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FARNEL RITUAL

Pietro De Biase1

1 Aluno de Curadoria na Escola Sem Sítio, coordenação de Marcelo Campos, Ivair Reinaldim e Tania Queiroz, e colaborador na Revista Desvio na área de crítica em artes visuais.

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Resumo: O campo da história da arte encontra campo fértil para as reelaborações acerca das dinâmicas sociais que definiram a sua própria constituição, pois há muitas possibilidades de formulação de pensamento crítico, frente à produção artística da civilização ocidental e sua historiografia que procurou analisar a arte através de uma abordagem cronológica, estabelecendo uma periodização marcada por características distintivas e influentes. A presente resenha crítica discute a aproximação entre arte contemporânea e alimentação, a partir do tensionamento de discussões conceituais entre obras chaves da arte contemporânea brasileira, tais como Restauro (2016) do artista Jorge Menna Barreto apresentada na 32ª Bienal de Arte de São Paulo; Sopa de pedra (2014) de Matheus Rocha Pitta; Pipocas (2018) de Debora Bolsoni; Falar de Boca Cheia de Mulambö; Bori (2008-2011) de Ayrson Heráclito; e Pão Nosso de Cada Dia (1978) de Anna Bella Geiger. Nesse projeto, propõe-se discutir o conceito de Cozinha Futurista (1932) de Filippo Tommaso Marinetti para refletir sobre os modelos ocidentais de consumo de alimentos. Questionase a suposta busca pela supremacia alimentar como face do epistemicídio da culinária ancestral e o papel do alimento na produção contemporânea e seu uso na construção de narrativas não hegemônicas. Palavras-chave: Arte contemporânea; alimentação; segurança alimentar

Mulambö, Falar de boca cheia, 2019. Fonte: http://www.portasvilaseca.com.br/br/artistas/mulambo/

Para o Rafa, meu bravo cuitelinho

Desde as priscas eras, os seres humanos registram o que comem. Cenas de caça foram imortalizadas pelo Homem pré-histórico no interior de cavernas e em outras superfícies rochosas. Eram cingidos os primeiros grafismos alimentícios. Para além de divergências arqueológicas a respeito das iconografias rupestres, o Bisão de Altamira poderia muito bem ter sido a primeira representação de uma Food Porn que conheceu a humanidade. Até mesmo os pigmentos utilizados para os registros pré-históricos se relacionam com a dimensão alimentar, sendo advindos de uma mescla de gorduras animais e seivas vegetais. A comida se mostra onipresente em toda a historiografia da arte. Das colheitas de trigo hieroglíficas egípcias, passando pelos retratos de hortaliças de Arcimboldo, deliciando-se com os angulosos pêssegos e maçãs de Cézanne até chegarmos à sopa Campbell e a confeitaria pictórica de Thiebaud, há incontáveis exemplos da presença de alimentos na arte. A alimentação mediou a incorporação intelectual e afetiva do ocidente. Filippo Tommaso Marinetti talvez tenha sido o primeiro a refletir sobre a aproximação entre arte, preparação e o consumo de alimentos. O movimento futurista, fundado por Marinetti e outros artistas em Milão em 1909, abraçou a era industrial e sua mecânica. O ato de se alimentar, essencial à fluidez das cadeias produtivas, deveria ganhar centralidade na sociedade industrial. O que levou

Marinetti a publicar A Cozinha Futurista (1932). O livro vai além de um mero apanhado de receitas; era fruto das reflexões futuristas sobre a forma da nutrição. A preparação e o consumo de alimentos como parte de uma nova visão de mundo, na qual o entretenimento se tornaria imprescindível. O livro prescreve elementos necessários para uma refeição perfeita, que deveria apresentar originalidade, harmonia, ressonâncias escultóricas, odor, dentre tantas e tantas outras. Privilegia-se o emprego de equipamentos de alta tecnologia para preparar a refeição. Pratos biográficos, portadores de histórias pessoais, e com formas próprias de comer. Proust estaria a perder tempo a invocar as memórias despertadas pelo paladar das madeleines; a madeleine, por si só, já escreveria suas próprias memórias na ótica marienttiana.

As semelhanças entre a cozinha futurista de Marinetti e as postagens de alimentos meticulosamente encenadas nas redes sociais não são meramente coincidentes. A imagem do alimento assina a declaração de um poder aquisitivo, tal como as opulentas naturezas-mortas do século 17 atestam a riqueza da nascente burguesia dos Países Baixos.

“Comer, rezar e amar” diz o título, muito embora muitas pessoas nunca passem do primeiro. A comida agora expressa os valores simbólicos e absorve as energias espirituais de segmentos mais privilegiados, que nela depositam expectativas redentoras para si e para o planeta. Há mesmo um termo para descrever esse interesse exagerado na apresentação dos alimentos: Foodism. Nesse contexto, o alimento existe em estado de suspensão de delícia imaginada, que nunca deve ser provada pela maioria dos espectadores: um totem de desejo eternamente não consumável. As reflexões de Marinetti não poderiam ter previsto o papel que o alimento viria a desempenhar na arte quase um século depois. Artistas contemporâneos usaram a comida para debulhar discussões políticas econômicas e sociais. Seja abrindo restaurantes como projetos de arte participativa, realizando apresentações nas quais a comida é preparada e servida em galerias e, mais especificamente, desenvolvendo obras conceituais a partir de materiais comestíveis. Para o desdém de Marinetti, há ainda pesquisas artísticas contemporâneas que trabalham o alimento como dispositivo de repactuação com um saber ancestral de respeito aos ciclos telúricos e rejeição ao materialismo.

Atento ao uso sustentável da terra e ao discurso ambientalista, o artista Jorge Menna Barreto propôs o projeto Restauro (2016) na 32ª Bienal de Arte de São Paulo. A obra operava como um restaurante dentro do Pavilhão voltado para a Ecogastronomia, onde eram servidas refeições que priorizavam a diversidade do reino vegetal e agricultura orgânica. Restauro ganha ressonâncias de “arte relacional”, ao elaborar um tipo de conceito amorfo que se ativa a partir da interação com o público. A obra levanta questões acerca da construção dos hábitos alimentares e sua relação com o ambiente, a paisagem, o clima e a vida na terra. Restauro propõe um despertar para os usos da terra e as consequências globais de nossas escolhas alimentares. Entendendo o nosso sistema digestivo como ferramenta escultórica, os comensais tornam-se participantes de uma escultura ambiental em curso, na qual o ato de se alimentar regenera e modela a paisagem em que vivemos.

Matheus Rocha Pitta, Sopa de Pedra, 2014. Fonte: http://justo741.com.br/ibere-sopa-de-pedra-matheus-rocha-pitta/

Ainda sob o espectro da arte relacional, a Sopa de Pedra de Matheus Rocha Pitta ganha novas voltagens ao levantar questões relativas à fome. Na ação proposta por Pitta, uma sopa feita tanto de legumes naturais quanto de legumes esculpidos em pedra sabão é servida ao público. As origens da sopa de pedra remetem a um conto popular sobre um estrangeiro que chega faminto a uma cidade, cujos habitantes lhe negam o pedido de comida. O estrangeiro então se senta na praça principal, acende um fogo, enche sua panela de água e joga ali algumas pedras. Curioso, um habitante lhe pergunta o que está fazendo. “Uma sopa de pedra, hmmm, está ótima, mas com algumas batatas ficaria ainda melhor”, responde o estrangeiro. O curioso volta com algumas batatas, que vão direto pra panela. Outro habitante lhe faz a mesma pergunta, no que o estrangeiro responde que a sopa ainda não atingiu todo seu sabor– assim a sopa ganha mais ingredientes à medida que a atenção dos habitantes aumenta. Uma vez pronta, as pedras são retiradas e todos tomam a sopa juntos.

As pedras de Pitta se buscam como metáforas da fome, mas também de partilha: a fome é aquilo comum a todos, compartilhar a sopa é também a partilha da fome. As pedras são adicionadas à sopa atraindo um caráter conceitual à obra. A pedra como alimento indigerível aciona todo o vigor da obra ao jogar luz na fome e a miséria epidêmicas no Brasil, relatadas com profundidade na Geografia da Fome de Josué de Castro. A série Prato de Pedreiro de Mulambö, em individual apresentada em 2019 no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica no Rio de Janeiro, revisitou a cartografia da fome para além da questão política. Com seu Prato de Pedreiro, o artista busca georeferenciar a fome do desejo, dos sonhos, das zonas periféricas e dos corpos marginalizados. O Prato de Mulambö reafirma a fome pela vida, que não se satisfaz com as refeições aburguesadas. Para o artista, apenas a generosidade do prato de pedreiro poderia dar conta de todos esses desejos.

Anna Bella Geiger, O Pão Nosso de cada dia, 1978. Fonte: https://murilocastro.com.br/

Sob uma perspectiva espiritual, Ayrson Heráclito traz na série Bori (2008-2011) a comida dos Orixás, presente na culinária dos terreiros. Na cosmologia das religiões de origem africanas, especificamente no candomblé, cada Orixá representa um fenômeno da natureza, que por sua vez, reflete a existência das coisas e a integra à experiência humana, constituída de modo que as relações entre o homem e o meio ambiente encontre equilíbrio. A alimentação é um traço marcante da cultura africana e assume uma função religiosa, na sua acepção etimológica religare, para ligar novamente o humano ao divino. Os diferentes meios de tratar, cozinhar e servir os alimentos transmutam-se em ato sagrado, realizado em comunhão durante ritos nos terreiros e conduz as propostas conceituais e cênicas na poética de Heráclito.

Em Pão nosso de cada dia (1978), Anna Bella Geiger mastigou o sul global no miolo do pão. O alimento, comum a muitas mesas, atrai forte carga política à obra que adquire alta voltagem estética. O Pão Nosso sonoramente o aproxima da estrofe da oração seminal do cristianismo. Pai Nosso, Pão Nosso que não está na mesa. Mais uma vez a face fantasmagórica da fome se impõe. Companheiro, expressão principalmente utilizada por legendas da esquerda latinoamericana, significa “aquele que come pão conosco”. Para além da fome, habita um sonho de união pela mesa e pelo milagre do pão entoado por Milton, onde o cio da terra mastiga o individualismo tóxico. A dimensão do alimento na arte é polissêmica. Sempre contextual, e portanto histórica e cultural. É ainda fruto de acúmulo e transmissão de conhecimento, de geração em geração. Dada a sua relevância, a alimentação possui forte carga simbólica cuja representação não raro se mostra ritualizada. Meta e metáfora. Mediadora de um diálogo entre perecimento e ecumenismo.

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