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Aproxima-te um pouco de nós, e vê. (EQ)I

Parte I

Aproxima-te um pouco de nós, e vê. (EQ)

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Historiogra a de 100 anos de estudos queirosianos

Miguel Real1

1. Três Períodos na Historiogra a de 100 Anos de Estudos Queirosianos

Desde a morte de Eça de Queirós (1900), cerca de meia centena de autores publicaram livros e/ou artigos sobre aspectos especí cos da obra deste escritor ou mesmo sobre a totalidade da sua obra.

Tendo em conta o estado da edição da obra de Eça de Queirós em cada década do século XX e tendo igualmente em conta o grau de exigência informativa dos comentadores face a livros ou artigos anteriores de outros comentadores, elaborámos um quadro cronológico da historiogra a queirosiana cuja distribuição por anos obedece a uma tripla divisão por períodos:

1. Período Testemunhal (1900 – 1930); 2. Período de Balanço (1930 – 1950); 3. Período Cientí co (1950 – 2000).

Evidenciaremos de seguida o Quadro Classi cativo dos autores e dos livros da historiogra a queirosiana, apresentando cronologicamente para cada período diversos exemplos ilustrativos.

1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).

QUADRO CLASSIFICATIVO DE 100 ANOS DE HISTORIOGRAFIA QUEIROSIANA

PERÍODO TESTEMUNHAL (alguns exemplos ilustrativos)

1901 — Teó lo Braga, Eça de Queiroz e a sua Obra 1903 — Batalha Reis, Introdução a Prosas Bárbaras 1904 — Ramalho Ortigão/Outros, A Eça de Queirós — Compilação de vários discursos proferidos na inauguração do seu monumento 1911 — Miguel Mello, Eça de Queirós. A Obra e o Homem Veiga Simões, A Nova Geração. Estudos Sobre as Tendências Actuais da Literatura Portuguesa 1913 — Alberto de Oliveira, Pombos Correios 1916 — António Cabral, Eça de Queirós — A Sua Vida e a Sua Obra 1918 — Alfredo de Carvalho, Eça de Queirós, Sua Primeira Fase Literária 1919 — Alberto de Oliveira, Eça de Queirós (Páginas de Memórias) 1920 — Alberto de Oliveira, Na Outra Banda de Portugal 1922 — Vários, Eça de Queirós — In Memoriam Agostinho de Campos, Eça de Queirós, Antologia Por-

tuguesa 1923 — Fialho de Almeida, Figuras de Destaque 1924 — Ramalho Ortigão, Quatro Grandes Figuras Literárias — Camões, Garrett, Camilo e Eça A. Forjaz de Sampaio, Eça de Queirós Conceição d’Eça de Melo, Eça de Queirós Revelado por uma Ilustre Dama da sua Família Cláudio Basto, Foi Eça de Queirós um Plagiador? 1925 — José Maria d’Eça de Queiroz, “Os Últimos Inéditos de Eça de Queiroz” in 1a ed. A Capital 1930 — A. Salgado Júnior, História das Conferências do Casino

O Período Testemunhal da historiogra a queirosiana inicia-se no ano da morte de Eça de Queirós a partir de um conjunto diversi -

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cado de artigos apologéticos nos jornais portugueses e com a publicação, em 1901, da conferência-homenagem de Teó lo Braga sobre Eça de Queirós, prosseguindo com a inauguração da estátua deste autor, em 1903, e termina, em 1930, com a publicação do estudo de António Salgado Júnior intitulado História das Conferências do Casino, como que refazendo, neste livro, o complexo de motivações históricas e ideológicas que estiveram na base inicial da intervenção pública de Eça de Queirós e dos seus amigos da passagem entre as décadas de 60 e 70 do século XIX e do “Cenáculo”.

Este Período Testemunhal caracteriza-se por apresentar o maior acervo de artigos e livros que prestam testemunho directo da vida e obra de Eça de Queirós por individualidades que:

a. colaboraram com Eça de Queirós (Alberto de Oliveira); b. foram seus amigos directos ou indirectos (Batalha Reis, Ramalho Ortigão, Teó lo Braga, Fialho de Almeida); c. atravessaram a passagem entre os séculos XIX e XX e foram testemunhas da obra de Eça editada em Portugal e no Brasil (António Cabral, Silva Gaio, Miguel Mello); d. foram seus familiares (Conceição d’Eça de Melo e José Maria de Eça de Queirós).

PERÍODO DE BALANÇO

(alguns exemplos ilustrativos)

1932 — Castelo Branco Chaves, Estudos Críticos 1933 — Castelo Branco Chaves, Sobre Eça de Queirós 1938 — Viana Moog, Eça de Queirós e o Século XIX 1939 — Álvaro Lins, História Literária de Eça de Queirós 1940 — Câmara Reis, As Questões Morais e Sociais na Literatura — II — Eça de Queirós 1941 — M. Paiva Boléo, “O Realismo de Eça de Queirós e a sua Expressão Artística”, in Os Vencidos da Vida 1942 — Clóvis Ramalhete, Eça de Queirós A. Ramos de Almeida, Eça

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1943 — J. Pereira Tavares, O Crime do Padre Amaro (Análise das suas Primeiras Redacções. . . ) Vergílio Ferreira, Sobre o Humorismo de Eça de Queirós 1944 — Fidelino de Figueiredo, Última Aventura 1945 — Allyrio de Melo, Eça de Queirós. O Exilado da Realidade

de Varzim

lores Fidelino de Figueiredo, . . . Um Pobre Homem da Póvoa

F. Vieira de Almeida, À Janela de Tormes Feliciano Ramos, Eça de Queirós e os seus Últimos Va-

tista João Gaspar Simões, Eça de Queirós. O Homem e o Ar-

nia João Mendes, Eça de Queirós. Tipos, Estilo Moralidade José Maria Bello, Retrato de Eça de Queirós Júlio d’Oliveira, Ramalho Ortigão e Eça de Queirós Mário Sacramento, Eça de Queirós, Uma Estética da Iro-

Vários, Livro do Centenário de Eça de Queirós 1946 — António José Saraiva, As Ideias de Eça de Queirós Costa Pimpão, As Ideias de Eça 1949 — Maria d’Eça de Q., Eça de Queirós entre os seus. Apresentado por sua Filha. Cartas Íntimas Jaime Cortesão, Eça de Queirós e a Questão Social

Com excepção de alguma correspondência, de algumas crónicas jornalísticas e do esboço de romance Tragédia da Rua das Flores, o essencial da obra romanesca de Eça já estava publicado (ainda que não tratado cienti camente) e o grosso da informação testemunhal também já estava publicado quando se inicia o 2º período da historiogra a queirosiana: o Período de Balanço.

Designamo-lo assim por corresponder, de facto e de direito, a uma época de balanço bio-bibliográ co sobre Eça, por pressupor os estudos anteriores e as publicações semi-póstumas e póstumas de Eça de Queirós, por corresponder a um conjunto volumoso e valioso de obras lançadas aquando da comemoração do centenário do nascimento de Eça e por ter dado origem aos primeiros estudos sectoriais sobre aspectos importantes da sua obra.

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Cem anos depois do seu nascimento e cerca de 50 depois da sua morte, porventura motivado pelo simbolismo destas datas, um conjunto numeroso de comentadores, especialmente ao longo da década de 40, ressuscitou a obra de Eça de Queirós depois dos seus livros, segundo E. Guerra da Cal, terem atravessado um certo período de esquecimento.

Permitimo-nos caracterizar este Período de Balanço em 11 pontos, o conjunto dos quais determina a unidade ideológica que, relativamente aos outros dois períodos, lhe presta su ciente consistência:

1. Entre livros portugueses e brasileiros, estabelecem-se as primeiras bibliogra as queirosianas relativamente completas; 2. São publicadas as primeiras biogra as de Eça relativamente completas, com destaque especial para a de João Gaspar Simões; 3. Nestas biogra as, com a ajuda da sua correspondência, tende-se a estabelecer, com algum rigor, os nexos de relação entre a vida e a obra de Eça de Queirós; 4. Estabelecem-se, igualmente, os vectores ideológicos que enformam a relação entre a mentalidade histórica da Geração de 70 e a dos “Vencidos da Vida” e as diversas faces da vida e obra de Eça de Queirós; 5. Ao longo da década de 40, com a publicação de inúmeras biogra as e as comemorações do centenário do nascimento, Eça de Queirós eleva-se de nitivamente à dimensão de escritor nacional, aceite consensualmente como um dos maiores romancistas portugueses, denotado até na feroz crítica que então lhe faz o Pe. Allyrio de Melo; 6. Iniciam-se os estudos sectoriais sobre a obra de Eça de Queirós: António Sérgio, António José Saraiva, Jaime Cortesão, Paiva Boléo, Pereira Tavares, Castelo Branco Chaves; 7. Com a publicação quase completa da sua obra (da obra romanesca, resta por publicar apenas a Tragédia da Rua das Flores), criou-se o consenso entre os comentadores e biógrafos

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da existência de três fases na obra de Eça de Queirós: 1ª fase — romantismo; 2ª fase — naturalismo-realismo; 3ª fase — fase mais lírica, em que privilegiaria a tradição rural portuguesa; 8. Publicam-se as primeiras sínteses que condensam o conjunto da obra de Eça de Queirós (colaboradores do Livro do Centenário; António José Saraiva, Mário Sacramento, Costa Pimpão, . . . ); 9. Alguns estudos permanecem ao nível do período anterior (testemunhal) ( Júlio d’Oliveira, Maria d’Eça de Queirós); 10. Sistematizam-se, a um nível subjectivo, as “intenções” e a “moralidade” de cada fase da obra de Eça de Queirós (criticar a sociedade, reformar as mentalidades, pôr a nu as fragilidades e os vícios portugueses, atacar a Igreja e o Estado. . . ), não deixando os comentadores de tomar partido pessoal (subjectivo) sobre as possíveis opções político- losó cas de Eça ( João Gaspar Simões ataca furiosamente a última fase de Eça, Feliciano Ramos louva-a, A. José Saraiva fala em individualismo pequeno-burguês. . . ); 11. Na continuação do ponto anterior, os comentadores e biógrafos de Eça não conseguem evitar que um conjunto de impressões e preconceitos ideológicos próprios da década de 40 sejam projectados na obra de Eça de Queirós.

Se quisermos sintetizar em dois parágrafos todo o profícuo trabalho dos comentadores queirosianos ao longo deste Período de Balanço, destacaríamos:

a. Esmiuçou-se, calendarizou-se e refez-se passo a passo com algum pormenor a vida e a obra de Eça de Queirós; b. Com base em a., contextualizou-se histórica e socialmente, dando-lhe sentido literário, as diversas fases da obra de Eça de Queirós.

Em suma, tratou-se de um período muito importante da historiogra a queirosiana que, sem deixar de ter em conta as importan-

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tes contribuições do Período Testemunhal, revolucionou de facto os estudos queirosianos em Portugal.

PERÍODO CIENTÍFICO (alguns exemplos ilustrativos)

rós 1954 — Ernesto Guerra da Cal, Lengua y Estilo de Eça de Quei-

1955 — A. José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa 1961 — Helena Cidade Moura, Três Versões do Crime do Padre Amaro. Algumas Variantes 1963 — A. Machado da Rosa, Eça, Discípulo de Machado? 1965 — Heytor Lyra, O Brasil na Vida de Eça de Queirós 1967 — A. Coimbra Martins, Ensaios Queirosianos 1971 — Ernesto Guerra da Cal, A Relíquia. Romance Picaresco e Cervantesco Dominique Sire, “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert et “O Primo Basílio” de Eça de Queirós 1972 — João Medina, Eça e o Anarquismo 1974 — João Medina, Eça Político Helena Cidade Moura / Outros — Estética do Romantismo em Portugal 1975 — Ernesto Guerra da Cal, Lengua y Estilo de Eça de Queiros. Apêndice: Bibliograf ía Queirociana. Carlos Reis, Estatuto e Perspectiva do Narrador na Ficção de Eça de Queirós 1976 — Maria Luísa Nunes, As Técnicas e a Função do Desenho das Personagens nas Três Versões de O Crime do Padre Amaro 1978 — Carlos Reis, Introdução à Leitura d’ Os Maias 1979 — Carmela M. Nuzzi, Análise Comparativa de duas Versões de A Ilustre Casa de Ramires de Eça de Queirós 1980 — João Medina, Eça de Queirós e a Geração de 70 1981 — Aníbal Pinto de Castro, Eça de Queirós. Páginas de Jornalismo. “O Distrito de Évora” (1867)

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1982 — Carlos Reis, A Construção da Leitura. Ensaios de Metodologia e Crítica Literária (contém diversos artigos sobre Eça de Queirós) 1983 — Luís Vianna Filho, A Vida de Eça de Queirós Guilherme de Castilho, Eça de Queirós. Correspondência (2 Volumes) 1984 — M. Manuela G. Delille, “Heine e a Primeira Fase da Vida Literária de Eça de Queirós”, in Recepção Literária de Heine no Romantismo Português 1985 — Joel Serrão, O Primeiro Fradique Mendes 1987 — A. Campos Matos, Imagens do Portugal Queirosiano Maria João Simões, Correspondências: Eça e Fradique. Análise de Estratégias Epistolográ cas Isabel Pires de Lima, As Máscaras do Desengano — Para uma Abordagem Sociológica de Os Maias de Eça de Queirós Luís M. Araújo, Eça de Queirós e o Egipto 1988 — Beatriz Berrini, Eça de Queirós. Palavra e Imagem A. Campos Matos, Dicionário de Eça de Queirós Vários (org. Isabel Pires de Lima), I Encontro Internacional de Queirosianos 1989 — Carlos Reis e M. do Rosário Milheiro, A Construção da Narrativa Queirosiana. O Espólio de Eça de Queirós 1990 — Vários, Eça e Os Maias. Cem Anos depois 1991 — Carlos Reis (dir.), Queirosiana (No 1). Revista da Associação dos Amigos de Eça de Queirós (Tormes-Baião) 1992 — Luís Fagundes Duarte, Edição Crítica de A Capital! 1993 — Luís Fagundes Duarte, A Fábrica dos Textos. Ensaios de Crítica Textual acerca de Eça de Queirós Beatriz Berrini, Edição Crítica de O Mandarim 1994 — Alan Freeland (org.), Eça de Queirós. Correspondência Consular

Annabela Rita, Da “Chronica” do Distrito de Évora às “Farpas”: a Conformação da Crónica Queirosiana 1996 — Frank de Sousa, O Segredo de Eça. Ideologia e Ambiguidade em A Cidade e as Serras 1997 — M. do Rosário Cunha, Molduras: Articulações Externas do Romance Queirosiano

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Carlos Reis, Eça de Queirós Cônsul de Portugal a Paris 1999 — Carlos Reis, Estudos Queirosianos 2000 — Carlos Reis e M. do Rosário Cunha, Edição Crítica de O Crime do Padre Amaro (2a e 3a versões) João Medina, Reler Eça de Queiróz. Das Farpas aos

Maias

Isabel Pires de Lima/Raul Rego (int. e x. texto), Eça de Queirós. A Emigração como Força Civilizadora A. Campos Matos, Suplemento ao Dicionário de Eça de

Queirós

Isabel Pires de Lima (dir.), Diversos livros de balanço bibliográ co e historiográ co inseridos na iniciativa “Entre Milénios: Pontos de Olhar” Carlos Reis, Texto do Catálogo da Exposição do I Centenário da Morte de Eça de Queirós: Eça de Queirós: A Escrita do Mundo

Carlos Reis, O Essencial sobre Eça de Queirós

Este Período Cientí co da historiogra a queirosiana caracteriza-se por atribuir um valor menor à relação (sempre ambígua) entre a vida e a obra de Eça Queirós que o atribuído pelo período anterior e, como consequência, por tratar os textos que compõem a obra deste autor com maior objectividade ou rigor cientí co. Como a rmou Carlos Reis, sintetizando o espírito deste período, “o escritor está na sua obra”2. Assim, neste período, libertando a obra de Eça do peso biográ co e das atribulações conjunturais e muito singulares da vida de Eça de Queirós, retrata-se a sua obra como um corpo coeso, um corpus literário, dotado de unidade estética, ainda que desdobrado em grupos de pregnâncias semânticas temporais (as fases), com uma carga adjectiva e adverbial própria e singularizadora.

Neste período existe, portanto, uma menor pesquisa sobre as “intenções” subjectivas de Eça e uma maior investigação sobre os textos objectivos em que se condensa a totalidade da sua obra. Como foi referido por Carlos Reis na abertura do II Encontro Internacional de Queirosianos, em Julho de 1992, “. . . o desenvolvimento

2 Carlos Reis, “O escritor está na obra”, entrevista de Rodrigues da Silva, in Jornal de Letras, Artes e Ideias, no 799, 9 de Agosto de 2000, p. 6.

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que os estudos literários conheceram nas três últimas décadas veio abrir perspectivas de trabalho insuspeitadas, motivo de continuada renovação e enriquecimento das leituras suscitadas pela obra queirosiana. Se, por um lado, esse desenvolvimento se traduziu na busca intensa (nalguns casos quase obsessiva) de instrumentos conceptuais rigorosos, por outro lado, ele permitiu uma activa diversi cação de hipóteses de trabalho, fundadas em especí cas opções metodológicas. Da estilística à sociologia literária, do estruturalismo à crítica genética, da comparatística à estética da recepção e às correntes pós-estruturalístas, múltiplas, diversas e, necessário é dizer, nem sempre concordantes foram as orientações metodológicas que inspiraram a análise da obra queirosiana”3 .

Permitimo-nos sintetizar em sete pontos as características mais importantes deste Período Cientí co, que, verdadeiramente, ainda estamos a viver, o conjunto das quais nos traça o quid distintivo deste período face aos dois períodos anteriores:

1. A obra de Eça de Queirós é analisada objectivamente, como um corpo textual, independente de intenções morais, sociais ou políticas do autor, aplicando-se a este corpus as diversas contribuições das ciências linguísticas e hermenêuticas; 2. Multiplicam-se os estudos parcelares, seja sobre temas de âmbito social (a mulher, a política, a gastronomia. . . ), seja comparando os diversos romances entre si, seja elaborando roteiros geográ cos dos sítios queirosianos (Verdemilho, Lisboa, Évora,

Leiria, Porto, Tormes. . . ), seja realçando os textos estéticos, os textos jornalísticos; seja fazendo inventários de traduções estrangeiras, de teses de mestrado e doutoramento, seja. . . ; 3. Publicam-se novas edições da obra de Eça, segundo critérios mais rigorosos (Helena Cidade Moura e a editora Livros do

Brasil), e inicia-se a publicação da edição crítica na editora Imprensa Nacional — Casa da Moeda, seguindo-se uma edição popular (Editora Presença) com base na edição crítica;

3 Carlos Reis, “Discurso de Abertura” do II Encontro Internacional Queirosiano, in Queirosiana. Revista de Estudos sobre Eça de Queirós e a sua Geração, Tormes/Baião, 1992, no 2, pp. 102-103.

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4. Publicam-se a primeira fotobiogra a de Eça (Beatriz Berrini) e o primeiro dicionário sobre Eça de Queirós (A. Campos Matos); 5. A obra de Eça de Queirós institucionaliza-se de nitivamente nos programas curriculares de Língua e Literatura Portuguesas no ensino secundário; 6. Organiza-se e publica-se em dois volumes a correspondência de Eça de Queirós (Guilherme de Castilho); 7. Como consagração popular, organiza-se a primeira grande exposição sobre a vida e obra de Eça de Queirós (Biblioteca Nacional, dir. Carlos Reis), modelo a partir do qual se compõem outras pequenas exposições que percorreram as bibliotecas do país.

Se, no Período de Balanço, o nome mais destacável da historiogra a queirosiana portuguesa é o de João Gaspar Simões, embora não possamos deixar de destacar o alto nível de inteligência hermenêutica do ensaio de Mário Sacramento, Eça de Queirós, Uma Estética da Ironia (1945), neste Período Cientí co, que, verdadeiramente, ainda estamos a viver, e no que diz respeito exclusivamente aos queirosianos não brasileiros, são de destacar seis nomes, cujos livros e cujas actividades têm constituído um valiosíssimo conhecimento para a obra de Eça de Queirós — por ordem cronológica do aparecimento das suas obras, Ernesto Guerra da Cal, Helena Cidade Moura (falecidos, por isso os elogiamos de seguida), Carlos Reis, Annabela Rita, Isabel Pires de Lima e A. Campos Matos.

Rompendo com inúmeros amadorismos literários, deveu-se a Ernesto Guerra da Cal a primeira grande análise cientí ca da obra de Eça de Queirós, Lengua y Estilo de Eça de Queiros, em 1954, republicada em 1975 com Apéndice. Bibliograf ía Queirociana Sistemática y Anotada e Iconograf ía Artística del Hombre y la Obra, em vários volumes publicados até meados da década de 80, bem como o levantamento da hipótese, em 1971, do estatuto narrativo de A Relíquia como pertencendo ao género pícaro. Para constatarmos como a obra de Ernesto Guerra da Cal trouxe um novo sentido de rigor à historiogra a queirosiana, basta comparar-se os antigos

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diversos estudos sobre o estilo de Eça de Queirós, por exemplo, o capítulo “A conquista do estilo” do livro Um Pobre Homem da Póvoa de Varzim, de Fidelino Figueiredo, com o monumental trabalho de E. Guerra da Cal na sua tese de doutoramento. Como se refere no In Memoriam a este autor, publicado, sem nome de autor, em Queirosiana, nos . 5/6, sobre os volumes da Bibliograf ía Queirociana: “. . . trabalho impressionante de erudição e rigor, constituído por cerca de 14 mil verbetes, abrangendo praticamente todos os domínios da vida, obra e fortuna cultural de Eça de Queirós: descrição minuciosa de bibliogra a activa e traduções, obra inédita e perdida, epistologra a, fontes biográ cas, fontes sobre a obra ccional e não ccional, aspectos da criação literária queirosiana (estilo, ironia, ideias, in uências, etc), relações geracionais, etc., etc.”4 .

Para além de ter traduzido para português a obra de Ernesto Guerra da Cal (1954), a Helena Cidade Moura se deve o rigor que, entre as décadas de 60 e 70, se imprimiu à nova edição das obras de Eça de Queirós publicadas na editora Livros do Brasil. Porque os restantes três nomes citados se encontram fortemente actuantes na e sobre a historiogra a queirosiana, coibimo-nos de fazer apreciações de mérito que pudessem, mesmo levemente, levantar suspeitas sobre hierarquias de valor. De tal tratará posteriormente a História da Literatura em geral e a história da literatura queirosiana em particular.

2. Relação entre os 3 Períodos da Historiogra a Queirosiana e a Publicação da Obra de Eça

Constatamos a existência de uma estreita relação entre a publicação da obra de Eça ao longo do século XX e os três períodos da historiogra a queirosiana. À medida que aquela se avoluma, se complexi ca e se ordena, esta sofre idêntico processo de crescimento quantitativo e qualitativo de comentários e comentadores, complexi cam-se os diversos temas e subtemas explorados e, nalmente, já no nal do século, a obra de Eça é submetida a uma ordenação rigorosa,

4 Sem autor, “In Memoriam”, in Queirosiana. Revista de Estudos sobre Eça de Queirós e a sua Geração, Tormes/Baião, 1993/1994, nos 5/6, p. 14.

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primeiro através da edição organizada por Helena Cidade Moura e, depois, a um nível hermenêutico superior, através da edição crítica.

Desenha-se, assim, ao longo deste século, uma ligação harmónica entre todos os múltiplos estudos queirosianos, seja quanto à relação entre a publicação da obra propriamente dita e a publicação de comentários, seja na relação entre o grau de exigência teórica destes e a fase de publicação da obra de Eça de Queirós. É justamente esta tese da existência de uma unidade harmónica entre os diversos períodos da publicação da obra de Eça e idênticos períodos da historiogra a queirosiana que tentaremos provar de seguida, evidenciando para tal um conjunto de três quadros cronológicos e temáticos esclarecedores:

Assim, ao Período Testemunhal da historiogra a queirosia-

na corresponde idêntico Período Testemunhal da edição das

obras de Eça de Queirós:

PERÍODO TESTEMUNHAL

1º sub-período: SEMI-PÓSTUMOS

1900 — Correspondência de Fradique Mendes A Ilustre Casa de Ramires 1901 — A Cidade e as Serras

2º sub-período: DISPERSOS

1902 — Contos 1903 — Prosas Bárbaras 1905 — Cartas de Inglaterra Ecos de Paris 1907 — Cartas Familiares e Bilhetes de Paris 1909 — Notas Contemporâneas 1912 — Últimas Páginas

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3º sub-período: PÓSTUMOS

1925 — Alves & Cia O Conde de Abranhos A Capital! Correspondência 1926 — O Egipto 1929 — Cartas Inéditas de Fradique Mendes e mais Páginas Esquecidas

Designamos por Testemunhal este primeiro período de publicação da obra de Eça porque, ao modo do período homónimo da historiogra a queirosiana, ele vive do testemunho de amigos, conhecidos e familiares que empiricamente regem a edição da obra dispersa e inédita até à década de 20, inclusive.

Dividimos este período em três sub-períodos. O primeiro, o dos Semi-Póstumos, correspondente a 1900 e 1901, signi ca que Eça ainda preparou parte da edição dos três livros referidos, tendo Júlio Brandão revisto a parte nal da Ilustre Casa de Ramires e Ramalho Ortigão a parte nal de A Cidade e as Serras. O sub-período de Dispersos corresponde à década entre 1902 e 1912, tendo Luís de Magalhães recolhido alguns originais mas, sobretudo, organizado o material disperso recolhido por Sampaio Bruno e João Barreira, e feito publicar vários livros que vão desde os contos de juventude da década de 60 até aos contos religiosos da década de 90, passando por alguma correspondência e por artigos e crónicas de imprensa.

O sub-período de publicação dos Póstumos corresponde aos anos de 1925 a 1929, quando, pela mão do lho, José Maria d’Eça de Queiroz, publicam-se três importantes romances inéditos e mais cartas de Fradique Mendes, o que, de certo modo, contribui para a reviviscência da importância de Eça na literatura portuguesa contemporânea. Os critérios que presidem a estas edições póstumas são empíricas, impressionistas e pessoais, como as edições críticas de Alves & Cia e A Capital! nos permitem hoje aquilatar.

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PERÍODO de BALANÇO

1940 — Novas Cartas Inéditas de Eça de Queiroz a Ramalho Ortigão 1944 — Crónicas de Londres 1945 — Cartas de Eça de Queiroz 1949 — Eça de Queiroz entre os Seus

Década de 40 — Republicação da obra de Eça pela Lello & Irmão com a designação de “Edição do Centenário”

O Período de Balanço corresponde a idêntico período de

Balanço na historiogra a queirosiana. Marcado pelas comemorações do centenário do seu nascimento, a Lello & Irmão, editora descendente da Casa Chardron, em que Eça publicara alguns dos seus livros em vida, publica a “Obra Completa”, dita “Edição do Centenário”, que servirá de suporte bibliográ co e de referência a inúmeros comentários e biogra as que ao longo destas décadas se publicam sobre a vida e a obra de Eça de Queirós.

PERÍODO CIENTÍFICO

1958 — Obra Completa de Eça de Queirós em 3 volumes (Lello & Irmão) 1961 — Cartas de Eça de Queirós aos seus Editores Genelioux e Lugan (1887 – 1994) 1966 — Eça de Queirós e Batalha Reis (Cartas e Recordações do seu Convívio) Folhas Soltas

Década de 70 — Publicação da obra de Eça pela editora Livros do Brasil; publicação dirigida por Helena Cidade Moura 1980 — Tragédia da Rua das Flores (Livros do Brasil e Morais Editores) 1983 — Correspondência (ed. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, dir. Guilherme de de Castilho) 1986 — IV volume da Obra Completa de Eça de Queirós (Lello & Irmão)

Década de 90 — Início da publicação da edição crítica da obra de Eça de Queirós dirigida por Carlos Reis

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O Período Cientí co, ocupando toda a segunda metade do século XX, correspondente a idêntico período na historiogra-

a queirosiana, re ecte um notável aprofundamento de rigor na edição da obra de Eça de Queirós. Com a perda da exclusividade dos direitos de autor pela Lello & Irmão, estes passam para a família. Esta, por sua vez, faz publicar a totalidade da obra de Eça na editora Livros do Brasil (década de 70) que, sob a direcção de Helena Cidade Moura, procede a um notável trabalho comparativo da obra publicada com os manuscritos disponíveis.

E é justamente porque o espírito editorial já não é empírico nem impressionista que a edição póstuma da Tragédia da Rua das Flores, em 1980, quando os direitos de autor sobre a obra de Eça caíram em domínio público, nas editoras Morais e Livros do Brasil gerou uma acesa polémica sobre os critérios de edição.

Com a publicação das obras de Eça em Edição Crítica, na Imprensa Nacional – Casa da Moeda, editora estatal portuguesa, com a participação de especialistas queirosianos portugueses e brasileiros, dá-se o ponto nal do rigor cientí co e editorial no tratamento dos livros de Eça depois de um longo arco temporal e editorial (cerca de 100 anos) governado por algum amadorismo.

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Da crónica (queirosiana & outra)

Annabela Rita

Folheando, mesmo descontraidamente, a imprensa oitocentista até à década de 70, apercebemo-nos da instabilidade da crónica.

Atentando nela, veri camos tratar-se de uma secção jornalística que hesita entre intitular-se simplesmente ‘crónica’ ou especi car a sua temática (‘do teatro’, ‘da literatura’, ‘da arte’, etc.), que se move na 1ª página do jornal (coluna de abertura, no centro ou espraiando-se horizontalmente na base da página), ou entre ela e a 3ª página, concluindo-se, às vezes, mais para o interior, que oscila entre informar, comentar, criticar, re ectir, efabular ou procurar combinar tudo isso, que vai assumindo diferentes objectos, que, ora vai seleccionando leitores diferentes, ora aceita os do seu jornal, etc..

Trata-se de um tempo de aventura, de uma aventura de que não reza a crónica, embora ocasionalmente a denuncie: a da busca da sua própria identidade discursiva. Procurando-a entre Literatura e Jornalismo e, neste, entre ‘folhetim’, ‘crítica’, ‘conto’, etc.. Confronta-se arrojadamente com eles, anelante daquilo que neles a seduz e desejando seduzir leitores, conquistar reconhecimento, manter um diálogo que vivi que e teça de continuidade a pontualidade das suas ocorrências.

Nessa sua deambulação instável, a secção ‘crónica’ tendeu progressivamente a tornar-se lugar de um discurso breve sobre alguma coisa da actualidade, fosse o que fosse, assumindo tudo como pretexto para um comentário pessoalizado, reivindicadamente autoral, rmando-se na personalidade, em geral literária, de quem a escrevia, mas sempre insinuando aqui e além um gesto de auto-designação majestático signi cativo da consciência de si e da sua ambição

de dominar o cronista: ‘A crónica, hoje, quer falar de. . . ’.

Foi nessa deriva que a crónica se deixou surpreender e conquistar, por seu turno, pelo projecto da Geração de 70, projecto esse que se de niu e formalizou aquando das Conferências do Casino (1871): o projecto de intervenção político-cultural, de educação do povo, pelo esclarecimento do seu aqui e agora, generoso e sedutor, arregimentou a crónica e atribuiu-lhe uma missão que ela assumiu com entusiasmo e humor. E essa missão, interiorizada, fê-la amadurecer, de nir-se genologicamente, constituir-se como crónica mais ou menos como hoje a (re)conhecemos.

No meu estudo Eça de Queirós Cronista — do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72) (Lisboa, Edições Cosmos, 1998; 2ª ed. rev., Lisboa, Gradiva, 2017), procurei observar e descrever com pormenor este fenómeno na escrita queirosiana, fenómeno que a excede e a inscreve no seu epicentro. Remeto, pois, para o que lá observei e re ecti, fazendo aqui apenas o apontamento breve e esquemático do que me parece caracterizar esse texto que a actualidade nos impõe, multiplicando-o às vezes na mesma publicação com diferentes autorias e seriando-o, arriscando também uma explicação para isso.

No exercício das suas novas funções, a escrita cronística procura conciliar o seu ímpeto de análise crítica, a sua tentação criativa e o seu objectivo pedagógico. Quis manter dois tipos de leitores, com exigências diferentes: o par do seu autor e aquele a (in)formar. Conciliar tudo isso e cazmente exigiu uma estratégia muito hábil, diplomática mesmo, que talvez se possa exprimir pela manipulação imaginativa.

Segura de que a única forma e caz de analisar, criticar e de ensinar a fazer tudo isso passa por convencer empática e racionalmente o seu leitor (qualquer deles), a escrita cronística manipula-lhe a atenção de modo a não lhe deixar qualquer disponibilidade para olhar para o lado, para pensar à margem, para perspectivar diversamente.

Em primeiro lugar, ela parodia o real, ou seja, coloca lado a lado duas imagens: a do real, da informação (garantia de dedignidade), e a da sua perspectiva dele, que o interpreta, ampli cando-o, caricaturando-o, parabolizando-o, personi cando-o, encenando-

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-o, efabulando-o, etc.. Contrastando entre si, mesmo tornando aceitável a sua correspondência, elas fazem-se ponderar pelo leitor: não se excluem, conjugam-se, até para melhor evidenciarem a criatividade da cronística.

Em segundo lugar, a escrita cronística, desejando persuadir o leitor de que lhe revela ce qui va de soi, o evidente e inquestionável, o incontornável, aceita a lição da literatura oral e tradicional e assume e manipula as suas guras mais indutoras: o paralelismo, a repetição com ou sem variação, a brevidade, os crescendos, etc.. Fazendo-o, ela exibe-se como corpo: texto geometrizado pela renda tecida por essas guras, organizado por elas (dispositio).

E estas três imagens mencionadas fantasmizam-se, interferem umas nas outras, roubando ao leitor qualquer disponibilidade mental para outra, mesmo que fosse sua: cada uma faz ver as outras, criando-se transparências e des-coincidências que a psicologia da percepção a rma irresistivelmente manipuladoras da atenção.

A título de exemplo, e seleccionando uma crónica um pouco ao acaso, recordo uma farpa queirosiana de Janeiro de 1872 na sua versão de Uma Campanha Alegre, apenas para esclarecer e concretizar o que tenho vindo a a rmar:

“O Sr. Luciano, chefe da oposição, fez no relatório, que precede o seu projecto de Reforma Administrativa, uma exposição sombria da administração do País. Aí confessa que acabou a fé política e a dignidade política; que não existem partidos com ideias, mas facções com invejas; que o País está desorganizado e entregue ao abandono; que cada reforma cai sucessivamente com cada Governo; que as leis são um aparato de eloquência parlamentar e não uma e cácia de organização civil. . . En m — que o País chegou à última decadência administrativa. Registemos esta preciosa declaração do chefe da oposição. Vamos guardá-la, como uma jóia — em algodão. O Sr. Sampaio, ministro do Reino, no relatório do seu projecto de Reforma Administrativa, declara que a Administração, como está, é uma confusão vergonhosa, uma desorganização funesta, um abandono mortal. . . En m — que o País chegou à última decadência administrativa. Registemos esta con ssão sincera do sr. Ministro do Reino. Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.

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Resultado: o ministro do Reino e o chefe da oposição declaram o cialmente o País num estado deplorável de administração.

Ora nem a reforma do Sr. Luciano se efectuará, nem a reforma do Sr. Sampaio se realizará. De tal sorte, que resta? Que estamos num abominável estado de administração — segundo confessa o Governo e segundo confessa a oposição: e que camos nesse estado!

É risonho.”

Texto tripartido, o paralelismo expositivo reforça na crónica a equivalência entre as variantes discursivas e entre as duas primeiras partes, equivalência que a terceira parte vem rea rmar. Fazendo-o, também baliza entre os dois extremos possíveis (o ministro do Reino e o chefe da oposição) a observação do cronista, ao mesmo tempo que abre aí, entre eles, espaço para a observação do próprio leitor a realizar-se de acordo com o esquema que os dois enunciados formalizam: o texto abre-se pedagogicamente ao investimento de leitura, como estrutura desdobrável, multiplicável, adquirindo profundidade com a sugestão desse seu fantasma. A terceira parte, evocando o raciocínio aritmético, ainda mais convincente torna o que a redundância já tornara aceitável, criando, em simultâneo, o efeito da relação cognoscente entre o caso (observação) e a lei (conclusão), o exemplo e a regra, a realidade e a sua interpretação.

Nessa malha textual que apela ao investimento de leitura para o preenchimento do espaço dedicado a esse exercício discursivamente modelizado e modelizador do conhecimento do real, cada variante, além de remeter o leitor para o real, obrigando-o a recordá-lo, constitui uma imagem de apelo imaginativo irresistível: ‘Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.’ e ‘Vamos guardá-la, como um bicho precioso — em espírito de vinho.’ são comparações inesperadas, surpreendendo e criando um efeito de exotismo, comparações que, por sua vez, se confrontam no plano da imaginação do leitor.

Oscilando entre um movimento lateralizante do pensamento, pelo qual evoca, imagina e confronta, relacionando textual e real ou apenas ponderando as imagens textuais, e o movimento vertical a que o obriga o curso da malha textual, o leitor não consegue o mínimo de distanciamento que lhe permita um raciocínio ou uma visão diferente: se o primeiro movimento o surpreende a cada imagem e

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o faz deter-se para a ponderar, o outro arrasta-o para a reprodução dessa imagem com lúdica variação.

Basta este exemplo para esclarecer as minhas a rmações, mesmo sabendo que a cronística queirosiana é apenas um caso da cronística em geral: a sua lição informou e formou o texto da crónica moderna tal como ela se nos impôs. Não tive, pois, a preocupação de trazer à vossa atenção um texto-modelo (nem a sua primeira versão), mas tão só, e estrategicamente, um exemplo signi cativo e dos mais breves, onde a concentração textual evidencia a elaboração retórica de que tenho vindo a falar.

Neste sentido, a escrita cronística oitocentista revelou-se, a um tempo, exibicionista e subtil: concentrando na brevidade textual a expansão e profundidade imaginativas (multiplicação e sobreposição de planos, de imagens). Curiosamente, na sua constituição genológica, a crónica antecipa as Seis Propostas para o Próximo Milénio, de Italo Calvino: leveza, rapidez, exactidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. Daí, talvez, a sua vitalidade actual e, previsivelmente, futura. . .

“De Port Said a Suez”

Por iniciativa do diplomata e empresário francês Ferdinand de Lesseps, o canal do Suez foi construído com 164 Kms durante 10 anos (1859-69) e c. de um milhão de egípcios. Uma das vias marítimas mais importantes do mundo, via de encontro entre o Ocidente e o Oriente, retomando a ideia do faraó Sesostris III c. de 4000 anos antes, que promoveu a ligação e a sua utilização com interrupções até ao século VIII, tendo sido abandonado devido ao custo dos desassoreamentos que exigia.

Com 23 anos de idade apenas, Eça viveu uma experiência simbolicamente decisiva: a inauguração da ligação entre Port Said, no Mar Mediterrâneo, e Suez, no Mar Vermelho. No seu regresso a Lisboa, contou a experiência ao Diário de Notícias, que lhe publicou a colaboração em Janeiro de 18701. Um texto que tem oscilado entre diversas classi cações na genologia da imprensa.

1 Reprodução da série queirosiana do Diário de Notícias de 18, 19, 20 e 21/Janeiro/1870 em: http://www.arqnet.pt/portal/pessoais/eca_suez.html. Eça de Quei-

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O Diário de Notícias n.o 1507 (3.a feira, 18/1/1870), dois meses depois dos acontecimentos, publicava os 2 ‘folhetins’ de Eça de Queirós (cada um deles subdividido em 2 partes), a rmando:

“Começamos a dar hoje uma interessante descrição das festas de Suez, feita pelo Sr. Eça de Queirós, um dos únicos quatro ou cinco portugueses que a elas assistiram”.

E a série (Diário de Notícias de 18, 19, 20 e 21/Janeiro/1870); abre com a declaração de intenções de Eça ao redactor do jornal:

“Acedo da mais perfeita vontade ao seu desejo de ter a história real das festas de Suez. Conto-lhe, porém, simplesmente e descarnadamente, o que me cou na memória daqueles dias confusos e cheios de factos: tanto mais que as festas de Suez estão para mim entre duas recordações — o Cairo e Jerusalém: estão abafadas, escurecidas por estas duas luminosas e poderosas impressões: estão como pode estar um desenho linear a lápis, entre uma tela resplandecente de Decamps, o pintor do Alcorão, e uma tela mortuária de Delaroche, o pintor do Evangelho. Talvez em breve diga o que é o Cairo e o que é Jerusalém na sua crua e positiva realidade, se Deus consentir que eu escreva o que vi na terra dos seus profetas. Hoje, faço-lhe apenas a narração trivial, o relatório chato das festas de Port Said, Ismailia e Suez.”

Ora, trata-se de um projecto, desde logo, contraditório: a “narração trivial” e o “relatório chato” não podem corresponder a “o que [lhe] cou a memória”, que é sempre o que se destaca e evidencia pela sua singularidade, uma vez que a memória é eminentemente selectiva. Para além disso, a memória é também reelaboradora: não xa apenas, não regista só, mas transforma.

rós, “De Port-Said a Suez”, Diário de Notícias, 6.º Ano, n.º 1507-1510, 18 a 21 de Janeiro de 1870; “De Port-Said a Suez (Carta sobre a inauguração do Canal de Suez)”, in Notas Contemporâneas, Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, Editores, 1909, pp. 1 a 26 [1.ª edição em livro das crónicas sobre a inauguração do canal de Suez]; “De Port Said a Suez, 1870”, in Notas Contemporâneas, Lisboa, Livros do Brasil (“Obras de Eça de Queiroz”), 1970 ( xação do texto e notas de Helena Cidade Moura). Maria Filomena Mónica, Eça de Queirós, Lisboa, Quetzal Editores, 2001.

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Será este singular e notável inscrito na memória, de facto, que reconduzirá a um alegado “desenho linear a lápis”, entre uma “tela resplandecente” (Decamps, 1803-1860), e uma “tela mortuária” (Delaroche, 1797-1856): eis o trabalho sobre o pormenor (seja ele panorâmico e impressionista, ou de seccionamento anunciando o fragmentarismo) com referência aos modelos estéticos, neste caso, da pintura, a analogia mais tradicional nas humanidades, esse ut pictura poesis horaciano que Eça ultrapassará n’ As Farpas (1971-72), preferindo-lhe a opereta o enbachiana consagradora do riso como loso a. . .

O tédio da viagem pouco o ocupará, como veremos, pois o seu olhar é hipnoticamente atraído pelo diferente, assinalando a adversativa a ruptura, a descontinuidade que absorverá a letra queirosiana, promovendo o discurso uma composição de assemblage2, com uma reunião de fragmentos do diverso que, por si só, provoca o estranhamento de cada parte e do todo:

“Mas naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos urras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de âmulas, de arcos, de ores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspecto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os yachts dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a

“Aigle”, com a imperatriz, o “Mamoudeb” com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José, até ao caide árabe Abd el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro. Em todos os navios, empavesados e cheios de pavilhões, a marinhagem, per lada nas vergas, saudava com vastos urras. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos escaleres, a remos, a vapor, à vela; almirantes com os seus pavilhões, o cialidades todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e apopléc2 Termo proposto pelo pintor e gravador francês Jean Dubu et em 1953, e usado já na exposição The Art of Assemblage, no Museu de Arte Moderna — MoMA — de Nova York em 1961.

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ticos, viajantes com os chapéus cobertos de véus e cou és, cruzavam-se ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos Árabes, apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas riscadas de azul. Sobre tudo isto o céu do Egipto, de uma cor, de uma profundidade in nita. À noite a cidade iluminava-se, enchia-se de músicas e festas populares. As esquadras tinham as suas armações e cordagens cobertas de os de luz. Durante toda a noite os fogos de artifício, numa grande linha de terra, faziam, sobre o céu escuro, um grande bordado luminoso.” (itálico meu)

Sendo 1870 o momento da celebração desse simbólico diálogo entre Ocidente e Oriente que Alexandre-Gabriel Decamps evoca através de Eça, é, também, a fase de profunda transformação da escrita queirosiana: entre O Distrito d’Évora (1867) e As Farpas (1871-72), assiste-se a uma revolução da poética do nosso autor, particularmente, na crónica, revolução aquecida pelo fogo prometeico do projecto da Geração de 70. E estamos a perspectivar a génese da crónica queirosiana na imprensa oitocentista, epicentrada entre Jornalismo e Literatura.

Da poeira das velhas crónicas à vibrante imprensa oitocentista, que viagem de longo curso! A mais velha antecessora era a cronística dos Reis, depois, a do Reino. . . Na imprensa, os anos 40 e 50 oferecem-no-la como secção jornalística em jeito de coluna que nos informa sobre a vida do Paço, a meteorologia, notícias mais destacadas. Transita na página, mistura-se e confunde-se com outras secções (Folhetim, etc.). . . A escrita do tempo no seu quotidiano. Depois, passará a subtítulo essa indicação de historiográ co objectivo (mesmo que ccional, como acontece com Garrett, Júlio Dinis, Eça, etc.). A escrita do tempo depois dele. . .

Até à década de 70, a imprensa oitocentista portuguesa evidencia, pois, a imensa instabilidade do que hoje designamos crónica. Ao longo do tempo e na sua ocorrência, hesita entre intitular-se simplesmente ‘chronica’ ou especi car a sua temática (‘do teatro’, ‘da literatura’, ‘da arte’, etc.), move-se na 1a página do jornal (coluna de abertura, no centro ou espraiando-se horizontalmente na base da página), ou entre ela e a 3a página, concluindo-se, às vezes, mais para o interior, que oscila entre informar, comentar, criticar, re ectir, efabular ou procurar combinar tudo isso, que vai assumindo di-

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ferentes objectos, que, ora vai seleccionando leitores diferentes, ora aceita os do seu jornal, etc..

E o jornalismo em que se inscreve a crónica começa a ser assumidamente vectoriado por um programa de acção. Eça de Queirós, p. ex., na abertura do número inaugural d’O Distrito d’Évora, de 6 de Janeiro de 1867, assume um ideário que é geracional e que acabará por informar o seu verbo literário também:

“É o grande dever do jornalismo fazer conhecer o estado das coisas públicas, ensinar ao povo os seus direitos e as garantias da sua segurança, estar atento às atitudes que toma a política estrangeira, protestar com justa violência contra os actos culposos, frouxos, nocivos, velar pelo poder interior da pátria, pela grandeza moral, intelectual e material em presença de outras nações, pelo progresso que fazem os espíritos, pela conservação da justiça, pelo respeito do direito, da família, do trabalho, pelo melhoramento das classes infelizes.”3

Como diz Campos Matos,

“De ne funções e potencialidades do jornal: estabelece os objectivos e deveres primordiais de um órgão de imprensa, apresenta as características desta actividade, traça as linhas mestras que deveriam pautar o comportamento do jornalista. Os deveres fundamentais para assegurar as principais funções da imprensa são informar, interpretar e também intervir para esclarecer e guiar os espíritos e os governos, desempenhando papel de capital importância na vida política, moral, religiosa, literária e industrial do país.”4

Em “De Port Said a Suez”, nessa celebração em folhetim-crónica do encontro entre Oriente e Ocidente, veremos cindir-se a geometria imaginária da escrita queirosiana entre diferentes espaços ou cenas:

“Ao outro dia os navios começaram a mover-se lentamente, voltando a proa para um ponto da baía de Port Said, onde se 3 Eça de Queirós, O Distrito de Évora, n.o 1, dia 6 de Janeiro de 1867, p. 1. 4 A. Campos Matos (org. e coordenação), Dicionário de Eça de Queirós, Lisboa, Ed. Caminho, 1988, p. 210.

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erguiam, como os dois umbrais de uma porta, dois obeliscos de madeira vermelhos. Era a entrada do canal de Suez. Entretanto corriam por todos os navios estranhos boatos.”5

Três cenas atraindo a atenção do leitor e concorrendo entre si por ela em função do que a fenomenologia do olhar designa pela “rivalidade do contorno”: o visível (o movimento dos navios no canal), o comentado (deslizamento comparativo entre o visível e o evocado) e os bastidores (a escuta dos rumores). Eis-nos perante a génese do processo de espectaculatização que Eça desenvolverá sob o signo o enbachiano n’As Farpas (1871-72).

Trata-se de uma geometria espacial imaginária que Eça reconduzirá ao modelo da sua escrita: O enbach, Jacques O enbach (1819-1880), autor de Orfeu no Inferno, onde o cancan adquiriu fama, e de tantas operetas que zeram furor nos palcos da época, como é o caso de La Belle Hélène, La Vie Parisienne, La Grande-duchesse de Gérolstein e La Princesse de Trébizonde, com alguns motivos que iremos reconhecendo na cção queirosiana, como é o caso da “Carta Roubada”, que atravessa O Primo Basílio. Opereta cujo objectivo principal e imediato é o riso, que o nosso autor considera “uma loso a”, pois cria distância crítica e promove a re exão num segundo tempo.

5 Diário de Notícias de 18 de Janeiro de 1870. Cf. referências atrás.

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