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OS DIREITOS HUMANOS NA ARTE DE WALTER MIRANDA E A CRÍTICA ONTOLÓGICA
from Jornada ABCA 2020
by abcainforma
Mirian de Carvalho1
1 Associação Brasileira de Críticos de Arte / Associação Internacional de Críticos de Arte / Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Resumo: Grande parte da produção artística de Walter Miranda aponta para problemas sociais e éticos, referentes ao Brasil e, também, ao mundo. Sob esse prisma, por meio de determinantes técnicas, temáticas e simbólicas, o artista explicita questões relacionadas aos Direitos Humanos. Tangenciando o conceitual, Walter Miranda defende o direito à vida e mostra-se consciente das várias formas de poder e destruição que atingem os humanos e o planeta. No plano estético, tais questões se definem nos estranhamentos espaciais advindos de uma poiesis, singularizada pela reunião de múltiplas técnicas, em conjuntos de trabalhos que aproximam e relacionam temas diversos, e dialogam entre si, tal como ocorre em Cartografias de Gaia e, também, em Ode à Vida: mostra individual, inaugurada em 19 de março de 2020, no Palácio das Artes, em Praia Grande, São Paulo. Ao analisar a matriz poético-ideativa do trabalho de Walter Miranda, considerei neste estudo algumas categorias da crítica ontológica, a partir de uma reflexão sobre o pensamento de György Lukács. Palavras-chave: espaço; poiesis; crítica; ontologia
Ante o flagelo da Covid 19, agravado no Brasil em virtude de problemática que atinge sobretudo a classe trabalhadora, os desempregados e as minorias étnicas, torna-se relevante refletir sobre a arte como trabalho do ser social, visto que a arte pode ser pensada como produção mediadora de processos emancipatórios, ao enfoque da crítica ontológica. Numa leitura de György Lukács, tal crítica abrange aspectos intrínsecos e extrínsecos à produção artística. E, das categorias instrumentalizadas por esse filósofo, menciono neste texto: o símbolo, por trazer o geral ao particular; a catarse por abranger a empatia; o complexo, como amplitude da totalidade; a mimese, como referencial dialético. Despertou-me para tal enfoque a arte de Walter Miranda, a partir de duas mostras realizadas em São Paulo, em 2018 e 2020, referendando os Direitos Humanos. Em ambas as mostras, a tessitura do espaço produz tensões por meio do estranhamento, a “provocar na sociedade novos fatos ontológicos” 1, porque a criação artística se articula com o complexo sócio-histórico:
Para compreender a especificidade do ser social é preciso compreender e ter presente essa duplicidade: a simultânea dependência e independência de seus produtos específicos em relação aos atos individuais que, no plano imediato, fazem com que eles surjam e prossigam.2
Tais dependência e independência subsomem a relação entre o indivíduo e o real. Entretanto, as categorias poéticas não se fundam na natureza, nem na sociedade. Por isso a crítica ontológica se pergunta pela peculiaridade do poético numa relação sócio-histórica com o fruidor, aos desdobramentos da poiesis. A poiesis se relaciona ao fazer, que se inicia no trabalho da matéria, e se completa na fruição, por meio da catarse. Tal dinâmica, envolvendo um complexo de determinações do real, explicita diferenças, antíteses e dados circunscritos ao trabalho artístico. Ao fruidor é dado captar contradições a serem superadas. Na arte de Walter Miranda, as qualidades do espaço tangenciam o campo sensorial e o campo ideativo, despertando a pergunta drummondiana: “E, agora, José?”. Ao perscrutar o espaço nas mostras intituladas Cartografias de Gaia3 e Ode à vida4, ambas disponíveis em catálogo virtual, enfatizei três ordens de estranhamento: heterotopias, seriações e desconstruções da geometria. Em Cartografias de Gaia, o artista aborda a importância da sustentabilidade ecológica em oposição aos danos causados pelo uso descontrolado das tecnologias. Walter Miranda reuniu quadros, objetos, instalação e performance que enfocam o mapa-múndi. Em Cartografias de Gaia, as heterotopias determinam-se como aglomerações de produtos de origem animal, vegetal e inorgânica: chaves; CDs; fósforos; aparas de lápis; autofalantes; conchas; sementes; cartões de crédito; invólucros de agulhas de acupuntura; relógios; peças de vidro, inclusive vidro moído, etc, misturados à pintura. Aparentemente, as heterotopias tornam o espaço impensável e inominável. Mas é esse o telos desse estranhamento: chegar ao inusitado para realizar a simbologia da vida. Nos quadros, o artista também definiu estranhamento relativo ao contorno. Em meio a invenções cartográficas, destaque-se a América do Sul posicionada ao Norte, em Avesso do avesso, num mapa mostrado em espelho. As várias peças tridimensionais são igualmente compostas e ou revestidas por heterotopias. Entre elas, há uma Torre de Babel feita de teclados de computador. Destaco também três peças feitas com placas de computador: Livro de Gaia I, Livro de Gaia II e
1 LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 27.
2 Ibidem, p.345.
3 Cf. MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018.
Livro do Porto, sendo o texto sugerido por objetos de tamanho pequeno. Em meio a tais peças, o artista incluiu uma instalação e uma performance com a mesma temática questionadora dos ditames do capitalismo financeiro.
Livro do Porto (2018) -27 cm x 31 cm x 7 cm (Mostra Ode à Vida, Fonte: Walter Miranda)
Nesse conjunto de trabalhos, contrastam cores claras e lúgubres, na metáfora da oposição “vida x morte”. E, sob vários aspectos, muitas imagens exaltam a vida nascente. Como exemplo, surge luminoso azul, pronto à fecundação da vida num grande mapa-múndi cercado de mouses e teclados, em Fecundationis Artificiosae (2018), enquanto, em América do Sul (2007), as heterotopias pedem decifrações simbólicas, despertando a consciência atuante.
América do Sul (2007) – 83 cm x 88 cm. (Mostra Ode à Vida, Fonte: Walter Miranda)
Em Ode à vida, em releitura da sua produção artística concebida a partir de 1977, o artista organizou núcleos temáticos igualmente relacionados aos Direitos Humanos, transparecendo nos títulos: Vidas negras importam; Ser e não ter, ter e não ser: eis a Etiópia; Simetria ecológica, social e política. Nessa mostra, em muitos trabalhos localizam-se também as referidas heterotopias. Passo então à análise de duas outras instâncias técnico-expressivas muito significativas na arte de Walter Miranda: as seriações e as desconstruções da geometria.
As seriações definem-se pela repetição de imagens semelhantes ou iguais, num mesmo trabalho, ou num conjunto de trabalhos, mas podem surgir também como conjunto de imagens diversificadas dentro de um núcleo temático. À análise das seriações, escolhi 1984: O estigma de George Orwell I e VIII, pertencentes a um conjunto de quadros a óleo sobre papelão, em que o estranhamento resulta das repetições de motivos semelhantes.
Era 1949. No romance chamado 1984, de George Orwell, o Big Brother passou a controlar corpos e mentes. Em 1983, numa transitividade do literário ao pictórico, Walter Miranda realizou 1984: O Estigma de George Orwell. E, neste ano de 2020, tais quadros atualizam a mimese do real e de seus espaços reais.
1984: O estigma de George Orwell I (1983) – 88 cm x 62,5 cm. (Mostra Ode à Vida, Fonte: Walter Miranda)
1984: O estigma de George Orwell VIII (1983) - 88 cm x 62,5 cm. (Mostra Ode à Vida, Fonte: Walter Miranda)
Nesse conjunto de quadros, pessoas de ambos os sexos, e rostos angulosos quase indiferenciados, remetem o visitante aos algoritmos e senhas que nos carimbam virtualmente. Andando pelas ruas, todos passam por inscrições indecifráveis: carestia, fome, recessão, FMI, etc. A marcha mecânica lhes é imposta, tal se faz com o gado no matadouro. Em 1984, o fruidor
pressente a reificação do humano. Ali estão o treinamento e a disciplina herdados do taylorismo e do fordismo, passando pelo toyotismo e, hoje, pela uberização, que se aperfeiçoa pelas novas tecnologias. Walter Miranda não pintou o trabalhador na fábrica, nem no supermercado, nem no banco. Mas, ao modo do não dito na poesia, o não pintado instaura imagens e sentidos simbólicos. Ali está a classe trabalhadora, antes e hoje. Ainda na linha das seriações, aqui destaco dois quadrosobjeto: pertencentes ao núcleo denominado Vidas negras importam, Cloroquina, o pão nosso de cada dia I e Cloroquina, o pão nosso de cada dia II, realizados em 2020, tematizam a violência do biopoder a serviço da destruição da vida. Em Ode à Vida surge outra forma de estranhamento: as desconstruções da geometria. Em Bosh + 500 – Juízo final, óleo, objetos, tela sobre madeira, numa interpretação da imagística de Hieronymus Bosh, no tríptico de Walter Miranda, o Juízo Final transcorre entre efeitos da destruição ambiental e das hierarquias sociopolíticas, que submetem os povos ao poder da moeda, numa versão atual dos suplícios imaginados por Bosh: fogueiras mortais; incêndios climáticos; explosões atômicas, fome, miséria, povos em fuga. Entre ameaças, a Terra e os humanos convivem com imagens enigmáticas: astros, maçã, aves, avião, figuração da Justiça, pássaros, homem sem cabeça, entre outras figurações do realismo encantatório.
Bosh + 500 – Juízo Final (2016) – 73cm x 58 cm. (Mostra Ode à Vida, Fonte: Walter Miranda)
Frequentes no trabalho de Walter Miranda, as desconstruções da geometria mostram desdobramentos da poiesis, trazendo o ser de razão ao mundo sensível, numa passagem da ciência à arte. E assim, a espacialidade geométrica adquire densidade, profundidade, flexões, planos reversíveis, movimento, ao que se somam as mutações da cor e da luz. O colorido transforma a neutralidade do espaço geométrico, tornando-o palco dos acontecimentos do mundo e vereda de contradições a serem superadas. E a Terra se recria entre símbolos do caos em busca da decifração, que se inicia na desconstrução da razão monológica e prossegue desguardando fronteiras para inconter limites. E uma criança deitada de bruços chama o visitante. Pela catarse, o fruidor deseja que a criança respire. E consegue reanimá-la. A práxis é possível. Não foi por acaso que, em Ode à vida, Walter Miranda incluiu as Transposições Sinfônicas,
seriações realizadas ao som das sinfonias de Beethoven, revivendo no Romantismo o ímpeto libertário do ser social. Referendando no pensamento de Lukács a aproximação entre Estética e da Ética, a crítica ontológica se ocupa da transição da técnica à arte. Nesse trânsito, em minha análise da arte de Walter Miranda, reenfatizo a relevância do estranhamento espacial. As heterotopias englobam oposições e mesclas, tornando possível realizar o irrealizável. As seriações sugerem releituras dos caminhos da repetição e da reprodução, buscando alternativas de ordem dialética a partir da mimese. E, sob o ângulo das desconstruções da geometria, viabiliza-se a passagem da teoria ao sentimento, favorecendo a catarse, que acolhe o outro na sua completude e antropomorfiza o espaço. Nessa convergência de instâncias técnico-expressivas há tensões imagísticas, entrecruzando franjas dos espaços poético, físico e social. Assim, na arte de Walter Miranda, referência aos Direitos Humanos transparece numa articulação do universal e do particular, exaltando a vida nos transcursos do lírico ao trágico e vice-versa. Em ambas as mostras, a oposição fundamental “vida x morte” se envolve no simbolismo do luminoso e do soturno, intensificando outras tensões que se acentuam pelas texturas. Note-se, ainda, que muitas imagens tangenciam o conceitual, ao perpassarem oposições que enfocam antropomorfização x fetichização. Para sintetizar minha visitação a esse conjunto de trabalhos, vislumbro a vida ante a práxis do trabalho da mão sonhadora. A essa dádiva, acrescento: a mão que atua no processo artístico é diversa da mão que aperfeiçoa sapatos de sola vermelha, na linha dos valores de uso e de troca. A mão sonhadora resiste. E inventa o corpo sonhador. Na arte de Walter Miranda, o corpo sonhador se reconhece nas figurações do homem vitruviano inserido em vários trabalhos. Expandindo braços e pernas, ele simboliza a espécie humana: macho e fêmea atuantes no tecido poético. Eles ultrapassam limites geométricos. Suas silhuetas dançam, para vencer a morte antecipada.
REFERÊNCIAS
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer, Nélio Schneider. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2018. MIRANDA, Walter. Cartografias de Gaia. São Paulo: FWM, 2018. ............................. Ode à vida. São Paulo: FWM, 2020.