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impelido por uma respiração invisível. (EQ

Parte II

Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. (EQ)

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Farsa em um Acto

Filomena Oliveira e Miguel Real

POLÉMICA LITERÁRIA EM SINTRA COM EÇA DE QUEIRÓS

PINHEIRO CHAGAS (para Alfredo Keil) — Soube que o Sr. Eça de Queirós se encontrava em Sintra para a inauguração do eléctrico da Praia das Maçãs. Como homem honrado, vim pedir-lhe desaforo pelas calúnias, pelas insinuações, os seus ultrajes, a sua má educação.

BULHÃO PATO — A sua cobardia. . .

PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão, não vamos tão longe.

ALFREDO KEIL — Os senhores estão irados?

LATINO COELHO — Não, senhor. Vimos apresentar o nosso protesto cordatamente.

BULHÃO PATO — Qual cordatamente (levantando a bengala), vimos dar umas bengaladas no Sr. Eça de Queirós.

PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão, assim perdemos a razão.

ALFREDO KEIL — Não vejo por que haveriam de escolher este dia de festa para se vingarem de Eça — a inauguração do nosso notável eléctrico, digo “nosso” porque, desde que levantei casa na Praia das Maçãs, já me considero um genuíno sintrense.

LATINO COELHO — Vingança, Sr. Alfredo Keil? O senhor falou em vingança? Eu sou o secretário vitalício da Academia de Ciência. Vitalício! Um secretário da Academia não promove vinganças! Também eu já me considero um sintrense, tenho casa na Vila Velha. Este senhor é o ilustre Pinheiro Chagas, autor da mais notável História de Portugal em seis volumes, seis!, desculpe, acho que são oito, nem

o grande Alexandre Herculano de tal foi capaz, cou-se pelo terceiro! E aquele senhor é o digníssimo poeta Bulhão Pato, o autor de Paquita, o mais notável poema ultra-romântico.

PINHEIRO CHAGAS — Viemos a Sintra para nos regalarmos com a paisagem, e comermos as famosas amêijoas confeccionados pelo Bulhão Pato na cozinha do Hotel Central.

LATINO COELHO — Divinais!

BULHÃO PATO — Fui eu que as inventei.

ALFREDO KEIL (rindo) — Às amêijoas?

BULHÃO PATO — À sua confecção, trato as amêijoas como Madre Paula de Odivelas tratava os toucinhos-do-céu.

PINHEIRO CHAGAS — Fomos advertidos por um saloio que o sr. Eça de Queirós estava em Sintra, no Hotel Nunes, para a inauguração do eléctrico. Viemos pedir desaforo. . .

LATINO COELHO — Pedir desaforo, não vingança. Viemos protestar. O sr. Eça de Queirós vomitou uma afronta sobre a Academia e o ilustre Pinheiro Chagas.

BULHÃO PATO — Eu, por mim, espetava-lhe três bengaladas no toutiço, arrancava-lhe o bigode pêlo e pêlo, descarnava-o todo. . .

PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão. . .

ALFREDO KEIL — Com tantas ameaças, vejo-me obrigado a pedir a um saloio que vá avisar o sr. Eça de Queirós para não vir à inauguração. Não quero aqui encrencas.

BULHÃO PATO (ostentando a bengala) — Não faça isso!

PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão.

LATINO COELHO — Somos homens de bem, cidadãos pací cos.

ALFREDO KEIL — Mas vingativos. . .

PINHEIRO CHAGAS — Não, sr. Alfredo Keil. . . Eu sou um admirador do sr. Eça de Queirós. Detesto as suas teorias literárias, mas adoro os seus romances. Admiro a sua veia satírica, a originalidade da sua linguagem e o poder do seu estilo.

ALFREDO KEIL — Procuram o sr. Eça de Queirós para. . .

LATINO COELHO — O sr. Eça de Queirós tem um grave defeito, vive no estrangeiro há vinte anos e julga-se superior aos portugueses.

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BULHÃO PATO — Eça de Queirós faz de Portugal um país de bestas e dos portugueses uns brutos incivilizados.

PINHEIRO CHAGAS — É um estrangeirado, um preconceituoso. . .

LATINO COELHO — Descompõe a pátria.

BULHÃO PATO (gritando) — Eça de Queirós é uma besta, é o que ele é, uma besta.

PINHEIRO CHAGAS — Calma, Bulhão. É um homem desagradável, precisa de alguém que lhe faça frente. Serei eu esse homem, fui Ministro da Marinha!

(Eça de Queirós, Titi e Teodorico Raposo aproximam-se do eléctrico.)

EÇA DE QUEIRÓS (Para Raposo) — Não há como Sintra no Verão! Subir a Pena, ir beber água à Fonte dos Amores, barquejar na Várzea, subir a Serra num burro à paz fresca das grandes sombras e do murmúrio das águas correntes.

TITI — E ouvir missa nas bonitas igrejas, sr. Eça de Queirós. São Martinho e São Pedro, por exemplo. Eu nunca viria a esta inauguração sem o consentimento de Nosso Senhor. Ele consentiu e eu venho em peregrinação, só para Lhe agradar.

EÇA DE QUEIRÓS — Só uma alma virtuosa como a da Titi. Li no “Diário de Notícias” de ontem que a: “Exma. Sra. D. Patrocínio das Neves, opulenta proprietária e modelo de virtudes cristãs, acompanhada por seu sobrinho, Teodorico Raposo, bacharel em leis por Coimbra, partiram em viagem a Sintra para a inauguração do eléctrico.” Mas não acham, a Titi e o meu amigo Teodorico Raposo, que Sintra é um Éden Glorioso, uma obra divina da natureza?

TEODORICO RAPOSO — Sim, é grandioso. Gostei do Paço da Vila, sim senhor, tem cachet! Chaminés tão imponentes lembram-nos belos jantares e belas damas.

TITI — Oh, menino, que linguagem é essa? Relaxações e poucas vergonhas não, comigo não.

TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, referia-me às damas celestes das pinturas murais do palácio real. São santas, rodeadas de anjos. Impressionantes as chaminés!

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EÇA DE QUEIRÓS — Chaminés tão colossais e disformes resumem tudo: uma residência toda ela reduzida a uma cozinha e uma cozinha talhada às proporções de uma gula de rei que cada dia come todo um reino.

TEODORICO RAPOSO — Eu por mim, já comia qualquer coisa. Sabe se a viagem é muito longa, sr. Eça de Queirós?

EÇA DE QUEIRÓS — Seja o tempo que for, deixe-se levar, Teodorico! Abra esses olhos para tão grande beleza e respire, inspire, encha os pulmões do ar puro.

(Titi distraí-se e não ouve a conversa que se segue)

TEODORICO RAPOSO (Para Eça de Queirós) — Pois sim. É que, missas, já papei duas, logo de manhã. Tive de acompanhar a minha Titi, que não queria andar de eléctrico sem primeiro se aconselhar com o Senhor Jesus. O almocinho já me calhava bem. É que vim a Sintra para me refastelar, para uma boa pândega com Lolitas no hotel. E só vejo árvores, pedras, musgos. Nem passeios, nem um bilhar, nem um teatro, uma regata, como em Cascais. E a nal, diz-se em Lisboa que Sintra é um ninho de amores. Ainda não vi nada.

EÇA DE QUEIRÓS — Há tempo para tudo. Havemos de ir numa burricada à Pena. É hilariante, quando não cai o burro, cai o cavaleiro e as mais das vezes caem ambos. Ficam por cá uns dias, não é verdade?

TEODORICO RAPOSO — Sim, estamos instalados no Lawren-

ce.

EÇA DE QUEIRÓS — O Hotel Victor convinha-lhe mais. Há jogo como num casino e é de lá que partem as famosas burricadas. Conheço gente de Lisboa que comprou um burro em Sintra. Ou então o Hotel Nunes, esse tem outros interesses (sussurrando-lhe ao ouvido) as espanholas. (Titi aproxima-se). (Disfarçando) Não há como Sintra no Verão!

TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, tenho estado aqui a falar com o sr. Eça de Queirós e a pensar. Sabe a Titi o que me fazia falta aqui em Sintra? O cavalo que a Titi me ofereceu lá em Lisboa.

TITI — Ora essa, menino, para quê?

TEODORICO RAPOSO — Para poder ir rezar a Nosso Senhor às igrejas de Sintra que são longe umas das outras, e os caminhos em

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péssimo estado, tudo a subir por esses montes.

TITI — Não, lho. Acabei de ter uma inspiração do Senhor: em Sintra, compramos um burro.

TEODORICO RAPOSO — Se a Titi prefere os burros.

TITI — Acho, lho, é mais cristão. Como é que Nosso Senhor entrou em Jerusalém? De cavalo? Não, de burro. Ora já vês, é mais cristão.

TEODORICO RAPOSO (Para Eça) — A Titi quer comprar-me um burro para visitar as igrejas de Sintra. Junta-se o útil ao agradável. Estou morto por uma boa pândega. Vamos ao Victor e às burricadas e vamos ao Nunes às espanholas!!

TITI — Que dizes menino? Às espanholas? Mas que pouca vergonha!

TEODORICO RAPOSO — Ó Titi, falávamos de burras, de burras espanholas, que, diz o sr. Eça de Queirós, são as mais seguras para subir e descer os caminhos que levam às igrejas onde terei de ir rezar.

TITI — Ah, está bem. Então compra-se uma burra espanhola.

EÇA DE QUEIRÓS — É verdade, senhora D. Patrocínio! As burras espanholas são mais aceleradas, mais fogosas; as portuguesas são mais mansas, mas mais lentas nas subidas.

Mas agora o que importa é esta maravilha da civilização: o eléctrico! Ora vamos que está quase a partir.

TEODORICO RAPOSO — É catita, sim senhor, tem chique!

TITI (Benzendo-se) — Ai, meu Deus, estou tão nervosa! Que desavergonhice de barulho ouço ali?

TEODORICO RAPOSO — Devem ser as burricadas dos saloios.

EÇA DE QUEIRÓS — Não, Titi, é o Pinheiro Chagas, que eu chamo sempre o “Brigadeiro”, quer pôr ordem na literatura como se fosse um polícia. Olha, olha: vem acompanhado pelo Bulhão Pato, o poeta que eu caricaturizei n’Os Maias como o nome de Tomás de Alencar. Escrevi um poema ultraromântico a Seteais em seu nome:

Quantos luares lá eu vi? Que doces manhãs d’Abril? E ais que soltei ali Não foram sete mas mil!

PINHEIRO CHAGAS — Vejo ali o Sr. Eça de Queirós.

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ALFREDO KEIL — Comporte-se como um cavalheiro!

BULHÃO PATO — Não sei se me contenho. . .

LUCIANO COELHO — Calma, Bulhão.

EÇA DE QUEIRÓS (Dirigindo-se a Pinheiro Chagas) — O meu ilustre ministro!

PINHEIRO CHAGAS — Já não sou ministro.

TEODORICO RAPOSO — Fez-se justiça. Não sei como o cavalheiro conseguiu ser Ministro da Marinha se não há Marinha em Portugal!

EÇA DE QUEIRÓS (De lado) — Boa, Raposão! Dessa nem eu me lembraria! (Para todos) Tenho o prazer de vos apresentar as duas mais importantes personagens d‘A Relíquia: D. Patrocínio das Neves, conhecida em toda a Lisboa por Titi, e seu ilustre sobrinho, Teodorico Raposo.

BULHÃO PATO (Entredentes) — Personagens desprezíveis!

PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Eça de Queirós refere-se à Relíquia, o seu romance?

EÇA DE QUEIRÓS — Claro.

LATINO COELHO — Aquilo, um romance?

PINHEIRO CHAGAS — Sr. Eça de Queirós, A Relíquia não é um romance. Serão, talvez, impressões de viagens, tipos e cenas sarcásticas de Lisboa. Aqui o Sr. Teodorico não é uma personagem, é um tipo peculiar hipócrita de habitante de Lisboa.

EÇA DE QUEIRÓS — É uma das melhores personagens que criei.

BULHÃO PATO — O Sr. Raposão é uma cloaca de más intenções, nem merecia entrar num romance, não tem verve, sentimento, elevação moral. É um reles atrevidote.

PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Raposão e a sra. Titi são quadros da vida de Lisboa, não são personagens de um romance.

LATINO COELHO — As personagens d‘A Relíquia são personagens medíocres, ignorantes. O sr. Raposão é uma personagem pér da.

EÇA DE QUEIRÓS — Confesso não ser o meu melhor livro. Falta-lhe, talvez, um sopro de inspiração lírica. Contudo, a sua crítica, Pinheiro Chagas, a que fez publicar nos jornais, ofendeu-me.

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PINHEIRO CHAGAS — O senhor desvairou neste livro, sr. Eça de Queirós! Como é possível que tenha posto um miserável como este (aponta para Teodorico) a presenciar a sublime morte de Jesus? E pô-lo à pressa. Meteu-o ali pelo meio a sonhar. Falta-lhe fantasia. Falta-lhe virtude! Não tem unidade! É um livro cheio de defeitos.

LATINO COELHO — Defeituosíssimo!

PINHEIRO CHAGAS (Apontando para Raposão) — Este senhor é uma personagem burlesca e imbecil, de beiços saídos de avidez. Como foi possível o Sr. Eça pôr este cocheiro, este taberneiro, este labrego, este diabo que não tem onde cair morto a contemplar o sublime mistério da paixão e ressurreição de Cristo.

BULHÃO PATO — O Sr. Eça quer ser original, mas só faz disparates; o Sr. Eça é uma criança crescida. Como pôde descrever este tasqueiro a rezar a Nossa Senhora e a ver os seios de Adélia? Como pôde, diga?

LATINO COELHO — Devia ser excomungado!

PINHEIRO CHAGAS — O Sr. Eça de Queirós fez batota, já tinha escrito o terceiro capítulo, “A Paixão de Cristo”, até a publicou no “Diário de Notícias”, em 1870, e agora fez uma mudançazinhas e en ou o texto no meio do romance.

BULHÃO PATO — E a conclusão moral é o cúmulo do cinismo!

EÇA DE QUEIRÓS (Passando da defesa ao ataque) — O que os senhores queriam é que eu mostrasse um Cristo burguês, de chapéu de coco e lunetas defumadas. Os senhores queriam um Jesus Cristo apatetado, que apoiasse as trapaças de ministro e bispos. Peca-se, confessa-se, reza-se, faz-se penitência e pronto, as almas já podem ir para o céuzinho! Burlões, aldrabões, escroques da política e do altar, impostores da nança e da indústria, fazem o mal, depois confessam-se e rezam e Deus já os recolhe nos seus santos braços. Trapaceiros! Carambuleiros! Burleiros! Alicantineiros! Trampolineiros! Pantomineiros! Embusteiros!

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BULHÃO PATO (Avança para Eça de bengala em riste; Teodorico interpõe-se) — Trapaceiro é o senhor! Ridicularizou-me n‘Os Maias. Chamou-me Tomás de Alencar! (Para o público) Este senhor é um trapaceiro. Usou a minha gura e a minha vida para me caricaturizar e ridicularizar. Eu sou Bulhão Pato, não sou Tomás de Alencar!

EÇA DE QUEIRÓS (Acalmando-se, falando para o público, entre a troça e a serenidade) — Pronto, o Sr. Bulhão Pato, o famoso cozinheiro das amêijoas à Bulhão Pato e o criador do poema ultra-romântico Paquita, não é a minha personagem sintrense Tomás de Alencar, o poeta de Seteais!

LATINO COLEHO — Prove que não está a fazer pirraça!

EÇA DE QUEIRÓS — Pois provo-o. Todos os que já leram o meu O Crime do Padre Amaro, escrito 14 anos antes d‘Os Maias, lá encontram o poeta Alcoforado, de longa cabeleira e longos bigodes brancos, passeando ao sol-pôr na praia de Vieira. Há 14 anos!

BULHÃO PATO — Cobarde! Cobarde! Cobarde! Eu desmascaro-o! Olhe para aqui (mostra um livro de poemas contra Eça). Eu é que retratei o Sr. Eça de Queirós aqui, em versos imorredouros. Com os meus versos, o Sr. Eça de Queirós é o escarninho das bocas do mundo, no Chiado e em Sintra não há peralvilho que não conheça estes versos, zombando do “lázaro” cônsul!

EÇA DE QUEIRÓS — “Lázaro”, eu?

BULHÃO PATO — “Lázaro” porque Sr. é um feixe de ossos! Um esqueleto ambulante! Vou ler-lhe uns versos que z para o Sr.

EÇA DE QUEIRÓS — Ainda se fossem uns belos versos!

BULHÃO PATO — O Lázaro fareja as podridões da vida Como fareja a hiena a carne corrompida! Não dás ao teu país nada afectivo e santo; Nem um sorriso ao berço, nem à cova um pranto! Que sangue de escorpião gira por essas veias, Procaz embréchador de charras odisseias!

ALFREDO KEIL (apressado) — Meus senhores, meus senhores! O eléctrico vai partir para a sua primeira viagem. Venham todos!

BULHÃO PATO — (Impetuoso, lança o seu livro contra Eça de Queirós e recita um poema)

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LÁZARO CÔNSUL

Cônsul magno e burlão, replicas, prenda rara, Uns seis meses depois de eu te cuspir na cara! Na réplica resumbra a exangue timidez. Esgueirado do brio, enjeitas a honradez! Qualquer homem capaz diria — vê se entendes: — “fui eu que te insultei. E então?. . . O que pretendes?” Mas isso não te casa ao teu temperamento: Dar mostras de viril foi sempre o teu tormento! Nunca leste a Paquita. E dizes-mo, tirano!. . . Pois leu-a, e prefaciou-a Alexandre Herculano. Mas esta circunstância, em pouco me atenua O esmagador desdém da Omnipotência tua!

(Eça de Queirós, rindo, gargalhando, salta para dentro do eléctrico, põe-se ao lado do guarda-freio, fala com este, co a o bigode e vira as costas a todos.) (Dois saloios observam o eléctrico, com algum receio e maior curiosidade. Ela traz uma bilha de barro com água fresca, ele uma cesta com frutos e legumes.)

JOAQUINA (Espantada) — Ah! Isto é que é o eléctrico? É bonito! Ó João, mas se não tem burros nem bois para o puxarem, como é que isto anda?

JOÃO RODELO — Anda electricamente, por isso é que lhe chamam eléctrico.

JOAQUINA — Ah! Esta agora ?. . . Anda assim sozinho, sem nada a puxar? Anda electricamente, dizes tu? Ai, João, isto é uma grande invenção. A gente poder ir por aí fora, até à Vila Nova da Praia das Maçãs, assim? Sem nenhuma alimária a puxar?

JOÃO RODELO — É verdade. Ir e vir. Todos os dias faz viagens para lá e para cá.

JOAQUINA — Eh, João, tantos senhoritos da cedade! Vêm todos andar no eléctrico? Atão não têm eléctricos lá em Lisboa? Ouvi dizer que sim.

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JOÃO RODELO — São banhistas de Lisboa que vão para a Vila Nova da Praia das Maçãs. Falta-lhes a água na cedade e têm de vir lavar-se por cá. Vai ser bom para o negócio!

JOAQUINA — Tu já viste, João, com tanto espaço, podemos levar mais mercadoria, vai logo tudo de uma vez. E podem vir mais vizinhos, que cabem bem. Sempre vamos mais acompanhados, e os animais cam pró amanho da terra. Isto é uma grande invenção!!

JOÃO RODELO — Anda, traz a água, que eu levo a cesta, a ver se fazemos bom negócio.

JOAQUINA — Espera, homem, estás todo mal arranjado. Podias ter lavado essas mãos.

JOÃO RODELO — Ora, deixa-te disso, nem ma lembrei.

(Aproximam-se da Titi e do grupo dos escritores, Bulhão Pato continua furioso).

JOÃO RODELO — Ora com licença de vossas mercês. Os senhoritos hão-de sentir-se aqui bem, que Sintra é uma boa terra. Temos por cá muita fruta: morangos, pêssegos, maçã, muita uva, bons vinhos, o ramisco, muito legume das hortas e pêxe, há bom pêxe nestas águas.

JOAQUINA — E bons ares para limpar os pulmões de vossas senhorias que hão-de estar entulhados da cedade. (Tirando água da bilha de barro) E água fresca para acalmar os calores. Fomos ali à fonte da Pipa buscá-la ainda há pouco. Com tantos senhoritos para a inauguração do eléctrico, hão-de vir cheios sede, disse aqui ao meu João. Ora vamos lá (vai servindo canecas de água), são cinco vinténs cada copázio.

JOÃO RODELO — Vossas mercês não precisam de um cocheiro?

JOAQUINA — Oh, homem, atão se vão de eléctrico, para que é que hão-de querer um cocheiro?

JOÃO RODELO — Ou um jardineiro para os chalets de vossas mercês?

JOAQUINA — Os senhoritos vêm da cedade à procura de uma boa pândega, por desfastio, não é verdade? Vêm ouvir os rouxinóis, barquejar na Várzea, comer queijadas. Têm de provar as nossas laranjas, os morangos, os pêssegos. São tão docinhos que dá gosto.

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JOÃO RODELO — Vossas senhorias já provaram o vinho ramisco? É feito das vinhas plantadas nas areias de Colares? Quando lá chegarmos eu digo aos senhores onde é. E se vossas senhorias tiveram precisão de algum burro, p’rós passeios na Serra, também se arranja e a bom preço.

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