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Os lustres estão acesos. (EQ)III

Parte III

Os lustres estão acesos. (EQ)

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Imagens em movimento

Annabela Rita1

Spectre, re et, double ou sosie continuent d’entretenir, non plus la terreur, mais un tenace halo d’équivoque. Comme si l’incertain statut de l’image n’en nissait pas de faire vaciller nos plus hautes certitudes. Qu’elles soulagent ou ensauvagent, qu’elles émerveillent ou ensorcellent, manuelles ou mécaniques, xes, animées, en noir et blanc, en couleurs, muettes, parlantes c’est un fait avéré, depuis quelques dizaines de milliers d’années, que les images font agir et réagir. Certaines, qu’on appelle ‘œuvres d’art’, se donnent complaisamment à contempler, mais cette contemplation ne détache pas du ‘drame de la volonté’, comme le voulait Schopenhauer, parce que les effets d’images sont souvent dramatiques. Mais si nos images ont barre sur nous, si elles sont par nature en puissance de quelque chose d’autre qu’une simple perception, leur capacité aura, prestige ou rayonnement change avec le temps. Nous voudrions interroger ce pouvoir, repérer ses métamorphoses et ses points de rupture. L’histoire de ‘art’ doit ici s’e acer devant l’histoire de ce qui l’a rendu possible le regard que nous posons sur les choses qui représentent d’autres choses. Histoire pleine de bruit et de fureur, parfois racontée par des idiots, mais toujours lourde de sens. Rien n’y est joué d’avance, car l’emprise qu’ont sur nous nos gures varie avec le champ de gravitation où les inscrit notre œil collectif, cet inconscient partagé qui modi e ses projections au gré de nos techniques de représentation. /. . . / Ou comment le monde se donne à voir à ceux qui le regardent sans y penser. 1 Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).

La source n’est pas l’essence, et le devenir importe. Mais toute chose obscure s’éclaire à ses archaïsmes. Du substantif archè, signi ant à la fois raison d’être et commencement. Qui recule dans le temps avance en connaissance. Ce voyage aux sources de l’image, commençons-le avec les moyens du bord: nos pauvres yeux, nos pauvres mots Regis Debray, Vie et Mort de l’image (1992)

As Conferências do Casino, em 1871, foram ocasião para um grupo se unir em torno de um programa estético e de acção que enunciou clara e inequivocamente, programa de que lhe adveio uma identidade e que, depois, lhe justi cou a nomeação: a Geração de 70. Diversas foram as idades, as origens, as experiências, as tendências, as opções e os percursos existenciais, mas a proclamação desse ideário juntou-os e garantiu-lhes cumplicidade. Eça de Queirós desenvolveu a sua obra de acordo com as coordenadas mais óbvias desse programa, facto que lhe confere um efeito de coerência e de redundância lógica, mas a ironia que lhe informa o discurso confere-lhe uma singular dimensão paródica, insinua nela a imprevisibilidade sedutora, a complexidade estética, o ludismo.

Que o projecto realista de observação e de análise sistemáticas do Portugal da época motiva e informa a escrita queirosiana é visível, quer na cronística, quer no romance2. No primeiro caso, lembro o título de uma longa crónica com que colaborou no primeiro volume de As Farpas (1871/1872), lançando, com Ramalho, as bases da série periódica, crónica com que abriu a sua recolha Uma Campanha Alegre, cerca de vinte anos mais tarde: “Estado social de Portugal em 1871”. No segundo caso, recordo o projecto, seis anos depois, do seu políptico queirosiano “Cenas da Vida Real” ou “Cenas Portuguesas”3, anunciado na contra-capa de As Farpas de Janeiro de 1878 (3a série, I tomo):

2 Sobre o modo como o faz e a evolução da sua cronística, seu ‘laboratório’ de escrita, remeto para o meu estudo Eça de Queirós Cronista — do Distrito de Évora (1867) às Farpas (1871-72), Lisboa, Edições Cosmos, 1998; 2a ed., Lisboa, Gradiva, 2017. 3 Eça apresentou-o assim ao seu editor:

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“CENAS PORTUGUESAS As cenas portuguesas são uma série de 12 estudos sobre a vida contemporânea em Portugal. Cada romance tem uma acção própria e um desenvolvimento próprio, mas os 12 volumes formam no seu todo uma análise geral da moderna sociedade portuguesa. Os volumes são publicados mensalmente e constam de 200 páginas cada um. Estão em preparação:

I A capital II O milagre de Vale de Roriz III O conspirador Matias.”

Tal projecto acabou por ter duas consequências incontornáveis no desenvolvimento da obra do autor e no seu xadrez: na escrita cronística e na relação que ela manterá com a romanesca. Vejamos, em síntese, cada uma delas.

Comecemos pela cronística, mais rigorosamente, pela conformação da crónica4 .

Na “Chronica” d’O Distrito de Évora (1867), caracteriza-a do seguinte modo:

“A crónica é como que a conversa íntima, indolente, desleixada, do jornal com os que lêem: conta mil coisas sem sistema, sem nexo: espalha-se livremente pela natureza, pela vida, pela literatura, pela cidade: fala das festas, dos bailes, dos teatros, das modas, dos enfeites: fala em tudo baixinho, como se faz ao serão ao brazeiro, ou ainda de verão, no campo, quando o ar está triste: ela sabe anedotas, segredos, histórias de amores,

“Eu tenho uma ideia, que penso daria excelente resultado. É uma colecção de pequenos romances, não excedendo de 180 a 200 páginas, que fosse a pintura da vida contemporânea em Portugal: Lisboa, Porto, províncias, políticos, negociantes, dalgos, jogadores, advogados, médicos, todas as classes, todos os costumes entrariam nesta galeria.

A coisa chamar-se-ia Cenas da Vida Real ou qualquer outro título genérico mais pitoresco.”. Cit. por António José Barreiros, História da Literatura Portuguesa (XIX-XX), 12a ed. revista e actualizada, Braga, PAX, s.d. [1989]. 4 Cf. Annabela Rita, Eça de Queirós Cronista. Do “Distrito d’Évora” (1867) às “Farpas” (1871-72), Lisboa, Cosmos, 1998.

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crimes terríveis: espreita, porque não lhe ca mal espreitar. Olha para tudo, umas vezes, melancolicamente, como faz a lua, outras vezes, alegre e robustamente, como faz o sol: a crónica tem uma doidice jovial, tem um estouvamento delicioso: confunde tudo, tristezas e facécias, enterros e actores ambulantes, um poema moderno e o pé da imperatriz da China: ela conta tudo o que pode interessar pelo espírito, pela beleza, pela mocidade; ela não tem opiniões, não sabe do resto do jornal; está aqui, nas suas colunas, cantando, rindo, palrando; não tem a voz grossa da política, nem a voz indolente do poeta, nem a voz doutoral do crítico: tem uma pequena voz serena, leve, clara com que conta aos amigos tudo o que andou ouvindo, perguntando, esmiuçando.”5

Isto basta para percebermos que, se, por um lado, a crónica reivindica independência em relação ao espaço onde gra camente se inscreve, independência que a coloca entre jornalismo e literatura, por outro lado, ela ainda parece estar em busca de uma identidade textual, genológica, busca que a faz recorrer sistematicamente à comparação (e ao confronto, quando o outro termo são as outras secções do jornal) para se de nir ao leitor, ao mesmo tempo que assume como modelo a conversa (seduzindo e desintimidando por isso, além de tudo poder tratar). Não esqueçamos que a “Chronica” do Distrito de Évora constituía um jornal dentro do jornal, uma secção do jornal ao lado de outras como “Critica de literatura e de arte”, “Revista crítica dos jornais”, “Ciências históricas”, “Ciências económicas”, “Interesse provincial”, etc., secção que o representava abreviadamente: a fragmentos que se sucediam entrelaçando a notícia, o comentário, a nota lúdica, o agradecimento, etc. seguiam-se subsecções intituladas, por sua vez, “crimes e delitos”, “movimento do gado. . . ”, “proclamas de casamento”, “obituário”, etc., tendendo algumas delas a emancipar-se desse corpo polimorfo e a constituir-se depois em secções. Nesse jornal dentro do jornal, o olhar queirosiano ainda percorria aleatoriamente o real, procurando dizer-lhe o quotidiano, descrever-lhe o presente, cumprindo a vocação que a sua própria etimologia lhe incutia.

5 Distrito d’Évora (1), Évora, 6 de Janeiro de 1867, p. 3, col. 1.

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Com As Farpas (1871/1872), e sob o impulso do programa da Geração de 70 que as Conferências do Casino proclamaram, a crónica de ne a sua identidade, a sua personalidade genológica.

O projecto realista de nido nas Conferências orientou esse olhar no sentido da busca da imagem mais signi cativa e expressiva da compreensão desse mesmo real, o encontro entre ambos foi um casamento que as Farpas consagraram em texto coeso e que a escrita queirosiana passou a viver plenamente. À fase da cronística fragmentária e heterogénea informada por um olhar inquiridor e ávido, mas incerto e inseguro de critérios, que percorre e faz folhear o real, segue-se a de um olhar ponderado que se detém num objecto desse real e que nos faz considerá-lo num texto também já estruturado e depurado, centrado nesse objecto e circunscrito nos seus limites, olhar que, irresistivelmente preso ao objecto tal como no-lo apresenta na crónica, o conduzirá ao romanesco.

Por implicação, registo uma direccionalidade argumentativa que se exprime num movimento mental e criativo de sistemática especi cação, concretização e exempli cação que a cção encena. Dois exemplos ao serviço desta tese: a relação entre a primeira e longa farpa e as restantes; a relação entre a série e algum romanesco, com destaque para O Primo Basílio (1878), dentre outros.

Na farpa I, a meio de um levantamento de vários aspectos da situação do país, uma presença faz-se sentir espectacularmente, não se deixando ver, em jeito de Hitchock:

“E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro. Pagou — já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Pagam os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga

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tudo, paga para tudo. Em recompensa, dão-lhe uma farsa. No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez. . . — Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam./. . . /”6

Ora, sensivelmente na abertura da farpa, o cronista (a dupla Eça e Ramalho), convidara:

“Aproxima-te um pouco de nós, e vê.”7

Com as farpas, portanto, o espaço do real fragmenta-se em 3 áreas: a do observador, a do observado e a da observação.

Para a primeira área, o cronista procura conquistar, através do riso e da espectacularidade, a cumplicidade do leitor-espectador até aí indiferente.

A segunda área é a do país encarado nos seus diferentes aspectos, realidade a analisar sistematicamente. Em rigor, conjugam-se aqui duas imagens: a da informação e a da sua elaboração. Aquela é comentada por esta, que a interpreta, ampli cando-a, caricaturando-a, personi cando-a ou simplesmente animizando-a, parabolizando-a, efabulando-a, etc.. E, apesar de a crónica nos fornecer a segunda imagem, permite perceber com nitidez os contornos de ambas, distinguir o factual do interpretativo e comentativo: de um aos outros, há uma trajectória intelectiva que se deseja tornar clara para o leitor, como se o texto também zesse ver à sua margem, ao seu lado.

Quanto à terceira área em que as farpas fragmentam o real, a da observação, é a que a crónica materializa e modeliza em jeito de lente, impondo-se ela própria como objecto a observar.

6 Uma Campanha Alegre, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp. 16-17. Para comodidade do leitor e porque as variantes não reduzem a validade das minhas observações, evitei citar aqui da versão original, de difícil acesso. 7 Op. cit., p. 9.

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Nas farpas, vemos, pois, a escrita cronística conjugar os recursos retóricos mais simples (a comparação, o paralelismo, a repetição, a hipérbole, etc.) para modelizar a análise do real e a sua identidade textual, manipulando e monopolizando o olhar do leitor.

Daí um texto cuja evidência (do procedimento analítico e da sua estruturação) lhe garante uma natureza a um tempo pedagógica e teatral: trata-se de um texto que demonstra como ler o real, apresentando-o em jeito de episódio teatral (faz ver de determinada maneira) e geometrizando-se de modo a também se fazer observar, esteticizando-se.

E, se o desejo de observação e análise para um público alargado promoveu esta conformação da crónica queirosiana, motivou, igualmente, uma abundante produção cronística, dessa escrita que procurava comentar quase tudo para o maior número possível.

Quanto à segunda consequência desse projecto realista, lógica e natural, consistiu ela na centralidade da cronística no conjunto da obra queirosiana, centralidade que contraria uma certa secundarização a que tem sido votada, visível na simples ponderação da bibliogra a crítica do autor, secundarização que pode entender-se no quadro de uma tendência tradicional de hierarquização genológica e de uma inexistente re exão sistemática sobre a crónica em geral, texto, aliás, de acesso nem sempre fácil, maioritariamente disperso em periódicos. Acresce a estas di culdades o hibridismo especí co da crónica oitocentista da autoria de escritores, texto cuja natureza participa da literatura, mas não pode alhear-se em absoluto do jornalismo, onde se hospeda.

Eça cultiva a crónica, quer por ser ela o espaço de eleição para observar sistematicamente a realidade, desmontando-a em partes/elementos que pondera caso a caso (tratava-se de rentabilizar e de materializar essa actividade), quer pelo facto de a sua brevidade favorecer a experimentação de processos de escrita e, até, a fácil veri cação dos seus efeitos (no texto e no público). Em suma, para Eça, a cronística constituiu um excelente laboratório (sic) de escrita.

Daí a circulação de temas, motivos e guras ( ccionais e retóricas) na obra queirosiana, da cronística para a cção. Certo repertório de ideias, de temas e de recursos retóricos, assim como algu-

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mas guras da galeria de personagens con guram uma obra coesa e uma identidade autoral dedigna.

Por exemplo, quem, ao ler a farpa citada acima, não evoca o posterior episódio da avaria do fonógrafo do conto “Civilização” (1892), de cujo “bocarrão” saíu a “voz rotunda e oracular” de Pinto Porto perguntando retoricamente “— Quem não admirará os progressos deste século?”, repetindo-a até à rouquidão abafada e à fuga dos ouvintes “espavoridos”?

Ou, como não recordar tudo o que Eça diz nas suas farpas sobre a educação feminina e o modo como ela favorece o adultério8 quando lemos O Primo Basílio (1878), em cuja história vamos reconhecendo a efabulação ao serviço de uma tese já exposta com clareza? Emergindo assim da cronística, o romance surge emoldurado por ela, elaboração ccional de um elemento ou hipótese da crónica, demonstrando nesse processo um trabalho eminentemente estético do discurso sobre o discurso, distanciando-se do real invocado pelo projecto realista e pelo políptico romanesco. Como não sentir, à medida que vamos evocando esse enquadramento cronístico, diferentes implicações de leitura, uma re-semantização do universo ccional desse “Episódio doméstico” que parecia explorar um fait divers social?

Ou, ainda, como não antecipar na “calva polida” do conselheiro Acácio d’O Primo Basílio, “cuja contemplação demorada estonteava [D. Felicidade] como um vinho forte”9, a careca brilhante do conselheiro Gama Torres d’O Conde d’Abranhos (escr. 1879, publ. póst. 1925) que depois reconheceremos no Pacheco da Correspondência de Fradique Mendes (escr. 1888, publ. póst. 1900), assinalando com o mesmo lustro a mesma inteligência avaramente escondida e nunca denunciada? E como não ver nessa imagem que transita cintilando de texto para texto, deslizando no discurso e na imaginação queirosianos, um ludismo profundamente irónico, fetichista na ponderação de certos motivos em que se xa e que contorna, divertido, deformado n’“o gosto perverso” que atribui, p. ex., à D. Felicidade, denúncia do seu olhar deliciado a observar um outro e através dele?

8 Op. cit., pp. 322-342 e 386-405, respectivamente. 9 O Primo Basílio, Lisboa, Livros do Brasil, s.d., p. 38.

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E os exemplos são inesgotáveis.

Resulta daí a impressão de uma obra em que cada elemento pode remeter para outro, em que os textos não se relacionam apenas pelo projecto de conjunto nem pelo programa estético sob cujo signo foram escritas, mas também por imagens que se vão repetindo e reelaborando, por expansão, deformação e encenação, antecipando desse modo o actual hipertexto que a informática desenvolveu, a ponto de promoverem re exos de semelhança a nível do discurso e a nível dos universos ccionais entre os diferentes textos. Nesse regime hipertextual, não apenas o leitor é induzido a um trabalho dinâmico, de permanente associação da imaginação à memória de leitura do seu Eça, contiguando universos romanescos, mas também essas imagens adquirem uma densidade e uma concretude tais que parecem independentizar-se dos seus contextos, polarizando a atenção do leitor, em cuja imaginação se movem e se confrontam em novas e inesperadas cenas.

Apeteceria dizer que é possível seguir a trajectória de uma farpa através dos diferentes romanescos, na sistemática recon guração de motivos e imagens que a estes adensam e confere visibilidade metamór ca.

Essa coesão evidencia um procedimento em que radica a obra queirosiana e que conduz da observação do real, ao seccionamento e à elaboração cénica, simples, como na crónica, ou complexi cada, como no romance. Tal dialéctica entre geral e particular, fazendo derivar este daquele, denuncia uma obra que se gera num movimento mental de sistemática especi cação, concretização, exempli cação que a cção encena. Na observação do real. Também a nível da composição da série: na relação entre a farpa I, grande painel do “Estado social de Portugal em 1871”, e as outras, tematizando aspectos ou elementos daquela. Na relação entre a série e muito romanesco, com destaque para O Primo Basílio. E igualmente entre a concepção do políptico das “Cenas da Vida Real” e cada um, ou, no interior de cada um dos romances, entre o segmento social e cada personagem que o representa.

Tudo isso parece garantir ao leitor uma familiarização com a obra queirosiana sustentada no reconhecimento reconfortante, formativo e pedagógico, ainda que a ironia o surpreenda nos inters-

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tícios desse familiar, se insinue subversivamente nas dobras desse tecido de palavras e o seduza esteticamente.

Um pouco grosseiramente, poderíamos falar, então, de uma obra onde a ironia resolve brilhantemente a tensão entre duas forças de natureza e consequências diversas: uma, racionalizadora, demonstrativa, argumentativa; a outra, lúdica e estética. A primeira confere-lhe a coesão e a solidez reconfortantes e necessárias para a formação do cidadão. A segunda confere-lhe a subtileza e a ambiguidade sedutoras para os seus iguais. Desconfortáveis e inquietos entre ambos os públicos, cam os que fornecem matéria para a cção queirosiana, sobre quem se fala, mas a quem todos afectam não falar.

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