Enfim, Fim: e outros contos

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e outros contos



FABIANA PAULINO ALEXANDRE RETAMERO

e outros contos

2a edição

CURITIBA / PR Edição do autor 2017


CURITIBA

2017 - 2a edição

Revisão

Raquel Pinto Correia - Bibliotecária

Capa e Diagramação Impressão

Todos os direitos reservados.

Acati Matos - acatimatos@hotmail.com MM Soluções Gráficas

É proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por qualquer meio, sem a prévia autorização escrita da autora ou editora.

Catalogação na fonte – Raquel Pinto Correia – Bibliotecária - CRB-9 1064 F437e

Retamero, Fabiana Paulino Alexandre

Enfim, fim: e outros contos / Fabiana Paulino

Alexandre Retamero; Ilustração Acati Matos. 2.ed.

– Curitiba: MM Solções Gráficas, 2016.

56 p. ; 21 cm.

ISBN 978-85-922179-0-7

1.Literatura infantojuvenil. 2. Conto fantástico. I. Matos, Acatiane. II. Título.

22 CDD – 808.899282 808.838766

Diagramado utilizando fonte Avenir 11/15, Impresso em papel Supremo 250g/m2 (capa) e Offset 115g/m2 (miolo). Novembro/2016.


Dedico

este pequeno livro a Deus, a Ele toda honra e toda glória por toda a Eternidade! Que seja Ele sempre o motivo da minha adoração! Dedico também a minha família de sangue e de coração (meus amigos), presentes de Deus na minha vida. Em especial a minha mãe. Obrigada, mamãe, por seu amor e exemplo cristão! Um dia, lá na Eternidade, colocarei a coroa da vitória em seus pés como reconhecimento de que tudo que sou é mérito seu. Dedico também ao meu marido Alex, que sempre esteve ao meu lado, me amando incondicionalmente e intensamente. Meu companheiro, parceiro, amigo, amante e cúmplice. Dedico também ao meu irmãozinho Junior, que hoje dorme no Senhor aguardando a manhã gloriosa da ressureição. Saudade... A todos vocês muitíssimo obrigada por fazerem parte da minha história, eu vos amo hoje e sempre!



SUMÁRIO 09.

APRESENTAÇÃO

15.

PREFÁCIO

21.

O GUARDIÃO

35.

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A VIAGEM DE VALENTINA

ENFIM, FIM!



APRESENTAÇÃO

DA AUTORA

Um chamado, um propósito, uma missão Lembro-me do meu primeiro dia de aula como aluna da 1a série. Eu estava muito animada, afinal eu ia aprender a ler! Uau... Como qualquer criança curiosa, a cada dia eu ia degustando as palavras, juntando as sílabas, lendo textos... E nessa ânsia de ler encontrei na prateleira da estante da minha casa o livro Aventuras nos Andes e Amazonas, de Bárbara Westphal, da Editara CPB. Não era um livro propriamente para uma criança de 7 anos, tinha 135 páginas, o que definitivamente não era pouco para uma leitora iniciante. Mas era o que tinha, e eu queria muito ler. Viajei... viajei pela Suécia, pelos Andes, passeei de barco pelo grande rio Amazonas! O livro contava a história de Ana, uma menina Sueca, uma missionária, que logo na juventude decidiu dedicar sua vida como obreira de Deus em terras distantes. Decidi. Ali no auge dos meus sete anos orei ao Senhor e disse que assim como Ana eu também gostaria de ser missionária.

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Naquele mesmo período, não por coincidência, mas sim Providência, a lição da Escola Sabatina dos Primários, classe que eu frequentava, relatava a história do profeta Isaías. O verso áureo daquela semana era Isaías 6:8 “...Eis-me aqui, envia-me a mim”. Ainda hoje é meu verso predileto. Na minha inocência infantil tive confirmada a minha decisão e orei: Senhor, eis-me aqui, Fabiana, envia-me a mim. Ainda no mesmo período, não por coincidência também, mas sim Providência, estava acontecendo na igreja Adventista do Sétimo Dia que minha família frequentava uma semana de oração sobre saúde. O pastor Nogueira tinha duas filhas médicas missionárias, e nos contava a cada dia daquela semana experiências relacionadas a saúde física e espiritual, e dizia a igreja da importância de pregar as pessoas sobre um Deus que logo virá e ser a extensão dos braços de Cristo aqui na Terra. Diante daqueles sermões tomei duas decisões: 1ª. Nunca mais comer salsichas rsrsrs... (não me lembro bem o contexto, afinal faz muito tempo, mas em algum momento do sermão eu entendi que comer salsicha era péssimo, fosse qual fosse o tipo de carne. Não comi nunca mais.); e, 2ª. Servir a Deus em sua obra, assim como Ana (a missionária do meu livro), assim como o profeta Isaías, assim como as filhas do pastor Nogueira.


Deus ouviu a oração daquela criança de sete anos, e eu hoje tenho a alegria de dizer que trabalho na obra do Senhor. Minha mãe teve rubéola quando grávida de mim, e decorrente a isso eu herdei algumas sequelas: Eu não deveria falar, mas quem me conhece sabe que eu falo, e falo muito! Deus em seus propósitos me permitiu falar. Eu também não deveria ouvir, mas ouço, pelo menos de um dos ouvidos (especificamente o direito), e fui alfabetizada sem nenhuma dificuldade. Eu deveria ter dificuldades com a língua materna, mas como ninguém me informou antes eu me formei em Letras com louvor. Entendi assim que Deus ouviu a oração da menina de sete anos, a qual disse: “... Eis-me aqui...” Entendi que o Senhor me queria como uma servidora da Educação Adventista, e uma pregadora da Palavra. E como tenho sido feliz por viver os planos de Deus para mim! Durante esses anos fui surpreendida várias vezes com mimos do Senhor que confirmaram minha vocação e obra: Alunos que se batizaram; amigos que se engajaram na educação em razão de um incentivo; colegas de profissão com os quais estudei a Bíblia; programas pedagógicos realizados que foram verdadeiros cultos de adoração a Deus; pais agradecidos, vidas transformadas.

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Deus ouviu a oração de uma pequena garotinha de sete anos. Por isso, creio que também Ele ouvirá a oração da adolescente que lendo O Desejado de Todas as Nações pela primeira vez chorou e sorriu diante da mais maravilhosa história de amor. Lembrome de ler sobre Simeão, que orou a Deus e pediu para não morrer sem antes contemplar a Salvação de Israel. E Deus atendeu o pedido do velho sacerdote. Ele viu Jesus ainda bebezinho e reconheceu na vulnerável criança o Messias prometido. Fiquei tão impressionada com o relato. Fechei o livro e orei ao Senhor: Deus meu, não permita que eu descanse sem contemplar a minha Redenção. Quero ver Jesus voltar! E eu creio que assim como Deus atendeu minha oração infantil, Ele também atenderá minha oração juvenil. Logo verei o meu Salvador! Olho para trás e vejo em minha trajetória docente altares que levantei ao Senhor: meu casamento, minhas salas de aula, meu ministério como coordenadora. Altares que são testemunhos de que os sonhos de Deus para nós são sempre maiores e melhores! Destarte, eu olho para frente e pela fé contemplo a Nova Jerusalém, a Santa Cidade, o trono de Deus. Eu imagino que naquele glorioso dia eu direi novamente, assim como na infância: Eis-me aqui, Senhor! Mas completarei a minha fala dizendo: Eis-


me aqui com os que o Senhor me deu: minha família, meus companheiros e companheiras de trabalho, meus alunos, minhas alunas. Assim, ao escrever esses três breves contos “desenhei” nestes poucos papeis toda minha esperança, na expectativa de que ao serem lidos outros possam sonhar também com o momento que poderemos juntos dizer “Enfim, fim”. Então, a minha oração agora adulta está em Daniel 12:3 “Aqueles que são sábios reluzirão como o brilho do céu, e aqueles que conduzem muitos à justiça serão como estrelas, para todo sempre”. Senhor, faz-me sábia! Permita-me conduzir muitos a justiça. Amém!

Fabiana Paulino Alexandre Retamero

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PREFÁCIO Dizem que o processo de escrita envolve um mistério para além da materialização do papel e da caneta, dos ágeis dedos no teclado do computador: a inspiração rege o momento e pode vir em “horinhas de descuido”, já argumentara Guimarães Rosa ao descrever a felicidade - teço aqui um paralelismo, porque é evidente que esse sentimento permeia o processo, bem como outros: a dor, o medo, a esperança. É mais que fingimento - Fernando Pessoa me perdoe a ousadia - e Enfim, fim, essa primorosa obra literária que você tem nas mãos agora, confirma minha teoria. É a verdade. É a realidade e a vivência de alguém em palavras, uma arquitetura de histórias, de memórias, de sentidos e ideias, de contextos e textos outros. E quando a literatura é assim tão singular, a emoção toca a gente, a ponto de preenchermos os espaços em branco das páginas, as entrelinhas, com nossas próprias lembranças e anseios. A professora e escritora Fabiana Retamero compôs uma trilogia de contos, um enredo que permeia os temas mais célebres e profundos da literatura: a dor, a viagem, a morte - e a esperança, a humanização do sujeito (que Antonio Candido diz ser o principal objetivo da literatura) e o amor. Esses elementos foram tecidos de forma contextualizada, com indicações sócio-históricas, com reflexões filosóficas, cujas intenções extrapolam a interpretação textual do

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leitor, almeja-se alcançar a sensibilidade e a empatia, essas capacidades tão distantes da realidade dura desse mundo caótico que vivemos, que consistem em se colocar no lugar do outro - e sentir o que ele sentiu, e experimentar a dor, sorrir e chorar... A literatura ocupa um lugar único em relação à linguagem. Segundo Cosson, na obra Letramento Literário: teoria e prática (2006, p.17), ela é capaz de “tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas”. Maria Helena Martins, em sua obra O que é leitura? (2003) chama esse tipo de leitura de sensorial, pois envolve os sentidos - visão, tato, audição, olfato e paladar - como referenciais elementares do ato de ler. Certamente, esta obra provoca esse construto de sensações. Lygia Bonjuga, em Livro, um encontro, compõe uma problematização sobre a construção do saber, a constituição desse sujeito-leitor que a maioria das instituições (escola, sociedade, família) almeja crítico e empenhado na construção dos sentidos do texto. Lá a narradora discorre sobre os sentimentos e as íntimas emoções envoltas na descoberta e nos processos de formação como ávida leitora. Pensando com Bojunga, provocamos: construir esse leitor, capaz de apreciar obras de mérito artístico e literário, é responsabilidade


de quem? Qual é o papel da escola nesse letramento literário? Nessa obra, após analisar a complexidade que se articula nesse trinômio autor-livro-leitor, a autora instiga: “mas como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com os outros, e levantar a casa onde ela vai morar” (p. 17). A metáfora evocada pode até ser clichê, mas é possível vislumbrar, ao escavarmos esta obra de contos, o dialogismo bakhtiniano atrelado à concepção de aprendizado de Paulo Freire, tendo em vista que a leitura é o enfrentamento, entrelaçamento e atravessamento de múltiplas vozes, contextos, sujeitos, experiências literárias singulares, memórias e formações discursivas. A professora Fabiana Retamero colocou um tijolo e você, leitor - criança, jovem ou adulto - colocará outros, até construírem o saber, as significações e interpretações desses contos, porque a experiência literária é singular e o leitor tem papel crucial nessa construção e escavação. Na Bíblia, em Mateus 24, temos uma profecia, que culmina na descrição da falta de empatia: “o amor de quase todos se esfriará”. A obra literária de Retamero extrapola as funções aristotélicas da literatura de apreciação estética, catarse e cognição, porque envolve esse objetivo maior da literatura: humanizar

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o sujeito pelo resgate da empatia. É o despertar do amor. Entre palavras, memórias e vivências, os contos propiciam isso: esse vislumbre de esperança, esse sopro revigorante que nos faz prosseguir porque sabemos que DEUS tem sonhos maiores, tem traçada a rota desse mundo e o Lar Celestial nos aguarda e lá “Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor” (Apocalipse 21: 4). Esta é a nossa esperança.

Sarah Suzane Bertolli 1

1. Graduada em Letras, mestranda em Estudos Linguísticos pela UFG. É coautora de livros didáticos para o Ensino Fundamental I pela CPB, autora de livros literários e revisora de textos do IF Goiano.


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2. “Então a trombeta de prata de Jesus soou, ao descer Ele sobre as nuvens, envolto em labaredas de fogo. Olhou para a sepultura dos santos que dormiam, ergue então os olhos e mãos para o céu, e exclamou: Despertai! Despertai! Desperta, vós que dormis no pó, e levantai-vos! Houve um grande terremoto as sepulturas se abriram e os mortos saíram revestidos de imortalidade...” Ellen White - Primeiros Escritos, p. 16

O GUARDIÃO

O

relógio marcava 16h30 quando Laura chegou a minha transitória casa. Era sexta-feira. Ela estava só. Fiquei feliz em vê-la, afinal fazia muito tempo que não via seu rosto, tampouco ouvia sua voz rouca e alegre. Eu estava com saudade. Seu irmão era muito parecido com ela. Ver Laura de certa forma era ver Alexandre. Desde o repouso de seu irmãozinho eu não havia mais visto Laura. Sou um guardião. Especificamente sou o guardião do Alexandre, irmão de Laura. E como guardião tenho a tarefa de guardar o “depósito” que a mim foi confiado pelo Mestre, mesmo na morte. O Mestre deu ordem aos guardiões para permanecerem com seus “depósitos” até quando esses dormem, a fim de recebê-los no exato momento que a trombeta de prata soar2. Assim, há dois anos permaneço no mesmo lugar. Sentado sobre um tronco, em frente a fria cama de meu precioso “depósito”. Em dois anos já não resta nada daquela beleza jovial que me fazia sorrir. Mas, mesmo assim olho para aqueles restos e vejo como o mais precioso tesouro. Sou grato ao Mestre por me

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dar essa alma para guardar. Velo diante do sepulcro de Alexandre, e a cada dia trago uma flor como sinal de que o jardim será restaurado. Aquele foi um dia atípico pela inesperada presença de Laura. Ela se aproxima lentamente do sepulcro. Parece que ela teme encontrar o que sabe que vai encontrar: tudo como na última vez. No fundo ela esperava ver que tudo foi apenas um pesadelo. Não era. Ela está de casaco. Mãos nos bolsos. É um dia frio. Seus cabelos estão soltos como de costume. Há folhas secas pelo chão que são varridas bagunçadamente pelo vento calmo daquela tarde. Seus olhos estão cheios de lágrimas, e os lábios emudecidos. Ela não ousa a falar. Laura entende o verdadeiro estado dos mortos3. Sabe que seu irmão não a ouvirá, tampouco responderá qualquer pergunta que seja feita. Talvez seja por isso que ela permaneça em silêncio. No alto da gelada cama há uma foto linda, na qual Alexandre está sorridente como quando estava acordado. É uma foto do tempo do internato. Laura passa o dedo indicador direito sobre a imagem do rosto de seu irmão. E naquele momento, ali sozinha, ajoelha-se e começa a orar. Recusa-se a orar silenciosamente. Acho que ela 3. “Por que os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem de coisa nenhuma, nem tão pouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento. Também seu amor, o seu ódio, e a sua inveja pereceram, e já não tem parte alguma para sempre, em coisa alguma do que se faz debaixo do sol”. – Eclesiastes 9: 5 e 6.


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queria que todos os seres invisíveis ouvissem sua oração, inclusive eu. Ela ora em voz audível (mas não alta) e olhos abertos, assim como quem conversa bem de pertinho, e vê os olhos daquele que ouve. Jesus, eu sinto saudade do meu irmãozinho. Saudade do meu caçulinha. Saudade da sua voz alta, da sua rizada gritada, da sua alegria contagiante, saudade do seu abraço apertado e do seu jeito carinhoso de ser... Eu sei que logo verei meu irmão novamente, mas mesmo assim eu sinto saudade. Eu queria tanto entender o porquê o Senhor permitiu isso. Eu sei que não é certo perguntar o porquê, mas sou humana, pequena, e tenho vontade de com-


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preender. Por que meu irmão dormiu tão cedo, tão moço? Por que o anjo da guarda dele não fez nada para impedir aquele acidente? As palavras de Laura me atingem em cheio. Fiquei triste pela tristeza dela. Não me indigno por não ser compreendido em meu silêncio. Afinal, Laura é humana, e como tal sua visão ainda é estreita em relação a todas as coisas que acontecem nesse planeta. Ela ainda não consegue ver além das coisas da Terra. Mas, um dia, muito em breve, ela mesma entenderá que a Providência4 a guiou pelo melhor caminho. Laura sabe que seu irmãozinho não pode ouvir sua voz. Então, ela chora baixinho, como quem não quer chamar a atenção de ninguém, muito embora nenhum outro humano estivesse ali para ver suas lágrimas. Talvez seja por essa solidão que ela tenha escolhido esse horário do dia para fazer essa visita tão inesperada. Em meia hora o cemitério fecharia. Em suas mãos, Laura segura uma flor. Apenas uma flor. Um girassol. Ela deposita em silêncio sobre o leito gelado de Alexandre aquela única e linda flor. Fico tocado com esse gesto singelo. Sei o quanto ela gosta de girassóis. Foi a flor do seu casamento. Eu estive lá. O Alexandre era pequeno e entrou na igreja levando a Bíblia até o altar. 4. Deus nunca dirige Seus filhos de maneira diversa daquela por que eles próprios haveriam de preferir ser guiados, se pudessem ver o fim desde o princípio, e perscrutar a glória do desígnio que estão realizando como colaboradores Seus (WHITE, O Desejado de Todas as Nações, p. 225).


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Logo depois do acidente eu esperava a visita de Laura todos os dias. Olhava para os portões daquele local melancólico e aguardava vê-la entrar a qualquer hora. Mas, com o passar do tempo percebi que Laura não viria. Certamente sua dor era tão intensa que estar ali naquele lugar, minha transitória residência, a deixaria ainda mais triste. Seu guardião, meu amigo próximo, dia a dia me contava como Laura estava. Ele inclusive me contou que embora ela estivesse muito triste, sua fé não se desfaleceu, ao contrário, aumentou. Sinceramente isso me deixa muito animado! Afinal, eu quero muito reunir a família do Alexandre na manhã gloriosa. Para ser franco, planejo isso em minha mente todos os dias. Laura era uma pregadora. Eu havia assistido vários sermões seus, pois muitas vezes seu irmão ia assistir ou a acompanhava cantando um hino. Assim, eu imaginava como havia sido sua primeira pregação após o trágico acidente. Queria muito ter ouvido. Certamente, a voz de Laura levantada de um púlpito era um tapa na cara do cruel homicida que havia roubado de mim e dela o riso alto de Alexandre. Seu guardião disse que ela pregou sobre Habacuque. Fiquei empolgado! Segundo, o relato de meu amigo ela havia finalizado com Habacuque 3:17 a 19. Isso era uma mensagem de fé! Entre lágrimas ela ratificou ao mundo visível e invisível que escolheu viver pela fé e se alegrar no SENHOR.

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Agora, Laura estava diante de mim. Infelizmente ela não podia me ver. Não podia sentir meus dedos encostando em suas faces para enxugar suas densas lágrimas. Não podia ouvir minha voz dizendo o quanto eu sentia por vê-la assim tão triste. Seu guardião a acompanhava, e ele também chorava. Aliás eu também chorava. Não chorávamos pela abrupta e estúpida morte de Alexandre. Afinal, sabemos que essa é uma condição passageira. Mais passageira que Laura pode imaginar. Mas, chorávamos pelas lágrimas roucas de Laura. Eu queria tanto que ela pudesse me ouvir. Eu queria tanto que Laura soubesse por mim o porquê tudo isso aconteceu. Eu queria tanto que Laura visse meu rosto alegre contemplando a leito do precioso “depósito” que o Mestre me confiou. Sim, alegre, pois eu sei que o tempo é curto... e agora, a terrível serpente não pode mudar o destino vitorioso de Alexandre, pois como está escrito “O que vencer, de modo algum sofrerá o dano da segunda morte”5. A semelhança de Alexandre, comecei a falar, mesmo sem ser ouvido. Eu sempre achei gracioso quando ele falava para o espelho, sabendo que ninguém ouviria, apenas para gravar palavras no tempo, um diário efêmero. Então, passei meus dedos pelo cabelo de Laura, e comecei a falar:

5. BÍBLIA. Apocalipse 2:11.


6. BÍBLIA. Isaías 26:19.

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Ah, Laura, como eu gostaria que você sentisse meu abraço. Falta muito pouco. Eu mesmo levarei o Alexandre até você muito em breve. Contudo, Laura não podia me ouvir. Certamente ela me acha incompetente, afinal minha única tarefa era guardar seu irmão. E para ela eu falhei. Como explicar que não falhei. Ao contrário, o Alexandre está selado para a vida eterna! Não chore, Laura. Isaías, já havia profetizado “Os teus mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho será como o orvalho das ervas, e a terra lançará de si os mortos”6. Eu podia sim ter feito algo. Eu podia ter segurado aquele caminhão. Podia ter acelerado o carro que Alexandre dirigia. Podia tantas coisas... Mas, o Mestre disse não. Ele me disse para deixar a vida tomar seu curso sem intromissão. Ele me disse que a vantagem era nossa no sono do meu jovem sonhador (Ah, e como ele era sonhador!) Afinal qual é a vantagem do inimigo das almas diante da morte do justo? Continuei falando: Nossa, foi muito difícil pra mim, Laura... Eu estava com o Alexandre desde a maternidade. Eu ouvi seu

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primeiro choro, sorri com suas primeiras palavras, vibrei com seu batismo, assisti todas às suas apresentações musicais na igreja, ri de seu primeiro beijo, sofri com cada lágrima que ele derramou... Segurar-me diante daquela cena de separação. Não intervir para salvá-lo foi a ordem mais difícil de obedecer. Mas eu tenho experiência suficiente para saber que o Mestre sempre tem razão7. Laura, eu sei que você sente saudade, mas eu também sinto saudade do seu irmão. Aliás, o Mestre também sente saudade dele. E olha que o Mestre é quem mais sente e entende de saudade... Ele sente saudade de Adão, de Eva, de Maria Sua mãe, dos discípulos, de Seu primo João Batista, e de tantos outros, e porque não, o Mestre também sente saudade especificamente de Alexandre, o meu precioso “depósito” e seu irmão. Jesus está ansioso para tocar a trombeta de prata e trazer todos os Seus irmãos a vida novamente. Nesse dia não haverá mais saudade escorrendo pela face. Você sorrirá! Nós sorriremos! Tudo parecerá muito pouco. Laura, olha para o relógio e percebe que os trinta minutos se passaram. Ela ainda estava ajoelhada. Seu rosto transmite paz. Na verdade, seu guardião me

7. “Perece o justo, e não há quem se impressione com isso; e os homens piedosos são arrebatados sem que alguém considere nesse fato; pois o justo é levado antes que venha o mal. Isaias 57:1.


8. BÍBLIA. Jó 19: 25 a 27.

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contou que Laura sempre se portou como alguém que tem paz, muito embora a dor fosse dilacerante e visível. Laura olha ao redor. O cemitério permanece silencioso e solitário. Ninguém pranteia os mortos. Há muitos guardiões presentes, esperando o soar da trombeta de prata, mas Laura não pode nos ver. Antes de ir embora ela força os olhos ao redor. Talvez ela tenha tentado ver alguma coisa sobrenatural. E é nesse momento, para minha surpresa, que Laura fala comigo. Sim, comigo! Abaixo-me para ficar a sua altura e bem diante do seu rosto, embora ela não possa me ver. Meu coração palpita alto. O que será que ela tem para me dizer? Logo para mim! Num tom manso e doce ela me diz: Não se preocupe anjo da guarda do Alexandre, eu sei que nosso tesouro está guardado, e que por fim acordará, e os meus olhos o verão, não outros, pois o meu Redentor o despertará8. Mesmo assim ainda choro, pois de saudade desfalece meu coração. Mas, obrigada pelos 20 anos que cuidastes do meu precioso tesouro. Dizendo isso ela sorriu. Acredita?! Sorriu! Um sorriso banhado de lágrimas, mas ainda sim um sorriso, e do tipo mais raro, daqueles que desabrocham mesmo

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9. BÍBLIA. Filipenses 4: 11. 10. A vara de Arão produziu flores e “dava amêndoas” (Números 17:8). Em Jeremias a expressão “vejo uma vara de amendoeira” (Jeremias 1:11) é simbólica de pressa, porque a raiz da palavra hebraica, traduzida por amêndoas, significa apressar-se. Mostra-se uma vara de amendoeira para significar que o SENHOR apressará o cumprimento de Sua Palavra.

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diante das adversidades. Fiquei olhando ela ir embora, passar pelos portões largos do cemitério. Seu guardião a acompanhou e acenou para mim ao ir embora. Ele também sorria. Estávamos todos felizes. Laura havia aprendido a estar contente em toda e qualquer situação9. Lentamente o sol foge, trazendo ainda mais silêncio para o dia. Alguns outros guardiões estão ali também guardando e aguardando. Ao lado do girassol coloco uma flor de amendoeira10, pois o Mestre apressa-se em cumprir sua promessa. Falta pouco...

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11. Clube de Desbravadores é um departamento da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) que trabalha especificamente cultural, social e religiosa de crianças e adolescentes, entre 10 a 15 anos de idade. O clube de desbravadores é dividido em classes: Amigo, 10 anos; Companheiro, 11 anos; Pesquisador, 12 anos; Pioneiro, 13 anos; Excursionista, 14 anos; Guia, 15 anos. Conselheiro: cargo/função no clube de desbravadores para maiores de 16 anos, os quais são responsáveis por uma unidade do clube composta por crianças ou adolescentes que estão em uma determinada classe (variando de acordo com a idade).

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unzuns de viagem flutuam pela casa. Uma viagem?! Para onde seria? Valentina quase explode de tanta felicidade. Faz tempo que ela gostaria de fazer uma viagem. “Partir”, “ir”, eram palavras que Valentina ouvia atrás das portas do quarto dos pais. Eles deviam estar preparando uma surpresa para ela e para Yuri, seu irmão. Os pais de Valentina têm a impressão de que alguém ouve a sigilosa conversa. Silenciam. Olham para a porta do quarto que está fechada. A menina percebe que sua presença foi sentida. Volta correndo para o seu quarto. Não quer que os pais saibam que ela estava ouvindo atrás da porta. Não quer estragar a surpresa. Para onde será que a família iria? Para a casa da vó? Valentina adorava ir à casa da vó para comer ambrosia e brincar no balanço que fica preso na frondosa mangueira. Ou seria para praia? Ah, como é gostoso brincar no mar com o papai! Fazer castelos de areia com o Yuri. Pela manhã, entre sussurros, Valentina ouve. “Tudo

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numa mochila”. Oba! Será um acampamento. Faz tempo que a menina quer fazer parte do clube de desbravadores12, mas toda vez que ela pede é dito que ela ainda é muito pequena. Ainda faltam três anos para Valentina ser “amigo”13. Yuri é conselheiro12 de “companheiros”14. Era uma manhã linda para os olhos de uma menininha. Valentina brinca no quintal com Sofia, sua linda gatinha! Será que Sofia também vai viajar? Sofia era tão companheira, melhor amiga de Valentina. Borboletas voam e pousam nas flores do pequeno jardim. Sofia se prepara para a caçada. Pula e mia entre as flores e borboletas. Valentina não podia viajar sem Sofia. Ela está na família antes mesmo de Valentina. Está decidido não vou sem Sofia. É hora do almoço. Mamãe fez bolo de milho salgado. Humm... Papai conversa com mamãe e Yuri. Já não sussurram. Conversam sobre a data da partida. O irmão já sabe da novidade. Puxa, criança sempre é a última a saber. Valentina se lembra da lição da Escola Sabatina15. Samuel foi o primeiro a saber. Antes mesmo de Eli16. Mas, Valentina não fica chateada, o

12 Classe do clube de desbravadores que reúne crianças de 10 anos. 13 Líder responsável por uma unidade de desbravadores, tem 18 anos ou mais. A unidade é formada por um grupo de desbravadores (meninos e meninas de 10 a 15 anos). 14 Classe do clube de desbravadores que reúne crianças de 11 anos. 15 Material para estudo sistematizado da Bíblia utilizado pelos membros da Igreja Adventista do Sétimo Dia em todo o mundo, atendendo desde o maternal até a fase adulta do membro. 16. 1 Samuel 3.


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importante é viajar! Será que é para a casa da vó? Vovó também gosta da Sofia. Mamãe pede ao pai para irem o mais rápido possível. Parece estar com medo. Mas, medo de quê? Será que vamos para o Pantanal? Papai e Yuri sempre quiseram ir ao Pantanal, mas Mamãe morre de medo de bichos grandes e é alérgica a mosquitos. Será que é isso? Ou talvez mamãe esteja cansada e tenha pressa de viajar para descansar. Papai explica que o grupo saíra ainda está noite, depois do culto em nossa casa. Um grupo?!! Então, é uma excursão! Mas, e a Sofia? Como levaremos a Sofia em uma excursão? Mamãe ainda não disse o que faremos com a nossa companheirinha peludinha. O bolo de milho está uma delícia. Mamãe é a melhor cozinheira do mundo! Puxa, estou comendo só a mistura! Ninguém percebe. Nem mexeram ainda na comida. A conversa entre papai, mamãe e Yuri está séria. Será que eles não vão comer bolo? De repente a casa é invadida. Pessoas usando máscaras gritam enquanto empunham cassetetes e paus. Será um assalto? Não remexem em nada. Meu Deus, será que vão roubar a Sofia! Mamãe sempre disse que Sofia era uma gatinha cara por ser de raça rara. Maine Cool. Mas ela já está velhinha! Não pode passar por uma situação de sequestro. “Peraí”, parece que Valentina conhece os olhos do homem que grita e empunha um pedaço de pau. Não pode ser!!! Faz algum tempo que ele não vai à igreja, mas...

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Os homens gritam para a família andar logo. O ônibus já vai sair! Mas, sair para onde? Valentina ia viajar!! Pegue o mais importante, suplica mamãe. Papai pega a Bíblia. O homem grita. Toma a Palavra das mãos de papai e joga no chão. Pisa. Meu Deus, isso é pecado! Valentina se assusta. Olha ao redor. O que pegar? Sofia! A menina tem medo do que os homens maus podem fazer a gatinha depois do que viu o que fizeram com a Bíblia. Papai sempre disse que aqueles que não amam a Deus não podem amar também os animaizinhos. Sofia é pesada. Ela é tão bonita! Tão fofinha!


A VIAGEM DE VALENTINA

Yuri repousa sua mão direita sobre o ombro de Valentina. Ele sempre foi cuidador de sua pequena irmãzinha. Ele quer proteger. Será que Yuri está com medo? Mas, medo de quê? Yuri nunca tem medo de nada. Ele é o irmão mais corajoso! Já até saltou de paraquedas duas vezes. Mamãe ficou brava as duas vezes. Valentina também quer pular de paraquedas. Yuri vê Sofia nos braços de Valentina. A gatinha está assustada com todo aquele barulho. O irmão também ama a gatinha, e não censura a irmãzinha por fazer questão de carregar sua amiguinha peluda. Há no olhar de Yuri a palavra nova que Valentina aprendeu na escola: compaixão. Será que ele tem compaixão de Valentina ou da Sofia? Os homens ainda gritam. Empurram. Xingam. Quanto ódio! Por quê? Eles enxergam Sofia nos braços de Valentina. Arrancam. A menina chora. Implora. Os homens riem do infanto desespero. Nãããããããooooooo!!! Matam Sofia. Por quê? Por que, mamãe? Papai, será que Jesus poderá ressuscitar Sofia? Será que nossa gatinha estará no céu? Yuri chora e segura Valentina ainda mais forte. Sussurra no ouvido da menina: Fique quietinha. Logo terminará tudo isso. Valentina entende pela voz do seu irmão que não é seguro sofrer. Engole o desespero e chora baixinho. Mas ainda chora. Ora em silêncio. Há várias pessoas no ônibus, de diferentes idades.

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Valentina nem vê o caminho. Sua mente está longe. Ainda ouve o grito de Sofia. Todos são direcionados a uma sala escura. Não tem camas nem cadeiras. Seria isso uma prisão? Presos por quê? Papai e mamãe são professores. Criança pode ir para prisão?! Sofia não ia gostar desse lugar sem jardim e sem borboletas. Naquele lugar apertado, sem luz e sem banheiro, tinham outras pessoas. Nossa, Valentina conhece algumas dessas pessoas! Por que estão aqui? Por que estamos aqui? A menina volta a pensar em Sofia. Chora... Durante todo o dia ninguém leva comida para o grupo preso, mesmo assim todos estão estranhamente felizes. Inclusive Valentina, que está sendo afagada por sua mãe. Papai diz ser um privilégio padecer por Cristo17. A menina fica surpresa. De repente ela entende. Então, é isso? Estamos aqui por Cristo? Lembra da história de Estevão. Mamãe explicou certa vez que Estevão era um homem bom, mas as pessoas ficaram enfurecidas por ele ser amigo de Jesus. Mataram Estevão. Mas, Estevão viu o céu aberto. Viu Jesus! Mamãe, nós vamos ver o céu aberto também? A fome e a sede são grandes. Mas só as três crianças que fazem parte do grupo verbalizam

17. “Ora, todos quanto querem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.” (BÍBLIA. 2 Timóteo 3:12).


18. HINÁRIO ADVENTISTA. 469.

A VIAGEM DE VALENTINA

suas necessidades básicas. Espera um pouco... parece que as orações foram ouvidas. Dois homens encapuzados trazem comida e bebida. Óh, não!... não parece comida! Parece mais lavagem (seja lá o que for lavagem)! Com certeza eles não sabem que não comemos isso. Valentina se adianta para explicar aos homens que não come aquilo e que está com fome. É empurrada. Os homens se vão. Mamãe corre para levantar a pequena. Ufa! Valentina está bem, mas confusa. O que eu fiz? De repente uma luz invade o pequeno e escuro quarto. Ninguém consegue de imediato ver nada. Depois de um tempo a luminosidade é dissipada. Aos poucos a vista acostumasse novamente ao breu. Agora há pão! Miraculosamente há pão e água! Todos comem. Por um momento Valentina esquece aquele lugar, esquece o grito de Sofia, esquece o empurrão. Sua atenção volta-se para as vozes que se levantam cantando Oh, que esperança!18 Yuri está sentado no chão, num canto da sala. Valentina vai até o irmão e senta-se ao lado e ali adormece. Sonha com o céu aberto. Em sua casa no céu tem lindos jardins com borboletas voando e gatinhos que correm de um lado para o outro entre as

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flores coloridas. Valentina sobe o cimo das montanhas com suas pequenas asas para colher flores que nunca murcharão19.

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19. “... O monte Sião estava exatamente diante de nós, e sobre o monte um templo, em cujo redor havia sete outras montanhas, sobre as quais cresciam rosas e lírios. E vi as crianças subirem, ou, se o preferiam, fazer uso de suas pequenas asas e voar ao cimo das montanhas e apanhar flores que nunca murcharão.” – Ellen White. Primeiros Escritos, p. 19.




ENFIM, FIM!



ENFIM, FIM!

T

antas aulas de História e as pessoas não aprenderam nada! Não dava para acreditar que o mundo tivesse caído novamente na mesma armadilha demoníaca que foi o nazismo. Os mesmos erros do passado cometidos outra vez, muito embora a História fosse um fiel testemunho contrário as ações desumanizantes. O mundo estava de cabeça para baixo! A definição de terrorismo estava distorcida. De repente eu, pacata cidadã, estava listada como uma terrorista. Eu que nunca peguei em armas, era vista como alguém que oferecia perigo para o Estado. Olhei pelo vidro da janela. Estava um dia triste lá fora. Parecia que até mesmo a natureza se calava diante da brutalidade daqueles que ousavam caçar seus semelhantes e matar sob falso testemunho. Olhei para dentro de casa novamente, sem me afastar da janela. Uma pequena residência, com mobília simples e escassa. Morávamos ali em número de quinze pessoas. Mas, não ousávamos reclamar do pouco conforto. Na verdade, aquele lugar parecia um paraíso na Terra, diante do que outros amigos estavam vivendo. Aqueles que por motivos diversos permaneceram nas grandes cidades quando o sinal da fuga foi dado, passaram as mais diversas dores. Não vivivam em uma casa pequena e simples como eu e meus companheiros, mas pior, estavam em lugares inóspitos, presos,

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sendo maltratados e humilhados todos os dias. Orávamos incessantemente por esses amigos, pedido a Deus que intervisse misericordiosamente por esses queridos! Pelo menos nós, mesmo morando em uma simples casa, ainda podíamos ver as árvores, comer algumas frutas, plantar hortaliças, ouvir os pássaros e fazermos nossos cultos entre o verde da natureza enquanto caminhávamos. Diferente dos amigos que ficaram nos centros urbanos e foram levados para campos de concentração, aguardando um decreto de morte. Assim, eu não ousava a reclamar do escasso alimento, da falta de energia elétrica, nem da simplicidade da residência, que era pequena para um grupo de quinze fugitivos, entre adultos e juvenis. Para ser franca, eu nem enxergava essas situações adversas. Eu caminhava com os “pés na Terra, e os olhos no Céu”20. Nada podia ofuscar a beleza da promessa de uma nova terra, de um “lindo país”21. Minha maior dor era não ter meu pai ali comigo. Podíamos ser dezesseis, mas ele se recusou a fugir. Eu havia feito vários apelos, mas ele repetia que ninguém o tiraria de sua cidade, de sua casa. Chorei muito, mas parti sem ele. Eu sabia que deveria partir. Ingenuamente ele achava que ainda faltava muito para esse momento de crise. Eu sabia que alguns permanece20 Referência ao hino “Pés na Terra, Olhos no Céu” da coletânea jovem da Igreja Adventista do Sétimo Dia, 2009. 21 Referência ao hino “Lindo país”do Hinário Adventista, 571.


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riam na cidade, havia ainda trabalho a ser feito nos grandes centros urbanos. Estava anunciado, mas eu não queria que fosse meu pai. Nunca pensei que ele poderia ser um desses, e temo que ele não tenha sido um escolhido para o martírio. A angústia da dúvida e da ausência de notícias me corrói. Partimos eu, minha mãe, minha irmã, meu esposo. Deixávamos para trás uma parte de nós: meu pai. Infelizmente ele escolheu ou foi escolhido para permanecer na cidade. Temo que ele esteja sofrendo em algum campo de concentração, ou ainda, temo que ele não tenha aguentado a pressão. Pior do que imaginar meu pai em um campo de concentração é imaginá-lo fora dele. Como eu gostaria de ter notícias de meu amado pai! Outros amigos do grupo têm dor semelhante à minha. Filhos que ficaram para trás, irmãos que riram do convite para fugir, esposas e esposos que preferiram a separação a fuga. Todos sofrem. Todos choram. Oramos constantemente por aqueles que amamos. Não sabemos se “a porta da graça” já foi fechada. O tempo passa vagarosamente na quietude do campo, e entre orações e louvores nossos corações também sangram, tememos não ter confessado todos os nossos pecados. Tememos que nossos parentes que não estão conosco tenham desistido da fé diante de tantas adversidades inimaginadas. Vivíamos o horror de um outro holocausto, mas

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muito mais sangrento do que aquele primeiro relatado nas aulas de História e nos inúmeros documentários televisivos. Nem a inquisição da Idade Média poderia ser igualada ao que o mundo presenciava. Daniel já havia advertido22 que seria pior. Alguns não creram... Muitos amigos próximos foram assassinados brutalmente. Um discurso de ódio e intolerância divulgado pelas mídias e pelas instituições formativas formou assassinos que não toleravam a fé em um Deus Criador e Senhor do tempo. O motivo que encobria as mãos homicidas era a religião daqueles que tal como Abel23 clamavam por justiça. Todos nós naquela pequena casa, trazíamos uma história de dor e separação. Um casal de amigos teve o filho adolescente preso sob falso testemunho. Disseram que o garoto havia sido flagrado vendendo drogas. Mentira. Felipe estava distribuindo literatura cristã para aqueles que demonstravam interesse em entender a grande controvérsia. Nunca mais esse casal de amigos teve notícias de seu único filho. Voltei a olhar para fora da casa através do vidro da janela. Outrora eu tinha um bom emprego, um bom salário, carro, casa. Mas, agora possuo apenas um par de tênis que a semelhança das sandálias do povo hebreu no deserto24 estava em ótimo estado, apesar de 22. BÍBLIA. Daniel 12:1. 23. Bíblia. Gênesis 4:8 a 10.


24 “Quarenta anos vos conduzi pelo deserto; não envelheceram sobre vós as vossas vestes, nem se gastou no vosso pé a sandália” (BÍBLIA. Deuteronômio 29:5). 25 “E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os vossos corações e os vossos pensamentos em Cristo Jesus” (BÍBLIA. Filipenses 4:7). 26. BÍBLIA. Salmos 46:1.

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ser minha única opção de calçados. Todos os meus pertences, incluindo minha Bíblia, cabiam em uma mochila velha. No vidro da janela vejo o meu reflexo. Meu cabelos estão soltos e longos. Já não tenho mais mechas loiras, apenas as pontas dos fios guardam a marca de um tempo de salão de beleza. Minhas sobrancelhas não estão corretamente desenhadas e meus lábios não têm cor de rosa. Contudo, estranhamente vejo no meu reflexo de hoje mais beleza que outrora. Afastei-me da janela e olhei para dentro de casa novamente. Ali na sala estavam alguns do grupo. Estavam magros e visivelmente cansados, mas cada rosto expressava uma paz indescritível, uma tranquilidade que excedia todo o entendimento25 humano. Embora nosso humilde lar fosse distante dos grandes centros urbanos, na verdade, distante até mesmo de localidades rurais, sabíamos que era uma questão de tempo, talvez de curto espaço de tempo, para sermos encontrados por aqueles que pediam a nossa vida. Mas, confiávamos no socorro bem presente26. Não retrocederíamos. Na chácara em que morávamos anteriormente, fomos cercados por um grupo de vizinhos irados, que gritavam coisas horríveis empunhando paus.

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Deus sabe o que tais pessoas fariam. Rosnavam que éramos culpados dos problemas que estavam tendo. De repente homens fortes que nunca vimos antes apareceram e seguraram a multidão, enquanto isso nós juntávamos o pouco que tínhamos e fugíamos mata a dentro27. Providencialmente, antes disso já havíamos adquirido uma outra propriedade, essa. Meu esposo temia que algo ruim acontecesse onde estávamos, então tomou o cuidado de em tempos de paz adquirir outra residência para o caso de uma fuga repentina. De mudança em mudança chegamos aqui. Enquanto divago em meus pensamentos ouço um barulho que me tira da quietude de minhas memórias. Alguém bate à porta. Dentro da casa nos olhamos assustados, mas não desesperados. Olhei para o meu relógio de pulso a corda (uma das poucas coisas que trazia comigo). Eram 17 horas. Quem poderia ser? Será que havíamos 27. “Pudessem os homens ver com visão celestial e contemplariam grupos de anjos magníficos em poder, posicionados em redor daqueles que guardaram a palavra da paciência de Cristo. Com ternura compassiva, os anjos têm testemunhado sua angústia e ouvido suas orações. Estão à espera da ordem de seu Comandante para os arrancar do perigo [...] Em todos os tempos Deus tem usado os santos anjos para socorrer e livrar Seu povo. Seres celestiais têm tomado parte ativa nos negócios humanos. Têm aparecido trajando vestes que resplandeciam como o relâmpago; têm vindo como homens, no aspecto de viajantes. Anjos têm aparecido sob a forma de homens de Deus. Têm repousado, como se estivessem cansados, sob os carvalhos ao meio-dia. Têm aceitado a hospitalidade dos lares humanos. Agiram como guias aos viajantes surpreendidos pela noite. Acenderam com suas próprias mãos os fogos do altar. Abriram as portas do cárcere, libertando os servos do Senhor. Revestidos da armadura do Céu, vieram para remover a pedra do túmulo do Salvador. Sob a forma humana, muitas vezes se acham anjos nas assembleias dos justos, e visitam as dos ímpios, assim como foram a Sodoma a fim de fazerem um relato de suas ações, para determinar se haviam passado os limites da longanimidade de Deus. (WHITE, WHITE, Grande conflito, p. 635-636).


Era meu irmão! Vivo novamente! Lindo e glorificado!28 e 29. Eu sabia o que aquela visita não inesperada 28 “Abrem-se sepulturas, e ‘muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno’ (BÍBLIA. Daniel 12:2). Todos os que morreram na fé da mensagem do terceiro anjo saem do túmulo glorificados para ouvirem o concerto de paz, estabelecido por Deus com os que guardaram a Sua lei.” (WHITE, Grande conflito). 29 A ideia aqui trabalhada é da ressurreição especial que acontecerá um pouquinho antes da ressurreição geral dos justos (Daniel 12:2; Apocalipse 1:7; White, Grande conflito). Não sabemos o tempo entre a ressurreição especial e a geral. Pessoalmente creio que é um tempo bem curto, mas como a Literatura não tem compromisso com a verdade, mas sim com a criatividade, usei da liberdade poética para descrever uma cena tomando emprestada essa mensagem.

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sido descobertos? Como? Seríamos presos e levados aos campos de concentração? Separados? Seria muito triste a separação a essa altura em que já estávamos acostumados e consolados pela companhia uns dos outros. Tive medo de abrir a porta, embora as batidas fossem calmas e espaçadas. Não lembrava as pancadas na porta e paredes da nossa última casa, quando fomos atacados. Permaneci imóvel. Esperava que alguém dentro de casa gritasse para corrermos, mas todos permaneceram em silêncio. O temor nos arrancava a voz e a força para o impulso da corrida. Era possível ouvir cada coração batendo em um ritmo acelerado naquela sala. Meu esposo percebeu minha palidez e hesitação, e em silenciosa oração tomou a frente até a porta. Abriu. Ele não podia acreditar! Eu não podia acreditar! Que privilégio abrir a porta. Por que eu não abri aquela porta primeiro?!

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significava! Eu havia sonhado com aquele momento, mas a realidade era muito melhor: tinha cheiro, gosto, toque, cor... Ouvimos então, a voz como som de muitas águas anunciando o dia e a hora...30 Enfim, fim!

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30 “Logo ouvimos a voz de Deus, semelhante a muitas águas, a qual anunciou o dia e a hora da vinda de Jesus” (WHITE, Primeiros escritos, p. 15).




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