SOCIEDADE
DEBATE
Prós e Contras Paulo Ferrero e Viviane Aguiar têm posições diferentes sobre a importância da calçada portuguesa
mal cortada, sistematicamente ocupada por carros. Chegámos a um estado em que realmente… Eu já caí, uma série de pessoas já caiu – sobretudo senhoras, por causa dos saltos altos –, e as pessoas de idade têm dificuldade. Também é preciso ver que há vários níveis de intervenção: nas ruas íngremes é mais perigoso, quando as pedras estão muito polidas ou esburacadas. Aí, não tenho nada contra a mudança da calçada. > Temos aqui um ponto de encontro?
LUÍS BARRA
VA: Aparentemente. PF: Mas pedrinhas do demo não são… VA: Eu disse isso com todo o carinho. PF: A calçada portuguesa é um símbolo de
A calçada, essa horrível beldade Uma inimiga e um amigo do pavimento típico português partem pedra, quando Lisboa discute a sua substituição por pisos mais práticos POR LUÍS RIBEIRO
Q
uando chegam à Praça do Rossio, Viviane Aguiar, 37 anos, e Paulo Ferrero, 50, parecem trajados para desempenhar papéis opostos: ela vem de vestido com padrão a preto e branco, como a calçada que detesta; ele, de roupas pardacentas, como o cimento que abomina. A VISÃO pediu à autora do blogue A Casinha da Boneca e ao fundador do Fórum Cidadania Lx, que lançou a petição Pela manutenção da calçada portuguesa, para debaterem as vantagens e desvantagens deste piso típico, a propósito do Plano de Acessibilidade Pedonal, da Câmara de Lisboa, que levanta a possibilidade de mudar o pavimento em várias zonas da cidade. À mesa de uma casa de chá da Rua do Ouro, 84 v 19 DE DEZEMBRO DE 2013
falaram das responsabilidades da Câmara, de turistas e, claro, de saltos altos. > O que tem contra a calçada portuguesa?
Viviane Aguiar (VA): Não vou tratá-la por calçada portuguesa. Vou apelidá-la, carinhosamente, de pedrinhas do demo, que é a melhor descrição das ditas pedras que nos dão cabo da saúde e dos nervos. São um perigo para a segurança pública, e, nessa medida, não se podendo alcatifar a cidade ou acolchoá-la como nos parques infantis, arranjase uma situação de compromisso. Paulo Ferrero (PF): Pedrinhas do demo … [risos] Compreendo que haja muita gente que não gosta da calçada portuguesa, neste momento, como ela está: mal colocada,
todo o País, não só da cidade. VA: Mas até que ponto devemos mantê-la quando há tanta desvantagem? As calçadas são uma evolução das ruas de terra batida. Acho que devia haver uma terceira etapa de evolução natural para um piso mais consentâneo com o nosso dia a dia, que está, neste momento, a ser posto em causa. PF: Não, não acho que esteja… VA: Olhe que eu acho que sim. Experimente pôr uns saltos altos... PF: [Risos.] VA: Com todo o respeito! PF: Como no filme do Almodôvar? VA: Uma família em que a mãe está de salto alto e tem um carrinho de bebé, em que o pai, coitado, se magoou e anda de muletas… PF: Os saltos altos fazem mal às senhoras. Fazem mal à coluna. VA: Mas fazem tão bem a outras coisas das senhoras... E dos senhores. PF: E não é só o salto alto. É mais o salto de agulha. VA: Não entremos por aí… A cidade seria tão mais cinzenta se as senhoras usassem chanatos! Não vamos promover a chanatização de Lisboa. PF: Estamos a falar de vários níveis da calçada. A artística não está em causa. A câmara não vai mexer muito nos pontos turísticos, o que até é engraçado: o turista já pode cair, mas o lisboeta não. VA: A verdade é que há muitas queixas dos turistas. Dizem: «São tão bonitas, aquelas pedrinhas, mas fazem-nos cair.» PF: Quando fizemos a petição, houve amigos que nos mandaram artigos de estrangeiros a dizer precisamente o contrário, que era um ex-líbris da cidade.
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VA: Não temos de pensar nos estrangeiros, mas nas pessoas que andam na cidade diariamente. A calçada é bonita, mas esqueço a beleza quando não é funcional. > Mas não é parte da identidade da cidade?
Mudança A tradicional calçada portuguesa está a desaparecer de várias ruas de Lisboa, como sucedeu já na rua de São Nicolau (em cima), na zona histórica da cidade
> Mesmo que tudo fosse feito na perfeição, não é
verdade que a calçada portuguesa é muito mais exigente do ponto de vista da manutenção? PF: Não sei. Isso dizem os adversários da
calçada. O que eu acho é que a calçada contribui para a permeabilidade dos solos, ao contrário dos outros pisos que andam a pôr, e além do mais dignifica, ou devia dignificar, a profissão do calceteiro. VA: É uma profissão muito dura, não? E essas profissões tendem a desaparecer. PF: Mas até há métodos automáticos e maquinaria que permitem fazer a calçada. VA: Então é para manter a tradição e fazemos a calçada com máquinas? PF: Antes colocar uma pedra cortada por uma máquina do que aquele cimento que estão a pôr nas Avenidas Novas. Uma coisa horrorosa. Outro aspeto: a Câmara disse que não ia intervir nas zonas históricas. Mentira. Já interveio na Rua da Vitória, no miradouro de Santa Catarina, com pedra lioz, e na 5 de Outubro e no Areeiro, com uma mistura de betão e materiais horríveis. 86 v 19 DE DEZEMBRO DE 2013
PF: Não sei, não sei. O que eu sei é que é um elemento característico de Lisboa, permeável e amigo do ambiente, exportável, responsável pela luminosidade da cidade… Faz sentido a Câmara substituir a calçada em zonas íngremes, passeios estreitos. > Resumindo, trocava de caras os saltos altos
JOSÉ CARIA
mantenha em determinadas zonas. O que não faz sentido é vermos habitualmente pessoas a irem pela estrada… PF: Porque está mal colocada! VA: … Ou pelas ciclovias. As pessoas andam pelas ciclovias para evitarem os passeios. PF: Eu sei. Eu também ando. O passeio está esburacado, vai-se pela ciclovia. Depois, leva-se com uma bicicleta. VA: Então estamos a chegar a outro ponto comum. Concorda que esta calçada, da forma como está, é péssima. PF: Ah, mas então o demo é a Câmara que não trata da calçada convenientemente. Olhe, as obras na via pública: cada empresa que abre um buraco, quando volta a pôr a pedra, deixa aquilo tudo mal. Ora não põem o cimento em dose adequada com a areia, ora não cortam bem… Onde há uma obra, já se sabe que vai haver asneira. Depois, vem uma chuvada, um carro em cima do passeio, e pronto, um buraco.
GONÇALO ROSA DA SILVA
VA: Por isso mesmo, parece-me bem que se
pela calçada. PF: Não é isso que está em causa. A minha > Não admite alteração nem nessas zonas?
PF: Não. Para quê? São zonas quase planas. Precisam é de bom tratamento. Além disso, a calçada é responsável pela grande luminosidade da cidade. VA: Mas isso não se resolveria com outro tipo de pedra clarinha? PF: Isso não sei, mas o que estão a pôr não é outra pedra. É cimento. > A Viviane considera que a calçada portuguesa se está a demitir da sua função primordial, que é servir de piso para caminhar? VA: Precisamente. Cadeiras de rodas, ido-
sos, senhoras de salto alto, pessoas de muletas, invisuais… PF: Daqui a pouco, só temos passadeiras rolantes. VA: Basta um piso funcional. PF: Mas a calçada é funcional! VA: Da forma como está, não é. PF: Então estamos de acordo. > E a calçada é mais cara do que outros pisos.
PF: Quem disse? > Só pelo facto de ser um processo moroso e
manual…
mulher também usa saltos, e nunca caiu. Cai-se quando se está distraído ou se tem pouca sorte e não se vê o buraco. [Risos.] > Não é mais cansativo, mesmo para os homens, caminhar na calçada portuguesa? PF: É, é. Talvez seja, sim. Sente-se na sola. > Mas, para si, não é uma diferença que o faça pôr a calçada em causa. Já no caso da Viviane… VA: Faz toda a diferença. Eu junto vários fa-
tores: é o salto alto, é o carrinho de bebé, são as entorses crónicas nos joelhos. PF: Pois, está em má condição. É evidente. VA: Mesmo quando está bem mantida, também é uma espécie de rinque, muito lisinha. PF: Se estiver muito polida, é, mas pode-se enrugar. Há técnicas para evitar isso. Claro que não evitam tudo. Se vem chuva… VA: A chuva é uma maravilha, para isso. Se estivéssemos numa sociedade em que as pessoas processassem com frequência, como noutras, a Câmara já estava carregada de processos cíveis à conta de acidentes, com pedidos de indemnização. Eu própria já estaria rica. PF: E quem processasse a Câmara, teria razão. A Câmara é que tem a responsabilidade de manter a calçada em condições.