13 DE SETEMBRO DE 2017 ANO XXVII Nº285 GRATUITO PERIÓDICO DIRETORES CARLOS ALMEIDA, INÊS DUARTE E PAULO SÉRGIO SANTOS
Edição Especial · Reportagens São temas vários, uns mais específicos que outros, que habitam o quotidiano de quem cruza Coimbra, seja estudante ou local. Nas páginas seguintes escreve-se e fala-se sobre minorias, cultura, História, regulamentos e percursos de vida. Carlos Almeida
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UMA REFORMA DE APENAS ALGUMAS LETRAS Alunos e professores ainda em adaptação do novo modelo de ensino. Representantes dos estudantes levam propostas a Conselho Pedagógico - TEXTO E FOTOGRAFIAS POR LUÍS ALMEIDA -
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loquência, filosofia, história e poesia. É o que representam as estátuas que guardam a fachada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC). É este o edifício central em que funcionam as 13 licenciaturas que a faculdade tem para oferecer. No ano letivo de 2015/2016, a FLUC sofreu uma Reforma da Oferta Educativa. Esta já criou, e continua a criar, bastante desacordo dentro da comunidade estudantil e do corpo docente. Mas afinal, o que trouxe a reforma e o que há de tão controverso nela? Dificuldades sentidas na pré-reforma Segundo o diretor da FLUC, José Pedro Paiva, existia um desfasamento entre a oferta formativa e os avanços do conhecimento na área das ciências sociais e humanas. Refere que os docentes estavam sobrecarregados devido ao número excessivo de cadeiras que a faculdade oferecia. “Havia unidades curriculares repetidas”, afirma a subdiretora responsável pelo pelouro da informação e comunicação, Ana Teresa Peixinho. A subdiretora responsável pelo pelouro dos assuntos académicos, Teresa Tavares, acrescenta que “certas cadeiras eram tão específicas que já não havia docentes para as lecionar, pois tinham-se reformado”. O diretor aponta para um mau funcionamento a nível administrativo que estava a “prejudicar a vida da faculdade”. Da criação à entrada em vigor Há quatro anos, José Pedro Paiva decidiu que um dos pontos do seu programa eleitoral era repensar a oferta formativa da FLUC. “Um grupo restrito de
professores analisou a oferta da faculdade e criou um documento com as linhas orientadoras da futura reforma”, explica o diretor. Esse documento foi analisado no Conselho Científico e criou-se outro grupo que fez uma análise mais profunda e apresentou propostas concretas, esclarece José Pedro Paiva. O atual modelo é baseado no das “grandes universidades inglesas e americanas”, elucida Teresa Tavares. Está adaptado para cursos de quatro anos e não de três. “É quase inevitável os alunos terem de fazer mestrado”, acrescenta. Explica que isto se deve ao facto de as licenciaturas em letras durarem cinco anos há umas décadas. Desde então esse tempo foi bastante reduzido. Reforça ainda que os cursos funcionariam melhor se não existisse Bolonha. Há alunos, como a representante dos estudantes da licenciatura em Geografia, Ângela Dias, a quem preocupa que o corte das cadeiras possa ter excluído “disciplinas estruturantes”. No entanto, o diretor da faculdade garante que nenhum conhecimento crucial ao funcionamento dos cursos foi eliminado. A subdiretora responsável pelo pelouro dos assuntos académicos acredita que, desde que as competências de investigação, de expressão escrita e oral e de pensamento crítico sejam desenvolvidas na licenciatura, os estudantes serão sempre capazes de desempenhar as tarefas e funções que lhes são propostas. Esclarece ainda que nenhum curso consegue passar todo o conhecimento de uma área, pois todos têm um limite de tempo. O sentimento geral dos alunos é que a sua opinião não foi considerada durante o processo. “Quando a direção se apercebeu da diminuição de interesse por parte dos alunos, passou a ter mais em conta o seu
parecer”, defende o presidente do Núcleo de Estudantes da FLUC (NEFLUC), Alexandre Silva. O diretor da FLUC explica que a não consideração dos alunos foi por opção, pois iria atrasar o processo. “A faculdade estava num estado crítico e, se se tivesse esperado mais em vez de um ano, a reforma ia demorar dois a ser implementada”, salienta. No entanto, José Pedro Paiva assegura que todo o processo foi apresentado aos estudantes no Conselho Pedagógico à medida que se desenvolvia. “Os alunos deviam ter ficado com o modelo em que começaram o seu percurso”, é a tese defendida por Ângela Dias. Os discentes sentem que assim se podiam ter evitado equívocos para os que passaram pela transição. O diretor da FLUC esclarece que era impossível manter dois sistemas diferentes devido ao fraco funcionamento administrativo. O diretor da licenciatura em Jornalismo e Comunicação, Carlos Camponez, considera a transição dos alunos inscritos no modelo antigo para o novo “um dos desafios mais bem sucedidos”. O que trouxe de novo Hoje, há cerca de 630 cadeiras na FLUC. Antes da reforma existiam perto de 960. “Houve um conjunto de unidades curriculares novas e outro de unidades curriculares extintas”, explica o diretor da faculdade. “Antes da reforma existiam cadeiras opcionais, mas eram opções dentro da área”, recorda. Assim, todos os cursos tinham de criar muitas disciplinas para os alunos optarem. A regra definida, segundo José Pedro Paiva, foi que “qualquer estudante da faculdade possa escolher qualquer unidade curricular”. Só assim se tornou possível a redução das cadeiras.
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A interdisciplinaridade é uma das bases deste novo modelo. Para tal, foram criadas 12 cadeiras de iniciação. Todos os estudantes têm de fazer três delas no seu primeiro semestre. “O objetivo é serem cadeiras propedêuticas de adaptação e preparação dos alunos para o ensino superior”, reitera o diretor. Para reforçar o cruzamento de áreas científicas, introduziu-se o menor e a Outra Concentração Complementar (OCC). Desta forma, todos os estudantes têm de fazer cinco cadeiras de outro domínio que não o seu. Caso as cinco cadeiras sejam do mesmo curso configuram um menor. Se forem de cursos diferentes, mas do mesmo departamento, fica com uma OCC. A representante dos estudantes de Geografia considera que o menor pode ser um bom complemento à formação académica. “Esta reforma vem propor um ensino mais interdisciplinar”, acredita José Pedro Paiva. O ex-representante dos estudantes no Conselho Pedagógico, Daniel Azenha, declara que “ser diferente é uma mais-valia na entrada no mercado de trabalho”. “O princípio basilar desta reforma é a liberdade de escolha dos estudantes”, sublinha o diretor. Cada aluno escolhe quando fazer as cadeiras que estão à sua disposição. Isto representa também um desafio para os professores pois têm de se “adequar à diversidade de estudantes na sala”, acautela a vice-diretora da licenciatura em Estudos Europeus, Dina Sebastião. Os docentes falam também numa responsabilidade que cai sobre os estudantes. “Obriga-se a que o aluno pense não só a curto prazo, mas também a médio e longo”, confirma Ana Teresa Peixinho. O diretor da licenciatura em Geografia, Luciano Lourenço, realça a importância do tutor, que foi mais uma medida introduzida com a reforma. Cada estudante tem o seu e deve recorrer a ele para tirar dúvidas acerca do seu plano de estudos. Problemas que surgiram A reforma já foi alvo de críticas por parte de dis-
centes e docentes. Os problemas de que os estudantes mais se queixam dizem respeito às cadeiras de iniciação. Alexandre Silva considera que são demasiado abrangentes e têm muitos alunos. “Não estão a funcionar como pretendido. No primeiro ano por razões logísticas. Este ano foi melhorado [houve desdobramento de turmas] e no próximo vai ser aumentado ainda mais”, explica José Pedro Paiva. Devido à falta de vagas, há estudantes que se vêem obrigados a ficar inscritos em cadeiras que não querem. A partir do momento em que se está inscrito numa unidade curricular, ou se faz a cadeira ou se paga para mudar, caso não se altere dentro do prazo. O mesmo se passa com os menores e as OCC. Carlos Camponez não crê que isto seja correto pois é normal um estudante fazer escolhas erradas ao longo do percurso. “A escolha das cadeiras pode não ser boa porque os novos alunos não sabem o que estão a escolher”, nota Daniel Azenha. O diretor da FLUC lamenta que os estudantes se interessem cada vez menos sobre o funcionamento do seu curso. Já Luciano Lourenço acrescenta que os tutores “ou não são procurados ou procuram e os estudantes não respondem”. Ângela Dias acrescenta que “os alunos se adaptaram à medida que os problemas surgiram”. Já Ana Teresa Peixinho afirma que os estudantes chegam aos professores com dúvidas acerca de assuntos sobre os quais os docentes não têm que estar informados. “O tutor orienta em questões pedagógicas e não administrativas. Por muita informação que haja, há sempre quem não saiba e não se interesse em saber”, conclui. Projetos do NEFLUC O presidente do NEFLUC adianta que os estudantes que agora fazem parte do Conselho Pedagógico vão fazer duas propostas. Com vista à resolução do problema das aulas com demasiados alunos, vai ser proposto que se baixe as presenças mínimas para 50 por cento. Alexandre Silva acredita que “mais vale
15 alunos interessados do que 30 desatentos”. A outra proposta é devolver aos estudantes a liberdade de escolher entre avaliação periódica ou final. “Já que há liberdade a escolher tudo o resto, também devia haver liberdade para escolher o método de avaliação”, defende o presidente do NEFLUC. Para combater a desinformação dos estudantes, Alexandre Silva clarifica que vai ser criado um ‘e-mail’ para esclarecer questões acerca da reforma. “É mais simples do que ir ao provedor do estudante, que lida com 24 mil alunos”, salienta. Caso os estudantes queiram tirar as suas dúvidas em pessoa, também vai ser estabelecida uma hora de atendimento com o coordenador de pedagogia do NEFLUC no gabinete de apoio ao estudante. Ilações não conclusivas Os docentes mostraram-se reticentes a fazer um balanço. Afirmam que este só pode ser realizado quando decorrer um ciclo completo de reforma, ou seja, no final do próximo ano. O diretor da licenciatura em Jornalismo e Comunicação considera que “a filosofia da reforma é boa, mas há problemas no seu funcionamento”. José Pedro Paiva conclui que “a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra funciona muito melhor, os professores não têm sobrecarga horária, os estudantes estão mais satisfeitos e preparados para enfrentar o mundo contemporâneo”. Até ao fecho desta edição não foi possível obter resposta dos diretores das licenciaturas em Turismo, Territórios e Património, Português, Estudos Clássicos, Estudos Artísticos, Filosofia e Arqueologia nem dos subdiretores Albano Figueiredo e Rui Gama. As diretoras das licenciaturas em História de Arte e Ciências da Informação não se encontravam disponíveis para realizar entrevistas. Não foi possível também confirmar com nenhum aluno que o processo da reforma tenha sido apresentado no Conselho Pedagógico.
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MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS IDENTIDADES: A COMUNIDADE LGBT+ EM COIMBRA
Por entre quatro paredes até à Baixa, a cidade do Mondego impõe-se na divergência da heteronormatividade e abraça a diferença - TEXTO E FOTOGRAFIAS POR ANA FRANCISCA NUNES -
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GBT+… LGBTQ+… LGBTQI+… LGBTQIA+… Quatro acrónimos, uma comunidade. (L)ésbicas, ‘(g)ays’, (b)issexuais, (t)ransgéneros ou (t)transsexuais, ‘(q)ueers’, (i)ntersexo, (a)ssexuais… A lista continua (ou não estaria ali um mais). A sexualidade já não é o típico “ou és gay ou és hetero”. O género deixou de ser o convencional “é menino ou menina?”. Se Camões ainda fosse vivo, talvez reformulasse uma das suas célebres frases para “mudam-se os tempos, mudam-se as identidades”. A sexualidade e o género deixaram de ter espectros para serem planos cartesianos. Em 1986, a homossexualidade foi descriminalizada em Portugal. Todavia, foi preciso entrar no século XXI para que se verificassem mais mudanças legais de fundo: 2003 marca o início da aplicação de leis referentes à discriminação. Em 2007 surge a punição por crimes e discursos de ódio e a doação de sangue por homens homossexuais passa a ser possível, de forma legal, em 2010. Embora estas mudanças sejam vistas, por alguns, como tardias, em termos legais Portugal é percecionado como um dos países mais seguros para indivíduos que fazem parte da comunidade LGBT+. A cidade dos estudantes é conhecida, a nível internacional, pela tradição vincada que arrasta consigo pelos séculos da sua existência. Ao ser algo novo na sociedade, como se vive esta realidade em Coimbra? Da desconstrução à integração O dia era cinzento e camuflava ainda mais o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). Escondidos em frente ao Departamento de
Matemática, ‘grafittis’ preenchem tanto as paredes como o parque de estacionamento. “Eat pussy, it’s vegan” e “não é normal ter medo de andar sozinha na rua” são algumas das frases marcadas de forma permanente em volta do edifício. Desde conferências, a palestras, passando por ‘workshops’ e associações, as paredes interiores são adornadas com cartazes alusivos a movimentos pro-LGBTQIA+ e pro-feministas. Uma das pessoas mais influentes na comunidade LGBT+ em Coimbra é Luciana Moreira Silva. A mesma tem um vasto reportório académico que abrange estudos feministas e ‘queer’ e encontra-se a tirar o doutoramento em Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas, integrado no CES, sendo ainda investigadora júnior na instituição e ativista nos movimentos LGBT+ e feminista. Desde os seus dias enquanto frequentadora do curso de Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), Luciana Moreira Silva viu a revolução da sexualidade e identidade de género na cidade. Luciana recorda a ligeira opressão que se vivia dentro da academia. Na sua memória estão guardadas situações que ainda lhe fazem confusão, tais como as amigas, na altura, acharem um certo rapaz bonito e a própria não sentir qualquer tipo de atração. Há dogmas que subsistem até aos dias de hoje e que surgem no contexto da transgeneridade. A investigadora explica que se se partir do princípio de que a identidade é algo construído e se aceitar que uma pessoa pode não se sentir bem no próprio corpo, “aquilo a que se chama transição pode apenas
tratar-se de começar a referir uma pessoa pelo feminino ou masculino”, explica. Uma das confusões dos membros da sociedade em geral, relativa à comunidade LGBT, é a distinção entre transgeneridade e transexualidade. Género não é sexo? Mas em que medida? Género é o que se sente que se é, sexo é definido pelos genitais. Desta forma, uma pessoa transgénero é alguém que não se identifica com o género que, pelas leis da natureza, lhe foi atribuído à nascença, de acordo com o seu sexo. Assim, um transexual é alguém que pretende fazer a “transição” de um sexo para o outro. Um processo extenso, que envolve burocracias, um seguimento clínico detalhado e muito dinheiro. Desde hormonas, a cirurgias, a psicólogos, este caminho a percorrer é difícil, mas não impossível. Estar no CES é estar num local onde género e sexualidade são dois conceitos que não são julgados. Pela primeira vez em Coimbra, vi um casal lésbico com uma criança. Estavam felizes, a “viver a sua vida”, como se diz em bom português. Avistei também uma ‘butch’ – termo usado nas subculturas lésbica e ‘gay’ para designar uma mulher cisgénero, ou seja, conforma-se com o género associado ao seu sexo, mas apresenta aparência, traços, estilo e comportamentos másculos. Quando questionei onde era a casa de banho, Luciana, além de dar a direção, explicou que eu podia “usar qualquer uma”, pois ali dentro não existem homens e mulheres, existem pessoas. Género? Não, obrigadx. Estive presente numa das reuniões da organização da Marcha da Luta Contra a Homofobia e Transfobia de Coimbra. “O tema deste ano é a autodeterminação de género”, referiu Ana Lúcia Santos, integrante do projeto INTIMATE, da Associação “não te prives – grupo de defesa dos direitos sexuais”, e investigadora júnior do CES. A reunião focou-se em assuntos gerais, como as horas, o manifesto e as festas no “Aqui Base Tango”, o local de eleição de diversão noturna da comunidade LGBT+ na cidade dos estudantes. Na mesa encontrava-se sentado um indivíduo com características físicas masculinas, no sentido tradicional. É normal rotular a mesma pessoa como rapaz, mas não era correto fazê-lo, neste caso. Não era um ele nem uma ela. Não-binário é mais um dos termos que merece maior reconhecimento. Diogo Ribeirinha não se considera um ou uma, apenas pensa que, na língua portuguesa, não tem termos neutros de género. O não-binarismo está associado ao desapego dos títulos de “homem” e “mulher”, de maneira a dissolver ambos estes conceitos, dentro da sua origem social. Nas redes sociais mais frequentadas pelos mais jovens, é comum verem-se substituídos o típico ‘O’ masculino e o ‘A’ feminino por uma letra simples, e, quase como de modo irónico, determinante nos cromossomas sexuais, o ‘X’. Esta substituição veio na tentativa de não atribuir rótulos ao género de alguém, em situações como as de não-binarismo. Ao sair do CES, convidei Diogo para jantar e saber
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a sua história, conhecer as suas ideologias. “Não me incomoda que me tratem por ele, até porque é mais fácil”, admite o antigo estudante de Estudos Artísticos na FLUC, “mas não sou um homem nem uma mulher”. O mesmo explica que “em Coimbra, a cena LGBT+ ainda é muito ligada à academia em vez de ser algo cultural”. Diogo recomendou que pesquisasse o que foi considerado o primeiro grande manifesto ‘queer’, criado no âmbito da ‘Pride March’ de Nova Iorque, em 1990. ‘Queers Read This’ estende-se ao longo de doze páginas. Uma das frases que podem causar mais impacto é: “usar o termo ‘queer’ é uma forma de lembrar como é que o resto do mundo nos vê”. Durante décadas, os termos ‘queer’ e ‘gay’ foram usados como método de humilhação perante a comunidade LGBT+, mas agora são abraçados pela mesma. ‘Gay’ tem origem na palavra francesa ‘gai’, que significa feliz e foi adaptado nos anos 1920 aos homens homossexuais, de modo a modificar a sua conotação. ‘Queer’ tem vários significados, mas, neste caso, designa uma pessoa que não segue o padrão da heterossexualidade e/ou o binarismo de género. Surgiu pela primeira vez no século XV para caracterizar algo excêntrico, peculiar ou estranho. “LGBT, liberdade sexual!” Dia 24 de maio, Mosteiro de Santa Clara-a-Velha. Bandeiras, pinturas de rosto, cartazes. Coimbra tornou-se, numa tarde, um lugar de abertura à expressão do ser. Por volta das 17h30 deu-se o início da oitava edição da Marcha da Luta Contra a Homofobia e Transfobia de Coimbra. A ponte de Santa Clara, a Baixa e a Praça 8 de Maio encheram-se de cor, música e ‘slogans’ alusivos à comunidade LGBT+. A frase que mais se fez pronunciar, no meio de tantas outras que mostravam a convicção de cada um dos marchantes, foi “LGBT, liberdade sexual!”, que todos gritavam com orgulho e sem preconceito. Na chegada à Praça 8 de Maio, a multidão calouse para ouvir a garra com que Diogo Ribeirinha expressa a sua luta. Ouviram-se aplausos, choros, gritos de concordância.
Algumas pessoas destacaram-se na multidão. Uma delas foi Vicente Pareces, de 21 anos. Frequenta o curso de Estudos Artísticos na FLUC e identifica-se como homem transexual pansexual. Pansexualidade, mais um termo estranho a muitos, resume-se à atração sexual ou amorosa que não depende de sexo ou género. “Marchamos pelas pessoas que não podem vir, pelas pessoas que têm medo de sair à rua”, explica o estudante da UC. Começou a sua viagem pelo mundo ‘trans’ aos 17 anos, quando se afirmou aos amigos como tal. Hoje é membro da PATH – Plataforma Anti-Transfobia e Homofobia, que faz parte da organização da marcha, e ativista dos direitos LGTB+. Um rapaz alto, com uma camisola laranja, mostrava um sorriso de alívio. Chama-se André Couto e identifica-se como um homem cisgénero bissexual.
“Ainda existe tabu em volta da comunidade LGBT+”, afirma. O mesmo continua ao explicar que as amarras metafóricas, no âmbito da transexualidade e transgeneridade, estão relacionadas com “uma pessoa não se identificar com o seu género e a mente não estar no corpo que quer”. Este finaliza ao expor que “amor-próprio é mais valioso do que qualquer amor que possa existir”. A felicidade é fio condutor que une esta comunidade em Coimbra. A igualdade condensa o que muitos tentam desintegrar. Desde o “Aqui Base Tango” à margem do Mondego, a cidade oferece segurança e uma plataforma que dá voz aos que têm medo de “sair do armário”. Segundo Ricardo Sérgio, também aluno do curso de Estudos Artísticos, “não há um governo ou uma religião que possa ditar o que as pessoas são”.
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OUTROS TEMPOS, OUTRAS ANDANÇAS Os hábitos culturais sempre foram uma constante na vida dos estudantes em Coimbra. Com o passar do tempo, a verdade é que a situação se alterou - TEXTO E FOTOGRAFIAS POR PEDRO DINIS SILVA -
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ão há nada que consiga preparar um jovem para todas as experiências que ele vive enquanto estudante universitário. Imagine-se um adolescente que acaba de ingressar na Universidade de Coimbra (UC), numa cidade longe do conforto de sua casa: há toda uma panóplia de dinâmicas culturais presentes que o atingem de surpresa, coisas novas que ele não tem na sua terra, numa escala maior e mais diversificada. Imagine-se a sua reação quando se depara com todos os teatros, salas de concertos e grupos artísticos ao seu dispor, à palma da sua mão. Imaginemos que ele não se contenta apenas com isso e quer frequentar tudo o que é bar e casas de bebida que a urbe tem para lhe oferecer. Agora, imagine-se que esse estudante sou eu, a passear pelas ruas da cidade sem saber para onde me virar. Coimbra possui, de facto, um leque variado de locais de festa noturna, de bebidas alcoólicas e música eletrónica. Da mesma maneira, engloba também casas de arte e espetáculo, que oferecem conteúdos alternativos à cultura dos copos e da discoteca. O que se repara à partida é que, se me decidir pela boémia, tenho comigo enormes manchas de população estudantil a fazer-me companhia, nos bares e nos cafés. Se, porventura, optar pelos espaços culturais, não são tantos assim os estudantes presentes. Esta situação é muito do que se vive naquilo que pode ser considerado o hábito de consumo cultural de um aluno universitário. Era uma vez um espaço cultural Ao passear pelo coração de Coimbra, é possível reparar na quantidade de espaços de que a cidade usufrui. Na Praça da República, para além de todos os cafés distribuídos à sua volta, encontra-se tam-
bém o Teatro Académico de Gil Vicente (TAGV). A Associação Académica de Coimbra (AAC), que se faz notar pelas suas secções culturais e desportivas e pelo bar-esplanada, é já ao lado, no início da Rua Padre António Vieira. Desce-se a Avenida Sá da Bandeira, depois a Rua Olímpio Nicolau Fernandes, vira-se à direita a seguir à esquadra da PSP e, a espreitar por detrás do Pátio da Inquisição, encontramos
o Teatro da Cerca de São Bernardo (TCSB). O Salão Brazil não é longe, situa-se um pouco mais para a esquerda, no Largo do Poço, após a Praça 8 de Maio, em plena Baixa de Coimbra. Todas estas casas são espaços históricos da cidade, relevantes no seu desenvolvimento cultural. O TAGV, nas palavras do seu diretor, Fernando Matos Oliveira, é um “teatro que nasceu como re-
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sultado de uma relação que a UC tinha com as atividades teatrais universitárias”. O diretor do espaço explica que a casa foi inaugurada em 1961, “no contexto do investimento atribuído pelo executivo governamental ao Polo I da universidade, no período do Estado Novo”. Hoje em dia, o TAGV é o único teatro universitário do país e desempenha um papel diversificado na vida cultural da cidade, não só por mostrar de forma constante a criação de arte contemporânea nas diferentes disciplinas artísticas, como também pela sua “dimensão institucional”, ao acolher eventos organizados e promovidos pelas secções da AAC. Por sua vez, a história do TCSB está relacionada com a história da sua companhia residente, a Escola da Noite. O espaço surge em 2008, após várias deslocações da companhia entre espaços da cidade. O produtor da Escola da Noite, Pedro Rodrigues, esclarece que a companhia “está no TCSB desde a sua inauguração, no duplo papel de companhia residente, que cria e apresenta os seus próprios espetáculos, mas também como gestores da casa, recebendo artistas e grupos de várias áreas artísticas, não só de Coimbra, como também do país e do mundo”. Quanto ao Salão Brazil, o presidente da direção do Jazz ao Centro Clube (JACC) e coordenador dos projetos que o mesmo leva a cabo (entre os quais, o Salão Brazil), José Miguel Pereira ,confere um carácter histórico à casa. “Quando o edifício foi criado, foram pensados vários usos para ele. Já aqui funcionou uma panificadora, um restaurante e um salão de bilhar”, esclarece. Nos dias de hoje, o espaço é um salão de concertos que apresenta também um outro tipo de propostas artísticas, como serões de leitura. Pretende, como explica o diretor, “tornar-se cada vez mais alargado e atrativo para as pessoas, convidando -as a visitar a baixa de Coimbra”. A “semana mais longa do mundo” Quando se fala em cultura na UC é inevitável falar-se na Semana Cultural da universidade. A vice -reitora da UC responsável pela cultura e coordenadora da iniciativa, Clara Almeida Santos, explana que, no seu período inicial, o evento era “uma tentativa de mostrar o que era feito a nível de cultura dentro da própria universidade, com o intuito de ultrapassar a ideia de que não havia produção cultural dentro da UC”. A vice-reitora considera que “esse objetivo foi transcendido, houve uma evolução natural dessa mostra para uma semana, que era muitíssimo condensada”. “O evento dizia respeito efetivamente a uma semana, não acontecia o que acontece hoje, que são dois meses de programação”, explica Clara Almeida Santos. A vice-reitora sublinha que “nos últimos anos se começou a perceber que havia muitas atividades sobrepostas, o que impedia as pessoas de circularem entre elas”. Por outro lado, existiam iniciativas para as quais uma semana era pouco, como determinadas exposições. “Começou aí a extensão da Semana Cultural no tempo. Agora há claramente que se repensar a denominação desta iniciativa”, acrescenta a vice-reitora. “É a semana mais longa do mundo e ao mesmo tempo é uma marca que já está sedimentada na comunidade. As pessoas que estão envolvidas já estão à espera do tema para organizar o seu ano letivo, com o ‘timing’ da iniciativa em mente”. A Semana Cultural acontece todos os anos e desempenha um papel importante de promoção de iniciativas realizadas não só dentro da UC, como também por companhias artísticas ou criadores individuais exteriores à academia, o que possibilita aos estudantes uma maior presença na vida cultural da cidade. Segundo Clara Almeida Santos, o evento “oferece uma oportunidade de participar em algo com alguma envergadura, algum investimento e al-
gum potencial de comunicação”. Nem só de copos vive o estudante? O estudante é parte integrante do circuito cultural que Coimbra proporciona. Qualquer casa de espetáculos ou companhia artística reconhece o papel que a comunidade estudantil desempenha, quer seja na produção de conteúdos, quer seja como público das diversas atividades apresentadas por toda a cidade. No entanto, esse mesmo papel tem vindo a ser posto em questão pelas instituições de criação artística. Fernando Matos Oliveira refere que o TAGV “nunca está satisfeito. Houve muitas mudanças porque a paisagem mediática se alterou por completo. Há certas formas de cultura contemporânea que ocupam o espaço de tempo livre de modos diferentes e que competem com as formas tradicionais de cultura”. O diretor sublinha ainda que “isto é um problema de democracia, de liberdade e de informação. Há um empobrecimento de experiência que é igual em todo o mundo”. Pedro Rodrigues complementa esta ideia ao considerar que “as propostas culturais realizadas pela Escola da Noite continuam a encontrar uma procura minoritária quando comparadas a outras propostas destinadas a conjuntos de massas”. José Miguel Pereira faz notar que “grande parte dos estudantes nem sequer chega a conhecer a cidade de Coimbra”. Considera que “os hábitos de saída e os consumos culturais têm a ver com a maneira como as pessoas encaram a cidade onde vivem, e o que se verifica é que muitas pessoas não sabem onde ficam determinados lugares”. Por sua vez, Clara Almeida Santos explica que “a boémia só é um problema quando prejudica a atividade dos outros, quando inibe a participação e quando provoca estragos”. No que diz respeito à vida noturna, a vice-reitora faz também notar que “se calhar o problema não é só dos estudantes. Não há é muito interesse em sair da zona de conforto”. De uma maneira geral, os espaços culturais passam pelo mesmo problema. Nas palavras do presidente do JACC, “nenhuma estrutura cultural pode dizer que possui uma implantação na comunidade estudantil. É difícil isso acontecer e é uma pena, mas é um problema de parte a parte, um novo relacionamento entre a comunidade estudantil e os espaços culturais”. Quanto a possíveis soluções a esta situação, as respostas são sobretudo direcionadas à divulgação das iniciativas por parte das instituições artísticas, bem como à educação prévia da população. O produtor da Escola da Noite considera que o caminho não passa pela transformação da oferta artística em propostas destinadas a um público mais abrangente. “Se formos por esse caminho, vamos diminuir a diversidade da oferta e empobrecemos essa oferta e a vida em comunidade”, esclarece. Acrescenta que “o grande desafio passa pela educação das pessoas e pelo proporcionar o contacto com as várias dimensões artísticas, desde logo, às crianças”. O diretor do TAGV considera que a solução passa por um “desenvolver de parcerias com determinadas associações” e manifesta que “o TAGV gostava que a academia olhasse para o teatro como algo que possa abrir horizontes, e não apenas como um lugar onde o que existe pode acontecer. Queremos que o teatro seja um lugar onde aconteça aquilo que não existe” “Não há ninguém que vá impor uma saída da zona de conforto, acho que isso têm de ser os próprios estudantes a decidir”, realça Clara Almeida Santos. “Às vezes não é só um problema do público, mas também dos emissores que não saem da sua zona de conforto”. A vice-reitora faz ainda notar que o conceito de cultura é “muito vasto” e que pode, muitas vezes, “andar associada à boémia, que pode ser uma cultura por si, e é com certeza”.
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BENDITA A HORA EM QUE O FADO FOI PROIBIDO O processo de Bolonha não permite uma estadia alongada e os estudantes deixam de ter tempo para se dedicarem à vida académica. O fado da cidade já não se ouve nas ruas e comercializa-se em casas de Fado - TEXTO E FOTOGRAFIAS POR JOANA PEDRO -
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ivem-se tempos agitados em Coimbra. A comitiva com o presidente Américo Tomás está prestes a chegar e o aparato montado faz adivinhar a crise académica que se veio a desenrolar. O ambiente de protesto espera o presidente que encabeça a autoridade. O povo e os estudantes erguem cartazes que exigem o diálogo e a democratização do ensino. Soubessem eles que a grande “revolução” estava à distância de 5 anos. O edifício das “Matemáticas” está prestes a ser inaugurado e Alberto Martins entra na sala 17 de abril e senta-se no lugar que lhe foi destinado. A incumbência que lhe foi destinada foi apenas uma: “Pedes a palavra se tiveres condições para isso”. Cinquenta anos depois sabe-se que Alberto Martins se limitou a pedir a palavra de capa e batina de modo a sinalizar a sua condição de estudante. “Eu era o presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC), era o rosto de uma esperança que estava na rua”, declara. Num tempo em que falar não era permitido e em que a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) não dava tréguas, montou-se o remate para a crise estudantil de 1969. A cidade que foi epicentro do movimento encabeçado por jovens estudantes parece hoje silenciosa. Com a ditadura subentende-se a perseguição e, com ela, os motivos de luta. “Fado, Futebol e Fátima”, havia sublinhado Salazar. José Miguel Batista, ex-solista do Orfeon Académico de Coimbra, comenta que
este desporto e Fátima ainda têm força, mas questiona: o que é feito do fado? Manuel Portugal, um dos sócios da Associação Cultural “Fado Hilário”, considera que há uma mística que distingue o fado de Coimbra: o lado académico. Destaca ainda o ambiente universitário em que é cantado, uma vez que “não exige formação”, revelando-se natural, espontâneo e único. Ao descrever a canção da cidade, no início do século XX, Jorge Gomes, professor de guitarra desde 1972 e que continua a lecionar na Secção de Fado da AAC, refere que “os homens se juntavam semanalmente e tocavam, na rua, serenatas às suas namoradas”. José Miguel Batista fala das influências que a cidade sempre recebeu, pois “vinham jovens de todo o mundo”. Trocou-se o silêncio pelo fado O fado da cidade, comenta o ex-orfeonista, caracteriza-se pelas guitarradas, que em Coimbra têm uma dimensão intelectual e um som cheio e forte. Alberto Martins considera que é preciso ter em conta todas as dimensões do cantar estudantil. José Miguel Batista partilha da mesma opinião ao destacar a evolução das serenatas e da música de raiz popular, bem como o passar pela canção de cariz político. É Manuel Portugal quem comenta que o fado dos anos 60 transformou Coimbra num centro de revolução de ideias a nível nacional. “Foi extraordinária a capacidade de mudar e de revolucionar”, acrescenta.
Alberto Martins caracteriza o meio académico, da época, ao distinguir o lado arcaico e tradicional, do lado que integrava uma sociedade ativa e extravagante. “Coimbra adquiriu um elevado valor cultural”, conta. Segundo Pio Abreu, estudante de medicina no período da crise de 1969 e atual psiquiatra no Centro Hospital da Universidade de Coimbra (CHUC), a força estudantil foi marcante nas Repúblicas, vistas pelo mesmo como agrupamentos de estudantes que provinham de variados locais e onde a troca de ideias era constante. O período entre 1960 e 1970 foi, segundo Teresa Carreiro, a investigadora que redigiu a obra “Viver numa República de estudantes de Coimbra”, um tempo de grande transformação, em que jovens esclarecidos queriam fazer a diferença. Os estudantes de Coimbra recusaram ficar em silêncio e a investigadora explica estar relacionado com o esclarecimento que rondava a época. “Os residentes das Repúblicas eram indivíduos preparados para discutir e enfrentar as questões face ao maior acesso às informações”, explica. Ao regime de ditadura e à guerra colonial acrescentou-se a conjuntura do país: um Portugal subdesenvolvido e conservador. Alberto Martins comenta que o movimento estudantil reflete todos os problemas e que isso se fez refletir na canção de Coimbra. “O fado sofreu um abanão”. É Rui Pato, ex-guitarrista, que o confirma. “Perdeu-se a paciência para se fa-
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Fotografia gentilmente cedida por Teresa Carreiro
zer o fado tradicional e por isso começam a ouvir-se as canções de protesto”, relata. Não foram as capas e batinas dos estudantes que deixaram negra a cidade de Coimbra no ano de 1969. A cidade dos estudantes pareceu deixar de o ser. “A praxe é abolida e não se fazem os festejos académicos”, relata o guitarrista. Alberto Martins deixa claro que não se deve exagerar quando se fala da “canção de revolta e de protesto” porque são as dimensões circunstanciais que devem ser tidas em conta. A música adquiriu um papel de arma de combate político, com uma mensagem imediata de resistência. Manuel Portugal conta que Coimbra tinha grandes poetas. “Num país atrasado eram um centro de revolução. Foi, antes do tempo, o centro de difusão de ideias.”, completa. “Os tempos não foram fáceis”, salienta o proprietário da casa “Fado Hilário”, que destaca Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Rui Pato e António Portugal por tocarem as “letras proibidas”. Rui Pato ressalva a vontade de se utilizar a música para se aproximarem de questões que envolvem os estudantes. Mal vista, no início, pelos próprios estudantes que viram esta mudança como o quebrar dos valores tradicionais. “Primeiro estranhou-se, depois entranhou-se”, rematou. A ousadia conduziu-os à expulsão da universidade por parte da PIDE. A mensagem camuflavase para não se perceber o apelo direto à democracia e à liberdade. Considera Manuel Portugal que o Fado ganhou uma razão: a partilha de ideias. “Havia uma revolta na rua e esta foi a música da revolta”, comenta Alberto Martins que acrescenta que “a canção de Coimbra fez parte do movimento”. A partilha de ideias era o cerne da bravura e Alberto Martins destaca os eventos musicais que se organizaram nas cantinas, nos dormitórios e nas faculdades. A canção que é usada, violentada e comercializada Passavam cinco minutos das 18 horas quando naquela tarde de maio a audiência, maioritariamente estrangeira, da casa “Fado Ao Centro” se dispôs a ouvir a canção de Coimbra. O silêncio logo se fez absorver pelo ritmo das guitarras. Hugo Martins, um dos músicos residentes, refere que o repertório escolhido percorre uma viagem pelo fado. Uma parte da apresentação é dedicada ao lado
romântico da canção de Coimbra. A esta, sucede-se “Capa negra, rosa negra”, da autoria de Adriano Correia de Oliveira e que abarca no espetáculo a vertente interventiva. Para os ouvidos do mundo surgem em Coimbra estes espaços onde se pode ouvir, todos os dias, a canção da cidade. Rui Pato afirma ser “o único sítio onde as pessoas de fora podem desfrutar desta partilha”. Acrescenta não ter nada contra as casas de fado, mas que é contra a forma como está a ser feito. Jorge Gomes considera que “a culpa é dos governos e das suas únicas preocupações”. Na sua opinião, são os políticos que deixam cair a cultura nacional quando tentam introduzir, em Coimbra, casas de fado. Jorge Gomes fala do antes. Antigamente, “o estudante sentava-se numa tasca qualquer e tocava guitarra numa atitude isolada, porque o fado é um canto de rua”. Acrescenta que o que se faz atualmente é encher os turistas de “uma canção que não tem qualquer relação possível com as suas origens”. A forma como o fado está a ser vendido desanima
o professor de guitarra que considera que devia ser tocado pela sociedade estudantil. Em contrapartida, segundo o mesmo, é “usado, violentado e comercializado”. Jorge Gomes desenha o fado atual “como uma tentativa de usurpação à tradição”. Depois de Rui Pato deixar a guitarra e o palco, o lugar que ocupa é na audiência e afirma que não assiste a nada de novo. Acrescenta que os mais revolucionários justificam o bom estado do fado com as serenatas das duas festas académicas, que reúne um vasto público. Remata, porém, que o público que chama é atraído pelo ambiente de festa. “Os novos profissionais deviam ser ´incubadoras` de uma nova maneira de apresentar o fado”, considera Rui Pato. Segundo o mesmo, o fado não se renova porque é assim que se acha que o turista vai gostar. Confrontado com a “morte” de uma canção que tanta importância teve, José Miguel Batista é claro: “Há-de sempre haver alguém que goste de música e o fado de Coimbra não corre o risco de deixar de se ouvir”. Contudo, acrescenta que isso não significa a sua evolução. Rui Pato partilha da mesma opinião ao dizer que vê o fado da cidade em vida vegetativa, assim como “um doente ligado a um ventilador”. “É preciso deixar os jovens entusiasmados”, remata Rui Pato, porém, segundo o mesmo, “é escassa a criatividade entre eles”. Rui Pato comenta o ressurgimento da canção de Coimbra nos anos 80, após o período em que o lado interventivo se fazia soar mais alto. “Depois do 25 de abril surge muita gente que quer fazer pelo fado”, conta Jorge Gomes. Bendita a hora em que foi proibido para que se fizesse ouvir. Já não havia a PIDE para calar as jovens guitarras, mas hoje o silêncio é diferente. Manuel Portugal descreve a casa dos seus pais, em tempos, como o ponto de encontro de grandes nomes do fado. Luís Góis foi um desses grandes nomes e sempre que aparecia para ensaiar, não abandonava o apelo permanente: “Não cantem as minhas coisas, cantem as vossas. Façam a vossa música que eu ainda quero cá estar para ouvir”. O proprietário da casa “Fado Hilário” reflete que talvez seja esta ideia que “vai fazer acontecer tudo o resto”. Pelas palavras de Jorge Gomes, “[o fado] não está morto”, até porque “não se pode destruir a capacidade de reação do povo”. Triste é o tempo em que vivemos, há liberdade para se cantar e não se canta. Voltem os guardas e as tropas. Volte Américo Tomás a Coimbra para que a canção da cidade se converta novamente em mensagens proibidas. O povo só vê encanto no que lhe é impedido.
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A BRIGADA DOS ANOS 80 Funcionários com mais de três décadas de trabalho no edifício da AAC relatam o seu percurso e a forma como entraram para a casa. O adeus ao local onde passaram metade de uma vida começa a ser projetado - TEXTO POR RAFAEL SOARES E FOTOGRAFIAS POR INÊS NEVES -
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studantes sobem e descem escadas, outros relaxam na esplanada. Os mais aflitos passam pela reprografia para imprimir os apontamentos que salvam o semestre. Seja qual for a atividade, o prédio da Associação Académica de Coimbra (AAC) é um ponto de encontro para os jovens da cidade. Afinal, estamos a falar de um organismo conduzido por eles. Porém, mal entramos pela porta principal, vemos um homem de cabelo grisalho e bigode da mesma cor. Pode parecer deslocado daquele ambiente mas dois dedos de conversa mostram o contrário. Chama-se António Baltazar e é funcionário da AAC desde 1983. E não é o único resistente. Carma Alves, José Barros, Lurdes Lopes e Alda Teixeira são alguns dos funcionários da Direção-Geral da AAC (DG/ AAC) com mais de duas décadas de trabalho. Todos entraram jovens e foram permanecendo. O carinho pela casa e pelos “filhos”, como a Alda que não quer ser “Dona” apelida os estudantes, é um sentimento que os une. Das limpezas ao homem dos sete ofícios Nos anos 80, o prédio sofreu remodelações, que deram lugar à abertura do bar. Foi desta forma que, há 33 anos, Carma Alves entrou neste organismo. Não queria responder a “perguntas muito difíceis” mas acabou por explicar a sua história. Veio da Covilhã para Coimbra após o marido ter arranjado um emprego num café, e não hesitou quando a convidaram. “Estava em casa há dez anos e aproveitei”, recorda. Estranhou a mudança mas entranhou. Trabalhou com estudantes “educados e respeitadores” e os patrões eram “muito simpáticos”. Hoje, com 66 anos e responsável por limpezas no edifício, pouco mudou. O problema é estar “saturada”. “Já são muitos anos e a minha idade já é um pouco avançada. Vou para a reforma em setembro
ou outubro, se Deus quiser”. A mudança de setor surgiu há cerca de meio ano, devido à alteração de concessão do bar, e conheceu divisões do edifício que lhe dão dores de cabeça. “Aquelas casas de banho, Deus me livre”. Tenta, ainda assim, compreender. “É cada um às vezes, mas é normal nos jovens”. António Baltazar também entrou pelas portas do bar. Pediu a um amigo, tesoureiro da DG/AAC, para não se esquecer dele caso “a Académica” precisasse.
Recebeu o convite quando o estabelecimento procurava um funcionário e recorda o funcionamento diferente ao presente. “Só havia balcões. Servíamos os clientes e eles levavam o material para as mesas”. O menu também era mais variado. Além das sandes, havia iogurtes e pastelaria. “Era um bar de apoio ao estudante”, completa. Foi transferido para a portaria pelos mesmos motivos da sua colega e acaba por ver a mudança com bons olhos. “Até me sinto mais livre, sempre me vou sentando. Já tenho umas pernas com bastantes varizes”. Ainda assim, é capaz de se transformar no homem dos sete ofícios, quando “a rapaziada pede”. Como é capaz de fazer “umas carocas”, ou seja, uns biscates, é o escolhido para arranjar portas ou torneiras, caso seja necessário. A mudança de função retirou-lhe o período fixo de férias, no mês de agosto. Agora, divide-as durante o ano mas nem por isso fica parado. “Tenho umas oliveiras para apanhar azeitonas. As minhas férias são para trabalhar”. A janela que faz cair lágrimas Numa passagem pelo corredor do primeiro piso, é possível conhecer mais histórias. Uma delas é contada numa pequena sala cor-de-laranja. Alda Teixeira entrou na AAC pelas mãos de um tio e começou pela fotocopiadora. Mais tarde, foi parar à secretaria e por lá ficou durante vários anos. Hoje, por sua opção, trabalha no Ponto Já, onde informa os jovens que lá passam. Os mais novos, por exemplo, são auxiliados em relação à escolha de locais para morar. Também lá passam turistas e outro tipo de pessoas, que Alda Teixeira faz questão que regressem. “Quando alguém chega, tento fazer com que as pessoas digam que vão voltar. Quando se vão embora, vêem-se despedir. O meu espírito é sempre
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o assunto à sua maneira. “Fiquei cego e com tudo o que tinha na mão é que o arrumei”. Este episódio até pode ter ajudado o estudante em causa. “Estava há treze anos na universidade. Depois disto, acabou a formatura em dois ou três anos e foi-se embora”, brinca. O cargo na portaria já lhe permitiu assistir a algumas “borracheiras”. Apesar de terem sido “engraçadas”, tem pena que, muitas vezes, os estudantes estejam mais “virados para destruir”. “É a casa deles”. Mas esses casos são exceções. “Eu tenho cinco dedos na mão e eles não são todos iguais. A maioria é malta porreira, aberta, brincalhona”. Lembra ainda que Coimbra “é uma aldeia muito pobre” sem estudantes. Na secretaria, José Barros traz um pensamento à tona, quando questionado acerca das diferenças entre gerações. “Desde que o mundo é mundo, os mais velhos sempre consideraram os jovens desmiolados. Eu não andava de ‘smartphone’ na mão mas se houvesse, talvez andasse”.
ajudar, sempre de cara alegre e apoiar em tudo aquilo que posso.” Os anos que passou na secretaria não foram esquecidos e é com nostalgia que os recorda. “É aquela janela para onde eu olho e cai a lágrima. Fui lá muito feliz”. Por esta razão, evita passar pelo seu antigo local de trabalho. “Só vou ao terceiro piso quando tenho mesmo que ir à DG/AAC. Quando eu subo, as pernas tremem.” Com 34 anos de casa, o amor à mesma tornou-se incondicional. Talvez por essa razão, Alda Teixeira tem feito trabalhos em prol da mesma. É o caso dos livros anuais dos mandatos da DG/AAC. A funcionária faz uma junção de todas as notícias referentes a um mandato e encaderna-as. “Têm vindo a ficar mais finos”, aponta, enquanto exibe as edições. Um livro das suas histórias também é um assunto em cima da mesa. “Iria ser tão bom ou melhor do que estes que eu faço”, considera. “É a história de uma pessoa que está aqui há 34 anos, que ama muito isto e que tem muito para contar”. Os rostos por trás das burocracias Dois pisos acima, encontram-se alguns dos gabinetes da DG/AAC, entre os quais o da secretaria. Atrás da porta transparente, está mais um homem sexagenário. José Barros esteve sempre no mesmo posto à exceção de um curto período na contabilidade. Veio da Guiné-Bissau para Portugal, já com 29 anos, para estudar Direito mas a perda de bolsa levou-o a aceitar um cargo na secretaria da DG/AAC. Já tinha experimentado a função na Secção de Fado da AAC. Os estudos foram abandonados gradualmente, e manteve-se, desde 1989 até hoje, no mesmo posto. “Zé Barros” ou “Sr. Zé Barros”, como já começa a ser chamado” já estava habituado a trabalhar. No seu país de origem, fazia maquetes de jornais mas chegou a fazer reportagens jornalísticas, à falta de gente. “Às vezes faz-se uma coisa e outra, ao mesmo tempo, nos países do terceiro mundo. Cheguei a cobrir uma campanha presidencial”, recorda. A adaptação aos jovens foi facilitada. O facto de ser estudante, na altura, permitia-lhe ir para a esplanada e entrar “em cavaqueira”, no fim do trabalho. Hoje, e embora continue com uma “abertura para falar com todo o tipo de pessoas”, os hábitos mudaram “até por uma questão tecnológica e de preferências”. De qualquer das formas, a sua vida “já não é andar a
ficar no bar”, conclui com uma gargalhada. Se “Zé Barros” dá o suporte à DG/AAC na secretaria, também é preciso maturidade para tratar das contas da casa. De volta ao primeiro piso, Lurdes Lopes encontra-se ao centro do Departamento de Contabilidade e Tesouraria, entre quatro pessoas. É aquela com mais anos de casa entre elas e os seus colegas entrevistados. Chegou em 1980, através do irmão, já falecido, membro da DG/AAC. Começou pela fotocopiadora, tal como Alda Teixeira, mas foi num ápice que passou para a contabilidade. Com 57 anos, considera “aliciante” trabalhar com jovens. “Uma pessoa nunca se sente velha”. O trabalho tornou-se mais exigente. Se antes não se apresentavam contas ao fisco nem se pagava IVA, uma fiscalização tornou tudo “mais direitinho”. “Quanto mais envelheço, mais trabalho”, graceja. Misturar jovens com contas não é fácil, segundo a auxiliar de contabilidade. “Como são novos, são avessos às burocracias”. Ainda assim, Lurdes Lopes diz “aprender muito” com os estudantes. Reforça que “esta casa é uma lição de vida tanto para os dirigentes da casa como até para nós” Respeito entre gerações Trabalhar na AAC significa servir os jovens, lidar com eles e, em última instância, ser funcionário deles, já que a entidade empregadora é a DG/AAC. Fator que não preocupa estes graúdos. Alda Teixeira assume que a saudade fica sempre e não esquece a relação mantida com as pessoas que comandavam o destino da casa, no ano em que entrou. “A minha maneira de estar aqui não era patrão -empregado. Íamos beber um copo com eles, havia uma relação mais aberta.” Ainda mantém o contacto e tenta combinar jantares. Porém, os anos foram passando. Se José Barros diz que agora lhe chamam “Sr.”, Alda recusa-se a ser chamada de “Dona” e muito menos “Senhora”. Essa “está em Fátima”, segundo a funcionária. Apesar das diferenças de idade atuais, as boas relações continuam com alguns membros da casa. Ainda assim, aponta “o respeito como muito importante e ser mais velha não justifica o contrário”. O respeito é mútuo. Pelo menos, Carma Alves nunca teve nenhum azar. “Nunca nenhum [estudante] me faltou ao respeito, antes pelo contrário.” António Baltazar lembra-se apenas de um caso, há anos atrás, em que se sentiu desrespeitado. Lá resolveu
Saudade que fica no adeus à casa Entre alguns destes veteranos da AAC, a reforma é uma realidade próxima. Após tantos anos, fica sempre a saudade, pelo menos para Carma Alves. “Esta é uma associação que adoro. Vou embora e vou ter saudades disto”, sente quem promete voltar à sua terra, depois desta etapa. Lurdes Lopes é mais nova, 57 anos, mas já não se sente capaz de mudar de rumo. “Queixo-me sempre do cansaço e digo que me vou embora mas no fundo isso é só quando estou saturada. Não me vejo a trabalhar noutro sítio”. Já josé Barros refere, sob gargalhadas, que, com a sua idade, aquilo que se pensa, em relação ao futuro, “é que uma pessoa nunca mais chega à reforma”. Com 62 anos, António Baltazar vê-se a trabalhar até à idade da reforma. Faltam cerca de quatro anos, “se eles não alterarem as regras”. E já tem planos para o futuro. “Como tenho uns terrenozinhos, vou cultivar umas batatas, uns litros de vinho, umas favas… Vou-me entreter”, projeta. Apenas, claro, “se ainda houver genica para isso”.
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EDITORIAL - POR CARLOS ALMEIDA, INÊS DUARTE E PAULO SÉRGIO SANTOS -
Isto não é um editorial PUBLICIDADE
Se começaram a folhear por aqui este jornal, este não é o fim, é o início. Se aqui chegaram por fim, não é o final, antes o recomeço. Não é o típico editorial, se é que existe um tipo específico. Não falaremos aqui de ensino superior, de cultura, de desporto, de ciência, de tecnologia, ou de Coimbra. Falaremos de jornalismo, da Secção de Jornalismo da Associação Académica de Coimbra (SJ/AAC). Esta edição, por si já especial, é o culminar de mais um Curso de Jornalismo da SJ/AAC. Representa, também, uma espécie de chamamento às canetas, aos teclados, aos gravadores e às máquinas fotográficas de toda uma nova geração de aspirantes a jornalistas, de meros curiosos, de fiéis membros do Jornal Universitário de Coimbra - A Cabra. Essa geração será constituída por ti, que nos lês e queres saber mais, queres que outros saibam mais. Não importa qual é o teu curso ou o que estás a fazer neste momento, aqui não há discriminação nem seleção prévia, há vontade e espírito de sacrifício. A Cabra é um jornal de referência no panorama universitário nacional. É dos poucos que ainda é impresso regularmente em papel e que prima por essa abertura de mentalidades e formações que esteve na origem das melhores gerações de jornalistas deste país. E precisa, força das circunstâncias atuais, de um constante fluxo de sangue novo. Para fazer uma edição destas todos os anos, e todas as restantes edições, onde se informem todos os que nos lêem sobre aquilo que mais lhes interessa, o que os rodeia. A Universidade de Coimbra e a AAC serão diferentes sem A Cabra. Sem jornalismo. Serão mais pobres, tal como todos os que as frequentam. Num mundo cada vez mais veloz, a informação rigorosa e de qualidade será um marco indelével para todos, de nós. De ti. Ficha Técnica
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Colaboraram nesta edição Luís Almeida, Ana Francisca Nunes, Pedro Dinis Silva, Rafael Soares Publicidade João Ruivo Paginação Carolina Farinha
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