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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
TATIANA BORBA DE VASCONCELLOS
AUTORIA, SELF E NARRATIVA
São Paulo 2006
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TATIANA BORBA DE VASCONCELLOS
AUTORIA, SELF E NARRATIVA
Monografia a ser apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Terapia Familiar e de Casal do Núcleo de Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Professora Dra. Rosa Maria S. de Macedo.
PUC - São Paulo 2006
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Ao Rodrigo, com quem compartilho a minha vida e me incentiva nas minhas melhores experiĂŞncias.
E a todos aqueles que me influenciaram direta ou indiretamente no meu caminho de autora.
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SUMÁRIO RESUMO....................................................................................................................10 INTRODUÇÃO............................................................................................................11 1. SELF.......................................................................................................................15 1.1. O Si Mesmo ou Self.....................................................................................16 1.2. Sobre o Pensamento Moderno e suas Conseqüências para Um Entendimento de Self............................................................................17 1.3. Sobre o Pensamento Pós-Moderno e suas Conseqüências para um Entendimento de Self...................................................................21 2 – AUTORIA, SELF E NARRATIVA..........................................................................28 3 – A FAMÍLIA COMO CO-AUTORES RELEVANTES PARA A CONSTRUÇÃO DO SELF..............................................................................................................35 4 – JUSTIFICATIVA...................................................................................................39 5 – OBJETIVOS.........................................................................................................40 6 – MÉTODO..............................................................................................................41 6.1. Procedimentos.........................................................................................41 7 – ANÁLISE DOS RESULTADOS............................................................................44 7.1. Construção e Re-contrução de Histórias: Quem são os Participantes?.44 7.2. Co-autores Relevantes das Histórias Construídas..................................51 7.3. Sobre a Experiência de Ser Autor...........................................................54 7.4. Sobre a Experiência de Não ser Autor....................................................62 8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................68 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................71 ANEXO 1. Consentimento Livre e Esclarecido..........................................................75 ANEXO 2. Entrevistas I, II e III...................................................................................76
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RESUMO
AUTORIA, SELF E NARRATIVA Tatiana Borba de Vasconcellos NUFAC – Núcleo de Família e Comunidade da PUC/São Paulo Este trabalho teve como objetivo estudar um o fenômeno largamente citado por teóricos e terapeutas da terapia familiar mais especificamente de sua vertente narrativa, a Autoria. Para a apresentação e discussão deste fenômeno recorri a um levantamento de bibliografia acerca do tema, buscando articular os diversos entendimentos proposto pelos diferentes autores, de maneira a favorecer uma articulação útil para uma melhor compreensão do conceito de Autoria. Para a fundamentação teórica foram adotadas referências epistemológicas pós-modernas que possibilitaram um entendimento de ser humano concebido como em constante construção através da linguagem, por meio dos significados atribuídos às experiências vividas. Afim de atingir o objetivo proposto foram entrevistados três participantes. Como instrumento de investigação desta pesquisa foi feita análise das narrativas, através da definição de categorias sobre as diferentes maneiras que os participantes se vêem enquanto autores ou não de suas vidas. Autoria pôde ser compreendida como um fenômeno psicológico narrativo, construído a partir de audiências significativas, ou seja, na relação com pessoas de relevância na vida do indivíduo, além de ser uma apropriação por meio da narrativa, da própria história, implicando em um senso de liberdade para o exercício de escolha e de condução da própria vida. O fenômeno da Autoria foi estudado também a partir de seu contraponto, ou seja, através das narrativas em que não houve uma vivência de ser autor por parte dos participantes, levando a considerar através dos relatos, como sendo uma experiência de sofrimento. Este fato me levou a pensar a Autoria como algo inerente à condição humana, que sempre buscamos atingir através das nossas ações no mundo, não só evitando o mal estar provocado pela sensação de não sermos donos de nossa própria história, mas saboreando o prazer da realização e condução dos projetos de vida.
Palavras-chave: Autoria, autor, narrativa, linguagem, self.
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INTRODUÇÃO
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Contextualizando o Tema
Frequentemente ouço, entre os psicólogos clínicos, ao se referirem aos seus casos clínicos, a seguinte frase: “Meu cliente é agora mais autor da sua própria vida. Ele se apropriou da sua história, tem mais autoria.” A partir de falas como estas, passei a me perguntar a qual processo estes psicólogos se referiam, o que é se tornar mais autor? O que faz as pessoas para que as tornem mais autoras de suas histórias? Uma vez que para toda narrativa tem que ter um autor, não seriam necessariamente todas as pessoas, autoras de suas narrativas, independente da condição clínica em que se encontram? Parece-me, portanto, que existe aqui uma contradição, pois para toda narrativa há o pressuposto de que ela foi criada por um autor. A que então referem-se as frases utilizadas por aqueles psicólogos? Na tentativa de construir um entendimento sobre esta questão, comecei a levantar outras perguntas que podem ajudar nesta construção. São elas: em quais premissas nos baseamos quando falamos que alguém é autor de sua própria vida? Somos de fato autores da nossa história? Somos autores ou somente reprodutores de histórias já existentes? Em suma, o que é autoria? Ao buscar a literatura sobre o tema, constatei que para o mesmo fenômeno, são usados termos diferentes: autoria (Epston, White e Murray, 1992), agência (Harré e Gillett, 1999) e protagonismo, metáfora utilizada para referir-se a uma pessoa que
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apropria-se da própria história, passando a ser a atriz (ator) principal das suas narrativas construídas. Para não gerar confusão quanto aos termos, optei pela utilização do termo autoria por entendê-lo como mais adequado para representar o fenômeno que pretendo compreender. Utilizamos
cotidianamente
a
palavra
autoria
quando
invocamos
a
responsabilidade de alguém por qualquer coisa realizada, qualquer ação, como por exemplo: criar uma obra de arte, um livro, realizar uma ação criminosa, uma caridade, fazer uma declaração de amor, por palavras ou gestos. Enfim a autoria vai desde a responsabilidade
por criações artísticas até
as
ações cotidianas como
um
comportamento ou uma palavra dita a alguém. A escolha por esta palavra se deu, portanto, por considerar autoria uma metáfora que nos conecta diretamente com o sentido de responsabilidade, ação, liberdade e escolha que está presente na realização, por exemplo, de uma obra literária. Assim, quando dizemos que alguém é autor da sua própria vida estamos nos referindo a um fenômeno psicológico, em que a responsabilidade pelas escolhas feitas são sentidas e reconhecidas. Entendo o ser autor, como uma apropriação, pelo indivíduo, da sua própria história, implicando necessariamente em um senso de liberdade e possibilidade de escolha e de condução da vida. Por outro lado, se somos responsáveis pela autoria das histórias que construímos, como explicarmos os limites que vivenciamos nas nossas experiências como autores? Harré e Gillett (1999) fizeram uma relação entre agência, personalidade e liberdade. Segundo eles, a pessoa é agente dentro de um contexto histórico e cultural, e o que ela pode vir a ser sofre influências deste contexto. A conquista da liberdade
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está ligada à capacidade da pessoa em articular-se em seu meio: com as possibilidades discursivas disponíveis, com os posicionamentos e conseqüente validação do meio. Desta forma, “agimos livremente na medida em que podemos negociar, mais ou menos, com base nas próprias habilidades discursivas, quais ações seriam mais apropriadas às nossas intenções em diferentes contextos.” (HARRÉ; GILLETT, 1999, p. 110). Epston, White e Murray (1992) desenvolveram a terapia da ‘re-autoria’. Sua prática baseia-se na idéia de que construímos significados para as nossas experiências e criamos um sentido de self a partir destas. Essas construções, muitas vezes ocorrem em um meio opressor, podendo restringir a pessoa a um discurso dominante negativo de si mesma. O objetivo da terapia é externalizar o problema opressor e construir histórias alternativas com aspectos ignorados anteriormente devido à ênfase no discurso dominante. A terapia é, portanto, um contexto para que a autoria seja retomada a partir da reconstrução dos significados. Faz sentido com a minha forma de entender autoria, a proposta de Epston, White e Murray (1992), de uma conversação terapêutica de re-autoria, ou seja, da possibilidade de um, self passível de re-construção, e portanto, os objetivos deste trabalho serão criar uma fundamentação teórica sobre autoria e ser autor além de compreender a vivência e as conseqüentes narrativas construídas pelas pessoas com relação a sentirem-se autoras ou não em suas vidas. No capítulo 1 será discutida a questão do self e as mudanças ocorridas neste conceito, a partir da adoção do paradigma pós-moderno, conceito este de importância fundamental para a discussão do tema deste trabalho, para então, no capítulo 2 ser feita uma articulação entre os conceitos de autoria, self e narrativa.
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No capítulo 3 discutirei a idéia de família como co-autores relevantes para a construção do self.
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1 – O SELF
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A seguir, será delineado o caminho pelo qual o conceito de self ou si mesmo percorreu ao longo do tempo, considerando as premissas que o sustentavam até meados da década de 80 e as mudanças nessas premissas que ocorreram a partir desta mesma década. As mudanças às quais me refiro são mudanças epistemológicas, ou seja, referentes à forma que concebemos o conhecimento, e que repercutiram não somente na psicologia, mas também em outras áreas da ciência. Cabe também ressaltar que essas mudanças não abrangem ainda todo o campo das ciências e da psicologia. O pensamento pós-moderno, ao relativizar o que é a verdade e defender que ela é construída e tem validade dentro de um determinado contexto, engloba o pensamento moderno. (VASCONCELLOS, 2003). Os pressupostos modernos de se apreender uma realidade, são vistos como mais uma possibilidade de se atingir um conhecimento, porém não a única forma. Portanto, muitos psicólogos e pesquisadores de forma geral defendem as suas teorias e formas de entender o ser humano a partir do pensamento moderno, o que não quer dizer que estão afirmando uma única verdade, e sim somente mais uma possibilidade.
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1.1 - O Si Mesmo ou Self.
Utilizarei as palavras si mesmo ou self para me referir ao que somos, em contraponto à personalidade, termo usado pela psicologia desde os seus primórdios e que pressupõe uma essência a ser acessada objetivamente. Esta forma de definição do que vem a ser o si mesmo, “que preexiste ao nosso esforço de descrevê-lo” (BRUNER, 2002, p.89), foi pautada em um paradigma moderno, e os métodos de pesquisa padronizados acabam por definir o próprio conceito que estamos estudando. Neste caso, quem define o si mesmo são os resultados obtidos pelos testes psicológicos. Esses resultados definem mais a pessoa do que o que ela tem a dizer a respeito de si mesma e de sua história. Em contraponto a esta visão essencialista de si mesmo, a partir de um referencial epistemológico pós-moderno, o homem passa a ser definido como um homem construído nas experiências relacionais, experiências estas que são transformadas em narrativas. Segundo Bruner (2002) no final da década de 70, início de 80, o si-mesmo, ou self, começa a ser compreendido como um contador de histórias e a narrativa passou a ter um destaque nos discursos psicológicos. A seguir buscarei explicitar brevemente como se deu esta mudança epistemológica no campo das ciências e na psicologia, e discorrerei sobre a sua influência no entendimento de self.
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1.2 - Sobre o Pensamento Moderno e suas Conseqüências para um Entendimento de Self
Com o fim da Idade Média, o homem passa a entrar em contato com uma grande diversidade de produções filosóficas, teológicas, artísticas, musicais e literárias e novas perspectivas passam a ser consideradas pelas pessoas que, sem as referências estáveis e seguras ofertadas pela crença religiosa, passam a buscar individualmente e reflexivamente um caminho que garanta a sua continuidade através de um conhecimento seguro e confiável. (FIGUEIREDO, 1996) Este foi o contexto favorecedor de uma nova forma de conhecimento que deu conta das inquietações da época, ocasionadas pela falta de referências seguras acerca do mundo e do si mesmo. Assim, caracterizou-se o início do que denominamos de ciência
moderna,
pautada
em
pressupostos
epistemológicos
objetivistas
e
representacionistas. A realidade passa assim a ser considerada como algo passível de ser acessada objetivamente através de uma mente que constrói representações fidedignas desta realidade, tal como um espelho que reflete a realidade do mundo, ou seja, a sua essência. De acordo com Franklin, a ciência moderna “pressupõe um universo constituído fundamentalmente de regularidades e regido por leis matemáticas, de tal maneira que os objetos do mundo possam ser sujeitos à previsão e ao controle”. (FRANKLIN, 1998, p. 85) Através de um método de pesquisa o observador assume um lugar de neutralidade em relação ao objeto a ser pesquisado. Para garantir esta neutralidade e para que a representação da realidade seja considerada fidedigna, o pesquisador deve separar-se de sua subjetividade, para que o conhecimento não seja contaminado. Para
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que tal separação seja possível é então desenvolvido um conjunto de ações que permita a prevalência de um olhar racional por parte do pesquisador em detrimento de suas impressões subjetivas frente ao fenômeno observado. Foi criado, portanto, o Método Científico, tendo como representante maior desta proposição René Descartes. Segundo Figueiredo (1996), a cisão operada pelo método de pesquisa moderno, trouxe um ideal de separação entre mente e corpo. A psicologia, pautada em uma epistemologia moderna e objetivista, baseada nos pressupostos descritos, entende o self como uma instância a ser acessada e desvelada através dos testes psicológicos ou de um exame acurado. O self, segundo esta perspectiva, é passível de ser observado e quantificado, ou seja, através de um exame meticuloso chegamos à natureza, ou essência, do self. Segundo Anderson e Goolishian (1996), para as psicologias tradicionais, tais como, a fenomenologia, as teorias psicodinâmicas, psicanalíticas e humanísticas o si mesmo é visto como uma entidade de natureza diferente de todos os fenômenos psicológicos, tais como memória, percepções, cognições, emoções, sentimentos. Seria uma entidade compreendida como acima desses fenômenos e controladores destes. De acordo com esta visão, o diagnóstico psicológico, resultado da quantificação dos resultados, e a busca pelo que realmente somos, partindo de um entendimento essencialista de homem, são segundo Gergen (1992) um produto de um momento histórico específico que teve início com a revolução tecnológica do século XX. Influenciados pela concepção moderna de mundo, a psicologia passou a utilizar as máquinas como metáfora para entender, prever e controlar os comportamentos humanos. A mente passou a ser vista como semelhante a um computador, passível de
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correção quando o seu funcionamento desvia do que é considerado culturalmente correto. Esses desvios passaram a ser nomeados e segundo Gergen:
Ao tratar de explicar os comportamentos indesejáveis, os psiquiatras e psicólogos deram origem a um vocabulário técnico das deficiências que se difundiram entre o público em geral, de modo que todo mundo tem estado consciente dos problemas de saúde mental. E não só se tem adquirido um novo vocabulário, mas através dele se tem levado a vermos a nós mesmos e aos demais de acordo com essa terminologia, julgando-nos superiores ou inferiores, dignos ou não de admiração ou de adesão. (GERGEN, 1992, p. 34)
Esse vocabulário, típico de uma concepção moderna de mundo, passou a constituir o self de forma debilitada após ser assimilado pela cultura, culminando em uma crescente “espiral mórbida”. (GERGEN,1992, p.34). A linguagem assim, utilizada como representação de uma realidade e de um self sadio ou doente refletiu uma prática psicoterapeutica em que esta essência, em caso de doença, é restabelecida, concertada através de técnicas instrutivas, em que o terapeuta diz o que o cliente deve fazer para ser uma pessoa normal, ou seja, conforme a maioria. Isto sem antes um diagnóstico ser feito, muitas vezes a partir de testes psicológicos, e a pessoa passa a se construir a partir deste diagnóstico de doença que a define possivelmente para o resto de sua vida, sendo também assim definida e tratada socialmente criando um círculo difícil de se libertar. Este carimbo ocorre também através de testes que são aplicados, revelando o que a pessoa realmente é e determinando muitas vezes o futuro do indivíduo submetido a tais testes, por exemplo, em testes para vagas de emprego ou universidades. Ocorrendo, portanto, uma determinação do futuro das pessoas, em que ter ou não tais carimbos favorece ou não os seus respectivos futuros na sociedade.
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Por volta de 1970, os parâmetros de um pensamento moderno de ciência e seus pressupostos de objetividade no conhecimento não podem mais ser sustentados, e o pensamento pós-moderno passa a criar expressividade (GRANDESSO, 2000). A idéia de conhecimento como representação da realidade passa a ser contestada, assim como a separação entre pesquisador e objeto a ser pesquisado. Esta mudança de perspectiva se dá inicialmente no campo da filosofia e somente mais tarde no campo da física, da biologia, das ciências humanas, e consequentemente dentro da psicologia.
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1.3 - Sobre o Pensamento Pós-Moderno e suas Conseqüências para um Entendimento de Self
O conjunto das mudanças ocorridas nas diversas áreas do saber configura uma mudança paradigmática nas ciências. Paradigma é um conjunto de regras e regulamentos que funciona como filtros através dos quais entendemos o mundo e nos guiamos nas soluções dos nossos problemas. (VASCONCELLOS, 2003). Dentro da ciência tradicional, consideramos os pressupostos modernos e as diferentes teorias criadas, nas diferentes áreas do saber, como inseridos no paradigma moderno. Os pressupostos básicos são compartilhados por uma ampla comunidade e são subjacentes a todas as práticas científicas. Os recentes questionamentos quanto às teorias e práticas inseridas no paradigma moderno levaram a uma mudança nos pressupostos básicos que as sustentavam, criando assim um novo paradigma denominado como paradigma pós-moderno. De acordo com Santos (2003) a crise na ciência moderna se deu por uma série de fatores sociais e teóricos. No campo teórico, Einstein iniciou o movimento de revolução científica ao propor as leis da relatividade e da simultaneidade, relativizando as leis universais propostas por Newton na área da astrofísica, eliminando o ideal de universalidade do saber. Heisemberg através da mecânica quântica, na área da microfísica, propôs o princípio da incerteza, demonstrando que as leis da física são probabilísticas e que não podemos observar um objeto sem a interferência do pesquisador, derrubando o mito da neutralidade do observador frente ao fenômeno observado.
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O
físico-químico
Ilya
Prigogine
contribuiu
significativamente
criando
desenvolvimentos para a área da microfísica através da teoria das estruturas dissipativas e o princípio da ordem através da flutuação. Santos refere-se às conseqüências dos pensamentos de Prigogine da seguinte maneira:
Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. (SANTOS, 2003, p. 48)
Maturana e Varela (2001) contribuíram para o desenvolvimento do paradigma pós-moderno, através de uma visão biológica do conhecimento. Defendem que o que conhecemos através da nossa cognição não existe independentemente de quem conhece e de sua estrutura. Segundo Maturana e Varela:
Na base de tudo o que iremos dizer estará esse constante dar-se conta de que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse fatos ou objetivos lá fora, que alguém capta e introduz na cabeça. A experiência de qualquer coisa lá fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível “a coisa” que surge na descrição. (MATURANA; VARELA, 2001, p. 31)
O contexto em que o fenômeno é estudado passa a ser fundamental no processo de conhecimento. Somos construídos em um determinado contexto e agimos conforme os significados criados a partir deste, e por outro lado construímos o contexto em que estamos inseridos. Segundo Pearce (1996) em grande parte do tempo reproduzimos o nosso contexto através das nossas ações, encaixando com o que está pré-configurado. Estas ações são regidas pela força contextual. A força implicativa é a forma que ele
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denomina para o efeito das ações no contexto vigente. Em algumas situações as ações podem ter força suficiente para mudar o contexto. Maturana e Varela (2001) demonstraram a importância do contexto no qual construímos os significados ao relatarem o caso das meninas lobos. Na Índia, em 1922, duas meninas foram resgatadas de uma família de lobos que as ‘criaram’ isoladamente dos humanos. Uma das meninas, a mais nova, morreu logo após serem encontradas e a outra sobreviveu por mais dez anos. Ambas encontravam-se em bom estado de saúde ao serem resgatadas, porém tiveram uma forte depressão ao serem separadas da família de lobos, culminando na morte de uma das meninas. A menina sobrevivente aprendeu a falar poucas palavras e a andar sobre as duas pernas, porém quem conviveu intimamente com ela relatou que nunca a sentiu verdadeiramente humana. Os autores argumentam que não estamos alheios ao nosso meio e estamos em aclopamento estrutural com o mundo e com os outros seres vivos, em um constante processo de adaptação que garante o nosso funcionamento como um sistema autopoiético. Para autores como Maturana e Varela (2001) e Glasersfeld (1994) o foco de preocupações de estudo tem base na biologia do conhecimento e suas teorias são denominadas como construtivistas. Para esses autores, segundo Schnitman e Fuks:
o conhecimento não é recebido passivamente nem por meio dos sentidos nem pela comunicação; é isto sim, construído ativamente pelo sujeito cognoscente. A função da cognição é adaptativa e serve para organizar o mundo experiencial do sujeito e não para descobrir uma realidade ontológica objetiva. Pela perspectiva construtivista, o conhecimento equivale a um mapa de atalhos de ações e pensamentos que, no momento da experiência, se tornaram viáveis. O que interessa é que encaixem o suficiente para assegurar esta viabilidade. (SCHNITMAN; FUKS, 1996, p. 246)
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De uma forma diferente, os autores construcionistas sociais entendem que as idéias que temos do mundo, os conceitos e as lembranças “surgem no intercâmbio social e se expressam na linguagem e no diálogo.” (SCHNITIMAN; FUKS, 1996, p.246). Os significados não são construídos dentro dos indivíduos e também não estão somente no ambiente e sim nas trocas interpessoais. A forma que construímos os significados está relacionada ao contexto em que vivemos, conforme mostrado no exemplo das meninas lobos. Esses significados são legitimados pela comunidade a qual estamos inseridos. Assim também ocorre com as comunidades científicas. Dentro de um paradigma pós-moderno, o conhecimento é validado não conforme leis gerais aplicáveis a todos os fenômenos estudados e sim através de um campo de consenso entre os cientistas. A psicologia tomou um novo rumo ao adotar os pressupostos pós-modernos. O self ou si mesmo passou a ser entendido como processual e não como uma entidade fixa que podemos acessá-la e estudá-la, descobrindo assim a sua natureza. O si mesmo é entendido por Bruner (2002) como um constructo, funcionando assim: tanto de fora para dentro, ou seja, com determinação do contexto cultural a qual está inserido, como de dentro para fora, ou seja, da mente para a cultura. De acordo com o mesmo autor, no início da década de 80, o si mesmo passa a ser visto como um contador de histórias e a narrativa passa a ocupar um lugar de destaque nos discursos psicológicos. Bruner (2002) descreve que um dos primeiros psicólogos clínicos a falar de um si mesmo narrativo, foi o psicanalista Donald Spence. Segundo ele, o ego, ou self, é um construtor de narrativas de ficção ou projetivas e o self não é capaz de descrever o fato real, a verdade histórica tal como se deu. O importante para Spence, é que essas
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narrativas construídas encaixem com a história real e que tenha uma utilidade na vida atual do indivíduo. O fato da narrativa ser verdadeira não é relevante. A posição de Spence pressupõe uma realidade externa, objetiva, porém somente nos aproximamos desta realidade, não a representamos tal como ela é. Apesar de ainda pressupor uma realidade externa, Spence fala de uma construção, o que representa um grande passo para um entendimento de self narrativo e mutável ao longo do tempo. Bruner (2002) nos conta ainda que Roy Shafer interessou-se não só pelo conteúdo das narrativas construídas, mas deu um passo além de Spence, pois deu destaque no como as narrativas são construídas. Para Shafer, tanto o que é contado como o gênero da narrativa são inseparáveis. É a partir de Shafer, que a metáfora da narrativa passa a ser utilizada em psicologia, tal como é conhecida hoje, baseada nos pressupostos de uma epistemologia pós-moderna. Segundo esta perspectiva, o self é “uma expressão cambiante de nossa narração, uma maneira de contar a própria individualidade. Muda continuamente e não está limitado ou fixado a um lugar geográfico ou a um momento no tempo”. (GOOLISHIAN; ANDERSON, 1996, p. 194) Desta forma, o si mesmo, cambiante e não estático, construído nas relações através das histórias contadas aos outros e a si mesmo, é definido por Goolishian e Anderson (1996) como uma autobiografia escrita e reescrita constantemente nas práticas sociais. Conforme os autores, o self é a expressão da capacidade humana para a linguagem e, portanto, um resultado do processo humano de construção de significados através desta.
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1.3.1 – Sobre as narrativas
Jerume Bruner propõe um entendimento das narrativas e de sua estrutura que considero útil para uma melhor compreensão de seus processos de constituição. Segundo Bruner (2001) em termos estruturais, nós construímos narrativas sobre o mundo real de forma muito parecida às narrativas do mundo fictício. As estruturas narrativas são muito limitadas apesar de podermos realizar infinitas versões a partir de poucas estruturas. Bruner (2001) sugere quatro tipos de estruturas: tragédia, comédia, romance e ironia. As histórias são impulsionadas por um problema, um desencontro entre agentes, atos, objetivos, contextos e meios. As histórias normalmente iniciam-se assim: “Estava andando pela rua tranquilamente quando...”. Neste momento acontece algo inesperado que muda o rumo dos acontecimentos, indo contra as expectativas de quem ouvia a história. Após este momento da narrativa, ocorre uma restituição da legitimidade inicial, ou uma nova ordem de legitimidade, para então acabar em uma conclusão que trás o narrador e o ouvinte para o momento atual, para o aqui agora, sendo que, frequentemente, culmina em uma avaliação sobre o que aconteceu na história narrada. (BRUNER, 2001). Bruner (2001) defende que aprendermos as sutilezas das narrativas é uma das principais maneiras de pensarmos sobre a vida, e que ao negociarmos as narrativas:
os narradores e os espectadores competentes podem aprender, e aprendem, a tornar a vida mais fácil ajudando uns aos outros a entender como suas histórias são elaboradas (...) o narrador onisciente é apenas uma convenção ficcional: na vida ele provavelmente representa uma ameaça à realização da
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negociação da narrativa. Nenhuma história pode ficar restrita aos limites de um único horizonte. (BRUNER, 2001, p. 96)
Partindo que a negociação é uma característica intrínseca às narrativas, Bruner aponta que ela não precisa ser um exercício da hegemonia, de uma unanimidade, e sim de uma maior consciência, implicando necessariamente e em maior diversidade. Como afirma Scheibe: “o confinamento solitário é a punição mais severa jamais imaginada para os seres humanos, porque proíbe qualquer participação em círculos de significados”. (SCHEIBE, 2005, p. 37)
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2 – AUTORIA, SELF E NARRATIVA
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Após explicitar a visão com a qual eu compartilho a respeito do si mesmo ou self, a intenção deste próximo capítulo é o de buscar compreender como se dá o fenômeno da autoria e do ser autor. Encontramos na literatura diferentes palavras que se referem ao mesmo fenômeno
que
pretendo
estudar
através
deste
trabalho:
Autoria,
re-autoria,
protagonismo e agência. Autoria, no meu entender, é a narrativa que construímos acerca de nós mesmos, de quem somos, como somos e do mundo que nos rodeia. Criamos assim teorias que são fundamentadas coerentemente nas nossas experiências, em um processo dialético de experiência e construção, que ocorre ao mesmo tempo e de forma integrada. Essas teorias são construídas por, bem como constroem lentes que usamos para compreender as nossas experiências vividas em diversos contextos. (GRANDESSO, 2000). O fato de construirmos essas narrativas não necessariamente implica em uma construção na qual a pessoa se reconhece como sendo autora de sua vida. Nem sempre há uma apropriação dessas histórias o reconhecimento da possibilidade de sermos autores. Quando falamos que uma pessoa é autora, nos referimos a um tipo de narrativa em que a pessoa se responsabiliza e se apropria de suas escolhas. Somos autores quando conseguimos construir, através das nossas habilidades narrativas, uma história em que há o reconhecimento do ser autor, ou seja, uma história em que a pessoa se
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responsabiliza pela própria vida, pelas escolhas feitas e se reconhece como parte desta construção constante de si mesmo e do mundo. Na presença de tal narrativa as experiências no mundo serão assim vivenciadas, criando um processo de ação no mundo coerente com essa narrativa. Desta forma, temos sempre a autoria da nossa vida, porém, nem sempre há o reconhecimento do ser autor: o protagonista da história pode ser, por exemplo, outras pessoas, as situações, ou seja, o ator principal não necessariamente é aquele que narra e constrói a história. Segundo Epston, White e Murray (1992) é muito comum em experiências opressoras de violência e abuso sexual infantil uma vivência de ter sido negada ao autor o direito de ser narrador de suas histórias. Neste caso, os personagens e coautores da história vivida contribuíram para uma construção de narrativa sobre si mesmo como não tendo o direito de ter voz ativa nas situações de sua própria vida. Acredito que este tipo de experiência acontece em diversos níveis: por exemplo, em momentos em que a vida se impõe e pessoas queridas morrem, quando sofremos violência urbana, enfim, quando somos submetidos a situações do nosso contexto em que nos resta pouca autonomia, ou seja, liberdade de ação, o que não quer dizer que não haja nenhuma, para resolvermos da forma que realmente gostaríamos. De acordo com Epston, White e Murray (1992) a vida é a representação dos textos e não somente textos. Os textos ou narrativas devem ser colocadas em prática, representadas no mundo, em audiências relevantes. Segundo ele, esta prática de representação no mundo das narrativas leva as pessoas a um sentido de autenticidade. Entendo que esta idéia mostra que a representação das narrativas em si mesma já é expressão de um eu autêntico, um legítimo Eu que não existe em algum lugar
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profundo, anterior ou submerso à representação. A autenticidade, ou seja, o que somos, não precisa ser descoberto, está presente a cada momento de sua existência na prática do viver e mudando a cada experiência, diferentemente do entendimento de outras abordagens psicológicas em que o objetivo é conquistar a autenticidade ou o que ‘realmente somos’ em uma busca eterna da essência. De acordo com Epston, White e Murray as narrativas “são uma unidade de significado que oferecem um marco para a experiência de vida”. (EPSTON;WHITE; MURRAY, 1992, p. 122) Vivemos e interpretamos as nossas experiências através das narrativas. Essas narrativas são construídas dentro de um contexto e resultam “do processo humano de produção de significados por meio da ação e linguagem, expressos nas histórias narradas nas quais cada um de nós é um co-autor.” (GRANDESSO, 2000, p. 214). As audiências as quais nos relacionamos e construímos o nosso self são segundo Grandesso (2000) de crucial importância, uma vez que, tornam-se co-autoras das nossas narrativas. Portanto, tanto a construção que fazemos de nós mesmos são elementos que nos constituem, como as construções que fazemos dos co-autores das nossas histórias. As possibilidades do self e das narrativas que estão em constante mudança e que o compõem, sofrem uma limitação do contexto a qual o indivíduo está inserido. Esta limitação existe devido ao contexto sócio histórico ao qual pertencemos. Por outro lado, é o que nos coloca em condição de Seres Humanos, nos oferecendo possibilidades e ao mesmo tempo limitando o panorama de escolhas. Este processo de restrição versus possibilidades se dá a partir da nossa capacidade de construção de significados através da linguagem. Por exemplo, quando
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aprendemos a palavra maçaneta e usamos este conceito, passamos a agir conforme este aprendizado, realizamos então ações que de outra forma não faríamos. Neste caso, há a presença do ambiente que nos molda e diz o que é certo ou não fazer, mas por outro lado, podemos descartar esta forma de agir com a maçaneta. A partir do momento em que é descartada a forma comum de usar a maçaneta, passamos a fazer parte de um mundo em que as maçanetas podem ser usadas para infinitos objetivos. (HARRÉ; GILLETT, 1999) Wescott citado por Harré e Gillett (1999) entende o conceito de liberdade como uma atividade discursiva que se manifesta através do que é dito pela pessoa a respeito da sua própria vida. Aproximando o conceito de liberdade defendido por Harré e Gillett (1999) com a idéia que entendo de ser autor podemos pensar em um indivíduo livre para escolher através de sua capacidade para a linguagem, qual a melhor forma de agir dentro do contexto ao qual ele está inserido. Autoria neste sentido é o resultado final dessas escolhas, é a história que contamos a respeito de nós mesmos, inclusive quando a história contada é uma história em que a pessoa não se reconhece como autor, como dono de sua própria história. O ser autor, portanto é um reconhecimento da própria pessoa através de uma narrativa, e consequentemente em suas ações no mundo, em que esta possibilidade está sempre presente. Esta concepção de homem que concebe a possibilidade de ser autor, do exercício da liberdade de escolha sobre si mesmo choca-se diretamente com concepções construídas sobre o discurso moderno.
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As teorias tradicionais em psicologia, baseadas em uma epistemologia moderna durante muito tempo restringiram as vidas dos clientes em termos narrativos e consequentemente em termos existenciais. As práticas de diagnóstico objetivo, tão utilizadas pelos profissionais de saúde mental, rotulam as pessoas de uma forma tal, que acabam por limitar as suas vidas, criando narrativas restritas e limitadas em torno da doença diagnosticada. Atualmente, os manuais de referência para a classificação das doenças mentais são usados como uma forma para explicar e dar sentido aos comportamentos e formas atípicas de ser e pensar, ou seja, como delineamento da anormalidade psicológica. De acordo com o paradigma moderno, no qual se baseia a prática psiquiátrica, o diagnóstico acaba, equivocadamente, sendo visto como a única verdade a respeito do cliente, e com isso qualquer comportamento emitido por quem foi diagnosticado tende a ser compreendido a luz desta lente de doença, criando-se assim uma realidade, um estigma do qual o cliente dificilmente pode se desvincilhar (ROSENHAN, 1994). Acabando infelizmente por limitar outras possibilidades narrativas a cerca de si mesmo e de suas experiências. O self passa a ser construído em torno de uma doença, que como tal, é uma possessão do indivíduo e não uma possibilidade narrativa geradora de sofrimento dentro de um determinado contexto. Esta perspectiva “desvaloriza o homem e oprime o cidadão”. (SAZSZ, 1980, p.13). Durante muito tempo, a psicologia pressupunha sermos seres passivos frente a um curso biologicamente programado. O desenvolvimento era visto como sendo subordinado aos processos biológicos. A alimentação, por exemplo, era vista como um elemento necessário para que se cumprisse este curso biológico e imutável. (LEWIS, 1999)
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Outras duas posições, que igualmente, entendem a nossa interação com o mundo
de
forma
passiva,
são
as
comportamentalistas e
psicanalistas.
Os
comportamentalistas entendem que somos resultado dos estímulos apresentados pelo ambiente. Já os psicanalistas entendem que somos as conseqüências das relações primárias dos nossos primeiros anos de vida. Ambas sugerem um entendimento de desenvolvimento causal e previsível. Dentro de um enfoque pós-moderno, não somos seres passivos, consequências de forças vindas do ambiente e nem tão pouco reprodutores das primeiras relações. Segundo Lewis: “O controle social e os imperativos biológicos podem ser vistos não como forças controladoras, e sim como dados que informam as crianças a respeito de sua natureza e da natureza de seu ambiente”. (LEWIS, 1999, p. 44) Partindo desta concepção, somos seres ativos, participantes da nossa interação com o meio, com limites biológicos e sociais, porém não somos determinados pela nossa história passada e ela não define a direção que tomaremos no futuro. Uma pergunta importante quanto a esta argumentação é: porque então estudamos os eventos anteriores para entendermos a história construída hoje? Para esta pergunta Lewis (1999) defende que o evento anterior pode ou não ter importância para a narrativa construída depois. Como seres em constante interação, as construções acerca de si mesmo e do mundo estão em mudança contínua. Sendo assim, a nossa visão do passado é uma interpretação que fazemos deste no momento presente. Nós viajamos no tempo através da nossa imaginação. Interpretamos o nosso passado e o nosso futuro à luz do que somos no momento presente, em suma, o presente constrói o passado e o futuro.
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Para concluir, de acordo com Grandesso “as narrativas que construímos sobre nossas vidas e sobre as pessoas que somos tecem os significados que atribuímos às nossas experiências em um sistema organizado em torno de um enredo que dá sentido ao nosso passado”. (GRANDESSO, 2000, p. 224)
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3 – A FAMÍLIA COMO CO-AUTORES RELEVANTES PARA A CONSTRUÇÃO DO SELF ______________________________________________________________________
Partindo da idéia de que o self é construído a partir das audiências relevantes que se tornam co-autoras das narrativas que construímos acerca do nosso si mesmo, do mundo e das pessoas ao nosso redor, penso que, é importante tomarmos a família como uma audiência significativa para a construção do self, uma vez que, a família é a primeira referência que temos a partir do nosso nascimento e, portanto, são co-autores importantes na construção das primeiras histórias acerca de nós mesmos. A abordagem sistêmica, atualmente referência teórica para a Terapia Familiar, também sofreu modificações a partir das mudanças paradigmáticas que ocorreram após a década de 80. A partir dessas mudanças os sistemas humanos, segundo Anderson e Goolishian passaram a ser definidos como:
existentes somente no terreno do significado (...) Quando falamos em linguagem não focalizamos especialmente nos símbolos, estrutura ou estilo; mas também nos referimos ao significado linguisticamente mediado e contextualmente relevante que é interativamente gerado através de palavras e outros atos comunicativos. (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988, p. 49)
De acordo com Hoffman (1998) os terapeutas de família abandonaram a metáfora da Cibernética e adotaram a hermenêutica, sendo denominada por seus seguidores de virada interpretativa. Os sistemas familiares passaram a ser entendidos não mais como circuitos de feedback em funcionamento para manter a sua homeostase,
e
sim
como
“sistemas
humanos
geradores
de
linguagem
simultaneamente geradores de sentido” (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998, p. 36)
e
36
Portanto, um grupo de pessoas em relação, como a família, pode ser definido como pessoas em constante interação através da linguagem. Conforme Anderson e Goolishian (1988) os sistemas humanos são sistemas lingüísticos, e através do diálogo, no campo do significado, configuram uma rede de comunicação em que a realidade é compartilhada intersubjetivamente dentro de um contexto. A construção do significado e a construção dos sistemas humanos “é um processo criativo, dinâmico e em constante mudança” (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998). Na cultura ocidental contemporânea, o primeiro contato que estabelecemos a partir do nosso nascimento é a família. É na família que construímos nossas primeiras narrativas sobre quem somos, ou seja, referentes ao nosso self, e sobre o mundo que nos cerca, até que outros contextos comecem a ser acrescentados à vida da criança, enriquecendo e ampliando o campo de possibilidades narrativas. De acordo com Minuchin (1982) a família é a matriz da identidade do indivíduo, ou seja, é o primeiro contexto em que a criança pertence e cria um sentido de identidade. É na família que ocorrem as primeiras experiências de pertencimento versus individuação. O sentido de pertencimento se dá a partir do aprendizado que a criança obtém a partir das atribuições que são dadas a ela, por exemplo, seu nome, ou o fato de ser filha e neta de determinada pessoa. Esses são fatores importantes na sua existência como indivíduo e na forma como se reconhece. O sentido de individuação ocorre a partir das relações com outros contextos familiares ou extrafamiliares. Essas experiências delimitam áreas de autonomia em que a criança passa a existir independentemente da relação com a família de origem. Para Minuchin (1982) “cada sentido de identidade individual é influenciado por seu sentido de pertencimento a diferentes grupos”. (MINUCHIN, 1982, p. 53)
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Assim, podemos pensar a família como o primeiro contexto em que a criança aprende o quanto ela pode ou não ser independente, e agir de forma igual ou diferente de seus membros. Podemos fazer uma aproximação do processo de individuação de Minuchin com a autoria. Assim, a família é a primeira escola que nos ensina significativamente a sermos, ou não, autores, ou seja, nos ensina a pensarmos mais ou menos como responsáveis e livres para tomarmos decisões ou fazermos parte de diferentes grupos. Ela dá as primeiras chaves para portas diferentes, para fazermos parte de grupos que nos influenciam de formas diferentes e separadas das primeiras referências, nos instrumentalizando para sermos autores. Berger e Luckmann (1999) chamam de socialização primária o primeiro contato da criança com o mundo. As pessoas responsáveis pela inserção da criança na sociedade são denominados de outros significativos. Os outros significativos atuam como base inicial da construção da identidade ou self do indivíduo em um processo em que a criança assume o mundo o qual os outros significativos vivem, compreendendo-o, internalizando-o e tornando-se este mundo. A socialização secundária é a introdução do indivíduo a outros contextos sociais além da família. (BERGER; LUCKMANN, 1999) Segundo Berger e Luckmann:
A criança não interioriza o mundo dos outros que são significativos para ele como sendo um dos muitos mundos possíveis. Interioriza-se como sendo o mundo, o único mundo existente e concebível. É por essa razão que o mundo interiorizado na socialização primária torna-se muito mais firmemente entrincheirado na consciência do que os mundos internalizados nas socializações secundárias. (BERGER; LUCKMANN, 1999)
Bruner (2001) ao ressaltar a importância do outro na construção do self atribui aos seres humanos duas características: agência e colaboração. Segundo ele, o sujeito
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é agente, ativo e intencional em suas ações, porém a mente não só é ativa por natureza, mas também busca diálogo com outros sujeitos também ativos. Ao estarmos em diálogo, compreendemos o outro, as suas histórias e também a nós mesmos, através de uma ação colaborativa. Este processo ocorre sempre que estamos em conversação e em diferentes contextos. Além da característica de agente, Bruner (2001) aponta uma outra característica do self que é, segundo ele, universal: a de avaliação. Esta se caracteriza por uma avaliação que fazemos quanto a eficácia em sermos agentes, ou seja, em realizarmos os nossos objetivos ou o que nos é solicitado. A este fenômeno de avaliação da eficácia em ser agente Bruner denomina como auto-estima. Segundo ele: “O manejo da autoestima nunca é simples e nunca se acomoda, e seu estado é afetado de maneira contundente pela disponibilidade de apoios fornecidos de fora” (BRUNER, 2001, p. 42). A partir desta idéia penso que a família ocupa um lugar importante como facilitadores ou não para construções de self em que, as avaliações a respeito de si mesmo do indivíduo e de sua capacidade de realizar seus objetivos, denotem um discurso positivo e de auto-estima. Entendo, portanto, que fica evidente a importância da família na construção do self dos indivíduos, porém quero ressaltar que não só a família nos constrói, mas também os outros contextos aos quais participamos ao longo de nossas vidas. A família exerce influência na nossa capacidade de autoria, porém, conforme teoriza Lewis (1999) não determina a direção que tomaremos no futuro.
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4 – JUSTIFICATIVA
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A relevância do estudo do tema autoria se dá devido à importância de olharmos para o fenômeno da influência da mudança paradigmática no conceito de self, que reflete na idéia de que, como seres humanos, somos autores de nossas próprias vidas e não somente conseqüências de estímulos vindos do ambiente e nem tão pouco vítimas de um determinismo psíquico e inconsciente. Este tema tem influenciado em muito a prática psicoterapeutica sistêmica, principalmente em sua vertente narrativa, que nos presenteia com um olhar autônomo e libertador do self.
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5 - OBJETIVOS
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Busquei a partir deste trabalho, construir e aprofundar um entendimento acerca do tema autoria. Partindo inicialmente de uma compreensão teórica sobre o tema, pretendi responder as seguintes perguntas: O que é autoria? Como exercemos a nossa autoria? Somos autores de fato ou somente reprodutores de histórias já existentes? Entendendo que somos as narrativas que construímos através da nossa linguagem na tentativa de dar significado as nossas experiências, busquei através deste trabalho, construir uma compreensão possível sobre de que forma as pessoas experienciam a autoria de suas próprias vidas. Sentem que são autoras? Ou deixam-se ser levadas pelas mãos de outros, ou pelo destino? Que tipo de narrativa as faz autoras ou não autoras?
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6 - MÉTODO
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Para atingir aos objetivos propostos neste trabalho, desenvolvi uma articulação teórica sobre o tema Autoria visando delinear um panorama referente aos diversos posicionamentos já apresentados sobre este tema de maneira a me posicionar pessoalmente quanto ao conceito de Autoria que utilizarei para a análise a que me proponho desenvolver nesta pesquisa qualitativa.
6.1 - Procedimentos
Foram realizadas as entrevistas em local, dia e hora designadas de acordo com a conveniência dos estrevistados. Dois entrevistados decidiram por se deslocarem até a minha residência e um deles preferiu que eu fosse até a sua residência em horário combinado anteriormente.
6.1.1 – As entrevistas
As
entrevistas
semi-estruturadas
foram
gravadas
e
transcritas
após
consentimento prévio dos participantes e a assinatura do “Consentimento Livre e
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Esclarecido” que consta em anexo no trabalho. Foram seguidos todos os procedimentos éticos cabíveis às pesquisas com seres humanos.
Os tópicos abordados para a entrevista semi-estruturada foram:
- Identificação do participante: Como você se define?
- O que fez de você o que você é hoje?
- Você acredita em destino?
-Como você tem traçado os seus objetivos e de que forma os tem cumprido? Tem sido fácil? Quais os fatores que intervém nas suas tomadas de decisões?
- Você se sente com autonomia para fazer o que deseja?
- Houve momentos em que você se sentiu com as rédeas da vida em suas mãos? Quais momentos? E no momento atual?
- Se você pudesse o que faria diferente em sua vida? Escolha uma situação e conte como chegou aonde chegou e o que mudaria?
- O que fará de você o que você será no futuro?
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6.1.2 - Os participantes
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com três participantes. O critério de escolha desses participantes foi coerente com a amostra de conveniência; foram abordadas pessoas das relações do pesquisador. Os entrevistados são pessoas jovens, com idade entre 28 e 35 anos e apresentam narrativas em que atualmente se reconhecem como sendo autores de suas vidas, são eles: João, 33 anos; Ana, 35 anos e Maria, 28 anos.
6. 1.3 - Análise do material
O material das entrevistas foi analisado em termos qualitativos em busca dos significados atribuídos pelos participantes às questões da pesquisa. Após sucessivas leituras, foram destacados os temas mais comuns, os temas únicos, e a partir da interpretação dos mesmos, levantei categorias sobre as diferentes maneiras que as pessoas se vêem enquanto autoras ou não de suas vidas.
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7 – ANÁLISE DOS RESULTADOS
___________________________________________________________________
7.1 – Construção e Re-contrução de Histórias: Quem são os Participantes?
Nesta categoria, apresento a forma singular a qual cada um dos participantes se definem enquanto pessoas.
7.1.1 – João
João se define através de sua conquista em conseguir viver da sua profissão de músico. As dificuldades do contexto, onde ser músico é para poucos, não fizeram com que João desistisse do seu objetivo, mesmo passando por muitas dificuldades inicialmente.
desde o início, eu já comecei a me dedicar à música. Mesmo não conseguindo no início, tive que passar por algumas situações desagradáveis, mas eu sempre insisti na coisa que eu queria fazer. (João) Criado em um contexto em que a música estava sempre presente, devido a profissão de músicos de seu pai e de seu irmão mais velho, na adolescência, João começou a sentir um fascínio por música e a imaginar-se dentro desta profissão. A adolescência foi um momento em que João encontrou o seu próprio gosto por música, por meio de outros contextos:
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E quando surgiu o Michael Jackson, foi a primeira vez que me despertou uma coisa de eu gostar de um negócio que o mundo deu pra mim. Eu lembro que eu fui na loja comprar o disco, eu queira ter o disco porque eu só ouvia os discos que tinha em casa. E foi aí que eu comecei a desenvolver isso. Então depois vieram os anos 80, depois o rock e eu sempre fui interessado em conhecer mais, e eu tinha uma intuição de que a coisa do conhecimento, quanto mais coisas diferentes você conhece, mais ferramentas você vai ter pra desenvolver aquilo que você quer. (João) As dificuldades que João encontrou ao longo de sua história não foram somente as financeiras. Aos vinte anos, João passou pelo o que ele chamou de dissolução de sua família, devido ao processo de separação de seus pais. Logo em seguida, e ao mesmo tempo em que batalhava pela sua profissão de músico, João precisou se dividir entre o trabalho, os cuidados com o pai doente, por conseqüência da dependência em álcool, e sua mãe internada em um hospital psiquiátrico. Atualmente com trinta e três anos, João está casado, tem um filho e considera que a relação com sua esposa e o filho trouxe muito crescimento e maturidade em sua vida. Ao olhar para trás, para o seu passado, João sente-se muito bem em poder fazer um balanço do quanto a sua vida melhorou. Hoje em dia, ao estar mais distante dos obstáculos de seu passado, João sente-se mais sensível às suas próprias emoções, permitindo-se viver de forma mais integrada o momento presente.
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7.1.2 – Maria
Maria se define a partir de uma característica que ela entende como sendo importante em seu self: aprender e ensinar seus aprendizados. Sua profissão, professora de Yoga, e a faculdade de Letras, a qual Maria iniciou recentemente, fazem com que ela aja no mundo conforme o seu grande desejo de ensinar. Maria vivencia o seu dia a dia de acordo com a sua profissão:
Ser professora do Yoga para mim me define, me define muito. Porque eu vivo isso 24 horas por dia. Eu vivo o Yoga, eu acordo, eu pratico, depois eu leio algum livro sobre Yoga, eu vou dar uma aula, eu procuro um work shop que tenha a ver com isso. E o próprio fato de eu estar fazendo letras também tem a ver com Yoga. (Maria)
Outra característica que Maria reconhece em si mesma é o fato de não gostar que as pessoas afirmem verdades absolutas. Característica esta, muito comum em seu meio de professores de Yoga, a qual Maria quer combater e ensinar aos seus alunos a não se submeterem a tais verdades. Podemos pensar neste contexto vivenciado por Maria, como restritivo das possibilidades narrativas conforme Harré e Gillett (1999), porém a sua percepção e negociação consigo mesma e posterior decisão de não reproduzir esta idéia, demonstra uma habilidade discursiva de exercício da liberdade a partir de um determinado contexto. Maria também se define como alguém que adora literatura e poesia, um dos motivos para estar cursando o curso de Letras. Seu contato com a literatura iniciou em sua infância, conforme Berger e Luckmann (1999) em sua socialização primária. Sua
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mãe, professora de Português, a alfabetizou muito cedo e a levava para seu trabalho por não ter com quem deixá-la. Maria desde muito cedo admirava o fato de sua mãe ser professora.
Como ela era professora de português, né, a minha paixão por literatura começou com ela, quando eu era muito pequena. Quando eu tinha cinco anos, o meu pai me deu uma máquina de escrever, porque eu queria ser escritora e uma escritora precisava de uma máquina de escrever e de óculos. Eu usava um óculos de plástico. Tem uma foto minha com um óculos deste tamanho (demonstra através de gesto o tamanho do óculos). (Maria) Da mesma forma que João, a profissão dos pais delineou a trajetória profissional de Maria. Maria trilhou um caminho o qual a afastou de seus objetivos. Um evento muito traumático aconteceu em sua família que a fez acreditar que não tinha o direito de ser a dona da sua própria história, mudando totalmente o curso de sua vida. A partir deste evento, não teve forças para enfrentar seu pai, um advogado, que queria que a filha tivesse a mesma profissão que a sua, e chegando a cursar uma faculdade de Direito que não queria. Participou também do que ela chama de seita, ficando a mercê, durante seis anos, de pessoas fanáticas por Yoga e pela sua filosofia. Hoje, Maria deu a volta por cima: abandonou a seita, entrou para a faculdade de letras, a qual era seu sonho desde criança, e voltou a acreditar em sua capacidade de escrever sua própria história.
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7.1.3 – Ana
Ana se define por meio de uma característica que ela considera central em seu self: seu interesse pelas pessoas. Segundo ela, seu interesse pelas pessoas e conseqüente relação com elas, a modificaram para melhor. As modificações que vivenciou ao longo de sua história, se deram devido a sua característica de curiosidade em se relacionar. Foram tão freqüentes essas vivências, que Ana reconhece essa característica como sendo central e precursora de tudo o que realiza em sua vida:
Sempre, sempre partem da relação com as pessoas as minhas modificações. Então, hoje eu posso dizer que eu sou uma pessoa extrovertida, eu já fui pra lá de introvertida, hoje eu posso dizer que eu sou alegre, eu já fui tremendamente triste. (...) Então eu sinto uma mudança assim fantástica na minha personalidade pra melhor. Eu era muito melancólica e hoje em dia eu sou uma pessoa satisfeita, alegre. (Ana)
Em sua socialização primária conforme Berger e Luckmann (1999) Ana internalizou um mundo em que ela não podia se relacionar devido a uma experiência de proibição em se aproximar das pessoas de fora da sua família, que a levou a sentir muito medo das pessoas. Ao invés de obedecer a esta regra, Ana assim que foi para a escola, passou a aproximar-se e a aprender com as pessoas deste novo contexto. E não parou mais... Ana passou a ter como projeto de sua vida aprender e se modificar para melhor, a partir de novos aprendizados que segundo ela, se dão sempre por meio das suas relações.
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A forma que Ana se define é contando como ela era no passado e como ela se modificou através das suas relações. Após experimentar essas modificações na prática, a partir de uma mudança de cidade, Ana experimentou uma sensação de que realmente aquelas mudanças faziam parte dela mesma. É interessante observar que Ana não se define a partir de sua profissão de psicóloga, diferentemente de João e Maria.
7.1.4 - João, Maria e Ana – Selves re-contruídos
Ao apresentar os participantes, fica evidente que tanto João, quanto Maria e Ana passaram pelo que Epston, White e Murray (1992) chamam de re-autoria. Todos passaram por momentos de dificuldades, que restringiram as possibilidades de self, e em algum momento de suas vidas fizeram uma mudança da visão que tinham de si mesmos e do mundo. Cada um a sua maneira, utilizando os recursos adquiridos em suas histórias de vida, conseguiram ultrapassar as barreiras que o contexto em algum momento impôs a eles; ou por forças externas sobre as quais não tinham influência, ou seja, momentos em que pouco restava a fazer, ou por uma interpretação negativa de si a partir desses eventos externos. Maria consegue superar o que ela chamou de um grande trauma em sua vida o que acarretou em uma série de experiências de opressão. Ana transformou a visão que tinha de si mesma, por meio das relações que foi construindo ao longo de sua história, chegando até mesmo a superar uma depressão e transtorno do pânico. João, por outro lado, conseguiu transpor as barreiras de sua profissão de músico após a dissolução de sua família, ou seja, a separação de seus pais e doença dos mesmos.
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Após esses acontecimentos nas histórias de vida dos participantes, todos reconheceram estarem atualmente em um momento mais positivo, refletindo assim em suas narrativas sobre si mesmos:
eu olho para trás e sempre tenho uma sensação boa de me sentir melhor. Vejo como eu era há dois anos atrás e como eu sou, as coisas que eu sentia. Essa coisa de você ser mais maduro para determinadas coisas, as coisas que você conquista na vida, sabe materiais e profissionalmente. Você vê a evolução, eu vejo a evolução, uma evolução constante. Eu sou muito melhor músico hoje do que eu era no passado, que cinco anos atrás, dez anos atrás. Eu sei fazer muito mais coisas do que eu sabia fazer. Então eu penso assim, que a vida só melhora. (João)
Eu posso fazer o que eu quiser, a vida é minha mesmo, o futuro é meu. É uma sensação muito boa, porque me dá uma tranqüilidade. Eu acho que eu passei por tanta coisa, o que eu chamo de uma faca emocional dentro do XX Yoga, que hoje em dia é difícil alguma coisa me abalar. (...) É, eu voltei ao que eu queria. E eu acho que eu voltei agora com uma maturidade diferente. Então eu acho que foi na hora, entendeu. Está na hora de eu fazer as coisas desse jeito, porque eu estou com outra cabeça, outra maturidade, eu vou aproveitar mais o meu curso. Eu vou ter mais tranqüilidade emocional para fazer tudo o que eu quiser. Então eu acho que foi positivo né, porque eu tenho experiência e eu ganhei uma profissão maravilhosa que é ser professora de Yoga, que eu vou levar para o resto da minha vida. (Maria)
Se eu pensar na minha vida como um todo, hoje eu estou naquele rio que ajuda. Aquele que empurra você na direção que você quer, sabe. Tem correnteza, mas não aquela correnteza destrutiva, aquela correnteza que te leva, que você nada e já nada com ajuda. Ninguém está te ajudando (risos). Você escolhe para onde vai e ninguém está te ajudando (risos). (...) É uma fase excelente, nossa é uma fase excelente! Isso já na vida como um todo né. Na vida como um todo.
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Nossa, do jeito que eu já peguei correnteza brava essa daí é uma alegria. (Ana)
Assim, podemos pensar nas autobiografias de João, Maria e Ana como estando conforme Goolishian e Anderson (1996) constantemente sendo reescritas nas práticas sociais.
7.2 – Co-autores Relevantes das Histórias Construídas
Nesta categoria busco verificar a influência dos co-autores nas histórias construídas dos participantes. Todos os participantes se referiram às suas famílias como importantes influências para a construção de seus selves. Além disso, todos apontaram seus amigos como pessoas de relevância em suas vidas. Para João:
Desde quando eu nasci... acho que o que faz a gente ser da maneira que agente é são as experiências que a gente passa na vida, as pessoas que a gente conhece, as amizades que você desenvolve no caminho, as pessoas que , as coisas pelas quais você se interessa, a sua família. A família é a priori a primeira coisa que você percebe no mundo, depois você começa a conhecer e descobrir coisas que estão fora do seu circulo familiar. Então eu sou isso aí, fruto de todos esses acontecimentos. (...) A relação com as pessoas, as amizades foram também muito importantes para mim, para eu me formar como pessoa.
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(João) João cita também a influência de sua família atual, sua esposa e filho, em sua construção de self. Maria, ao responder o que a fez ser quem ela é hoje, diz o seguinte:
Acho que foi a educação que a minha família me deu, a minha família principalmente, me deu todos os pilares que eu precisava para superar qualquer coisa, e as pessoas que passaram pela a minha vida. (...) Eu tive poucos amigos, mas todos foram pessoas importantes. E os meus namorados. As pessoas que se relacionaram comigo, elas sempre me ensinaram muitas coisas. (Maria) Ana ressalta de forma significativa a influência das pessoas que passaram em sua vida, e as transformações atingidas ao longo de sua história através das suas relações:
o que fez de mim o que eu sou hoje é a minha relação com as pessoas. Aí eu posso dizer que a primeira relação foi obviamente com os meus pais. (...) Então quando eu fui pra escola e que eu comecei a me relacionar com as pessoas, aquilo pra mim foi uma abertura de horizontes. “Nossa que fantástico, existem outras pessoas que pensam diferente, e eu quero saber o que elas pensam e como elas são”. (Ana) E o que eu mais gosto de fazer é colecionar amigos, isso é o que eu mais gosto. O que me dá mais prazer quando eu olho pra minha vida é a coleção de amigos que eu fiz. Cada um com o seu jeitinho, cada um contribuindo de um jeito pra minha vida, é o que me dá mais felicidade. (Ana)
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Se levarmos em consideração Berger e Luckmann (1999), o destaque das famílias na narrativa dos participantes e sua importância para a construção de seus selves não poderia ser diferente. Para Berger e Luckmann (1999) conforme citado anteriormente no capítulo 3, o mundo interiorizado na socialização primária é vivenciado como o único mundo possível, fazendo por esta razão parte do si mesmo das pessoas de forma significativa. Algumas falas que ilustram isso são: “Acho que foi a educação que a minha família me deu.” (Maria); “A família é a priori a primeira coisa que você percebe no mundo” (João); “eu posso dizer que a primeira relação foi obviamente com os meus pais” (Ana).
Porém, de acordo com Lewis, (1999) tais relações não
influenciam a construção dos selves de forma determinante e imutável. A socialização secundária (BERGER; LUCKMANN, 1999) aparece nas narrativas dos participantes como sendo relações positivas, geradoras de novos aprendizados. São exemplos destas falas: “Nossa que fantástico, existem outras pessoas que pensam diferente, e eu quero saber o que elas pensam e como elas são” (Ana); Eu tive poucos amigos, mas todos foram pessoas importantes.(Maria); “depois você começa a conhecer e descobrir coisas que estão fora do seu circulo familiar” (João) Acredito que os contextos de socialização secundária sejam propiciadores do exercício da autoria, pois comumente escolhemos as pessoas das quais vamos nos aproximar e autorizamos a sua participação em nossos mundos, que, por sua vez, também autorizam a nossa participação em suas histórias de vida.
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7.3 – Sobre a Experiência de Ser Autor
Pretendo criar por meio desta categoria, uma compreensão sobre as narrativas dos participantes, que entendo como sendo de reconhecimento da autoria da própria vida.
7.3.1 - Autoria de João
Para João a experiência de ser autor de sua história, segundo ele, se deu quando começou a trabalhar como músico. No início de seu trabalho, João dependia financeiramente de outras pessoas, mas apesar disso, João vivenciou um momento de escolha que o fez sentir com as rédeas de sua vida.
Desde essa época que eu comecei a trabalhar com música, eu senti que foi uma coisa que mudou, eu deixei de ser uma pessoa que dependia das pessoas e passei a ser... Neste momento eu senti, mesmo continuando a depender das pessoas, você vai trabalhar num... você depende da pessoa que te contrata e tal, mas você tem as rédeas da vida nesse sentido de que você pode escolher o que você quer fazer, né. (João)
A experiência de dependência teve um contraponto de independência que João conquistou quando passou a sentir-se menos preocupado com a opinião das pessoas a seu respeito.
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Eu acho que esse foi um momento que eu me senti muito diferente eu senti que era uma coisa muito boa ser independente. Independente tanto financeiramente, da opinião das pessoas, de tudo sabe. (João) João sente os limites do contexto do qual faz parte, contexto este que o faz vivenciar uma liberdade controlada, porém isso não faz com que deixe de acreditar que é fruto de suas escolhas e ações.
É uma autonomia controlada. É uma autonomia... por exemplo eu sou contratado por uma gravadora, eu tenho um orçamento X e eu posso fazer o que eu quiser com esse orçamento, mas eu só tenho esse orçamento, então não deixa de ser uma liberdade, mas tem um controle nessa liberdade. (João) O que você faz hoje não tem jeito, o amanhã será fruto dos seus atos. (...). Eu acho que a cada ação que você faz, você está conduzindo a sua vida para uma direção, um caminho. (João)
Entendo que João experiencia ser autor de sua vida por meio da sua profissão de músico e pelas escolhas e conquistas que obteve a partir de seu trabalho. A música é uma lente, como propõe Grandesso (2000) significativa em sua vida para compreender o mundo e a si mesmo.
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7.3.2 - Autoria de Maria
Maria atualmente considera ter as rédeas da sua vida em suas mãos e percebe durante a entrevista, que mesmo nos momentos em que ela se submetia à seita, ela queria estar lá daquela forma, foi uma escolha.
Hoje eu sinto as rédeas da vida nas minhas mãos mais do que nunca, eu nunca me senti assim. Quando eu fui para a França sozinha também. Eu sempre tive as rédeas da vida nas minhas mãos, sempre. Apesar de uns conflitozinhos com o meu pai aqui, outros ali eu sempre mandei na minha vida. Até quando eu estava dentro da seita eu mandava na minha vida, porque eu queria fazer aquilo, me submeter a eles. Porque todo o mundo falava que eu era instável, que eu ia para lá e para cá, que eu não parava e que isso era um defeito, e eu teria que ser estável e eu fiquei estável, no pior lugar do mundo, na seita. Mas eu acho que foi muito bom pra mim, lá eu aprendi muita coisa. Aprendi muitas coisas boas sobre o Yoga, muitas técnicas eficazes, e aprendi principalmente a lidar com as pessoas. (Maria)
Entendo este relato como uma forma de reconhecimento da sua autoria. Maria fez escolhas, e mesmo decidindo estar em um lugar que a fazia se sentir mal, limitando a sua autonomia, percebe que naquela época, aquela decisão fez sentido para ela, e de alguma forma ela precisou daquela experiência. Percebi um movimento de Maria durante a entrevista: em um primeiro momento, a sua narrativa foi de vitimização na qual ela não se reconhecia como autora:
Foram seis anos né. Foram seis anos de decepções. Toda seita decepciona. Vai das pessoas enxergarem ou não. Acontece que comigo digamos que eles foram bem... eles me magoaram muito. Eles fizeram muitas coisas que me chatearam, seguidas. A primeira delas
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foi quando mandaram embora todos os meus amigos e me proibiram de falar com eles. Não, foi antes. A primeira delas foi quando eu morava na casa de um ex namorado meu que era diretor de uma das unidades, ele teve um chilique e me mandou embora, e todo o mundo me isolou do grupo, porque eu era a ex namorada dele, e porque ele falou mal de mim, e ele tinha mais poder econômico que eu. (...) Obrigatoriamente ele tinha mais valor do que eu. As pessoas simplesmente me isolaram, me maltrataram e quase acabaram com a minha carreira. (Maria)
No decorrer da entrevista, apareceu uma narrativa de contestação e revolta, e depois um objetivo de reparação do que ocorreu consigo mesma, a partir de ensinamento aos seus alunos de Yoga, sobre o que ela viveu.
Sabe quando você pega um cachorrinho bem bonzinho e você bate, bate, bate nele e ele vira um pit bull terrível? É mais ou menos isso. É, eu vou ensinar a não ser assim, né. Eu acho que isso tem que ser ensinado porque normalmente as pessoas que se interessam por Yoga, as pessoas que se interessam por auto- conhecimento são pessoas mais frágeis, são pessoas sensíveis. São pessoas que estão buscando uma maneira nova de ver a vida, e essas pessoas tem tendência a acreditar. Então, você tem que ensinar a verificar não a acreditar, senão elas vão acreditar. Porque se eu tivesse verificado desde o começo, nos primeiros três meses, eu teria saído, e feito outra coisa da minha vida. Eu fiquei seis anos lá. É muito tempo, é muito tempo, aconteceram muitas coisas lá, eles me magoaram muito. Hoje eu não falo mais disso chateada, chorando nem nada, porque eu dei a volta por cima mesmo. Eu sou muito feliz hoje. Eu dou as minhas aulas, eu tenho um namorado maravilhoso que me ajuda muito. Acho que quem mais me ajudou a sair da XX Yoga foi o Flávio. (Maria)
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Percebo Maria em um caminho de construção do ser autora. Apesar de ter se libertado de um lugar que estava restringindo a sua capacidade de ser autora há apenas três meses, Maria apresenta uma narrativa de reconhecimento da sua autoria chegando a dizer que ficou neste lugar por escolha e que faz sentido para ela ter ficado seis anos nesta seita.
7.3.3 - Autoria de Ana
Para explicar a forma que vivencia a autoria de sua vida, Ana usou uma metáfora em que ela compara a vida a um rio; suas correntezas são os vários contextos da vida. Segundo Ana, nos momentos em que a correnteza está forte, e o rio cheio de pedras, nós temos pouca autonomia para agir. Às vezes, a correnteza está fraca, e temos autonomia plena para a ação. Em outros momentos a correnteza está totalmente parada e: “ou você nada ou não sai do lugar”. (SIC) Ana conclui:
Sempre há um grau de autonomia, sempre você tem escolha. (Ana)
A forma que Ana entende a vida mostra uma atenção ao contexto ao qual ela está inserida. Mesmo em situações nas quais o contexto não colabora para que seus objetivos sejam atingidos, Ana continua sentindo-se autora de sua história, reconhecendo a sua autonomia, mesmo não podendo agir exatamente como gostaria.
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Saliento ainda, que para Ana, as rédeas de sua vida estão em suas mãos principalmente quando o contexto está limitando as suas possibilidades de ação no mundo. Tornam-se assim, mais valorosas as suas ações em momentos de restrição do ambiente. Quando começou a freqüentar a escola, e ao decidir se disponibilizar para o relacionamento com novos amigos, Ana teve uma atitude autônoma, se levarmos em consideração o contexto de sua família, em que era proibido o relacionamento com pessoas de fora. Ainda criança, fez uma importante escolha que revelou um caráter de transgressão das ordens familiares estabelecidas. Podemos assim, pensar através da visão de Pearce (1996) em que as conseqüências das ações de Ana, ou seja, a força implicativa de suas ações teve efeito suficiente para mudar a sua forma de vida. Este evento mudou o rumo de sua vida no início de sua socialização secundária, e Ana usa até os dias de hoje esta forma de se relacionar como uma ferramenta para a conquista de seus objetivos:
Os objetivos que eu dou mais atenção são objetivos bastante subjetivos. Eu estou sempre lutando com aspectos subjetivos meus. Então, “ah, eu preciso mudar a minha timidez”, aí eu vou chamo um grupo todo, faço o jogo da transformação, falo com as pessoas. Eu invisto em mudar um aspecto da minha personalidade. (Ana)
Desta forma, Ana age como agente (BRUNER, 2001, 2002), com intenção de chegar a algum lugar, um objetivo que ela traça e age de forma a chegar onde deseja, apropriando-se de sua história e responsabilizando-se pela direção que irá seguir.
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7.3.4 – Crença em destino
Em todas as entrevistas pergunto se o participante acredita ou não em destino. Esta pergunta foi uma das formas que utilizei para compreender a experiência de reconhecimento ou não da autoria da própria vida. Entendo que, a crença em destino pode fazer com que as pessoas busquem objetivos e possibilidades de caminhos prontos, dados, seja por Deus, uma instituição religiosa ou até mesmo por uma seita, tornando-se mais um contexto limitador das experiências e autoria das pessoas, devido a uma atitude a-reflexiva quanto aos objetivos de vida dados por outra pessoa ou entidade superior. Ana, Maria e João, coincidentemente afirmaram não acreditarem em destino. João entende que a crença em destino serve para as pessoas se confortarem, e para que a responsabilidade dos objetivos que não deram certo, seja atribuído a uma força maior que decide pela própria pessoa, diminuindo assim o sofrimento. Para ele: o destino é o que a gente trilha, cada um traça um caminho e você vai atrás do que você acha que é o melhor pra você ou pelo menos na direção de onde estará o melhor pra você. (João) Maria acredita que:
Destino quem faz é a gente. São as nossas escolhas, Se você acreditar em destino você será uma marionete dos eventos, né. (Maria)
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Ana não acredita em destino. Porém, ela acredita em uma força invisível que está por trás do mundo e que estamos predestinados a aprender, porém esta força, ou Deus, não determina o caminho que devemos seguir.
Acho que talvez se eu posso dizer que a gente está predestinado a alguma coisa é a aprender. Acho que isso sim. Acho que a gente vai aprendendo cada vez mais e eu vejo isso na minha vida. Eu sinto isso na minha vida, então cada experiência que eu tenho eu aprendi alguma coisa, somei alguma coisa. E acho que talvez, a gente esteja predestinado a isso. (Ana) No meu entendimento as possibilidades de experiências do mundo de Ana não ficam restritas por sua crença de que somos predestinados a algo ditado por uma força superior. A palavra aprender tem um sentido amplo que inclui uma série de possibilidades de construção de sentidos.
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7.4 – Sobre a experiência de não ser autor
Neste ponto do trabalho, busco compreender as experiências vivenciadas pelos participantes em que não foi possível se sentirem autores de suas vidas. A forma que pensei ser possível apreender esta vivencia foi por meio da pergunta: Houve momentos que você não se sentiu com as rédeas da vida nas suas mãos?
7.4.1 - João
João ao relatar sobre momentos em que não se sentiu com as rédeas da vida em suas mãos se refere às decepções que teve em sua história de vida, momentos em que as coisas não aconteceram da forma que desejava: Às vezes você se decepciona. Espera que vai acontecer alguma coisa e não acontece. Acho que isso é uma coisa que... na vida é assim, tem horas que você tem que reconhecer que as coisas acontecem e tem momentos na família, de doença e morte, e coisas pessoais também. Você tem uma relação com uma pessoa, você gosta da pessoa e a pessoa gosta de você, e chega uma hora que não dá mais certo, e você não sabe porque. E é uma coisa que vai além... daí depois que passa um tempo, e você percebe, e você entende o negócio acabou. Então são nesses momentos. (João) E às vezes a gente se decepciona com coisas que a gente faz também. Você vai fazer uma coisa que é legal e depois se desinteressa por aquilo. (João)
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Ao atentar para a forma que a história é contada, percebo que João muitas vezes em sua entrevista utiliza a palavra você para se referir as situações vividas, ou sobre suas teorias a respeito da vida, ao invés de usar o pronome eu.
É incrível, eu lembro quando eu lancei o meu segundo disco, e eu tocava as músicas do segundo disco nos shows, era difícil, as pessoas não conheciam as músicas. Você ficava tentando administrar a parte que as pessoas conhecem do seu trabalho, e ao mesmo tempo, você quer introduzir coisas novas que as pessoas gostem e você fica jogando com isso. E quando eu fiz o terceiro disco e fui fazer os shows, as músicas do segundo disco já eram muito conhecidas e já havia passado três anos, as pessoas compraram os discos e já estavam conhecendo. Então dá essa sensação de vitória, entendeu. Você cantar uma música que no passado, aquela música que você dava aquele gás para... e você vê aquelas pessoas cantando e gostando daquela música. (João) Neste momento eu senti, mesmo continuando a depender das pessoas, você vai trabalhar num... você depende da pessoa que te contrata e tal, mas você tem as rédeas da vida nesse sentido de que você pode escolher o que você quer fazer, né. (João) Você vai aprendendo a lidar com isso com o tempo, e profissionalmente a mesma coisa. Você vai aprendendo uma maneira de se relacionar com as pessoas, porque existem certos padrões de comportamento que você começa a perceber também. E isso é uma coisa que dá uma independência. Quando você percebe que você não precisa ser daquele jeito, existe ali um padrão de comportamento, que para determinados tipos de coisas você tem que agir daquela maneira mas você tem... você sabe que você não é daquele jeito. Você não vai se sentir uma pessoa insegura, aquela pessoa que faz tudo para agradar as pessoas. Em alguns momentos você tem que fazer alguma coisa que agrade, mas você sabe que... (João)
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Isso me fez pensar nas implicações desta utilização de diversas maneiras. Uma delas é que este é um tipo de generalização que pode diminuir, a sua capacidade de agente. É como se ele, João, estivesse atribuindo menor valor às suas realizações e teorias, pressupondo que seja algo comum, que todos são capazes de realizar, e não algo singular e original que ele atingiu ou pensou. Por outro lado e de forma contraditória a esta primeira suposição, este tipo de generalização pode significar que João naturaliza a sua experiência de uma forma a atribuir suas conquistas e teorias acerca da vida, como sendo acessível a todos, ou seja: “todos conseguem ou pensam como eu, todos evoluem, amadurecem e crescem na vida, é um processo natural”. Esta forma de interpretação, diferentemente da primeira coloca João em uma posição de autor de sua vida. Uma outra forma de pensar sobre a implicação do uso da palavra você é o fato do agente da ação, ele mesmo, no momento em que narra sua experiência dilui-se em uma massa de pessoas, nos levando a ficar na dúvida se foi ele mesmo, ou não, o protagonista da cena contada. Penso que este recurso ajuda quando a pessoa quer se distanciar da emoção provocada pela implicação de revivenciar a história através do contar no momento presente. Podemos pensar também em uma maneira de João ser discreto e impessoal na forma de falar sobre si mesmo devido a sua profissão de músico que o torna uma pessoa pública, sendo, portanto, uma forma desenvolvida para não se expor para tantas pessoas. Acredito que os aspectos levantados acima são interpretações feitas de forma unilateral, pois não tive a oportunidade de perguntar ao próprio João como ele vivencia este fato. Creio que seria muito interessante em um trabalho posterior aprofundar esta questão através de uma conversação conjunta, com uma legitimação ou não do entrevistado destas interpretações.
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7.4.2 - Maria
Maria relata que a sua vivência de não ser autora aconteceu em dois momentos, um quando fazia parte da seita e outro quando ao invés de enfrentar seu pai para cursar a faculdade de Letras que sempre quis, cursou Direito na França, o que segundo ela a desestruturou bastante. O que era uma viagem programada para se sentir livre, longe da proteção excessiva de seu pai, passou a ser uma experiência de sofrimento, levando a uma depressão como bem ilustra o trecho abaixo:
Quando eu quis fazer letras na França e o meu pai me obrigou a fazer direito lá. E eu fiz direito para não voltar para casa. Eu queria morar sozinha. (...) Só que isso me desestruturou bastante. (...) Daí quando eu cheguei lá o meu pai falou: “agora você volta para casa” e eu: “não vou voltar né”. O meu pai era muito protetor, não me deixava fazer nada. Era difícil eu ir ao cinema, eu tinha vinte e poucos anos. (Maria)
Maria então decide cursar Direito para não voltar para sua casa no Brasil acarretando em uma série de conseqüências ruins para si mesma:
E eu fiquei nessa três anos. Eu fui fazendo um ano, mais um e mais um e quando eu vi, eu estava em depressão, com quarenta e nove quilos, com cabelo caindo, com início de anorexia. Foi uma coisa que eu me... eu tirei a característica que eu tinha, aquela pessoa que queria escrever, que queria aprender línguas, que queria ler literatura, que era uma outra coisa o que eu queria. (Maria)
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Na história de Maria me chamou muito a atenção o trauma que ela e toda a sua família vivenciaram e os seus desdobramentos. Ficou evidente a forma em que este evento traumático familiar abalou e transformou a sua história, influenciando completamente em sua capacidade se reconhecer como autora:
Aconteceu um trauma muito grande pra mim e pra minha família. Dois traumas pra mim e um para a minha família (risos). Então... isso me fragilizou, acabou com a minha auto-estima, acabou com a minha crença de ser alguém na vida. Eu tinha 22 anos, quando você tem 22 anos, dá a impressão que o mundo acaba, que tudo acabou na sua vida. (Maria)
Maria entrou em um processo de vitimização e auto-culpabilização após este grande trauma que ocorreu em sua vida. Ao cursar durante três anos uma faculdade que não queria, em uma faculdade que não aceitava os estrangeiros, suportando até o extremo de ficar doente, e ao participar de uma seita por seis anos, penso que Maria estava agredindo a si mesma, fazendo coisas que a faziam se sentir infeliz, ficando a mercê das decisões e opiniões das outras pessoas. Assim como na história de João, acredito que acrescentaria muito em um trabalho posterior, retomar esta conversa com Maria partindo desses acontecimentos relatados e a minha interpretação sobre os mesmos, para construirmos uma compreensão conjunta sobre os possíveis desdobramentos desta vivência traumática em sua vida, na vida de seus familiares e na sua capacidade de ser autora da própria história.
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7.4.3 - Ana
Ana, apesar de afirmar que atualmente sempre tem as rédeas da sua vida em suas mãos, mesmo em momentos em que o contexto restringe ao máximo as suas possibilidades relata que nem sempre foi assim. Ana não se sentiu autora na época de sua adolescência.
Ah sim, quando eu era adolescente eu não me sentia com rédea nenhuma, eu me sentia uma folha levada, eu achava que eu era vítima de um universo cruel (risos). Presa em um pomar de vegetais, que era o que eu achava que as pessoas eram: um bando de vegetais sem pensamento, que tinham dificuldade de pensar (risos). Era isso, eu só sentia isso. Me sentia totalmente vítima das circunstâncias, e aí aquela nuvem na minha cabeça, né. Vítima da minha família, vítima da maluquice dos meus pais, vítima da burrice das pessoas, eu era só vítima, eu me sentia totalmente sem autonomia, pra nada (risos) (Ana) Constatei pelas respostas dos participantes, que a experiência de não se sentir com as rédeas da vida nas mãos, ou seja, não ser o condutor da vida em algum momento é vivenciado com sofrimento. Os participantes se lembraram de fatos passados de decepções, frustrações, morte de pessoas próximas, doenças na família, momentos que a condução da vida foi entregue a outras pessoas e experiências de se sentirem vítimas das situações. Este fato levou-me a pensar na Autoria como algo inerente à condição humana, como algo que sempre buscamos atingir através das nossas ações no mundo, não só evitando o mal estar provocado pela sensação de não ser o dono da própria história, mas saboreando o prazer da realização e condução dos projetos de vida.
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8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Refletir sobre os objetivos propostos neste trabalho e o caminho percorrido, me levou a pensar em algumas considerações acerca do tema Autoria. Ao partir da definição proposta para o conceito de Autoria, como sendo uma apropriação da própria história por meio da narrativa, ainda não imaginava ao certo quais seriam os conteúdos das narrativas que definiriam as pessoas como sendo autoras ou não de suas histórias. Optei por criar uma compreensão para este fenômeno utilizando as narrativas dos participantes da pesquisa, sem definir a priori o que eles deveriam dizer para que eu as considerasse ou não autoras. Abri, portanto, um espaço para que os próprios participantes contassem sobre as suas experiências de autores. As vivências de autores dos participantes foram descritas como sendo momentos de escolha, conquista, evolução, autonomia, independência e condução da própria vida, palavras estas valoradas de forma significativamente positiva por eles. Apesar dos participantes atualmente considerarem possuírem as rédeas da vida em suas mãos, todos relataram experiências de não terem se sentido assim em algum momento de seus passados, o que me levou a pensar no conceito de Autoria como um fenômeno psicológico complexo, que necessita ser compreendido dentro de um determinado contexto de vida levando em consideração principalmente a forma em que a narrativa é contada e como ela se articula com os eventos da vida. A Autoria está vinculada diretamente com a imagem que a pessoa tem de si mesma, ou seja, com sua construção de self. A avaliação que a pessoa faz de si como
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agente eficaz em sua atuação no mundo, ou seja, a sua auto-estima conforme a definição de Bruner (2001) é determinante para a experiência de ser autor. A experiência de não conduzir a própria vida, ou seja, de não ser autor, por ter sido vivenciada pelos participantes com muito sofrimento, e suas conseqüentes batalhas para reverter este quadro, me levaram a considerar a Autoria como um fenômeno flutuante, construída constantemente dentro dos cenários da vida com a participação dos co-autores. Se tomarmos as palavras de Anderson e Goolishian (1998) sobre os Sistemas Humanos como um processo criativo, dinâmico e em constante mudança (...) geradores de linguagem e simultaneamente geradores de sentido (ANDERSON;GOOLISHIAN, 1998) podemos considerar a Autoria como um tipo de narrativa acerca do Ser Humano, uma construção constante, que torna-se uma realidade através das relações no mundo que compartilham o mesmo campo de significado, passando assim a ser legitimada no contexto, criando um campo de sentido e ações condizentes com esses significados. Retomando uma das perguntas iniciais do trabalho: Somos autores? Acredito que sim, somos responsáveis pela autoria de nossas histórias, porém nem sempre ela é reconhecida. São vários os fatores que influenciam para o reconhecimento ou não da autoria. Muitas vezes, o contexto no qual estamos inseridos nos faz acreditar que não somos autores, mas penso que a autoria nos move para projetos de vida que fazem com que ela tenha sentido e coerência nos impulsionando para realizações. Mesmo em momentos em que o rio está com uma forte correnteza e cheio de obstáculos, conforme a metáfora de Ana sobre a vida, a construção narrativa de que somos autores nos impulsiona a fazer algo, a uma escolha. E mesmo restrita, como nas histórias de João,
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Maria e Ana, esta escolha fez a diferença. Eles se libertaram da opressão de não ter as rédeas de suas vidas em suas próprias mãos.
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ANEXO I PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO COMITÉ DE ÉTICA EM PESQUISA
CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Título do estudo: “AUTORIA, SELF E NARRATIVA”
O estudo será realizado como exigência parcial para a obtenção do título de Especialista em Terapia Familiar e de Casal do Núcleo de Família e Comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, sob orientação da Professora Dra. Rosa Maria S. de Macedo e tem como objetivo compreender, através de entrevista, como é a experiência dos participantes em serem autores de suas vidas. A pesquisadora Tatiana Borba de Vasconcellos disponibilizará seu endereço e telefone para contatos posteriores: Av. Miruna, 538 – casa 53 – Moema – Cep: 04084-050. Telefone: (11) 5096-7374. O estudo seguirá estritamente as exigências éticas de pesquisa envolvendo seres humanos com consentimento e aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da PUC-SP. A entrevista será gravada, transcrita e a identidade do pesquisado ficará sob sigílo. O material coletado ficará a disposição do pesquisado e será usado para fins de pesquisa caso haja consentimento. Os resultados finais do trabalho serão compartilhados com o participantes por meio de contato posterior do pesquisador. O estudo não causará danos aos participantes. Declaro que os objetivos e detalhes desse estudo foram-me completamente explicados, conforme seu texto descritivo. Entendo que não sou obrigado a participar do estudo e que posso descontinuar minha participação, a qualquer momento, sem ser em nada prejudicado. Meu nome não será utilizado nos documentos pertencentes a este estudo e a confidencialidade dos meus registros será garantida. Desse modo, concordo em participar do estudo e cooperar com o pesquisador. Nome do pesquisado: Nome: Data:___ / ___ /20___.
RG: Assinatura:
Testemunha: Nome: Data: ___ /___/20___.
RG: Assinatura:
Pesquisador: Nome: Data: ___ /___ /20___.
RG: Assinatura:
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ANEXO II ENTREVISTA I JOÃO 33 anos, músico Entrevistador – Quem é você? Como você se define? João – Me defino como? Como pessoa? Entrevistador – Isso mesmo, como pessoa. João – Essa tinha que ser última pergunta! Marília Gabriela! (risos). Eu não sei, eu sou eu, né. Eu sou uma pessoa que teve a oportunidade de fazer uma coisa. Eu consegui viver profissionalmente com uma coisa que eu sempre quis e acho que isso talvez acabou determinando toda a minha personalidade que se formou. Então eu nunca trabalhei com outra coisa que não fosse com música que foi uma coisa que eu sempre quis trabalhar. Nunca tive, por exemplo, conheço várias pessoas que são músicos, e que trabalhavam em uma loja, trabalhavam com o pai. E – Você conhece várias pessoas que são músicos e que trabalharam com outras coisas para se sustentar... J – Muitas pessoas que enquanto não ganhavam dinheiro com a música ou ganhavam pouco dinheiro com a música trabalhavam em outras coisas e só foram se dedicar pra música mesmo depois de terem a certeza de que aquilo era uma coisa que se pudesse ganhar dinheiro. Eu não tive muita opção, desde o início, eu já comecei a me dedicar a música mesmo não conseguindo no início, tive que passar por algumas situações desagradáveis, mas eu sempre insisti na coisa que eu queria fazer. E – Você não chegou a recorrer a outros tipos de trabalhos. Não precisou? J – Em algumas épocas eu precisei, eu tive um tipo de vida com ajuda da família ou amigos que me ajudavam a viver, mas desde sempre, logo que eu comecei a estudar música, mesmo sabendo poucas coisas, eu tentei fazer com que esse pouco já me levasse a algum lugar profissionalmente. E - Mesmo passando por momentos em que você precisaria até ter recorrido a outro tipo de trabalho você investiu e continuou... J – Quando você tem família e amigos é uma situação cons... não constrangedora, mas desagradável, de repente você vai morar na casa de algum amigo, você vai passar um
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tempo, sei lá, você vai morar com a sua mãe, não pelo fato de você querer morar com a sua mãe ou quere morar com um amigo, mas pelo fato de você não ter uma outra opção naquele momento. E – Aconteceu isso com você? Você chegou a morar na casa de amigos? J – Aconteceu. Teve uma fase na minha família que ela meio que se dissolveu. O processo de separação dos meus pais foi uma coisa meio caótica e aí a minha mãe foi morar em outra cidade, no Rio, meu pai... as coisas ficaram assim... A casa onde a gente morava depois dessa separação... era uma casa enorme onde morava toda a família, depois que rolou a separação não tinha mais condições de se morar naquele lugar. Então foi uma coisa assim que tinha vencido o contrato do apartamento que a gente morava, eles entregaram o apartamento e aí o meu pai foi morar em um flat e a minha mãe foi morar com a minha tia no RJ e eu fiquei temporariamente com um amigo o Édson até pensar no que eu ia fazer. Não foi uma... foi uma coisa caótica, porque não foi uma coisa combinada que sentamos e dissemos vamos fazer isso, foi inesperado, de uma hora para outra. Enquanto eu estava pensando nisso, algumas semanas depois o meu pai ficou doente pela primeira vez e aí eu tive que... ele ficou internado um tempo grande, um mês no hospital e quando ele saiu do hospital depois de um mês, e depois que ele saiu do hospital eu tive que ficar com ele, ele ficou em um estado que ele precisava de uma pessoa, ele não podia ficar sozinho, eu tinha que esquentar a comida, dar o remédios, ele estava debilitado. E depois ele se recuperou, mas ficou doente de novo, e eu fiquei uma fase meio que morando com ele, nessa fase eu tinha o básico, eu comecei a efetivamente a trabalhar com música e a ganhar um dinheiro, era coisa pouca, mas era um dinheiro para fazer as coisas. E – Você tinha quantos anos? J – Foi em 92. Eu tinha 20 anos. Você perguntou quem eu era. Acho que eu sou fruto de todas essas experiências. E – Você teve como um marco muito forte essa dissolução da sua família... J – Não só isso, eu tive outros marcos, não foi a única coisa. Desde quando eu nasci... acho que o que faz a gente ser da maneira que agente é são as experiências que a gente passa na vida, as pessoas que a gente conhece, as amizades que você desenvolve no caminho, as pessoas que , as coisas pelas quais você se interessa, a sua família. A família é a priori a primeira coisa que você percebe no mundo, depois você começa a conhecer e descobrir coisas que estão fora do seu circulo familiar. Então eu sou isso aí, fruto de todos esses acontecimentos. E – Houve pessoas que te influenciaram mais, pessoas específicas que influenciaram mais a sua vida? J – Então, fora as pessoas da família, pai, mãe, os tios e as tias, a minha família é grande, e tem uma parte da família que sempre foi bastante presente: as minhas tias irmãs da minha mãe.
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E - Ela tem quantas irmãs? J – Ela tem três irmãs e um irmão... e o irmão do meu pai tb. A gente tinha uma coisa durante a infância e adolescência, eu sempre passei as férias escolares no Rio, então eu sempre ficava ou na casa da minha avó ou na casa de uma dessas tias. Mesmo sendo uma família grande e morando em outra cidade, sempre teve uma presença muito forte. Até pela origem da minha mãe que é de família pobre e o meu pai que a partir do momento que casou com a minha mãe, ele ganhou bastante dinheiro e a minha tia mais velha cuidou do meu irmão ajudou, a minha mãe a cuidar dele. E eu tenho uma tia que depois foi morar com a minha mãe na época que eu nasci. E – É marcante a presença das mulheres na sua história. J – É são mulheres que eu tenho uma afinidade, que sempre tiveram presentes, fora o meu pai e a minha mãe, sempre estiveram presentes. E – A próxima pergunta é o que fez de você o que você é hoje? Eu acho que você já a esta respondendo. Então parece que em um primeiro momento as pessoas da sua família tiveram uma presença marcante na sua história. E hoje? J – Eu acho que uma coisa que eu sempre uma qualidade que eu tenha, e talvez seja isso que me diferencie de algumas pessoas que começaram junto comigo, é que eu sempre fui interessado em tudo. A princípio eu gostava de música por causa do meu pai, porque ele era músico ele era cantor, era aquela relação que você tem com a profissão do pai. Depois, da adolescência pra frente eu comecei também a exercer um fascínio por esse lance e a imaginar o dia que eu pudesse ser aquilo. E eu sempre fui interessado em muitas coisas, eu lembro que na adolescência a gente teve a época do rock no Brasil, eu ouvia muito o rock e mostrava o rock para os amigos no colégio. Antes teve o Michael Jackson que foi o primeiro artista que eu tive admiração, que eu gostei, e que era uma coisa que era fora da minha casa, pq na minha casa sempre teve muitos discos meu pai e o meu irmão também já eram músicos, meu irmão é 8 anos mais velho que eu. Quando eu tinha 10 anos ele já era músico e eu acho que ele tocava com o XXX nessa época, na banda do XXX. Então a minha casa tinha uma coisa de música por causa do meu irmão e do meu pai. E quando surgiu o Michael Jackson, foi a primeira vez que me despertou uma coisa de eu gostar de um negocio que o mundo deu pra mim. Eu lembro que eu fui na loja comprar o disco, eu queira ter o disco porque eu só ouvia os discos que eu tinha em casa. E foi aí que eu comecei a desenvolver isso, então depois veio os anos 80, depois o rock e eu sempre fui interessado em conhecer mais, e eu tinha uma intuição de que a coisa do conhecimento, quanto mais coisas diferentes você conhece, mais ferramentas você vai ter pra desenvolver aquilo que você quer. E – Isso você aprendeu em um determinado momento da sua vida? J – Não sei como eu aprendi isso.
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E - Como isso apareceu em você, essa idéia do conhecimento e de que quanto mais eu aprender de fora, mais isso vai me ajudar, vai aumentar meu campo de conhecimento e de atuação... J – Eu não me lembro exatamente de onde isso veio. Desde muito novo eu sempre tive essa coisa em mente, de você ter que conhecer muito daquilo, e eu observava muita as pessoas. Pessoas que eu conheci, pessoas próximas que tinham um conhecimento em um tipo de coisa e eu percebia que por mais que aquela pessoa se desenvolvesse de uma maneira rápida, eu imaginava que ia chegar uma hora lá na frente que o cara ia ficar para trás, e ia faltar, e isso ia acabar virando uma espécie de ‘hand cap’ pro cara mesmo, você tem que saber de várias coisas. E isso foi uma coisa que foi fundamental na minha formação. Desde o momento que eu comecei a ter aula de violão eu nunca pensei assim: “vou fazer aula de violão porque eu vou ser um grande instrumentista, um grande violinista”. Ao mesmo tempo que eu comecei a fazer aula de violão eu tinha interesse em estúdio eu queria trabalhar em estúdio para saber como se grava um disco, ao mesmo tempo eu gostava de ir a shows para saber como é, eu queira entender de todas as etapas do processo. Eu via que o meu pai era um intérprete, um cantor. Eu via que o fato de ele não ser compositor, e que na medida em que a gente vai ficando velho, a composição acaba virando uma espécie de aposentadoria para o musico, é uma coisa que você sempre vai ganhar dinheiro com aquilo, não importa que você tenha feito uma música de sucesso há 30 anos. Os direitos continuam rendendo. Se a pessoa é só interprete e não compositora ela não ganha nada, se ela ganhou dinheiro há trinta anos atrás ela ganhou. Então eu pensava nisso também de eu ser também compositor que é uma coisa para o futuro. E – Pelo que eu entendi em um primeiro momento o contexto em que você foi criado foi fundamental. As pessoas que cuidaram de você e que ajudaram na sua educação, no cuidado com você e com o seu irmão essas pessoas ajudaram muito. Aí você teve a influência grande do seu pai, músico, e de repente você se deparou com o mundo, com as possibilidades de fora e isso também define o que você é hoje. Parece que você foi se formando e encontrando o se encaixava com você... J – Exatamente. E também o que é interessante é você conciliar o de dentro de casa com as coisas do mundo. Se você for muito influenciado pelos pais, ou você nega tudo, vira do contra, rebelde, ou você tenta moldar a sua percepção do mundo com a percepção que seus pais passaram pra você. A música me ajudou muito a entender isso. Meu pai nos anos 80, ele tinha 50 anos, ele era de outra geração, e é óbvio que ele não ia gostar de rock nacional. Pra mim aquilo era uma coisa que, eu ouvia aquelas músicas, não como apreciador de musica, mas como pessoa. Aquilo era uma coisa que dizia não só a mim, mas a minha geração, as pessoas com que eu andava que faziam parte do meu mundo. É interessante isso porque você aprende a lidar com o que é o seu gosto, o que você gosta por inércia ou que você tem que acabar gostando. E no momento da adolescência é um momento de dúvida, que você fica com um série de inseguranças, dúvidas e questionamentos. E – Fora a música, o que mais te define? O que mais construiu o João de hoje?
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J – A música me proporcionou um interesse em várias áreas. A percepção do conhecimento, eu sempre tive interesse em outras coisas. Ao mesmo tempo em que eu fui desenvolvendo essa relação com a música, ela mesmo de uma maneira indireta foi me levando a outras coisas, a ler, e uma coisa vai levando à outra. Você se conhecer melhor, você lê uma coisa e fala: “eu não estou entendendo isso”, e você pergunta para uma pessoa e a pessoa te fala um negócio, e passa um tempo e você vivencia uma certa situação em que você entende aquilo, e você lê aquilo de novo e você descobre uma outra coisa, e você acaba ligando uma coisa com a outra, né. A relação com as pessoas, as amizades foram também muito importantes para mim, para eu me formar como pessoa. E uma experiência recente foi ser pai que é a primeira coisa de morar junto com uma pessoa, você tem que amadurecer ali dia a dia, na frente da pessoa. Depois daquela fase que eu morei com o meu pai, o meu pai casou de novo, aí a minha mãe que morava com a minha tia teve que voltar para São Paulo, nessa época eu já estava estabelecido, já havia me estabelecido comercialmente, a música já me sustentava, aí eu tive por opção, por uma coisa temporária tive que voltar a morar com a minha mãe e irmã como uma maneira de viabilizar, e eu e o meu irmão combinamos de rachar as despesas e aí foram 4 ou 5 anos que eu tive essa experiência difícil porque você já está acostumado a viver de um jeito, é como se eu desse um passo pra trás. Eu saí dessa experiência de cinco anos que eu morava com a minha mãe e fui morar com uma outra pessoa e você tem uma série de manias, uma série de coisas que você faz que as vezes você não percebe, que quando você mora com uma outra pessoa, você começa a sacar que você tem que se adaptar porque tem uma outra pessoa morando contigo. A dificuldade que é em prol da relação e do carinho, do amor que você tem pela pessoa e se abdicar de uma série de coisas que parecem besteira, mas é uma coisa que já está dentro de você. Por exemplo, você janta, levanta e deixa o prato na mesa porque a sua mãe sempre tirou o prato, entendeu. É uma coisa tão simples, mas é uma coisa que você não pensa, porque você nunca fez isso. São coisas que você vai aprendendo no dia a dia. Essa experiência pra mim foi importante. Eu acho que eu era muito mais imaturo, me ajudou muito essa coisa. E depois o meu filho, eu já tinha 30 anos quando o Fernando nasceu, e eu estava em um momento que eu sempre esperei. Eu já tinha lançado dois discos, já tinha conquistado uma certa estabilidade tanto profissional quanto econômica. Vivia de uma maneira relativamente confortável de uma maneira que eu sempre quis. Então o lance de você ter um filho é uma experiência tão diferente, tão única de todas as outras que eu já havia passado. Quando você tem 30 anos você já viveu tantas coisas que você acha que não vão acontecer coisas tão inusitadas na vida: “nunca passei por isso”. E foi uma coisa completamente nova. E – Foi inusitado. J – A função que você tem que exercer como pai, você participar, criar uma pessoa e educar uma pessoa, dar atenção. E – E no que você é hoje, o que essa experiência influenciou? J – Isso influenciou muito. Eu sou... o seu filho acaba sendo uma... você pensa em qualquer coisa que você vai fazer ele está ali por trás, então é muito diferente quando
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você não tem um filho, você tem uma série de responsabilidades que você faz um certo corpo mole, mas a partir do momento que você tem um filho, você tem uma outra pessoa que depende de você, então algumas decisões que você vai fazer na vida você tem que pensar, você não tem aquela folga, aquele jogo de cintura todo pra tomar suas decisões. E isso acaba de uma maneira ou de outra interferindo até nas coisas profissionais. Determinadas coisas que você não gosta de fazer ou não faria, a partir do momento que você tem um filho você já pensa melhor: “será que eu faço isso?”. E – Você hoje tem mais cautela nas suas tomadas de decisões? J – É eu acho. Não cautela, você tem que pensar nisso, tem que pesar o fato de que você tem um filho e ele depende de você, e isso interfere em muitas coisas, não só na coisa do dinheiro. Se você vai comprar um negócio se você vai gastar um dinheiro que se você não tivesse filho e pudesse gastar, “ah vamos fazer uma viagem, vamos ficar três meses viajando”. E até com o lado profissional mesmo. Determinadas coisas que você poderia fazer, quando você tem um filho: “caramba como é que eu vou fazer com o meu filho, vou deixar ele aonde, vou ficar fora de casa tanto tempo”. Você primeiro se questiona, né. Você tem que tentar organizar sua vida de uma maneira que tenha uma relação com ele com a vida dele. Você não pode mais simplesmente organizar a sua vida e tentar encaixar ela na vida do filho, você tem que conciliar. E – Você acredita em destino? J – No sentido bíblico? “Ah, estava escrito?” E – É. J – Não, isso não. Eu não acredito nisso não. E – Você não acredita que tenha algo escrito e pronto para a sua vida. J – Acho que tem certas coisas para as pessoas serem confortadas. Tem a coisa da influencia do cristianismo, das pessoas terem alguns dogmas, alguma coisa assim para as pessoas se sentirem... E – Como um conforto? J – Se der errado o cara fala assim “ah, era o meu destino, o meu destino era esse, não era pra eu ser”. Pro cara não sofrer tanto com isso o cara se apega na coisa: “ah, é o destino, né”. Eu acho que o destino é o que a gente trilha, cada um traça um caminho e você vai atrás do que você acha que é o melhor pra você ou pelo menos na direção de onde estará o melhor pra você. Acho que a gente sempre vai atrás para que cada vez as coisas possam... por mais que estejam boas, elas possam melhorar sempre. E – Como você tem traçado os seus objetivos e como você os tem cumprido? Tem sido fácil? Quais os fatores que interferem nas suas tomadas de decisões?
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J – A carreira da música é uma carreira muito difícil. Quando passa pelo estágio inicial em que você tem um sonho de gravar um disco e você consegue realizar esse sonho, que passa aquele primeiro momento, que você percebe que essa carreira é uma outra qualquer, tem que ir administrando e fazendo coisas, e ainda mais o jeito que a indústria da música é hoje, o ritmo de vida que as pessoas tem, a quantidade de pessoas que trabalham com música, os impérios de comunicação, essa coisa da mídia. É uma profissão muito difícil, eu acho que é muito. É primordial primeiro o cara gostar senão ele desiste. Tem o lado bom, mas é uma ralação, são uma série de dificuldades em que você vai ganhando o jogo diariamente. E mesmo quando você tem um grande êxito em determinada coisa depois você tem que trabalhar outra, entendeu. É uma coisa difícil. Você tem que conciliar as suas idéias, a sua maneira de ver o seu gosto e você tem comercializar, mostrar isso paras as pessoas, e entre aspas, convencer as pessoas daquilo. E – Você tem conseguido fazer isso? J – Na medida do possível eu acho que sim. Eu tenho uma carreira relativamente curta. Uma carreira não como músico, mas como artista que lança disco. O meu primeiro disco saiu em abril de 2000, então são cinco anos, vai fazer seis anos de carreira agora. É incrível, eu lembro quando eu lancei o meu segundo disco, e eu tocava as músicas do segundo disco nos shows, era difícil, as pessoas não conheciam as músicas. Você ficava tentando administrar a parte que as pessoas conhecem do seu trabalho, e ao mesmo tempo, você quer introduzir coisas novas que as pessoas gostem e você fica jogando com isso. E quando eu fiz o terceiro disco e fui fazer os shows, as músicas do segundo disco já eram muito conhecidas e já havia passado três anos, as pessoas compraram os discos e já estavam conhecendo. Então dá essa sensação de vitória, entendeu. Você cantar uma música que no passado, aquela música que você dava aquele gás para... e você vê aquelas pessoas cantando e gostando daquela música. E aí tem o disco novo, tem a música nova, aí é a mesma coisa. Então tem todas essas questões que você tem lidar, porque você não pode tratar simplesmente de assuntos artísticos, tem horas que você tem que pensar em coisas que viabilizem a própria existência... Se você tem um show, e você quer fazer um show com determinada pessoa, você não tem como naquele momento, você diz “eu tenho tanto e eu tenho que realizar”, não interessa. E eu tenho que realizar com esse pouco que eu tenho. E para a pessoa que está indo assistir ao show, ela não vai entrar neste mérito: “Ah não foi bom, mas o cara não fez a estrutura”, não importa, o cara tem que ir e gostar, e tem que ser bom de qualquer jeito. E – Se você fizer um balanço entre as dificuldades e facilidades de tudo isso, as dificuldades da grana, o custo de tudo isso com as suas idéias, seu desejo o que você quer realizar. J – No balanço que eu faço eu acho que o saldo é positivo. Eu consigo viver de uma maneira confortável hoje em dia, sem ser obrigado a fazer uma coisa que eu não gosto. Pode ser que eu queira fazer muito mais coisas que eu gosto, tem muita coisa que eu quero fazer ainda, mas não tem uma coisa que eu seja obrigado a fazer, que eu me sinta mal, envergonhado, entendeu?
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E – E nem fora da sua área que é música. Isso é marcante você abriu a entrevista falando que você vive do que você gosta que é música e batalhou por isso. J – Muitas pessoas tem também o perfil parecido com o meu, não só na música. Quando você tem uma ligação da coisa que você faz, quando isso está ligado proporcionalmente com a questão da sobrevivência, o ‘aprouch’ com o negócio é diferente. Não que essas pessoas façam a coisa de uma maneira pior ou leviana, mas a relação com a coisa que se faz é diferente. E – Você se sente com autonomia para fazer o que deseja? J – É uma autonomia controlada. É uma autonomia... por exemplo eu sou contratado por uma gravadora, eu tenho um orçamento X e eu posso fazer o que eu quiser com esse orçamento, mas eu só tenho esse orçamento, então não deixa de ser uma liberdade, mas tem um controle nessa liberdade. E – Tem um limite nessa liberdade, nessa autonomia. E nas outras áreas da sua vida, João, você daria algum exemplo? J – Então tem essa coisa da questão financeira que as vezes você gostaria de ter determinada coisa. Se eu morasse sozinho eu poderia ter aquilo, mas eu não posso me dar ao luxo nesse momento de ter determinada coisa porque o fato de eu ter aquilo vai fazer com que eu não tenha outras coisas que quando você é casado, quando você tem filhos você tem coisas que você tem que ter, entendeu? Então eu acho que é meio parecido. Quando você é casado, tem filho, tem uma família, é um chefe de família, você tem uma série de coisas que esse tipo de função na sociedade não permite você fazer. E – Existem momentos na sua vida em que você se sentiu com as rédeas da vida nas suas mãos? Quais momentos? E no momento atual? J – Desde essa época que eu comecei a trabalhar com música, eu senti que foi uma coisa que mudou, eu deixei de ser uma pessoa que dependia das pessoas e passei a ser... Neste momento eu senti, mesmo continuando a depender das pessoas, você vai trabalhar num... você depende da pessoa que te contrata e tal, mas você tem as rédeas da vida nesse sentido de que você pode escolher o que você quer fazer, né. E – E isso foi marcante quando você começou a trabalhar com música. J – É. Porque era a coisa que eu sabia. Talvez se eu tivesse seguido uma outra carreira... Eu acho que esse foi um momento que eu me senti muito diferente eu senti que era uma coisa muito boa ser independente. Independente tanto financeiramente, da opinião das pessoas, de tudo sabe. E – Então vai além...
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J – Da coisa do trabalho. E – Vai além da coisa do trabalho, e o que as pessoas pensavam não tinha mais tanta importância? J – Não no sentido: “ah não estou nem aí para o que as pessoas pensam”. E – Como que é essa sensação? J – Depender das pessoas para ter determinadas coisas. Por exemplo, você está com a sua família e tem uma série de coisas que você gostaria que fosse de um jeito, mas você não pode fazer porque você mora com seus pais, você deve uma série de... você tem ali uma coisa que você tem que fazer, não tem jeito. Até a diversão, você tem uns amigos e você depende daqueles amigos, o cara tem uma casa no lugar X, e você depende do seu amigo pra poder ir para aquele lugar, e aí chega uma hora que você descobre que você pode ir para um outro lugar, você pode conhecer outros lugares, fazer outras coisas. E – Parece que o mundo ficou maior pra você. J – É. Na vida você vai ampliando a sua rede, de amigos também vai ampliando. Eu me senti muito dependente das coisas, e isso pra mim foi uma conquista muito grande. Você vai aprendendo a lidar com isso com o tempo, e profissionalmente a mesma coisa. Você vai aprendendo uma maneira de se relacionar com as pessoas, porque existem certos padrões de comportamento que você começa a perceber também. E isso é uma coisa que dá uma independência. Quando você percebe que você não precisa ser daquele jeito, existe ali um padrão de comportamento, que para determinados tipos de coisas você tem que agir daquela maneira mas você tem... você sabe que você não é daquele jeito. Você não vai se sentir uma pessoa insegura, aquela pessoa que faz tudo para agradar as pessoas. Em alguns momentos você tem que fazer alguma coisa que agrade, mas você sabe que... E – Já foi mais forte isso na sua vida de perceber que estava fazendo algo para agradar? J – Eu senti isso na fase da adolescência, fim da adolescência, eu me senti um pouco assim. E – E em que momentos você não se sentiu com as rédeas da sua vida nas próprias mãos? J – (silêncio) Às vezes você se decepciona. Espera que vai acontecer alguma coisa e não acontece. Acho que isso é uma coisa que... na vida é assim, tem horas que você tem que reconhecer que as coisas acontecem e tem momentos na família, de doença e morte, e coisas pessoais também. Você tem uma relação com uma pessoa, você gosta da pessoa e a pessoa gosta de você, e chega uma hora que não dá mais certo, e você não sabe porque. E é uma coisa que vai além... daí depois que passa um tempo, e você
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percebe, e você entende o negócio acabou. Então são nesses momentos. E às vezes a gente se decepciona com coisas que a gente faz também. Você vai fazer uma coisa que é legal e depois se desinteressa por aquilo. E – Você poderia dar um exemplo de um momento que você não sentiu que a sua vida estava nas suas mãos, que as rédeas não estavam nas suas mãos? J – Essa coisa que eu te falei de doença na família, de doenças da minha mãe e do meu pai. Essa coisa de relacionamento, tem hora que escapa... tive duas namoradas que tinha uma coisa muito fantasiosa. Eu tive poucas namoradas então eu não sabia lidar... Hoje em dia depois de ser casado que eu vejo o quanto eu não sabia lidar com aquela situação. E – Naquela época você não se sentia tanto assim né, tendo o controle da vida. J – É. E - As coisas aconteciam mais sem a sua vontade. J – É. E coisas profissionais também, às vezes você vai fazer um show num lugar e acha que vai ser bom e aí acha vai estar cheio, o show e está vazio. São coisas que acontecem. E – São momentos que você tem uma expectativa e não acontece o que você realmente esperava. Você teve momentos de frustrações em relacionamentos e você falou bastante de doenças, que doenças são essas João? J – Meu pai ficou doente durante os anos 90 eu tive problema do meu pai e da minha mãe ficarem doentes intercalados. Meu pai teve uma espécie de úlcera e depois na segunda vez ele teve um problema com o fígado por causa da bebida, ele ficou com o fígado muito debilitado. E – Ele tinha problema com álcool... J – O problema com a bebida foi um acúmulo de anos, anos e anos bebendo e quando ele ficou velho com uns sessenta e poucos anos, isso acarretou uma série de problemas, aí o fígado não funcionava e comprometeu outras coisas. Mas foi um processo longo de recuperação e aí ele ficava doente de novo. É uma coisa chata de lidar. E também a minha mãe ficou doente justamente em um período durante os anos 90. Ela já tinha tido problemas emocionais, ela já tinha tido problema com isso nos anos 70, ela já tinha sido internada e durante os anos 80 ela já tinha se estabilizado, até pela vida tranqüila que a gente tinha. Aí no final dos anos 80, ela voltou a ter os problemas de novo, voltou a ter crises. Era uma época que eu e os meu irmãos a gente ficava... a minha mãe numa clínica, o meu pai no hospital, a gente tendo que trabalhar e ir ao hospital cuidar. E – A sua mãe foi internada também nesta época?
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J – Foi, várias vezes. E – Então foram coisas da vida que mesmo contra a sua vontade... J – Mesmo contra sua vontade você tem que lidar com isso. E aí o dinheiro que você tem, que você guardou para um projeto, você não tem muito como ir contra. E – E hoje você se sente com as rédeas da vida nas suas mãos? Como você sente isso hoje? J – Eu sinto. As vezes quando eu e os meus amigos nos encontramos, fala-se muito do passado. Eu não sou muito saudosista. Não que eu não tenha gostado das coisas que eu passei, mas eu sempre acho que a minha vida está melhor do que já foi. Eu não tenho muita saudade das coisas que já aconteceram. Houve coisas ruins, algumas coisas boas, mas eu acho que a vida só melhora. E – Você tem essa sensação de que as coisas melhoram a cada ano. J – Eu tenho. Chega fim de ano, natal e ano novo em que as pessoas fazem um balanço, pra mim é... E – Como você faz esse balanço? Olha para frente e não olha pra trás? J – Não eu olho pra trás e sempre tenho uma sensação boa de me sentir melhor. Vejo como eu era há dois anos atrás e como eu sou, as coisas que eu sentia. Essa coisa de você ser mais maduro para determinadas coisas, as coisas que você conquista na vida, sabe materiais e profissionalmente. Você vê a evolução, eu vejo a evolução, uma evolução constante. Eu sou muito melhor músico hoje do que eu era no passado, que cinco anos atrás, dez anos atrás. Eu sei fazer muito mais coisas do que eu sabia fazer. Então eu penso assim, que a vida só melhora. E o ficar velho, que é uma coisa que as pessoas se preocupam muito. O meu irmão tem uma coisa que ele não fala a idade dele, ele fica constrangido de dizer a idade dele, eu não tenho esse problema. E – Aliás, qual é a sua idade João? J – Eu tenho 33 anos. Eu acho que a cada ano que passa eu me sinto melhor, entendeu? E – Foi bem marcante quando eu fiz a pergunta e você falou do momento em que você começou a trabalhar com música. E hoje qual é a sensação, você daria um nome? Você está dizendo que as coisas melhoraram e que a cada ano que passa você olha para trás e pensa ‘nossa eu estou muito melhor agora!’. Você daria um nome para essa sensação?
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J – Não sei... (silêncio de alguns segundos). Acho que tem vários nomes: maturidade, segurança, competência, emoção. Quanto mais você conhece você fica mais suscetível a se emocionar com as coisas. E – Emoção em que sentido? Alegria? J – Não, no sentido de você estar mais sensível para receber as coisas. E – A sentir? J – É, a sentir. É nesse sentido, não sei se emoção quer dizer exatamente isso. E – Nós temos várias emoções: tristeza, alegria, raiva, medo. J – Em todos os sentidos. Certas coisas que aconteceram na sua vida, que foram... que na época você achou que foi uma coisa muito ruim, mas hoje em dia você pensando, você consegue... Essa coisa de você aprender, do aprendizado. Eu acho que talvez seja por isso que a vida melhora. A cada dia você melhora com tudo... E - Você... (risos) J – É. Eu. Vou aprendendo, né. (risos) E – Não são todos. (risos) J – É não são todos (risos) J – Acho que é essa vontade de conhecer as coisas. E – De crescer né. J – Tem uma música no meu terceiro disco, a primeira música, ela fala bem sobre esse lance. E eu tentei fazer durante muito tempo e não conseguia, chegar com as palavras, tentar expressar essa coisa que eu sentia e transformar isso em palavras, e dessa vez eu consegui. É uma música que eu gosto muito. E - Você poderia cantar um trecho? J – Eu queria achar uma maneira de expressar poeticamente, que não fosse um diário. Eu queria uma coisa que poeticamente pudesse ter uma interpretação. Então é assim: “todo dia eu me meço e recomeço a aventura me arremesso num universo imprevisível, na lida, na luta da verba converso, na vida o que eu peço é viver da música que eu faço”. Tem uma outra parte que é assim: “Viro-me do avesso, os meus erros eu reconheço, a curiosidade é a minha redenção, esqueço o que passou e me aqueço, deito em brasa outra vez no coração”.
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Tem uma coisa interessante que é assim toda a primeira parte da música todas as palavras rimam com sucesso: “todo dia eu me meço e recomeço, me arremesso, universo” e a segunda parte todas as palavras rimam com preço: “viro-me do avesso, meus erros reconheço”. Essa coisa do contraponto do que você quer e o sucesso não é o lance do dinheiro e sim o lance de você se realizar, eu quero isso e consegui, e a segunda parte é o preço que você tem que... então eu acho que eu consegui resumir essa coisa que eu sentia, né. Que eu sentia não, que eu sinto. E – Vale a pena o preço? J – Vale a pena E – Se você pudesse o que você faria diferente na sua vida? Se você puder escolher uma situação, conte como você chegou até ela e o que mudaria? J – Se eu pudesse fazer o que? E – Se você pudesse o que você faria diferente na sua vida? J – Ah ta. E – Se você tiver uma situação conte um pouco como você chegou nessa situação e o que mudaria. J – É que assim, também ninguém é perfeito. Eu quero também mudar algumas coisas. Tem coisas que fazem parte da estrutura e que são difíceis de você conseguir. E a cada dia eu me dedico não só nessa coisa do artista, mas na estrutura, pra que eu possa cada vez mais realizar os meus desejos. Às vezes, eu vejo um artista ou uma banda e penso “como esse cara conseguiu fazer isso”? e às vezes eu vejo o cara jogando de uma maneira tão... que ele conseguiu. Eu fico perseguindo agora essa coisa de ser mais organizado de cada vez ter uma estrutura. Acho que a organização é uma coisa importante. A organização é uma coisa que só vem com a dedicação, não existe outra maneira. Isso é uma coisa que eu poderia melhorar muito. E não só a organização como artista, no campo profissional, mas como pessoa também. Às vezes, eu faço determinadas coisas que depois me dá uma p... dor de cabeça.As vezes eu tenho que ir ao banco, e eu deixo para ir dez pras quatro. A Maria fala, “porque você não vai de manhã?” Mas aí você vai fazendo uma coisa, outra e quando você vê tem que sair correndo pra ir ao banco e você passa aqueles dez minutos de stress. Não precisava passar por aquilo, entendeu? E – Você mudaria a organização? J-É E – E olhando pra trás a sua vida, você faria alguma coisa diferente?
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J – Assim como eu não tenho saudades eu não tenho arrependimentos. A gente faz o que tem que ser feito E – E o que fará de você o que você será no futuro? J – O presente sempre determina o futuro, né E – Você acredita nisso? J – É, o que você faz hoje é o que você... O que você faz hoje não tem jeito, o amanhã será fruto dos seus atos. Então, é por isso que eu não acredito em destino, como a gente falou aquela hora. Eu acho que a cada ação que você faz, você está conduzindo a sua vida para uma direção, um caminho. E – Tem alguma coisa mais específica que você vai fazer no presente e que fará de você o que você será no futuro? J – Também não acho que a gente tenha que se preocupar tanto com o futuro, se preocupar com o que eu serei no futuro. Você tem que se atentar mesmo às obrigações. Você tem que fazer agora esses afazeres mesmo. Eu acho que é isso que vai... Você pode fazer planos, você pode projetar para o futuro algumas coisas, mas esse trabalho diário no presente é fundamental. Investir na sua energia e se concentrar no hoje. No meu caso, que trabalho com música, com arte, é uma coisa que até me ajuda um pouco. Existem tantos caminhos na música, tantas direções, possibilidades e eu procuro fazer sempre o melhor que eu posso fazer naquele momento. Se eu ficar perseguindo sempre um... Você acaba criando um problema pra você antes do tempo. E – Você acha que para a sua criatividade fluir mais isso ajuda? J – Eu acho que sim. Tudo o que eu faço é sempre o melhor, a pessoa goste ou não mas é o melhor que soube fazer até aquele momento.
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ENTREVISTA II ANA 35 anos, psicóloga E – A primeira pergunta da entrevista é como você se define? Quem é a Ana? A – Ô perguntinha difícil. Quem eu sou? Como eu me defino... Se eu pegar o que eu sou hoje... porque eu fui mudando muito, eu acho que as características principais são, a característica principal minha é ser interessada em gente. Eu tenho um interesse fora do comum nas pessoas. E – Como é esse interesse? A – Querer saber a fundo o que a pessoa pensa o que a pessoa sente e se tiver coerência eu vou embora (risos) mergulhando nela. Porque isso me ajuda a me entender melhor, acho que é isso, é a minha característica principal. Aí as periféricas são... E – Você se interessa por pessoas e busca se compreender através dessas pessoas, de que forma você busca isso? A – Quando eu vou perguntando a respeito dos outros, eu vou procurando saber o que leva a pessoa a agir o que leva a pessoa a ser como ela é, eu vou fazendo paralelo comigo mesma e vou me entendendo. Até com os clientes mesmo, cada cliente que eu recebo eu vejo uma queixa específica, um jeito específico de agir, e aí inevitavelmente, eu faço um paralelo comigo. Isso já é uma racionalização em cima da coisa, porque na verdade eu sempre fui muito interessada em gente, eu sempre fui muito perguntona, entrona sabe, eu sempre fui daquelas pessoas que faz a pergunta que ninguém faz pra todo mundo, e aí eu fui vendo que tinha gente que dava a resposta e a gente ia fundo, e tinha gente que ficava constrangida e eu tinha que parar, então eu sempre fiz isso. Isso sempre foi muito presente na minha vida, isso sempre foi muito presente na minha personalidade, de me interessar, de perguntar e querer saber até o fim da história, enquanto a pessoa estiver a fim de me contar eu quero saber. E racionalizando depois, porque eu agia assim, eu descobri o quanto isso me ajuda e o quanto eu fui me modificando ao longo do tempo, o quanto que eu fui aprendendo com as pessoas com isso. Então eu acho que isso é um ponto central da minha personalidade e da minha vida: a minha relação com as pessoas. E o que eu mais gosto de fazer é colecionar amigos, isso é o que eu mais gosto. O que me dá mais prazer quando eu olho pra minha vida é a coleção de amigos que eu fiz. Cada um com o seu jeitinho, cada um contribuindo de um jeito pra minha vida, é o que me dá mais felicidade.
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E – E o que mais te define, você disse que a primeira característica mais forte na sua personalidade é a sua relação com as pessoas... A – É a mais forte porque é essa que me modifica, então todas as outras coisas que eu disser, elas tem a ver com essa primeira, entendeu. Todas elas foram modificadas, então sendo modificadas, ou estão em processo de modificação em relação a esta primeira. E – E é sempre uma modificação na sua relação com as pessoas, faz parte dessa relação, é isso? A – Sempre, sempre parte da relação com as pessoas as minhas modificações. Então hoje eu posso dizer que eu sou uma pessoa extrovertida, eu já fui pra lá de introvertida, hoje eu posso dizer que eu sou alegre, eu já fui tremendamente triste. É muito engraçado porque eu tenho umas polaridades que são muito fortes e até os meus amigos me apontam isso. Geralmente as pessoas tendem a manter você no enquadramento que te conheceram, né. Dizem que você é uma coisa determinada, mas até os meus amigos mesmo, eles olham para mim e dizem o quanto eu mudei. Então eu sinto uma mudança assim fantástica na minha personalidade pra melhor. Eu era muito melancólica e hoje em dia eu sou uma pessoa satisfeita, alegre sabe, mais ainda muito, muito ansiosa, muito ansiosa. A ansiedade ainda é uma característica fortíssima na minha vida. E – Você poderia dar um exemplo de que forma o seu contato com uma pessoa te modificou. Você foi falando que você mudou: você era uma pessoa triste e hoje você é uma pessoa alegre. Teria como você dar um exemplo de uma pessoa, o que você viveu com essa pessoa que te modificou? A – Aí a gente entra em um histórico (risos) de modificações enorme. E – Então a gente entra na próxima pergunta que é o que fez de você o que você é hoje. A – Então, o que fez de mim o que eu sou hoje é a minha relação com as pessoas. Aí eu posso dizer que a primeira relação foi obviamente com os meus pais e a relação com eles foi muito ruim pra mim, me fez mal em muitos aspectos. Na verdade a base da minha personalidade não pode ter sido tão ruim assim, alguma coisa eles acertaram, mas muitos pontos na minha relação com eles me deixaram muito mal. Meu pai contribuiu muito para eu me sentir extremamente envergonhada, a minha mãe contribuiu muito pra que eu me fechasse para as pessoas, entendeu. De início eles mexeram na minha personalidade desse jeito, me fechando, ficando envergonhada, acabando com a minha auto-estima. O que eu posso dizer de positivo da relação com os meus pais é a minha mãe foi uma pessoa que me fez olhar muito para os outros. Ela tem uma preocupação humanitária com as pessoas, só que ela tem isso no geral e eu coloquei isso para o particular. Ela tem uma preocupação ecológica com o mundo com as pessoas, com o amor universal, ela me passou isso e eu transformei para o particular. Eu tenho uma preocupação com a pessoa imediatamente ao meu lado. E o
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meu pai, engraçado que uma característica que ele não passou pra mim de imediato, mas é que ele era uma pessoa muito aberta, ele falava com todo o mundo, e ele me influenciou na época de um jeito contrário, eu polarizei com ele eu me fechei diante da abertura dele com o mundo, e quando ele falava com as pessoas eu me fechava. Mas hoje eu vejo que tem alguma influencia dele nisso, essa abertura que ele tinha com os outros, hoje eu vejo que eu tenho também. Facilidade de falar com todo o mundo, de dizer bom dia pra todo o mundo. Meu pai falava bom dia pra todo o mundo, falava com a vizinhança inteira, conversava com todo o mundo. Acho que isso aflorou em mim e acho que tem a ver com ele, uma coisa positiva. E – Você considera que teve essa influência da sua mãe e do seu pai de se ligar nas pessoas, de gostar de se relacionar... A – Apesar deles não gostarem de se relacionar, é estranho, a minha mãe tem uma preocupação universal afastada dos outros, não é que ela se relaciona, ela tem uma preocupação com o ser humano, ela quer ajudar o ser humano, ela tem uma preocupação ecológica, eu diria assim. Não é que ela se relacione. E o meu pai tem uma relação muito social, ele também não se aproxima. Sem aproximações, eles não se aproximam das pessoas. A minha mãe não é sociável, ela tem uma preocupação com o bem estar do outro, o meu pai é sociável, fala com todo o mundo superficialmente, mas não aprofunda com ninguém. E – Então eles despertaram esse interesse, mas a forma que você usa isso é totalmente diferente. A – Totalmente diferente. E eles despertaram esse interesse até pelo oposto, porque apesar da minha mãe ter essa preocupação toda humanitária e o meu pai falar com todo o mundo. A nossa família era extremamente fechada e não falava com ninguém, era praticamente proibido botar alguém dentro de casa ou se relacionar profundamente com alguém, então esse proibido acho que me instigou também. Pensando agora (risos). E – É uma incoerência quase né porque... A – É, a minha família é cheia de incoerências E – É um paradoxo, digamos assim. A – É. E – Então há um interesse com o mundo, com as pessoas, um interesse humanitário, seu pai é sociável, mas por outro lado, não podia se aproximar das pessoas, era proibido se relacionar com as pessoas. A – Isso. E na época eu via como um defeito meu. Eu olhava a minha mãe preocupada com o universo e o meu pai sociável, e eu fechada, eu achava que era um defeito meu. E hoje em dia eu vejo que era uma característica paradoxal da família mesmo.
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E – Você respondia a uma das mensagens. À possibilidade que era a proibição. A – E que era mais intensa, ela era mais intensa, o resto era muito superficial. O que realmente acontecia é que não tinha relação com ninguém naquela família. Era uma família fechada em si. Aquilo era verdade. Não era tão meu assim, era da família mesmo. Aquela família era fechada, e não se relacionava. Então quando eu fui pra escola e que eu comecei a me relacionar com as pessoas, aquilo pra mim foi uma abertura de horizontes. “Nossa que fantástico, existem outras pessoas que pensam diferente, e eu quero saber o que elas pensam e como elas são”. De início, eu me dei muito mal, porque eu não tinha o menor traquejo social, eu não sabia como agir em grupo. Então eu não sabia como fazer pra me aproximar das pessoas. Era muito esquisito, as pessoas me rejeitavam. Eu não sabia como agir, eu não sabia como fazer. E tinha também uma arrogância que eu também trazia da minha família, a minha família era muito arrogante, se achava melhor do que todo o mundo. E aí eu me colocava no mundo com esse paradoxo também, de cara de arrogância, mas me sentindo uma porcaria (risos). Quando eu cheguei no segundo grau e eu conheci o Fernando, as coisas mudaram um pouco, eu polarizei tudo para o Fernando. Polarizei todas as minhas baterias para o meu relacionamento com ele. Um relacionamento de amizade mesmo. Ele virou o meu ídolo, o meu pai substituto, um cara que eu achava que era o máximo. E – Polarizou em que sentido? Você viveu com ele coisas diferentes? Como assim? A – Não, eu joguei todas as minhas baterias, o meu interesse nele. Antigamente eu era CDF, eu só pensava em estudar, era uma coisa assim, eu tinha aquele interesse na escola, a escola era o meu interesse. Quando eu conheci o Fernando, o Fernando passou a ser o interesse. Até decaí nos estudos um pouco, nada que chamasse a atenção, mas o professor chegou a dizer pra mim que eu era uma boa aluna e agora eu andava com más companhias. Mas nada que me fizesse repetir de ano, nada disso, mas eu realmente polarizei pra lá, pra ele. E foi engraçado assim, ainda nesse paradoxo, como eu tinha muita dificuldade, muita curiosidade a respeito das pessoas, e muita dificuldade de me relacionar com elas, eu colocava sempre uma outra pessoa no meio, sempre, sempre que eu me relacionava. Começou com o Fernando, então eu me relacionava com o Fernando, aí aparecia o Renato e eu colocava o Renato no meio da gente. Era como se fosse uma proteção para eu me aproximar, mas não me aproximar muito. Isso eu percebi muito tempo depois. Eu sempre criava aqueles triângulos que era para eu poder me aproximar do outro, mas em uma distância segura, eu tinha medo de gente, muito muito medo. Muita, muita curiosidade e muito, muito medo das pessoas. E o Fernando era uma pessoinha danada, ele era autoritário, egoísta, egocêntrico e ele me maltratou pra caramba e eu não sabia como agir com aquilo, mas também como era muito parecido com o padrão da minha família eu não achava que aquilo era errado, entendeu. Não sei se o Fernando desafiou alguma coisa na minha personalidade, eu sempre polarizei pra ele. Eu vivenciei muito aquilo, mas eu não sei no que ele me mudou. (silêncio de alguns segundos). Acho que ele não me mudou muito não. Quando veio a Vanessa...
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E – Parece que, na ordem do que você disse, que primeiro você voltou a sua atenção para a escola, e ele foi a primeira pessoa que você voltou a atenção de fora da sua casa. A – Ele foi o primeiro amigo mesmo, teve o Junior antes, mas aí foi um afer, o Junior foi um afer. Eu não conseguia namorar, tinha medo de gente, eu não conseguia namorar o Junior. E o Fernando, como ele também tinha medo de gente e era complicado pra caramba, a gente conseguiu formar uma relação que tinha tudo de namoro, menos o namoro em si (risos), e aí casou a maluquice de um com o outro. Por isso que foi a primeira relação que eu tive mesmo com uma pessoa próxima, profunda, foi com ele, sem toque. Foi uma relação próxima e profunda, talvez nesse sentido. E – Era um namoro que não era namoro. A – Era um namoro sem toque, tinha tudo de namoro. Tinha briga de namoro, tinha intensidade de namoro, tinha tesão do namoro, mas não tinha toque, entendeu? Tanto da parte dele como da minha parte, porque a gente era maluco, era maluquice dos dois (risos). Aí eu conheci a Vanessa, não aí a gente brigou, primeiro a gente brigou, brigou feio, brigou horrivelmente, se afastou, meu mundo caiu, foi a primeira grande depressão que eu tive uma depressão horrorosa, parecia que tinham tirado o meu ar, “Oh o Fernando sumiu”. E eu estava no meio da depressão deprimidésima e conheci a Vanessa. Aí a Vanessa me mudou completamente, porque aí a Vanessa era um contraste tão grande com a minha personalidade que eu fiquei chocada. De início eu não percebi, mas depois eu fui olhando pra Vanessa e percebendo a diferença que era: eu era deprimida, ela era eufórica, eu diminuía tudo, a importância de tudo, e ela aumentava a importância de tudo, eu não me divertia com nada e ela se divertia com qualquer coisa (risos). Eu era totalmente formal rígida, dura e envergonhada, a Valéria não tinha vergonha de nada, ela era totalmente solta, totalmente aberta (risos). E eu fui percebendo que a maneira dela era muito mais divertida do que a minha, e que eu sofria demais a toa, entendeu? E ela foi me ensinando isso, sem que eu dissesse isso pra ela, eu nunca falei isso pra ela. Não naquela época. Tanto que depois, a gente conversando, ela veio me dizer que era minha escolha que eu tivesse aprendido alguma coisa com ela, porque realmente eu era muito fechada, eu não falava, sobre mim, eu só perguntava sobre o outro (risos). Aí eu fui aprendendo isso com ela, eu fui aprendendo a me soltar, eu fui aprendendo a ficar menos dura, até fisicamente, corporalmente, em todos os sentidos. Ela me ensinou flexibilidade. Depois eu conheci o Luís, meu marido e o Luís é uma pessoa totalmente fechada também, totalmente autista (risos) e eu fiquei muito intrigada com o Luís, ele aguçou muito a minha curiosidade a respeito das pessoas. E de início eu me relacionei com ele pelo enigma que ele era. E aos poucos eu fui também me dando conta da leveza dele também em contraste com o meu peso, entendeu. Um peso, nossa. Eu acho que se a gente pudesse fazer um desenho de mim naquela época, tinha uma nuvenzinha preta em cima da minha cabeça, chovendo e trovejando o tempo inteiro. Eu era aquela pessoa que trazia uma nuvenzinha negra, embora as pessoas não me vissem assim. As pessoas não me viam assim. E – Mas você se sentia assim?
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A – Eu sentia, eu me sentia no meio da nuvem, eu me sentia no meio dessa nuvem. Quando eu comecei a namorar o Luís, foi um período em que eu me senti muito mais leve, que eu aproveitei muito a leveza do Luís e aproveitei muito a leveza da Vanessa, aquilo me fez muito bem, eu aprendi demais com a leveza deles. E aí eu inventei de colocar o Fernando nessa relação, de apresentar o Fernando para a Vanessa e aí acabou com a graça todinha, a minha nuvenzinha e a nuvenzinha do Fernando acabaram com a festa da gente. A Vanessa começou a se relacionar com o Fernando, na época eu e o Luís apostávamos que a leveza da Vanessa venceria e o que venceu foi a melancolia do Fernando, e aí não deu certo. E – Mas eles ficaram juntos? A - Eles ficaram juntos, e a gente brigou e se separou e aí foi mais um peso terrível na minha vida essa separação. Depois eu conheci o Rafael, na época que eu conheci o Rafael eu não aprendi nada com ele, porque eu fugia dele como o diabo foge da cruz (risos). Eu morria de vergonha do jeito solto dele, mas o legal é assim, como é que eu ia me prendendo às pessoas soltas, que eram o meu oposto. Mas de alguma maneira essas pessoas chamavam a minha atenção, mas eu precisava disso pra mim. De início, eu não aprendi nada com ele, mais tarde eu fui me dar conta, depois de muitos problemas que a gente teve, que eu continuei a ter com as ida e vindas de Fernando e Vanessa, que eu estava dando valor a amizade errada, eu estava dando valor as coisas pesadas, ao invés de dar valor as coisas leves, alegres e a amizades verdadeiras e que me faziam bem. Isso eu aprendi com o Rafael. E foi muito engraçado que eu demorei muitos anos para aprender e foi em um telefonema que me deu esse click, um telefonema, só. Ele me deu um telefonema, e naquele dia me deu um click tão grande “Meu deus do céu, porque eu não aproveito as amizades sinceras e corro atrás das amizades que me fazem mal?” Porque aí a Vanessa já tinha passado a me fazer mal também porque ela estava sob a influência da nuvem de melancolia do Fernando. Aí o que me influenciou muito foi a minha relação com o Lucas e a Maria. Com o Lucas e a Maria eu continuava com os triângulos, tinha alguém no meio das relações para me proteger, um no meio do outro. Eu colocava a Maria entre eu e o Lucas e o Lucas entre eu e a Maria, para que a gente não se aproximasse demais, para não invadir demais o meu mundo e eles dois eu colocava contra o resto do mundo inteiro. Eles eram os meus Dobermans, como as pessoas diziam, que eu andava com dois Dobermans, um de cada lado, que latiam,e era verdade (risos), e era verdade mesmo. Aquilo me protegia das relações. O Lucas foi importantíssimo na minha vida, nossa mãe do céu! Foi a primeira vez que eu, foi a primeira pessoa que eu falei que eu tinha pânico, na época eu não sabia o nome do negócio, mas era o que eu tinha, e tinha vivido com aquilo anos e anos e anos sem saber. E ele me ajudou demais, demais. Ele recebeu isso de um jeito muito legal, todo o meu problema de pânico, todo o meu problema de vergonha excessiva, ele me ajudou a trabalhar. E a Maria me ensinou demais a não ser dramática, sabe. A gente morria de rir porque ela dizia que a gente era uma novela mexicana, só que quando ela dizia isso, ela já brincava com a dramaticidade dela e já brincava com a minha. Ela dizia que a gente era uma novela mexicana e que a gente era muito dramática e ela se chamava de Guadalupe e eu
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era... não me lembro.. Era Socorro e Guadalupe, uma coisa assim (risos), uns nomes mexicanos sabe. E toda a vez que eu era dramática ela dizia “Você é a Guadalupe” e brincava com aquilo e eu fui percebendo o quanto eu continuava pesada e fui começando a aprender a rir de mim mesma. Demorei a aprender a rir de mim mesma (risos) e consegui, consegui rir de mim mesma com a Maria. Ela é muito engraçada e é impossível não rir com ela. E ela faz de um jeito que a maior tragédia do seu planeta, ela faz você rir da tragédia. No meio dessa época de Lucas e Maria, entra a pessoa que mudou a minha vida, o Márcio, essa pessoa mudou a minha vida completamente, não dá nem para explicar. Ele mudou tudo, tudo , tudo (risos). Foi uma terapia que nossa, eu estava em uma época péssima, eu entrava e saia de depressão, em um grau assim horroroso. E eu estava na pior fase de depressão possível, dos meus amigos ficarem preocupados, da Maria que brinca com tudo, virar para o Luís e falar que estava extremamente preocupada comigo. Estava muito sério o negócio, o transtorno do pânico foi nas nuvens e o negócio ficou sério demais, e ele me ajudou muito, muito, muito. Ele resolveu mesmo, o cara arrebentou a boca do balão. Depois disso, eu não falei da Flávia, que foi um encontro legal, do Thiago, que foi um encontro muito importante, o Thiago foi uma mãezona para mim. Ele não gosta que eu fale isso, mas é isso (risos). E – O Thiago foi uma mãe! (risos) A – Foi uma mãezona (risos) Aí eu vim para São Paulo e em São Paulo parece que foi colocar em prática tudo o que eu tinha aprendido. Foi bem interessante. Quando eu entrei para um curso na XX eu já entrei com uma outra cabeça, né, eu já entrei com... eu entrei sem vergonha, claro que nunca totalmente, mas nossa sem comparação, eu já entrei bem mais extrovertida. E foi mesmo colocar em prática tudo o que eu aprendi, bem mais leve sabe. E – Até então você tinha dúvidas de como você era? A – Tinha... tinha dúvidas. Depois do curso da XX, quando eu mudei de cidade e vim para São Paulo, depois das relações da XX, eu tive mais certeza das coisas que eu tinha aprendido, parece que se consolidou tudo o que eu tinha aprendido. A minha amizade com você foi muito importante nesse aspecto, muito muito muito. Porque eu tinha a impressão de que aqui eu ia conseguir essa leveza, mas eu não ia conseguir profundidade, e aí eu comecei a entender que pode haver profundidade com leveza, de que as coisas podem coexistir. Porque para mim era assim, ou você afunda e afunda na merda, entendeu, e aí tem que ir lá no fundo do desespero para poder ser profundo e sofrer e... E – E o profundo é uma qualidade que você admira... você gosta em você... A – É, mas para mim ser profundo tinha que mergulhar na merda. E a sua amizade me fez muito bem nesse aspecto de saber que podia ser profundo e podia ser divertido, entendeu? Não precisa ser infeliz. Então eu podia estar leve, em São Paulo eu podia ter amigos leves, eu podia ter leveza com você e podia ter profundidade com você. E isso foi muito legal.
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Uma outra coisa que eu descobri recentemente tem a ver com a história da maternidade, da dificuldade que eu tenho de confiar nas mulheres e eu fui percebendo que eu fui vencendo o medo de confiar nas pessoas mais com os homens do que com as mulheres. Eu fui confiando muito no masculino eu fui confiando muito pouco no feminino. Eu confio demais em autonomia, independência, descer a porrada (risos) e muito pouco em cuidado, em interdependência, essas coisas que são consideradas pela nossa sociedade como feminino. E essa amizade também me serviu pra isso, pra caramba, porque eu vi que o que é considerado feminino também tem poder, e que eu posso confiar em uma pessoa que tem uma energia feminina e que essa pessoa vai ser poderosa na sua energia feminina, não preciso sair dando porrada em ninguém e nem desrespeitando ninguém, nem ser competitiva, nada disso, você pode ser cuidada de um outro jeito, de um jeito feminino. Isso é bom porque está me abrindo uma possibilidade de maternidade. E o que vai rolar e o que não vai é uma possibilidade de pelo menos admirar isso. Saber que é possível, porque eu relacionava muito os aspectos femininos com fraqueza, não as mulheres como fraqueza, mas os aspectos femininos como fraqueza. Eu relacionava desse jeito “os aspectos femininos são fraqueza, os aspectos masculinos são força”. Eu não tinha consciência de que eu estava fazendo esta relação, mas eu estava. Eu baseava a minha força toda em briga, em competição, em briga, em falar alto e ser machona (risos). E eu vi que a força não precisa ser assim, é só um jeito de ser forte, mas tem outro jeito de ser forte. E – Você foi falando bastante no quanto as pessoas te mudaram, te transformaram ao longo da sua vida e você disse que quando você veio para São Paulo, foi um momento em que você passou a acreditar mais naquilo tudo que você havia aprendido e que realmente aquilo fazia parte de você. E hoje, você tem mais essa sensação de que tudo o que você aprendeu faz parte de você? A – Tenho, porque eu coloquei na prática, em um grupo diferente, entendeu? E – Por mais que você estivesse aberta para esses amigos, eram poucos amigos, somente um grupo de amigos? A – Cada amizade que eu fiz era muito dramática, cada um desses amigos, eles foram tolhidos em uma situação de drama e de profundidade, de novela mexicana, como diria a minha amiga Maria. E foi um de cada vez. E para eu formar um grupo eu tive que apresentar todos eles, então eu sou o ponto de encontro dessas pessoas todas. Aqui em São Paulo foi diferente, aqui eu entrei em um grupo. Eu fiz parte de um grupo, não fui eu que formei o grupo, o grupo estava lá e eu fiz parte de um grupo, então eu vi que é possível. E – Foi um contexto muito novo na sua vida. A – Foi um contexto novo. E – Mudar de cidade, entrar para um curso e conhecer pessoas novas...
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A – E fazer parte de um grupo grande. Porque toda vez que eu... na verdade eu nunca fiz parte de um grupo grande, eu conhecia as pessoas isoladamente e as juntava em um grupo, mas me sair bem em um contexto de grupo eu não sabia ainda, não sabia ainda se eu podia. Eu nunca tinha conseguido isso. E – E aí você teve que contar para as pessoas de São Paulo quem é você, né. A – É. Pouco, não contei para todo mundo muito não (risos), mas aos poucos eu fui me abrindo. Mas o mais surpreendente para mim foi a habilidade social de fazer parte de um grupo. Isso é que eu ainda não tinha certeza se eu conseguiria, e aí eu vi que eu consegui, que não era difícil, e hoje em dia eu tiro de letra isso e tiro de letra também saber até que ponto eu me mostro ou não. Acho que eu estou mais para me mostrar pra pouco do que qualquer outra coisa. Eu poderia até mostrar mais. Eu sou lenta nesse mostrar. Mas está bom, acho que está de bom tamanho. E – Você acredita em destino? A – Não. Não acredito em destino. Acredito que exista uma estrutura invisível por trás do mundo e não um destino. E – Deus? A – Deus. Eu acredito em Deus e acredito que ele seja uma estrutura por trás de tudo que a gente não entende. E – Não chega a ser um Deus que guia? A – Não. E – No sentido de você ter que andar por tal caminho, está predestinado... A – Não. Acho que talvez se eu posso dizer que a gente está predestinado a alguma coisa é aprender. Acho que isso sim. Acho que a gente vai aprendendo cada vez mais e eu vejo isso na minha vida. Eu sinto isso na minha vida, então cada experiência que eu tenho eu aprendi alguma coisa, somei alguma coisa. E acho que talvez, a gente esteja predestinado a isso. Eu acho que a gente pode ter momentos de congelamento, em que você fica sem aprender nada, mas eu não acho que a gente desaprende coisas, acho que a gente só aprende, entendeu? Aprende, congela um pouquinho no tempo, depois aprende mais. E – E é um aprendizado que transforma? A – É um aprendizado que transforma. E – Ana, como você tem traçado os seus objetivos e de que forma você os tem cumprido. Tem sido fácil? Você traça uma meta? De que forma você os tem alcançado?
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A – Os objetivos que eu dou mais atenção são objetivos bastante subjetivos. Eu estou sempre lutando com aspectos subjetivos meus. Então “Ah, eu preciso mudar a minha timidez”, aí eu vou chamo um grupo todo, faço o jogo da transformação, falo com as pessoas. Eu invisto em mudar um aspecto da minha personalidade. São esses que eu dou mais atenção, mais do que os aspectos materiais. E toda vez que eu elejo um negócio desse, eu sei que eu vou conseguir mudar. Eu elejo “Ah, eu preciso mudar, ta na hora, eu preciso mudar a minha timidez” E – Ana, como você sabe que você mudou? O aspecto é subjetivo, mas como você percebe que você mudou? A – Ah, foi um exemplo esta história de São Paulo, essa história da timidez. Eu tinha acabado de fazer um jogo da transformação a respeito de vergonha, e eu vim para São Paulo e eu tive que colocar na prática, como é que seria estar em um grupo e não ser uma pessoa envergonhada, entendeu? E – E aí você realizou na prática, foi palpável, né. A – Foi palpável, um objetivo que dava para ser. E foi... é mais do que a prática, é engraçado, eu sou uma pessoa mesmo que tem uma vivência pra lá de subjetiva de tudo. O que me diz que eu consegui não é nem um grupo de amigos existir e eu ser aceita nele, por eles, mas a angústia que estava em mim sumiu. Isso é que é o mais importante. A angústia que eu tinha de olhar para os outros, de estar diante dos outros, a angústia da vergonha de estar ali, isso sumiu, isso que é o mais importante. Então assim “ah, está trabalhado”, “era isso que tinha que ser”, mais do que qualquer outra coisa. Então eu dou mais atenção a isso. Agora as coisas mais palpáveis, objetivos: “eu vou mudar para São Paulo” isso é mais fácil “vou mudar para São Paulo”, eu me mudei, “vou mudar de apartamento”, eu me mudei, “vou arrumar o apartamento inteiro”, eu arrumei. Isso é muito simples, né. E ao mesmo tempo é muito complicado pela questão da ansiedade. Não é que eu não faça o que eu tenho dificuldade de fazer, as coisas materiais, até tenho facilidade de fazer, mas eu tenho um ritmo que me desgasta profundamente. Enquanto um negócio que eu cismei de fazer não ficar pronto eu fico em um ritmo desgastante. Esse é o meu próximo aspecto subjetivo a ser mudado (risos). Está na lista negra (risos). E – Você não acha que quando você tem um aspecto subjetivo você testa ele na prática e ele passa a ser objetivo? A – Sim, sempre na prática, mas eu dou atenção ao sentimento, isso é que é o mais importante, entendeu? Então eu tenho um projeto de montar um consultório, ok eu tenho um projeto de ganhar dinheiro com os clientes, ta, eu tenho um projeto de emagrecer um pouco mais, tudo bem, eu tenho um projeto de comer de um jeito mais saudável, um projeto de quem sabe ser mãe, ok projetos, mas eu acho que isso tudo é muito simples, o difícil é lidar com os sentimentos envolvidos nos projetos, isso é que é complicado. Então assim, lidar com o consultório, de montar o consultório, tem o aspecto da minha ansiedade, de ser mãe tem um aspecto de aprender a ser cuidada, esses é que são os verdadeiros desafios.
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E – Então esse sentimento, principalmente de ansiedade que você está tendo na sua vida hoje poderia ser então um fator que intervém nas suas tomadas de decisões? A – Ah sim. E – Diretamente, em você conseguir conquistar uma coisa ou não. A – (silencio) Pois é, isso é que eu estou dizendo, pra mim a conquista material ela é sempre secundária a esse aspecto subjetivo, entendeu? Eu estou mais preocupada, e aí tem a ver conm a minha crença a respeito do que é o universo. Eu acho que aqui é uma escola aonde a gente aprende coisas, e o que a gente leva da vida é esse aprendizado. Então, quando eu chegar do outro lado dessa vida, o que eu vou levar é ter aprendido a controlar a minha timidez, o que eu vou levar é ter aprendido a ser mais leve e menos pesada, não é o consultório, os meus clientes e nem o dinheiro. Então eu não estou muito preocupada com o consultório, nem o cliente e nem o dinheiro, nem o corpo magro. E - Conquistando essas coisas: vencer a timidez a sua ansiedade e tudo o mais, você faz isso para chegar em algum lugar? Tem um fim, algum lugar? A – Não, não, eu acho que você conquista essas coisas para curtir essas coisas, durante. Só que você leva elas como bagagem. Depois que você conquistou você vai curtir elas para sempre. Então uma vez que eu tenha baixado a minha ansiedade, meu medo de lidar com as pessoas, que hoje em dia eu não tenho mais vergonha de ser quem eu sou e estar diante do outro. Isso aí é uma conquista que eu acho que eu vou levar para as vidas, não é mais para essa. Então eu posso curtir de agora, e isso é uma coisa que eu curto mesmo. Quando eu chego em alguém e eu não sinto mais aquela angústia, aquela vergonha, era uma vergonha que eu sentia. Com qualquer pessoa que eu não sinto isso, isso eu curto demais, eu curto o tempo inteiro. Toda a vez que eu lembro disso e entro em contato com alguém e eu dou de cara com a ausência desse negócio que me massacrava, nossa como eu curto! Eu digo: “Ah que maravilha, que conquista!” Isso é que é curtição, mais do que qualquer outra coisa. Mais do que estar no apartamento de São Paulo, mais do que ter o consultório lá montado. Essa é a grande curtição, esse é o bem que eu levo para as vidas. Aí é que está, isso aí eu não tenho mais que duelar. E – Você se sente com autonomia para fazer o que deseja? A – Eu acho que eu aceito que a vida é autonomia, é para se fazer o que deseja. Sinto. Não é que seja fácil, mas é o desafio da gente, né, acho que é isso. E – Qual é o desafio? A – Conseguir realizar os seus objetivos. E – E você acha que você tem autonomia para isso, para realizar os seus objetivos?
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A – Eu acho que eu posso explicar isso assim, em uma metáfora: A vida se como se fosse um rio, e tem lugares desse rio em que a correnteza é forte e tem lugares nesse rio em que a correnteza é fraca, e lugares desse rio que são bem paradinhos. Então você tem que ter sabedoria para ver aonde é que você está. Tem hora que a vida te empurra, a correnteza está forte, está cheio de pedras na frente e o máximo que você pode fazer... você tem autonomia, mas pouca autonomia. Você tem autonomia de desviar de uma pedra aqui, fazer micromovimentos, mas ainda é autonomia. Tem horas em que a correnteza está fraca, aí você tem autonomia e a vida esta te ajudando a ir, você vai e vira a direção, você manda, dá as regras, joga as cartas, é uma beleza. Tem outras horas em que a vida está paradona, a água está parada e se você ficar ali você vai ficar ali, congelada ali, até que um dia você decida a nadar. Nada acontece, aquele marasmo: ou você nada ou você não sai do lugar. Então a vida é assim, tem vários momentos diferentes, tem horas que você tem mais escolhas, tem horas que você tem menos escolhas e tem horas que você tem escolha total e você tem que sabe que hora que você está, e agir de acordo com. Mas sempre tem algum grau de autonomia, sempre, você sempre tem escolha, nem que seja micro escolha, e ela faz toda a diferença. Você fazer um micromovimento para a direita para desviar de uma pedra, vale a sua cabeça quebrada ou não, entendeu? Então não é para se diminuir o valor de um micromovimento, ele é importantíssimo. Às vezes muito mais importante do que você nadar quilômetros. E – Houve momentos em que você se sentiu com as rédeas da vida nas suas mãos? A – Então. Está respondido! Houve momentos em que eu me senti com muito pouca rédea, e eu dou muita importância para isso, aliás eu dou mais importância para isso do que nos momentos em que eu estou com a rédea total. É como eu falei, desviar um milímetro de uma pedra, significa muito e você nadar quilômetros pode não significar nada. Então várias vezes eu senti as rédeas nas minhas mãos e eu dou muito mais importância aos momentos em que eu senti pouca rédea na minha mão (risos). Por isso que eu falei que às vezes eu acho que um micromovimento na hora em que a correnteza está forte é crucial, entendeu. Pouca escolha é muito mais importante do que quando você tem muita escolha. E – Você poderia dar um exemplo? A – (silêncio) Um exemplo de água parada é, por exemplo, a história de não ter rotina: ninguém te obriga a acordar às seis da manhã, pegar o trem cheio pra ir para o trabalho, ganhar um salário mínimo e voltar, não tem nenhuma correnteza restringindo os movimentos, você pode nadar para o lado que você quiser, e é difícil pra caramba, você tem toda a autonomia do mundo e é muito difícil você decidir para que lado você vai. E – É um momento em que você está parada. Esse seria um exemplo de um rio parado. A – É, um momento em que você está parada. Um exemplo de pouca autonomia é, por exemplo, quando o Luís ficou doente. Quando o rio está te apressando. O Luís ficou
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doente: que autonomia eu tenho com a doença do Luís? Nenhuma. Ficou doente, eu tive que ir para o hospital, passar dias no hospital com ele. Fiquei assustada, com medo de perdê-lo, fiquei assustada de ser alguma coisa mais séria. Eu não tenho o que fazer com aquilo. Eu não posso fazer nenhuma mágica, e dizer “Ah, eu não quero que isso aconteça”, mas eu tenho outras escolhas, pequenas escolhas: de estar ali, de que maneira eu vou estar ali, o quanto eu vou pedir ajuda das pessoas ou não, o quanto que eu vou recorrer às pessoas ou não, como eu vou trata-lo naquele momento, como eu vou tratar de mim. Então essas pequenas escolhas fazem toda a diferença. Nesse momento, eu me senti com pouca rédea, mas muito mais importante do que em outros momentos que você tinha mais rédea. Eram microescolhas importantíssimas. E – Houve algum momento em que você não sentiu nada, não se sentiu com as rédeas de forma alguma? A – A sim, quando eu era adolescente eu não me sentia com rédea nenhuma, eu me sentia uma folha levada, eu achava que eu era vítima de um universo cruel (risos). Presa em um pomar de vegetais, que era o que eu achava que as pessoas eram um bando de vegetais sem pensamento, que tinham dificuldade de pensar (risos). Era isso, eu só sentia isso. Me sentia totalmente vítima das circunstâncias, e aí aquela nuvem na minha cabeça, né. Vítima da minha família, vítima da maluquisse dos meus pais, vítima da burrice das pessoas eu era só vítima, eu me sentia totalmente sem autonomia, pra nada (risos). E – Você conseguiu dar uma virada impressionante, né. Você considera que foi de repente como um click ou foi aos poucos? A – Foram vários clicks (risos) E – Teve algum momento mais importante? A – Teve. O Márcio é o momento mais importante. E – O seu terapeuta? A – É. O meu terapeuta. O meu terapeuta é o momento mais importante. Eu não posso dizer que os outros foram menos importantes, porque se eu não tivesse sido preparada para esse momento eu não teria aproveitado. Eu teria ido para essa terapia crua. Eu cheguei para essa terapia já bem trabalhada, ele mesmo dizia: “Não é qualquer um que agüenta fazer terapia comigo” (risos). E ele tinha razão. Então eu fui muito preparada e não posso dizer que os outros momentos foram menos importantes, mas é que esse foi muito crucial, muito, me mudou demais. Acho que a base disso foi o meu casamento, acho que o Luís me deu uma segurança e uma auto-estima que, nossa! É impossível de avaliar o grau de auto-estima que esse homem me deu. Eu não tinha nenhuma (risos). Então foi uma base importantíssima. E todos os amigos que eu citei que vieram antes do Márcio também foram bases importantíssimas. Eu pude aproveitar. Mas ainda eu considero que o ‘turning pointing’ da minha vida é a minha terapia com o Márcio. Ele
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me mudou. Talvez ele tenha acelerado um negócio que eu demoraria uns vinte anos pra fazer. E ele fez em dois (risos). E – E atualmente você se sente com as rédeas da vida nas suas mãos? A – Atualmente é a metáfora do rio. É exatamente o que eu falei: as vidas as vezes puxa, as vezes ela te empurra e as vezes ela não faz nada. E – E essa variação é rápida, no mesmo dia, na mesma semana. Atualmente alguma fase do rio está mais presente? Ele está mais agitado, mais parado... A – Isso acontece em diversos níveis. O rio da vida pode estar acelerado no meu casamento, parado na minha carreira, né. Então isso tem diversos níveis. Pode estar acontecendo em diversos níveis. E – Depende de que contexto que você está falando, né? A - Depende do contexto que eu estou falando, depende do que eu estou abordando. E – Se eu pensar na minha vida como um todo, hoje eu estou naquele rio que ajuda. Aquele que empurra você na direção que você quer, sabe. Tem correnteza, mas não aquela correnteza destrutiva, aquela correnteza que te leva, que você nada e já nada com ajuda já. Ninguém está te ajudando (risos). Você escolhe para onde vai e ninguém está te ajudando (risos). E – (risos) Então é uma fase boa? A – É uma fase excelente, nossa é uma fase excelente! Isso já na vida como um todo né. Na vida como um todo. Nossa, do jeito que eu já peguei correnteza brava essa daí é uma alegria. Como eu já peguei água parada também. Água parada, totalmente péssima. Então como eu já peguei das duas de um jeito muito bravo, nossa de agora é água que ajuda! (risos) E – Se você pudesse o que você faria diferente na sua vida? A – Isso vai entrar na pesquisa (risos). O que eu responder agora. A – Teria uma coisa que eu faria diferente na minha vida sim (silencio) E - Você não gostaria de falar é isso? A – É. E – Segredo. A – É. É uma coisa que eu faria diferente na minha vida.
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E – Uma situação? A – Uma situação, uma situação que eu faria diferente. É engraçado, porque por um lado é uma dívida que eu tenho com alguém, e por outro, eu aprendi tanto errando, que é estranho dizer que eu faria diferente, é esquisito isso. É meio paradoxal... eu não posso apagar, é porque é uma experiência doída, então isso me deixa em dívida na verdade, não com uma pessoa, mas com duas pessoas. Então é uma experiência dolorida, que eu desejaria não ter vivido, mas que pensando bem, eu não posso apagar, porque eu não posso apagar o aprendizado que eu tive com ela. Foi muito importante para mim. E – Então Nessa própria experiência difícil que você teve, você conseguiu tirar um aprendizado. A – Ah, com certeza. E - É mesmo uma característica sua né tirar experiência de tudo quanto é lugar, de pessoas. A – Até porque como eu disse pra mim é o significado da vida. Esse é o significado da vida. É assim que a gente evolui. Então é o que eu faço né. E – O que fará de você o que você será no futuro? A – (silencio) Como eu estava falando eu acho que o que a gente adquire de aprendizado fica. Então o que vai fazer de mim o que eu serei no futuro é a somatória desses aprendizados. E segundo a minha crença eu tenho todo o tempo do universo, eu sou infinita. Então o que eu serei no futuro é sempre um processo de crescimento. E nunca vou deixar de ser isso.
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ENTREVISTA III MARIA 28 anos, Instrutora de Yoga E – Quem é a Maria: Como você se define? M – Que pergunta legal! (risos) Eu nunca pensei em me definir. Ah, eu acho que eu sou uma pessoa que gosta muito de aprender, eu estou sempre procurando me aprofundar no conhecimento que eu já tenho e aprender coisas novas e... acho que é isso, acho que basicamente eu sou uma pessoa muito curiosa, que gosta muito de aprender, e que gosta mais ainda de ensinar o que aprendeu. Eu vejo como um dos maiores aprendizados da vida é ensinar. Quanto mais você ensina mais você sabe. É até uma lei da natureza, se você passa o seu conhecimento para frente, esse conhecimento aumenta, se potencializa. E isso é uma coisa que eu sempre percebi. Eu sempre tive desde pequena vontade de ensinar às pessoas aquilo que eu aprendo. É basicamente isso. E – E que tipo de coisa você ensina? M – Faz seis anos que eu trabalho com Yoga. Quando eu aprendi Yoga eu aprendi uma disciplina que eu gostaria de ensinar para as pessoas, porque Yoga é muito mais do que respiratório, é um conjunto de ferramentas para um aprimoramento pessoal, e isso eu achei fantástico. Você poder usar o seu corpo e a sua mente ao mesmo tempo para se tornar uma pessoa mais feliz, mais realizada. Não uma pessoa melhor. Quando eu cheguei no XX Yoga (linha específica do Yoga) Quando eu cheguei no XX Yoga, agora eu não estou mais, eles me falaram: você vai se tornar uma pessoa melhor, você vai se tornar uma pessoa quase paranormal, e eu já não encaro deste jeito, eu encaro que você vai se tornar uma pessoa mais feliz e consequentemente você vai fazer as pessoas a sua volta mais felizes, porque uma pessoa melhor lembra a teoria dos ‘arianos’, né, uma raça superior. E foi o que eu senti dentro do XX Yoga durante esses seis anos de convivência. Eles realmente se acham superiores aos outros. E alguns por se acharem superiores se permitem fazer coisas que não são legais. “Em nome do Yoga eu vou prejudicar tal pessoa”. Então a filosofia que eu aprendi e que eu absorvi é ensinar esse acervo de técnicas que são milenares, para que as pessoas possam usar a favor delas, possam usar para elas. E – Assim que eu te perguntei como você se define você falou direto dessa filosofia, do Yoga e de ensinar o Yoga. A gente poderia dizer que é uma questão central na sua vida e que te define? M – Ser professora do Yoga pra mim me define, me define muito. Porque eu vivo isso 24 horas por dia. Eu vivo o Yoga, eu acordo, eu pratico, depois eu leio algum livro sobre
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Yoga, eu vou dar uma aula, eu procuro um work shop que tenha a ver com isso. E o próprio fato de eu estar fazendo letras também tem a ver com Yoga. E – Agora você está fazendo letras? M - Estou. Entrei na faculdade de letras, na XXX, porque eu quero em aprimorar no Francês e no Inglês, mas ao mesmo tempo eu quero fazer mestrado em Sânscrito, que é uma língua morta que tem uns textos clássicos. E que todo o mundo fala: “Ah, tem o tal texto que diz isso, tem o tal texto que diz aquilo, segundo tal tradutor”, e eu acho que o mais exato seria aprender a falar essa língua, aprender a ler, e você decidir o que aquele texto quer dizer, né. E principalmente ensinar isso para os meus alunos, porque a maioria dos professores de Yoga que eu conheço, eles aprendem a ler em Sânscrito, lêem os textos, passam a visão deles e dizem para os alunos: “Você agora vai ensinar a minha visão”. E – Fica enviesado né. M – É. Eles não chegam para os alunos e dizem: “Você tem que aprender Sânscrito, você tem que saber ler, você mesmo”. Se o cara não quiser ler e quiser ler só as traduções, a escolha é dele. Agora dar uma noção de Sânscrito para o seu aluno eu acho uma obrigação sua. Você está dando a ferramenta para ele procurar. Eu não gosto dessas pessoas que falam assim: “Você tem que ter a minha visão”, como são a maioria dos mestres e professores do Yoga. E – Uma característica sua é dar o instrumento para as pessoas e não algo pronto: “É assim e me siga”. M – Eu nem quero que me sigam, não quero ser seguida (risos) E – (risos) E como você se construiu desse jeito? Se você está em um meio em que a grande maioria é desta forma que você está me descrevendo, em que as pessoas acreditam que estão falando verdades, como você conseguiu se diferenciar e pensar diferente nesse meio, como você acha que isso surgiu em você? M – Acho que foi por causa da minha curiosidade. Quando chegaram para mim e me deram uma lista de livros e falaram assim “Olha essa é a bibliografia autorizada e você só pode ler esses livros”. E – Nossa disseram para você que você só podia ler aquilo? M – É. Daí eu terminei de ler isso em 6 meses. Eram 50 livros, foi muito rápido. Eu fiquei ‘boiando’ né, e comecei a ler outras coisas, não tem como. Bibliografia atrás de bibliografia, um livro atrás do outro. Você já estudou psicologia, é assim mesmo, você termina de ler um livro, vai na bibliografia, você vê vários livros que te interessam e assim vai. Daí eu vi a necessidade de estudar Sânscrito, e eu não podia, porque cada vez que eu falava que eu queria ler o texto em original eles falavam: “Você não vai entender” você vai confundir a cabeça “você vai ficar maluca lendo isso aí, imagina,
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você tem que ler a tradução que o seu mestre deu e acabou”. Mas o meu mestre só leu um tipo de texto clássico, os outros, que são vários, ele não traduziu “isso não faz parte da nossa escola, não é importante estudar”, como assim? E – Parece que a própria proibição te instigou... M – A ir atrás. E quando eu decidi que eu não estava pronta para ter os meus alunos foi porque eu não conseguia ler essas coisas, não conseguia estudar. Daí quando eu saí da XX Yoga, há uns três meses, esse conhecimento ficou guardado em mim, ficou meio que reprimido, eu não podia nem falar para as pessoas que eu estava estudando essas coisas, porque senão eu seria execrada no meio. Primeiro eles iam dizer que eu não estava entendendo nada, segundo eles diziam que eu era arrogante e terceiro eles diziam que eu estava praticando demais. Isso era uma coisa que eu ouvia sempre: “Você praticou demais, você está em um estado de auto - hipinose”. Agora esse conhecimento está aflorando, e mais uma vez a necessidade de estudar os textos clássicos. Se você não estudar aqueles textos que foram escritos há dois mil, três mil anos atrás, não tem como você nem sequer pensar como era o Yoga original. Eles falam tanto que ensinam o Yoga original, mas se eles não estudam os textos clássicos, que Yoga original é esse? E – É um contra-senso. M – O motivo que eu vi no curso e que me fez sair, é que eles falaram que foi por revelação do mestre. Depois disso eu resolvi sair. E – Como assim? M - Revelação, ele teve uma revelação, iluminação. E – Ah, ele não foi lá atrás pesquisar. M - Não ele não pesquisou! Foi por revelação. Se você lê a bibliografia dele e isso é uma coisa que eu vou fazer os meus alunos fazerem, ler. Para eles julgarem. Pelo o que eu julguei e pelo que eu estudei, nenhum dos livros que o mestre mandou ler comprovam o que ele disse. E – Foi então uma revelação. M – Foi revelação e eu respeito, qualquer um tem o direito de revelar o que quiser, até inventar se quiser. O método dele é bom ele poderia ter inventado, agora, dizer que foi revelação direto de ‘Xiva’ fica um pouco difícil para eu engolir. E – Quem é ‘Xiva’? M – Xiva é o criador do Yoga. Há cinco mil anos atrás segundo relatos históricos e segundo o mestre, ele teve uma revelação através de Xiva (risos). Ficou difícil. Uma pessoa meio racional como eu, conseguir defender esta tese e conseguir assumir isso.
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Pode até ter sido, Mozart escrevia partituras direto, ele nem sequer tocava, ele escrevia direto, pode até ter sido. Mas ele pode ter tido este dom de conseguir unir todas as técnicas do Yoga de maneira eficaz para atingir um estado de consciência superior e essa técnica do Yoga ser moderna, não de Xiva, isso é dele. Só que ele entrou na loucura dele, né, e eu não quero entrar, nem os outros. Porque aí já começa aquela história de que ele é Xiva, começa aquela adoração em cima dele. E – Dizem que ele é Xiva. M – Nos meios mais restritos ele tem a coragem de falar isso. E eu achei aquilo uma loucura coletiva e saí, mas por causa dos livros que eu li. A própria bibliografia dele, que ele recomenda não prova o que ele disse. E – Há contradições lá? M – Não provava. As frases eram interpretações dele. Se você estudasse o autor, as características do autor ao qual ele se referia, ele não diria aquilo daquele jeito. Se eu pego a sua monografia e pego uma frase isolada sua e escrevo uma dissertação em baixo, é a minha opinião em cima da sua frase, não é a opinião do autor. Então não comprova o que você disse, não comprova a minha teoria, entendeu? É só uma tese, ele tem direito em ter a tese dele e até defender a tese dele, agora colocar isso como uma verdade absoluta. E – E esse é um grande incomodo né. M – É. A verdade absoluta. Se eles tivesse sido um universidade de pesquisa. “ah, vamos pesquisar para ver se esse Yoga é antigo mesmo”, não vamos afirmar que ele é antigo, vamos pesquisar, eu teria ficado. Eu defenderia até o Yoga dele, mas não verdades absolutas, não manipulação da mente do aluno que eu não gostei, através de grupos de mentalização, de grupos de viagens que eram feitas e que você fazia muita exaltação da emoção das pessoas, de elas ficarem muito felizes lá dentro, e quando elas estavam no máximo de felicidade você inseria mensagens na cabeça delas. Eram coisas que eu não gostava. Eu ía a essas viagens e voltava cada vez mais incomodada, cada vez mais brava, cada vez mais irritada que os meus alunos voltava com o olho vidrado. “Pô, leva aluno meu para voltar melhor, e volta pior, e briga com a família, briga com a namorada, se afasta do emprego. E – Parece que as pessoas não se davam conta de que não estavam legal, brigando com a família. M – Não, eles achavam que o mundo atacava eles, mas na verdade são eles que atacam o mundo. Tanto atacam o mundo que esse menino me atacou. Um instrutor me atacou falando mal de mim para a dona da academia aonde eu trabalho. Eu nunca ataquei ele. Agora que eu estou falando nesta entrevista as coisas que eles não gostaram, mas é uma coisa pessoal, mas eu nunca cheguei lá e falei olha isso é uma seita, tem problemas, porque eu tenho provas para dizer que é uma seita. Qualquer psicólogo, qualquer pessoa que conheça esse tipo de trabalho, só o meu depoimento já
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prova que é uma seita. E eu nunca fiz isso com eles, porque eu acho que cada um tem o direito de viver a sua vida, se eles querem viver em uma seita e estão felizes assim, o problema é deles. E – Nossa, você foi muito forte em conseguir olhar para tudo isso e sair. É uma característica sua? M – Não era. E – Não era? M – Não era. Eu era uma pessoa muito influenciável, por isso eu entrei lá. Por isso eles fizeram o que fizeram comigo. E – Nossa. E como é que você conseguiu sair? M – (risos) Foram seis anos né. Foram seis anos de decepções. Toda seita decepciona. Vai das pessoas enxergarem ou não. Acontece que comigo digamos que eles foram bem... eles me magoaram muito. Eles fizeram muitas coisas que me chatearam, seguidas. A primeira delas foi quando mandaram embora todos os meus amigos e me proibiram de falar com eles. Não, foi antes. A primeira delas foi quando eu morava na casa de um ex namorado meu que era diretor de uma das unidades, ele teve um chilique e me mandou embora, e todo o mundo me isolou do grupo, porque eu era a ex namorada dele, e porque ele falou mal de mim, e ele tinha mais poder econômico que eu. E – Nossa! M – Obrigatoriamente ele tinha mais valor do que eu, e as pessoas simplesmente me isolaram e me maltrataram e quase acabaram com a minha carreira. E – Foi essa a sua primeira grande decepção. M - Foi a minha primeira grande decepção com eles. E eu descobri que pessoas que eu nem conhecia falavam mal de mim. Pessoas que vinham me abraçar, que me tratavam bem na minha frente e por trás falavam horrores, horrores. Elogiavam a minha atitude na minha frente, e por trás só metiam a boca em mim. E eu comecei a não entender essa falsidade deles, essa neurose. Uma pessoa assim é maluca né, na minha opinião, você abraçar alguém “Ai querida, eu gosto tanto de você, você é tão fofinha”, e por trás proibir você de trabalhar em uma academia, falar que você é uma completa incompetente, quase uma retardada, coisa que eu nunca fui. Todos os coordenadores de academia que eu trabalho me dão carta de recomendação, todos, desde 2001, em que eu comecei a trabalhar com cartas de recomendação dos coordenadores. Então, eu comecei a perder essa ingenuidade que eu tinha, essa crença que eu tinha na bondade deles. Eles fazem você acreditar que eles são quase anjos. E – Bem intencionados...
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M – Que eles só pensam no seu bem. A segunda decepção foi que eles me fizeram comprar uma carta de credenciamento de dez mil reais. E eu comprei com o meu dinheiro esse contrato para abrir uma escola. Eu fiquei oito meses procurando essa escola e todo o mundo falando para o mestre que eu não tinha condições de abrir uma escola, que eu não podia abrir uma escola. Depois de oito meses que eu acabei com todas as minhas finanças, que eu não trabalhava em lugar nenhum, porque eu não estava aliada a nenhuma unidade, e eu não tinha autorização para trabalhar em nenhuma academia, em nenhum lugar Eu tive que desistir de trabalhar na XXXXX (instituição que ensina Francês), que eu gostava, há dois anos atrás, tudo para abrir uma escola. Depois que eu estava no lixo, eles vieram me dizer que eu não podia mais abrir a minha escola, porque que eu não tinha competência para abrir. Mas me fizeram gastar dez mil reais. E não me devolveram. E – Nossa, depois de você gastar te fizeram desistir... M – Depois de gastar o dinheiro, depois de fazer um estágio, depois de eu abrir mão de tudo, depois de ficar procurando casa, eles me fizeram desistir de abrir uma escola. Simplesmente não era o interesse deles. Depois eu descobri que foi o meu pai que os ameaçou, né. Falou “se a minha filha gastar cinqüenta mil reais para um negócio que não vai dar certo, vocês vão ter problemas”. Eu ia vender o meu carro pra pagar. Aí, do nada decidiram que eu não ia abrir mais a escola, e eu fiquei bem chateada que eles não me devolveram o meu dinheiro. E – Não devolveram? M – Não me devolveram em dinheiro, e eu não tinha como entrar com um processo contra eles, e eles me devolveram em produtos para eu revender e ganhar o dinheiro através dos produtos. Daí eu consegui vender uns cinco, seis mil já. Recuperei uma boa parte da grana. Mas eu fiquei bem brava porque eu queria o dinheiro. E foram mais dois anos depois dessa falcatrua deles. Depois disso, eu fiquei dois anos na unidade XXX, que eram pessoa muito legais, muito queridas, mas quando eu cheguei lá o Lucas me chamou e falou horrores pra mim. Falou que o que ele sabia de mim era que eu era traiçoeira, que eu ia deixar ele na mão, que eu ia fazer isso, ia fazer aquilo, que ele ia me acolher, mas eu cheguei lá eu não podia nem dar aula dentro da unidade, eu tinha que ficar só limpando a unidade. Eles me trataram como lixo durante seis meses, como se eu fosse o pior dos seres, sendo que eu nunca fiz nada pra eles. Daí eles fizeram tudo isso comigo, eu fiquei dois anos lá sofrendo, eu sofri muito no primeiro ano, eles fizeram muita intriga comigo. Consegui a muito custo conquistar a amizade de todo o mundo. Daí quando eu conquistei a amizade de todo o mundo, eu comecei a acordar para as coisas. Comecei a ganhar dinheiro e comecei a perceber que eu poderia ganhar mais fora da XX Yoga do que dentro. Comecei a perceber que não só eu, mas como o Lucas e toda aquela equipe era explorada. Sabe, coisas que você não tem idéia. Uma vez a gente teve que tirar plástico de quase doze mil revistas do mestre, porque ele queria que tirassem o plástico. E a gente ao invés de trabalhar, de procurar aula para dar, de descansar, de estudar, tinha que ficar lá tirando plástico dele. Eu carregava quinhentas revistas no meu carro e levava não sei pra onde, porque o mestre
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pediu, tudo o que o mestre pedia a gente tinha que fazer, e aquilo começou a me irritar. Eu tinha que fazer tradução gratuita para ele. Eu fazia tradução gratuita pra ele e ele me dizia que estava ruim, dá vontade de matar. Ele não tinha gostado da tradução, porque tinha outra menina que estava morando na França e que falava muito menos francês do que eu, ela estava morando lá há apenas um ano e ela era queridinha dele, então ela tinha que fazer a tradução. Então porque mandou eu fazer? Eu não fazia questão nenhuma de traduzir aquilo. E – Se você pudesse dar um nome, você disse que era influenciável, que nome você daria para o que você sentiu? M – Acho que foi revolta. Acho que o nome foi revolta. Sabe quando você pega um cachorrinho bem bonzinho e você bate, bate, bate nele e ele vira um pit bull terrível? É mais ou menos isso. E eu não fiquei tão pit bull quanto os outros. As pessoas que saíram atacando o mestre, o mestre fez muito menos para eles do que ele fez pra mim. E as pessoas que quiserem aprender comigo não vão sofrer o que eu sofri. É como se você quisesse dar para os seus filhos aquilo que você não teve. E – Isso tudo que você passou você transformou em aprendizado e pretende ensinar, é essa a sensação que está me dando. M – É, eu vou ensinar a não ser assim, né. Eu acho que isso tem que ser ensinado porque normalmente as pessoas que se interessam por Yoga, as pessoas que se interessam por auto- conhecimento são pessoas mais frágeis, são pessoas sensíveis. São pessoas que estão buscando uma maneira nova de ver a vida, e essas pessoas tem tendência a acreditar. Então, você tem que ensinar a verificar não a acreditar, senão elas vão acreditar. Porque se eu tivesse verificado desde o começo, nos primeiros três meses, eu teria saído, e feito outra coisa da minha vida. Eu fiquei seis anos lá. É muito tempo, é muito tempo, aconteceram muitas coisas lá, eles me magoaram muito. Hoje eu não falo mais disso chateada, chorando nem nada, porque eu dei a volta por cima mesmo. Eu sou muito feliz hoje. Eu dou as minhas aulas, eu tenho um namorado maravilhoso que me ajuda muito. Acho que quem mais me ajudou a sair da XX Yoga foi o Flávio. E – Nossa, foi um marco muito importante na sua vida, né. M – Quando eu comecei a ficar com ele, e eu falei para ele não se formar, porque eu fiquei com medo dele passar pelo que eu estava passando, e ele saiu do Yoga e começou a ver de fora as coisas que faziam comigo, ele me alertava e ia dizendo, ele fez com que a minha auto-estima não ficasse tão baixa, porque uma das táticas que as pessoas tem dentro dessas seitas é conseguir fazer com que você faça qualquer coisa por eles, é destruir a sua auto-estima. Eles falam todos os dias que você está gorda, que você está feia, que a sua aula é ruim, que os alunos não gostam de você, mas que eles são seus amigos e eles vão te ajudar, vão deixar você lá embaixo, pra depois...
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E – Colocam você lá embaixo e te dão a mão “vem cá que agora eu vou te ajudar”. Que medo! M – É uma coisa muito bem feita Tati, eles pegam médicos, pegam psicólogos, pegam estudantes, pegam pessoas de alto nível intelectual. Não pegam qualquer um, mas pessoas frágeis. E – Você sente que são pessoas frágeis? M – São. Todas são frágeis. E – De forma geral, ou tem algum tipo de fragilidade? M – Cada uma tem uma fragilidade normalmente com a família, algum conflito familiar, ou com os pais, ou com a família. Algum tipo de carência muito forte. Eles aproveitam esse momento da vida da pessoa para fisgá-la. Aí a pessoa se sente melhor, claro. Dois anos depois que acontece uma tragédia na sua vida você sempre vai se sentir melhor, não vai? A não ser que você tenha um transtorno psicológico sério. Todo o mundo supera de um jeito ou de outro. Depois eles falam: “Tá vendo! Se não fosse a gente você não teria superado” Você ia superar de qualquer jeito. E - Se você não quiser falar na entrevista não precisa, mas só para constar aqui, aconteceu uma coisa muito séria com a sua família, né. M – Aconteceu, e foi no ano que eu entrei lá. Aconteceu um trauma muito grande pra mim e pra minha família. Dois traumas pra mim e um para a minha família (risos). Então... isso me fragilizou, acabou com a minha auto-estima, acabou com a minha crença de ser alguém na vida. Eu tinha 22 anos, quando você tem 22 anos, dá a impressão que o mundo acaba, que tudo acabou na sua vida. Depois você fica mais velha e vê que as coisas não acabam tão fácil assim. E eles me fizeram acreditar que foram eles quem me salvaram, que me tiraram daquilo, mas eu sairia de qualquer maneira. E – Foi um momento que você estava frágil com o que havia acontecido com você, e eles ‘foram os seus salvadores’. M – Das pessoas que eu conheci, a vida delas, era a mesma coisa. Todos tem uma história traumática e aí a XX Yoga fisgou. Cada uma delas tem alguma coisa. Já me falaram muitas vezes que eu deveria fazer uma denúncia, mas eu acho que não vale a pena. Acho que vale mais a pena eu formar o maior número de pessoas com um Yoga bom, sério, com uma visão clara das coisas, porque são essas pessoas, que com o trabalho delas, vão denunciar o que está acontecendo dentro da XX Yoga. Porque quando você faz um trabalho bom, um trabalho sério, obrigatoriamente denuncia o trabalho ruim do outro.
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E – Maria, e fora dessa questão com a Yoga, tem mais alguma coisa que te define? Você falou bastante coisa junto com a Yoga, características suas e tal, o que mais te define? M – Literatura. Eu gosto muito de literatura. Literatura e poesia, principalmente. É por isso que eu estou na faculdade de letras também. Eu tenho um livro de poesias que era para eu ter publicado há muito tempo, e eu não publiquei ainda, então eu acho que entrando no meio de letras fica mais fácil para eu achar o caminho para publicação. Fazer concursos, essas coisas. Tradução de livros, eu tenho muita vontade de fazer. Essa semana mesmo eu vou começar a procurar um emprego em uma tradutora para trabalhar duas, três vezes por semana. E – Você está me dizendo que o que te define está muito voltado para profissão, com o que você vai realizar. M – Está voltado para as minhas realizações, para os meus projetos. Pelo menos o que me define dentro do mundo. Você é aquilo que você faz, né. E – E o que fez de você o que você é hoje? M – Acho que foi a educação que a minha família me deu, a minha família principalmente, me deu todos os pilares que eu precisava para superar qualquer coisa, e as pessoas que passaram pela a minha vida. Tem uma coisa que uma amiga minha falava “você sempre tem um professor” e é verdade. Durante muito tempo eu tive muitos professores, de tudo. Hoje em dia eu não sinto mais necessidade de ter um professor, eu tenho necessidade de ser uma professora. Mas eu acho que desde que eu me conhecia por gente eu tinha um professor que eu admirava. Por exemplo, o meu professor de português quando eu estava na terceira série, daí passou para uma professora de história, daí eu passei para uma professora de não sei o que, daí a professora de dança do ventre. Sempre eu tinha um professor na minha vida. E – Ah, que interessante, professor mesmo... M – É. Eu sempre tive um professor que eu admirava, que eu queria ser igual. Por isso que eu falo que o magistério é um caminho muito forte para mim. Principalmente por eu ter admirado tantos professores. A minha mãe é professora, e eu tenho um carinho imenso por ela, porque foi ela que me ensinou a ler quando eu tinha quatro anos e meio. E – Ela é professora de Português? M – Português. Quando eu era pequenininha tinha um quadro negro em que eu ensinava todo o mundo a ler. A minha mãe teve que aprender a ler comigo depois de me ensinar (risos) E – Você foi precoce.
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M - Eu era precoce em leitura. Em leitura, em matemática eu até que sou atrasada. Tanto que o meu pai, quando eu tinha nove anos, me deu um livro de lógica para eu aprender matemática. Meu pai era louco. E – Nossa! M – Em vez de dar um livro normal para uma criança me deu um livro de lógica. E eu me lembro que eu pulei a parte de matemática e li lógica da linguagem, semântica. Com dez, doze anos eu já entendia essas coisas. E eu fiquei com isso na minha cabeça até hoje. Eu estruturo um texto muito rápido, eu escrevo rápido, eu leio rápido. Mas matemática eu não consigo calcular nada. Matemática é impossível, só calculadora. E – Então a sua mãe te influenciou nessa direção... M – E quando eu era pequena eu ia para a escola com ela. Ela não tinha com quem me deixar. Eu era muito capeta e quando eu ficava em casa, eu destruía sempre alguma coisa enquanto ela não voltava, subia no telhado. E ela me levava. Quando eu tinha uns cinco anos ela me levava na sala da primeira série, e eu via as aulas da primeira série com ela, porque eu ficava em uma carteira lá atrás, esperando ela acabar a aula porque não tinha creche para me deixar. Então eu já tinha aquela imagem de professora. Todos os alunos gostavam da minha mãe, e eu ficava toda orgulhosa porque era a minha mãe e eu era a filha dela. E eu queria ensinar todo o mundo e a minha mãe vivia me deixando em um canto da sala porque eu ficava enchendo o saco, corrigindo as crianças. Eu era a mais nova e levava uns tabefes das crianças quando eu ia corrigir (risos). Eu queria ser professora também. Eu mandava na sala junto com a minha mãe (risos). Eram umas crianças com sete, oito anos e eu com cinco lá toda empinada, mandando ficarem quietos. E é isso, sempre na minha vida teve um professor. Um professor mesmo. E – Foi marcante né a influência da sua mãe como professora e no que você é hoje, né. M – Como ela era professora de português, né, a minha paixão por literatura começou com ela, quando eu era muito pequena. Quando eu tinha cinco anos, o meu pai me deu uma máquina de escrever, porque eu queria ser escritora e uma escritora precisava de uma máquina de escrever e de óculos. Eu usava um óculos de plástico. Tem uma foto minha com um óculos deste tamanho (demonstra através de gesto o tamanho do óculos) E – E o que mais, tem mais alguma coisa que você queira acrescentar? M – Os meus amigos. Eu tive poucos amigos, mas todos foram pessoas importantes. E os meus namorados. As pessoas que se relacionaram comigo, elas sempre me ensinaram muitas coisas. E – E o seu pai?
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M - Meu pai. Com o meu pai eu tenho um relacionamento muito bonito. O que o meu pai me ensinou de mais bonito foi o amor incondicional, porque ele é capaz de amar as pessoas do jeito que elas são. Eu nunca vi ele tentar mudar alguém. A minha irmã mais velha sempre fala que o meu pai manipula os fatos para que as pessoas sejam do jeito que ele quer, e eu não acho que isso é verdade, eu acho ela nunca se impôs, sabe, ela deixa ele decidir por ela e depois reclama porque ele decidiu, mas ela não foi lá e disse o que queria, eu sempre disse o que eu queria desde pequena, e ele nunca fez o que eu não quisesse. É só você querer, agora se você é uma pessoa apática, vão mandar na sua vida, se você não tomar a sua decisão. E eu acho que ele sempre respeitou e admirou isso em mim. As outras filhas, elas faziam tudo para agradar ele, e ele é uma pessoa muito carismática, não tem como não gostar dele, e ao mesmo tempo você quer ser admirada por ele. E – Vocês são em quantas irmãs? M – São quatro irmãs. E todas disputavam a atenção dele. E eu sempre disputei a atenção do meu pai também, mas eu nunca deixei de ser o que eu era. Eu nunca me importei com o fato de que ele ia gostar menos de mim, se eu fosse o que ele não quisesse que eu fosse. E eu não sei porque, isso fez com que ele gostasse mais de mim e isso deixou as minhas irmãs com um ciúmes doentil durante muito tempo, achando que eu me aproveitava do amor do meu pai para fazer o que eu quisesse. Até um mês atrás a minha irmã achava que eu tinha um vida de princesa. Ela não sabia da metade das dificuldades que eu estava passando. Ela mora em uma casa em um condomínio fechado de quase quatrocentos mil reais, que o meu pai construiu para ela, e eu moro em um apartamento que é metade desta sala (risos), e eu pago o meu aluguel. Sabe, e ela não sabia disso, ela achava que eu tinha uma vida de princesa, que o meu pai me sustentava, que o meu pai pagava tudo para mim. E o meu pai falava que não, e ela não acreditava. A minha mãe aprontou uma também que parece criança, pegou o cartão de crédito, e usava o cartão de crédito que o meu pai deu para mim para emergências para eu colocar gasolina, comprar comida, coisas assim, e colocava gastos dela no meu cartão, então saia que eu estava gastando quatro mil por mês, e é por isso que as minhas irmãs achavam que eu tinha vida de princesa. Daí eu comecei a ter mania de guardar as notinhas, e entregava para o meu pai, daí o meu pai achou que estava acontecendo alguma coisa, e aí a minha mãe se denunciou. E – Abriu o jogo. M – Eu sabia que ela estava fazendo isso, mas eu falei “vou levar em panos quentes porque isso vai dar rolo”, entendeu? “Ela quer gastar, deixa ela gastar”, mas eu não sabia que a minha irmã... porque eu não sabia que a minha mãe além de fazer isso estava dizendo que era eu. Parece coisa de criança de quinze anos, eu fiquei muito brava e dei uma bronca nela. Jogou todas as minhas irmãs contra mim. Eu chegava no natal e no ano novo em XXX (cidade onde mora a família de Maria) e ninguém queira falar comigo, a Júlia virava a cara para mim, não falavam comigo. Eles fizeram uma reunião de família e ela ‘escrachou’ comigo de um jeito. Daí eu sai à mesa, fui para o quarto e falei: “não vou mais falar com você”, daí ela começou a gritar com o meu pai. “Você já sabe você vai gritar com o meu pai, ele tem problema no coração eu vou sair”
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e aí eu falei: “Júlia, vamos para o quarto, vamos conversar nós duas”, eu não acredito que aquela criatura tem trinta e cinco anos. “Não, porque eu vou falar na frente do pai e da mãe, você tem medo da sua família” e virou todo o mundo contra mim, virou um complô. E aí eu fui conversando, conversando eu lembrei de uma regra que tem no Yoga que é: peça desculpas, mesmo que você não tenha razão, que é para acabar com o conflito, e aí você acha uma solução depois. Foi o que eu fiz, eu pedi desculpas para ela, e aos poucos eu fui solucionando a coisa. Eu passei as férias com ela, e fui solucionando do jeito que eu podia. E – Vocês se resolveram? M – Ah, ela está me tratando melhor, mas eu estou bem chateada com ela, porque ela foi muito injusta comigo. Ela me julgou sem me conhecer. Ela me julgou e me condenou sem antes me conhecer. E - Você chegou a falar isso para ela? M – Não adianta. Ela é terrível. Ela faz um drama. Eu não choro, mas ela fala que eu sou catedrática em escrachar as pessoas com frieza. Não é frieza, é que quando alguém me agride a minha defesa é sempre abaixar a voz, falar argumentos lógicos e não entrar na histeria de ninguém. O máximo que eu faço é levantar e ir embora. Eu não gosto de grito, eu acho que grito não resolve nada. Se grito e briga resolvessem, a humanidade não teria mais problemas. E as vezes, eu acho que isso é pior do que as pessoas que gritam, e ficam muito mais magoados com você, porque você não enfrentou né. E – Maria, você acredita em destino? M – Não. E – Não? M – Destino quem faz é a gente. São as nossas escolhas, Se você acreditar em destino você será uma marionete dos eventos, né. E – Como você tem traçado os seus objetivos e de que forma você os tem cumprido? Tem sido fácil? Quais os fatores que intervém nas suas tomadas de decisão? M – Antes não era fácil conseguir cumprir os meus objetivos, eu era muito desorganizada, começava várias coisas ao mesmo tempo. Agora, eu tenho, por exemplo, o meu primeiro objetivo, é formar pessoas. Até o meio do ano que vem eu quero ter pessoas formadas. Como é que eu faço? Eu pego a minha agenda e eu escrevo pequenas coisas que eu tenho que fazer todos os dias para conseguir o que eu quero. Então, hoje eu tenho que entregar as cartinhas da XX (nome de uma instituição de Yoga) lá, amanhã eu tenho que descobrir um curso de Sânscrito, hoje eu tenho que ligar para uma médica para ver o curso de anatomia, e aí vai, eu vou organizando, organizando, para depois ver sala para alugar por hora aula, daí quando eu vou ver já está organizado. É a mesma coisa, outro objetivo que eu tenho na minha profissão:
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trabalhar em empresas e dar palestras, eu não vou passar a minha vida inteira dando aulas em academias. Então eu vou ligar hoje para a Renata e marcar uma reunião com ela. São pequenas coisas que você vai fazendo para chegar aonde você quer. Ir na internet e encomendar alguns livros que eu preciso ler. Coisas assim, todos os dias se você fizer uma coisinha para chegar no seu objetivo, quando você vê você já está chegando lá. São atitudes cotidianas para você chegar, não tem nada grandioso no construir coisas, é um tijolo depois do outro. E agenda, agenda é a minha salvação. E – E você considera que tem funcionado? Você considera que você tem conseguido atingir as coisas que você quer? M – Cada vez mais. Tem coisas que não dá certo mesmo, né. Que você planeja, mas quando você vê... E – Que tipos de fatores intervém? M – Por exemplo, eu queria dar aula em mais uma academia. Fui na XXX e entreguei o meu currículo, fui aceita e marquei aula. Daí eu telefonei para o Flávio (coordenador de onde Maria já trabalha) para avisar, e ele me proibiu e me deu mais um horário dentro da XX (instituição a qual Maria trabalha) e aumentou a minha hora aula. Só que assim, eles tiraram todos os meus horários, me deram um horário só para dar aula, queriam diminuir a minha hora aula porque eu não estava mais no XX Yoga eu ia ganhar menos, porque a dona da academia falou, e eu fiquei quieta, porque eu não tinha para onde ir. Outra academia me convida, me dando mais horas aulas e mais dinheiro e eu falei Flávio, você tem uma escolha, ou você me segura aqui ou eu vou para lá, não tem problema. Daí ele tentou me segurar, graças a deus. Por exemplo, quase não deu certo, mas não deu certo eu ir para outra academia, eu consegui outro horário em outra academia, mas não deu certo. As outras pessoas influenciam também. E isso não adianta você... E – Você acha então que as pessoas podem interferir nos seus objetivos. M – As pessoas, as coisas. Eu estou em uma outra academia que eu estou ganhando por aluno, e é um objetivo meu estar em uma academia para ganhar por aluno, porque aí eu tenho a oportunidade de ganhar mais. Está dando errado porque eu só estou com dois alunos! Eu estou ganhando pouco (risos). Por enquanto está dando errado. Não é só você que interfere né. Eu acho que quando eu tiver pessoas que eu formei, trabalhando no mesmo método que eu, aos poucos eu vou formando uma equipe de instrutores e fica mais fácil conseguir neutralizar a ação das pessoas em cima daquilo que eu quero fazer, porque é uma equipe, todo mundo tem mais ou menos os mesmos objetivos. Você vai entrar em uma empresa você já tem, por exemplo, quatro instrutores que querem entrar nesta empresa também. Fica mais fácil você não ter problemas. Indicar as pessoas, é outra história, né. Mas eu acho que por enquanto o que mais me atrapalha mesmo são as pessoas que esbarram no meu caminho, mas estão esbarrando cada vez menos. E – Você se sente com autonomia para fazer o que deseja?
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M – Hoje eu sinto, total. Eu só faço o que eu quero, eu só faço o que eu quero mesmo. E – Você diz: “hoje eu sinto”, em que época você não sentiu? M – Quando eu estava dentro do XX Yoga. E – Você não se sentia com autonomia. M – Não. Eu na podia nem pensar no que eu queria. Eles queriam até influenciar se eu ia namorar o Flávio E – Que é e fora do XX Yoga. M – Que é de fora. Eles deram até um nome para ele: ‘Sousarim’ E – O que é isso? M – ‘Sousarim’ é quem não está na roda da evolução do Yoga. É bravo o negócio (risos) E – Muito (risos) M – O mais grave, o que mais me intriga não é o que eles falam, é eu ter acreditado nisso, e tantas pessoas acreditarem. Isso é uma coisa assim, que eu não vou focar a minha formação nisso, porque eu acho que a gente tem que focar em estudo, mas eu vou dar uma aula sobre isso. E – Você quer passar a sua experiência... M – E ler os livros, ler as coisas absurdas que eles falam lá dentro para mostrar para as pessoas que, às vezes, se você não tiver controle emocional muito em ordem, você pode cair em cada coisa. Hoje eu lembro de todos os livros deles e meu deus! Você sabe qual é a condição para você ser instrutor? Obediência irrestrita ao seu mestre. E – Aí você fica sem autonomia nenhuma né! M – Obediência irrestrita ao mestre, que ótimo isso! Imagina a técnica de canalização de energia através do sexo. E quem vai conferir se você está fazendo isso certo? Complicado né. E – Nossa... M – Através dessas condições eles começam a manipular as pessoas para participar de ... eu graças a deus não participei, mas eles. E – Mas o que eles faziam?
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M – Participar de suruba. E – Orgia mesmo. M – Orgia. Imagina a cabeça de uma pessoa que participa disso. E – Normalmente são pessoas tão jovens, né. M – Gente jovem, emocionalmente abalada, curiosos, com os hormônios a mil. E – Houve momentos em que você se sentiu com as rédeas da sua vida nas suas mãos? Quais momentos? M – Hoje eu sinto as rédeas da vida nas minhas mãos, mais do que nunca, eu nunca me senti assim, e quando eu fui para a França sozinha. Eu sempre tive as rédeas da vida nas minhas mãos, sempre. Apesar de uns conflitozinhos com o meu pai aqui, outros ali eu sempre mandei na minha vida. Até quando eu estava dentro do XX Yoga eu mandava na minha vida, porque eu queria fazer aquilo, me submeter a eles. Porque todo o mundo falava que eu era instável, que eu ia para lá e para cá, que eu não parava e que isso era um defeito, e eu teria que ser estável e eu fiquei estável, no pior lugar do mundo, no XX Yoga. Mas eu acho que foi muito bom pra mim, lá eu aprendi muita coisa. Aprendi muitas coisas boas sobre o Yoga, muitas técnicas eficazes, e aprendi principalmente a lidar com as pessoas. Porque se você consegue lidar com pessoas como eles, você lida com qualquer pessoa. Eu aprendi a lidar com qualquer pessoa, eu não tenho mais problema de relacionamento quase nenhum, com ninguém. E – Então, deixa eu te falar a minha compreensão, você falou que você se sente hoje com as rédeas da sua vida nas suas mãos, quando você viajou sozinha para a França você também sentiu isso, e de forma geral você sente que você escolhe e manda na sua vida, mesmo quando você se submeteu a uma situação difícil. Então esses dois momentos que você citou seriam momentos em que você se sentiu com mais autonomia, com mais rédea... M – É, com mais autonomia. Eu posso fazer o que eu quiser, a vida é minha mesmo, o futuro é meu. É uma sensação muito boa, porque me dá uma tranqüilidade. Eu acho que eu passei por tanta coisa, o que eu chamo de uma faca emocional dentro do XX Yoga, que hoje em dia é difícil alguma coisa me abalar. E – Você daria um nome para esse sentimento da época que você estava lá? Uma palavra? M – Medo. E – Medo. M – Eu acho que eu fiquei seis anos vivendo dentro do medo.
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E – E hoje? M – Segurança, autonomia. Eu sei o que eu sei, eu sei o que eu não sei, e eu não tenho medo deles, nem deles e nem de ninguém. Eu não tenho mais medo de ser rejeitada, medo de rejeição era uma coisa muito forte, e hoje eu não tenho mais isso de jeito nenhum. E – Hoje você não tem mais medo de você mesmo? M – (risos) Não, nem um pouco. E – Houve momentos na sua vida em que você não se sentiu com as rédeas da vida nas suas mãos? M – Sim, quando eu estava dentro do XX Yoga principalmente. E – Algum outro momento? M – Quando eu quis fazer letras na França e o meu pai me obrigou a fazer direito lá. E eu fiz direito para não voltar para casa. Eu queria morar sozinha. E – Na verdade você queira fazer letras, mas os seu pai não deixou e você foi fazer direito, que é a profissão dele. M – E que ele deixava. E - Foi uma forma de você estar lá, entendi. M – Só que isso me desestruturou bastante. E – Não fez bem para você? M – Nem um pouco. Porque o meu sonho era ser escritora, desde pequenininha. Então eu abri mão do meu sonho. E – Curioso, porque você falou assim, que se sentiu com as rédeas da sua vida quando você foi para a França. M – No primeiro ano. E – Assim que você foi para lá. M - Daí quando eu cheguei lá o meu pai falou: “agora você volta para casa” e eu: “não vou voltar né”. O meu pai era muito protetor, não me deixava fazer nada. Era difícil eu ir ao cinema, eu tinha vinte e poucos anos. E – Ah, e aí foi maravilhoso, você foi para a França e ficou um ano...
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M – Fazendo tudo o que eu queria: museu... E – Aí teve uma hora em que você teve que escolher a faculdade que ele queria, e que possibilitava você estar lá por mais um tempo, é isso? M – E ter uma liberdade, uma movimentação para eu fazer o que eu queria. Morar na minha casa. E – Valeu a pena? M – Não. E – Não valeu? M – Não. Eu sofri demais. Eu entrei em um meio de pessoas que não gostavam de estrangeiro, a faculdade que tinha mais neo-nazista era aquela, só tinha eu, mais um marroquino e uma argelina em uma sala de umas trezentas pessoas. E – E fazendo uma coisa que você não queria, né. M – Não queria. E eu fiquei nessa três anos. eu fui fazendo um ano, mais um e mais um e quando eu vi eu estava em depressão, com quarenta e nove quilos, com cabelo caindo, com início de anorexia. Foi uma cosia que eu me... eu tirei a característica que eu tinha, aquela pessoa que queria escrever, que queria aprender línguas, que queria ler literatura, que era uma outra coisa o que eu queria. Eu deveria ter voltado para o Brasil, enfrentado o meu pai e feito o que eu queria. E – Mas você tinha quantos anos? M - Eu tinha dezenove. E – Você era bem nova né M – Eu era bem nova, tinha dezoito para dezenove. E – E hoje você está com... M – Vinte e oito. E – Faz dez anos. M – Faz dez anos. hoje quando eu vejo as coisas para trás e falo “eu deveria ter dito não” e foi isso que iniciou a minha fragilidade, eu era uma pessoa muito forte. Foi isso que iniciou eu ficar frágil. Eu comecei a ficar frágil por causa dessa escolha, de não querer voltar para casa, de querer morar sozinha. Se eu tivesse feito uma faculdade de letras, mais três, quatro anos eu teria arranjado um emprego e morado sozinha,
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curtindo. Ou voltado pra França depois, e feito um mestrado. Mas aquela coisa que a gente tem na cabeça quando tem dezenove anos de achar que o mundo vai acabar se não fizer as coisas daquele jeito. E eu fiz o pior. E – Tá, então nessa época você não estava com as rédeas né. M – Não, quem estava com as rédeas da minha vida era o meu pai. Eu me senti bem mal mesmo. Ele se arrependeu muito depois quando ele viu o estado que eu fiquei quando foram me buscar lá na França. Viram que eu fui atacada por neo-nazista. Mas também eu já estava triste, eu já estava com a minha energia muito baixa, com a minha auto-estima lá no pé e eu não procurei me adaptar dentro daquele lugar, eu não procurei amigos, eu não procurei coisas boas, pra mim tudo era ruim. E – Sugou as suas energias na época né. M – Sugou as minha forças. Porque se eu tivesse feito o que eu gostava não ia ter o que me parasse, porque é o que você gosta, e quando você gosta, você faz bem feito. Agora, por mais que eu estudasse aquelas matérias e eram matérias difíceis de direito. Na França a faculdade era muito difícil. Por mais que eu estudasse não entrava porque eu não gostava. E – Não conectava com nada. M – Não conectava com nada, você só espera a hora da aula acabar. É tudo o que você espera.e aquela coisa do professor olhar para você e “aluno estrangeiro não passa comigo” e na passava mesmo, eles reprovavam. E – Teve um momento em que eu perguntei o que você tinha em você que você tinha conseguido sair do XX Yoga. Eu disse que você devia ser uma pessoa muito forte e que teve muita força e você disse que não, que na verdade “eu era uma pessoa muito influenciável”. Eu estou enxergando três momentos na sua vida. Um momento de idealização de será a professora, “eu vou ensinar”, que teve as influências da sua mãe, aquela filha que dizia o que queria para o pai. Aí eu vejo um segundo momento que o seu pai tomou decisões por você, quando você foi para a França e se sentiu frágil. M – Daí eu acho que eu perdi a minha força lá E – Daí você foi para o XX Yoga. M – E perdi mais ainda. E – Mas parece que hoje você está retomando aquela Maria lá de trás. M – É, isso. Aquela que manda nela mesma. Eu retomei isso. E – Você está indo fazer letras, o que era planejado.
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M – É, eu voltei ao que eu queria. E eu acho que eu voltei agora com uma maturidade diferente. Então eu acho que foi na hora, entendeu. Está na hora de eu fazer as coisas desse jeito, porque eu estou com outra cabeça, outra maturidade, eu vou aproveitar mais o meu curso. Eu vou ter mais tranqüilidade emocional para fazer tudo o que eu quiser. Então eu acho que foi positivo né, porque eu tenho experiência e eu ganhei uma profissão maravilhosa que é ser professora de Yoga, que eu vou levar para o resto da minha vida. E – Você acha que essa força estava aí o tempo todo? M – Estava, estava. Eu sempre tive essa força, só que eu não acreditava mais em mim. Aconteceram muitas coisas que fizeram com que eu achasse que eu era a pior pessoa do mundo. Aconteceram muitas coisas que acabaram com a minha auto-estima. Coisas fortes mesmo sabe que acaba com a auto-estima de uma menina, de uma mulher. E aos poucos, eu acho que eu recuperei essa auto-estima toda graças ao Flávio, ao carinho que ele me deu, o amor que ele me deu, a confiança que ele depositou em mim. Porque quando ele me conheceu eu estava tão perdida, sabe, pra mim eu era tão nada, e ele enxergou coisas boas em mim. Estavam lá ele enxergou aquela força que estava lá, enxergou a Maria que eu tinha esquecido. E quando ele começou a enxergar, eu comecei a enxergar também, entendeu, a força veio de volta, eu voltei a ser eu mesma. Eu acho que só a família te falando, parece que você não escuta né, as pessoas tem um bloqueio para escutar família a delas (risos) nunca escutam (risos) E – (risos). Acho que principalmente no seu caso, né, por exemplo o seu pai... M – Eu escutei ele e me dei mal (risos) E – Dá para entender. M – O meu pai se sentiu culpado durante muito tempo com as coisas que aconteceram comigo na França e ele sabe, ele tem consciência que tudo o que aconteceu comigo foi conseqüência daquela decisão. E – E como ele vê hoje a sua profissão? É uma família de advogados né. M – Hoje ele tem muito orgulho de mim, hoje ele gosta de mim, tem orgulho. E – Então vamos lá, eu tenho mais uma pergunta: o que fará de você o que você será no futuro? M – Eu acho que eu vou continuar sendo professora de Yoga como principal profissão né. Quero ser escritora e tradutora. Eu vou ser isso. E – E o que vai fazer você se tornar tudo isso no futuro? M – O meu trabalho, as coisas que eu faço. E eu acho que eu pretendo antes de tudo ser feliz. Ter um bom relacionamento com a minha família, quero ainda estar com o
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Flávio, com o meu namorado, acho que tudo isso, ter uma vida pessoal realizada. Porque não adianta nada eu ser tudo isso, professora do Yoga, ter vários alunos que eu formei, ter uma empresa e eu não ser feliz e eu não ter uma vida pessoal realizada. E – Ser feliz é ter uma vida pessoal realizada? M – É ter realização nas coisas que eu quero, não só profissionais, mas pessoal também. Você ter o seu relacionamento com seu marido, com o seu namorado muito bom, ser profissionalmente realizada, feliz, e estar perto da família e dos amigos, pra mim isso é perfeito né. Eu até faço mais questão de estar perto da família, dos amigos, ter o meu namorado do meu lado do que ser extremamente reconhecida na minha profissão. Acho que o meio termo é legal. E principalmente ter tempo para si mesmo, porque as pessoas ultimamente estão esquecendo delas mesmas para realizar grandes projetos, e o primeiro grande projeto tem que ser você mesmo, acho que é isso.