trata especificamente deste tipo penal, afirma: ―Não é qualquer pessoa que pode ser sujeito ativo do citado delito, mas apenas aquele que se encontra em uma posição jurídica peculiar que o torna apto a praticar a conduta nele prevista, ou seja, aquele que tem o dever legal de descontar as contribuições sociais dos contribuintes e recolhê-las à Previdência Social‖.


Culpabilidade diz respeito ao juízo de censura, ao juízo de reprovabilidade que se faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo.

Segundo a lição de Tangerino (2014, p. 22), a inexigibilidade de conduta diversa reside na ―exigibilidade de o agente, dada as circunstâncias, obedecer à norma‖. Assevera, ainda, que o núcleo da reprovabilidade reside no fato de que o agente devia e podia adotar um comportamento satisfatório ao comando penal e não uma decisão deliberadamente antijurídica. A primeira máxima que se deve ter em mente é que a exigibilidade de conduta conforme o direito é imposição decorrente do sistema jurídico e, mutatis mutandis, é princípio supralegal do ordenamento jurídico. O direito exige do homem um comportamento voluntário psiquicamente dirigido a um fim lícito. No momento em que a ação do indivíduo ultrapassa o limite imposto pela norma, incidirá sobre o mesmo o jus puniendi do Estado. Todavia, há situações onde o sujeito, ao se encontrar em uma determinada posição, cuja conduta necessariamente violará a norma, poderá ter a culpabilidade afastada, ou seja, haverá uma causa excludente de culpabilidade, conforme o caso concreto. Nesse

diapasão,

a

culpabilidade

poderá

ser

excluída

pela

inimputabilidade, potencial consciência da ilicitude ou pela inexigibilidade de conduta diversa. Frise-se, ainda em tom introdutório, mas esclarecedor, que por supralegal deve-se compreender, segundo Nahum (2001, p. 85), que no interior do ordenamento jurídico... Há critérios de valoração e, consequentemente, desvaloração, que não são identificados pelas leis positivas, especialmente as brasileiras‖, não havendo que se falar aqui em ―interpretação metajurídica, mas sim teleológica, que tem por fundamento o deverser imposto pelo sistema normativo.

A Teoria da Inexigibilidade de Conduta Diversa foi aplicada pela primeira vez para solucionar um caso no início do século XIX, no caso Leinenfänger (cavalo indócil que não obedece às rédeas), em 1896. Relata Nucci (2012, p. 323):


O proprietário de um cavalo indócil ordenou ao cocheiro que o montasse e saísse a serviço. O cocheiro, prevendo a possibilidade de um acidente, se o animal disparasse, quis resistir à ordem. O dono o ameaçou de dispensa caso não cumprisse o mandado. O cocheiro, então, obedeceu e, uma vez na rua, o animal tomou-lhe as rédeas e causou lesões em um transeunte. O Tribunal alemão absolveu o cocheiro sob o fundamento de que, se houve previsibilidade do evento, não seria justo, todavia, exigisse outro proceder do agente. Sua recusa em sair com o animal importaria a perda do emprego, logo a prática ação perigosa não foi culposa, mercê da inexigibilidade de outro comportamento.

Nessa linha, a doutrina de Nucci (2012, p. 323), alinha ser possível admitir que ―em certas situações extremadas, quando não for possível aplicar outras excludentes de culpabilidade, a inexigibilidade de conduta diversa seja utilizada para evitar a punição injustificada do agente‖. O autor menciona ainda, o ensinamento exprimido por Assis Toledo: A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade. E constitui verdadeiro princípio de direito penal. Quando aflora em preceitos legislados, é uma causa legal de exclusão. Se não, deve ser reputada causa supralegal, erigindo-se em princípio fundamental que está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito (Princípios básicos de direito penal, p. 328).

Precisa é a consideração tecida por Nahum (2001, p. 73), que em sua obra repete à exaustão ―que não há uma redução das exigências normativas às circunstâncias subjetivas do agente, mas essas circunstâncias devem ganhar relevo na situação normativamente valorada, até como limite da pena a ser imposta‖, e vai além, ao arrematar, acerca da conceituação da teoria: É que o direito exige que todo sujeito imputável tome decisões de acordo com o conhecimento da ilicitude que possui. Porém, há situações anormais em que não se pode exigir do agente uma decisão conforme o comando normativo. Há o reconhecimento de que ele se encontra diante do que se chama inexigibilidade de conduta diversa.

A culpabilidade é excluída ou diminuída quando o agente se comporta com animus exculpante ou em um contexto exculpante, de forma que a obediência à norma não é exigível se a motivação não jurídica do agente imputável, que não respeita o fundamento de validade da norma, se explica por uma situação que, para o sujeito, se constitui em uma desgraça, como asseverou Veloso (2013, p. 490).


A inexigibilidade se alicerça na atmosfera fática existente quando da conduta do agente, pois o caráter ameaçador do contexto é que faz surgir a inexigibilidade de conduta diversa. É dizer: nas circunstâncias de um caso concreto flagrantemente ofensivo a determinado bem jurídico de considerável relevância, não se mostra reprovável desobedecer ao comando normativo penal. É de bom alvitre afirmar que a teoria ora abordada se mostra aplicável também em outros ilícitos penais, mas inegavelmente se amolda melhor aos crimes dessa natureza, isto é, econômico-tributários não revestidos de fraude ou falsificação, onde não se denota prévia e deliberada vontade ludibriante à fiscalização. Acentua Veloso (2013, p. 493) que sobre o responsável tributário ―poderá incidir uma sensível desconformação entre a censurabilidade extrema objetiva do fato e a essência fundamental do que constitui sua dirigibilidade normativa‖, haja vista fatores externos que não recriminam a conduta, mas fixam-lhe um desvio de rotina natural de suas intenções, portanto, restaria excluída a culpa ante a presença da inexigibilidade. Fechando a linha argumentativa até aqui traçada, para que se verifique a existência da inexigibilidade de conduta diversa, como excludente de culpabilidade,

o

indivíduo

deve

praticar

uma

conduta

típica,

ilícita

(antijuridicidade) e não lhe sendo exigível optar entre atuar conforme o direito ou não atuar. De modo mais simples de explicar, do agente não se pode cobrar outro posicionamento, se não o de agir contrário à norma para resguardar outro bem jurídico tutelado, atuação essa que não é tida pela coletividade como reprovável a ponto de imputar-lhe uma sanção pelo ato praticado.

III. APLICAÇÃO DA TEORIA DA INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NO CRIME DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA E SUAS PECULIARIDADES NO CASO CONCRETO

Partindo para um discurso mais fático do que técnico, deve-se frisar uma das maiores reclamações – quiçá a maior – dos contribuintes brasileiros, qual seja a alta carga tributária. Alie-se isto aos ―n‖ fatores que influenciam o


mercado, notadamente, inflação, burocracia extremada, competitividade acirrada, recessão etc. O fato é que o país não consegue imprimir um ritmo coerente de desenvolvimento aliado com uma facilitação para aqueles que abastecem os cofres da União, isto é, o contribuinte. Nesse ínterim, destaca-se a figura do empresário. A bem da verdade, este tipo de contribuinte deve permanecer diuturnamente na linha ético-legal com os seus encargos tributários, trabalhistas, dentre outros, sob pena de responder judicialmente, inclusive com seus bens particulares, por de eventual mácula à ordem jurídica vigente. Não restam dúvidas acerca das imensas dificuldades enfrentadas para que possa manter seu empreendimento em pleno funcionamento. Para o art. 169-A, caput, e o seu §1º, I, do CP, como vimos, o responsável tributário tem o dever de realizar o repasse das verbas, sob pena de responder pela omissão de sua conduta. Ocorre que, em certos momentos, o administrador ou empregador se vê ―obrigado‖ a agir, ou melhor, a não agir conforme obriga a legislação previdenciária, em razão de grave dificuldade financeira que o abate. Eis, neste ponto, a conexão do crime com a teoria da inexigibilidade de conduta diversa. Na última década, a teoria tem sido cada vez mais alegada pela defesa dos contribuintes que não agem de acordo com o ordenamento jurídico, sob a alegação de que, se recolhesse tal contribuição, poderia deixar de cumprir com determinada obrigação essencial para a continuidade da atividade econômica. Analisando o caso concreto e o volume qualificado de provas, os tribunais federais e superiores tem abraçado a tese, todavia, com maior rigor para eximir o réu do cumprimento da pena. Gomes (2000) comenta que o responsável tributário que não repassou a contribuição previdenciária no prazo legal só deve responder pelo crime de apropriação indébita previdenciária se de outro modo poderia agir, isto é, se gozava de condições mínimas que permita ao administrador realizar o repasse. Segundo o autor: A inexigibilidade de conduta diversa, que é examinada no âmbito da culpabilidade como capacidade do agente de comportar-se de acordo com a motivação de respeito ao bem jurídico protegido, aqui no


âmbito da tipicidade significa real possibilidade de realizar o comando normativo. Quem não tem real possibilidade de realizar a ação determinada pela lei penal não cria um risco proibido de lesão ao bem jurídico. Em outras palavras: a lesão ocorre (apropriação do numerário em razão do não repasse ou do não recolhimento da contribuição ou do não pagamento do benefício), mas não deriva de um risco proibido criado pela conduta, senão de uma situação anormal, inusitada ou inesperada, de real impossibilidade de se cumprir o mandamento legal. Consequentemente, não há fato típico quando presente um motivo razoável para a omissão.

Sobre o assunto, Baltazar Júnior (2014, p. 175) sustenta que ―a pura e simples desconsideração da situação financeira da pessoa jurídica não é, de fato, admissível. O crime deve ser considerado em todas as suas circunstâncias, na riqueza do caso concreto‖. E completa: Especialmente aqui, em se cuidando de crime omissivo e formal, caracterizado pelo dolo genérico, não pode ser ignorada a questão das dificuldades financeiras, sob pena de caracterização de verdadeira responsabilidade penal objetiva. Essa posição mais se reforça quando lembrando que não há, propriamente, um desconto ou arrecadação, no sentido físico.

O autor leciona que não se pode admitir que o empresário – enquanto responsável tributário – deve recolher, a todo custo, a contribuição, mesmo que tais recolhimentos acarretem no fechamento do seu negócio, haja vista que o efeito de tal situação se mostrará mais grave, tendo como consequência a demissão dos funcionários (talvez até sem a percepção dos respectivos direitos trabalhistas), o não pagamento de credores etc. É preferível, portanto, a observância das obrigações mais emergentes do ponto de vista trabalhista, social e econômico, garantindo ―aplicabilidade aos princípios do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana‖ (TRF-4 AC 20020401049680-1, Fábio Rosa, 7ª T., u., 18/03/2003). Na verdade, a norma penal pretende se proteger da figura do responsável tributário que não transfere os valores da contribuição por vasto lapso temporal injustificadamente, ferindo não apenas os cofres da União, mas também uma (futura) verba do empregado, quando de sua aposentadoria, bem como dos demais segurados. Assim pensa Baltazar Júnior (2014, p. 176):

Não se pode admitir, de outro lado, que essa seja a sistemática adotada permanentemente para o financiamento da empresa, que


precisa ser capaz de se manter por seus próprios meios. Não se pode aceitar, a pura e simples desconsideração do recolhimento das contribuições arrecadadas como sistemática normal de funcionamento, como opção livre e consciente do empresário. Se as medidas saneadoras não deram certo, não havendo outros recursos à vista, em outras palavras, se o empreendimento está inviabilizado, o caminho terá que ser a autofalência, caso em que os créditos públicos terão o privilégio que merecem, pois a lei conferiu prioridade ao pagamento de contribuições arrecadadas. O supremo valor aqui não é a sobrevivência da empresa, pois esta, além de gerar empregos, deverá arcar com sua carga tributária, a reverter para o bem de todas sociedade. Uma empresa inviabilizada pela incapacidade de pagar os tributos decorrentes de sua atividade não pode continuar em funcionamento (TRF3, AC 20010399058127-7, Peixoto Júnior, 2ª T., u., 12.8.03; TRF4, AC 97.04.697465, Fábio Rosa, 1ª T., u., 1.6.99)

Apesar de não ser unânime a jurisprudência acerca de qual corrente emerge como mais apropriada para o caso em estudo, todos os precedentes que versam sobre o caso atestam, de forma uníssona, a necessidade de comprovação cabal da dificuldade financeira. Dias (2013) complementa que não bastam oitivas de testemunhas alegando calamitosa situação da empresa. Faz-se imprescindível a juntada de documentos idôneos que comprovem tal situação econômica. Segundo o autor, os documentos mais utilizados são certidões de cartórios de protesto, certidões de execuções judiciais, extratos de contas bancárias, pedidos de falência etc., todos, obviamente, concatenados com os fatos da respectiva ação penal. Para Baltazar Júnior, a prova na matéria é, por excelência, documental, de modo que a prova oral servirá apenas para reforçar o que for produzido documentalmente. Nesse sentido, vale colacionar alguns julgados, que deixam claro a possibilidade-necessidade de aplicação da teoria de inexigibilidade da conduta diversa no crime de apropriação indébita previdenciária. PENAL. PROCESSO PENAL. APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA. MATERIALIDADE E AUTORIA DEMONSTRADAS. DIFICULDADE FINANCEIRA COMPROVADA. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. APELAÇÃO DESPROVIDA. 1. Na hipótese dos autos, em que pese a comprovação da materialidade e autoria delitiva em questão, faz-se necessário reconhecer a incidência da causa de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa, em face das dificuldades financeiras apresentadas pela empresa. 2. Demonstradas, na forma da V. Sentença apelada, as dificuldades financeiras vivenciadas pela


empresa administrada pela acusada, faz-se necessária a manutenção da sentença a quo que a absolveu da prática do delito previsto no art. 168 - A, § 1º, I, do Código Penal, com o reconhecimento da causa de exclusão de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa. 3. Sentença mantida. Apelação criminal desprovida. (TRF 1ª R.; ACr 0009717-68.2010.4.01.3800; MG; Quarta Turma; Relª Juíza Fed. Conv. Clemência Maria Almada Lima de Ângelo; DJF1 30/09/2014; Pág. 366) PENAL. AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. DELITO DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. COMPROVADAS A AUTORIA E A MATERIALIDADE DELITIVA. COMPROVAÇÃO DE QUE A EMPRESA PASSAVA POR GRAVES DIFICULDADES FINANCEIRAS. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE. I - A materialidade delitiva restou comprovada consoante procedimento administrativo-fiscal, bem como a autoria, admitida pelo próprio réu. II - A inexigibilidade de conduta diversa é causa supralegal de exclusão da culpabilidade sendo, pois, imprescindível, perquirir se o agente estava efetivamente impossibilitado de recolher os valores descontados dos empregados da sua empresa. III - A comprovação da real impossibilidade de praticar a conduta determinada pela norma é de ordem a excluir a tipicidade do delito, em razão da aplicação da causa supralegal de inexigibilidade de conduta diversa. IV - A exclusão da culpabilidade requer a existência de elementos seguros, aptos a comprovar a impossibilidade do recolhimento das contribuições devidas à Previdência. V - Comprovado o extremo estado de necessidade em que se encontrava a empresa, através de robusta prova material, corroborada pela prova testemunhal, impõe-se reconhecer caracterizada a causa supralegal de exclusão da culpabilidade, consistente na ixegibilidade de conduta diversa. VI - Apelação do MPF improvida. VII - Sentença mantida na íntegra. (TRF-3 - ACR: 5789 SP 1999.61.81.005789-7, Relator: JUIZA CONVOCADA MARIANINA GALANTE, Data de Julgamento: 19/11/2002, SEGUNDA TURMA) PROCESSUAL PENAL E PENAL: ARTIGO 168-A DO CP. OMISSÃO DO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI 9.983/00. AUTORIA E MATERIALIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE. I - O crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias, com o advento da Lei nº 9.983/00, passou a ser tipificado no artigo 168-A do CP. II - O não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados é crime omissivo próprio cuja consumação ocorre com o descumprimento do dever de agir determinado pela norma legal. III A autoria e a materialidade delitivas restaram comprovadas nos autos. IV - A inexigibilidade de conduta diversa é causa supralegal de exclusão da culpabilidade sendo, pois, imprescindível, perquirir se o agente estava efetivamente impossibilitado de recolher os valores descontados dos empregados da sua empresa. V - No caso, houve comprovação de que a autora tentou quitar o débito, muito embora não tenha conseguido em sua integralidade. Há também farta documentação sobre a situação financeira da empresa, o que leva a crer que são verdadeiras as alegações de que enfrentava severa crise. VI - Havendo fundada dúvida a respeito da existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, deve-se resolver em favor do réu. VII - Apelação provida para reformar a


sentença e absolver a ré. (TRF-3 - ACR: 3668 SP 1999.61.05.003668-0, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA MELLO, Data de Julgamento: 13/09/2011, SEGUNDA TURMA) PROCESSUAL PENAL E PENAL: ARTIGO 168-A DO CP. OMISSÃO DO RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. LEI 9.983/00. AUTORIA E MATERIALIDADE. COMPROVAÇÃO. DOLO ESPECÍFICO. DESNECESSIDADE DE SUA VERIFICAÇÃO. CONSUMAÇÃO. INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO. ALEGAÇÃO DE QUE A EMPRESA PASSAVA POR GRAVES DIFICULDADES FINANCEIRAS COLOCANDO EM RISCO A SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA. ÔNUS DA PROVA. ARTIGO 156 DO CPP. I - O crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias, com o advento da Lei nº 9.983/00, passou a ser tipificado no artigo 168-A do CP. II - O não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos salários dos empregados é crime omissivo próprio cuja consumação ocorre com o descumprimento do dever de agir determinado pela norma legal. III - Tratando-se de tipo omissivo, não se exige o animus rem sibi habendi, sendo suficiente à sua consumação, o efetivo desconto e o não recolhimento do tributo no prazo legal, sendo desnecessária a verificação de eventual ausência de dolo específico. IV - A autoria e a materialidade delitivas restaram comprovadas nos autos. V - A inexigibilidade de conduta diversa é causa supralegal de exclusão da culpabilidade sendo, pois, imprescindível, perquirir se o agente estava efetivamente impossibilitado de recolher os valores descontados dos empregados da sua empresa, o que inocorreu no presente feito. VI - A alegação de dificuldades financeiras não é suficiente para ilidir a responsabilidade penal do agente. A exclusão da culpabilidade requer a existência de elementos seguros, aptos a comprovar a impossibilidade do recolhimento das contribuições devidas à Previdência. A prova da alegação incumbe a quem a fizer, sob pena de não ser considerada pelo julgador (artigo 156 do CPP). VII Prescrição da pretensão punitiva estatal reconhecida em relação ao não recolhimento das contribuições no período compreendido entre outubro de 1995 a março de 1996. VIII - Acréscimo decorrente da continuidade delitiva reduzido para 1/6 (um sexto). IX - Redução do valor do dia multa para o mínimo legal. X - Apelação parcialmente provida. (TRF-3 - ACR: 1282 SP 2007.03.99.001282-0, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL CECILIA MELLO, Data de Julgamento: 01/09/2009, SEGUNDA TURMA)

Por vezes, em momentos de recessão econômica no país, a manutenção do emprego se mostra uma tarefa dificílima, ante as várias obrigações legais e demais situações burocráticas inerentes a cada atividade, notadamente às de caráter empresarial. São nesses momentos que surge a impossibilidade de se exigir do contribuinte comportamento arrecadatório em detrimento de sua própria sobrevivência.


Trabalhando com mais alcance prático a não-exigibilidade nos crimes contra a ordem tributária (dentre os quais pode-se inserir o tipo penal objeto do trabalho), baseados em pressupostos lançados por Jakobs, Veloso (2013, p. 494) defende que a aplicação do instituto em estudo deve seguir alguns requisitos: 1) somente há uma situação de conflito quando está provado que a saúde financeira da empresa é precária ao ponto de encontrar-se em estágio de falência ou pré-falência; 2) que a opção feita tenha sido efetivamente no sentido de preservação da empresa e não para lazer ou aumento de patrimônio dos sócios; 3) que a precariedade dos recursos seja motivada pela situação econômica geral ou por fato estranho à responsabilidade dos sócios e não por gastos perdulários e má administração.

A tão citada situação de penúria surge aqui como um imperioso motivo infirmante a caminho da exclusão da culpabilidade. Não basta que o caixa da empresa esteja no vermelho. Necessário se faz que isso tenha acontecido em decorrência de fatores externos, isto é, alheios à regular gestão administrativa da entidade. Merece atenção quanto ao ônus da prova. Deve-se ponderar que uma vez preenchidos, em tese, os requisitos do crime do art. 168-A, §1º, inciso ―I‖, do Código Penal, incumbe à defesa demonstrar a ocorrência de fato extremo que tenha levado a empresa e o responsável tributário a não repassar aos cofres da União o competente tributo. Nesse sentido, devem ser utilizadas como provas documentais firmes e idôneas, a exemplo de contratos de locação de parte das instalações da empresa, protesto de títulos, estar a empresa em recuperação judicial, documento contábil demonstrando detalhadamente a situação penuriante, entre outros. Colaciona-se outro julgado, na linha do que se argumenta: PENAL.

NÃO

RECOLHIMENTO

DE

CONTRIBUIÇÃO

PREVIDENCIÁRIA. LEI Nº 8.212/91, ART. 95, ALÍNEA D. LEI Nº 9.983/2000. ART. 168-A, § 1º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL. AUTORIA E

MATERIALIDADE

COMPROVADAS.

DIFICULDADES

FINANCEIRAS. ALEGAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. ACOLHIMENTO. 1. Constitui a infração descrita no art. 168-A do Código Penal, deixar de repassar à previdência social as


contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 2. O crime de apropriação indébita previdenciária, que é crime omissivo puro, não exige que da omissão resulte dano, bastando, para sua configuração, que o sujeito ativo deixe de repassar

à

Previdência

Social

a

contribuição

recolhida

dos

contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional. 3. Autoria e materialidade

demonstradas.

4.

Acolhimento

da

tese

de

inexigibilidade de conduta diversa, como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, considerando que a conduta dos réus, apesar de típica, visto que se amolda à figura prevista no art. 168-A do Código Penal, e de não estar albergada por qualquer causa excludente de ilicitude, não é culpável, na medida em que não lhes era exigível portar-se de maneira diversa, em consonância com o ordenamento jurídico. 5. Apelação improvida. (TRF-1 - ACR: 28306 MG 2003.38.00.028306-3, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL HILTON QUEIROZ, Data de Julgamento: 09/10/2007, QUARTA TURMA, Data de Publicação: 30/10/2007 DJ p.78)

A inexigibilidade de conduta diversa se mostra patente justamente nas situações apresentas nos supratranscritos precedentes. Como bem orienta Veloso (2013, p. 499), ―não se trata de possibilidade de perdão da dívida‖, posto que essa pode persistir e ser passível de execução, respeitados os prazos prescricionais para tanto. Ademais, como bem pontifica o autor acima nominado, quando se tem sentença decretando a absolvição do acusado por causa excludente de culpabilidade, estar-se-á aplicando o Direito Penal como ultima ratio. Ou seja, o instrumento que somente deve ser utilizado para os casos graves de violação de bens jurídicos e não para a cobrança de dívidas, de sorte que a ameaça de prisão a empresários em dificuldade financeira os obriga a contrair empréstimos, vender bens de familiares, entre outras atitudes tomadas, sem deixar de sublinhar que nem todos têm condições de contratar um bom advogado para proceder às suas defesas e enfrentar um processo penal demorado e estigmatizante.

Demonstrado, no caso concreto, a ocorrência de circunstância exculpante, a exclusão do crime e absolver o réu é a medida que se impõe, por não ser possível exigir daquele responsável tributário comportamento outro, sob pena de prejudicar, além do seu meio de trabalho, o emprego de outros tantos.


CONCLUSÃO

Pode-se extrair, a partir das considerações tecidas inicialmente, que a consumação do crime se dá quando o responsável tributário deixa de repassar a contribuição para os cofres previdenciários no prazo legal – estipulada em norma previdenciária (daí se tratar de tipo com norma penal em branco) –, tendo em vista se tratar de crime próprio. Restou igualmente demonstrado que pode figurar no sujeito ativo do crime o empregador, seja de direito público ou privado e ainda, segundo se explicou, o representante bancário que deixa de repassar a quantia referente à contribuição. No que tange ao sujeito passivo, consolidou-se o entendimento que considera a União Federal, através da Receita Federal (sujeito passivo direito) e os empregados (sujeito passivo indireto), conquanto sejam, futuramente, destinatários finais das contribuições. No tocante ao posicionamento da teoria da inexigibilidade de conduta diversa entre os substratos do crime, correta é a interpretação que a trabalha como causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Trata-se de elemento negativo, uma vez que, na hipótese, ocorrer-se-ia a não possiblidade de agir conforme a norma. Percebe-se que a aplicação da inexigibilidade da conduta diversa é melhor compreendida em situações de grave situação econômica nacional, o que, vem se perpetuando indefinidamente no país. Como visto, só devem ser punidos os comportamentos que poderiam ser evitados, isto é, se no momento da prática da conduta não restou alternativa conforme o direito para o agente escolher, não há que se falar em punição pela infringência da norma, visto que sua conduta não se traduz em reprovabilidade. No caso em estudo, não se poderia exigir do responsável tributário que, por determinado período – ressalte-se, curto período – no qual sofreu com problemas de ordem financeiro-econômicos, que recolhesse e repassasse a contribuição previdenciária em detrimento do pagamento de empregados, fornecedores, entre outras necessidades imprescindíveis para a continuidade


da atividade fim, sob pena de restar inviabilizada sua atividade e causar, no final das contas, um prejuízo muito maior. Todavia, como visto, o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa passa pela análise, no caso concreto, da robustez das provas produzidas pelo réu, como, por exemplo, certidões de cartórios de protesto, certidões de execuções judiciais, extratos de contas bancárias, pedidos de recuperação judicial ou seus indícios, contratos de locações de parte da estrutura empresarial ou dos seus bens etc., todos, obviamente, concatenados com os fatos da respectiva ação penal. Só assim ocorrerá a absolvição por exclusão da culpabilidade do réu. Por fim, imperioso asseverar que o direito penal deve funcionar sempre como a ultima ratio, adotando medidas que visem a adequação do fato à norma, observando sempre as circunstâncias do caso concreto, abandonando, cada vez mais, a visão do homo medius.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado: estudo integrado com processo e execução penal: apresentação esquemática da matéria: jurisprudência atualizada – 14. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2014. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial - 7. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2011. OLIVEIRA, Olga M. B. Aguiar de. Monografia Jurídica. 3.ed. Porto Alegre: Síntese, 2003. PRADO, Luiz Regis. Direito penal econômico: ordem econômica, relações de consumo, sistema financeiro, ordem tributária, sistema previdenciário, lavagem de capitais, crime organizado - 3. ed. rev., atual, e ampl. - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009. TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Culpabilidade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. VELOSO, Roberto Carvalho. Aplicação da inexigibilidade de conduta diversa nos crimes tributários. In: SCARPA, Antonio Oswaldo; HIRECHE, Gamil Föpel El (Org.). Temas de direito penal e processual penal: estudos em homenagem ao juiz Tourinho Neto. Salvador: Juspodivm, 2013. Cap. 36.


4 INFLUÊNCIA DA OPINIÃO PÚBLICA E MIDIÁTICA NA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO HABEAS CORPUS Nº. 126.292

DEIVID W ILLIAM DOS PRAZERES DIEGO AUGUSTO BAYER

INTRODUÇÃO

O Direito Processual constantemente enfrenta diversos dilemas nas mais diversas áreas, de forma que cada vez mais se faz necessário aos julgadores tomarem decisões, que, em regra, agradam a uns e desagradam a outros. O Direito Penal e mais especificamente o Processo Penal, hoje se vê incerto em uma fase onde a tomada de decisões e medidas de controle se fazem ainda mais necessárias, uma vez que o sistema penal brasileiro encontra-se manifestamente em crise, que aumenta a insatisfação da sociedade no que tange ao sentimento de impunidade, fazendo com que esta clame por medidas eficazes para o fim de se atingir a punição de sujeitos delinquentes. Em consequência, preocupam-se os operadores do direito com a crescente divulgação dos fatos e o apelo realizado por meio dos meios midiáticos, que se aproveitam deste descontentamento da população em matéria penal e exploram ao máximo o discurso punitivo para mostrar à sociedade um conteúdo cada vez mais apelativo, incutindo na mente do cidadão que os crimes, sejam eles a espécie que for, continuam ocorrendo e que a impunidade continua existindo. Desse modo, pretende-se analisar o julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus nº 126.292, quando em Plenário, por sua


maioria, autorizou a execução antecipada da pena, quando esta for confirmada em segundo grau, ainda que não tenha transitado em julgado, juntamente ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, o qual prevê que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". (BRASIL, 2016). Busca-se, igualmente, analisar a influência que a mídia exerce na opinião pública, por intermédio do espetáculo penal, fazendo com que a população clame cada vez mais por justiça e combate à impunidade, de forma que a vontade popular acaba sendo absorvida pelo julgador como demanda punitiva, resultando em julgamentos que, por vezes, deixam de lado os princípios processuais que deveriam ser basilares ao processo penal e a devida observância as garantias fundamentais inerentes ao próprio ser humano, como é o caso na presunção de inocência. Para tanto, será empregado o método hipotético-dedutivo e utilizar-se-á como técnica de pesquisa a pesquisa bibliográfica, com propósito de compor a base teórica necessária a fundamentar o estudo, juntamente à pesquisa a legislação e julgamentos pontuais acerca do tema em questão.

I. O EXPANSIONISMO PENAL NA SOCIEDADE ATUAL

Na corrida à punição desenfreada e a incessante busca para solução da sensação de impunidade é que se esbarra no expansionismo penal. Embora atualmente considerável parcela da doutrina defenda a aplicação do princípio do direito penal mínimo, em que somente se incrimine o que é realmente necessário, ou seja, apenas as condutas que forem realmente intoleráveis ao convívio social, o que se observa, na prática, é justamente o contrário, isto é, o crescimento das punições. (ANDRADE, 2014). Nesse passo, o expansionismo do direito penal vem se apresentando com destaque à solução dos problemas criminais. Referida medida, contudo, não é compatível com os preceitos estabelecidos em nosso Estado Democrático de Direto, uma vez que o direito penal deveria interferir no mínimo necessário e, em último caso. Para Rangel (2013, p. 122):


Nos dias atuais é notório o desejo social de que o Direito Penal seja cada vez mais expandido e alargado, de modo a incidir nas mais frívolas condutas, gerando um controle penal cada vez mais "descontrolado". Esquece-se, em razão dessa busca incessante pela punição preconizada aos quatro cantos, que o Direito Penal preza pelo princípio da intervenção mínima.

No mesmo sentido, Prado (1997, p. 56) corrobora: [...] o princípio da intervenção mínima (ultima ratio) limita o jus puniendi, no sentido de que pressupõe que a tutela penal só deve tratar daqueles bens jurídicos fundamentais da sociedade e caso não existam outros métodos eficientes "para assegurar as condições de vida, o desenvolvimento e a paz social, tendo em vista o postulado maior da liberdade e da dignidade da pessoa humana".

Não obstante, há muito tempo não se avalia mais a interferência do direito penal como ultima ratio para solução de conflitos e proteção dos bens jurídicos, ao revés, percebe-se a implementação cada vez maior doa lei punitiva como meio de combate à redução da criminalidade (BOLDT, 2013). Segundo Boldt (2013, p. 116): No Brasil, onde desde a promulgação da Constituição Federal (outubro de 1988) foram produzidas 3.510.804 novas normas jurídicas, a intervenção penal tem sido utilizada como resposta para quase todos os tipos de problemas sociais e converte-se em resposta simbólica oferecida pelo Estado em face das demandas sociais por segurança e penalização, veiculadas pela mídia e sem relação direta com a verificação da sua eficácia instrumental como meio de prevenção ao delito.

O

Direito

Penal então

transforma-se

em

instrumento

utilizado

politicamente para a busca de fins que não lhe são próprios em um Estado Democrático de Direito, ou seja, quando empregado no sentido de proporcionar respostas eficazes à criminalidade, assumindo um caráter meramente simbólico, dado que proporciona uma impressão tranquilizadora no imaginário da população (SÁNCHEZ, 2002). Resta, por assim dizer, que o Direito Penal hoje, encontra-se marcado por uma inflação legislativa que não se preocupa de fato com o acusado, mas sim e tão somente com a punição que a sociedade espera ante o fato cometido. (CARVALHO, 2008) Logo, o que se observa é que a expansão do Direito Penal não é apenas o aumento de delitos e bens jurídicos, mas também - e principalmente


- uma expansão que incide diretamente na diminuição de garantias e direitos inerentes ao indivíduo enquanto acusado. Desse modo, o direito penal, em razão da ânsia social por punição, está assumindo a função de arma política frente a uma sociedade que clama cada vez mais pela eficiência do Judiciário e pelo imediatismo nas punições, o que, em regra, é contraditório e nos leva cada vez mais a um modelo de direito penal máximo, qual caminha na contramão da Constituição Brasileira. (CALLEGARI; WERMUTH, 2016) II. DA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE PELA MÍDIA E SEU PODER DE MANIPULAÇÃO

A mídia, para muitos telespectadores, apresenta uma verdade absolut, em razão da grande dificuldade de filtragem da informação pela maioria da população. Para conseguir passar essa ―verdade absoluta‖, a mídia utiliza-se de diversos mecanismos para a divulgação das informações, sendo necessário entendermos como se faz a construção desta realidade. Diversos são os fatos que acontecem em todo o mundo, mas poucos são os relatados, eis que há uma seleção de situações que serão amplamente divulgadas. Isto denomina-se o princípio da seletividade. Certo é que esta seleção deveria seguir padrões éticos e profissionais, no entanto, a mídia tem se interessado apenas pels altos índices de audiência, utilizando-se do uso do sensacionalismo através do sangue, sexo e crime para fascínio do público alvo. A mídia, ao selecionar os fatos, seleciona também quais informações e pessoas serão importantes em relação ao fato, explicando e interpretando a ―realidade‖. É por este motivo que Bertrand (1999, p.53) denuncia que ―inegavelmente, a mídia determina a ordem do dia da sociedade: ela não pode ditar às pessoas o que pensar, mas decide no que elas vão pensar‖. O jornalismo tem se adaptado ao espetáculo e através dessa seleção de conteúdo, a mídia tem o ―poder de construção da realidade‖, criando pessoas incapazes de contestar, garantindo, assim, sua ―verdade absoluta‖. Essa ampla divulgação e o superdimensionamento de fatos episódicos e excepcionais sobre os crimes escolhidos pela mídia, conforme Carvalho (2010, p.14), acabam por aumentar a vontade de punir que caracteriza o punitivismo contemporâneo.


Em vista disto, Schecaira (1996, p.16) entende que a mídia é uma fábrica ideológica condicionadora, pois não hesita em alterar a realidade dos fatos criando um processo permanente de indução criminalizante, salientando que: Zaffaroni e Cervini (...) destacam que os meios de comunicação de massas, ao agirem dessa forma, atuam impedindo os processos de descriminalização de condutas de bagatela (por exemplo), incentivando a majoração de penas, constituindo-se, pois, num dos principais obstáculos à criação de uma sociedade democrática fundada nos valores de respeito aos direitos dos cidadãos e da dignidade humana.

Natalino (2007, p.146) explica que a notícia é formada pelo tripé ethos, logos e pathos, representados nessa ordem pelo jornalista, pelos especialistas e pela vítima e/ou familiares. Esses três são os atores das notícias utilizados dessa maneira para garantir a credibilidade ao fato noticiado, especialmente na divulgação de crimes violentos. Outro mecanismo utilizado para a construção da realidade é a posição da mídia como ―opinião pública‖. Este papel foi tomado pela mídia e em razão disso se entende por opinião pública o que aparece na televisão ou é noticiado no jornal. Chomsky (2004, p.50) chama esse controle sobre a opinião pública de ―consentimento sem consentimento‖, uma vez que a mídia não se utiliza do processo democrático para se colocar como ―opinião pública‖, mas acaba por destruir a democracia, uma vez que expressa tão somente a sua ―verdade absoluta‖. Em virtude disto, notável que a própria sociedade criou um hábito pela notícia sensacionalista, pois diariamente se verificam relatos e notícias criminais nas chamadas televisivas e capas de jornais e, ao contrário do que deveria ser, quanto mais violenta é a manchete, mais interesse se tem pela sua leitura e acompanhamento. Tal conduta se justifica frente a "crise de credibilidade política que a população se encontra, desse modo, os telejornais procuram outras categorias informativas para traduzir o interesse da sociedade — geralmente notícias violentas [...]". (ROSÁRIO; BAYER, 2014). Nesse sentido, Carnelutti (2010, p.6) já salientava:


Um pouco em todos os tempos, mas no tempo moderno sempre mais, o processo penal interessa à opinião pública. Os jornais ocupam boa parte das suas páginas para a crônica dos delitos e dos processos. Quem as lê, alias, tem a impressão de que tenha muito mais delitos que não boas ações neste mundo. A ele é os delitos assemelham-se às papoulas que, quando se tem uma em um campo, todos desta se a percebem; e as boas ações se escondem, como as violetas entre as ervas daninhas. Se dos delitos e dos processos penais os jornais se ocupam com tanta assiduidade, é que as pessoas por estes se interessam muito; sobre os processos penais assim ditos célebres a curiosidade do público se projeta avidamente. E é também esta uma forma de diversão: foge-se da própria vida ocupando-se da dos outros; e a ocupação não é nunca tão intensa como quando a vida dos outros assume o aspecto do drama. O problema é que assistem ao processo do mesmo modo com que deliciam o espetáculo cinematográfico, que, de resto, simula com muita frequência, assim, o delito como o relativo ao processo. Assim como a atitude do público voltado as protagonistas do drama penal é a mesma que tinha, uma vez, a multidão para com os gladiadores que combatiam no circo, e tem ainda, em alguns países do mundo, para a corrida de touros, o processo penal não é, infelizmente, mais que uma escola de incivilização.

É verdade que algumas vezes os fatos refletem a realidade, entretanto, nem sempre é assim, e nestes casos a mídia que deveria exercer a sua função social, não distorcendo os fatos a fim de causar impressões de mero impacto, fomentando medo e insegurança social, e, por conseguinte, exaltando a expansão do direito penal como solução para todos os problemas sociais. (VIEIRA, 2002). Essa promoção punitiva que domina o espetáculo da justiça penal termina por "degradar a Justiça penal ao nível de mercadoria de consumo público – mas vendida ao preço da lesão dos direitos humanos e da corrosão da Democracia" (SANTOS, s.d). De acordo com Guy Debord (2003, p. 10): O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

Por meio deste movimento circular descrito, nota-se que o espetáculo penal, através da mídia, resulta em um ciclo vicioso, que resulta em maior


clamor social, penalização de mais condutas e anseio por punição. (CALLEGARI; WEBER, 2016) Com estes mecanismos, a mídia exerce o poder de manipulação sobre as massas, moldando os acontecimentos, manipulando as informações, escolhendo os entrevistados e selecionando os trechos mais adequados de suas falas. Não são poucos os casos em âmbito mundial de boatos que foram transformados em fatos ―reais‖, imputando-se crimes a inocentes e julgando-os antes de uma sentença condenatória. Em relação a terrível manipulação de notícias, Cavalcanti (1992, p.4) acrescenta que Alguns governos continuam a manipular notícias de acordo com seus próprios interesses políticos. O governo chinês registrou videotape, em 1989, o massacre da Praça Celestial mudando a ordem dos acontecimentos para fazer parecer que os assassinatos foram uma reação justificada à violência da multidão.

Em virtude disso, crescente é a preocupação em relação à imprensa, especialmente a televisiva pelo seu alcance. Os programas sensacionalistas transmitidos diariamente em quase todos os canais da grade televisiva atingem a grande massa, que não possui capacidade de discernir a verdade da mentira, tomando por base o que lhes é transmitido como verdade absoluta. Desse modo, o que era para ser informação de qualidade e veracidade ao público acabou por se tornar um mercado de consumo, que não se atenta a qualquer valor moral. Sobre o tema, Vieira prevê: O desenvolvimento tecnológico do meio informativo desencadeou um crescimento dos veículos de comunicação revolucionando o mercado da mídia. Esta é dominada por grandes conglomerados empresariais que visam à obtenção de lucro a qualquer custo, ainda que este seja a dignidade do ser humano. (VIEIRA, 2003, p. 44)

Inserindo a mídia diretamente no âmbito penal, Batista (2003, p. 33) leciona que: [...] os meios de comunicação em massa, principalmente a televisão, são hoje fundamentais para o exercício do poder de todo sistema penal, seja através dos novos seriados, seja através da fabricação da realidade para a produção de indignação moral, seja pela fabricação de estereótipo do criminoso.

Corroborando, Guimarães (2007, p. 280) afirma que:


Os meios de comunicação de massa, especialmente a televisão, criam uma realidade, por evidente simbólica, capaz de moldar e organizar as experiências sociais, manipulando a conscientização das pessoas de acordo com as políticas adotadas. Assim, a realidade social é construída, posto que a mídia possui a fôrma e a massa com as quais modela o pensamento do povo.

Nessa perspectiva, a mídia define, muitas vezes, a própria visão de "mundo"

na

maioria

das

pessoas,

determinando

suas

atitudes,

comportamentos e modo de pensar, manipulando o pensamento público à preservação de valores do cidadão (GOMES, 2015) Por consequência, para que se atinja tal manipulação social, a mídia se utiliza da linguagem sensacionalista, qual se transformou no método mais utilizado no momento em que se transmite a informação. Acerca do tema Vieira dispõe: A linguagem sensacionalista, caracterizada por ausência de moderação, busca chocar o público, causar impacto, exigindo seu envolvimento emocional. Assim, a imprensa e o meio televisivo de comunicação constroem um modelo informativo que torna difusos os limites do real e do imaginário. Nada do que se vê (imagem televisiva), do que se ouve (rádio) e do que se lê (imprensa jornalística) é indiferente ao consumidor da notícia sensacionalista. As emoções fortes criadas pela imagem são sentidas pelo telespectador. O sujeito não fica do lado de fora da notícia, mas a integra. (VIEIRA, 2003, p. 52-53)

Em relação a esse poder de manipulação e influência, Marques (2010) expõe com indignação que, no Brasil se aprende a conviver com as misérias em nossa porta, mas não dentro de nossas casas. A divulgação de grande parte dos crimes hediondos é feita por jornais de periferia, sendo normal notícias de decapitação e corpos encontrados nos esgotos, as quais não são expostas em grandes veículos, eis que ocorrem na maioria das vezes com classes desfavorecidas. Saliente que ―seria muito mais proveitoso se a mídia utilizasse de sua força que nos emociona para promover uma mudança de valores em nossa sociedade‖. Em razão disso, Silva (1992, p.11) expõe que: Tudo deve ter um limite. O direito de um termina quando se inicia o de outrem. Quando é desrespeitado esse princípio, o mais forte começa a impor ao mais fraco seu pensamento e sua forma de agir. Pois bem, quem é mais forte nesse país: a classe política, a Igreja, as


Forças Armadas ou a imprensa? Discutível dizer qual delas. Entretanto, é indiscutível que a imprensa televisiva exerce poderosa influência. Em um país pobre e analfabeto como o Brasil, a televisão vem exercendo papel preponderante nas mudanças de costume e de padrões de vida da população.

A necessidade da mídia em de ser a primeira a divulgar o fato faz com que se crie uma realidade parcial ou até mesmo inexistente, sem sequer escutar o outro lado da história, ou seja, a versão do acusado, publicando apenas uma verdade parcial. Então, para legitimar estas ações, os meios de comunicação criam ideias de que ―todo bandido deve morrer‖, de que ―temos que aumentar as penas dos crimes‖, ―criar leis mais rígidas‖, ―instituir a pena de morte‖, ou quem sabe, ―jogar uma bomba nas favelas‖. Este discurso dos meios de comunicação legitimam um punitivismo excessivo e a exclusão social, como se essas atitudes fossem a única forma de acabar com a criminalidade. Boldt (2013, p. 67) explica que: A intervenção do jornalista na reconstrução da realidade ocorre já na definição da "pauta" do que deverá ser noticiado, momento em que se descartam informações cuja importância foi reduzida. O trágico desta seleção está exatamente na modificação dos critérios pertinentes à relevância dos fatos, substituída pelo mero interesse do público. Neste ponto, merece destaque a corrida pela audiência em que se lançam os meios de comunicação. A concorrência e a busca incessante por pontos na audiência só tem piorado a qualidade das notícias que, quase sempre, se pautam apenas na busca pelo "furo".

Não se divulga o que não vende, mas sim, o que vende e dá audiência, o que está sempre estritamente ligado com a politica do governo. Logo, "os políticos atuam e decidem em função dos meios de comunicação massiva. [...] O Estado se torna um espetáculo diante do escasso exercício do poder efetivo de seus operadores: não importa o que se faz, mas sim a impressão do que se faz" (ZAFFARONI, 1997, p. 34). Assistimos todos os dias a jornalismos espetáculos que noticiam ―ao vivo‖ sobre sequestros, homicídios, rebeliões, fatos que, apesar de serem considerados normais e

naturais,

quando

uma

amplitude ―midiática‖,

reiterando-se várias vezes apenas para utilizar do sensacionalismo para alcançar grandes audiências.


Não só bastasse distorcer os fatos através de seu discurso espetáculo, os meios de comunicação fazem seu público acreditar que a violência e a criminalidade crescem sem precedentes. Para isso, escolhem determinados tipos penais e os noticiam com dramaticidade, fazendo os cidadãos mudarem seus comportamentos em razão da tal ―violência crescente‖. Canavilhas (2007, p. 05), afirma que "[...] a espectacularização da notícia é consequência do domínio da observação sobre a explicação. A televisão procura prender o espectador, dando prioridade ao insólito, ao excepcional e ao chocante". Guy Debord (1997, p. 14), por sua vez, assinala: O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Pelo fato desse setor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada.

Não são poucos os casos em que os meios de comunicação transformam em ―meros espetáculos‖, como o caso do ex-astro de futebol americano O.J. Simpson, a morte da princesa Diana, o julgamento do ex-oficial da marinha argentina Alfredo Astiz, o caso de MaríaSoledad Morales, os casos brasileiros de Suzane von Richthofen, da criança Isabela Nardoni, do jogador de futebol Bruno, todos meros exemplos em que os meios de comunicação se limitaram a promover um espetáculo em torno da situação para ―vender notícias‖ e aumentar a audiência. Para se ter uma noção de como os meios de comunicação possuem poder, o caso do norte americano O.J. Simpson fora transmitido mais de 2.000 horas ao vivo somente em 3 canais de televisão, atingindo 20 milhões de pessoas, interrompendo inclusive um discurso do presidente Bill Clinton quando foi dado o veredicto (ANITUA, 2003, p. 193-194). Este caso em particular ilustra a dimensão que os meios de comunicação podem proporcionar a um processo, podendo inclusive influenciar a sociedade para que pense do modo que os grandes detentores destes instrumentos queiram.


Este jornalismo espetáculo investiga de acordo com sua conveniência, capta falas de suspeitos e as manipulam, trazem imagens irreais, criando sua própria verdade em relação ao crime ocorrido, fazendo com que seu público acredite nesta ―verdade absoluta‖, rompendo com a relação entre o real e o imaginário. Certo é que esta seleção deveria seguir padrões éticos e profissionais, contudo, a mídia, por se interessar somente pelo índice de audiência, ignora todos os filtros para sensacionalizar fatos cotidianos.. E melhor se forem ‗bárbaros‘, por não envolverem disputa, pois ao invés de dividir – todos querem Justiça! – formarão consenso sobre a pena, e interessar à população jogada na inautenticidade do agente, podendo ocasionar mobilizações em prol do único remédio conhecido – por eles – para conter a ‗chaga do crime‘: cadeia neles!, se possível linchamento em praça pública, com hora marcada, fogueira, enxofre, muito sangue e patrocinadores a peso de ouro, retomando-se o suplício do corpo dos condenados (ROSA, 2014) Canavilhas (2007, p. 05) relata que a utilização pelos meios de comunicação de quatro elementos na espetacularização da notícia: 1. Selecção de dramas humanos - Procura-se explorar os sentimentos mais básicos da pessoa, pondo em destaque casos de insatisfação das necessidades básicas identificadas por Maslow, nomeadamente as necessidades fisiológicas e a segurança. 2. Reportagem/directo - Recurso ao enquadramento local, se possível na hora do acontecimento, tirando partido da emoção oferecida pelo repórter no papel de testemunha ocular do acontecimento. 3. Dramatização - Uso dos gestos, do rosto e da expressão verbal (volume, tom e ritmo de voz) para emocionar ou sublinhar as imagens que desfilam no pequeno ecrã. Usualmente, são cinco os procedimentos clássicos da dramatização: o exagero, a oposição, a simplificação a deformação e a amplificação emocional. 4. Efeitos visuais - Todo o esforço de montagem e pós-produção, que permite manipular o acontecimento através da selecção das imagens mais elucidativas.

Segundo Naves (2003), a espetacularização da notícia, essencial na busca pelo entretenimento, propicia a confusão entre "interesse público" e "interesse do público", desculpa frequentemente invocada pela mídia para exigir informações e justificar invasões de privacidade. Transformou-se a informação em mercadoria de entretenimento,

com apelos estéticos,


emocionais e sensacionalistas, ―onde o espetáculo em cartaz é a vida‖ (PENA, 2008, p. 87). Portanto, verifica-se que a construção da realidade televisiva vem exigindo que se dê uma atenção especial ao conteúdo dramático e emocional, sendo necessário cumprir duas regras fundamentais: a) Garantir a compreensão do discurso, através de um fio condutor perceptível a todos. Enquanto que a realidade tem tendência para apelar a todos os sentidos, a realidade televisiva deverá procurar que a mínima fixação do sentido seja o suficiente para que o telespectador entenda a mensagem. Esta forma dos media garantirem a compreensão da notícia colhida da realidade está sintetizada em três processos: 1. Simplificação - Procura-se construir uma intriga reduzindo o número de personagens e situações e eliminando os elementos de difícil compreensão. Desta forma, procura-se que a informação seja acessível à generalidade dos cidadãos. 2. Maniqueização - A informação procura sempre dividir a acção em dois pólos de intriga: o bem e o mal. 3. Actualização e Modernização - Os anacronismos intencionais são outra forma de facilitar a compreensão. O transporte de uma personagem ou de uma situação do passado para um comportamento do presente permite uma percepção mais rápida da mensagem. Estes processos exigem do telespectador um raciocínio simples, gênero, causa-efeito. b) Procurar uma linguagem, não só simples, como próxima da linguagem de rua. Este facto permite que o telespectador se transporte para o local do acontecimento. (CANAVILHAS, 2007, p. 06)

Canavilhas (2007, p. 09) ainda ensina que as informações espetáculos proporcionada pelos meios de comunicação possuem quatro vícios que podem torna-la pouco consistente, falaciosa e especulativa 1. Sensacionalismo - Misturando três ingredientes - sangue, sexo e dinheiro - a informação-espectáculo obtém a fórmula que faz subir audiências. A estes ingredientes, juntam-se ainda o aparentemente inesperado, o falso exclusivo e o surpreendente. Mas com os mesmos ingredientes podem fazer-se produtos diferentes [...] 2. A ilusão do directo - A maximização da emoção é transmitida via informação em tempo real. Se ao directo se associar o imprevisto, então a informação- espectáculo atinge o seu ponto mais alto [...] 3. Uniformização - O directo não permite pontos de vista. As imagens são colhidas em bruto, restando apenas liberdade de comentários. A falta de background conduz à uniformização do comentário e à redundância, já que o acontecimento é apenas e tão só o momento. Não há referências históricas, não há recurso à técnica, nem hipóteses de simulação. 4. Os efeitos perversos - O julgamento "à priori" é, talvez, o efeito mais perverso da informação-espectáculo. O querer mostrar mais, leva aos directos e às simulações sem bases que o suportem. Sendo a informação mais rápida que a Justiça, o telespectador é induzido a


efectuar o ser próprio juízo, fazendo com que o próprio julgamento fique desde logo condicionado.

Esquecem os meios de comunicação que a violência sempre existiu e sempre existirá, independente de seu apelo midiático. Contudo, o que os meios de comunicação vem fazendo é propagar o medo, maximizando a intervenção penal do Estado e criando estereótipos criminosos que fazem com que se aumente as desigualdades, gerando, em decorrência disso, mais violência e criminalidade. Com a combinação ideal entre alcance e profundidade, os meios de comunicação não apenas constroem socialmente a criminalidade, mas realizam uma das suas mais notáveis funções, a fabricação do estereótipo do criminoso, fundamental para reforçar o problema estrutural da seletividade do sistema penal, cuja seleção varia, entre outras coisas, conforme a descrição produzida pelo discurso midiático. Em decorrência disso, "ao assumir a forma de espetáculo, o direito penal deixa de orientar-se no sentido de modificar a realidade, passando, todavia, a alterar a imagem da realidade nos espectadores". (BOLDT, 2013, p. 122) Sendo assim, primeiro se atinge o fantasma da criminalidade, para, em seguida, ‗vender‘ a ideia da intervenção do sistema penal, como única alternativa de se conseguir a tão almejada punição e segurança, fazendo crer que, com a reação punitiva, todos os problemas estarão sendo solucionados. (KARAM, 1993)

III. O ESPETÁCULO MIDIÁTICO COMO FOMENTADOR DA OPINIÃO PÚBLICA E A INFLUÊNCIA DA SOCIEDADE NA DECISÃO DO STF

O judiciário é um campo fértil para o espetáculo visado pelos meios de comunicação, haja vista que o próprio ambiente em torno do trâmite dos processos, em especial os criminais, possui um viés cênico, considerando que no âmbito penal estão em confronto a liberdade e o direito individual e o poder punitivo estatal com toda a carga de dramaticidade que a equação comporta. (CÂMARA, 2011)


Nesse ínterim, nota-se através dos recentes fatos da política brasileira, que na medida em que os órgãos midiáticos espetacularizam as notícias criminais, seja contra a pessoa ou contra o patrimônio, instala-se na população um sentimento de que os fatos negativos ocorrem com mais frequência do que o habitual. Além disso, quando juntamente a notícia destacam que "o acusado aguarda julgamento em liberdade", "o réu cumprirá pena em regime aberto" ou quando um acusado com indícios claros de carga probatória simplesmente não pode ser preso, por exemplo, restam, aumentam a revolta social e alimentam a sensação de impunidade. Para Boldt: Embora inúmeros fatores influenciem na criação de leis penais emergenciais, mais do que apresentá-los ou explicá-los, almejamos a reflexão crítica no tocante a uma espécie de ilusão repressiva alimentada pelos meios de comunicação de massa, difusores da resposta penal como a mais eficiente para fenômenos que envolvem conflitos individuais ou sociais. (BOLDT, 2013, p. 107)

Portanto, "a mídia exerce poderosa influência em nosso meio social, encarregando-se de convencer a sociedade da necessidade da cominação de penas mais gravosas" de forma que o meio utilizado para tocar o clamor público se dá basicamente, em mostrar casos que causem a revolta popular, seja pela atrocidade, seja pela impunidade e, "como resposta, clamar por um Direito Penal mais severo, mais radical e eficaz em suas punições" (VIEIRA, 2003, p. 52). Em decorrência disso, nossos representantes políticos ao se empenhar em criar e majorar normas penais como meio eficaz para a solução do problema, apresentam o Direito Penal como mero confronto aos medos sociais, que por sua vez, perde o seu papel de instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos aos indivíduos. (ROSÁRIO; BAYER, 2014). Nesse passo, nota-se que a mídia como fomentadora da opinião pública não encontra limites em qualquer aspecto do processo penal, haja vista que geralmente não se prende às garantias e direitos previstos ao acusado, mas tão somente em demonstrar o caos que se instala na sociedade quando estes não são punidos.


Importa, desse modo, esclarecer a opinião pública segundo Matteucci (1992, p. 842): Quer no momento da sua formação, uma vez que não é privada e nasce do debate público, quer no seu objeto, a coisa pública como "opinião" é sempre discutível, muda com o tempo e permite a discordância. Na realidade, ela expressa mais juízos de valor do que juízos de fato, próprios da ciência e dos entendidos.

Nessa perspectiva, os efeitos produzidos pela opinião pública em relação ao fenômeno delitivo e às funções "declaradas" do direito penal atuam como instrumentos de legitimação da expansão do poder punitivo e da legislação penal emergencial, que é o que se verifica atualmente. (BOLDT, 2013) Segundo Souza (2010, p. 97) "não se pode negar que a legitimação dos atos decisionais dos sistemas sociais e políticos está de certa forma interligada com a pretensão de decisões dos temas exteriorizados pela opinião pública''. É certo que em vários casos existem razões práticas que justificam as variações de posicionamento ou preocupações institucionais que levam os Tribunais a soluções contrárias das vigentes. Por outro lado, é igualmente verdade que garantia nenhuma deveria ser abandonada em função de novos entendimentos acerca de uma determinada norma ou mesmo um princípio, conforme adotou o Supremo Tribunal Federal. Nessa lógica, de uma maneira ou de outra, conscientemente ou não, nas democracias deliberativas, os cidadãos participam cada vez mais da interpretação legislativa, e de acordo com Falcão e Oliveira (2013), cada vez mais na interpretação constitucional de cada direito fundamental. De acordo com essa afirmação, no que tange aos cidadãos, Falcão e Oliveira (2013) pontuaram que: Eles não detêm poder coercitivo, mas detêm dois outros poderes: (a) de influenciar, provocar, informar e criticar a produção da interpretação pelo STF, isto é, o poder da influência difusa e (b) de aplicar sua própria interpretação constitucional em seu dia a dia até ser essa interpretação confirmada ou revertida pelo STF [...] A relação comunicativa do STF comos cidadãos é um processo contínuo. Para fins analíticos, pode iniciar, porexemplo, quando o STF, como sujeito-emissor, envia mensagens aoscidadãos que, como sujeitos-receptores, as captam. Em seguida, oscidadãos


reagem, enviam mensagens e passam a ser sujeitos emissores. OSTF capta tais mensagens como sujeito receptor. Não se trata, pois, de relação de mão única, nem estática. A relação comunicativa é um processo interativo e temporal, isto é, histórico, de múltiplas ações e reações, sequenciais ou concomitantes. (grifo nosso)

Nesse ponto, destaca-se a preocupação concernente a inobservância dos princípios, garantias e direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro, no momento em que essa "relação comunicativa" entre cidadão, enquanto sociedade, e Supremo Tribunal Federal, enquanto julgador, se efetiva: Aqui reside a preocupação no sentido de que o devido processo legal, a ampla defesa, a presunção de inocência e a imparcialidade do juiz possam ser maculados pela simples necessidade de legitimação da atividade jurisdicional, a fim de atender as expectativas da opinião pública [...] (SOUZA, 2010, p. 97)

Uma vez consolidada a opinião pública sobre as causas, os efeitos e a forma de combate à criminalidade, verifica-se uma forte influência da comunicação mediata em todos os níveis, seja no processo de decisão, seja nos fundamentos da decisão (SOUZA, 2010, p.120). Nestes moldes, notável que o Supremo Tribunal Federal ao formar novo entendimento acerca da possibilidade da execução provisória de sentença condenatória, confirmada após duplo grau de jurisdição, refletiu dentre todos os argumentos para decisão, aos anseios sociais. A intenção por trás do julgamento, nesse contexto, é louvável e precisa, pois, com essa decisão, o Supremo Tribunal Federal pretende dar um basta à impunidade generelizada dos barões do crime que, por meio de seus defensores, protelam – e, por vezes, inviabilizam –, a aplicação da pena, empurrando os processos por longos anos, de uma forma quase que ad infinitum (GARCEZ, 2016).

Sob esta percepção, colacionam-se trechos dos votos proferidos pelos Ministros Roberto Barroso, Luiz Fux, TeoriZavaski e Ministra Cármen Lúcia, na ocasião do julgamento do habeas corpus nº 126.292, utilizados para sustentar seus motivos à afastabilidade da presunção de inocência, nos casos de confirmação da sentença condenatória em segundo grau. [...] ao liberar a prisão somente depois de esgotadas as instâncias recursais reforçou a seletividade do sistema penal ao beneficiar réus mais ricos, quepodem pagar os melhores advogados, e aumentou o


descrédito dasociedade sobre o sistema penal. (BARROSO, 2016f) [Grifo nosso] [...] fazendo um paralelismo entre essa afirmação e a realidade prática, e a jurisdição em sendo uma função popular, ninguém consegue entender a seguinte equação: o cidadão tem a denúncia recebida, ele é condenado em primeiro grau, é condenado no juízo da apelação, condenado no STJ e ingressa presumidamente inocente no Supremo Tribunal Federal. Issoefetivamente não corresponde à expectativa da sociedade em relação aoque seja uma presunção de inocência. [...] apenas, traria a lume, por fim, uma observação que parece muito importante. É preciso observar que, quando uma interpretação constitucional não encontra mais ressonância nomeio social [...] no sentido de que a sociedade não aceita mais - e se háalgo inequívoco hoje, a sociedade não aceita essa presunção de inocênciade uma pessoa condenada que não para de recorrer. (FUX, 2016g) [Grifo nosso] [...] tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deveatender a valores caros não apenas aos acusados, mas também àsociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema dejustiça criminal. (ZAVASKI, 2016i) [Grifou nosso] A comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo. (LÚCIA, 2016v) [Grifo nosso]

Contata-se, assim, que ao decidirem que o princípio da presunção de inocência pode ser afastado após a condenação em segundo grau, ainda que não tenham se utilizado do termo expresso "resposta social" ou ainda o "clamor público", os ministros deixaram claro nas entrelinhas de seus argumentos justamente esta mensagem. Em decorrência disto, conforme observa Guariglia apud Souza (2010, p. 213): Não obstante as dificuldades empíricas de se analisar a influência no resultado dos julgamentos, o certo é que, algumas premissas podem ser tidas como verdadeiras, a saber: (a) que os meios de comunicação efetivamente influem de um modo significativo na formação de opinião; e (b) que esta influência, prescindível de seu maior ou menor grau de intensidade em cada receptor da mensagem [...]

Somado ao momento histórico de combate a corrupção e impunidade que o país atravessa, ao se manifestar nos termos destacados acima,


entende-se que a opinião pública, exerceu influência na decisão dos ministros pelo novo entendimento. Por fim, cabe a ressalva feita por Fernández apud Souza (2010, p. 217) quando diz: "Não se pode exigir que o juiz, permaneça em uma urna de cristal ou que seja tão insensível que não experimente reações mentais ante os acontecimentos do mundo exterior". Ou seja, um ministro enquanto julgador, não deixa de ser também cidadão, desse modo, passível de sustentar iguais anseios sociais.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por objeto a análise de uma possível influência dos meios de comunicação e da opinião pública na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus nº 126.292 face ao princípio constitucional da presunção de inocência, bem como demonstrar que a opinião pública, fomentada através do espetáculo penal midiático, influenciou na decisão do Supremo. Nesse

contexto,

verificou-se

no

decorrer

do

trabalho

que,

hodiernamente, a expansão do Direito Penal é marcada pela noção de que a pena pode resolver todos os problemas sociais no tocante a criminalidade, e quando se fala em pena como solução de problemas, em regra, fala-se de pena privativa de liberdade. Por outro lado, a mídia, através do espetáculo penal em torno de cada episódio criminal social, fortalece ainda mais a expansão do Direito Penal, e em decorrência disso, por intermédio de seu discurso punitivista, fomenta na população a necessidade de mais punição, pouco se importando se com os direitos e garantias dos réus. Dentro do Estado Democrático de Direito em que vivemos, ou, que deveríamos estar vivendo, conforme exaustivamente demonstrado no decorrer do trabalho, a prisão, salvo exceções, apenas seria possível após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em que pese todos os argumentos vencidos, decidiu que não fere o princípio da presunção de


inocência o fato de o réu iniciar o cumprimento da pena quando esta for confirmada em segundo grau. Ademais, conforme verificado através da análise dos fundamentos utilizados pelos ministros vencedores, em que pese não tenha obtido destaque, percebeu-se que, ainda que indiretamente, houve o reflexo da opinião pública na decisão, o que beira o absurdo, pois uma Corte Constitucional nunca deveria ―jogar para a torcida‖, mas sim se preocupar em garantir os princípios fundamentais estabelecidos na Carta Magna.

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5 NOVOS EFEITOS DA CONDUÇÃO COERCITIVA NO BRASIL: UMA ANÁLISE PÓS-SÉRGIO MORO

ISABELLA OLIVEIRA LIRA AÉRCIO DE SOUZA MELO FILHO

INTRODUÇÃO

Inquestionavelmente conhecido como um dos países mais corruptos do mundo na seara política, o Brasil ocupa hoje a 76ª posição no ranking entre 168 (cento e sessenta e oito) países analisados, com um índice de 38 pontos, acerca da percepção de corrupção do mundo, segundo estudo divulgado em 27 de janeiro de 2016 pela ONG – Organização Não Governamental Transparency International (TI). Em 2014, antes de atravessar a crise política pela qual se vivencia hoje, o Brasil ocupava o 69ª lugar, e tinha 43 pontos; ou seja, além de piorar em sua posição, caindo consideravelmente no ranking, teve uma queda na sua nota. Como justificativa para tal piora do país no cenário político internacional, a ONG elencou o escândalo na Petrobrás como um dos motivos relevantes. Assim, a corrupção do Brasil sai do âmbito estritamente nacional e passa a adentrar também na esfera internacional no que diz respeito aos andamentos processuais contra os políticos envolvidos nos esquemas do governo. Dessa forma, as atenções voltaram-se fortemente ao judiciário, fazendo com que os operadores do direito se posicionassem das mais diversas formas a respeito dos atos praticados no curso das investigações, como será visto posteriormente. Haja vista as decisões de deferimento da condução coercitiva pelo Juiz Sérgio Moro serem pautadas na negativa de cerceamento de liberdade, surgem, assim, grandes impasses quanto a esse instituto. Até o mês de março


de 2016, foram confirmadas pela Polícia Federal 117 mandados de condução coercitiva, estando aí também inserida a do ex-presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Em nota, o Ministério Público Federal alegou que tais medidas se fizeram necessárias para o curso das investigações. Embora o magistrado tenha suas decisões polemizadas, em razão também da grande complexidade dos processos, o que mais chamou atenção de alguns juristas brasileiros, como Luiz Flávio Gomes, Renato Brasileiro, Walter Maierovitch e o ministro do supremo, Marco Aurélio Mello, foi o deferimento de condução coercitiva do ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sem que supostamente preenchesse os requisitos legais para sua admissibilidade. Ocorre que, na seara da condução coercitiva são abarcadas várias divergências entre os doutrinadores brasileiros, mesmo antes das decisões proferidas no curso da ‗‘Operação Lava-Jato‘‘, questionando-se quanto às suas formas e requisitos legais, bem como sua constitucionalidade e o seu confronto com algumas garantias fundamentais. A presente pesquisa, portanto, visa analisar as transformações sofridas no âmbito do Processo Penal através das últimas decisões do juiz Sérgio Moro durante as fases das operações deflagradas com o fim de averiguar supostos Crimes Contra a Administração Pública, cometidos no Brasil. Neste viés, será analisada a proporcionalidade da medida que priva, ainda que momentaneamente, a liberdade do indivíduo a ser ouvido no curso do processo, ou em fase investigatória. Dessa forma, outros institutos processuais serão norteadores da presente pesquisa, como a abordagem das medidas cautelares existentes em nossa legislação e os procedimentos de intimação para os atos processuais. Assim, busca-se neste estudo contribuir com as atuais discussões acerca dos atos processuais praticados pelo juiz em questão, analisando cuidadosamente a condução coercitiva, desde seu dispositivo legal, dos conceitos doutrinários, até a sua aplicação na fase investigativa da Operação Lava-Jato, visando pontuar as possíveis mudanças de interpretação desse instituto no âmbito processual penal e suas eventuais consequências no ordenamento jurídico brasileiro.


Ademais, o instituto da condução coercitiva, por si só, já traz grandes questionamentos quanto à autoridade competente para deferir o uso desse instrumento processual; à necessidade de prévia intimação sem que esta fosse obedecida; ao uso de algemas; à possibilidade de colocação do indivíduo em cela; e, inclusive, questionamentos quanto à constitucionalidade do seu dispositivo legal. As questões que nortearão o desenvolvimento deste estudo estão centradas

nas

seguintes

problemáticas:

quais

requisitos

devem

ser

preenchidos para a admissibilidade da condução coercitiva? A partir desses requisitos, as medidas adotadas pelo juiz Sérgio Moro foram adequadas e necessárias? Quais serão as possíveis consequências no âmbito jurídico após as conduções coercitivas realizadas na Operação Lava-Jato? Dessa forma, tais questionamentos serão a base deste projeto de pesquisa, tendo sua importância justificada na medida em que procura debater e avançar os conhecimentos sobre as mudanças que o ordenamento jurídico brasileiro vem sofrendo, e ao mesmo tempo verificar os reflexos dessas transformações, contribuindo nas suas futuras interpretações e aplicações. Por fim, busca-se expor a questão da fragilização do Processo Penal frente às novas perspectivas do instituto da condução coercitiva no ordenamento jurídico brasileiro, a partir das transformações surgidas com a atuação do Juiz Sérgio Moro nas operações deflagradas pela Polícia Federal e o Ministério Público Federal, e, ainda, a visibilidade na esfera internacional, abordando os tratados pactuados em que o Brasil figura como signatário.

I. CONDUÇÃO COERCITIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A condução coercitiva no Brasil está prevista no Código de Processo Penal em quatro modalidades: a) condução coercitiva do ofendido, prevista no art. 201, § 1°; b) condução coercitiva da testemunha, com previsão no art. 218; c) condução coercitiva do acusado, previsto no art. 260; e, por fim, d) condução coercitiva do perito, exposto no art. 278. Na presente pesquisa, portanto, as análises serão feitas apenas nas conduções coercitivas de acusados (ou indiciados) e das testemunhas.


A finalidade desse instrumento processual, como conceituado pelo jurista Renato Brasileiro (2016), seria a participação do conduzido, na investigação, ou no ato processual, no qual sua presença seja considerada imprescindível. Assim, por meio do mandado, há uma privação da liberdade de locomoção do conduzido, pelo lapso temporal necessário, ao ser levado à presença da Polícia Judiciária ou do Ministério Público para prestar esclarecimentos. Como visto, a condução coercitiva do acusado (ou do indiciado) tem previsão no art. 260 do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte: Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que lhe for aplicável.

Assim, depreende-se do texto de lei que, para que haja a condução coercitiva, é necessário preencher os requisitos previstos no artigo acima mencionado, ou seja, deve-se ter, no processo em que se institui essa medida, uma recusa à intimação anterior, não sendo atendido o chamamento da autoridade. Um dos pontos mais pertinentes acerca da problemática em comento é a necessidade de prévia intimação desobedecida. Haja vista a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LXI, prever a impossibilidade de prisão, salvo transgressão ou crime militar, sem que haja flagrante ou por ordem escrita e fundamentada, o cerceamento da liberdade deve-se tornar exceção, e não a regra. Neste sentido, a utilização dessa medida mais extrema, só se mostraria adequada no caso em que houvesse desobediência à autoridade diante de uma intimação. PACCELI (2012) traz o seguinte conceito: A intimação é, portanto, o meio procedimental que noticia a existência de ato processual que possibilita o exercício das faculdades e ônus processuais reservados às partes, bem como viabiliza o efetivo cumprimento do dever legal de comparecimento e participação de terceiros no processo penal. Neste último caso, por exemplo, estão incluídas as testemunhas, o ofendido, e os peritos e intérpretes que devem, por força de lei e por dever de ofício, exercer determinada função na ação penal. (PACCELI, 2012, p. 616).

O jurista Walter Maierovicth (2016) também se posicionou a respeito:


A lei, ela estabelece atos de comunicação processual, e um dos atos de comunicação é a intimação. E como se dá isso? Convocando a pessoa. E a lei vai mais longe, dizendo, que, depois da intimação, e no caso de resistência, de não atendimento ao chamado, aí é que se dá a o ato de coerção.

Assim, fica evidenciado o dever das partes intimadas no processo de prestar os seus esclarecimentos, podendo sofrer consequências legais em caso de desobediência. Nos casos das medidas deferidas no curso da investigação da Operação Lava-Jato, muito se questiona o fato de não terem sido realizadas intimações pretéritas que justificassem o uso da medida em questão. Ainda, além de não atender a esta intimação anterior à condução, deve haver justa fundamentação, pela autoridade competente, a fim de que seja preenchido o requisito de indispensabilidade da medida, justificando que o ato não haveria como ser realizado em qualquer outra hipótese senão pela presença da pessoa intimida. Ocorre que, há embate jurídico acerca da autoridade competente para expedir o mandado da condução coercitiva. O STF, através de julgamento do HC 10.644/SP, (rel. Min. Ricardo Lewandowski), reconheceu a regularidade da ação policial para conduzir pessoas a fim de prestar esclarecimentos necessários à elucidação de um delito. Não é o que entende o jurista Renato Brasileiro (2016), divergindo da posição do STF: Com o devido respeito, não é a melhor orientação em relação ao assunto. (...). Como disse, (...) a medida de condução coercitiva importa em restrição à liberdade de locomoção, então é evidente que, neste caso, somente a autoridade judiciária poderia expedir semelhante mandado.

Nesse sentido, o doutrinador refere-se ao art. 5º, inciso LXI, da Constituição Federal de 1988, que dispõe que ‗‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. ‘‘ Assim, deve-se entender que, embora não esteja explícito no Código de Processo Penal, a Carta Magna é clara no que diz respeito à competência

exclusiva

do

magistrado,

através

fundamentada, para privar alguém de sua liberdade.

de

ordem

escrita

e


É uma afronta à Constituição Federal, com todo o devido respeito ao STF, admitir a ação policial no caso da condução coercitiva. Isto porque, aquele que desobedecesse a intimação para comparecimento a prestar esclarecimentos, seria privado de sua liberdade, já que seria conduzido através de coerção, até que se fizesse por satisfeita a autoridade no depoimento requerido. Ainda, há também divergência no que diz respeito à admissibilidade da condução coercitiva no caso do acusado. Como se sabe, tal instituto tem previsão no Código de Processo Penal, de 1942, e a nossa Constituição Federal, de 1988, tem supremacia na pirâmide hierárquica quanto aos conflitos de normas e princípios existentes em nosso ordenamento jurídico. Dessa forma, depara-se com a questão da recepcionalidade da condução coercitiva pela Carta Magna. No tocante a imposição das medidas impostas às testemunhas, não há divergências relevantes de posicionamentos doutrinários, o que não ocorre com a condução coercitiva do acusado (ou investigado), já que há confrontos com princípios e garantias constitucionais e internacionais. O princípio „‟nemo tenetur se detegere‟‟, ou seja, de que ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo, garante o direito ao silêncio, previsto no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal de 1988, em que ‗‘o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado. ‘‘ Ao analisar tal dispositivo, percebe-se que a condução coercitiva estaria divergindo do princípio constitucional no que se refere ao acusado (ou investigado). Isto porque, se há uma garantia de direito ao silêncio, não faz sentido algum conduzir forçadamente o comparecimento da parte às autoridades se esta não tem sequer a obrigação de falar. Ainda, há os que defendem a admissibilidade da condução coercitiva quando o comparecimento tiver a finalidade de qualificação do réu, já que o direito ao silêncio não adentra nesse aspecto, embora, não seja este um motivo plausível para justificar a medida. É o que entendem os Professores Alexandre Morais e Rômulo de Andrade Moreira (2016):


Nestes termos, qual o sentido da condução coercitiva? Dir-se-á: colher a qualificação do conduzido. Ora, nada mais falacioso. Primeiro que, havendo processo, já há denúncia (ou queixa) e, obviamente, o réu está qualificado suficientemente. Se não há, portanto, se ainda em fase investigatória, deve o Estado cuidar de qualificá-los pelos (vários) meios disponíveis (como a Justiça Eleitoral, por exemplo). É um ônus a cargo do Estado que não pode ser imposto ao réu que tem, repita-se, o direito de não autoincriminação e o direito ao silêncio. No Processo Penal o ônus é sempre do Estado/acusador/investigador, inclusive o de provar. Afinal de contas, de quem se presume a inocência nada se pode exigir.

Assim, embora seja utilizada, principalmente após a Operação LavaJato, a condução coercitiva do acusado (ou investigado), ainda causa discussão no âmbito jurídico quanto à sua constitucionalidade. Por fim, em continuidade às modalidades do instituo em comento, há, ainda, a condução coercitiva de testemunha, prevista no art. 218 do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte: Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

Vê-se, portanto, que na condução coercitiva da testemunha, bem como na situação do acusado, há necessidade em haver prévia intimação não atendida, anterior à requisição, para justificar a medida imposta. O que difere, portanto, é em relação à recepcionalidade pela Carta Magna, pois não há qualquer

confronto

com

princípios

constitucionais

na

condução

de

testemunhas, sendo pacificamente admitida no âmbito no processo penal.

II. CONDUÇÃO COERCITIVA NO CENÁRIO INTERNACIONAL: CASO DO EX-PRESIDENTE LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Como se sabe, o Brasil pactuou com alguns tratados internacionais, dentre eles, a Convenção Americana de Direitos Humanos - (CADH), conhecido também como Pacto se São José da Costa Rica, promulgado em 06 de novembro de 1992. Ao tornar-se signatário, o país se compromete internacionalmente a seguir os preceitos impostos em tal convenção, trazendo mais segurança ao ordenamento jurídico brasileiro. O art. 8º desta convenção preceitua o seguinte:


Artigo 8. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.

Assim, sob esse fundamento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também alvo das conduções coercitivas da Operação Lava-Jato, protocolou, através dos seus advogados, uma denúncia à ONU – Organização das Nações Unidas - contra o então Juiz competente, Sérgio Moro, da 13ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de Curitiba – Paraná, alegando abuso de autoridade pelo magistrado e pelos procuradores federais competentes. Após tal fato, a AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros – publicou uma nota de repúdio em 28 de julho de 2016, alegando que:

Para a entidade, a Corte Internacional não deve ser utilizada para constranger o andamento de quaisquer investigações em curso no País e, principalmente aquelas que têm como prioridade o combate à corrupção. A AMB vê com perplexidade as diversas tentativas de paralisar o trabalho da justiça brasileira.

Segundo carta oficial publicada pelo UOL Notícias (2016), o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos – ACNUDH – divulgou, em 25 de outubro de 2016, que a comunicação feita pelo ex-presidente foi registrada, determinando ao Governo brasileiro o prazo de dois meses para apresentar observações sobre o caso. Ainda segundo os noticiários, O Globo (2016), o registro é um ato formal à solicitação apresentada pelo ex-presidente, o que não significa que será recebida a denúncia, chamada na esfera internacional como ‗‘comunicação‘‘. Para isto, a comissão ainda fará uma análise para admissibilidade e consequente instauração do processo. Afora a questão política, importante analisar o caso concreto do expresidente, pois, a partir de sua denúncia à ONU haverá uma análise no âmbito internacional acerca da questão, o que implicará em efeitos na esfera processual penal em relação a todos os processos que deferiram as conduções coercitivas.


Assim, acerca do caso concreto, posicionou-se o jurista Gustavo Badaró (2016): Passo à questão em si. Em tese, em dois contextos se poderia ‗decretar‘ uma condução coercitiva: (i) no caso de testemunha que regularmente intimada, deixa de comparecer a ato processual; (ii) como uma medida cautelar atípica, alternativa à prisão. Desde já, antecipo a minha conclusão, em relação à condução coercitiva do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se foi decretada com a primeira natureza, o ato foi ilegal. Se foi decretada com a segunda finalidade. Mais que ilegal, o ato fere a Convenção Americana de Direitos Humanos, que não admite medidas cautelares restritivas da liberdade, não previstas em lei (CADH, art. 7.2).

Nesse sentido, o jurista invoca mais um dispositivo do Direito Internacional, que diz respeito às medidas cautelares restritivas de liberdade, que serão abordadas posteriormente. Cumpre destacar, entretanto, a respeito do posicionamento de Badaró, a dimensão que está tomando o uso da condução coercitiva no judiciário brasileiro. Deixa de ser um problema nacional e passa a abarcar o cenário internacional, já que há argumentos que supõe a violação de tratados internacionais em que o Brasil figura como signatário. Nessa esteira, embora não se tenha a resposta do ACNUDH – Alto Comissionário dos Direitos Humanos – o modo como vem sendo empregada à condução coercitiva

nos processos judiciais brasileiros,

deve

ser

reconsiderada pelas autoridades judiciárias. Há, então, como ter uma suposição de como este órgão deveria se posicionar, a partir das previsões legais que compõem os tratados, acerca do caso concreto que envolve o ex-chefe de Estado. Como visto e pontuado por Badaró (2016), o ato deferido contra o expresidente da República foi arbitrário e ilegal, pois não observou os requisitos para a sua admissibilidade, cerceando o direito a liberdade, mesmo que de forma temporária, sem justa causa. Assim, a ONU deveria reconhecer o abuso de poder pelo Juiz Sério Moro e a inércia do judiciário frente a esta ilegalidade, impor medida de sanção administrativa contra o magistrado, anular o procedimento realizado, bem como punir o judiciário brasileiro pela inércia, já que em 04 de março de 2016 a ministra Rosa Weber do STF negou o pedido feito pelo ex-presidente para


interromper as investigações contra ele, sob o fundamento de que ‗‘não houve ilegalidade irrefutável na condução das apurações‘‘. Ainda, como punição, o órgão deveria impor a modificação do sistema jurídico interno do Brasil, no que tange a inconstitucionalidade da norma prevista no Código de Processo Penal, no art. 260, que versa sobre a condução coercitiva do acusado, já que vai de encontro ao que prevê o art. 8º, 2, alínea g, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que dispõe sobre o direito ao silêncio, violando essa garantia ao acusado ou investigado. Ademais, a finalidade deve ser de constatar o abuso de poder e arbitrariedade, evitando, assim, que se repita. Apenas dessa forma, impede-se o atropelo ao devido processo legal, que causa insegurança jurídica e acaba por gerar nulidades processuais e, consequentemente, impunidade. Deve-se entender que, constatadas ilegalidades no processo, acaba-se por transformar em ‗‘vítimas‘‘ aqueles que deveriam, na verdade, estar passíveis das punições na medida do que lhes fosse cabível.

III. MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO PENAL E USO DA FORÇA

Disciplinadas no Código de Processo Penal, as medidas cautelares ganharam uma nova roupagem a partir da Lei n° 12.403/2011. Assim, alguns juristas

acabaram

por

fazer

abordagens

da

condução

coercitiva

correlacionando com as medidas cautelares. Importante explicitar o que diz NUCCI (2014) a respeito: [...] por se tratar de modalidade de prisão (quem é conduzido coercitivamente pode ser algemado e colocado em cela até que seja ouvido pela autoridade competente), defendemos que somente o juiz pode decretá-la. [...]. Demonstra-se, pois, que as Comissões Parlamentares de Inquérito, cujo poder investigatório, segundo a Constituição Federal (art. 58, § 3º), é próprio das autoridades judiciais, não devem ter outro procedimento senão o de requerer ao magistrado a intimação e a condução coercitiva da testemunha para prestar depoimento. Logo, nenhuma outra autoridade pode prender a testemunha para conduzi-la à sua presença sem expressa, escrita e fundamentada ordem de autoridade judiciária competente. (NUCCI, 2014, p.520).

Assim, para NUCCI (2014), a condução coercitiva está classificada na modalidade de prisão cautelar no âmbito do Processo Penal. Apenas as


características de coercibilidade do ato e a possibilidade de utilização de algemas e colocação em cela, para o doutrinador, mostra que o instituo implica no cerceamento de liberdade do indivíduo, o que o faz classificar, portanto, como um tipo de prisão cautelar. Dessa forma, os juristas brasileiros, como Luiz Flávio Gomes (2016) e Renato Brasileiro (2016), depois de deflagrada a operação policial que envolve grandes nomes na política brasileira, vêm tendo maior preocupação em definir e analisar a aplicação das conduções coercitivas da forma em que estão sendo realizadas no curso das investigações. Renato Brasileiro (2016) define a natureza jurídica da condução coercitiva: ‗‘conquanto não listado no rol das medidas cautelares diversas da prisão, dos arts. 319 e 320 do Código de Processo Penal, a condução coercitiva do investigado (ou acusado) também funciona como medida cautelar de coação pessoal. ‘‘ Ainda, outro ponto bastante relevante na temática abordada é acerca da razoabilidade da medida da condução coercitiva. Luiz Flávio Gomes (2016) aponta que ‗‘o juiz não pode usar seu poder geral de cautela fora da razoabilidade e da lei. Medidas restritivas de direitos dependem de lei. E quando a lei disciplina a matéria, não se pode fugir dos seus termos‘‘. Assim, observa-se que a condução coercitiva, como o próprio nome sugere,

implica

na

privação

de

liberdade

do

indivíduo,

ainda

que

momentaneamente, apresentando-o a autoridade competente forçadamente a fim de que possa prestar seus depoimentos. Neste viés, conforme preveem os dispositivos já mencionados acerca da condução coercitiva, a expressão ‗‘forçadamente‘‘, antigamente denominada como ‗‘debaixo de vara‘‘, faz menção ao uso da força pelas autoridades, a fim de que o mandado seja cumprido. Os limites para o uso dessa força esbarram na súmula vinculante n° 11 do STF, que diz: Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.


Dessa forma, nos defrontamos com dois aspectos bastante discutidos acerca do instituto da condução coercitiva: a possibilidade de sua invocação em fase de inquérito e, novamente, a condução coercitiva do investigado ou acusado. No primeiro, a divergência se dá entre o dispositivo previsto na Carta Magna, art. 144, parágrafo 4º, em que ‗‘a polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria. ‘‘ E o que prevê o art. 5º, inciso LXI da Constituição Federal, em que ‗‘ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definido em lei. ‘‘ Nessa esteira, segundo o pensamento de NUCCI (2014) aqui já exposto, por tratar-se de uma espécie de prisão, jamais poderia ser imposta pela autoridade policial, apenas sendo possível a partir de decisão do juiz competente. No caso das fundamentações do juiz Sergio Moro, como será visto no tópico seguinte, a condução coercitiva não seria tratada como uma espécie de prisão, o que não implicaria, portanto, na impossibilidade do uso desse instituto pela polícia judiciária. Em sequência, no segundo ponto, acerca da possibilidade de uso da força contra o acusado ou investigado, esbarramos novamente nos princípios constitucionais aqui já mencionados, como o direito de não produzir provas contra si mesmo. Seria incoerente, portanto, a utilização da condução coercitiva, mediante uso da força, para conduzir um acusado ou investigado para prestar esclarecimentos, já que este poderá reservar-se ao direito de silencio. Não se conduz forçadamente quem não tem obrigação de produzir provas e a quem se presume a inocência, tanto pela Constituição Federal, quanto pelos tratados internacionais vigentes. Saindo da esfera do acusado ou investigado, temos a condução coercitiva da testemunha. Embora seja vista como espécie de prisão ou não, a condução coercitiva, a partir de interpretação do texto de lei, seria uma espécie de sanção por desobediência.


Isto porque, como prevê a lei e já abordado aqui, para que haja condução coercitiva, necessita-se de prévia intimação no processo em que a testemunha tenha recusado a comparecer e prestar esclarecimentos, daí sim haveria coerência em fazer uso da força em, havendo recusa no comparecimento à autoridade, conduzir ‗‘debaixo de vara‘‘ essa pessoa a fim de que preste seus esclarecimentos. Assim, implicaria, portanto, na incidência em crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal, em que ‗‘desobedecer a ordem legal de funcionário público‘‘ poderia implicar, inclusive, em pena de detenção de 15 (quinze) dias a seis meses e multa. Nessa esteira, a partir dos posicionamentos aqui demonstrados, chegase à conclusão de que, embora tenha ou não a natureza jurídica de uma medida cautelar diversa da prisão, ou ainda, a natureza jurídica de prisão cautelar, como abordada por NUCCI (2014) a condução coercitiva, mediante o uso da força, só parece ser coerente aos casos em que a testemunha se recusa a comparecer e prestar esclarecimentos à autoridade competente. Dessa forma, seria ilógico, portanto, conduzir ‗‘debaixo de vara‘‘ o investigado ou acusado, já que este está protegido, tanto pelas normas nacionais, tanto pelos tratados internacionais, a reservar-se ao direito de silêncio, não sendo obrigado a produzir provas contra si mesmo, como já exposto e analisado em tópico anterior.

IV. CONDUÇÃO COERCITIVA NA OPERAÇÃO LAVA-JATO

Neste tópico, serão analisados casos concretos de atuação do Juiz Sergio Moro, expondo suas fundamentações nos casos em que deferiu a condução coercitiva pleiteada pelo Ministério Público Federal. Ainda, será feita uma análise acerca do uso deste instituto processual penal no curso da Operação Lava-Jato. IV.I FUNDAMENTOS DO JUIZ SÉRGIO MORO

A Operação Lava-Jato, segundo apontado pelo Ministério Público Federal, está dividida em quatro grandes operações, quais sejam: Lava Jato, propriamente dita, Dolce Vita, Bidone e Casa Blanca. Embora estejam divididas


nessas quatro operações, independente do caso, todas são popularmente conhecidas e tratadas pela imprensa como Operação Lava-Jato. Tal operação envolve os maiores nomes na política e da economia brasileira, e aqui serão expostas as decisões reais do Juiz Sergio Moro acerca das conduções coercitivas realizadas nesta operação, dando ênfase aos fundamentos utilizados pelo magistrado. Caso Gilson Mar Ferreira: Pleiteou a autoridade policial autorização para a condução coercitiva de Gilson Mar Ferreira para a tomada de seu depoimento (fl. 2 da representação do evento 18). Medida da espécie não implica cerceamento real da liberdade de locomoção. (...) Expeça-se quanto a ele mandado de condução coercitiva, consignando o número deste feito, a qualificação do investigado e o respectivo endereço extraído da representação. Consigne-se no mandado que não deve ser utilizada algema, salvo se, na ocasião, evidenciado risco concreto e imediato à autoridade policial. (grifo nosso)

Operação Casa Blanca: Pleiteou o MPF autorização para a condução coercitiva de alguns investigados para a tomada de seu depoimento. Medida da espécie não implica cerceamento real da liberdade de locomoção, visto que dirigida apenas a tomada de depoimento. Mesmo com a condução coercitiva, mantém-se o direito ao silêncio dos investigados. (...) Consigne-se no mandado que não deve ser utilizada algema, salvo se, na ocasião, evidenciado risco concreto e imediato à autoridade policial. Os mandados de condução coercitiva deverão ser cumpridos junto com os de busca e apreensão. (grifo nosso)

Ainda: Pleiteou o MPF autorização para a condução coercitiva de alguns investigados ou possíveis testemunhas para a tomada de seu depoimento. Medida da espécie não implica cerceamento real da liberdade de locomoção, visto que dirigida apenas a tomada de depoimento. Mesmo com a condução coercitiva, mantém-se o direito ao silêncio dos investigados. Agrego ao rol do MPF aqueles investigados cuja prisão temporária foi indeferida. Observo que, no rol, há não só investigados, mas possíveis meras testemunhas. São eles: Daniela Benta de Souza Fransozi; Jairo Romeu Ferracioli Júnior; Marlon Pereira dos Santos; Felipe Kowari; Heloísa Espíndola; Reginaldo de Freitas Salgado; Vagner Pereira. Expeça-se quanto a eles mandado de condução coercitiva, consignando o número deste feito, a qualificação do investigado/testemunha o respectivo endereço extraído da representação. Consigne-se no mandado que não deve ser utilizada algema, salvo se, na ocasião, evidenciado risco concreto e imediato à autoridade policial. (grifo nosso)


Por fim, decisão no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em que foi realizada a sua condução coercitiva na data de 04 de março de 2016: Autorizei buscas e apreensões pela decisão de 24/02 (evento 4) no processo 500661729.2016.4.04.7000 a pedido do MPF. As buscas estão associadas ao ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Pleiteia o MPF em separado a condução coercitiva do exPresidente e de sua esposa para prestarem depoimento à Polícia Federal na data das buscas. Argumenta que a medida é necessária pois, em depoimentos anteriormente designados para sua oitiva, teria havido tumulto provocado por militantes políticos, como o ocorrido no dia 17/02/2016, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. No confronto entre polícia e manifestantes contrários ou favoráreis ao ex-Presidente, "pessoas ficaram feridas". Receia que tumultos equivalentes se repitam, com o que a oitiva deles, na mesma data das buscas e apreensões, reduziriam, pela surpresa, as chances de ocorrência de eventos equivalentes. Decido. A condução coercitiva para tomada de depoimento é medida de cunho investigatório. Medida da espécie não implica cerceamento real da liberdade de locomoção, visto que dirigida apenas a tomada de depoimento. Mesmo ainda com a condução coercitiva, mantém-se o direito ao silêncio dos investigados. Medida da espécie ainda encontra apoio na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (...). Embora o ex-Presidente mereça todo o respeito, em virtude da dignidade do cargo que ocupou (sem prejuízo do respeito devido a qualquer pessoa), isso não significa que está imune à investigação, já que presentes justificativas para tanto, conforme exposto pelo MPF e conforme longamente fundamentado na decisão de 24/02/2016 (evento 4) no processo 500661729.2016.4.04.7000. Por outro lado, nesse caso, apontado motivo circusntancial relevante para justificar a diligência, qual seja evitar possíveis tumultos como o havido recentemente perante o Fórum Criminal de Barra Funda, em São Paulo, quando houve confronto entre manifestantes políticos favoráveis e desfavoráreis ao exPresidente e que reclamou a intervenção da Polícia Militar. Colhendo o depoimento mediante condução coercitiva, são menores as probabilidades de que algo semelhante ocorra, já que essas manifestações não aparentam ser totalmente espontâneas. Com a medida, sem embargo do direito de manifestação política, previnemse incidentes que podem envolver lesão a inocentes. Por outro lado, cumpre esclarecer que a tomada do depoimento, mesmo sob condução coercitiva, não envolve qualquer juízo de antecipação de responsabilidade criminal, nem tem por objetivo cercear direitos do ex-Presidente ou colocá-lo em situação vexatória. Prestar depoimento em investigação policial é algo a que qualquer pessoa, como investigado ou testemunha, está sujeita e serve unicamente para esclarecer fatos ou propiciar oportunidade para esclarecimento de fatos. Com essas observações, usualmente desnecessárias, mas aqui relevantes, defiro parcialmente o requerido pelo MPF para a expedição de mandado de condução coercitiva para colheita do depoimento do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Evidentemente, a utilização do mandado só será necessária caso o ex-Presidente convidado a acompanhar a autoridade policial para prestar depoimento na data das buscas e


apreensões, não aceite o convite. Expeça-se quanto a ele mandado de condução coercitiva, consignando o número deste feito, a qualificação e o respectivo endereço extraído da representação. Consignese no mandado que NÃO deve ser utilizada algema e NÃO deve, em hipótese alguma, ser filmado ou, tanto quanto possível, permitida a filmagem do deslocamento do ex-Presidente para a colheita do depoimento. Na colheita do depoimento, deve ser, desnecessário dizer, garantido o direito ao silêncio e a presença do respectivo defensor. O mandado SÓ DEVE SER UTILIZADO E CUMPRIDO, caso o ex-Presidente, convidado a acompanhar a autoridade policial para depoimento, recuse-se a fazê-lo. Em relação ao pedido de condução coercitiva de Marisa Letícia Lula da Silva, indefiro. Em relação a ela, viável o posterior agendamento do depoimento com a autoridade policial, sem que isto implique maior risco à ordem pública ou a terceiros.

Dessa forma, vê-se que as decisões do Juiz Sérgio Moro acerca da condução coercitiva são pautadas na negativa de cerceamento e liberdade pela medida. Já no caso do ex-presidente, como se pôde analisar, a decisão é pautada na segurança e preservação da integridade física de populares e do próprio conduzido. Trata-se, portanto, de uma fundamentação evidentemente contraditória. O direito à liberdade é uma das principais garantias fundamentais, prevista no caput art. 5º da Constituição Federal de 1988 como um direito inviolável. Assim, uma medida de cerceamento de liberdade pautada em proteger ou garantir a segurança do sujeito, resta-se extremamente excessiva, já que cerceia o direito de ir e vir sem embasamento legal. Ainda, vê-se que o magistrado deixa claro que, só poderá ser realizada a condução coercitiva no caso de recusa em dirigir-se à autoridade para prestar esclarecimentos. Mais, o juiz enfatiza, nos primeiros casos, o que dispõe a súmula vinculante nº 11 do STF, limitando o uso de algemas no momento da condução apenas no caso de resistência, enquanto impossibilita taxativamente o uso destas no caso de Lula. Em vídeo, ao conceder entrevista, Sérgio Moro disse que a condução coercitiva seria uma ‗‘alternativa menos gravosa a uma chamada prisão temporária, que é uma prisão decretada por alguns dias, apenas, e, não raramente, empregada para se preservar diligências de busca e apreensão‘‘. Ainda, alegou que não vê esse instituo processual penal como ‗‘medida jurídica tão drástica como muitas vezes tem sido colocado‘‘.


Ocorre que, como visto, a prévia intimação figura como uma premissa para admissibilidade do instituto da condução coercitiva, o que se daria pela negativa de comparecimento a mando da autoridade. Uma decisão que aborda, ao mesmo tempo, intimação e condução, não parece proporcional, justa ou necessária. V. POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS PÓS-SÉRGIO MORO

Vê-se, a partir das decisões do magistrado que, em uma mesma decisão, ele solicita a intimação e defere a consequente condução, que, segundo ele, só deverá ser realizada se houver negativa da parte a dirigir-se à autoridade para realizar o depoimento. Este fundamento, com todo o devido respeito ao Juiz, vai muito além de incoerente, ele é ilegal. Não faz sentindo, em uma mesma decisão, solicitar intimação e condução coercitiva. Isto porque, quando há cumprimento do mandado, já se chega às portas da pessoa a ser conduzida com viaturas e mais viaturas da Polícia Federal, sendo inegável que não há a intimação prévia, requisito indispensável para admissibilidade da medida, respeitando-se o devido processo legal. O jurista Luiz Flávio Gomes (2016) se posicionou da seguinte maneira: É muito simples entender o tema (não precisa ser jurista). O art. 260 do CPP diz o seguinte: ―Se o acusado não atender a intimação para o interrogatório (…) a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença‖. Repita-se: “Se o acusado não atender a intimação”. A condução coercitiva só pode ocorrer nas situações expressamente descritas no art. 260.O problema: não houve intimação prévia (que é o núcleo essencial da condução coercitiva). Sem intimação prévia desatendida, a condução é fragrantemente ilegal (disse o ministro do STF, Marco Aurélio). Todos queremos que o Lula preste contas de tudo de que é acusado. Mas em sã consciência, se a lei exige intimação prévia para se decretar a condução coercitiva, não tendo havido essa intimação, não pode acontecer a condução. (...) A lei não foi atendida. O fundamento apresentado por Moro (condução para evitar tumulto) não está na lei. (...). Recorde-se: a inobservância das regras jurídicas anula tudo que foi feito. (...) A oitiva feita com violação do ordenamento jurídico significa prova obtida de forma ilícita. (...) A equação é simples: o fundamento apresentado por Moro não está na lei. Mais: o juiz não pode usar seu poder geral de cautela fora da razoabilidade e da lei. Medidas restritivas de direitos dependem de lei. E quando a lei disciplina a matéria, não se pode fugir dos seus termos. O velho liberalismo (político) do direito inglês (Locke, Hume, Stuart Mill etc.), que transmigrou para os EUA e que apareceu já na primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França,


1791), não pode ser jogado no lixo. (...). É tolo quem festeja uma injustiça ou uma ilegalidade contra os outros quando existe o sério risco de que o tambor da próxima comemoração seja feito da sua própria pele.

Ainda, no caso do ex-presidente da República, Luiza Inácio Lula da Silva, o magistrado usa como argumento a proteção da integridade física do conduzido, bem como dos populares, a fim de que não resultasse em pessoas feridas com supostas manifestações que pudessem vir a ocorrer. Além de ilegal, pois não existe fundamentação prevista em lei para o argumento do magistrado, a conduta foi totalmente arbitrária, já que inexistia prévia intimação no mesmo processo em que o conduzido não tenha atendido ao chamamento da autoridade para prestar esclarecimentos. E, ainda que fosse legal, o fundamento seria inválido, já que, ao chegar com viaturas da polícia na residência do ex-presidente, e levá-lo para prestar esclarecimentos na sede policial dentro de um aeroporto já causaria, por si só, grande tumulto. Dessa forma, tem-se como análise aos efeitos no processo penal, a partir das decisões do juiz Sergio moro na Operação Lava-Jato, os operadores do direito sentem-se desamparados para produzir qualquer defesa. Como as conduções coercitivas decretadas pelo magistrado vêm sendo admitidas, devido à inércia dos órgãos superiores, tal medida processual, seja ou não no âmbito da Operação Lava-Jato, poderá ser feita nos seguintes moldes: sem previa intimação, com fundamentação não prevista em lei, desconsiderando previsão normativa e inobservando o devido processo legal. No caso o Conselho Nacional de Justiça acolher algum pedido de abertura de processo disciplinar contra o magistrado, este poderá sujeitar-se às sanções previstas na Resolução n° 135 de 13 de julho de 2011 do CNJ, pelas arbitrariedades cometidas nos processos aqui abordados, a partir de uma apuração das condutas eventualmente denunciadas. As penalidades estão previstas no art. 3º da supramencionada resolução,

quais

sejam:

advertência,

censura,

remoção

compulsória,

disponibilidade, aposentadoria compulsória e, ainda, demissão do cargo de magistrado.

CONCLUSÃO


Como exposto na presente pesquisa, viu-se que há várias espécies de condução coercitiva. Adentrou-se, portanto, ao longo do trabalho, na condução coercitiva dos acusados ou investigados, e na das testemunhas. Primeiramente, no tocante à condução coercitiva do investigado ou acusado, pôde-se notar que há divergências quanto à sua recepcionalidade pela Constituição Federal de 1988, já que o Código de Processo Penal é de 1941, em razão dos princípios constitucionais que norteiam os procedimentos legais. Isto porque, como já dito, soa incoerente conduzir sob uso da força alguém que, na condição de acusado ou investigado, não tem a obrigação de produzir provas contra si mesmo, estando resguardado ao direito de permanecer em silêncio. Ainda, viu-se que há divergências também acerca da condução coercitiva do investigado, pois, além da premissa do princípio do direito de não produzir provas contra si, previsto não só não Carta Magna, mas também em tratados internacionais em que foi analisado anteriormente, a competência para decidir acerca do deferimento desse instituto deveria ser exclusivamente do magistrado, já que há sim, ainda que temporariamente, o cerceamento de liberdade do indivíduo, devendo ser a medida justificada pela autoridade judicial. Em segundo plano, passou-se a analisar então, a condução coercitiva de testemunhas. Vê-se que é indubitável o que prevê a lei, ela está clara e expressa ao mencionar que há necessidade de prévia intimação, leia-se, no mesmo processo, sendo esta não atendida, para que, só então, possa ser deferida uma condução nesse sentido, a fim de que seja prestado esclarecimento as autoridades. Os tribunais superiores não abriram espaço para que a matéria fosse discutida de maneira justa, restando agora, como já foi visto em tópico anterior, aguardar as autoridades internacionais para verificar a violação não só à Constituição Federal de 1988, bem como nos tratados internacionais pactuados pelo Brasil. A análise nesta pesquisa, feita com todo o devido respeito à figura do magistrado, mostra que não se pode sobrepor o objetivo de acabar com a corrupção, ou com qualquer outro crime, deteriorando aos direitos e garantias


já conquistados. Eis porque também há uma análise das eventuais penalidades passíveis de ser sofrida pelo Juiz Sérgio Moro, a fim de que a comunidade jurídica se porte de tal forma a priorizar o que prevê a Constituição Federal e demais dispositivos legais, respeitando o devido processo legal.

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6 (DES)CRIMINALIZAÇÃO DA INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO ÂMBITO INTERNACIONAL: DESAFIOS E IMPASSES DE UMA ALDEIA GLOBAL

LOUISE AMORIM BEJA MILENA BARBOSA MELO

INTRODUÇÃO

Existem diversos tipos de crenças há muito tempo. Desde que o homem surgiu no mundo, passou-se a acreditar em algo místico, cultuando deuses e/ou praticando rituais. Assim denominam-se tais crenças como religião, considerada uma fé ou devoção à algo sagrado, sendo também uma prática rotineira de doutrinas religiosas, princípios, onde se baseiam geralmente nos livros sagrados. Desde que as religiões e cultos passaram a existir de fato, já ocorriam as famosas perseguições religiosas. Um exemplo clássico disto é quando Jesus foi crucificado e seus fiéis perseguidos por milhares de séculos durante o Cristianismo, ou no caso dos judeus que vivenciaram o Holocausto, onde temse até hoje grandes marcas sofridas pela perseguição. Nos dias atuais, assumir-se uma religião ao mundo tem sido um grande desafio, pois com o passar dos anos, o número de fanáticos religiosos vem crescendo, entranhado em milhões de pessoas, tendo assim aquelas que são conduzidas a realizarem umas contra as outras, verdadeiras guerras em nomes, supostamente, de suas religiões ou deuses. É gradativo o aumento de violência e perseguição religiosa em diversos lugares do mundo, mesmo nos países laicos, onde a população é livre para escolher no que acredita. A intolerância religiosa concretiza-se na forma de agressão, violência ou atitudes ofensivas em diferentes crenças e religiões, onde nos casos mais extremos há uma perseguição religiosa. Sendo considerado um crime de ódio,


ou até mesmo de terrorismo, que não se medem esforços para obter o êxito, chegando a matar milhares de pessoas, ofendendo princípios basilares como a liberdade e a dignidade da pessoa humana. Sabe-se o quanto é importante reconhecer e respeitar as crenças e diferenças religiosas entre as pessoas de diferentes culturas e nações. A declaração universal dos direitos humanos assegura a todas as pessoas sem distinção o direito de culto e liberdade de expressão. O pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos também defende a liberdade de pensamento, de consciência e de religião, onde engloba direitos basilares que são ofendidos diariamente pelos abusos da intolerância religiosa. A ONU tenta combater essa problemática de forma diplomática e pacífica, trazendo à tona a ―Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença‖, esta proclamada há cerca de 29 anos, não trouxe até então nenhum benefício eficaz de grande escala para as vítimas. A sociedade internacional apesar dos crimes cada vez mais bárbaros recorrentes, se fecha para de fato combater esta prática, que vem se tornando cada dia mais comum. Embora haja uma convergência, na literatura consultada, aos problemas inerentes à intolerância religiosa, em que medidas tem sido disciplinado e gerenciado pelos organismos internacionais, particularmente a ONU, aos problemas relacionados à intolerância religiosa e quais seriam as medidas punitivas adotadas pela sociedade internacional para efetivo combate deste crime? Portanto, nesta pesquisa será abordada a (des)criminalização da intolerância religiosa, pois se faz necessário um aprofundamento dessa temática e dos futuros casos a serem abordados, tendo em vista a relevância do tema e proporção que ele vem tomando sem medidas eficazes para o devido combate e controle. Assim, este estudo pretende desenvolver uma abordagem do tema "Intolerância Religiosa na sociedade internacional". Preliminarmente, por questões de didática, inicia-se com uma abordagem teórica acerca da definição dos institutos relacionados ao tema na visão do órgão competente em questão. Para atingir a finalidade deste estudo, o tipo de pesquisa adotada é a bibliográfica e documental que abrange a leitura, análise e interpretação de livros, periódicos, textos legais, documentos xerocopiados e artigos e textos da


internet. O presente trabalho partirá do método analítico, primeiro se conceituando o tema, separando suas partes que serão juntadas e interpretadas conjuntamente para se obter uma conclusão. Cujo objetivo Geral é avaliar a possibilidade de medidas punitivas adequadas para o crime de intolerância religiosa. E tem como objetivos específicos: a) Analisar as dificuldades enfrentadas pela ONU no combate à intolerância religiosa; b) Identificar a competência para julgar os crimes graves de intolerância religiosa; c) Estudar medidas a serem adotadas por esses órgãos a fim de combater de fato a intolerância religiosa no âmbito internacional; d) Analisar os desafios enfrentados pela aldeia global decorrentes da intolerância religiosa.

I. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Definir religião não é algo simples, pois não há expressões que representem todas as suas dimensões, sendo este um elemento que ultrapassa os limites espirituais, sociais e pessoais. Se observamos historicamente, este é um elemento que surge em todas as culturas, sejam elas desde a pré-história até atualmente. Não só no período paleolítico bem como em grande parte da história do homem, a religião servia como uma maneira de justificar e entender os fenômenos naturais e assim exercer influência sobre eles, sendo esta uma maneira de se comunicar com os deuses, através de rituais e rezas, onde estas práticas levariam a auxiliar na consolidação de grupos sociais, podendo então reafirmar hierarquias e criar um verdadeiro sentido de identidade coletiva. Devido a complexibilidade das sociedades com o passar dos anos, os sistemas de crença acompanharam bem essa evolução, onde a religião tornou-se cada dia mais uma ferramenta política. Com o passar dos séculos o homem por vezes desafiou posições contrárias à sua fé, sofrendo por isso a consequência de ser perseguido e muitas vezes tendo a vida ceifada para honrar o direito de cultuar seu(s) deus(es). Onde até os dias atuais, num tempo capitalista, mais de três quartos


da população mundial afirma ter algum tipo de crença religiosa. Analisando assim a história da religião ao logo desses anos, esta é sem dúvidas um órgão vital na vida de muitas pessoas, sendo também instrumento tanto para o nível social como pessoal. Sendo objeto de tanto poder entre as sociedades, a religião passou a ser algo muito perigoso quando utilizada para propagar o mau, e foi assim que surgiu a terminologia moderna de ―intolerância religiosa‖. Esta vem sendo fonte de muita discussão nos últimos tempos, por se tratar da disseminação de ódio em várias partes do mundo, com pessoas que seguem outro credo, a partir do momento em que há uma agressão, ofensa ou tratamento diferente a alguém em função da crença ou até mesmo de não possuir uma religião. A intolerância religiosa então passou a ser um conjunto de ideologias e atitudes ofensivas à práticas e crenças religiosas, que rompem direitos basilares dado a toda pessoa, como o direito à liberdade e a dignidade. Em suas espécies de violação religiosa estão a quebra de símbolos e objetos sagrados de outras religiões, a destruição de templos sagrados, palavras ofensivas dirigidas a religião da pessoa, violência, perseguição religiosa, e por fim, mas não menos importante, a morte e o sangue de milhares de vítimas derramados, supostamente em nome de um ―Deus‖. II. A UTILIZAÇÃO DA RELIGIÃO COMO INSTRUMENTO DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, TERRORISMO

A segregação do que é lógico para com os mistérios da vida que ainda não tem explicações, norteiam a constituição de um estado laico que trouxe ao homem redenção no que tange as religiões, colocando o divino no seu devido lugar, separado das políticas e do Estado, tendo a sociedade evoluído a tal ponto, onde a democracia garante o direito a fé religiosa. A religião se por alguma vez for envenenada pela política, ela perde todo o seu sentido e passa a ter um novo aspecto, sendo este motivo de disseminação de ódio e horror entra as demais culturas que por ventura não compartilham da mesma fé. Historicamente falando, se aconselha há muito tempo essa separação de fato entre Estado e Credo, pois podemos olhar para trás e lembrar com tristeza as marcas deixadas por essa união desastrosa, com diversos exemplos


de guerras santas, inquisições, perseguições, fogueiras e torturas. Tudo isso fruto da violência gerada em nome dessas crenças radicais, em busca de poder. Até mesmo nos dias atuais infelizmente temos grupos instigados a conduzir sua fé de maneira distorcida, tendo assim como consequência atos de extrema brutalidade e crueldade geralmente com pessoas inocentes, retroagindo milhares de séculos passados com o derrame de sangue do povo. Muitos desses atuais grupos radicais religiosos passaram a exercer poder em áreas estratégicas, espalhando horror para diversas partes do mundo. Um califado que diz ter direito de matar quem não seguir seu Deus, ou quem não seguir as leis dEle, se utiliza dessa política ou justificativa barata de que é por algo maior, mas que na verdade esses grupos se utilizam do poder que só a fé da, de levar as pessoas ao extremo, matar e morrer por uma crença, para disseminar a violência desmedida e causar danos em toda a sociedade internacional, assim atingindo seus verdadeiros objetivos, que são meramente políticos, portanto como consequência violando o direito à liberdade religiosa, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de ir e vir, o direito à dignidade da pessoa humana, e até mesmo o direito mais importante do mundo, o direito à vida.

III. DESAFIOS E IMPASSES DA ALDEIA GLOBAL: PERSEGUIÇÕES, REFUGIADOS, ESTADO ISLÂMICO E BOKO HARAM

De fato, dizer que crê numa religião em dias atuais se torna um ato de coragem, onde somos a todo instante bombardeados de notícias sobre a violência e atentados terroristas pela religião. Vamos fazer uma breve analise do ano de 2015 para entendermos melhor o que o mundo vem passando com as constantes ameaças à civilização em nome da religião. Em 7 de Janeiro deste mesmo ano o mundo parou de luto ao massacre do Jornal Satírico francês Charlie Hebdo, na cidade de Paris, onde morreram 12 vidas inocentes, e 5 pessoas ficaram gravemente feridas, tudo isto ocorreu devido a uma suposta vingança do grupo Estado Islâmico para com os autores das charges que faziam piada com o profeta Maomé, que segundo eles é o mensageiro de Deus para o Islamismo, a sociedade internacional em choque, milhões de


pessoas saíram nas ruas em um protesto em solidariedade à França. Já em Junho, terroristas islâmicos atacaram dois hotéis na beira do mar numa praia da Tunísia, onde um homem armado com uma metralhadora matou 38 pessoas e a maioria dos mortos era do Reino Unido. Logo depois outro ataque ocorreu ao museu de Bardo na Capital da Tunísia, onde 21 pessoas foram mortas por radicais do EI. Como se essas barbáries não fossem suficientes, com a guerra da Síria ocorrendo e deixando milhares de pessoas à mercê da sorte, várias delas buscaram sair de lá e procuram abrigo em outros países, se tornando assim os atuais refugiados da Europa, o que ocasionou muito conflito entre a União Europeia, pois diversos países não tinha condição de receber o número de pessoas que chegava a toda hora, precisando das necessidades mais básicas. Esses refugiados vinham em busca de um novo começo, deixando para trás tudo que conquistaram na vida, casa, famílias, bens, etc, por questão de sobrevivência. E ainda assim a Europa relutou para abrir as portas a essa quantidade enorme de desconhecidos que pediam ajuda humanitária, mas no fim das contas recebeu e passou a organizar de uma melhor forma o registro dessas pessoas, embora ainda que tenham muitas outras morrido na trajetória em busca de um recomeço, fugindo da guerra e morrendo a mercê do mundo. Com a sociedade internacional comovida com a atual situação dos refugiados, e trabalhando em conjunto para recebê-los, foi assim que mais uma vez grupos radicais aproveitaram para se infiltrar entre os refugiados que pedem asilo em distintas nações europeias, onde segundo declaração de um Operador do grupo Estado Islâmico revelou, existem hoje cerca de 4.000 homens do EI disfarçados de refugiados em toda a Europa. Na noite do dia 13 de Novembro de 2015 o mundo chorou com os ataques simultâneos em seis locais na cidade de Paris, onde levaram a morte de pelo menos 129 pessoas e outras 352 feridas, onde 99 dos casos dos feridos estão em estado grave. Este é hoje sem dúvida o pior ataque à França dos tempos atuais, cometido pela responsabilidade do grupo do Estado Islâmico. Não achando suficiente a recente ameaça, os terroristas não pararam, e uma semana após o atentado na França, no dia 20 de Novembro de 2015 um grupo jihadista afiliado a Al Qaeda invadiram fortemente armados um hotel de luxo na capital de Mali, sequestrando por volta de 170 pessoas,


onde foram confirmadas até o presente momento a morte de 27 delas. E quem são esses grupos Radicais? Para entender melhor precisamos voltar alguns anos na história, mais precisamente em 2003 quando os Estados Unidos da América resolveram invadir o Iraque. E era Al Qaeda quem assolava o país com o terrorismo, sendo assim uma parte desse grupo mais radical, desejava algo maior, não bastando expulsar os americanos e combater o poder xiita, mas sim montar um califado se apoderando da religião, onde se criaria um verdadeiro Estado Islâmico, seguindo veementemente as regras do Islã. O Estado Islâmico é hoje liderado por Abu Bakr al-Baghdadi, antigo membro da Al-Qaeda que era o responsável pela Frente al-Nusra, com a junção de tal Frente com o Estado Islâmico do Iraque, hoje infelizmente o mundo conhece a brutalidade e a força do Estado Islâmico do Iraque e Levante. Este grupo radical, hoje conhecido em todo o mundo, recruta através de vídeos na internet, e nas prisões do Oriente Médio, milhares de homens para servir em nome da causa, sendo eles de todas as partes do mundo. O mais chocante do EI não é apenas sua força econômica, ou sua organização militar, mas sim a brutalidade dos crimes cometidos em nome do Islamismo e de ―Ala‖. Atualmente o EI tem sob seu domínio 4 milhões de mulheres, onde muitas delas são as denominadas Yazidis, onde de acordo com a crença deste grupo as mulheres Yazidis nasceram para serem escravas dos homens que seguem o Islã, foi assim que milhares dessas mulheres foram sequestradas, e hoje são mantidas como escravas sexuais dos militares do Estado Islâmico, como se não bastasse a privativa de liberdade, a violação da pureza, do consentimento, esse homens brutais não deixam escapar nem mesmo as mulheres Yazidis idosas, pois estas servem como bolsas de sangue para os combatentes que estão feridos. Milhares de crianças e jovens inocentes, estão sendo recrutados por este grupo, até mesmo os que se recusam, tem sua família ameaçada, chocando toda a comunidade internacional, ao ver uma criança de 8 anos ser um homem bomba, e outras de 9 já degolando homens inocentes. De fato, é muito triste saber que tantas vidas estão sendo desperdiçadas para o benefício desse grupo terroristas, vidas inocentes, que muitas delas não têm a consciência dos atos que estão cometendo, famílias separadas, e uma nação em guerra.


Outro grupo muito importante e atual que merece ser citado pelas inúmeras atrocidades cometidas é o Boko Haram, onde é uma organização fundamentalista islâmica que tem cunho e métodos terroristas. Esta foi idealizada e fundada por Mohammed Yusuf, e com a sua morte hoje é liderada por Abubakar Shekau. A organização do Boko Haram chama a atenção pelo o número de mortos que já chega à ser aproximadamente de 13.000 só na Nigéria. E o recente sequestro de 200 crianças que chocou o mundo. Este grupo acredita e defende que toda a educação ocidental e não-islâmica deve ser combatida e extinta de todo o território Nigeriano, sendo considerada um pecado. O objetivo do Boko Haram é espalhar sobre imposição a Lei Sharia em toda a Nigéria, e destruir os meios de educação, desconstruindo assim, qualquer tipo de direitos humanos que existe, violando ainda a liberdade de escolha religiosa de milhares de pessoas, o direito de ir e vir do povo nigeriano. ―A estratégia do grupo é espalhar o terror através de três elementos básicos: explosões em cidades de médio e grande porte, ataques por terra em cidades pequenas e vilarejos rurais e invasões em delegacias e bases militares (GAFI, 2013 p.30). ‖ Diante de tantos absurdos, abusos, e violações dos preceitos mais importantes do novo mundo, fica claro o enorme desafio que temos para com este problema que surge novamente na história mundial, precisamos combater o terrorismo urgente, pois a religião está sendo usada como meio político para obtenção de objetivos obscuros, e isso causa medo, dor e instabilidade em todo o mundo, propagando o ódio desmedido entre culturas e crenças.

IV. ONU E AS CORRELAÇÕES SOBRE O TERROR

Os organismos internacionais como a ONU veem há anos tentando de forma diplomática combater essa questão e garantir esses direitos tão elementares e intrínsecos a cada pessoa, tentando campanhas para conscientização da liberdade religiosa, buscando sempre a pacificação dos povos, onde em nenhum momento obteve o sucesso esperado. Ao contrário a intolerância as religiões nos últimos anos só vem aumentando gradativamente e assim consequentemente o número de violência e vítimas deste crime.


Mesmo com a Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções, proclamada pela Assembleia Geral das nações Unidas, não passa de mera convenção internacional, como um simples papel, que a cada segundo pode ser facilmente ―rasgado‖ pelos radicais do Estado Islâmico, pondo por água abaixo todo o projeto criado por esta organização. Para piorar a situação o que vem sendo feito pelos Estados aliados ao combate deste problema é responder com a força. Ora pois, se estamos tentando combater a violação de direitos elementares como a liberdade religiosa, vamos agir da mesma forma que o agressor desses direitos? Não se combate a violência com mais violência. Para se ter respeito, primeiro devemos agir como tal, e por uma ordem natural a coisas tratam de se encaixar. Pena que na prática da nossa aldeia global as coisas não funcionam bem assim. E pela sociedade passar tanto tempo de olhos fechados diante deste problema, que só agora se faz necessário o uso da força e da opressão, pois além do direto elementar a liberdade religiosa, outro direito ainda mais fundamental está sendo ceifado em detrimento deste, que é o direito à vida, e isso a sociedade não pode permitir, nem aceitar e muito menos permanecer inertes a essa situação. A ONU poderá ter um papel fundamental nesta problemática, no que se refere a competência de julgamentos dos crimes de intolerância religiosa, pois no tange o papel do Tribunal Penal Internacional de se tornar o responsável por julgar tais crimes, seria através de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, visto a urgência do caso, sua importância e seu impacto para todo o mundo, e a facilidade, pois poderá seguir os tramites normais para aprovações de tais medidas dentro da própria ONU, podendo ser observado no artigo 2º do estatuto do TPI, a importância dessa organização com a instituição do Tribunal, mesmo este tendo a liberdade de agir independente. Além da ONU já desempenhar há muito tempo um papel de estabilidade no meio internacional, com o conselho de segurança, este deve reforçar seus trabalhos em parcerias com os países e organizações membros, para combater este crime que vem se arrastando há tanto tempo, utilizando a força como retaliação, controle de fronteiras e campanhas de combate incentivando toda a sociedade internacional à respeitar as diferenças entre os povos, sejam eles de


qualquer religião ou credo, trazendo mais uma vez à tona a ―Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação com base em Religião ou Crença‖, tornando ela cada dia mais pública e de fato eficaz.

V. COMPETÊNCIA PARA JULGAR OS CRIMES DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA (TPI)

Com os relatos feitos nesta pesquisa, baseados em dados recentemente divulgados em todo o mundo, visto que os crimes cometidos em relação a intolerância religiosas advém de três perspectivas, primeiramente dos crimes cometidos em guerra, neste caso na Síria e Nigéria, nos diversos casos de crimes contra a humanidade e também nos casos de crimes de agressão. Portanto tais crimes são facilmente adequados à convenção de Roma, onde existe a possibilidade de julgamento através do Tribunal Penal Internacional – TPI. Onde esta instituição faz parte de um sistema da ONU, mas possui a sua independência interior. Partiremos da lógica a princípio dos crimes relacionados à intolerância religiosa, que se adequam ao TPI. No artigo 8º do estatuto, vemos as possibilidades de crimes nos casos de guerra, sendo atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada ou qualquer outra forma de violência sexual e a utilização de crianças menores de 15 anos que participem ativamente das atividades hostis, onde este tem como objetivo limitar as violações no que se refere à segurança internacional e também facilitar o trabalho de estabelecer a paz nos momentos de hostilidade, sendo o conflito de guerra instaurado em legitima defesa ou até mesmo nas operações militares realizadas como o apoio da ONU será observado primeiramente o direito humanitário, assim havendo de fato o crime de guerra, os responsáveis deverão pagar pelos crimes cometidos. Já nos casos de crime contra a humanidade podem ser encontrados no artigo 7º da convenção de Roma, onde são aqueles referentes a ameaça da paz e segurança e bem estar da sociedade internacional, aparecendo assim com ataques aos direitos humanos de determinada população, em seu artigo 7º havendo conhecimento desde crimes através de: ―homicídios; extermínio; escravidão; deportação ou transferência forçada de uma população; prisão; formas de privativa de liberdade forçadas; tortura; agressão sexual; exploração


sexual;

escravatura

sexual;

gravidez

forçada;

esterilização

forçada;

perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; desaparecimento forçado de pessoas; crime de apartheid e por fim atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.‖ Já o crime de agressão se trata de um ―crime contra a paz‖, presente no texto do Tribunal Penal Internacional, se encontra no parágrafo 2º do artigo 5º do Estatuto, no qual o TPI, só poderá datar o crime de agressão quando aprovado a disposição que venha a definir este crime e seus exercícios de competência. Todos esses crimes específicos citados anteriormente e presentes no texto legal da convenção de Roma, se fazem presentes nas atrocidades cometidas pelos grupos extremistas radicais, sendo assim possível a inserção do crime de intolerância religiosa através do Tribunal Penal Internacional, e de fácil acesso através da resolução no conselho de segurança da ONU para crimes urgentes, violentos e perigosos, podendo ser inserido e aplicado por todo território mundial.

VI. MEDIDAS PUNITIVAS PARA O JULGAMENTO DO CRIME DE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA

Faz então a importância de observar a necessidade de estruturação desta problemática. Primeiro a importância da tipificação do crime de intolerância religiosa por toda a sociedade internacional. Segundo seria a penalização, por se tratar de um crime bárbaro, devendo ter uma pena severa, correspondente ao crime cometido. Terceiro a introdução deste crime ao Tribunal Penal Internacional (TPI), para que possa haver um julgamento justo das pessoas que cometerem tais atos contra a liberdade religiosa e consequentemente o direito à vida, onde não fique só delimitado ao Estado no qual seja capturado o agressor de tais atos o julgamento deste indivíduo, visto


que esta é uma problemática em torno de todo o mundo onde ameaça à paz, a segurança e todo o desenvolvimento da nossa aldeia global, por tanto merece ter um tratamento diferenciado em questões de julgamentos e penalidades. Levando em consideração a adequação do TPI como o instituto competente a julgar tais crimes sobre a intolerância religiosa, faz-se a importante observação nos artigos 77 a 80 do Estatuto da Convenção de Roma, que são referentes as penas. O réu sendo devidamente julgado pelo TPI e sendo considerado culpado, estará sujeito às seguintes penas: reclusão por prazo não superior a 30 anos; prisão perpetua, dependendo do julgamento, avaliado a gravidade do crime cometido e levando em consideração as motivações pessoais do acusado; apreensão de bens obtidos proveniente dos crimes cometidos; e multa. Cumprirá a pena em um dos Estados-partes assim acertado no dia do julgamento, podendo ser reduzida depois do cumprimento de um terço ou do período de pelo menos 25 anos de reclusão nos casos mais extremos, como os de prisão perpetua. O tribunal também poderá de forma justa determinar uma indenização para as vítimas, o chamado ―fundo de valor as vítimas‖, que pode ser encontrado no artigo 79 do estatuto de Roma, como forma de reparação, que será pega pelo réu através de um fundo fiduciário, podendo ser bancado através de doações dos Estados-partes ou até mesmo de bens confiscados do réu advindos do crime.

VII. Metodologia

Neste

trabalho,

foram

considerados

os

seguintes

critérios

de

classificação.

VII.I TIPO DE PESQUISA Quanto à abordagem do problema: trata-se de uma pesquisa qualitativa; quanto aos objetivos: trata-se, ao mesmo tempo, de uma pesquisa descritiva;


quanto aos procedimentos técnicos utilizados para desenvolver a pesquisa: trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental. De acordo com os objetivos, trata-se, de uma pesquisa descritiva analitica, mostrando posicionamentos da intolerância religiosa na sociedade internacional. Estes assuntos estão disponibilizados para o público em geral na internet. Classifica-se como pesquisa descritiva a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis. São inúmeros os estudos que podem ser classificados sob esse título. (GIL, 2002. p. 42).

VII.II INSTRUMENTO E PROCEDIMENTO PARA COLETA DE DADOS

Uma das características desta pesquisa é a utilização de técnicas padronizadas de coleta de dados, tais como a observação sistemática. Para os propósitos da pesquisa descritiva, os fatos e os fenômenos devem ser extraídos do ambiente natural, da vida real, onde ocorrem, e analisando à luz das influências que o ambiente exerce sobre eles. Por esse motivo, uma pesquisa de campo deve ser orientada pelos princípios da pesquisa descritiva. Entre outras formas, podem ser citadas como exemplos de pesquisa descritiva: pesquisa de opinião, estudo de caso, pesquisa documental etc. (MICHEL, 2009, p. 45).

Quanto aos procedimentos técnicos utilizados, trata-se de uma pesquisa bibliográfica, onde foram estudadas informações sobre o assunto em materiais de diversos autores. A pesquisa foi desempenhada através de fontes secundárias que abrange a leitura, análise e interpretação de livros, periódicos, textos legais, documentos xerocopiados e artigos e textos da internet. Maria Helena Michel conceitua a pesquisa bibliográfica da seguinte maneira: Essencialmente, o estudo exploratório ou pesquisa bibliográfica é uma fase da pesquisa, cujo objetivo é auxiliar na definição de objetivos e levantar informações sobre o assunto objeto de estudo. Entretanto, o estudo exploratório ou pesquisa bibliográfica pode ser considerado uma forma de pesquisa, na medida em que se caracteriza pela busca, recorrendo a documentos, de uma de uma resposta a uma dúvida, uma lacuna de conhecimento. Esse tipo de pesquisa procura explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos, dispensando a elaboração de hipóteses. (MICHEL, 2009, p. 40).


A pesquisa bibliográfica é ―o estudo sistematizado desenvolvido com base em material publicado em livros, revistas, jornais, redes eletrônicas, isto é, material acessível ao público em geral.‖ (VERGARA, 2004, p. 48). Quanto à abordagem do problema, utilizaremos uma pesquisa qualitativa, onde iremos compreender o sentido do estudo, analisando a intolerância religiosa na sociedade internacional. De acordo com Michel (2009, p. 37) na formulação de uma pesquisa qualitativa ―o pesquisador participa, compreende e interpreta‖. A pesquisa qualitativa considera que há uma relação dinâmica, particular, contextual e temporal entre o pesquisador e o objeto de estudo. Por isso, carece de uma interpretação dos fenômenos à luz do contexto, do tempo, dos fatos. O ambiente da vida real é a fonte direta para obtenção dos dados, e a capacidade do pesquisador de interpretar essa realidade, com isenção e lógica, baseando-se em teoria existente, é fundamental para dar significado às respostas. (MICHEL, 2009, p. 37).

CONCLUSÃO

A sociedade precisa aprender com a história e separar de vez a religião das políticas, claro que os casos citados têm um fundo de cunho religioso, mas a motivação essencial é meramente política, devendo de uma vez por todas serem afastadas uma da outra, pois nenhuma religião é superior a lei do homem, esta criada para convivermos dignamente numa sociedade em comum, em que todos são iguais perante a lei, e tem os mesmos deveres e direitos que qualquer cidadão tem. Diante de tantos fatos importantes expostos inerentes aos crimes de intolerância religiosa, fica claro que precisamos acabar com estas ―guerras santas‖, pois o mundo evoluiu, e sabemos o preço que se paga por começar um conflito armado de tal magnitude. Se faz necessário neste primeiro momento enxergar de fato, a intolerância religiosa como um crime, mobilizando toda a sociedade internacional, para combatermos essa prática, e incorpora-la na convecção de Roma, para que o Tribunal Penal Internacional, possa a vir julgar justamente os casos graves que vem acontecendo diariamente de ódio religioso, tento eles as punições à altura dos crimes cometidos. Esses criminosos não podem ficar impunes, a sociedade clama por justiça diante de tanto sangue que já foi derramado.


É preciso também que os países trabalhem em conjunto, mantendo uma cooperação entre si para combater o terrorismo e este novo apoderamento da religião para a criação de um califado. Essa cooperação entre as grandes nações é fundamental, pois só elas têm recursos militares e financeiros, para acabar de vez com esse mau. Sejam esses recursos enviando tropas, comprando armas para retaliações, uma maior fiscalização das fronteiras e a recuperação das vítimas deixadas por estas perseguições, assim ficando a cargo da ONU batalhar por este trabalho em conjunto dos países, devido a urgência e proporção que estes crimes religiosos vêm tomando.

REFERÊNCIAS BBC NEWS. Ataque em Paris: ‗Estado Islâmico‘ assume autoria... Disponível em: <http://www.bbc.com/> Acesso em 15 de nov de 2015. CARBONARI, Paulo César. Pelo fim da intolerância religiosa. Disponível em: <http://cdhpf.org.br/artigos> Acesso em 18 de nov de 2015. CASA CIVIL. Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002. Procuradoria da República. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br> Acesso em 10 em out de 2015. DOCUMENTÁRIO DO ESTADO ISLÂMICO. Disponível em: < http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2015/11/documentario-revela-como-estado-islamico-criageracao-de-terroristas.html> Acesso em 25 de nov de 2015. FORTINO, Carla. O livro das Religiões. Editores Seniores: Gareth, Georgina Palffy. Tradução: Bruno Alexander. 1ª reimpressão. São Paulo: Globo Livros S.A, 2014. GAFI. Grupo de Ação Financeira. Financiamento do Terrorismo na África Ocidental. Disponível em: http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/FT-na-africa-ocidental.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2015. GARCIA, Fernanda Lau Mota. O Tribunal Penal Internacional: Funções, Características e Estrutura. Trabalho de Conclusão de Curso de Direito do Centro Universitário Metodista, do IPA como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Porto Alegre, 2012. GDDC. Direitos Internacional Humanitário: Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos> Acesso em 10 em out de 2015. GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. GUIA DE DIREITOS. Intolerância religiosa. Disponível em: <http://www.guiadedireitos.org> Acesso em 18 de nov de 2015. LUCENA, Elis Formiga; MELO, Milena Barbosa de. A cooperação internacional como instrumento de enfrentamento ao terrorismo: uma análise do caso Boko Haram. Artigo. COMPEDI-Aracajú. 2015. MAISONNAVE, Fabiano. Entenda o que aconteceu no ataque ao jornal „Charlie Hebdo‟ em Paris. Folha de São Paulo 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ Acesso em 15 em nov de 2015. MICHEL, Maria Helena. Metodologia e pesquisa científica em ciência sociais. São Paulo: Atlas, 2009. MIGALHAS QUENTES. Estatuto de Roma: tratado que instituiu o Tribunal Penal Internacional completa 12 anos. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes> Acesso em 10 em out de 2015. O GLOBO. Intolerância religiosa é ameaça à civilização. Opinião. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/opiniao> Acesso em 18 de nov de 2015.


RELIGIÃO, Xr.pro. O que é religião? Disponível em: <http://www.xr.pro.br/religiao.html;> Acesso em 18 de nov de 2015. TERRORISMO, Tag. Nos infiltramos mais de 4 mil... Disponível em: <http://www.semprequestione.com> Acesso em 18 de nov de 2015. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL. Disponível em: <https://www.icrc.org/por/resources/documents/misc/5yblr2.htm> Acesso em 25 de nov 2015. VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2004. WEISS, Michael; HASSAN, Hassan. Estado Islâmico Desvendando o Exercíto do Terror. Tradução: Jorge Ritter. Ed. 1ª. São Paulo: Seoman (pensamento-cultrix), 2015.


7 O CRESCENTE INTERVENCIONISMO PENAL DITADO PELA INFLUÊNCIA MIDIÁTICA DOS TELEJORNAIS: UM DEBATE À LUZ DA PRICIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL

GABRIEL FERREIRA DOS SANTOS GISIANE MACHADO DA SILVEIRA

INTRODUÇÃO

A imprensa, além de informar acontecimentos para a população, assumiu um papel antes exercido exclusivamente pelos órgãos de persecução criminal, qual seja o de investigar, denunciar e julgar fatos definidos como crime. Com isso, a atuação midiática (galgada na manipulação de pautas e imagens) conquistou maiores índices de credibilidade junto à sociedade, em especial, para o considerável numerário populacional que somente tem acesso ao nefasto conteúdo da programação de TV aberta do país. Enfatizando a abordagem midiática em relação a fatos delituosos ocorridos diariamente sem a compreensão da criminalidade no âmbito social, a mídia, em especial a televisiva, destaca episódios que acredita ser de extrema relevância e grifa na sociedade este fato como se ocorrido muito mais próximo do que realmente ocorreu, dando um enfoque no que mais chamará a atenção, seja pela posição social do sujeito, seja condição financeira deste ou da vítima, ou ainda pela violência do fato, acarretando na população um sentimento de vingança, pois de certa forma, acabam tomando o problema para si, desenvolvendo um sentimento de insegurança e injustiça, sem saber de forma fidedigna como os fatos ocorreram. Dentre todos os delitos, a mídia seleciona aqueles que devem protagonizar notícias, elegendo o ―criminoso‖ perfeito para a manchete dentre vários critérios, entre eles, a condição social, a motivação do crime entre


outros, violando toda e qualquer garantia fundamental expondo-o a violações reiteradas. Tanto o Direito Penal como a imprensa são mecanismos de poder que buscam a ―verdade‖ dos fatos. Porém, a mídia consegue uma verdade falaciosa utilizando-se de meios que no Processo Penal não são permitidos, pois as garantias do ser humano devem ser respeitadas. São produzidas reportagens onde testemunhas que não mostram os rostos falam sobre o fato presenciado sem nos fazer questionar quem é esta pessoa e se realmente presenciou algo; acessam conteúdo de interceptações telefônicas dentre outros dados sigilosos, em evidente violação de um conjunto de regras. Toda esta exposição que a mídia estabelece para delitos que julga ter maior relevância e crueldade, acaba por afetar a população de forma direta, fazendo com que todos tenham a sensação de impunidade. Por sua vez, é imperioso que tenhamos a percepção de que Processo Penal e mídia possuem ―tempos‖ diferentes. A mídia pode ―condenar‖ qualquer pessoa no mínimo de tempo, uma vez que não se responsabiliza com qualquer aprofundamento teórico prático em relação aos fatos noticiados. Nota-se, assim, que o modelo de intervencionismo penal acaba sendo influenciado pela mídia, proporcionando o expansionismo do direito penal, fazendo surgir leis que fornecem a população uma sensação de segurança, buscando dissolver o medo (re)produzido pela mídia.

I. O DIREITO PENAL CONSTITUCIONAL: UMA ABORDAGEM A PARTIR DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Primeiramente, cabe fazer uma análise de uma garantia fundamental advinda da promulgação da Constituição Federal de 1988 que é violada diuturnamente pela mídia, qual seja o princípio da igualdade, disciplinado este no artigo 5º, caput, in verbis: ―Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade‖ (grifado pelo autor). Assevera Ferrajoli que os seres humanos não são iguais em sua essência, possuindo sempre diferenças, e que estas, em alguns momentos,


são toleráveis. Entende que as diferenças são aceitas por valorizarem o ser humano, caso que não se aplica as diferenças que são consideradas intoleráveis, pois depreciam o ser humano, e segue: Nem todas as desigualdades jurídicas, como veremos, são de fato intoleráveis. Apenas aquelas que obstam a vida, a liberdade, a sobrevivência e o desenvolvimento das outras pessoas o são; e as identificações dos limites, qualitativo e quantitativo, além dos quais elas são por isso intoleráveis [...] (FERRAJOLI, 2002, p. 726).

Como já sabido, o princípio da igualdade é um direito fundamental do ser humano, não sendo admitida, em hipótese alguma, sua violação. Destarte, ao ser equiparado com outra garantia fundamental deve ser valorado de forma diversa, uma vez que deve ser posto acima dos demais. Ou seja, a lei que violar tal princípio poderá ser considerada inválida. Todo ato que seja contrário a tal princípio também poderá ter sua invalidade declarada. Ademais, acrescenta-se nesta análise o inciso XXXVII do mesmo artigo, segundo o qual, ―não haverá juízo ou tribunal de exceção‖, sendo este direito instituído na Constituição pela força do princípio do juiz natural e a garantia do juiz competente (GRINOVER, 2004, p.55) Neste diapasão, é a lição de Ceneviva: Juízos e tribunais de exceção são todos os órgãos de julgamento que, podendo aplicar penas ou decidir questões por ato de força, estejam fora dos quadros constitucionais do Poder Judiciário, que possam, por qualquer forma, sacrificar ou restringir o direito à ampla defesa e ao contraditório. (CENEVIVA, 2003, p.76)

Destarte, a mídia restitui diuturnamente o tribunal de exceção, uma vez que condena pessoas violando princípios constitucionais básicos, como da ampla defesa e contraditório, exigidos para a busca da verdade no trâmite do processo penal.

I.I A LEGITIMAÇÃO MIDIÁTICA NA FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E SUA RESPECTIVA CONTRIBUIÇÃO PARA O EXPANSIONISMO PENAL


Hodiernamente a mídia (os telejornais de massa) ultrapassa limites e violam princípios do ser humano. Contudo, tem credibilidade para com a sociedade para prosseguir disseminando atos e criando cenas. Segundo Natalino Em geral, os telejornais de referência utilizam-se com maior frequência do modelo de notícia chamado de ―pirâmide invertida‖ (iniciando pela informação mais importante e terminando com a considerada menos importante, passível de corte dos editores) e são mais rigorosos na manutenção dos procedimentos da ―objetividade jornalística‖, como a clara distinção entre fato e opinião – buscando obter assim maior ―credibilidade‖ ou ―seriedade‖. Por outro lado, os telejornais populares são menos rigorosos na busca da objetividade, atentando com maior cuidado para a construção narrativa da notícia, buscando envolver o leitor/telespectador na história – aproximando-se, assim, de gêneros como a literatura romântica. (NATALINO, 2007, p.52).

Ademais, Batista afirma que está legitimidade está ligada diretamente com a agilidade em se ter um resultado O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave da compreensão dessa especial vinculação mídia/sistema penal, incondicionalmente legitimante. Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças, e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam. O novo credo criminológico da mídia tem seu núcleo irradiador na própria idéia de pena: antes de mais nada, crêem na pena como rito sagrado de solução de conflitos. (BATISTA, 2009, p. 3)

E segue afirmando que é no resultado da pena que a população legitima os meios de comunicação: Não há debate, não há atrito: todo e qualquer discurso legitimante da pena é bem aceito e imediatamente incorporado à massa argumentativa dos editoriais e das crônicas. A equação penal – se houve delito, tem que haver pena a equação penal é a lente ideológica que se interpõe entre o olhar da mídia e a vida, privada ou pública. (BATISTA, 2009, p. 4)

A população vive em constante transformação, principalmente com os avanços tecnológicos que permitem que tudo seja solucionado de forma imediata. Dessa forma, o modelo mental do telespectador não exige outra


postura do Poder Judiciário senão a rapidez no julgamento dos processos, independentemente do quão qualitativa se mostrará a decisão judicial. Gleick explica a sociedade moderna da seguinte forma: Enxugar minutos e segundos e centésimos de segundo tornou-se uma obsessão em quase todos os segmentos de nossa sociedade, com poucas exceções. Com o mesmo espírito dos nadadores olímpicos que raspam pêlos do peito, as redes de televisão estão delicadamente eliminando os blacks – as pontuações entre os programas, quando a tela se apaga por um momento. [...] A instantaneidade impõe as regras na rede e em nossas vidas emocionais: café instantâneo, intimidade instantânea, replay instantâneo e gratificação instantânea. Os pesquisadores fazem uso de dispositivos eletrônicos durante discursos políticos para mensurar opiniões no ar, antes de estarem completamente formadas. Como mísseis lançando [mísseis], os restaurantes fast-food oferecem pistas expressas. Se não compreendermos o tempo, vamos nos tornar suas vítimas. (GLEICK, 2000, p. 18).

Os meios midiáticos ganham poder e confiança da população devido a instantânea condenação dos acusados. Ou seja, enquanto o processo penal busca traduzir toda a complexidade que circunda um fato definido como crime, a mídia apresenta o fato, esclarece e condena os até então suspeitos, fornecendo a população o que eles almejam, uma pena para cada crime, devolvendo aos telespectadores o senso de justiça. A respeito da verdade no processo penal, Aury Lopes Junior esclarece que ―trata-se de uma verdade perseguida pelo modelo formalista como fundamento de uma condenação e que só pode ser alcançada mediante o respeito das regras precisas e relativas aos fatos e circunstâncias considerados como penalmente relevantes.‖ (AURY, 2010, p.556). Contudo, cabe ressaltar que a verdade real é impossível de ser alcançada, uma vez que o processo penal trabalha com fatos passados, buscando reconstruí-lo no presente, e toda reconstrução de certa forma se estabelece imperfeita, pois trata-se de memórias e vestígios identificados por testemunhas e por peritos. A mídia através de sua agilidade em transmitir notícias e achar culpados consegue a confiança da coletividade. Afinal a sociedade não questiona aquilo que lhe passa confiança, e dessa forma, a mídia consegue ―vender‖ qualquer fato. Contudo, a população não compreende que mais latente do que o direito


de informar, os telejornais desejam ter poder. Para tanto, é imprescindível ter altos índices de audiência. De acordo com Zaffaroni a mídia transmite para a população certo medo e insegurança, fundado no discurso de ―lei e ordem‖ O sentimento de falta de segurança da população em razão da simples dúvida quanto à ineficácia tutelar de todo este aparelho é enorme, já que atinge um plano psicológico muito profundo. Mais concretamente, são os meios de massa que desencadeiam as campanhas de ―lei e ordem‖ quando o poder das agências encontrase ameaçado. Essas campanhas realizam-se através da ―invenção da realidade‖ (distorção pelo aumento de espaço publicitário dedicado a fatos de sangue, invenção direta de fatos que não aconteceram), ―profecias que se auto-realizam‖ (instigação pública para a prática de delitos mediante metamensagens de ―slogans‖ tais como ―a impunidade é absoluta‖, ―os menores podem fazer qualquer coisa‖, ―os presos entram por uma porta e saem por outra‖, etc.; publicidade de novos métodos para a prática de delitos, de facilidades, etc.), ―produção de indignação moral‖ (instigação à violência coletiva, à autodefesa, glorificação de ―justiceiros‖, etc.). (ZAFFARONI, 1991, p. 129).

Entende-se então que todas as coisas devem estar em perfeita ordem, e caso alguém tenha o atrevimento de desordenar, deve ser punido com a pena mais dura que lhe possa ser aplicada. Zaffaroni salienta também que: A capacidade reprodutora de violência dos meios de comunicação de massa é enorme: na necessidade de uma criminalidade mais cruel para melhor exercitar a indignação moral, basta que a televisão dê exagerada publicidade a vários casos de violência ou crueldade gratuita para que, imediatamente, as demandas de papéis vinculados ao estereótipo assumam conteúdos de maior crueldade e, por conseguinte, os que assumem o papel correspondente ao estereótipo ajustem sua conduta a estes papéis. (ZAFFARONI, 1991, p. 131).

A população fica aterrorizada com os delitos praticados e com a impunidade dos agressores, entendendo que a justiça somente será alcançada quando efetivada com a máxima urgência. Para tanto, dispensadas estão as investigações detalhadas, a produção probatória eficiente e, finalmente, o grau recursal. Portanto, tudo o que importa em efetivação de um processo penal democrático se mostra contraproducente. Assevera Silva Sánchez que:


Em todo o caso, à vista do que vem acontecendo nos últimos anos, é incontestável a correlação estabelecida entre a sensação social de insegurança diante do delito e a atuação dos meios de comunicação. Estes, por um lado, da posição privilegiada que ostentam no seio da ―sociedade da informação‖ e no seio da concepção do mundo como aldeia global, transmitem uma imagem da realidade na qual o que está distante e o que está próximo tem uma presença quase idêntica na forma como o receptor recebe a mensagem. Isso dá lugar, algumas vezes, diretamente a percepções inexatas; e, em outras, pelo menos uma sensação de impotência. [...] Assim, já se afirmou com razão que os meios de comunicação, que são o instrumento da indignação e da cólera pública, podem acelerar a invasão da democracia pela emoção, propagar uma sensação de medo e de vitimização e introduzir de novo no coração do individualismo moderno o mecanismo do bode expiratório que se creditava reservado aos tempos revoltos. (SÁNCHEZ, 2002, p.37-39).

Dessa forma a mídia influencia a população na busca por um direito penal máximo para a solução dos problemas da violência e criminalidade, sendo que aqueles que se posicionam de forma diversa são severamente rechaçados e rotulados como coniventes e defensores da violência. Contudo, essa busca exacerbada pela criação de novas leis influenciada pelos telejornais gera aquilo que Silva Sánchez intitula como ―expansão do direito penal‖: ―O que interessa ressaltar nesse momento é tão somente que existe, seguramente, um espaço de ―expansão razoável‖ do Direito Penal, ainda que, com a mesma convicção próxima da certeza, se deva afirmar que também

dão

importantes

manifestações

da

―expansão

desarrazoada‖

(SÁNCHEZ, 2002, p.28).

II. O INTERVENCIONISMO PENAL DITADO PELA INFLUÊNCIA MIDIÁTICA DOS TELEJORNAIS: UM DEBATE À LUZ DA PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL

Os telejornais demonstram fatos e tiram conclusões da forma mais veloz, acompanhando a velocidade da sociedade moderna, e nessa mesma velocidade conseguem formar uma opinião pública. Segundo Gleick as emissoras de televisão utilizam da mesma forma dos telejornais para fazer as pesquisas de opiniões em tempo real, onde passam o máximo de informação para as pessoas sem as deixar raciocinar e ver qual seria a real opinião. Bombardeiam os telespectadores com fatos, cenas e imagens que estes não conseguem formar sua opinião, embarcam no que lhes foi passado sem hesitarem:


[...] alguns aspectos da opinião pública emergem mais rápido do que nunca, à medida que os analistas de programas noturnos de televisão e comentaristas de jornais diários competem com eruditos da Internet para explicar acontecimentos, fazer julgamentos, situá-los em um contexto moral e criar uma espécie de reflexividade imediata. (GLEICK, 2000, p.81)

E alerta que [...] os humores são como fumaça na brisa, e não raro tais barômetros medem algo ainda não totalmente constituído: numa opinião – uma opinião pública – que toma forma ao longo de horas ou semanas de reflexão e debate. [...] Na verdade, a história não pode ser escrita tão rápido. Por vezes, os eventos requerem um período decente de luto silencioso. (GLEICK, 2000, p.81).

Os telejornais, diuturnamente, ingressam em residências e afrontam aprendizados, educam os filhos e transformam pensamentos, abastecendo os expectadores com opiniões e fatos mais esdrúxulos, ditam regras e princípios que devem ser aceitos sem serem questionados. E assim que surgir um caso penal que possa ser explorado para demonstrar a criminalidade da sociedade, e a necessidade de maior intervenção estatal no Direito Penal, a situação se torna digna de espetáculo. São microfones, câmeras, luzes e os telejornais se inflam de audiências, acrescentam toda a dramatização e sensacionalismo dignos de filme hollywoodiano, devendo ter uma análise detalhada do telespectador do que pode ser verdade e do que é somente uma ―corrida pela maior audiência‖. A maior preocupação de tal sensacionalismo dos telejornais se dá pelo fato de transformarem casos criminais célebres em motivos para alterar a lei penal, que resulta, na maioria das vezes, em adaptações precipitadas e desastrosas. Mascarenhas reforça que ―A legislação penal brasileira, acompanhando a ―orgia legiferante‖ do ordenamento jurídico brasileiro, fica cada vez mais adiposa na medida em que a mídia celebriza certos acontecimentos.‖ (MASCARENHAS, 2006, p.01). Assim, as funções do Direito Penal são dadas à população como contentamento da opinião pública, mascarando o problema. Isto porque, a


rapidez pela resposta que clama a população impede que os legisladores repensem a melhor forma da construção legislativa. Dessa forma, a população crê que ―algo está sendo feito‖, que ―não estão esquecidos‖ e que crimes tão bárbaros, que os chocaram (hoje(!), porque amanhã já não passa de uma mera lembrança) serão punidos de forma exemplar. Neste diapasão, Natalino afirma que Expandindo a análise, podemos nos referir aqui às relações entre os interesses da mídia e os discursos de legitimação do sistema penal. O dogma penal ou equação penal é a afirmação da necessidade de pena como consequência do delito. A criminalização das condutas irá resultar em mudanças de comportamentais. (NATALINO, 2007, p.71)

Salienta-se, também, que se uma conduta não for contrária ao Direito Penal, porém adversa aos costumes morais, haverá uma mobilização populacional para que a lei seja modificada. Neste ponto, entende Silva Sánchez que este processo ―produz o efeito de favorecer o próprio alastramento da delinquência‖ (SÁNCHEZ, 2002, p.59). Tendo em vista que a expansão do direito penal e a criminalização de todos os fatos que os telejornais transmitem como sensacionalista, acarreta em sobrecarga do Judiciário e em impunidade para os delitos. Cabe

exemplificar

alguns

casos

criminais

que

influenciaram

a

modificação da lei penal para atender os clamores da população por mais criminalização de condutas ou por penas mais severas. A iniciar, com o sequestro do empresário Abílio Diniz, em 1989, que incluiu o delito de extorsão mediante sequestro no rol dos crimes hediondos. A população,

motivada

pelos

meios

de

comunicação,

principalmente

o

telejornalismo, e associado com a criminalidade, clamavam por esta reforma legislativa, promulgando a Lei nº 8.072/90, considerada por muitos autores, como a lei mais midiática produzida até hoje. Conforme salienta Zaffaroni Menos de dois anos após a Constituição Federal de 1988, o legislador ordinário, pressionado por uma arquitetada atuação dos meios de comunicação social, formulava a lei 8072/90. Um sentimento de pânico e de insegurança – muito mais produto de comunicação do que realidade – tinha tomado conta do meio social e


acarretava como conseqüências imediatas a dramatização da violência e sua politização. (ZAFFARONI, 2004, p.216).

Salienta-se que o sentimento de revolta da população e o medo de serem os próximos alvos fizeram com que a lei fosse alterada dois anos depois de ser promulgada a Constituição Federal. Em 1992, ocorreu a morte da atriz Daniella Perez. Neste crime o telejornalismo

se

satisfez

por

anos,

com

o

mais

vasto

conteúdo

sensacionalista. Em 1997, no julgamento de Guilherme de Pádua (acusado do crime), os noticiários informavam em suas manchetes que o acusado já estava condenado, antes mesmo da realização de seu júri. O que resta ser salientado, é que a escritora Glória Perez colheu milhares de assinaturas para encaminhar ao Congresso um projeto de lei por iniciativa popular para acrescer à Lei nº 8.072/90 (dos crimes hediondos) o homicídio qualificado. O referido pleito foi exitoso, traduzindo-se na Lei nº 8.930/94. Em 1998, com a substituição do produto ativo do anticoncepcional Microvlar por farinha, mulheres que tomavam tal medicamento acabaram por engravidar. Novamente, a Lei dos Crimes Hediondos foi alterada, incluindo-se o inciso VII – B ao artigo 1º da Lei 8.072/90, tornando hedionda a prática de falsificação de medicamentos. Ademais, tem-se como um dos mais polêmicos crimes, a morte do casal Richthofen, ocorrida em 31 de outubro de 2002, onde foi condenada a filha do casal, Suzane Richthofen, seu namorado e seu cunhado. Neste episódio, um dia após a prisão de todos os suspeitos, o Jornal Nacional, no dia 09 de novembro de 2002, noticiou de forma discreta. Porém nos próximos anos trataram o assunto de forma impulsiva, entrevistando suspeitos, familiares, tendo acesso aos autos do inquérito policial (sigiloso), fazendo crer a população de que crimes dessa natureza permeia o cotidiano social de maneira exacerbada. Errônea e precipitadamente, todos temiam ser mortos por seus filhos. Quando marcado o julgamento dos acusados, foi cogitado transmitir o julgamento ao vivo. Cabe lembrar, também, que a Lei nº 10.792/2003 foi resultado de trabalho jornalístico que clamava pelo isolamento de ―de Fernandinho BeiraMar‖. Tal Lei instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado em sede de Execução


Penal, permitindo, assim, que o preso provisório ou o condenado fique isolado por até um ano. Outro caso polêmico foi a morte dos adolescentes Felipe Silva Caffé e Liana Bei Friedenbach, ocorrida em 05 de novembro de 2003, que foram passar o final de semana em um sítio deserto, e acabaram sendo assassinados por um menor conhecido por ―Chapinha‖. Os corpos foram encontrados alguns dias depois em um matagal próximo ao acampamento. No dia 12 de novembro de 2003, o Jornal Nacional transmitiu um depoimento emocionante do pai da adolescente, intitulado ―Recado aos jovens‖: ―Chapinha‖ confessou o crime e logo em seguida foi solto por ser adolescente e não ter antecedentes criminais. Tal fato fez com que todos da população se colocassem no lugar do pai dos adolescentes e começaram as discussões acerca da diminuição da menoridade penal, pensando que esta seria a solução para a redução dos crimes praticados por adolescentes. Após acalmar as discussões, e os telejornais esquecerem o caso acima referido, outro crime veio à tona e fez novamente (re)começarem as discussões acerca da diminuição da maioridade penal. Dessa vez as notícias foram ainda mais incisivas tendo em conta que a vítima era uma criança de 6 anos que ficou presa ao cinto de segurança durante um assalto, sendo arrastada durante 10 minutos. A morte do menor João Hélio motivou os telejornais a fazer com que o legislativo se movimentasse para discutir a redução da maioridade penal, tendo em vista que um dos participantes do assalto era adolescente. Logo no dia seguinte, as discussões acerca da diminuição da maioridade penal já foi pauta de discussões no Congresso. Em 2008, outro caso criminal de grande repercussão na mídia televisiva foi o sequestro com cárcere privado de Eloá Cristina, onde seu ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves invadiu o domicílio da ex-namorada, mantendo esta e a amiga Nayara Rodrigues em cárcere privado por mais de 100 horas. Toda a mídia televisiva acompanhava de perto as tentativas de negociações feitas pela polícia. Para se ter a dimensão de uma cobertura jornalística desastrosa, o Programa a ―Tarde é Sua‖ (Rede Record) tiveram acesso ao número do celular do sequestrador, o entrevistando com


exclusividade durante o sequestro, prejudicando de forma significativa as negociações feitas pelo Grupo de Ações Táticas Especiais. Contudo, após a morte da adolescente e a prisão do seqüestrador, foi descoberto pela polícia que o pai de Eloá estava foragido e era acusado de quatro homicídios em Alagoas, entre eles o homicídio de sua ex-mulher, e acusado ainda de integrar um grupo de extermínio naquele estado. A partir dessas informações a mídia parou de transmitir o caso, não sendo mais comunicado nos telejornais acerca de julgamentos e decisões no processo em trâmite contra o sequestrador. Nota-se, portanto, que aos telejornais selecionam os fatos que querem dar notoriedade, independente do crime cometido ou do agente, normalmente selecionam os crimes ―inéditos‖ com maior sensacionalismo, para surgir o sentimento de insegurança na população, e assim começarem um novo protesto para que novas leis sejam criadas. Os telejornais pressionam, a população pressiona e os legisladores, da forma mais abrupta e inconsequente, constroem leis com o ilusório e falacioso objetivo de cessar o medo social, aguçando o ciclo vicioso que no qual se (des)constrói o direito penal simbólico.

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por objetivo analisar a influência midiática na expansão do direito penal, bem como na formação de opinião da população. Dessa forma, buscou-se demonstrar que os telejornais de referência moldam de forma significativa a intervenção do Estado no direito penal. Entende-se que através de matérias com enfoque na criminalidade violenta, os profissionais do telejornalismo garantem credibilidade na sociedade, se destacando pela seriedade e comprometimento com o direito de informar, e assim sustentam um alto índice de audiência. Com esta finalidade selecionam notícias e criam dramatizações para impressionar o público e para que se coloquem no lugar das vítimas desse delito, fazendo eclodir na sociedade uma sensação de insegurança e medo, que imagina que a qualquer momento estarão em um telejornal sendo vítimas de um delito semelhante.


Os telejornais se aproveitam do aumento da criminalidade violenta e da sensibilidade social para com os riscos que essa acarreta e induzem a sociedade a acreditar que serão as próximas vítimas. A população acaba se comovendo com as vítimas e assumem a dor que está sendo transmitida como se delas fossem e clamam por justiça, por mais leis e por penas mais severas. Dessa forma, os telejornais tiveram a percepção que a sociedade busca notícias que possam discutir assuntos da esfera pública e assim centralizaram suas notícias na criminalidade, uma vez que incentiva a discussão acerca da segurança se transformando num dos temas centrais dos debates políticos no país. O Jornal Nacional, por se tratar de um telejornal transmitido no horário nobre e por possuir maior abrangência em nosso território, analisou-se a seletividade das manchetes e condução dos fatos da maneira mais satisfatória para a audiência.

E dessa forma, moldam a esfera pública, através dos

clamores da sociedade diante de crimes bárbaros, e assim resultam na elaboração de leis para ocultar a sensação de insegurança. A mídia, principalmente a televisiva, não respeita limites imposto pelo Código de Ética do Jornalista, e tão pouco os princípios constitucionais. Violam direitos da personalidade e de honra, uma vez que a pessoa investigada tem seu nome ou sua imagem expostos através dos telejornais. Dessa forma, entram em confronto o direito constitucional de informar e o princípio da dignidade da pessoa humana do acusado. Destarte, a mídia se protege no direito de informação e na liberdade de comunicação e de imprensa violando direitos fundamentais do ser humano, causando na população um senso de insegurança e medo fazendo com que esta clame pelo crescimento do intervencionismo penal. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Washington. Licença para matar. Disponível em: <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=612IMQ004#> Acesso em 20 fev 2017. BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 08 mar. 2017. _____. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 8.ed.. São Paulo: Revan, 2002. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. GAMA, Mauro e GAMA, Claudia M. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. _____. Medo Líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2008. BRASIL. Código Penal. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.


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8 O INTERESSE DA MÍDIA NO PROTAGONISMO DO DIREITO PENAL ENTRE OS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA CRIMINAL

VICTOR LUIZ DE FREITAS SOUZA BARRETO

INTRODUÇÃO

Os altos índices de criminalidade se configuram como um dos grandes problemas do Brasil. Essa importante questão, que afeta toda a população, tem sido enfrentada precipuamente com o recrudescimento do Direito Penal, instrumento de política criminal a cargo do Estado que não tem conseguido reduzir os números da delinquência. A partir daí, questiona-se por que, mesmo não se alcançando resultados satisfatórios que possam justificá-lo, insiste-se no Direito Penal como principal instrumento de enfrentamento à criminalidade. Essa pergunta pode possuir diversas respostas, mas, no presente artigo, pretende-se averiguar se há alguma relação com o discurso produzido por programas jornalísticos policiais, que, em regra, a partir da análise feita por Romão (2013), clamam por leis mais severas e penas mais duras para aqueles que cometem delitos, sem qualquer exame mais profundo sobre o tema. Nesse contexto, torna-se importante a análise dos números de audiência, uma vez que são capazes de ajudar a explicar a manutenção desses jornalísticos no ar em função da margem de lucro que podem alcançar mediante o baixo custo de sua produção técnica. A partir de conceitos que circundam a política criminal e são fundamentais para uma análise consistente acerca da questão posta, a investigação acerca do interesse da mídia no protagonismo do direito penal possui uma grande relevância social, na medida em que pode colaborar para explicar as causas do ineficaz enfrentamento à delinquência na sociedade


brasileira e pode contribuir para evidenciar a premente necessidade de escolha de diferentes rumos para a política criminal brasileira. Por outro lado, ressalta-se que o formato dos programas policiais é cercado por diversos aspectos relevantes e desencadeia uma série de consequências que serão igualmente analisados, como o poder de influência da imprensa na formação da opinião da população; a pressão que esse fenômeno acarreta sobre os agentes políticos; a conseguinte produção de leis criminalizando condutas ou endurecendo penas já existentes; e a ineficácia dessas leis para efetivamente diminuir os números da delinquência.

I. DESVENDANDO A POLÍTICA CRIMINAL E SUAS RELAÇÕES O termo ―política criminal‖, atribuído ao jurista alemão Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach, foi tratado, durante muito tempo, como sinônimo de teoria e prática do direito penal, designando, conforme o referido autor, ―o conjunto dos procedimentos repressivos pelos quais o Estado reage contra o crime" (DELMAS-MARTY, 2004, p. 3). Entretanto, constata-se nas últimas décadas uma marcante dilatação da perspectiva da política criminal, ampliando sua atuação para além da repressão estatal ao crime e incluindo em seu âmago todo o conjunto de estratégias e procedimentos por meio dos quais a sociedade pode organizar suas respostas à criminalidade. E, embora o direito penal se encontre como protagonista entre os instrumentos desse enfrentamento, a política criminal compreende outras formas de controle social, sejam elas não penais, não repressivas e até mesmo não estatais (DELMAS-MARTY, 2004). O controle social, conforme Shecaira (2004), é ―o conjunto de mecanismos e sanções sociais que pretendem submeter o indivíduo aos modelos e normas comunitários‖ e a utilização desse conceito exemplifica que mesmo a política criminal não se confundindo com o direito penal ou com outras ciências criminais, mantém relação estreita com estas. Dessa maneira, Direito Penal, Criminologia e Política Criminal são considerados o tripé da ciência criminal. Shecaira (2004) aponta que, segundo Figueiredo Dias, foi mérito de Franz von Lizst ter criado entre os vários


pensamentos do crime uma relação que poderia ser denominada de modelo tripartido da "ciência conjunta" do direito penal, que teria a constituição de: Uma ciência conjunta, esta que compreenderia como ciências autônomas: a ciência estrita do direito penal, ou dogmática jurídicopenal, concebida, ao sabor do tempo como o conjunto dos princípios que subjazem ao ordenamento jurídico-penal e devem ser explicitados dogmática e sistematicamente; a criminologia, como ciência das causas do crime e da criminalidade; e a política criminal, como 'conjunto sistemático dos princípios fundados na investigação cientifica das causas do crime e dos efeitos da pena, segundo os quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio da pena e das instituições com esta relacionada (SHECAIRA, 2004, p. 35).

Sobre essa questão, Gomes e Cervini (1995) entendem que, na realidade, há uma relação de complementariedade entre todas as ciências criminais e, por isso, nada justifica que sejam estudadas em separado, devendo haver um intercâmbio total entre todas as ciências criminais, entre o jurídico-normativo e o empírico. Claus Roxin (2006), por sua vez, trabalha com a ideia de que o Direito Penal, para atender à sua finalidade de proteção subsidiária de bens jurídicos essenciais (vida, saúde, patrimônio e outros), deve ser estruturado sobre o tripé criminologia, política criminal e dogmática penal, ou seja, o conhecimento criminológico deve ser transformado em exigências político-criminais e estas em regras jurídicas. Sob essa diretriz, Delmas-Marty (2004), retoma e amplia a fórmula de Feuerbach para definir a política criminal como ―o conjunto dos procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal, tratando-a como teoria e prática das diferentes formas de controle social‖. Diante do cenário apresentado, Bittencourt (2010) assevera que o direito penal se apresenta como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes, tornando possível a convivência humana. Entretanto, Zaffaroni (1991, p. 41, apud BITENCOURT, 2010) acrescenta que a expressão direito penal designa distintamente o conjunto de leis penais e o sistema de interpretação dessas leis, isto é, o saber do direito penal. Assim, enquanto ciência, Molina (1992, apud SHECAIRA, 2004) aponta que o direito penal tem como objeto o estudo da norma, do direito positivo, preocupando-se com os preceitos legais e as


consequências do descumprimento dos preceitos normativos, o que a distingue dos outros pilares das ciências criminais. Por sua vez, a criminologia pode ser compreendida como: [...] uma ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime – contemplado este como problema individual e como problema social, assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinquente (MOLINA, 1992, p. 33 apud SHECAIRA, 2004, p. 40).

Shecaira (2004) ressalta que direito penal e criminologia apresentam definições distintas para o crime. Enquanto para o direito penal o crime é, sob o ponto de vista formal, uma ação típica, ilícita e culpável, e, sob o ponto de vista material, a violação de um bem jurídico penalmente protegido; para a criminologia esse conceito não basta, uma vez que o crime deve ser encarado como um fenômeno comunitário e um problema social. A criminologia se preocupa em buscar os critérios ensejadores da cristalização de uma conduta criminosa e, assim, ocupa-se do estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle social do delito. Além disso, ela pretende conhecer a realidade para explicá-la e transformá-la, buscando obter uma

informação

direta

do

acontecimento

delitivo,

sem

quaisquer

intermediações, enquanto o direito penal limita a realidade criminal, mediante os princípios da fragmentariedade e seletividade, bem como valora, ordena e orienta a realidade com o apoio de uma série de critérios axiológicos, preocupando-se, assim, com o crime apenas enquanto fato descrito na norma (SHECAIRA, 2004). No que lhe concerne, a política criminal, um dos elementos do tripé essencial das ciências criminais, pode ser entendida como atividade da sociedade (sobretudo do Estado) ou como atividade científica. Enquanto atividade científica, para Souza (2001, apud SILVA, 2007), a Política Criminal possui os seguintes propósitos: a) estudar a determinação dos fins que pretendem ser alcançados mediante a utilização do Direito Penal, assim como os princípios nos quais deve submeter-se o direito positivo; b) sistematizar, em função dos fins e princípios pré-estabelecidos, os meios de


que se dispõe para o controle do comportamento desviante; assim como as linhas gerais de sua utilização; c) examinar as distintas fases do sistema penal em função dos critérios referidos, anteriormente é parte da própria política estatal. Por outro lado, como atividade da sociedade, predominantemente exercida pelo Estado, a Política Criminal se apresenta como forma escolhida para estabelecer as prioridades no enfrentamento à criminalidade. Sobre isso, ressalta-se que: Por meio de medidas de caráter repressivo ou orientador, o Estado define o seu entendimento a respeito da finalidade da pena, do tratamento do delinquente e da repressão e prevenção do crime. A Política Criminal exerce o controle social, cuja orientação emana dos valores e interesses prioritários do Estado (SILVA, 2007, p. 21).

A política criminal elege as estratégias de enfrentamento da sociedade à delinquência, fazendo uso do conhecimento produzido por outras ciências criminais e das diversas formas de controle social. Nesse contexto, Shecaira (2004) indica que a criminologia fornece o substrato empírico do sistema, seu fundamento científico; enquanto a política criminal, por seu turno, incumbe-se de transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas assumíveis pelo legislador e pelos poderes públicos; e, por fim, o direito penal deve se encarregar de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal. Atualmente, contesta-se bastante a eficácia e a legitimidade da atuação do direito penal como ferramenta de controle social. Baratta (2000, apud HAUSER, 2010) afirma que, entre todos os instrumentos de política criminal, o Direito Penal é o menos adequado, em razão da violência estrutural que lhe é inerente. Contudo, vem sendo o mecanismo mais largamente utilizado na tentativa de frear o crescimento exponencial da criminalidade. De fato, é notório que a estratégia de reação ao crime no Brasil, a partir do protagonismo do direito penal, não vem alcançando bons resultados, tendo em vista que a regra tem sido o crescimento dos índices de criminalidade ou a sua estabilização em diversos tipos de delitos11, fenômeno que vem sendo enfrentado correntemente com inflação legislativa - mediante pontuais edições 11

Conforme análise do Anuário de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública dos anos 2010, 2012, 2014 e 2016, com dados de 2008 a 2015.


de leis, criminalizando condutas ou aumentando penas –, recrudescimento da atuação do Poder Judiciário em relação às prisões provisórias e até com a relativização de direitos fundamentais, como ocorreu com o princípio da presunção de inocência nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade n. 43 e n. 44.

II. O INTERESSE DA MÍDIA NO PROTAGONISMO DO DIREITO PENAL COMO INSTRUMENTO DE POLÍTICA CRIMINAL

Enquanto atividade estatal, a política criminal se insere entre as políticas públicas (política de saúde, política de educação, política sanitária etc) e reflete o posicionamento dos poderes dominantes na sociedade. Nesse contexto, percebe-se nos dias atuais um acentuado protagonismo do direito penal como meio de enfrentamento à criminalidade, eleito pelos vários agentes que influenciam na construção da política criminal. Essa posição de destaque se deve bastante à influência dos veículos de comunicação, que se utilizam cada vez mais da exposição da violência para alcançar bons índices de audiência, seu principal meio de obtenção de lucro. Com esse fim, muitos canais de mídia exemplificam o que Vargas Llosa (2013, p. 18) denomina como civilização do espetáculo: ―um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento, que tem como consequência, no campo da informação, a proliferação do jornalismo irresponsável da bisbilhotice e do escândalo‖. Isto é, vale tudo pela audiência e pelo lucro. Com programas policiais clamando por medidas imediatistas contra a violência em quase todos os canais e o enorme espaço dedicado à cobertura de crimes, propagando o sentimento de medo e insegurança, os meios de comunicação exercem forte pressão nos agentes políticos. Preocupados com a opinião pública diante do alvoroço impulsionado pela mídia, essas autoridades encontram no endurecimento da repressão penal – com penas abstratamente mais longas, criminalização de novas condutas e massificação das prisões provisórias, como por exemplo – a resposta rápida que necessitam. Conforme Romão (2013), os altos índices de audiência conquistados pelas várias versões de programas policias espalhados pela grade de programação da televisão


brasileira não deixam dúvidas de sua importância na formação da opinião pública sobre o assunto. Dessa maneira, diante da ausência de vontade política ou da covardia de boa parte dos agentes políticos para enfrentar os problemas estruturais que levam ao crime, o endurecimento da repressão, medida mais fácil de ser executada rapidamente, dá a impressão de que algo está sendo feito para reagir à violência e alivia momentaneamente aqueles mais ávidos por vingança. Contudo, esse tipo de providência apenas procrastina a execução de medidas verdadeiramente capazes de encarar a delinquência. Não é novidade de nossa época o grande poder influenciador da imprensa na sociedade e a utilização da mídia no convencimento da população aos interesses do poder dominante. Nos Estados Unidos, o filme ―O nascimento de uma nação‖, de 1915 – lançado 50 anos após a promulgação da 13ª Emenda à Constituição americana, que aboliu a escravidão–, retrata um homem negro estuprando uma mulher e sendo condenado à morte pela Ku Klux Klan, o que incutiu na população a ligação entre pessoas negras e práticas criminosas, ocasionando o fortalecimento daquela organização, defensora da supremacia dos brancos. Como efeito, os Estados Unidos, historicamente, têm prendido mais pessoas negras do que brancas, possuindo uma taxa de negros encarcerados 5,1 vezes maior que a de brancos, com os negros representando 35% da população presa e os brancos somando 38%, enquanto a porcentagem de negros na população total dos Estados Unidos é de apenas 13% e a de brancos chega a 62%, conforme dados apontados pelo The Sentencing Project (2016). No Brasil, tem-se o exemplo da legitimação de boa parte da imprensa ao golpe militar de 1964, o que faz com que muitos, até hoje, defendam o que ocorreu nesse período da história brasileira. Vários veículos de imprensa, como os jornais O Globo, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Correio Braziliense, Estado de São Paulo, O Estado de Minas, O Dia, entre outros, como afirma Clarissa Pont (2009), trataram a abrupta tomada do poder pelas Forças Armadas no dia 1º de abril de 1964 como ―revolução‖, ―ressurgimento da democracia‖, ―paz alcançada‖ e instalação da ―verdadeira legalidade‖. Anos depois, muitos desses jornais publicaram editoriais reconhecendo o erro em ter apoiado o regime militar, como O Globo (2013) e a Folha de São Paulo (2014).


A exploração de delitos e dos índices de criminalidade dá audiência, o que mantém inúmeros programas policiais no ar em quase todos os canais televisivos, assim como diversas páginas em jornais impressos, em revistas e na internet que exploram a espetacularização do crime para obter lucro. Além disso, para alcançar os objetivos desejados com a exploração da violência não se faz necessário investir em superproduções como as imprescindíveis para a realização de novelas ou a transmissão de eventos esportivos, muitas vezes bastando um apresentador carismático e um repórter irreverente para que o objetivo seja alcançado. Como aponta Romão (2013), alguns dos programas televisivos mais característicos que seguem essa linha são o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes; o Cidade Alerta e o Balanço Geral da Rede Record; e os extintos Linha Direta da Rede Globo; e Aqui Agora do SBT, mais famoso percussor desse segmento jornalístico. O autor analisou os três principais programas policiais no ar atualmente, que possuem também versões locais nas emissoras afiliadas em diversos

estados, apontando suas características marcantes: o Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes; o Cidade Alerta e o Balanço Geral, da Rede Record. [Sobre o Brasil Urgente] Em termos de conteúdo, o programa discute, basicamente, uma dezena de notícias, todas sempre muito pesadas e violentas. Datena e sua equipe exploram cada notícia à exaustão, narrando todos os detalhes hediondos em jogo e repetindo-os incansavelmente. São apresentados, principalmente, acontecimentos ocorridos na cidade de São Paulo e em cidades paulistas, mas, também, há a presença de matérias de outros estados. As matérias apresentadas, a exemplo da postura do apresentador, são sempre narradas pelos repórteres em tom de reprovação, buscando mostrar os aspectos mais terríveis do acontecido. As reportagens são extremamente repetitivas, sendo comum que pelo menos parte de uma mesma matéria vá ao ar duas ou mais vezes em uma mesma edição do programa. [...] [Sobre o Cidade Alerta] O programa tem uma estrutura muito próxima daquilo que apresentamos sobre o Brasil Urgente. Marcelo Rezende também adota a postura do apresentador judicioso e enfático, ao mesmo tempo que assume uma postura rígida, vestido sempre de maneira sóbria [...] os temas das reportagens são sempre os mesmos: assassinatos, roubos, sequestros, batidas policiais etc. [...] Já o Balanço Geral tem uma estrutura mais ambígua, ora parece a de um programa policial tal qual os anteriores, ora parece um programa de auditório em que curiosidades são apresentadas. O programa é apresentado por Geraldo Luís e tem duas edições diárias, a primeira no horário das 06:15 às 07:25 horas e a segunda no horário das


12:00 às 14:45 horas, ambas transmitidas de segunda-feira à sextafeira. Provavelmente devido ao público que liga a televisão nesses horários, o programa é mais ameno que os anteriores. O apresentador não é tão severo em seus julgamentos, e as notícias apresentadas são menos impactantes, de modo que parte considerável do programa é preenchida com curiosidades do tipo: Homem cria vaca dentro de casa. No entanto, embora o programa apresente os traços típicos do Jornalismo Policial de forma menos intensa, ainda assim ele contempla todos os traços característicos do gênero: o apresentador com postura sóbria e judiciosa (mesmo que mais descontraído que Datena ou Marcelo Rezende), as abundantes notícias sobre crimes e desastres, a cobertura ao vivo pelo helicóptero de acidentes e perseguições policiais, etc. O estúdio é o mesmo do Cidade Alerta, com a única diferença de que, com frequência, a ele são acrescidos elementos lúdicos (ROMÃO, 2013, p. 37).

Romão (2013) assevera que o discurso reproduzido pelos programas policiais parece estar constituído por uma visão de mundo que enxerga nossa realidade social como extremamente perigosa, que tem como causa a falta de caráter e a má índole de algumas pessoas que escolhem o caminho do crime, levando-nos à necessidade de proteção por meio de leis mais rigorosas, além de fiscalização e policiamento mais intensivos. No entanto, o autor observa que àqueles que fazem eco a esse discurso e a essa visão de mundo, apenas isso não basta, pois para eles a sociedade precisa também ―violentar aqueles que a violentaram anteriormente‖ (p. 44). O autor ainda menciona que sob essa ótica, são muito frequentes nesses programas as críticas ao sistema legal, que seria formado por leis fracas, levando os apresentadores a bradar incansavelmente a necessidade de fortalecimento das leis e do aparato policial para controlar essa situação. Toda essa abordagem sobre a violência deságua no constante pleito midiático por soluções urgentes para conter a escalada da criminalidade, sendo reverberado pela população e a solução encontrada pelas autoridades ante a pressão à qual são submetidas tem sido quase sempre a que se apresenta mais facilmente, como já destacado, o endurecimento do sistema penal, fenômeno denominado doutrinariamente de direito penal de emergência: O legislador, levado pela ―urgência‖ (pressão da opinião pública e da mídia) assim como, às vezes, pelo ineditismo das novas situações, diante dos elevados índices de insegurança pública, não encontra (em regra tampouco busca) outra resposta que não seja a emergencial, a conjuntural (―reação emocional legislativa‖), que tende a ser (prioritariamente) de natureza ―penal‖ e ―repressiva‖, visando à


obtenção de benefícios eleitorais (assim como, eventualmente, algum efeito simbólico imediato, de suavização da ira da população). Invocase o direito penal como instrumento para a solução de problemas, mas se sabe que seu uso recorrente não resolve (praticamente) nada (GOMES, 2014, s.p.)

Como afirmou Gomes (2014), tais leis penais muitas vezes são criadas apenas com o intuito de suavizar a ira da população, sabendo-se que nada será resolvido e mantendo o status quo desejado por muitos dos agentes políticos, constituindo, a partir da definição de poder simbólico de Bourdieu (1989)12, um direito penal simbólico, produzido por meio de um ―discurso dissimulado que submete sem precisar da força, que obtém a cumplicidade de quem a ele se sujeita, que esconde sua arbitrariedade para conseguir manipular pela ignorância‖ (IBCCRIM, 2010, s.p). Discurso este construído com grande participação da mídia, sobretudo por meio dos programas policiais. A fórmula básica dos jornalísticos policiais tem dado certo. Tomando como exemplo os dados do Ibope para os períodos compreendidos entre 23 e 29/01/2017, 30/01/2017 e 05/02/2017, 06 e 12/02/2017 e 13 e 19/02/2017 (escolhidos aleatoriamente) na Grande São Paulo, o Brasil Urgente sempre aparece entre os cinco programas de maior audiência da TV Bandeirantes, em algumas semanas com duas ou até mesmo suas três edições nessa lista (Brasil Urgente 1, Brasil Urgente 2 e Brasil Urgente local). A Rede TV também conta com um programa policial entre os seus cinco mais assistidos em todo o período mencionado, o Operação de Risco, espécie de reality show exibida aos sábados que acompanha diversos tipos de operações policiais. No mesmo período, nas semanas de 23 a 29/01/2017 e de 30/01/2017 a 05/02/2017, o Brasil Urgente esteve entre os cinco programas mais assistidos da TV Bandeirantes na região metropolitana do Rio de Janeiro. Excluindo-se os fins de semana, quando mais pessoas assistem TV, é possível perceber que os jornalísticos policiais ganham ainda mais força. Ao tomar como referência o ano de 2017, foram selecionados aleatoriamente as datas 26/01, 01/02, 08/02, 16/02, 20/02, 22/02, 02/03, 06/03, 07/03 e 08/03 e 12

Segundo Bourdieu, o poder simbólico é um poder de construção da realidade que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica) graças ao efeito específico de mobilização e que só se exerce se for reconhecido, ou seja, ignorado como arbitrário. Para o autor, ―o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.‖


constatou-se que na Grande São Paulo a Bandeirantes teve o Brasil Urgente sempre entre os dois programas com melhor audiência diária do canal, ficando em primeiro lugar nos dias 01/02 e 08/03; enquanto a Rede Record esteve com o Cidade Alerta e o Balanço Geral 2ª edição sempre figurando entre os seis programas de maior audiência da programação da emissora em todas as datas mencionadas (IBOPE, 2017). Essa conjuntura parece se repetir por todo o país, sobretudo com programas policiais locais que marcam o horário do almoço. Na Grande Recife/PE, os jornalísticos policiais disputam a vice-liderança dessa faixa. O primeiro lugar costumeiramente fica com a Rede Globo Nordeste, exibindo programas esportivos e jornalísticos em geral. No entanto, o ―Por Dentro‖ da TV Jornal/SBT, o ―Balanço Geral PE‖ da TV Clube/Record e o ―Ronda Geral‖, da TV Tribuna (afiliada da Bandeirantes) disputam os lugares subsequentes. Além disso, ao eleger datas escolhidas aleatoriamente (05/01, 23/02 e 02/03, todas de 2017), verificou-se o bom desempenho dos mencionados jornalísticos, sempre com o ―Por Dentro‖ à frente do ―Balanço Geral PE‖ e do ―Ronda Geral‖, nessa ordem (IBOPE, 2017). Em João Pessoa/PB, o jornalístico policial Correio Verdade não só lidera os números do horário do almoço, como também de toda a programação local da TV Correio (afiliada da Record). O apresentador do programa, Samuka Duarte, possui o estilo carismático e indignado com a violência que atrai os telespectadores e marca esse gênero jornalístico, reverberando no ar muitas de suas convicções pessoais, conforme se constatou em conversas pessoais, nas quais afirmou a necessidade de leis mais duras e de mais investimento em educação; criticou os direitos humanos, os benefícios para os criminosos e a falta de indenização do Estado para as vítimas; e mencionou que o país precisa de um presidente mais enérgico para enfrentar a criminalidade, ―como o das Filipinas‖. Assim, o apresentador retrata um ponto fundamental para que um programa policial alcance melhores resultados que outros no mesmo formato: a habilidade do apresentador para prover entretenimento a partir das notícias, uma necessidade da ―civilização do espetáculo‖. O Correio Verdade é um grande exemplo do lucro que os jornalísticos policiais podem alcançar para suas emissoras. Conforme informações prestadas pela TV Correio, o programa utiliza o mesmo cenário que outros três


e a mesma equipe jornalística e de produção que diversos outros, o que diminui bastante seu custo em comparação a programas que exigem estrutura própria, como novelas e transmissões esportivas; é o líder do horário e da programação local da TV Correio; e é o mais lucrativo produto da casa, com valores comerciais no mesmo patamar que os do horário nobre. Pode-se mencionar, ainda, que em Curitiba/PR e Porto Alegre/RS os jornalísticos policiais disputam os primeiros lugares do horário do almoço. Na capital do Rio Grande do Sul, o Balanço Geral RS – com o mesmo formato da atração nacional – tem a melhor média de audiência da programação local da Record TV Porto Alegre – RS1 e entre todas as atrações, incluindo as nacionais, perde apenas para uma novela transmitida no horário nobre (IBOPE, 2017). Por fim, verificou-se que, em Manaus/AM, a TV A Crítica (afiliada da Record) conseguiu ficar no topo da audiência com a exploração do massacre ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) que terminou com 56 mortos no início de 2017, o que motivou inclusive anúncios da emissora comemorando a liderança na cobertura da rebelião Seguindo essa linha, a emissora manauara possui um jornalístico policial como o seu programa de maior audiência, o ―Alô Amazonas‖, que supera até mesmo as atrações nacionais exibidas na grade do canal (GFK, 2017) 13.

III. A INEFICIÊNCIA DO DIREITO PENAL COMO PRINCIPAL INSTRUMENTO DE ENFRENTAMENTO À CRIMINALIDADE

Como visto no tópico anterior, a impressa possui um grande poder influenciador. São inúmeros os casos de leis criadas ou penas agravadas logo após a ocorrência de um crime que causou comoção social e foi alvo de intensa cobertura pela mídia. Como grande exemplo, tem-se a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8072/90), após o sequestro dos empresários 13

Não se fez o registro de audiência de programas policiais em outras capitais em virtude da dificuldade de encontrar as informações exigidas pelos institutos de pesquisa para validar os dados até a data de fechamento do artigo. Entretanto, mediante pesquisa na internet, é facilmente possível encontrar diversas notícias evidenciando que em todas as regiões do país os jornalísticos policiais são responsáveis por bons números para suas emissoras, com dados de audiência atribuídos a institutos de pesquisa (embora sem todas as informações necessárias para atestar sua veracidade). Em futuras atualizações deste trabalho, espera-se inserir dados de mais estados.


Abílio Diniz (no ano de 1989) e Roberto Medina (em 1990). A referida lei enumera crimes não passíveis de anistia, graça, indulto e fiança, além de determinar que o cumprimento da pena inicie em regime fechado. Abílio Diniz, então dono do Grupo Pão de Açúcar, foi sequestrado na capital paulista logo após o primeiro turno das eleições presidenciais de 1989, que levaram ao segundo turno Luís Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello. O empresário foi libertado na véspera do segundo turno, após seis dias do sequestro. Já Roberto Medina, um dos maiores empresários do ramo de entretenimento do país, criador do festival musical Rock in Rio, foi sequestrado no Rio de Janeiro. O sequestro durou 16 dias e ele foi libertado após a família pagar resgate no valor de dois milhões e meio de dólares. Esse caso foi fundamental, pois após 15 dias da liberação do empresário, a Lei dos Crimes Hediondos já estava aprovada no Congresso Nacional. Além de sua criação ter se dado após casos amplamente divulgados pela imprensa e que chocaram a sociedade, a Lei nº 8.072/90 foi endurecida diversas vezes ao longo do tempo sob a mesma influência, a exemplo das alterações realizadas depois do homicídio da atriz Daniela Perez (1992), que culminou na inclusão do homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos; das chacinas da Candelária (23 de julho de 1993) e do Vigário Geral (29 de agosto do mesmo ano), que causaram a inclusão dos homicídios praticados em atividades típicas de grupo de extermínio; do caso dos remédios falsificados ou adulterados, em 1998, que tornou hediondos os crimes de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais; e da morte do menino João Hélio Fernandes, em um roubo de carro em que a vítima foi arrastada pelos assaltantes, em 2007, que levou ao endurecimento dos critérios para a progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos. Mais um conjunto de fatos que originou a criação de uma lei penal se deu com a série de rebeliões no estado de São Paulo no início da primeira década deste século, que envolveu quatro cadeias públicas sob a responsabilidade da Secretaria da Segurança Pública do Estado e vinte e cinco unidades prisionais, além da rebelião no Presídio Bangu I, liderada por Fernandinho Beira-Mar, bem como o assassinato de dois juízes das varas de


execuções criminais de São Paulo e Vitória, que teriam ocorrido a mando do referido traficante. Os fatos mencionados provocaram o surgimento de diversas medidas restritivas, incluindo a Lei nº 10.792/2003, que instituiu o denominado Regime Disciplinar Diferenciado. No famoso RDD, que tem duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada, o preso é recolhido em cela individual e tem direito a visitas semanais de duas pessoas, com duração de duas horas, e a sair da cela por 2 horas por dia para banho de sol. Tal regime, bastante criticado por entidades e defensores dos direitos humanos, é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4162, proposta no Supremo Tribunal Federal pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Outra lei penal promulgada em seguida a crimes que causaram revolta na população depois da enorme atenção dada pela imprensa foi a Lei da Tortura (Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997), criada depois da divulgação de um vídeo que mostrava policiais militares extorquindo dinheiro, humilhando e espancando inocentes na Favela Naval, em Diadema, São Paulo, sendo que um deles foi assassinado. A nova lei transformou a tortura em crime punível com até 21 anos de prisão. Luiz Flávio Gomes (2014) enumera ainda outros acontecimentos que foram explorados midiaticamente e levaram à criação de novas leis ou ao endurecimento da legislação existente: (...) em novembro de 2003 a estudante Liana Friedenbach e seu namorado Felipe Caffé foram brutalmente assassinados por um grupo de criminosos, sendo que o chefe da quadrilha era um menor (―Champinha‖). O Congresso Nacional se mobilizou rapidamente, mas até hoje não aprovou nenhum projeto para a redução da maioridade penal; (...) em 2008, para tentar coibir a expansão das milícias no Rio de Janeiro, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que altera vários dispositivos do Código Penal, sem nenhuma chance de efeito prático; (...) ainda em 2008, depois da absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Congresso Nacional aprovou o fim do protesto por novo júri; (...) no final de 2009 houve aquela invasão e vandalismo da torcida do Coritiba. A violência foi explorada midiática e hiper dramaticamente. Em julho de 2010 o legislador aprovou a Lei 12.299/2010, ―novo estatuto do torcedor‖ (que constitui um festival de repetições de leis já existentes, incriminações desproporcionais etc.). (GOMES, 2014, s.p).


O grande problema é que apesar das respostas rápidas das autoridades a esses delitos, os resultados obtidos têm sido reiteradamente insatisfatórios. Nesse cenário, Romão (2013) demonstra o papel exercido pela mídia com seus programas policiais que não promovem qualquer discussão profunda acerca das reações da sociedade à criminalidade, limitando-se a repetir o senso comum que ajudaram a construir e continuam a reproduzir: Aqui se revela também o caráter de engodo que todo produto da indústria cultural e todo ticket ideológico carrega consigo: a solução por eles oferecida não resolve o problema que estava posto desde o início. Nem a violência, nem nenhuma outra das frustrações sociais são resolvidas pelo discurso reiteradamente apresentado pelo Jornalismo Policial. A própria violência que os programas infligem sobre os telespectadores pode assim perseverar, pois iludido por essa ideologia segundo a qual todo o mal que lhe atinge tem sua origem em determinado grupo social, o telespectador não consegue perceber os verdadeiros motivos de seu mal-estar. [...] Uma característica central dos programas é a inexistência de uma discussão mais aprofundada ou mesmo a contextualização de seu principal objeto, a violência. Dessa forma, a violência ali apresentada acaba por se consolidar no imaginário popular como a totalidade da violência real, ou a única forma da violência. A ideologia presente nos programas, portanto, não nega a realidade, mas ao se restringir a alguns de seus aspectos, encobre outros. O crime comum vira o grande mal que nos assola, em detrimento de todos os outros problemas sociais e políticos que o acompanham. (ROMÃO, 2013, p. 148).

Assim, num efeito contrário ao pretendido pela população, mas explicado pela ausência de uma análise profunda a respeito das medidas que estavam sendo tomadas pelos agentes políticos, a quantidade de ocorrência dos crimes considerados hediondos, por exemplo, aumentou bastante desde a promulgação da Lei nº 8.072/1990. Uma pesquisa do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD, 2005), a pedido do Ministério da Justiça, revelou que nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo (que possuíam série histórica à época da pesquisa, que analisou dados entre 1984 e 2003) não houve redução dos crimes a partir de 1990, pelo contrário, a maioria deles aumentou. Em 2010, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, apresentou na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados um relatório no qual demonstrou que entre os anos de 2005 e 2009


o número de presos por crimes hediondos cresceu 145% (AGENCIA BRASIL, 2010). Não é diferente o que ocorre com a quantidade de crimes de tortura praticados, que sofrem bastante com as cifras negras14 e têm sua realidade escancarada apenas por meio de organizações como a Pastoral Carcerária e a Conectas Direitos Humanos. A primeira revelou em seu Relatório sobre Tortura, o quanto a prática é comum em todo o país, ocorrendo no interior de prédios do poder público, como em delegacias ou carceragens e pela polícia civil; nas ruas, em residências ou estabelecimentos privados pela Polícia Militar, para obter informação e castigar; assim como em estabelecimentos penitenciários,

que

geralmente

ocorrem

após

conflitos

com

agentes

penitenciários. O Relatório atesta a complacência das autoridades em relação à prática de tortura: [...] as autoridades competentes para investigar, processar e condenar os torturadores – juízes, delegados de polícia e promotores de justiça – geralmente têm pouca ou quase nenhuma motivação para fazer cumprir-se a lei e as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro de debelar e prevenir a tortura. As denúncias dos presos raramente são levadas a sério. Na pesquisa de Maria Gorete [Marques de Jesus, que produziu dissertação de mestrado acerca do tema] que analisou 51 processos criminais de tortura, entre 2000 e 2004, que incluíam um total de 203 réus, sendo que 181 deles eram agentes do Estado, 127 foram absolvidos, 33 foram condenados por crime de tortura e 21 condenados por outro crime (lesão corporal ou maus tratos), o que implica dizer que apenas 18% foram condenados (PASTORAL CARCERÁRIA, 2010, p. 7).

No mesmo sentido, a Conectas demonstrou em estudo o que denominou de ―blindagem à tortura‖, observando centenas de audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, nos quais identificou 393 casos de pessoas presas com indícios de terem sido vítimas de tortura ou maustratos: Em cerca de 80% dos casos em que houve relato do preso denunciando violência durante a audiência, o Ministério Público constitucionalmente obrigado a exercer o controle da atividade policial - não fez qualquer tipo de pergunta para apurar os fatos. Quando fez 14

―A cifra negra representa a diferença entre aparência (conhecimento oficial) e a realidade (volume total) da criminalidade convencional, constituída por fatos criminosos não identificados, não denunciados ou não investigados (por desinteresse da polícia, nos crimes sem vítima, ou por interesse da polícia, sobre pressão do poder econômico e político), além de limitações técnicas e materiais dos órgãos de controle social.‖ (SANTOS, 2008).


algum questionamento nesse sentido, em mais da metade das vezes foi para deslegitimar o testemunho. No caso dos juízes, em um terço das vezes eles não questionaram os custodiados sobre a ocorrência de violência, violando expressamente recomendação 49/2014 do CNJ. Nas ocasiões em que os magistrados decidiram pedir apurações, o estudo encontrou falhas procedimentais: muitos relatos de violência, incluindo as informações sobre as vítimas, foram encaminhados para os batalhões dos policiais suspeitos, podendo colocar em risco a vida das pessoas que fizeram as denúncias. Dos quase 400 casos identificados na pesquisa, apenas um resultou em abertura de inquérito (KWEITEL; CUSTÓDIO, 2017, s.p).

Até mesmo o Secretariado da Organização das Nações Unidas (2016) apresentou, em 2016, Relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU denunciando a frequência da prática de tortura no Brasil, que é subnotificada e ocorre preponderantemente no momento da detenção e dentro dos presídios, tendo se tornado algo ―natural‖ para os detentos. A tortura e os maus-tratos sofridos pelas pessoas presas, antes e depois de entrarem no presídio, estão intimamente ligados às rebeliões ocorridas em tais estabelecimentos. Assim, os motins em unidades prisionais não deixaram de ocorrer em razão da Lei nº 10.792/2003, criada na esteira de tantas outras leis sob a égide do Direito Penal de Emergência e do Direito Penal Simbólico. Para atestar o insucesso da medida em alcançar seus objetivos, basta citar as rebeliões ocorridas nos primeiros quinze dias de 2017 em diversas unidades prisionais do país, nas quais mais de 130 pessoas foram assassinadas, escancarando o cenário caótico do nosso sistema penitenciário (FOLHA DE SÃO PAULO, 2017).

Conclusão

O enfrentamento à criminalidade no Brasil clama por novas estratégias, que se distanciem do fracassado protagonismo do direito penal entre os instrumentos

de

política

criminal.

A

insistência

nas

respostas

preponderantemente penais e seu repetido insucesso demonstram a premente necessidade de ruptura com esse modelo, que posterga a implementação de medidas potencialmente eficazes para conter a delinquência. Contudo, a análise desempenhada no trabalho sugere que essa necessária mudança de paradigma esbarra em interesses para os quais a


correção nos rumos da política criminal não é conveniente, uma vez que a atual rota seguida por ela é responsável pela produção de bastante lucro, como os obtidos pelos veículos de mídia com seus jornalísticos policiais, não fazendo sentido, para estes, qualquer alteração que possa ameaçar seus rendimentos. Enquanto isso, a maioria da população, convencida pelo discurso que adentra suas casas diariamente por meio de diversos canais de comunicação, reverbera o clamor pelas falsas soluções oferecidas pelo endurecimento do direito penal e reforça a pressão para que as autoridades continuem a atuar de maneira simbólica e emergencial contra a criminalidade, mediante a elaboração de leis criadas em decorrência desse ciclo vicioso e que historicamente não produzem resultados satisfatórios. Dessa maneira, torna-se necessária a continuidade e o fortalecimento da produção científica que se destine a evidenciar o fracasso da atual política criminal brasileira, bem como o trabalho para que estes conteúdos alcancem toda a população, desmistificando discursos que não possuem respaldo científico e que, voltados a interesses privados de alguns grupos, evitam que soluções potencialmente eficazes sejam empreendidas contra a delinquência e, consequentemente, melhorem a vida de toda a sociedade.

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Dados confirmados pelo Ibope, via consulta por e-mail, em 06 de abr. 2017.


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9 A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

RONALDO PINHEIRO RODRIGUES ALEXANDRE CÉSAR DOS SANTOS

INTRODUÇÃO

A aplicação do princípio da insignificância tem se tornado um mecanismo relevante de política criminal. Em que pese não esteja positivado, é pacífico o seu reconhecimento do pelos tribunais. No presente trabalho, objetiva-se analisar, através do método hipotético-dedutivo, a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, ex oficio, na fase pré-processual. A aplicação do referido princípio, se daria com fundamento de que a autoridade policial, como operador do direito, pode filtrar condutas penalmente irrelevantes para o direito penal, com base, inicialmente de princípios de política criminal (exclusiva proteção de bens jurídicos, intervenção mínima, da proporcionalidade, falta de lesividade ou ofensividade ao bem jurídico tutelado na norma penal, etc.). Com efeito, o princípio da insignificância exerce função hermenêutica para afastar do âmbito do direito penal a conduta tipicamente formal. O referido princípio está intimamente relacionado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito e, desse modo, ―se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo‖. (GAMA e GOMES, p.136). Segundo o delegado de polícia Roger Spode Brutti,


As autoridades policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso. (BRUTTI, 2006).

Assim, é da essencial da atividade da autoridade policial, na análise do caso concreto, verificar a tipicidade. Porém, não pode o Delegado se limitar a aplicar letra fria da lei e fazer a subsunção ao caso concreto. É preciso verificar o grau de lesividade e ofensividade ao bem jurídico, com base em decisões dos tribunais superiores para fundamenta a decisão e retirar da esfera penal condutas atípicas materialmente.

I. UMA ANÁLISE SOBRE O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O princípio da insignificância tem sua origem no Direito Romano, através do brocado latino minima non curat praetor, em que o pretor deixava de analisar casos que considerasse ínfimos, de bagatela (REBELO, 2000, p. 31). Esse princípio foi reintroduzido no ordenamento jurídico através do jurista alemão Claus Roxin, no ano de 1964, o qual levou em consideração o referido brocado latino como forma de validez geral para determinação do injusto (SANGUINÉ, 1990, p.39). A análise do bem jurídico mostrava-se de forma imperiosa como forma de análise da existência ou inexistência de um injusto o qual poderia ser tutelado. A necessidade da intervenção do direito penal seria esvaziada mediante a constatação de que a lesão ao bem jurídico fosse insignificante. O princípio bagatelar teve no ordenamento jurídico brasileiro uma importante conceituação através de Vico Mañas, o qual considerou-o como um importante mecanismo de política-criminal. Condutas que s apresentem de formas irrelevantes não deveriam ser protegidas pelo direito penal: O princípio da insignificância, portanto, pode ser definido como instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do direito penal do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem qualquer tipo de macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição políticacriminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente


relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal (MAÑAS, 1994, p. 81).

O reconhecimento do princípio da insignificância, em que pese, resulte no afastamento da tutela pelo direito penal, não impede que outros ramos do direito atuem, o que ia ocorrer, em realidade é uma atuação do direito, de forma a respeitar os direitos e garantias fundamentais do indivíduo. No tocante à natureza jurídico-penal do princípio da insignificância, há várias correntes de justificação, dentre as quais, destacamos três: a primeira afirma que se trata de um excludente de tipicidade, há ainda a que o considera um excludente de antijuridicidade, por fim, a que sustenta se trata de uma excludente de culpabilidade. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, tipicidade consiste na ―conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei‖ (BITENCOURT, 2007, p. 259). A tipicidade compõe-se da tipicidade formal e da tipicidade material ou normativa. No tocante à tipicidade formal, para que haja deverá ser verificada a existência de uma conduta, do resultado naturalístico, do nexo de causalidade e da adequação típica, vale dizer que o juízo de valor não se aplica a tipicidade formal, mas se aplica a conduta. Já a tipicidade material é o juízo de valor que recai sobre a ofensa ao bem jurídico que deve ser concreto, não insignificante, transcendental, intolerável, objetivamente imputável ao risco criado e que seja normativamente protegido (GOMES, 2011). No Direito Penal Brasileiro, é majoritário o entendimento de que a natureza jurídico-penal do Princípio da Insignificância é causa excludente de tipicidade material. O fato embora seja formalmente típico, não se enquadra na modalidade material. É esse o posicionamento dogmático adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como pela Corte Suprema brasileira: O princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material (BRASIL, 2004).

II. DELEGADO DE POLÍCIA: RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE


O art. 5º, LXV, da CF reza que ―a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária‖. Verifica-se que se atribuiu ao Juiz de Direito, pela literalidade do texto constitucional relaxar a prisão qualquer ilegal. Entretanto, surgiu na doutrina hipótese denominada relaxamento da prisão em flagrante delito pela Autoridade de Polícia Judiciária. A doutrina não é uniforme quanto à natureza jurídica da prisão em flagrante, pois para uns seria ato administrativo, outros seria medida acautelatória e outro a considera ato complexo com duas fases, sendo a primeira a prisão captura, de ordem administrativa e a segunda de natureza processual, quando homologada pelo juiz. (SILVA JÚNIOR, p. 879-881) Se filando a doutrina de Fernando Tourinho, a prisão em flagrante é composta por três fases distintas: prisão captura e consequente condução coercitiva, lavratura do auto de prisão em flagrante e recolhimento ao sistema prisional. Assim, quando o Delegado de Polícia, no exercício das atribuições de polícia judiciária, após a receber uma ocorrência policial, se convencer que o fato é atípico ou a situação não é flagrancial, coloca em liberdade o conduzido. Neste caso, há o relaxamento da prisão em flagrante. Assim escrevem Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2010, p. 475-476) sobre o tema relaxamento de prisão pela autoridade policial: Ao final, convencida a autoridade que a infração ocorreu, que o conduzido concorreu para o fato e que se trata de hipótese legal de flagrante delito, determinará ao escrivão que lavre e encerre o auto de flagrante. A toda evidência, não assiste razão para a autoridade determinar a lavratura do auto se não houver lastro legal para tanto, devendo até mesmo apurar a responsabilidade do condutor, se houver algum excesso. Assim, é factível que a autoridade policial relaxe a prisão, liberando o conduzido e deixando de proceder à lavratura do auto. Entendemos que o § 1º do art. 304 deve ser interpretado à luz do caput, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 11.113/2005. A lavratura do auto é o termo final, ocorrida após a oitiva dos envolvidos. Não estando convencida a autoridade de que o fato apresentado autorizaria o flagrante, deixará de autuar o conduzido, isto é, não lavrará o auto, relaxando a prisão, que já existe desde a captura, e por isso, não mandará recolher o indivíduo ao xadrez (§ 1º), pois a liberdade é de rigor.

Dessa forma, se o fato narrado não constituir crime (atipicidade material) ou ausentes o estado flagrancial, previsto no art. 302, do Código de


Processo Penal, o Delegado de Polícia não ratifica a voz de prisão em flagrante delito. É a excepcional hipótese de se admitir que a autoridade policial relaxe a prisão.

III. RELAXAMENTO DA PRISÃO EM FLAGRANTE PELA ATIPICIDADE MATERIAL DA CONDUTA

A doutrina majoritária assevera que o princípio da insignificância, como já dito, na seara penal, afasta a tipicidade material do fato, o que retira a conduta do âmbito de proteção do Direito Penal. No caso concreto, o Delegado de Polícia, ao se deparando com uma infração bagatelar própria, aplicará o princípio da insignificância. 15 Neste contexto, não irá ratificar a voz de prisão dada pelo agente de polícia, por ausência de tipicidade material, tampouco instaurará o inquérito policial para apurar o fato, uma vez que não há justa causa para a instauração da ação penal. Neste sentido são basilares as palavras da doutrina de Fernando Capez: Antes da lavratura do auto, a autoridade policial deve entrevistar as partes (condutor, testemunhas e conduzidos) e, em seguida, de acordo com a sua discricionária convicção, ratificar ou não a voz de prisão do condutor. Não se trata, no caso, de relaxamento da prisão em flagrante, uma vez que, sem a ratificação, o sujeito encontra apenas detido, aguardando a formalização por meio da ordem de prisão em flagrante determinada pela autoridade policial. O auto somente não será lavrado se o fato for manifestamente atípico, insignificante ou se estiver presente, com clarividência, uma das hipóteses de causa de exclusão da antijuricidade (...). (CAPEZ, 2008, p. 262).

O fundamento legal para o delegado de polícia aplicar, de ofício, o princípio da insignificância, diante de ausência de tipicidade material de um fato

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Infração bagatelar própria é a que já nasce sem nenhuma relevância penal: ou porque não há desvalor da ação (não há periculosidade na ação) ou porque não há o desvalor do resultado (não se trata de ataque intolerável ao bem jurídico).


―supostamente‖ criminoso se respalda no artigo 304, §1º, do Código de Processo Penal por interpretação a contrário sensu do dispositivo.16 Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. o § 1 Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

Não resultando fundadas suspeitas de que o conduzido cometeu crime (juízo de valor negativo) não deve a autoridade policial proceder à ratificação da voz de prisão em flagrante, deixando de encarcerar o conduzido. Neste caso, o conduzido seria colocado em liberdade, porque não haveria cometido crime (por ausência de tipicidade material). O julgado a seguir deixa claro que o delegado de polícia tem discricionariedade, dentro da legalidade, de analisar o caso concreto para fazer ou não o auto de prisão em flagrante. A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o delegado de polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (TACRIM, HC 215.540-1 - 4a C. - rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351).

IV. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA COMO ELEMENTO DA FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A PERSECUÇÃO PENAL

Cabe de início ressaltar, que neste ponto, iremos nos restringir apenas em discutir o elemento justa causa, sem adentrar nas outras condições da ação penal.

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A jurisprudência não menciona o dispositivo de lei quando aplica o princípio da insignificância, em um caso concreto. Entretanto, no Código Penal Militar o art. 209, § 6º, por exemplo - em caso de lesão levíssima, autoriza que o juiz considere o fato como mera infração disciplinar. Na forma, o art. 240, § 1º, para o furto insignificante.


A falta de justa causa é invoca, via habeas corpus, para trancamento da ação penal ou do inquérito policial, quando o fato imputado ao suposto infrator não constitui crime (fato atípico), quando o crime está prescrito ou quando o sujeito atuou sob uma causa excludente de antijuridicidade. Assim, a aplicação do princípio da insignificância, como causa de descaracterização da tipicidade material, leva à ausência de justa causa para a ação penal. Este é posicionamento dos tribunais quando enfrentam o tema: INQUÉRITO POLICIAL - Justa causa - Apreciação em "habeas corpus" visando ao seu trancamento - Medida excepcional somente cabível e admissível quando verificada desde logo a clamorosa atipicidade do fato investigado ou a evidente impossibilidade de o indiciado ser seu autor (TJSP) RT 649/267.

Para corroborar que a falta de justa é medida para a não instauração de inquérito policial, o Superior Tribunal de Justiça, assim decidiu: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. CRIME DE SONEGAÇÃO DE AUTOS JUDICIAIS. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. JUSTA CAUSA NÃO EVIDENCIADA. O trancamento de ação penal pela via estreita do habeas corpus é medida de exceção, só admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca e sem a necessidade de valoração probatória, a inexistência de autoria por parte do indiciado ou a atipicidade da conduta. Processo: HC 39231-CE 2004/0154784-5, Relatora :Ministra LAURITA VAZ;Julgamento:28/02/2005; Órgão Julgador:T5 - QUINTA TURMA;Publicação:DJ 28.03.2005 p. 300.

O princípio da insignificância é analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, fins de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal. Neste contexto, para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada: mínima ofensividade da conduta do agente; ausência de periculosidade social da ação; reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e inexpressividade da lesão jurídica causada. Assim, quando o delegado de polícia, no exercício das funções, verificar a insignificância jurídica da conduta, pois não colocou e risco o bem jurídico protegido pela norma penal, que em tese, se amolda em uma figura


típica formal, impõe-se que não se seja ratificada a voz de prisão ou se instaure o inquérito policial por falta de justa causa. Portanto, a falta de justa causa atua para que seja desnecessário movimentar a maquina do estado repressor, quando já de plano se verifica que o fato é atípico.

V. A AUTORIDADE POLICIAL ATUANDO NO CASO CONCRETO PARA APLICAR O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

Neste momento, cabe destacar que a autoridade policial, ao aplicar o princípio da insignificância no caso concreto, não está usurpando as funções do magistrado ou Ministério Público. De fato, juízo de valor sobre a necessidade de denúncia ou arquivamento, cabe membro do parquet. Entretanto, o delegado de polícia é o primeiro operador do direito, a lidar com o fato possivelmente criminoso. Ele realiza uma análise mais aprofundada da necessidade de encarceramento em situações de infração bagatelar própria, sem que isto naturalmente saia ao controle jurisdicional e ao controle externo do Ministério Público. Neste momento, ressaltamos que não se está discutindo se a autoridade policial pode arquivar autos de inquérito policial de ofício. Somente o Ministério Público, titular da ação Penal, órgão para o qual se destina o caderno inquisitorial, pode pedir o seu arquivamento, dando por encerrados as possibilidades de investigações, até o surgimento de novas provas. Após o requerimento do parquet, cabe ao magistrado decidir pelo arquivamento do inquérito policial. O Código de Processo Penal veda expressamente, bem com a jurisprudência dos tribunais o arquivamento de inquérito policial de ofício, pela autoridade policial: ―Art. 17. A autoridade policial não poderá mandar arquivar autos de inquérito‖. É pacifico na doutrina a jurisprudência que a autoridade policial não deve realizar qualquer juízo de valor sobre a antijuridicidade e a culpabilidade. Ainda há parte da doutrina que perfilha do entendimento que a autoridade policial cabe apenas a analise da tipicidade formal. Neste sentido Paulo Rangel (2010, p. 90-91):


O inquérito policial tem um único escopo: apuração dos fatos objeto de investigação (cf. art. 4º, in fine, do CPP). Não cabe à autoridade policial emitir nenhum juízo de valor na apuração dos fatos, como, por exemplo, que o indiciado agiu em legítima defesa ou movido por violenta emoção ao cometer o homicídio. A autoridade policial não pode (e não deve) se imiscuir nas funções do Ministério Público, muito menos do juiz, pois sua função, no exercício das suas atribuições é meramente investigatória.

Respeitamos a opinião do ilustre doutrinador, todavia é preciso verificar que a aplicação do Direito Penal e Processual Penal pela autoridade policial, a qual possui a formação jurídica, não pode ser meros expectadores da evolução do Direito Penal. De fato, o Ministro do STF Gilmar Mendes deixa claro que autoridade policial pode retirar do âmbito penal condutas tipicamente formal. Segundo ele, ―não é razoável que o direito penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz movimentem-se no sentido de atribuir relevância típica a um furto de pequena monta‖ (BRASIL, 2011). O Direito Penal brasileiro, no contexto da Constituição Federal de 1988, emerge sob uma nova ótica que se traduz principalmente na sua função garantidora. Assim temos a autoridade policial não como instrumento político de perseguição que estigmatizou a carreira pelo longo período da ditadura militar. O delegado de polícia está diante de uma nova ordem jurídica e deve atuar como um garantidor dos direitos humanos e na legalidade buscando a máxima eficácia da norma. Opor-se contra a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância pela autoridade policial, em casos específicos e de clara hipótese de infração bagatelar própria, é impor a violação de uma série de princípios jurídicos que se originam na própria dignidade da pessoa humana. Destacamos o posicionamento do ministro do STF Gilmar Mendes que ressaltou: ―quando as condições que circundam o delito dão conta da sua singeleza, miudeza e não habitualidade, não é razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do Estado-Polícia e do Estado-Juiz sejam provocados‘‘. Vejamos, se trata de real incidência de atipicidade material (furto de um bombom), que consequentemente não gerará denúncia ou condenação, qual a


necessidade, ou melhor, a proporcionalidade de manter-se uma pessoa presa em flagrante diante destas circunstâncias. Por outro lado, é de bom alvitre inserir-se neste texto interessante decisão do extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo: A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. (TACRIM, HC 215.540-1 - 4a C. - rei. Juiz Passos de Freitas, in RT 679/351).

Por ocasião desse decisum colegiado, pois, fica clara a faculdade de o Delegado de Polícia levar a efeito, conforme o seu juízo de valor, nas hipóteses de flagrante delito, a melhor decisão que lhe surgir à consciência, vertendo para a lavratura do auto ou não, consoante sua apreciação daquilo que for, diante do caso em concreto, o mais conveniente e o mais oportuno. Assim, é sustentável, à luz do sistema jurídico, que é um conjunto de leis e de princípios que se entrelaçam sob a égide dos ditames maiores lançados na Constituição Federal, que a Autoridade Policial possa, por meio da sua discricionariedade, não lavrar autos de prisão em flagrante acerca de infrações que são, em tese, materialmente atípicas. A decisão de valoração a ser levado a efeito pela Autoridade Policial bastará que contenha fundamentação razoável, fulcro no princípio da persuasão racional, como, de resto, é a atribuição de todos aqueles que levam a efeito atos administrativos em geral. O princípio da insignificância não foi estruturado para resguardar e legitimar constantes condutas desvirtuadas, mas para impedir que desvios de condutas ínfimas e isoladas, sejam sancionados pelo rigor do direito penal, fazendo-se justiça no caso concreto. Comportamentos contrários à lei penal, mesmo que insignificantes, quando constantes, devido a sua reprovabilidade, perdem a característica da bagatela e devem se submeter ao direito penal. Portanto, cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, utilizando-se de princípios de política criminal tais como a exclusiva proteção de bens jurídicos, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da falta de


lesividade ou ofensividade ao bem jurídico, além dos requisitos utilizados pelo STF e STJ para formar o convencimento jurídico, no caso concreto, fins de aplicar ou não o princípio da insignificância na seara penal.

CONCLUSÃO

O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação, que está ganhando cada vez mais estudos na seara penal. Verificamos, através da pesquisa, que o referido princípio já era aplicado no direito romano, no ramo do direito civil, sob o brocardo mínima non curat praetor. Porém foi com o jurista alemão Claus Roxin, em 1964, que o princípio da insignificância foi aplicado na seara penal para excluir a tipicidade material e retirar a conduta do direito repressor. O trabalho iniciou-se com o conceito do princípio da insignificância, a natureza jurídica e a relação com os princípios. Assim, foi possível constar que o princípio em estudo tem o condão de excludente de tipicidade material. Com base em pesquisa bibliográfica apresentamos a posição da doutrina quanto à viabilidade de utilização do referido princípio no contexto do Direito Penal contemporâneo. Neste contexto, o trabalho buscou justificar que é plenamente legal a aplicação do princípio do princípio da insignificância pela autoridade policial na fase pré processual. Destacamos também a diferença entre a polícia judiciária e a autoridade investigativa. Neste diapasão, com base texto constitucional e na legislação, a primeira atua no cumprimento de determinações do Poder Judiciário, como, por exemplo, o cumprimento de mandado de prisão e busca e apreensão. Já a segunda, é identificada quando as policias federal e civil atuam na investigação, angariando elementos de informação, para elucidar determinada infração penal. Tal distinção é extremante importante, uma vez que o delegado de polícia atuando como policia judiciária pode aplicar o princípio da insignificância para retirar do âmbito penal condutas que não lesam ou expõem o bem jurídico. Por meio da pesquisa jurisprudencial, destacamos o julgado do Supremo Tribunal Federal, que em o Ministro Celso de Mello utilizou quatro requisitos para aplicação do princípio da insignificância para excluir a tipicidade


material e retirar o fato da seara penal, qual sejam:a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Tais critérios são postulados do garantismo penal, o qual é uma formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Direito Penal. A partir da analise contextualizada, fundamentamos que a autoridade policial pode aplicar, de oficio, o princípio da insignificância na fase préprocessual da persecução penal. Isto foi exposto pela doutrina e em julgados, quando o delegado tem a discricionariedade de lavrar ou não o flagrante, observando se que o fato é atípico, pois há tipicidade material. De fato, a determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o delegado de polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante. Diante do exposto, é plenamente sustentável, à luz do sistema jurídico, que é um conjunto de leis e de princípios que se entrelaçam sob a égide dos ditames maiores lançados na Constituição Federal, que a Autoridade Policial possa, por meio da sua discricionariedade, analisando o caso concreto, não lavrar autos de prisão em flagrante acerca de infrações que são, em tese, materialmente atípicas. Portanto, podemos concluir que cabe ao Delegado de Polícia, como operador do Direito, utilizando-se de princípios de política criminal tais como a exclusiva

proteção

de

bens

jurídicos,

da

intervenção

mínima,

da

proporcionalidade, da falta de lesividade ou ofensividade ao bem jurídico, além dos requisitos utilizados pelo STF e STJ para formar o convencimento jurídico, no caso concreto, fins de aplicar ou não o princípio da insignificância na seara penal.


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10 O ENCARCERAMENTO DE MULHERES NO SISTEMA PRISIONAL DO ESTADO DO AMAPÁ POR TRÁFICO DE DROGAS: AS POLITICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO E TRABALHO COMO POSSIBILIDADE DE (RE) INSERÇÃO SOCIAL

LUCIDÉA PORTAL MELO DE CARVALHO

INTRODUÇÃO

O século XXI é marcado pelo acirramento das desigualdades sociais, da pobreza e do desemprego. A criminalidade é um fenômeno social normal de uma sociedade. O sistema penitenciário brasileiro, ao longo dos anos, tem sido tratado predominantemente sob a ótica da cultura prisional. É fundamental compreender a relação da mulher com a criminalidade e, principalmente, com o tráfico de entorpecentes. O Brasil é o quinto país com maior população carcerária em números absolutos, ficando atrás dos Estados Unidos, detentor da maior população carcerária do mundo Rússia, China e Tailândia. A mais simples projeção estatística indica um cenário extremamente preocupante para o futuro podendo chegar a mais de 1 milhão de pessoas presas em 10 anos. A realidade carcerária brasileira vivencia um profundo drama social que gera por consequência, a potencialização da violência atrelado às mazelas sociais e às péssimas condições do sistema prisional brasileiro, tais como instalações insalubres, superlotação, fugas desenfreadas e o avanço do crime organizado através das rebeliões, na maioria das vezes resultando em morte, como vimos recentemente, a violência desencadeada entre facções inimigas

deflagradas

pelos comandos Família do Norte e

Primeiro Comando da Capital (PCC) no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (COMPAJ) na cidade de Manaus-Amazonas em janeiro de 2017

e


consequentemente, espalhando-se por outros Estados do Brasil. O objetivo ressocializador

do

sistema

penitenciário,

(BITENCOURT,2011)necessita de uma política

criminal que

segundo leve em

consideração os problemas sociais que geram e mantêm o fenômeno delitivo. A politica criminal carcerária encontra-se em desacordo com as políticas públicas voltadas para este público-alvo, sobretudo, as politicas de educação e trabalho, que se mostram ineficientes para ajustar-se ao objetivo primeiro do sistema prisional, que é o retorno da pessoa aprisionada ao convívio social, isso, aliado a um tratamento penal adequado e condições mínimas de dignidade humana. Nos últimos anos, o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas, tem aumentado no país, segundo estudo do Infopen Mulher 2014, as mulheres respondem pelo percentual de 58%, enquanto que os homens respondem apenas 23% pelo mesmo tipo penal. Corroborando com o perfil da mulher encarcerada, o Departamento Penitenciário Nacional aponta que 60% da população carcerária feminina encontram-se presa em razão do tráfico de entorpecentes, média que alarma comparada ao índice de apenados masculinos, que beira a 25% por crimes dessa natureza. Em suas narrativas, as mulheres demonstram a importância que têm as políticas de educação e trabalho em suas vidas. Por outro lado, percebe-se a ineficácia do Estado em cumprir com seu papel reabilitador através de políticas públicas eficazes, ainda que tenhamos uma das mais completas leis de execução penal no Brasil, a LEP (Lei nº 7.210 de 11 de julho de 1984), que quase às vésperas de completar 33 (trinta e três anos), infelizmente não está sendo colocada em prática em sua totalidade, mesmo considerando a meta punitiva. Isso demonstra que o sistema prisional brasileiro, apresenta uma série de problemas que demandam solução, entre as quais, as necessidades jurídicas, assistenciais e materiais. Dar voz a essas mulheres silenciadas e excluídas no espaço prisional é essencial para interpretar as formas de vivenciar o cotidiano da prisão, seus significados e estratégias de enfrentamento, conferindo também a essas mulheres autenticidade e legitimidade de suas vivências, de sua história de vida.


E quando os prisioneiros se colocam, falando, já se tem uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, este contra-discurso mantido pelos prisioneiros ou pelos chamados delinquentes, isso é o que conta e não uma teoria sobre a delinquência (FOUCALT, 1997:11).

Para qualquer pesquisador, trabalhar com a técnica da história oral, é também trabalhar com a memória das pessoas entrevistadas, que só compartilham aquilo que desejam compartilhar. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico valendo-se de instrumentos socialmente criado e compartilhados. (PORTELLI, 1997:16). Sobre o método da história oral e a relação entre entrevistador e entrevistado, Verena Alberti assegura que: ―(...) deve-se ter em mente que se trata de uma relação entre pessoas diferentes que segue determinados padrões de conduta, dados pelos objetivos da pesquisa e do método da história oral.‖ (ALBERTI, 2000). As entrevistas foram realizadas na Penitenciária Feminina do Estado. A aproximação com as mulheres entrevistadas foi de forma direta, sem intermediação das agentes. A entrevistadora ora apresentava-se como pesquisadora, ora como professora, ou ainda como militante da advocacia criminal. As mulheres que compõem as narrativas neste artigo, são identificadas através de nomes fictícios, preservando desta forma suas identidades. São histórias vivas, tecida na fala carregada de emoções e sentimentos de cada mulher. I. Mulheres e o crime de tráfico de drogas A realidade das mulheres brasileiras envolvidas com o tráfico de drogas é um reflexo da desigualdade de gênero. Presas pela acusação da prática de tráfico de drogas são coadjuvantes e invisíveis na escala do tráfico. Em sua grande maioria, são aliciadas para servirem de ―mula‖ ao grande traficante, porque, sucumbe a ―facilidade‖ de dinheiro ―fácil‖ para sustentar suas famílias. Em suas narrativas, demonstram a importância que tem as políticas de educação e trabalho no ambiente carcerário, as quais funcionam como um condão que faz do sofrer no cárcere, uma ferramenta para sua modificação e crescimento. O perfil das protagonistas de nossa pesquisa, antes de serem presas, eram a principal provedora do lar, que ao serem encarceradas, deixaram um vácuo no núcleo familiar; são mães solteiras, jovens com idade entre 19 a 31


anos, com baixa escolaridade, a maioria estudou até a 6ª série do Ensino Fundamental e não tiveram oportunidades de emprego lícito no mercado de trabalho. Geralmente, o trabalho a elas ofertado, é na cadeia mais baixa das organizações

criminosas,

sendo

sustentáculo

operacional

substituível,

geralmente ocupam as posições de cozinheira, faxineira, embaladoras e guardiãs das drogas para seus companheiros, isso, movidas pela paixão que as consome. Ao serem encarceradas, além de carregarem o estigma de ter seus nomes ―sujos‖ para o resto da vida, são literalmente abandonadas, ficam jogadas à própria sorte. O crime de tráfico de drogas deixou de ser um crime hediondo, por isso, muitas nutrem a esperança de progredir para um regime mais benéfico de cumprimento de pena e assim, talvez, até conseguir o indulto. Quando ouvimos as histórias de vida dessas mulheres, compreendemos os diversos contextos que as levaram a ingressar no mundo do crime do narcotráfico, sendo um dos mais comuns, o envolvimento íntimo-afetivo, e a partir daí, entram em contato com a droga e se envolvem na relação, visando demostrarem alguma prova de amor; desta forma, são cativadas a participarem da atividade ilícita para auxiliarem seus companheiros. II. NARRATIVAS II. I TRAJETÓRIAS DA VIDA CRIMINAL As narrativas na trajetória de vida dessas mulheres apresentam como marco inicial a relação íntima-afetiva com o traficante, depois a imputação do crime, resultando na prisão. Em seguida, narram a convivência com outras mulheres, as regras da instituição, o abandono da família, os abusos sexuais sofridos, enfim, o real significado das políticas de educação e trabalho carcerário na vida de cada uma. Procuramos garantir a preservação do conteúdo dos pequenos textos orais, inclusive palavras e expressões próprias do espaço prisional, de modo que serão indicados seus significados à medida que aparecerem ao longo do texto.


Depoimento de Juliana Monteiro “(...)Eu me envolvi intimamente com o Carlos, que depois de dois meses de namoro, fomos viver juntos como marido e mulher. Ele é viciado e também traficante. Está preso desde 2013. A polícia me pegou com pequenas quantidades, mas a razão da minha prisão, é porque eu guardava, armazenava muita droga debaixo do guardaroupa para ir vendendo aos poucos e a policia pegou. Fui condenada a 7 (sete) anos no regime fechado. Estava muito apaixonada e quando fui ver, já estava na cadeia. Quando a cabeça não pensa o corpo que paga. A paixão faz a pessoa perder a cabeça, por conta disso, tive que deixar para trás minha família, meu filho que tem apenas 4 (quatro) anos, fruto de um relacionamento anterior. Na cadeia, passamos por muitas privações pensando na própria dor, minha mãe veio apenas uma vez me visitar, depois disso, não apareceu mais, meu filho está com minha irmã mais velha. Na cadeia tem umas presas bacanas, outras chatas que não querem dividir nem o espaço para dormir, mas dá para contornar a situação, o pior que sofri abuso sexual por duas mulheres, a (...) e a (...)na própria cela e de madrugada. Na minha opinião doutora, não deveria existir prisão, deveria sim o governo dar trabalho e escola para todas as pessoas presas, voltei a estudar pela manhã e trabalho a tarde para ter um futuro”. Depoimento de Magnólia Brantes “(...) Tenho 24 anos, conheci o (...) em um churrasco em um terreno 17 18 no Km 50 , dançamos juntos e acabamos “ficando” , a partir daí me joguei na vida com ele. Inicialmente ele me deu para provar 19 cocaína , fiquei dependente, virei usuária, mas depois comecei a traficar junto com ele. Ele era o amor da minha. Aprendi a vender e ganhar dinheiro fácil. Fui pega com as drogas, foi o meu fim, fui presa, algemada e condenada a uma pena de 8 (oito) anos em regime fechado. Não é fácil! Se arrependimento matasse (...), somente recebo visitas de duas sobrinhas, minha mãe morreu, às vezes fico pensando que foi de desgosto, pois tenho também um irmão que está preso por homicídio. Lembro do meu primeiro dia de sol eu fiquei perdida, perdida porque não conhecia ninguém, ficava pelos cantos (...).É muito difícil conviver com outras presas. Aqui tem 20 muitas regras tanto do IAPEN , quanto nossas. Abusos sexuais, já sofri, pois antes de conhecer meu namorado, eu e a (...) fazia programas a noite”. Nossa alegria aqui na cadeia é saber que temos escola e trabalho interno, isso faz a gente esquecer a vida que a gente vivia lá fora. A educação e o trabalho na prisão é importante para nossa ressocialização”. Depoimento de Carminda Dolores 21 “(...)Quando fui presa, estava viciada em crack . Estava grávida de 3 22 meses; o furto foi uma maneira de eu sustentar o vício, furtava pequenos objetos, sem muito valor, mas o crack era um vicio tão grande que eu não conseguia deixar. Perdi meu bebê, embora fruto 17

Km 50: Indicação da quilometragem da BR-156, Rodovia que liga Macapá ao Oiapoque no estado do Amapá. 18 Ficando: O termo ―ficar‖ é quando se conhece uma pessoa e sem compromisso algum, rola beijos e abraços. 19 Cocaína: é um alcaloide usado como droga. Causa euforia intensa e rápida. 20 IAPEN: Instituto de Administração Penitenciária do Amapá 21 Crack: É a mais viciante de todas as drogas. É obtida em blocos sólidos ou cristais de cores diferentes como amarelo, rosa-claro ou branco. 22 Furto: É uma figura prevista nos artigos 155 do Código de Processo Penal e 203 do Código Penal Português, consiste na subtração de coisa alheia.


de um estupro, eu queria que ele nascesse. Sou primária e apenas usuária, mas estou me tratando. Quanto à educação e trabalho eu conheci alguns professores da escola, eu tenho preguiça de estudar, sabe doutora, acho legal, mas não dá pra mim. Lá fora quero cuidar de crianças ou trabalhar em alguma coisa e não voltar a fumar crack”. Depoimento de Araci Silva (...) Tenho 31 anos, estou nesta vida de tráfico de drogas, porque mataram meu filho, e por uma dívida de R$ 400,00 reais, de um tênis, 23 o traficante disse que eu tinha que pagar, fui vender umas pedras e aí fui pega, não tinha passagem nem nada. Este foi o motivo pelo qual estou aqui. Sou primária, presa provisória, sei que vou sair da prisão, mas por enquanto vou convivendo por aqui enquanto aguardo minha audiência. Vi aqui as outras presas falarem da escola, que é bom estudar na cadeia e também trabalhar, fazer alguma coisa para ocupar o dia. Toda cadeia deveria ter escola como a daqui. Quero ainda ter oportunidade de estudar, ser alguém na vida e aproveitar as coisas boas”. Depoimento de Graziela Renata “Sou Graziela, tenho 24 anos, estou presa desde 2015, fui pega levando droga para meu marido e seu amigo, sou conhecida como 24 „peãozeira‟ é a terceira vez que sou pega, vim pela primeira vez presa, pelo artigo 157 do Código de Processo Penal, na segunda pelo 25 artigo 155, eu era uma presa consideradas . Em 2016, progredi de regime, conheci o mundo das drogas, passei a ser usuária, depois traficante. Meu companheiro era um dos maiores traficantes de Macapá, mas se deu mal, foi preso e o nosso negócio passou para outra pessoa. Não o abandonei, porque o amava, ele me dava tudo o que eu queria de roupas, sapatos e até joias que depois vendi. Não faltava nos dias de visita íntima e também sempre dava um jeito de levar as drogas em qualquer lugar de meu corpo, principalmente na vagina. Até carro ele me deu. Eu gostava de trabalhar com tráfico de 26 drogas; eu tinha umas amigas que consumiam cocaína e maconha ; compravam de mim As regras da cadeia continuavam as mesmas, as agentes observam tudo que acontece nas celas. Isso me fez refletir minhas atitudes e valores! É doutora..., a vida na cadeia é difícil. Acho muito bom estudar e trabalhar, estou matriculada na escola daqui, os professores são muito atenciosos, consegui trabalho na faxina também”.

Os depoimentos acima, expressam a vulnerabilidade e risco a que as mulheres estão expostas. Validam os laços que se estabelecem entre ―quem tem muito‖- traficantes e ―quem não tem nada‖- mulheres apaixonadas que possuem como agravante, ser pobre, não-branca, baixa escolaridade e jovem 23

Pedras: É um dos nomes popular do crack dentre tantos outros. A expressão ―peãozeira‖, nome dado às mulheres que levam drogas para as prisões. Primeiramente, a droga é colocada em um saco de arroz, por ser resistente; vedam-no com fita isolante; colocam-no dentro de um preservativo; e, posteriormente, lubrificam-no e o introduzem, ou na vagina, ou no ânus. Mencione-se que, embora algumas levem a droga em bolsas ou em outros objetos, externos a seu corpo, a grande maioria o faz dentro do próprio corpo, quer na cavidade vaginal, quer na cavidade anal. 25 Presa considerada: é aquela que possui entre três a quatro anos de convivência com outras presas. 26 Maconha: É a Cannabis Sativa. É uma droga muito usada no Brasil, por ser barata e de fácil acesso nas grandes cidades. 24


que, para anestesiar sua dor de não conseguirem trabalho lícito, acabam consumindo drogas, envolvendo-se intimamente com seu algoz, até ser um deles e tudo acabar em prisão e condenação, levando-as ao sofrimento e, consequentemente a exclusão social. Em algumas falas, as politicas de educação e trabalho são consideradas positivas no espaço carcerário para a autoestima e aprendizagem, visando objetivos e sonhos de mudar de vida, enquanto que para outras mulheres, é difícil reconhecer as políticas, sobretudo, a da educação nas penitenciárias como atraente ao seu desenvolvimento. III. POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO E TRABALHO O direito as políticas públicas de educação e trabalho é garantido a qualquer pessoa em situação de privação de liberdade; ademais, para um bom tratamento criminológico, é necessária a oferta de educação e trabalho penitenciário, os quais representam em tese, uma possibilidade para a reintegração de homens e mulheres na reconquista da liberdade. Em relação ao trabalho, a Lei de Execução Penal sustenta que: ―O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.‖(Art.28-LEP). Dentro da prisão, como fora, o trabalho compete com a educação, o primeiro oferece salário, mas as duas políticas ofertam remição de pena e devem estar associadas, conforme sustenta (CARVALHO, 2016). As políticas de educação e trabalho nas penitenciárias precisam estar associadas à qualificação profissional, através do ensino formal e profissionalizante, para que se tenha uma escola que articule educação e trabalho, sob o ponto de vista da cidadania, valorizando assim, as escolas prisionais como um lócus de aprendizagem para além da lógica do universo criminal, além do caráter educativo – ressocializante (CARVALHO, 2016).

Assim, educação e trabalho são direitos que deve ser assegurado nos estabelecimentos penais desde o momento da entrada de pessoas aprisionadas. Essas políticas públicas são duas importantes categorias que proporcionam cidadania no ambiente prisional, visando,

sobretudo a

reinserção dessas pessoas ao seio social e, consequentemente afastando de suas vidas a reincidência. Neste sentido, as políticas públicas de educação e trabalho bem


intensificadas, serão capazes de criar possibilidades de reinserção social, isto é, fazer com que essas mulheres retornem ao convívio dos seus, através de uma política de inclusão, que trata a mulher presa como ser humano e que esta pode ser muito útil à sociedade, após sua reabilitação. Por fim, é através da educação que brotará a solução para mais este percalço da sociedade.

CONCLUSÃO O sistema prisional brasileiro tem sido tema de grandes discussões na sociedade devido a crise que enfrenta atualmente, observou-se que são inúmeros os desafios que perpassam o espaço prisional, um dos quais, o crescimento vertiginoso da criminalização feminina. O cenário que se apresenta na criminalização feminina, sobretudo pelo crime de tráfico de entorpecentes, impõe reflexões importantes sobre o papel exercido por estas mulheres na escala do crime de tráfico de drogas. Cotidianamente presenciamos o encarceramento feminino no Brasil, trata-se de um fenômeno social que cresce gradativamente. Na concepção de DUTRA(2011): (...)trata-se de um crime que gradualmente vem ganhando mais incidência e visibilidade no mundo feminino, sendo gradativamente mais visado pelas mulheres apresentando-se como o delito que mais tem encaminhado a figura feminina ao encarceramento de forma significativamente preocupante (DUTRA, 2011, p.30).

Neste sentido, a visão dessas mulheres em suas narrativas sinaliza uma perspectiva de possibilidades de mudança, onde o caminho a ser percorrido é o de saber o que fazer, para consertar o erro e mudar a rota da vida, ser preparadas para o convívio em sociedade. Constatamos que a opressão pela condição de gênero e também pela condição de classe, foram circunstâncias que as levaram a atividade dentro do tráfico de drogas e consequentemente ao cárcere. Pode-se dizer que nos cárceres brasileiros testemunhamos situações não de empoderamento das mulheres encarceradas, mas de violência contra as mulheres e de gênero, perpetradas por relações persistentes indistintas de poder, que assume aspectos tão extremos e não pode ser vistas apenas a partir de uma razão instrumental, mas como uma forma assustadora de exercício do poder irracional que acaba ameaçando mesmo sobremaneira o


Estado Democrático de Direito nas Penitenciárias. Portanto, o cumprimento da pena faz a pessoa, sobretudo, mulheres, refletirem por tudo que já passaram, pois os depoimentos expressam diversos significados que as políticas de educação e trabalho têm na vida de cada uma e não se dobrar a forma meticulosa e geral do poder carcerário que captura sua existência. O status de presa não lhes nega o acesso aos direitos fundamentais e reforça a necessidade de investimento em relação a sua reabilitação e reinserção social. De todo o exposto, conclui-se que ocorreram poucos avanços, no que diz respeito a política criminal voltada a este público-alvo, insuficiente para a demanda de um país imenso igual o nosso, impondo às autoridades e à sociedade, uma visão mais reformista e preocupada com o bem-estar do ser humano, indiferentemente ao local em que este se encontra, deverá ser tratado com respeito e dignidade. Além do espaço físico, o sistema padece de um olhar mais atuante, ou seja, vontade política, no sentido de treinamento de profissionais que só conhecem a cultura prisional para lidar com homens e mulheres e todo um aparato mais humano, no sentido de valorizar a vida, que precisa de apoio para voltar a produzir frutos bons. REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena et al. (Orgs). História Oral: desafios do século XXI. In: Desafios à História Oral do Século XXI. Rio de Janeiro: Fiocruz/CPDOC-FGV, 2000. BITTENCOURT, Cézar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2011. BRASIL. Lei de Execução Penal, n. 7.210. Brasília, 1984. CARVALHO, Lucidéa Portal Melo de. A educação e o trabalho como políticas públicas no sistema penitenciário do estado do Amapá: A experiência da escola estadual São José na efetivação dessas políticas. In: Anais do I Seminário de Pesquisa em Prisões, 10 e 11 de Nov./2016, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://spesquisasemprisoes.wixsite.com.br/brasil/anais>. Acesso em 10/04/2017. DEPEN. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em < http://www.portal.mj.gov.br> Acesso em 10/04/2017. DUTRA, Thaíse Concolato. A criminalidade feminina com relação ao tráfico de drogas, frente à Lei 11.343/06/2011. Disponível em: < http://www3.pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao. Acesso em 07/04/2017. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. P. Vassalo. 9. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 11. INFOPEN MULHER 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticiasestudo-traca-perfil-da-populacaopenitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf


PORTELLI, Alessandro. A forma e significado na história oral: A pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, Pontífica Universidade Católica, São Paulo, v.14,1997.


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