[sabrina a cegonha chegou] 78 inexplicável magia

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Ele nascera para ser pai! — Você pode contar comigo — foi isso que Richard McNeal sussurrou ao ouvido da mulher ferida. E mais: — Não se preocupe. Prometo que tomarei conta de seu filho, como se ele fosse meu. Não permitirei que nada de mal lhe aconteça. Você tem minha palavra. É o mínimo que posso fazer, depois de... — Richard não concluiu a frase. Também, como fazê-lo? Como explicar, em poucos segundos, a uma pessoa quase inconsciente, a dor que o dilacerava havia três anos? — Acredito em você — foi tudo o que Kate Burnett pôde dizer antes de perder os sentidos. Richard duvidou do que tinha acabado de ouvir. Aquela mulher havia realmente dito que acreditava nele? Não era possível...!

I NEXPLICÁVEL M AGIA Digitalização: Nina Revisão: Bruna

Copyright © 2001 by Martha Shields Originalmente publicado em 2001 pela Silhouette Books, divisão da Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer fornia. Esta edição é publicada através de contrato com a Harlequin Enterprises Limited, Toronto, Canadá. Silhouette, Silhouette Desire e colofão são marcas registradas da Harlequin Enterprises B.V. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. Título original: Born to be a dad Tradução: Nogueira Biller Editora e Publisher: Janice Florido Editor: Fernanda Cardoso Chefe de Arte: Ana Suely Dobón Paginação: Dany Editora Ltda. EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Rua Paes Leme, 524 - 10° andar CEP: 05424-010 - São Paulo - Brasil


Copyright para a língua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Impressão e acabamento: DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISÃO CÍRCULO - Fone (55 11) 4191-4633 CAPÍTULO I Richard MacNeal tinha acabado de fazer uma curva, quando deparou com uma cena assustadora... Pisando fundo no freio do jipe, ele girou o volante violentamente para a esquerda. Só assim conseguiu se desviar do garoto que vinha em sentido contrário. A rua tinha duas mãos e Richard estava na faixa correta, mas o menino não. Por um triz, o pior não acontecera. Um profundo suspiro brotou do peito de Richard que, desligando o motor e soltando as mãos trêmulas do volante, sentiu-se invadido por uma sensação de alívio. Seu coração pulsava tão rápido, que chegava a causar-lhe falta de ar. Richard fechou os olhos por um instante. Estava exausto, simplesmente exausto. Tinha

acabado de sair da Data Enterprises, a empresa de informática que fundara alguns anos atrás. "Preciso trabalhar menos", Richard pensou, abrindo os olhos e passando a mão pelos cabelos negros. Felizmente, o stress ainda não estava prejudicando seus reflexos. A maior prova disso tinha acontecido alguns segundos atrás. Mas, mesmo assim, não convinha abusar do cansaço. Fazia uma semana que ele vinha trabalhando cerca de doze horas por dia, às vezes mais. Isso acabaria lhe causando problemas, tais como um esgotamento nervoso, ou algo ainda pior. Prometendo a si mesmo que dali por diante deixaria de se sacrificar tanto, Richard viu, pelo espelho retrovisor, o garoto se afastando com a bicicleta. Parecia muito assustado e pedalava


apressadamente, como se quisesse fugir dali. — Aquele danadinho bem que merecia umas palmadas, pelo susto que lhe deu — alguém comentou. Richard voltou-se na direção da voz e viu uma senhora robusta, na calçada. Sorrindo, declarou: — Só de ter evitado o desastre, já me sinto satisfeito. A senhora sorriu de volta, enquanto assentia com um gesto de cabeça. Richard acenou-lhe em despedida. Estava mais calmo e decidiu ir embora. Aquela rua não era exatamente uma das mais movimentadas de Memphis. Mas Richard estava muito perto de uma curva e não convinha abusar. Afinal, era hora do rush e os motoristas tinham pressa de chegar em casa, depois de um longo dia de trabalho. Girando a chave na ignição do jipe, Richard acionou o motor. E então o mundo pareceu desmoronar, às suas costas... Ouviu um ruído e sentiu um choque que o projetou para frente. O cinto de segurança o manteve a salvo. Pelo espelho retrovisor, Richard viu o Escort que tinha acabado de se chocar contra o párachoque de seu jipe. Nos segundos de infinito horror, ele conseguiu divisar o rosto em pânico de uma mulher ainda jovem. Tudo durou apenas uma fração de segundo. Richard mal podia crer que aquilo estivesse acontecendo de verdade. Com gestos trêmulos, ele abriu a porta do jipe e saltou... para deparar com uma visão ainda mais aterradora: outro veículo acabava de dobrar a curva. Tratava-se de uma caminhonete cor de vinho. Seu motorista conseguiu desviar-se para a esquerda, mas mesmo assim atingiu o Escort. Pego de lado, o pequeno veículo rodopiou como um pião e foi se chocar contra um poste. — Santo Deus! — Richard exclamou, estarrecido, enquanto suas pernas fraquejavam. Um grupo de pessoas se formava, na calçada. — Alguém precisa ir até aquela curva, para alertar os outros motoristas! — Richard quase gritou, numa voz que soou-lhe estranha, como se não lhe pertencesse. — Nós cuidaremos disso — um rapaz prontificou-se. Junto com dois outros, correu para a esquina. — Alguém arranje um triângulo! — pediu, voltando-se por um instante. O motorista da caminhonete havia acabado de descer do veículo. Estava tão pálido quanto Richard. — Eu... não pude evitar. O senhor mesmo viu... — Claro — Richard assentiu, dizendo a si mesmo que não podia se entregar ao nervosismo. Alguém precisava tomar conta da situação e, ao que tudo indicava, esse alguém era ele. — O triângulo! — o rapaz repetiu. — Eu tenho um — Richard voltou ao jipe. Pegou o triângulo e entregou-o ao motorista da caminhonete, que correu para levá-lo ao rapaz. Como num pesadelo, Richard aproximou-se do Escort. —É melhor não mexer em nada, senhor! — disse a mulher de meia-idade. — Alguém já se encarregou de chamar uma ambulância. Richard olhou-a por um momento. Mas continuou andando em direção ao Escort. — Já entreguei o triângulo — o motorista da caminhonete anunciou, alcançando-o. Richard não respondeu. Seus olhos estavam fixos no Escort. Aquela cena lhe parecia familiar, horrivelmente familiar, aliás... A lembrança de outro acidente, fatal, ocorrido três anos antes, estampou-se na mente de Richard com uma nitidez cruel. Naquela trágica ocasião, ele perdera a esposa e o filho que estava por nascer. — Não! — Richard exclamou, num tom abafado. — Isso não pode estar ocorrendo... De novo, não. A frente do Escort estava parcialmente cravada contra o poste. Pela janela do veículo,


Richard podia ver uma cascata de cabelos loiros, caída sobre o volante. Apressando o passo, ele tentou abrir a porta, mas não conseguiu. — Senhor... — o motorista da caminhonete alertou-o — talvez não seja prudente fazer isso. Às vezes as pessoas, munidas de boa fé, tentam ajudar os feridos. Mas acabam até piorando seu estado, ao mudá-los de posição. Afinal, sempre existe o risco de se provocar uma hemorragia interna. Richard voltou-se para o homem baixo e calvo, muito trêmulo, que tocava-lhe o braço. — Escute, eu não vou ficar aqui, esperando o socorro chegar — disse, simplesmente. — Esta mulher está ferida, talvez inconsciente. — Mas é por isso mesmo que... O homem não concluiu a frase. Um grito veio do interior do Escort, seguido de um choro infantil. Minha nossa! — Richard concluiu, aterrado. — Há uma criança lá dentro! Ajude-me, por favor! Precipitando-se, Richard tentou abrir a porta traseira do Escort. Sentado numa cadeira própria para transportar crianças, no banco de trás do veículo, um garotinho chorava desesperadamente. A porta não cedia aos esforços de Richard. Aquela altura, o motorista da caminhonete também se empenhava em abri-la. — Não adianta — o homem disse, por fim. — Esta porta está travada. Teremos de quebrar o vidro. — Não — Richard discordou, aflito. — Se o quebrarmos, poderemos atingir o garotinho com algum estilhaço. Vamos tentar a outra porta. — Tudo bem, mas, se não der certo, adotaremos minha idéia. Tenho ferramentas, na caminhonete. Posso quebrar o vidro com todo o cuidado, para não ferir a criança. Richard não respondeu. Contornando o veículo, forçou a porta traseira, do outro lado. Para seu alívio, ela acabou cedendo. — Graças a Deus! — ele exclamou, entrando no Escort. — O garotinho está apavorado — disse o motorista da caminhonete. — Portanto, não estranhe se ele rejeitar sua ajuda. Tente acalmá-lo, antes de qualquer outra coisa. Richard, porém, não o ouvia. "Ela é uma mãe dedicada e cuidadosa", pensou, lançando um olhar cheio de pena à mulher caída sobre o volante. Então concentrou-se no garotinho, que se debatia na cadeira. — Acalme-se, meu anjo. — Richard tentava tranquilizá-lo, enquanto o tomava nos braços. — Tudo ficará bem. Tudo terá de ficar bem... Para sua surpresa, o garotinho abraçou-o com força, como se ele fosse um porto seguro, em meio a uma terrível tempestade. Richard aconchegou-o contra o peito, enquanto tentava confortá-lo com palavras doces. Por alguns instantes, a criança se calou. Mas logo em seguida, como se caísse na terrível realidade daquele momento, sofreu uma nova crise de choro. — Calma, querido... — dizia Richard, que fazia um incrível esforço para manter o controle. — Tudo ficará bem. Como você se chama? — Jo... — o menino balbuciou, entre as lágrimas. — Jonathan. — Certo, Jonathan. Meu nome é Richard. — Você me ajudou... — Sim, meu bem — Richard assentiu, comovido. — Ajude minha mamãe, agora. O motorista da caminhonete tirou a jaqueta que usava e cobriu o garotinho. Lançando um olhar preocupado a Richard, aconselhou: — Não toque na mulher, ao menos por enquanto. Vamos esperar pelo pessoal da ambulância.


— É a coisa mais sensata a se fazer — Richard concordou. — Você tem que ajudar mamãe — Jonathan insistiu. — Mas acho que vou abandonar a sensatez, sabe? — Richard declarou, tomando uma súbita decisão. Acariciando os cabelos do garotinho, perguntou: — Escute, Jonathan, você ficaria com este senhor, enquanto vejo o que posso fazer por sua mamãe? — Sim. Você precisa tirar mamãe de lá. Richard concordava plenamente com o garotinho. Não podia ficar ali, parado, sem tomar uma atitude. Venha, filho. — O motorista da caminhonete tomou o pequeno Jonathan nos braços. — Leve-o daqui — Richard pediu, em voz baixa. Certo, senhor — o motorista assentiu, afastando-se. Richard voltou a entrar no veículo. Estremeceu da cabeça aos pés, ao ver que a mulher já não se encontrava caída sobre o volante. De algum modo havia conseguido soltar o cinto de segurança. Mas desabara sobre o banco dos passageiros. Richard não queria, mas chegou a cogitar sobre o pior. Ela teria se soltado, num último esforço, para... morrer? — Não. — Ele meneou bruscamente a cabeça, enquanto inclinava-se em sua direção. — Isso não pode acontecer. A mulher era jovem e tinha uma compleição delicada, Richard observou, penalizado. Não podia ver-lhe os traços do rosto, pois este estava coberto por uma cabeleira loira, ondulada. Afastando-lhe delicadamente,os cabelos, ele contemplou-a. O rosto da jovem mulher era belo, mas estava pálido como cera. Além do mais, ela tinha ferimentos nas mãos, braços e em uma perna. — Escute... — Richard disse, baixinho. — Você precisa viver. — E repetiu, num tom mais alto: — Precisa viver, entende? Para criar seu filho... Ele é tão pequeno, tão frágil. Por favor, não faça como Stacy. Não morra, moça. Fechando os olhos por um instante, ele concluiu, mentalmente: "Devo ter enlouquecido... Em vez de me certificar de que esta mulher está viva, fico falando com ela... Como se pudesse me ouvir!" O fato era que ele sentia medo da verdade... Se a mulher estivesse apenas inconsciente, seria um alívio. Mas se houvesse morrido... Richard nem ousava concluir esse pensamento. Se havia entrado naquele carro, contrariando todas as regras do bom senso e até mesmo a lei, então era melhor tomar uma providência. E rápido! Uma bolsa de couro, que certamente pertencia à mulher, estava no banco de trás. Richard pegou-a e, remexendo entre os vários objetos ali guardados, encontrou um pequeno espelho. Limpou-o com a manga da camisa e aproximou-o da boca entreaberta da mulher, por onde escorria um filete de sangue. Bem, esse filete podia ser resultado de um ferimento leve e não de algo mais grave, Richard disse para si. Precisava acreditar nisso, para não perder totalmente a razão. Sua mão tremia, mas Richard pouco se importava com isso. Tudo o que desejava era que o espelho ficasse embaçado. Isso significaria que a mulher estava respirando. Isso significaria vida! Mais do que um leve sinal, Richard teve uma inegável confirmação: a mulher remexeu-se, enquanto pronunciava algo ininteligível. Ele suspirou, sorriu, quis gritar de felicidade. A vida ainda pulsava naquele cerne ferido, frágil. Uma onda de esperança inundou o coração de Richard. — Você sobreviveu, moça! — exclamou, aliviado. — Vai continuar cuidando de seu filho, vai dar seguimento à vida! De súbito, uma nuvem sombria veio turvar aquele momento. Se a mulher estava inconsciente, era porque havia sofrido algum tipo de traumatismo. E isso poderia ser grave, talvez fatal. — Não será — Richard sentenciou, baixinho, recusando-se a considerar aquela terrível


possibilidade. — Você vai se salvar, moça. E daqui a pouco tempo estará totalmente recuperada. Outra probabilidade, bem mais animadora, veio-lhe à mente: se a mulher havia se mexido e até falado, era porque seus sinais vitais estavam respondendo... Talvez agora ela pudesse ouvi-lo, Richard pensou, fitando-a com intensidade, buscando no rosto de cera a confirmação daquela esperança. A mulher, porém, continuava com os olhos fechados. E parecia respirar de maneira mais fraca. Recusando-se mais uma vez a considerar o pior, Richard voltou a falar, agora com os lábios bem próximos: — Olá, moça... Será que você pode me ouvir? Se pudesse me dar apenas um sinal... Um longo momento se passou. Do lado de fora do veículo, a poucos metros de distância, havia uma terrível agitação. Outras pessoas haviam se juntado ao pequeno grupo na calçada. A moradora de uma casa próxima havia trazido água para o motorista da caminhonete e para o pequeno Jonathan. Na esquina, já não eram apenas três, mas vários os rapazes que se encarregavam de parar os motoristas, evitando novos acidentes. O socorro se aproximava. A meia distância, podia-se ouvir a sirene de uma viatura policial, seguida por uma ambulância. Alguns curiosos, mais ousados, chegaram bem perto do Escort. Richard, porém, não dava a menor importância a todo aquele movimento. Só tinha olhos para a jovem mulher, que o fazia lembrar-se de outra: Stacy, sua esposa, falecida três anos atrás, poucas semanas antes de dar à luz. Richard não queria, não podia pensar no desfecho daquele outro acidente, do qual se julgava culpado. Não era possível que o destino lhe desse mais esse golpe. Ele simplesmente não suportaria. — Eu... — a mulher balbuciou. Invadido por um misto de expectativa e euforia, ele perguntou: — Você... disse alguma coisa? — Eu... — a mulher repetiu, fracamente. — Você conseguiu falar! Isso significa que vai ficar bem... Muito bem. — Meu filho... Jonathan... — ela voltou a balbuciar, após alguns instantes. — Por favor... ajude-o. — Jonathan está bem — Richard assegurou, pronunciando devagar cada palavra. — Já o tirei do carro. Ele não sofreu nada. Ela não respondeu. E Richard indagou: — Você... me entende? Mas a mulher parecia ter caído novamente na inconsciência. — Não importa... — Com o coração repleto de esperanças, ele afirmou: — Você vai viver. Kate Burnett sentiu que mergulhava num poço escuro, silencioso e frio. Naquele estranho lugar, não havia dor. Aliás, não havia nada. E Kate caía... Caía lentamente nesse poço, livrando-se da dor que a atormentava, pouco antes. Se pudesse abandonar-se de vez, se pudesse não reagir, apenas deixar-se levar naquele caminho sem volta... De súbito, Kate compreendeu que não devia agir assim. Tinha de fugir daquele poço escuro. Pois sua hora ainda não havia chegado. Era preciso voltar... não exatamente por ela, mas por Jonathan. Assim, Kate decidiu lutar para sair do nada. Por um instante, pensou que não fosse conseguir. Mas então a dor na cabeça e em alguma parte do lado esquerdo do corpo voltou, com redobrada intensidade. E Kate compreendeu que ainda estava viva. Jonathan não tinha ninguém no mundo, a não ser ela. E o pobrezinho era tão pequeno, tão desprotegido.


Decididamente, ela não podia abandoná-lo. Ambos eram estranhos, numa cidade ainda estranha, que Kate pretendia transformar num lar. Mas mesmo que tivesse algum amigo ou parente, em Memphis, que pudesse cuidar de Jonathan... Bem, ela não pediria esse favor. Já fazia muito tempo que não pedia nada a ninguém. Desde que aprendera a cuidar de si mesma, decidira contar apenas com sua própria força e determinação. Um favor custava muito caro. Além do mais, feria o orgulho de quem pedia... A menos que esse favor fosse prestado com todo o coração, coisa raríssima de acontecer. Uma série de ruídos e movimentos alertou Kate de que ela estava, realmente, do lado da vida... Mas a dor dilacerante atingiu um limite insuportável. E Kate sentiu-se novamente tentada a cair naquele poço onde não existia barulho, nem gestos, nem sofrimento... nada. Mas havia Jonathan. E ela precisava viver. Agora Kate podia ouvir ruídos mais próximos, inclusive uma espécie de sirene que não parava de soar. E também comentários, vozes que gritavam ordens ou falavam ao mesmo tempo. Mas, acima de tudo, uma única voz se distinguia. Uma voz profunda, suave, muito próxima, que parecia falar diretamente a sua alma. Kate estava tão certa disso quanto de que era preciso viver. E de algum modo ela elegeu aquela voz, para ser seu elo com o mundo ao qual era preciso retornar, ao qual Jonathan pertencia. Kate tentou um contato com esse mundo. A dor a impedia de perceber, com clareza, o que estava acontecendo ao redor. Mas A Voz continuava ali, a seu lado, firme, constante como o pulsar de um doce coração. — A ambulância já chegou — disse A Voz. — Jonathan não está ferido, mas você precisa de cuidados... Kate lutou como nunca, para reagir àquelas palavras maravilhosas. Jonathan não estava ferido! Poderia haver uma notícia mais fantástica? Kate concentrou todas as forças que ainda possuía, para manifestar-se. Precisava responder à Voz, que continuava a confortá-la. — Ela abriu os olhos! — Richard constatou, tomado por uma profunda emoção. — Queira nos dar licença, sim? — um enfermeiro ordenou. — Temos que retirar a moça do carro. — Um momento — Richard pediu. — Preciso apenas de um momento e você não vai me negar isto. — Com o rosto quase colado ao da mulher, disse: — Você deu um novo sinal de vida, moça. Até murmurou algumas coisas. Será que poderia me dizer o seu nome? — Isso não será problema — outro enfermeiro interveio. — Saberemos o nome dela, quando olharmos seus documentos. Agora, faça o favor de nos deixar trabalhar, sim? — Kate... — ela sussurrou. — Kate... — Richard repetiu. — Você está indo muito bem, sabe? — Jonathan... — ela murmurou, lentamente. — Ele está ótimo, Kate. Não sofreu ferimento algum — Profundamente comovido, Richard sentenciou. — E você logo ficará boa. — Jonathan... ótimo — ela balbuciou. — Sim, querida. — Richard sabia que só teria mais alguns instantes. Os enfermeiros começavam a impacientar-se. — Há alguém que eu deva avisar, sobre o acidente? Talvez o pai de Jonathan? — Não... — ela respondeu, num tom quase inaudível. Richard só a ouviu porque estava com o ouvido praticamente colado a seus lábios. — O pai... de Jonathan... foi embora. — E não há mais ninguém que eu deva contatar? Agora Kate sabia que estava, definitivamente, do lado da vida, do lado ao qual Jonathan e A


Voz pertenciam. A dor que sentia era tão forte, que ela temia perder novamente a consciência. Mas não podia, não antes de pedir um último favor à Voz. Justo ela, que tinha por princípio não aceitar nada de ninguém... Agora estava necessitando desesperadamente da caridade alheia. Mas A Voz não era alheia. A Voz era sua amiga, seu elo com a vida. Havia acabado de salvá-la do poço escuro, onde só o nada imperava. — A ambulância está aqui — A Voz informou-a. Kate a ouvia mais claramente, agora, em meio à dor torturante. Os médicos cuidarão de você. — Jonathan... — ela pediu. — Cuide... de Jonathan... para mim. — Não se preocupe. Prometo que tomarei conta de seu filho, como se ele fosse meu. E não permitirei que nada de mal lhe aconteça. Você tem minha palavra. É o mínimo que posso fazer, depois de... — Richard não concluiu a frase. Também, como explicar, em poucos segundos, a uma pessoa quase inconsciente, a dor que o dilacerava havia três anos? — Acredito em você. Richard chegou a duvidar do que tinha acabado de ouvir. "Nos últimos anos, nem eu mesmo acredito em mim", pensou, experimentando uma espécie de alívio, um alento indescritível em seu coração sofrido. — Agora chega — o enfermeiro tocou-lhe o ombro. — Não podemos esperar mais. — E nem é preciso. — Richard contemplou a pálida face da mulher, que voltava a fechar os olhos. — Acho que ela ouviu o que tanto desejava... Kate já não tinha consciência de nada. Mas uma parte de seu ser estava em paz. Jonathan ficaria em boas mãos. Ele não corria perigo. Não seria entregue a uma instituição de caridade, nem aos cuidados de gente estranha. A Voz, ou o que quer que isso significasse, havia lhe dado uma garantia: a de que Jonathan ficaria bem. Agora sim, ela poderia descansar, fugir um pouco da dor que ultrapassava todos os limites. Pois havia ganho duas certezas: a de que viveria e a de que reencontraria Jonathan, são e salvo. O que mais precisava, agora? Nada... A não ser, talvez, descansar. CAPÍTULO II Richard MacNeal parou junto à janela de vidro da sala número sete, da unidade de terapia intensiva do Baptist Hospital. Kate Burnett estava deitada num leito próximo à janela. Seu rosto de traços delicados já havia sido devidamente limpo pelas enfermeiras. Mas continuava pálido, como se a vida ameaçasse abandoná-lo. Os olhos, que por um instante ele pudera contemplar, estavam fechados, com profundos sulcos escuros ao redor. Através de um tubo de soro ligado à veia, Kate recebia medicamentos. Um lençol a cobria até a altura do pescoço. Por isso, Richard não podia ver-lhe os outros ferimentos, nem tampouco calcular sua gravidade. Ela teria sofrido fraturas? Luxações, talvez? Escoriações, com toda a certeza. Assaltado por essa série de perguntas, Richard suspirou profundamente. Kate parecia tão frágil naquele leito, com os cabelos loiros puxados para um lado, emoldurando-lhe o rosto sem cor... Que tipo de mulher ela seria? O que pensava, o que sentia, quais eram seus planos para o futuro? Em que circunstâncias tivera o filho? Richard lembrava-se de Kate haver dito que o pai do pequeno Jonathan se fora... Para onde? Teria partido antes que ela desse à luz? Teria sido capaz de abandoná-la, grávida, negando-lhe qualquer apoio? Ou talvez houvesse morrido?


Richard meneou a cabeça, em uma tentativa de afastar essas inúteis cogitações. De nada adiantava pensar assim. Algum dia, e ele esperava que esse dia chegasse em breve, acabaria sabendo tudo sobre Kate Burnett. Os médicos o haviam informado de que ela estava em estado de choque. Por isso, tinham decidido mantê-la na unidade de terapia intensiva, em observação. Havia também a possibilidade de hemorragias internas, o que aumentava seu risco de vida. Os olhos de Richard continuavam fixos em Kate Burnett, mas sua mente agora o levava para longe dali. Era mesmo impossível não pensar em Stacy, sua esposa, que morrera num leito como aquele, numa unidade de terapia intensiva, três anos atrás, poucas semanas antes de dar à luz. Uma profunda angústia se instalou no coração, já tão sofrido, de Richard. Sabia-se culpado pelo que ocorrera a Stacy e ao bebê, que nem chegara a nascer. No caso de Kate, se ele não houvesse ficado parado na rua, depois de quase atropelar o garoto de bicicleta, ela não teria se chocado contra seu jipe. E a essa hora estaria em casa, viva, com o filho. "A culpa foi minha", Richard concluiu, encolhendo os ombros, como se não suportasse o peso de tanto remorso. "Mais uma vez, a culpa foi minha." Estava desgastado, tanto física quanto emocionalmente. Fazia já quatro horas que havia chegado ao hospital, com o pequeno Jonathan, que agora dormia na sala de espera aos cuidados de uma enfermeira. Felizmente o garotinho não sofrera nada, com o choque. Se isso houvesse acontecido, Richard estaria se sentindo ainda pior. Se bem que era difícil imaginar-se num estado pior do que aquele em que se encontrava. A situação de Kate era parecida demais com a de Stacy. Essa constatação o arrasava. Não que Kate e Stacy fossem parecidas entre si. Ao contrário: Stacy era uma mulher alta, magra e elegante. Possuía cabelos negros, lisos, curtos. E olhos castanhos que pareciam ver através da alma... Já Kate era de compleição delicada, com cabelos loiros suavemente ondulados e olhos verdes. Talvez a grande semelhança entre ambas fosse o modo de olhar, Richard pensou. Pois lembrava-se com clareza da luz que habitava os olhos verdes de Kate Burnett, no momento em que ela lhe pedira que cuidasse do filho. Um sorriso insinuou-se nos lábios de Richard, apesar da tristeza que o dominava. Pois acabava de se lembrar da confiança que o pequeno Jonathan demonstrara, com relação a ele, desde o primeiro momento. Aliás, o pessoal do hospital o havia tomado pelo pai do garotinho. Esse fato fora como um alento para seu coração sofrido. Justo ele, que durante os últimos anos estremecia ao ouvir a palavra filho... Pois esta o fazia lembrar-se do bebê que morrera antes mesmo de nascer. O sorriso apagou-se dos lábios de Richard. E a angústia voltou a imperar, soberana, em seu íntimo. "Minha culpa", ele pensou novamente. Essa sinistra certeza o acompanhava havia três anos. Na época do acidente que matara Stacy e o bebê, Richard julgara que fosse enlouquecer. Todo mundo, sem exceção, tentara arrancá-lo desse remorso: os médicos, a mãe, os amigos mais próximos, até mesmo os pais de Stacy lhe diziam que ele não podia se considerar responsável por aquela tragédia. Porém, de nada adiantara. O remorso já se arraigara profundamente em sua alma. E ninguém no mundo poderia removê-lo dali. Uma enfermeira entrou no campo de visão de Richard, que voltou ao momento presente. Com a respiração suspensa, ele observou-a aproximar-se do leito de Kate e consultar a


prancheta com as informações sobre seu estado. A enfermeira puxou o lençol para baixo, talvez para prestar alguma assistência à paciente. Richard notou que um braço de Kate estava enfaixado, desde o cotovelo até a mão. Havia também outros ferimentos e escoriações, nas pernas e pés, ele constatou, penalizado. A fadiga, resultante de muitas horas de trabalho e do desgaste nervoso, começava a cobrar seu tributo. Richard sentia que as energias o abandonavam. Ele precisava, urgentemente, de descanso. Sabia que de nada adiantaria continuar ali, olhando para Kate e remoendo a terrível tragédia do passado. Era melhor ir para casa, levando o pequeno Jonathan. — Tenho de ir — ele se ordenou, baixinho. Entretanto, não conseguia se mover dali. Na verdade, estava dividido: por um lado desejava permanecer exatamente naquele local, observando Kate Burnett, até que ela reagisse aos medicamentos e saísse do estado de choque. Por outro, porém, tinha vontade de correr para longe, o mais longe possível do hospital e de tudo o que ele representava. Richard passou a mão nos cabelos negros, num gesto de nervosismo e cansaço. Era como se duas forças contraditórias o habitassem. E por um momento ele desejou, realmente fugir... Fugir daquela jovem mãe e do filho entregue a seus cuidados. Fugir do hospital que lhe trazia terríveis lembranças. Fugir do cheiro anti-séptico da morte. — Oh, não — Richard murmurou. — Eu não suportarei um segundo golpe. Não podia simplesmente continuar ali e assistir à morte de outra mulher. Bem, isso não ia acontecer. Não mesmo. Além do mais, o estado de Kate não era tão grave quanto o de Stacy. As circunstâncias também eram outras. Richard fechou os punhos com força, tentando reunir as últimas reservas de energia que lhe restavam. Tinha trabalhado arduamente, nos últimos anos. O resultado era bem visível: sua empresa de informática havia se transformado numa das maiores de Memphis. Mas não fora por ambição que se entregara dia e noite ao trabalho. Na verdade, só fizera isso para tentar esquecer, ou ao menos amenizar, a dor dilacerante que habitava seu o coração. Enquanto trabalhava, Richard às vezes conseguia deixar de pensar na tragédia que arruinara para sempre seu sonho de ser feliz com Stacy e o bebê. A maioria das pessoas o consideravam um vencedor. Apenas as mais próximas sabiam que, para ele, o dinheiro e o sucesso não eram os fatores mais importantes da vida. Três anos atrás, nos dias que se seguiram à tragédia, Richard ficara totalmente desorientado. Os amigos tinham lhe recomendado que viajasse, procurasse se espairecer. Mas Richard sabia que, para onde quer que fosse, levaria consigo o sofrimento. Além do mais, o significado da palavra espairecer parecia-lhe totalmente ridículo, diante de tanta dor. Assim, ele concentrara todas as forças na empresa. Os programas que criava, as inovações, os periféricos, o sucesso... Tudo isso o ajudava a ludibriar o remorso, durante o dia. E, à noite, a exaustão ajudava a chamar o repouso merecido, depois de uma jornada de até dezoito horas de trabalho. — Sr. Richard MacNeal? — Uma enfermeira tocou-lhe o braço, gentilmente. — Sim? — Richard voltou-se. — Já entreguei a ficha da sra. Kate Burnett na tesouraria. Ela está a sua inteira disposição. — Ah, claro — Richard assentiu. Havia informado aos médicos que fazia questão de encarregar-se de todas as despesas do tratamento de Kate Burnett. Agora, teria de passar pela tesouraria, para assinar um termo de compromisso. — Fique tranquila, Kate — ele disse, baixinho, fitando com intensidade a mulher inconsciente, em quem a enfermeira acabava de aplicar uma injeção. — Cuidarei de Jonathan para


você. A enfermeira pareceu perceber o que se passava, pois naquele momento voltou-se para Richard e sorriu, como se o encorajasse. Ele acenou-lhe e afastou-se em direção à tesouraria, onde foi atendido com especial deferência. — O senhor é marido da sra. Kate Burnett? — uma funcionária jovem e simpática indagou. — Não, senhorita. Na verdade, eu... — Richard interrompeu-se. Quase ia confessando que nem sequer a conhecia. Mas conseguiu corrigir-se a tempo. — Sou apenas um amigo. — Ah — a jovem assentiu, entregando-lhe um documento. — Queira assinar este termo de compromisso, sim? — Certo — Richard aquiesceu. — Aqui está o orçamento do tratamento da sra. Kate Burnett. Talvez hajam alterações, dependendo das reações que ela apresentar. Richard leu o papel que a funcionária lhe estendia. Felizmente, possuía dinheiro bastante para pagar a pequena fortuna ali descrita. — Eu já disse ao dr. Silverstein que pagarei tudo o que for necessário ao bem-estar de Kate — ele informou à funcionária. — Sim, sr. MacNeal. — A jovem sorriu, solícita. Pouco depois, Richard despedia-se e saía em direção à sala de espera, onde deixara Jonathan dormindo, cerca de uma hora atrás. Onde estava com a cabeça, quando sentira vontade de fugir daquele hospital?, perguntou-se. Nunca nem mesmo no auge do desespero, seria capaz de abandonar Kate e o pequeno Jonathan. Bem, não adiantava recriminar-se. Richard sabia o quanto o desgaste podia perturbar a mente e, sobretudo, o espírito. Ansioso para ver o garotinho, ele apressou o passo. Jonathan já havia acordado. Sentado num tapete, brincava com cubos coloridos, sob o olhar atento de uma enfermeira. O garotinho sorriu ao vê-lo: — Oi, amigo. Onde está mamãe? — Descansando — Richard respondeu, tomado de ternura por aquela criança encantadora. — Quero ver mamãe. — Agora, não vai dar. Além do mais, ela está dormindo e não poderia mesmo conversar com você. — Mas eu queria... — Querido, lembra-se que eu lhe expliquei que sua mamãe precisa descansar muito, para ficar boa? — a enfermeira interveio. Era uma mulher de cerca de cinquenta anos, de olhar bondoso e compreensivo. Richard fitou-a com um misto de simpatia e gratidão. Não saberia mesmo o que fazer, se o pequeno Jonathan começasse a insistir em ver Kate. — Por que não convidamos seu amigo para brincar conosco? — a enfermeira sugeriu. — Você quer, Richard? — o menino perguntou. — Claro. — Richard sentou-se no tapete, ao lado dele. — Eu adoro cubos coloridos, sabia? — É mesmo? A sra. Andersen também sabe fazer coisas bem bonitas, com eles. — Jonathan referia-se à enfermeira. — Aposto que sim — Richard concordou, olhando do garoto para a mulher, que agora se levantava. — Bem, com licença. Tenho umas tarefas a fazer. — Que tarefas? — Jonathan quis saber. — Preciso cuidar de um garotinho que tem quase a sua idade, meu bem. — Ele está doente?


— Esteve, mas já começou a ficar bom. — Então, ele pode brincar com a gente? — Ainda não, querido. — Inclinando-se, a sra. Andersen acariciou-lhe os cabelos castanhos. — Mas daqui a alguns dias, quem sabe?! — Daqui a alguns dias mamãe já vai estar em casa. Jonathan afirmou, enquanto separava alguns cubos, colocando-os diante de Richard. Fitando-o com expectativa, perguntou: — Não é mesmo, amigo? — Talvez — Richard respondeu. — Oh, com certeza ela estará, sim — a enfermeira assegurou. Richard lançou-lhe um olhar inquieto. Não gostava de mentir para ninguém, principalmente para crianças. Kate Burnett talvez levasse semanas para voltar para casa. Isso dependeria de sua reação. Mas era óbvio que não se recuperaria em poucos dias. — Bem, até mais tarde, garotos — a enfermeira acenou e afastou-se pelo corredor que conduzia ao setor de pediatria. — Espere um momento, sim, meu anjo? — Richard pediu a Jonathan. — Eu já volto. — Aonde você vai? — Falar com a sra. Andersen. Mas levarei apenas um instante. — Richard apressou-se a alcançar a enfermeira, no corredor. — Por favor, senhora... — Sim? — Ela voltou-se, com um sorriso. — Em primeiro lugar, quero agradecê-la por ter feito companhia a Jonathan. — Ora, foi um prazer. Eu adoro crianças, sr. MacNeal. Tanto, que o setor de pediatria é o meu preferido Richard assentiu, polidamente. E hesitou antes de dizer: — Sra. Andersen, é bem provável que nos encontremos nas próximas semanas, quando eu vier visitar Kate. Talvez tenha de trazer Jonathan. Então, pedirei à senhora que fique com ele, quando eu for conversar com os médicos. — Pois estarei a sua inteira disposição, sr. MacNeal — a enfermeira respondeu, solícita. — Jonathan é um amor de garoto. Tão esperto para sua pouca idade! E difícil acreditar que ele tenha apenas quatro anos. — De fato, Jonathan é uma criança de rara inteligência e sensibilidade. Por isso mesmo, peço-lhe que seja sincera com ele. — Como assim? — A sra. Andersen franziu o cenho. — Eu sempre sou muito sincera com as pessoas em geral, sobretudo com as crianças. — Perdoe-me se eu lhe parecer grosseiro, mas devo lembrá-la que a senhora acabou de mentir para Jonathan. — Eu? — ela reagiu, chocada. — Sim, ao dizer-lhe que sua mãe voltará para casa dentro de alguns dias. A enfermeira fitou-o com estranheza, mas depois meneou a cabeça e sorriu. — Então foi por isso que o senhor me olhou com aquele ar de censura, agora há pouco... — Para ser franco, sim — Richard confirmou. — Não há nada que eu deseje mais do que ver Kate Burnett voltar para casa. Mas sei que isso não acontecerá em breve. — Bem, pelo que o dr. Silverstein comentou, ela está em estado de choque. Mas pode reagir a qualquer momento. E, às vezes, ocorrem milagres. Eu mesmo já presenciei alguns, em meus quase trinta anos de carreira. — Espero, sinceramente, que um milagre desses aconteça com Kate. — Richard suspirou. — Mas o fato é que as possibilidades reais são bem diferentes. — Richard! — Jonathan o chamou, a poucos metros de distância. — Você não vem? — Já estou indo, meu anjo. — Voltando-se para a enfermeira, Richard resolveu ser direto: — O que quero dizer, sra. Andersen, é que não acho justo mentir para Jonathan, dando-lhe uma falsa segurança. — O que o faz pensar que eu agi assim? Baixando a voz, Richard afirmou:


— Bem, a senhora lhe disse que Kate estaria de volta em casa dentro de alguns dias... A enfermeira voltou a sorrir, antes de indagar: — O senhor tem filhos? A pergunta pegou Richard de surpresa. Engolindo em seco, ele respondeu: — Não. Mas o que isso tem a ver... — Com o assunto? — a sra. Andersen completou. — Sim. — Se o senhor fosse pai, compreenderia porque falei daquela maneira com Jonathan. — E a enfermeira explicou: — Aos quatro anos, por mais inteligente e sensível que seja, a criança não tem uma noção muito exata do tempo. Alguns dias é uma expressão que pode significar uma longa espera, ou algo mais suportável. Isso dependerá de um único fator. — Qual, sra. Andersen? — O modo como a criança passará esses dias. No caso de Jonathan, creio que o senhor será diretamente responsável por isso. Se conseguir entretê-lo, dando-lhe segurança emocional além de suprir-lhe as necessidades físicas básicas, o menino passará sem grandes traumas por esse período. — A enfermeira fez uma pausa. — Se quer saber minha opinião, sr. MacNeal, aposto que o senhor dará conta dessa tarefa, sem grandes problemas. Richard sorriu, sentiu-se grato àquela mulher sábia e simples, que talvez nem tivesse idéia do grande apoio que estava lhe dando. — Obrigado por seu voto de confiança, sra. Andersen. E desculpe minha ignorância, com relação à psicologia infantil. — A psicologia é uma ciência. Mas, como dizia Albert Einstein, a intuição deve ser nosso verdadeiro guia. Quando nos falta conhecimento teórico, o coração é o melhor conselheiro. E, pelo que pude perceber, o senhor tem um ótimo coração. — Agradeço, mais uma vez, suas palavras de conforto. — Richard estava comovido. — Ora, o senhor bem que merece. Kate Burnett e o pequeno Jonathan têm sorte de poder contar com seu apoio. — Estendendo a mão, a sra. Andersen despediu-se: — Agora preciso ir, pois tenho um paciente me esperando. — Está bem. Obrigado por tudo, sra. Andersen. — Ora... — Com um aceno para Richard e outro para Jonathan, ela se afastou. Mas ainda voltou-se para dizer: — Se tiver necessidade de conversar sobre esses assuntos tão delicados, pode contar comigo, sr. MacNeal. — Certo. — Richard sorriu novamente. — Acho que vou precisar, sim. — Conversar do quê? — o pequeno Jonathan quis saber. — De cubos coloridos e amizade — Richard respondeu, sentindo o coração mais leve. Naquele momento difícil, a solidariedade da sra. Andersen e a inocência daquele garotinho eram como um oásis em meio ao deserto em que sua alma se encontrava. Essa sensação aumentou, à medida que Richard brincava com Jonathan. O menino parecia confiar inteiramente nele. E isso o comovia sobremaneira. Jonathan era uma criança espontânea e encantadora, além de muito brilhante. Possuía olhos azuis, como os dele, Richard constatou. E cabelos castanhos. Tinha a pele clara, naturalmente corada. O garotinho havia herdado, da mãe, o tom da pele e o nariz arrebitado. Talvez os cabelos castanhos fossem como os do pai, assim como os olhos. O menino conversava com desenvoltura e, ao menos naquele momento, já não parecia tão preocupado com a mãe. Em pouco tempo, Richard ficou sabendo que ambos vinham de Jackson, uma cidade não muito distante de Memphis. E que tinham chegado havia pouco tempo. Richard chegou a essa dedução porque Jonathan mencionou, orgulhoso, que ia entrar numa nova escolinha, bem mais bonita do que a que frequentava em Jackson. Richard ficou sabendo, também, que Kate começaria a trabalhar brevemente nessa mesma escola. Seria professora? Ou pedagoga, talvez?


Mais de uma hora se passou. Jonathan começava a se cansar da brincadeira com os cubos. — Que tal se fôssemos embora, amigo? — Richard propôs, delicadamente. — Para minha casa? — Jonathan perguntou. — Não, querido... Para meu apartamento — Richard respondeu, cauteloso. Tinha encontrado uma agenda, entre os pertences de Kate, com vários recortes de jornal sobre apartamentos para alugar. Certamente ela havia optado por um deles. Mas qual seria? — Vamos? — ele insistiu, acariciando os cabelos do garotinho. Jonathan ficou em silêncio por alguns instantes. Por fim, concordou com um gesto de cabeça, enquanto bocejava. — Você está com sono novamente? — Um pouquinho. — Logo poderá dormir. Mas, antes, precisa comer alguma coisa. — A sra. Andersen já me deu um lanche bem gostoso. — Abençoada sra. Andersen — disse Richard, como se para si. — O que é abençoada? — Jonathan quis saber. — É uma pessoa boa, alegre e generosa... Assim como a sra. Andersen. — Ah, bom — Jonathan assentiu, muito sério, enquanto tomava-lhe a mão. Assim, ambos caminharam em direção à saída do hospital. Já na portaria, Jonathan perguntou, de súbito: — Posso ver a mamãe, antes de ir embora? — Acho que não, querido. Lembra-se de que a sra. Andersen disse que ela precisa dormir bastante? — Mas eu não vou fazer barulho... Penalizado e ao mesmo tempo enternecido, Richard afirmou: — Tenho certeza de que você ficaria em silêncio, amigo. Mas, mesmo assim, não poderá vêla... por enquanto. Jonathan baixou o rostinho. Quando o ergueu, seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Por favor, não fique assim. — Richard abaixou-se e abraçou-o com força. — Estou com saudade da mamãe. — Jonathan agora chorava baixinho. Richard sentia o coração partido. Não se sentia com forças para suportar aquela provação. Mas era óbvio que essas crises de choro de Jonathan se repetiriam, nos próximos dias. — Vá para casa, sr. MacNeal — disse uma voz suave, logo atrás de Richard. Voltando-se, ele deparou com a sra. Andersen. — De nada adianta continuar aqui. O senhor e o pequeno Jonathan precisam descansar. Fazendo um intenso esforço para não demonstrar a emoção que sentia, Richard perguntou ao garotinho: — Que tal seguirmos o conselho da sra. Andersen? — "Tá" bom — o menino concordou, aconchegando-se em seu peito. Richard levantou-se, com Jonathan nos braços. Virou-se para a sra. Andersen, para agradecê-la. Mas ela já havia se afastado. "Acho que de hoje em diante poderei dizer que já vi um anjo pessoalmente", Richard pensou, invadido por uma sensação de alívio. "Pois, se existem anjos, a sra. Andersen é um deles." O jipe de Richard estava estacionado no pátio do hospital. Um policial o havia liberado, depois de registrar a ocorrência. — Seu jipe é tão bonito — Jonathan comentou, com a curiosidade própria dos meninos. Seu rostinho ainda trazia as marcas do choro, Richard observou, enternecido. Decididamente, a lógica das crianças era bem diferente da dos adultos. O pequeno Jonathan, ao menos naquele instante, parecia não ver nenhuma conexão entre o jipe azul e o acidente. O ânimo do garotinho melhorou ainda mais quando Richard o acomodou no banco da frente, fixando o cinto de segurança da melhor maneira possível. Richard dirigiu em baixa velocidade, até chegar ao condomínio onde morava. No dia seguinte, e nos próximos, usaria seu Mercedes. Pois não era nada seguro conduzir uma criança de


quatro anos no banco dianteiro de um jipe. Ele quase comentou esse fato em voz alta, mas calou-se a tempo. Afinal, Jonathan parecia encantado com o jipe... Como aliás qualquer criança ficaria. — Veja... — Jonathan apontou um cartão, sobre o painel, no momento em que Richard estacionava em sua vaga, na garagem do condomínio. — O que é isso? — Não sei. — Richard pegou o cartão e, acendendo a luz do interior do veículo, leu: — Charles Albert Oak... Veterinário. Quem será? O verso do cartão trazia uma mensagem que explicava tudo: Senhor, não sei o seu nome. Sou o motorista da caminhonete que bateu no Escort daquela pobre moça. Por favor, entre em contato comigo, para dar-me notícias sobre ela e o garotinho. Obrigado. Richard guardou o cartão no bolso. — Posso ver? — Jonathan pediu. Richard aquiesceu. O menino olhou o cartão e o devolveu em seguida. Richard saltou do veículo e, contornando-o, abriu a porta do lado de Jonathan. Tirou-lhe o cinto de segurança e estendeu os braços: — Venha, amigo. O menino sorriu e atirou-se em seu colo, com uma confiança comovente. Richard acariciou-lhe os cabelos e colocou-o no chão. "Fique tranquila, Kate Burnett, pois cuidarei de seu filho", disse, em pensamento. "Eu sei." Richard estremeceu. Teria sido impressão, ou acabava de ouvir a voz de Kate, com uma nitidez impressionante? E como a confirmar aquele momento de magia, o pequeno Jonathan comentou: — Mamãe vai ficar contente. — Por quê? — Por saber que eu vim para cá. Assim, você pode cuidar de mim. Richard sorriu, tomado por um sentimento que mesclava alívio, ternura e alegria. Ele, que sempre fora cético em relação a fenômenos paranormais, telepatia e premonições, não podia negar que algo inexplicável acabava de acontecer. — "Há muito mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia" — Richard citou o grande dramaturgo, William Shakespeare. — O que você disse? — o garotinho perguntou. Sorrindo, ele respondeu: — Falei que tem certas coisas, na vida, que a gente não entende. — Minha mãe entende tudo — Jonathan sentenciou, tomando-lhe a mão. — Vamos? Richard continuava sorrindo, invadido por uma forte emoção. Afinal, quem estava conduzindo quem? Naquele instante sublime, quem era o menino? Jonathan, ou ele próprio? CAPÍTULO III Perdido em algum ponto entre o sono e a vigília, Richard sentiu um aroma tentador de café e ovos com bacon. Ainda nesse estado, ele sorriu. Devia ser domingo, o único dia em que não trabalhava na Data Enterprises. Era, também, o dia em que costumava encontrar sua mãe, Alice MacNeal. Às vezes ela lhe fazia uma surpresa: como tinha as chaves do apartamento, chegava cedinho e preparava-lhe um saboroso desjejum. Devia ser isso que estava acontecendo naquela manhã, Richard pensou, vagamente, enquanto esticava o corpo, buscando uma posição mais confortável. Com certeza Alice estava na cozinha, passando café, fritando ovos com bacon, preparando panquecas deliciosas como só ela sabia fazer. Depois, ele a levaria para passear. Almoçariam juntos e, à tarde, assistiriam a um bom filme.


Richard abriu os olhos. Ainda estava pensando em como seria bom passar o dia na companhia da mãe, quando caiu na dura realidade. — Jonathan! — exclamou, levantando-se de um salto, enquanto lançava um olhar aflito na direção do relógio de cabeceira. Onde estaria o menino? Já teria acordado? Era bem provável que sim. Afinal, passava das dez horas. Richard correu até o banheiro, para tomar uma rápida ducha. O forte jato de água morna massageou-lhe os músculos cansados e ajudou-o a despertar de vez. Com movimentos apressados, ele vestiu uma bermuda bege, uma camiseta branca, calçou confortáveis chinelos de lona e saiu da suíte. Caminhando a passos largos pelo corredor, chegou a uma das suítes de hóspedes, que havia preparado para Jonathan, na véspera. Bateu à porta e entrou, mas o garotinho não se encontrava lá. Entretanto, a cama estava arrumada. Richard sorriu. Aos quatro anos, Jonathan já havia aprendido a arrumar sua própria cama. Isso não era apenas espantoso, mas também comovente. Saindo da suíte, Richard dirigiu-se à sala e, dali, à cozinha. Ao se aproximar, ouviu vozes animadas, que logo identificou. A cena que viu, em seguida, o fez lembrar-se de um sonho que ele acalentava, antes de perder Stacy e o bebê... Alice MacNeal usava um avental marrom sobre seu vestido estampado com motivos florais, onde os tons amarelos predominavam. Alice era uma mulher robusta e vigorosa, de estatura média. Tinha completado cinquenta e cinco anos no mês anterior. Ainda conservava, no rosto arredondado e risonho, traços da beleza que possuíra na juventude. Os cabelos negros, já grisalhos, estavam cuidadosamente arrumados, em um coque. Os olhos, castanhos, guardavam um toque de vivacidade. Richard amava a mãe, não apenas pelo laço indestrutível que os unia, mas também por admirá-la. Era incrível como os sofrimentos da vida não tinham conseguido apagar o brilho dos olhos de Alice, nem a alegria de seu coração. Naquele momento, ela explicava a Jonathan o segredo de fazer panquecas deliciosas, no ponto perfeito. — Primeiro, você tem que preparar a massa, de modo bem equilibrado. Nada de exagerar nos ingredientes. Se puser muito leite, a panqueca não chegará à consistência necessária para ser levada à frigideira. Se puser muita farinha, ela ficará pesada e perderá boa parte do sabor... Sentado numa banqueta, perto do fogão, Jonathan a escutava com um interesse que a maioria dos garotinhos de sua idade certamente não teria. Alice, por sua vez, parecia uma dedicada e paciente vovó. Quantas vezes, durante a gestação de Stacy, Richard sonhara com aquela cena! Apenas, havia uma diferença... No sonho, Alice estava exatamente assim: preparando guloseimas enquanto conversava com o neto. Mas esse neto era o bebê que morrera com Stacy, que nem sequer chegara a se transformar num garotinho. Abalado por essa lembrança dolorosa, que o abatia com a violência de um golpe, Richard rechaçou-a com toda força de que era capaz. Não queria pensar na tragédia que lhe roubara a possibilidade de ser feliz. Não quando estava apenas começando um novo dia. Com um brusco meneio de cabeça, ele procurou afastar aquela imagem da mente. O movimento chamou a atenção de Jonathan, que sorriu ao vê-lo. Saltando da cadeira, correu em sua direção: — Oi, amigo. Adivinhe o que Alice está fazendo? — Sem esperar pela resposta, anunciou: — Panquecas em forma de gato! — Não diga! — Richard fingiu-se surpreso, enquanto o tomava no colo e o beijava


carinhosamente. Desde criança, conhecia aquela velha frigideira, que tinha a forma de um gato. Muitas vezes, quando menino, sentira-se tão entusiasmado quanto o pequeno Jonathan. Mal podia esperar para saborear as panquecas que, além do mais, tinham um formato diferente das comuns. Quando Stacy ficara grávida, Alice dera-lhe de presente a tal frigideira, mas com um aviso: — Quem vai usá-la sou eu, para preparar as mais deliciosas e divertidas panquecas do mundo para meu neto. Esse sonho também não chegara a acontecer, Richard pensou, com tristeza. Mas, curiosamente, parecia estar se realizando naquele momento, ao menos em parte... O garotinho era outro. Mas Alice e ele eram os mesmos... Ou não? Mais uma vez, Richard teve de lutar para não ceder à angústia. Ele nunca mais seria o mesmo, depois da tragédia que o abatera, três anos atrás. "Quero pensar apenas no presente", decidiu, colocando o pequeno Jonathan no chão. Aquele momento era belo demais para ser ignorado. E Richard queria desfrutá-lo, em toda sua intensidade. Seus olhos encontraram os da mãe, Alice MacNeal. Ela parecia tão emocionada quanto ele, Richard constatou. Mas nem por isso o poupou de suas brincadeiras, como aliás era seu costume: — Ora, se não é o sr. Rip Van Winkle! — Alice exclamou. Segundo a lenda, esse personagem teria dormido por um século. Ao acordar, descobrira que sua barba chegava até os pés. O pequeno Jonathan riu, divertido, antes de comentar: — Mas a barba de Richard cresceu só um pouquinho, mesmo ele tendo dormido muito. — Vejo que você conhece a estória de Rip Van Winkle. — Alice sorriu para o garotinho. Em seguida voltou-se para Richard. — Jonathan é muito inteligente, além de encantador. — Isso, eu já havia percebido. — Richard sorriu para a mãe. Os dois se beijaram, carinhosamente, nas faces. — Por que não me chamou, mamãe? — Richard perguntou. — Porque pensei que você já estivesse acordado, oras. Logo que entrei aqui, ouvi movimentos na cozinha. Imagine minha surpresa quando descobri que quem estava preparando o desjejum era um garotinho de quatro anos de idade e não um homem de trinta e três! — Eu tenho quase cinco anos! — Jonathan fez questão de frisar. Richard fitou-o por um instante, com uma expressão de espanto. Em seguida perguntou a Alice: — Você está dizendo que Jonathan preparou tudo isso, mamãe? — Acredite se quiser, querido. — Mas não é possível! — Richard voltou-se para o garotinho. — Como fez isso, Jonathan? O menino deu de ombros, como se não compreendesse o motivo de tanto espanto. — Sempre faço o café da manhã para mamãe, antes de ela ir trabalhar. — Hesitou, antes de prosseguir: — Ponho o pó no coador e deixo a água numa vasilha, pronta para ferver, em cima do fogão. Mamãe me pediu para não acender o fogo, porque tem medo que eu me queime. — Com um sorriso angelical, finalizou: — Mas hoje, como mamãe não estava aqui, eu quis fazer uma surpresa para você, amigo. Por isso acendi o fogo e passei o café. — E também fritou os ovos e o bacon... — Alice interveio — para fazer uma surpresa a Richard? — Sim. Lá em casa eu sempre deixo os ovos numa tigelinha, prontos para mamãe fritar. Mas hoje eu resolvi cuidar disso... Comovido, Richard abaixou-se e acariciou-lhe o rostinho. — Agradeço esta linda surpresa, Jonathan. Mas, por favor, não volte a mexer com fogo, está bem? Você pode se queimar... — Ih, você está falando igualzinho a mamãe.


— É porque me preocupo com seu bem-estar. — Falou igualzinho de novo. A graça de Jonathan era irresistível. E os adultos riram, entre emocionados e divertidos. — Veja só a mesa que nosso amiguinho arrumou — disse Alice. — Incrível — Richard surpreendia-se, mais uma vez. A louça, talheres e descansos de madeira estavam bem distribuídos, sobre uma toalha xadrez, azul e branca. — Nem é preciso dizer que, na sua casa, é você quem arruma a mesa — disse Richard. — Acertou, amigo — o garotinho respondeu, orgulhoso. Alice voltou a fritar panquecas. Faltavam apenas duas e ela logo terminou o trabalho. — Vamos tomar café, meninos? Está tudo pronto. — Posso levar as panquecas para a mesa? — Jonathan pediu. Richard e Alice trocaram um olhar preocupado. A travessa de louça, contendo cerca de uma dúzia de panquecas, podia ser pesada para aqueles bracinhos tão frágeis. — Por favor... — o menino insistiu. E Alice, como uma típica avó-coruja, não conseguiu recusar. — Está bem, mas tome cuidado, sim? O garotinho assentiu, muito sério, enquanto pegava a travessa com extremo cuidado. Richard e Alice o observaram atentamente, enquanto ele caminhava devagar em direção à mesa. — Olhe bem para o pequeno Jonathan, filho — disse Alice, em voz baixa. — Já percebeu o quanto ele se parece com você? — Comigo? — Richard reagiu, surpreso. — Sim. Você, quando tinha essa idade, era quase idêntico a ele! — Não exagere, mamãe — Richard a repreendeu, carinhosamente. — Compreendo que esteja encantada com Jonathan e não a censuro por isso. Afinal, sei que ele é irresistível. Mas daí a julgar que nós dois... Richard não concluiu a frase. Tinha acabado de ver Jonathan depositar a travessa sobre a mesa e subir numa cadeira. Até aí, isso não significava nenhuma novidade. Mas o fato do garotinho ter se ajoelhado e batido o garfo sobre o prato, exatamente como ele costumava fazer... era incrível. — Acho que temos uma semelhança, sim — Richard acabou admitindo, tomado por uma forte emoção. — A mesma cor dos olhos, por exemplo. — Não apenas a cor, mas o jeito de olhar, curioso, como se o mundo fosse uma caixinha de surpresas — Alice afirmou, docemente. — E também o modo de sorrir. Nossa, vocês são tão semelhantes! Esse menino parece seu filho, Richard! Mal havia acabado de falar, Alice levou a mão à boca. — Eu e minha língua comprida. Desculpe, querido, eu não deveria tocar nesse assunto doloroso, não é mesmo? — Não se preocupe, mamãe. Eu mesmo venho pensando nisso, desde ontem. Afinal, a circunstância em que conheci Jonathan... — Qual foi? — Alice o interrompeu. — Ele não lhe contou? — Não. Disse apenas que era seu amigo. — Vamos comer? — Jonathan interveio. — Mais tarde eu lhe contarei, mamãe — Richard avisou-a, discretamente, enquanto se dirigia à mesa. Pouco depois, os três saboreavam o desjejum, num clima alegre e cheio de emoção. A inocência de Jonathan era comovente. A presença de uma criança iluminava a vida dos adultos, emprestando-lhe um novo sentido. Kate começava a se sentir cansada. A tentação de se entregar ao poço escuro ia se tornando maior, à medida que suas dores aumentavam. Ela sabia que não podia ceder, que apesar de tudo as dores pertenciam ao mundo vivo. A ausência de sofrimento era também o nada.


Como podia saber de tudo isso, Kate não tinha a menor idéia. Mas uma certeza a habitava: se ela cedesse, se permitisse que as sombras a arrastassem novamente para aquele poço escuro, talvez já não conseguisse voltar. Havia momentos em que ela podia sentir o próprio corpo, dolorido e frágil. Depois, essa sensação se desvanecia. Ela também não tinha idéia de onde estava, ou do que acontecia ao redor. Chegou mesmo a ouvir barulhos, embora não conseguisse identificá-los. Havia também o som de vozes. Mas pareciam tão distantes, confusas, vagas. De algum modo, Kate sabia que era preciso concentrar-se nesses sinais. Mas não conseguia fixar-se nele por muito tempo. Tinha de haver um elo, um caminho que a salvasse, em definitivo, do perigo de voltar à escuridão. Sem noção alguma do tempo, ela ora se perdia numa sonolência, ora era atacada por uma dor dilacerante, ora caía no vazio, no nada. Ah, como era cansativo vagar assim, entre tantas formas de percepção. Se ao menos ela pudesse desfrutar de algum alento, um breve período de descanso que fosse, para recuperar um pouco de energia! — Kate... A Voz havia retornado. Quente, cálida e tão próxima, como se falasse diretamente a sua alma. Kate fez um intenso esforço para concentrar-se nela. Não sabia, até aquele momento, que estivera o tempo todo esperando pela Voz. Por isso lutara tanto para não ceder ao caminho sem volta do poço escuro. — Sei que você provavelmente não pode me ouvir — A Voz continuava. — Mas talvez consiga compreender, de algum modo, o que estou dizendo... Senão as palavras, ao menos seu significado. Kate queria sair do estado de inércia no qual se encontrava. Seria tão bom se pudesse responder àquela Voz... Entretanto, seu corpo parecia alheio a sua vontade. Alheio, sim. Mas não insensível, Kate constatou, em seguida. A maior prova disso era um contato cálido em sua testa. — Jonathan está bem. Quanto a isso, você pode ficar tranquila — dizia A Voz. — Naturalmente, não me deixaram trazê-lo aqui, na unidade de terapia intensiva. Mas hoje ao menos me deixaram entrar e ficar pertinho de você. Até ontem, eu só podia olhá-la através do vidro. Kate experimentava uma indescritível sensação de bem-estar. Agora A Voz tocava-lhe as faces, o braço, a mão. Ah, como esse contato era precioso, vital! — Também, acho que você não gostaria que Jonathan a visse desse jeito. Apesar de ser uma criança muito inteligente e brilhante, ele ficaria impressionado. Olhe, eu não disse que seu estado é ruim... Apenas... bem, acho que você me entende. Será melhor que Jonathan a veja quando você estiver acordada. Assim, poderão conversar... Kate queria sorrir, agradecer a bondade expressa em cada palavra pronunciada pela Voz. Mas já não tinha domínio sobre si mesma. Conseguia apenas sentir, mas era incapaz de se mover. — Aposto que você está com saudade de seu filho. E esse sentimento é tão doloroso, apesar de belo, não acha, Kate? Por isso, trouxe-lhe uma coisa... Acho que é um jeito de tapear um pouquinho a saudade, de torná-la menos cruel. Escute só... Kate fez um intenso esforço para se concentrar. E então conseguiu ouvir, com clareza: Mamãe, você está aí? "Jonathan!" Ela quis gritar de felicidade. Era a voz do filho, seu motivo para viver. Tinha certeza disso. — Trata-se de uma fita cassete — A Voz esclareceu. — Eu e minha mãe ajudamos Jonathan a gravar esta mensagem, hoje de manhã. Escute só, Kate... Vou colocar o toca-fitas ainda mais perto de seu ouvido. Oi, mamãe. Estou no apartamento de Richard, com ele e Alice. Sabe de uma coisa? Tem


uma piscina linda, lá embaixo. Claro que agora está muito frio, para nadar. Mas Richard falou que posso vir no verão. Você também pode, mamãe. Bem, a piscina não é só dele. Alice me contou que é de todo mundo que mora neste... Como é mesmo o nome? Uma outra voz interveio. E Jonathan completou: Condomínio. Espere um pouco, mamãe... Alice falou uma coisa... Ah, ela pediu para contar que estou bem. Ela fez panquecas muito gostosas, hoje cedo. Panquecas em forma de gato, imagine só! Eu preparei o café da manhã para Richard. Ele prometeu que vai me levar até aí, no hospital, quando você acordar. Puxa, você está dormindo tanto... Mas Alice falou que isso é bom, que o sono ajuda a sarar. Agora era A Voz que intervinha. Richard está me perguntando se eu quero falar mais alguma coisa... Bom, eu quero dizer que te amo muito, mamãe, e que estou com saudade. Vê se acorda logo, "tá" bom? Kate conseguiu ouvir o som de um tique. E a voz de Jonathan cessou. Passou-se um período de silêncio, que Kate não saberia dizer se era longo, ou curto. Então, A Voz voltou a falar, bem perto de seu ouvido. — Já repeti isso muitas vezes, mas mesmo assim quero que saiba que estamos tomando conta de seu pequeno Jonathan. Portanto, não se preocupe, sim? Minha mãe, Alice MacNeal, sempre sonhou em ser avó. E agora está podendo realizar, temporariamente, esse desejo. Ela cuidará de Jonathan, enquanto eu for trabalhar. E incrível como as coisas acontecem... Três anos atrás, eu sonhava com um filho e, mamãe, com um neto. Mas então ocorreu uma tragédia, sabe? E a vida deixou de ter sentido. Desisti de tudo, mas mamãe nunca abriu mão do sonho de ser avó. Não tenho a menor idéia de como ela conseguirá realizá-lo, já que sou filho único e... A Voz não completou a frase. Quando voltou a soar, estava carregada de angústia e ironia. — Como sou idiota... Até parece que esse assunto lhe interessa, Kate. Até parece que você pode me ouvir! De qualquer forma, achei que você se sentiria melhor se soubesse que Jonathan está em boas mãos. Aliás, eu lhe prometi isso, não foi? E, modéstia à parte, sei cumprir minha palavra. Um novo período de silêncio se seguiu. "Fale, por favor. Não pare nunca de me dizer essas coisas tão lindas..." Era isso que Kate gostaria de pedir, se pudesse. E então, como se a tivesse ouvido, A Voz voltou a soar: — Por falar em Jonathan, acho que preciso lhe dar os parabéns, Kate. Você fez um ótimo trabalho com ele. Que criança sensível, inteligente, encantadora! E sabe do que mais? Minha mãe disse que eu, quando criança, era muito parecido com Jonathan... Imagine só! Mais uma vez, a ironia marcava, amargamente, A Voz. — Até parece que isso é verdade... Mas você sabe como são as mães... Sempre vendo os filhos com olhos bondosos... Mas de uma coisa você pode ter certeza: mamãe é uma pessoa especial. Admiro-a profundamente. Ela lutou muito para me criar, sabe? Teve de fazer tudo sozinha, pois não contava com o apoio de meu pai. Outro período de silêncio. Depois, A Voz continuou: — Só agora me ocorre que estamos vivendo uma situação semelhante, Kate. Você ontem me disse que o pai de Jonathan se foi... E o mesmo se deu com meu pai. Incrível, não? Bem, é melhor que eu vá embora, agora. Permitiram-me ficar aqui apenas por alguns minutos e acho que já estou abusando. Voltarei mais tarde, está bem? Kate queria tanto retribuir, ao menos em parte, o alento que A Voz lhe proporcionava. Todas aquelas palavras, o contato quente em sua mão e rosto... Eram como laços preciosos, que a ligavam à vida. — Trate de ficar boa, sim? — A Voz pedia, suave mente. — Jonathan precisa muito de você... E eu também. Ah, se você pudesse imaginar o quanto necessito vê-la recuperada! Por favor, faça isso por Jonathan, por você e, quem sabe, por mim. Kate queria dizer que sim, que faria de tudo para atender esse pedido da Voz. Mas não tinha domínio sobre si mesma. Ansiosa, ela esperou que A Voz disse mais alguma coisa. Porém, o silêncio voltava a


imperar no estranho mundo em que ela se encontrava. Não fazia mal... Agora, mais do que nunca, Kate estava certa de que conseguiria escapar do poço sem fundo onde tudo se findava... A Voz lhe dera a garantia de que ela precisava, para continuar a lutar para sobreviver: Jonathan estava em boas mãos. E isso era tudo que importava. A Voz cuidaria de seu filho, até que ela estivesse em condições de fazê-lo. A Voz era seu anjo da guarda, nesse mundo. CAPÍTULO IV Quando Richard entrou na unidade de terapia intensiva do Baptist Hospital, naquela noite, dirigiu-se diretamente à sala das enfermeiras e não ao leito de Kate. Queria saber notícias, a respeito de seu estado. Encontrou a sra. Andersen no corredor. Ela o saudou com um largo sorriso, enquanto anunciava: —Parece que temos boas novidades para o senhor. O rosto de Richard iluminou-se num sorriso cheio de esperança: — Kate Burnett... acordou? — Ainda não, sr. MacNeal. Mas apresentou uma melhora significativa e isso é maravilhoso. Venha comigo, sim? Vou levá-lo até Diane, que tem informações mais exatas sobre o estado dela. Richard acompanhou-a pelo corredor, até a sala das enfermeiras. — Eu estava mesmo vindo para cá — ele comentou. A risonha sra. Andersen bateu levemente à porta da sala, antes abri-la. Várias enfermeiras se encontravam ali. A sra. Andersen chamou uma delas. — Diane, por favor... — Sim? — Uma enfermeira de rosto sardento e jovial, aproximou-se. — Este é o sr. Richard MacNeal, namorado de Kate Burnett — disse a sra. Andersen. — Como vai, sr. MacNeal? — Diane o cumprimentou, com ar solícito. Richard retribuiu o cumprimento, com uma expressão ansiosa. — Estou bem, obrigado. É um prazer conhecê-la, senhorita. — Parece que Kate apresentou uma melhora significativa, não? — a sra. Andersen perguntou à colega. — Sim. — Então, explique detalhadamente ao sr. Richard MacNeal o que isso representa. — Claro — Diane aquiesceu. — Bem, com licença. Preciso cuidar de meus afazeres. — Voltando-se para Richard, a sra. Andersen estendeu-lhe a mão. — Foi um prazer revê-lo. — O prazer foi todo meu. — A propósito, como vai indo nosso pequeno príncipe? Compreendendo que ela se referia a Jonathan, Richard sorriu, ao responder: — Muito bem, obrigado. — Dê-lhe um beijo por mim. — Certo. Eu farei isso. Com um aceno, a enfermeira começou a se afastar, mas Richard alcançou-a. — Sra. Andersen? — Sim? Baixando a voz, ele afirmou: — A senhora disse a sua colega que sou... namorado de Kate Burnett. — E não é? — Na verdade, eu... — Richard hesitou. — Mesmo para uma mulher tão compreensiva e bondosa como aquela, seria difícil explicar sua verdadeira relação com Kate. Aliás, nem ele


mesmo saberia dizer, com exatidão, o tipo de laço que o unia àquela mulher. Por isso, optou por uma solução mais simples e declarou: — Sou apenas um amigo. — Jura? — A sra. Andersen arregalou os olhos vivazes. — Pois eu poderia apostar que vocês são namorados! — Pois dessa vez, mesmo com sua grande sabedoria a respeito da vida e dos seres humanos, a senhora errou o alvo — Richard comentou, cpm um sorriso. — Ou talvez eu tenha apenas previsto o futuro... — Como assim? — ele indagou, sem entender. — Quem poderá prever os caprichos do destino? Sou uma pessoa muito intuitiva, sabe? Talvez tenha percebido algo que está por acontecer... Richard meneou a cabeça, demonstrando sua incredulidade. — Bem, seja lá como for, achei que deveria esclarecer esse mal-entendido. — Naturalmente, sr. MacNeal. — Com um aceno, a sra. Andersen se afastou. Richard julgou ver um toque de ironia em seu olhar, mas não tinha tempo de pensar nisso, agora. Não quando estava tão ansioso para conversar com a enfermeira Diane, sobre a melhora de Kate. Aproximando-se, ele pediu-lhe que falasse sobre o fato. — Trata-se de uma mudança muito sutil — a enfermeira explicou. — Depois que o senhor a visitou, hoje cedo, ela parece estar mais serena. E seus sinais vitais aumentaram de intensidade. — Não diga! — Richard exclamou, tomado por um intenso alívio. — Tem certeza de que essa melhora está relacionada com minha visita? — Absoluta. Afinal, nós não alteramos o tratamento. Claro que todos estamos nos empenhando para que Kate Burnett se recupere. Mas acho que afeto que o senhor lhe transmitiu, hoje, foi extremamente importante. — Fico feliz em ouvir isso, senhorita. — E com os olhos azuis iluminados por uma centelha de esperança, Richard indagou: — A partir dessa melhora, seria possível fazer uma previsão a respeito de quando ela voltará à consciência? A enfermeira fitou-o com simpatia. Mas meneou a cabeça, num gesto de negação. — Não posso lhe dizer mais nada, antes que o dr. Silverstein a veja. As consequências de um estado de choque são imprevisíveis. A princípio, o fato da sra. Kate Burnett estar repousando mais serenamente pode ser encarado de várias formas. Quanto a mim, prefiro a interpretação mais otimista de todas. — E que interpretação seria essa, senhorita? — Richard indagou, ansioso. — Talvez a sra. Kate Burnett estivesse sendo perturbada por alguma preocupação, em seu subconsciente. E agora, que essa preocupação acabou, ela pode repousar melhor. Isso naturalmente aumentará sua possibilidade de recuperação. — Certo — Richard assentiu, pensativo. Hesitou por alguns instantes, mas atreveu-se a indagar: — E qual seria a interpretação mais pessimista, senhorita? A enfermeira Diane ficou em silêncio, como se relutasse em responder a pergunta. Por fim, declarou: — Seria acreditar que essa aparente serenidade da sra. Kate Burnett é, na verdade, uma tendência a um estado de coma profundo. — Oh, não! — Richard reagiu, horrorizado. — Não pode ser. — Concordo com o senhor. Se a paciente estava se debatendo, hoje de manhã, e agora dorme serenamente, é porque melhorou. — Com um sorriso encorajador, Diane concluiu: — Vamos esperar para ver, sr. MacNeal. — Esperar para ver — Richard repetiu, com um profundo suspiro. — Parece que esta é a frase preferida de todo mundo, por aqui. — Sinto muito, mas só podemos interferir até determinado ponto. Fazemos nossa parte e, o resto, é esperar pelo melhor. — A senhorita tem toda razão — Richard reconheceu, comovido. — Bem, agora


gostaria de ver Kate Burnett. — Claro. O senhor já sabe o caminho, não? — Sim. — Richard estendeu-lhe a mão. — Muito obrigado. A propósito, depois de visitar Kate, eu gostaria de falar com o médico responsável por ela. — Claro. O senhor não terá dificuldade de encontrá-lo. — Um tanto tímida, a enfermeira confidenciou: — Sabe, ainda hoje nós estávamos comentando que Kate Burnett tem sorte de contar com um namorado tão dedicado quanto o senhor. Richard sorriu, emocionado. Mas fez questão de esclarecer: — Eu... não sou namorado de Kate. — Não? — Diane repetiu, surpresa. — Mas o modo como a olha e conversa com ela... — Somos apenas bons amigos — Richard replicou. — Certo. — Embaraçada, Diane desculpou-se: — Nesse caso, queira perdoar-me pelo mal-entendido. É que a sra. Andersen disse... — Interrompeu-se e, por fim, concluiu: — Bem, não importa. O que realmente conta é o profundo laço que existe entre vocês. — Com certeza — Richard concordou e despediu-se. — Não vou mais tomar seu tempo, senhorita. Além disso, preciso ver Kate. — Claro. Até logo, sr. MacNeal. — Até. — E Richard afastou-se pelo corredor, em direção à unidade de terapia intensiva. Enquanto caminhava, pensava nas palavras da sra. Andersen. "Quem poderá prever os caprichos do destino...?" Era incrível. Tanto ela quanto Diane haviam interpretado erroneamente sua relação com Kate Burnett. Mas, também, o que poderiam pensar? Se soubessem da verdade, com certeza ficariam perplexas. Por um momento, Richard deixou que os pensamentos corressem soltos... Imaginou como seria sua relação com Kate, quando ela despertasse. E, depois, quando se recuperasse. Acabariam se tornando amigos? Era bem possível que sim. Afinal, ele não ia querer ficar longe do pequeno Jonathan por muito tempo... Além do mais, tinha lhe prometido que poderia nadar na piscina do condomínio, tão logo chegasse o verão. Entregue a essas divagações, Richard aproximou-se da sala de vidro, onde Kate dormia seu sono misterioso. A visão daquele corpo frágil, do rosto pálido, circundado por uma cabeleira loira e sem brilho, abateu-o como um duro golpe. As cenas alegres que ele havia projetado, na mente, desvaneceram-se como que por um triste passe de mágica. A realidade estampava-se, dura e cruel, à sua frente. Mas Richard não queria entregar-se à tristeza. Não naquele momento, quando precisava de toda sua energia para trazer Kate para o lado de cá da vida. Pouco depois, ele se aproximava do leito, contemplando-a com um misto de ansiedade e ternura. — Como vai, Kate Burnett? Aqui estou eu, novamente. Antes de mais nada, quero dizer que Jonathan está bem. Quando perguntei-lhe se tinha algum recado para você, ele respondeu: "Diga à mamãe que estou mandando um caminhãozinho cheio de beijos para ela." Não é comovente? Richard calou-se e fitou Kate, como se esperasse que ela abrisse os olhos e respondesse: "Sim, de fato é comovente." Por fim, meneou a cabeça: — Aqui estou eu, de novo, sonhando com o impossível. Mas algum dia já não terei de fazer esses monólogos. Algum dia você despertará e então conversaremos longamente. Espero que esse momento não custe muito a chegar. Richard teve a impressão de que as pálpebras de Kate se mexiam. Com a respiração suspensa, ele aguardou por um milagre... Mas nada aconteceu. Tomando a mão de Kate entre as suas, observou-a por um bom tempo. Era uma mão esguia


e delicada. Mas estava fria. E ele friccionou-a suavemente, para aquecê-la. Depois, fixou a atenção no rosto de Kate. Mesmo assim, tão pálida e aparentemente sem vida, aquela mulher era bela. Tinha os lábios finos e bem delineados, o nariz arrebitado, a testa larga, o queixo bem-feito. Quanto aos olhos, Richard já os conhecia... Eram os mais belos e profundos olhos verdes que ele já vira, em toda sua vida. Um misto de pena e ternura instalou-se em seu coração. — Quem é você, Kate Burnett? Ou melhor: quem era você, até antes do acidente? O que pensava ou sentia? Que tipo de planos costumava fazer, para o futuro? Que forma de lazer preferia? Como era sua rotina diária? Jonathan já me falou muito sobre vocês dois. Contou-me vários fatos e, por aí, pude deduzir jue você é uma pessoa cordata, alegre, sempre pronta a ajudar os outros, embora não goste de pedir nada a ninguém. — Richard fez uma pausa. — Entretanto, você me pediu um favor... Que procuro cumprir da melhor forma possível. E, para ser franco, acho que estou me saindo bem. — Sorrindo, acrescentou: — Também, Jonathan é uma criança maravilhosa. Na verdade, não sei quem está tomando conta de quem... Se eu e mamãe cuidamos dele, ou ele de nós. — Com licença, sr. MacNeal. — Diane entrou na sala, para tratar de Kate. — Dê-me apenas um minuto, sim? — Claro. — Richard afastou-se do leito. Com uma expressão penalizada, observou a enfermeira medicando Kate, com extrema delicadeza e habilidade. Pouco depois, Diane saía. Richard voltou a aproximar-se do leito. Estava arrasado. Uma coisa era ver Kate deitada, imóvel. Outra, era vê-la sendo manipulada, sem esboçar nenhuma reação. Acariciando-lhe o rosto delicadamente, Richard murmurou: — Dizem que, neste mundo, nada acontece sem um motivo. Dizem, também, que existe uma coisa chamada livre-arbítrio, ou seja: a liberdade de escolher o que queremos, em cada situação. Mas se essas afirmações são verdadeiras, Kate... Por que razão eu fiz isso a você? — Ele engoliu em seco. — Acabo de me lembrar de outro provérbio: "Há males que vêm para bem." Mas que tipo de bem poderá advir do fato de você estar inconsciente neste leito de hospital? Com a ponta do dedo indicador, Richard desenhou-lhe a linha arrebitada do nariz, o contorno dos lábios, o queixo. — Você é tão jovem e bonita, além de uma mãe maravilhosa. Já disse que você fez um lindo trabalho, com Jonathan. Mas gosto de repetir essa verdade. Ele é tão encantador, inteligente, bonito, alegre e espirituoso... A voz de Richard fraquejou, no final da frase. — Sabe de uma coisa, Kate Burnett? Eu é quem deveria estar aqui, inconsciente, neste leito. Afinal você tem, no pequeno Jonathan, um grande motivo para viver. Quanto a mim... Richard interrompeu-se. Quase ia dizendo que não possuía razões para estar vivo. Mas calou-se, a tempo de evitar uma injustiça. Pensando bem, não era verdade que sua vida não tinha sentido... Ele possuía Alice que, além de mãe, era uma boa amiga. Mas já não tinha esposa. E nem chegara a ser pai. — Será que foi por isso que você surgiu em meu caminho, Kate? Para me lembrar de que as maiores riquezas do mundo são impalpáveis, como por exemplo... o amor entre as pessoas? Sabe de uma coisa? Andei tão atribulado, nos últimos anos, que mal tive tempo para dar atenção a minha mãe. Se ela não fizesse questão de me visitar aos domingos, eu certa mente passaria meses sem vêla. — Assumindo um tom confidencial, Richard aproximou ainda mais o rosto do de Kate. — Agora, vou lhe contar um segredo. Você quer ouvir? Aguardou por um instante, como estivesse dando tempo, a Kate, para pensar numa resposta. — Bem, suponhamos que você tenha dito sim... Aqui vai o segredo: minha mãe me criou praticamente sozinha. Tal como Jonathan, eu também não tive um pai... Não como deveria, entende? Por um instante, Richard se lembrou de que quando era criança costumava perguntar a Alice


sobre o pai. Por que ele não ia buscá-lo na escola, no final do dia, como os pais dos outros garotos? Por que não o levava ao futebol, ao cinema, ao clube? Onde ele estava, afinal? — Seu pai não pode estar conosco, filho. — Essa era sempre a resposta de Alice. — Você acha que, se ele pudesse, não estaria a nosso lado? Quando Richard ficara maior, Alice certo dia o chamara para conversar. Contara-lhe, então, que o pai certo dia saíra de casa e nunca mais voltara. Tempos depois, enviara-lhe uma carta, dizendo que não a amava mais e que não poderia ajudá-la a cuidar do bebê. Desesperada, Alice resolvera lutar. E conseguira vencer a dura batalha de criar um filho... sozinha. — Vou lhe contar outro segredo, Kate... — ele prosseguiu. — Desde que ocorreu a maior tragédia de minha vida, três anos atrás, não fiz outra coisa senão tentar esquecer. Atirei-me ao trabalho como um náufrago a uma tábua de salvação. Tudo isso para não pensar, não lembrar... Só agora percebo que, nessa desesperada tentativa, acabei deixando de lado essas riquezas impalpáveis de que lhe falei há pouco. Mas desde ontem, quando provoquei o acidente que a jogou nesta cama, tudo voltou à tona. Não nego que seja doloroso, mas acho que eu precisava disso, sabe? Precisava repensar a importância do afeto, da solidariedade, do respeito... Essas palavras que andam em desuso, no mundo atual. De súbito, a expressão de Richard tornou-se sombria. — Sim, foi muito bom, para mim, essa reflexão. Mas não queria que ela ocorresse à custa de sua... vida. Tão logo concluiu a frase, Richard arrependeu-se. — Que tolice estou dizendo? Você não se foi. Você ainda está aqui... Não é mesmo, Kate? Sim. Ele arregalou os olhos azuis, numa expressão de espanto, enquanto seu coração disparava. Poderia jurar que tinha acabado de ouvir a palavra sim, com muita clareza. Só não sabia dizer se a escutara com os ouvidos... ou com o coração. — Será que fiquei maluco de vez, Kate? Se você estiver ciente de minha presença, certamente me achará um idiota. Richard ficou em silêncio por alguns instantes, enquanto seus olhos perscrutavam o rosto pálido de Kate. Não, ele decidiu, em pensamento. Aquela mulher não havia se mexido e muito menos pronunciado qualquer palavra. Ele era quem estava imaginando coisas. — Não sei se devo continuar vindo visitá-la, Kate. Será que estou lhe fazendo bem, com minha presença? Segundo as enfermeiras, sim. Mas, de verdade, o que estarei lhe causando... Afora o mal que já lhe fiz? Pois sei que a culpa foi minha. Se eu não tivesse demorado tanto para me recuperar do susto que aquele garoto com a bicicleta me pregou... Um profundo suspiro brotou do peito de Richard. — Minha mãe costuma dizer que nunca se deve fazer conjeturas sobre o que poderia ter sido. Se eu houvesse partido logo depois daquele susto... Se você não houvesse entrado naquela rua... Se tudo fosse diferente... Bem, acho que mamãe tem razão. Mesmo porque, é inútil cogitar sobre isso. A realidade é tão mais definitiva do que qualquer sonho ou imaginação. — Richard fez uma pausa. — Mas do que é mesmo que eu lhe falava, Kate? Ah, sim, sobre minhas visitas. Acho que vou continuar vindo, sabe? Ouvi falar de pessoas que ficaram inconscientes por um bom tempo. E embora não dessem sinais de vida, tinham noção do que se passava a sua volta. Percebiam, sobretudo, a presença do ser amado. Li sobre um homem que ia visitar a esposa em coma, no hospital, todos os dias. Falava-lhe longamente, como se ela estivesse desperta e pudesse ouvi-lo, até mesmo responder. Pois sabe que certo dia, contra todas as expectativas, a mulher acordou para a vida? E chegou a lembrar-se de muitas coisas que o marido havia lhe dito, durante o coma? Richard passou a mão nos cabelos negros, num gesto de desalento e cansaço. — Entretanto, nossa situação é bem diversa. Essa estratégia de conversar longamente serve para quando as pessoas são unidas por um laço de amor. Mas e quanto a nós, Kate Burnett? Nem


sequer nos conhecemos, não é mesmo? — Um sorriso insinuou-se nos lábios de Richard. — O mais incrível é que há momentos em que sinto que a conheço... Ou, ao menos, que estou começando a conhecer. Talvez isso aconteça por causa de Jonathan que, afinal, é o nosso elo. E também por causa de tudo que ele me contou a seu respeito. E por falar em Jonathan... Num tom mais alegre, Richard narrou o passeio que tinha feito naquele dia, com Jonathan e Alice, ao parque municipal da cidade. Contou sobre as brincadeiras, a alegria do garotinho ao ver os peixes coloridos no lago de águas límpidas, ao brincar no playground, ao passear em um pônei. Falou sobre o almoço numa cantina italiana e no imenso sorvete que Jonathan havia tomado, no final da refeição. A enfermeira Diane bateu no vidro. Richard voltou-se e ela lhe fez um sinal, indicando que o horário de visitas estava chegando ao fim. Ele assentiu com um gesto de cabeça e voltou a fitar Kate. — Preciso ir, agora. — Delicadamente, acariciou-lhe os cabelos e o rosto. — Trate de ficar bem, sim? Eu, Jonathan e Alice estamos torcendo por você. Richard fez menção de afastar-se, mas interrompeu o gesto. Tinha se esquecido de algo importante, que queria contar a Kate. Bem, talvez ainda desse tempo... — Preciso comprar roupas novas para Jonathan. Emprestei-lhe uma camiseta minha, para dormir. Mas hoje, no passeio, ele teve de usar as mesmas roupas de ontem, que aliás estão necessitando de uma lavagem, urgente. Hoje mesmo propus a ele que fôssemos a um shopping. Mas Alice já o havia convidado para passear no parque. E adivinhe o que Jonathan preferiu? Muitas crianças, em seu lugar, agiriam de modo contrário. Ele, porém, estava mais interessado em conhecer o parque, do que em ganhar roupas novas. Mas amanhã tomarei essa providência. Estou pensando em marcar um encontro com mamãe e Jonathan, por volta da hora do almoço. Assim, iremos até um shopping e... — Final da visita, sr. MacNeal — a enfermeira Diane anunciou, entrando na sala. — Já estou indo, senhorita. — E diante da expressão comovida da enfermeira, Richard inclinou-se e beijou Kate na testa. — Até amanhã, querida. Até.. Richard voltou-se rápido para Diane: — A senhorita ouviu isso? — O quê, sr. MacNeal? — Parece que Kate disse: "Até...". Com um sorriso cheio de compreensão, a enfermeira opinou: — Talvez tenha sido apenas impressão sua, sr. MacNeal. — Talvez — Richard repetiu, com uma expressão de desalento. — Por um momento, pensei ter escutado... — Isso acontece — Diane o interrompeu. E como se quisesse consolá-lo, acrescentou: — Ou quem sabe ela respondeu, sim. Quem sabe se ela não tentou se comunicar, em pensamento, com o senhor? — A senhorita acredita nisso? — Richard indagou, tristemente. A enfermeira levou alguns instantes para responder: — Dois anos atrás, antes de começar a trabalhar aqui, eu era uma pessoa muito prática e objetiva. Não dava muita importância às coisas impalpáveis, sem explicação. Mas depois de tudo que vivi neste hospital, sr. MacNeal, já nem sei o que pensar. Vi pessoas desenganadas pelos médicos voltarem à vida. Vi pessoas muito fortes e vigorosas sucumbirem depois de uma simples cirurgia de garganta. E cheguei a uma conclusão: não existe nada definitivo, neste mundo. Tudo pode acontecer, tudo pode mudar a cada instante. Richard a fitava com franca admiração. E Diane continuou, lançando um olhar terno para Kate: — Se o senhor a ouviu responder, é porque de algum modo isso aconteceu... mesmo que seja apenas em seu coração. Richard sorriu. — As enfermeiras deste hospital têm convênio com os anjos? — perguntou,


emocionado. — Por que diz isso, sr. MacNeal? — Ora, porque vocês não cuidam apenas do corpo dos pacientes, mas também da alma dos acompanhantes... E isso requer muita sabedoria. Diane sorriu de volta. — Bondade sua... — Piscando-lhe um olho, acrescentou: — Agora, vou sair da sala, para que o senhor possa ficar mais um pouquinho com sua namorada, está bem? Levarei cerca de cinco minutos para voltar. — Obrigado. Diane saiu, deixando-o novamente a sós com Kate Burnett. — Você viu? — Richard disse, baixinho. — Não adianta dizer a elas que sou apenas um amigo. Acho que nos elegeram namorados, por unanimidade. Ao sair do Baptist Hospital, naquela noite, Richard sentia-se invadido por um novo alento. E tinha motivos para isso. Motivos que bem poderiam ser enumerados: a solidariedade das enfermeiras, a presença de Jonathan e Alice em seu dia a dia e, sobretudo, a certeza de que Kate de algum modo o compreendia... A situação continuava delicada. Kate Burnett permanecia em estado de choque. O futuro ainda era uma incógnita. Mas Richard sentia a vida pulsar de um modo diferente. Depois de tanto tempo, a esperança vinha de novo habitar seu coração sofrido. CAPÍTULO V Até que enfim você chegou! — a secretária exclamou, aliviada, assim que Richard entrou em seu escritório da Data Enterprises, na manhã de segunda-feira. — Graças a Deus! Richard fitou-a com estranheza: — O que houve, Charlene? — O que houve? — ela repetiu, levantando-se da cadeira e contornando a mesa de trabalho. Aproximou-se de Richard com a mão sobre o peito e uma expressão dramática. — Eu é que pergunto o que aconteceu. — Nada — Richard respondeu, simplesmente. — Por quê? Naquele momento Chester Bradon bateu à porta do escritório entrou. Era o braço direito de Richard, na empresa. Ambos trabalhavam juntos desde que Richard fundara a Data Enterprises, anos atrás. Entendiam-se perfeitamente bem, não apenas no campo profissional, mas também no pessoal. Tanto, que Richard o considerava como um bom amigo. — Graças a Deus! — Chester Bradon exclamou, ao vê-lo. — Eu já estava pensando em tomar uma providência. — Como assim? — Richard indagou. — Pensei em ligar para delegacias, hospitais... — Vocês andam assistindo a muitos filmes de suspense, ultimamente — Richard comentou, olhando de um para o outro. — É mesmo? — Chester franziu o cenho. — Pois o que você faria, se estivesse em meu lugar? — Sei lá — Richard respondeu, tirando o paletó do terno cinza-chumbo que usava. Com um sorriso zombeteiro, provocou-o. — Mas certamente não faria todo esse drama... — Ele acha que estamos exagerando, Chester — a secretária interveio. Charlene Stone era uma mulher de exótica beleza, de cabelos ruivos, muito curtos. Richard a contratara havia dois anos, por indicação de Chester. Estava satisfeito com sua competência e dedicação à empresa. Outro fator que o agradava em Charlene era o fato de ela ser espirituosa e bem-humorada. Em uma empresa, uma pessoa que sabia aliar o bom humor à eficiência era muito preciosa. Por isso Richard estava estranhando a atitude de Charlene. Nunca a vira assim, antes. — Você sempre chega a este escritório antes de qualquer outra pessoa — ela afirmou. —


Todos os dias da semana, todas as semanas do mês, todos os meses do ano... Sempre foi assim. Você vem mais cedo, prepara o café e, quando o primeiro funcionário chega, já o encontra em plena atividade. — Com as mãos na cintura e uma expressão exageradamente severa, que chegava a parecer cômica, Charlene o repreendeu: — E você ainda acha que não deveríamos nos preocupar? Imagine qual não foi minha surpresa quando cheguei aqui e encontrei a porta da empresa fechada! Richard olhou da secretária para Chester, antes de argumentar: — Vocês dois têm as chaves da porta principal e de todos os escritórios, lembram-se? — Sim, mas acontece que nunca as utilizamos — Chester respondeu. — Eu, por exemplo, nem sequer carrego o chaveiro comigo. Deixo-o em casa, muito bem guardado. — Pois não deveria. — Ora, aquelas chaves nunca tiveram utilidade, para mim. Como Charlene disse muito bem, nós sempre encontramos a empresa aberta e, você, a postos. Richard voltou-se para a secretária. — Você também costuma deixar suas chaves em casa, Charlene? — Não, chefinho — ela respondeu, retomando seu bom humor habitual. Agora, que estava mais calma, voltava a ser a Charlene de sempre. Apontando Chester, com ar zombeteiro, declarou: — Ao contrário desse negligente, nunca tirei aquele chaveiro da bolsa. — Apenas, houve um problema. — Chester devolvia a provocação. — Tivemos de esperar horas, até que Charlene encontrasse as chaves no fundo de sua bolsa. — Horas! — ela repetiu, fingindo-se ofendida. — Mentira dele, chefinho. Levei apenas alguns minutos para achá-las. — Se você soubesse o bazar que Charlene carrega naquela bolsa, meu caro! — Chester continuava, em tom de brincadeira. — Há de tudo ali dentro. Sempre ouvi falar que bolsa de mulher é uma das coisas mais misteriosas que existem, mas hoje tive a comprovação. — Exagerado! — Charlene o repreendeu, rindo. E voltou-se para Richard. — Não dê ouvidos a ele, chefinho. Chester só inventou essa mentira porque está com inveja de mim. Afinal, se eu não houvesse trazido as chaves, estaríamos todos na porta da rua, até agora. — Isso lá é verdade — Chester admitiu. Em um tom mais sério, dirigiu-se a Richard. — Mas, francamente, ficamos bastante preocupados com seu atraso. — Você bem que poderia ter nos avisado sobre isso, não acha, chefinho? — Sim, Charlene — Richard reconheceu. — Você tem razão. Mas, também, a coisa não é para tanto. Será que o chefe não tem o direito de chegar mais tarde, de vez em quando? — Lógico que sim — Charlene concordou. — Mas não custava dar um telefonema, ou enviar um e-mail, avisando... O fato era que Richard não tivera tempo para isso. Havia acordado cedo e tomado um breve desjejum com o pequeno Jonathan. Depois, levara-o até a casa de Alice, que aliás lhe fizera uma proposta: — Estou pensando em ficar em seu apartamento, por alguns dias. Assim, ambos poderemos cuidar melhor de Jonathan. Para você será muito cansativo trazê-lo e buscá-lo todos os dias, em minha casa. E creio que para ele também. — Ótima idéia, mamãe. Arrume suas coisas, que eu virei apanhá-la à noite, juntamente com Jonathan. — Não se preocupe, querido. Eu mesma cuidarei disso sozinha. Afinal, tenho meu próprio carro, lembra-se? Irei para seu apartamento, com Jonathan, assim que arrumar minhas coisas. — Perfeito, mamãe. Não se esqueça de levar as chaves, está bem? — Santo Deus... Às vezes você me trata como se eu fosse uma inválida. — Sorrindo, Alice o beijara carinhosamente. — Tenha um bom dia, filho. — Obrigado, mamãe. Nós nos veremos à noite, em meu apartamento. Richard despedira-se do pequeno Jonathan e então fora para o hospital. Kate continuava na mesma. Não havia apresentado nenhuma outra melhora, desde a noite anterior. Mesmo assim, ele tinha lhe falado longamente sobre Jonathan. Encorajara-a com as mais


doces palavras que pudera encontrar e, depois, conversara com o dr. Silverstein. O médico era da mesma opinião que a enfermeira Diane. Julgava ser melhor esperar, para ver se Kate reagia. Afinal, ela estava sendo tratada com toda a dedicação e eficiência possíveis. Não havia muito mais a fazer, senão ter fé em sua recuperação. Depois de se despedir do médico, Richard tinha procurado a sra. Andersen. Convidara-a para tomar um café, na cantina do hospital. Bastara alguns minutos de conversa com aquela mulher bondosa e sábia, para que ele se sentisse mais animado. Somente depois de tudo isso, Richard dirigira-se à empresa. — Bem, já chega de cobranças. — A voz de Chester trouxe-o de volta ao momento presente. — O fato é que gostamos muito de você e por isso nos preocupamos. — A propósito, qual foi o motivo de seu atraso, chefinho? — Charlene indagou. — Está tudo bem? Em poucas palavras, Richard narrou o acidente ocorrido no sábado. Falou sobre o pequeno Jonathan e a promessa que fizera a Kate. Contou também o arranjo que havia feito com Alice, para que ambos pudessem cuidar do garotinho. No final da narrativa, Charlene e Chester o fitavam entre penalizados e constrangidos. — Sou mesmo uma grande idiota! — Charlene recriminou-se. — Já estou profundamente arrependida por ter cobrado seu atraso, chefinho. Prometa que vai me desculpar, sim? — Ora, que bobagem, menina — Richard respondeu, num tom compreensivo. — Como você poderia saber do que realmente aconteceu? — Eu devia ter imaginado que você não se atrasaria à toa... Vamos, diga que me perdoa. — Também peço desculpas — Chester declarou. — Não tenho por que desculpá-los. E, agora, vamos ao trabalho. — Isso mesmo, chefinho — a secretária assentiu, emocionada. — Olhe, se precisar de mim para cuidar do garotinho, ou para qualquer outra coisa, é só dizer. — Obrigado, Charlene. — Você sabe que pode contar comigo, também — Chester afirmou. — Claro. — E Richard agradeceu novamente. — A propósito, preciso avisá-los de uma coisa... — Sim? — ambos disseram, quase ao mesmo tempo. — Minha rotina aqui na empresa vai mudar, por algum tempo. — E Richard explicou: — Virei a esta hora, todas as manhãs, enquanto Jonathan estiver em minha casa. Talvez chegue até mais tarde, caso tenha de me demorar no hospital. — Faça como quiser e não se preocupe com o andamento do trabalho — disse Chester. — Eu, Charlene e os outros funcionários tentaremos dar conta de tudo, por aqui. — Tenho certeza disso — Richard declarou, comovido. — Ah, ia me esquecendo de dizer que farei duas visitas diárias, a Kate. Sairei todas as tardes, pouco antes das cinco, para vê-la. De lá, seguirei diretamente para casa. — Você sabe que estamos aqui para o que der e vier, chefinho — Charlene o interrompeu. — Sim, garota — Chester interveio. — Você já disse isso, lembra-se? Com os olhos marejados de lágrimas, Charlene respondeu: — Eu sei. Mas toda essa situação é tão triste... Gostaria de fazer alguma coisa para ajudar. — Então, continue sendo a pessoa espirituosa de sempre — Richard pediu. — Mais do que nunca, precisamos de um pouco de alegria, por aqui. — Vou tentar. — E Charlene saiu da sala, em direção ao toalete. — Com licença, pessoal. A sós com Richard, Chester fitou-o com pesar. — Não sou muito bom, nessas horas, amigo. Mas... — Não é preciso dizer nada. — Richard tocou-lhe o ombro. — Sei que posso contar com vocês e isso é o que mais necessito, agora. —


Forçando um sorriso, propôs: — Vamos trabalhar? Já chega de conversa fiada. — Vamos — Chester aquiesceu, sorrindo de volta. — Você é uma pessoa muito forte, Richard. — Apenas tento me manter em pé, amigo. — Nada disso. Você é de fato uma fortaleza. — E tenho outra opção? — Teria... Mas, então, você já não seria o Richard MacNeal que conheço. — E que opção seria essa? — Esquecer Kate Burnett e o menino. Afinal, você já fez sua parte, socorrendo ambos. — Eu jamais seria capaz de ignorá-los. — Nem eu, tampouco, mas nem todo mundo pensa assim. — Chester fez uma pausa, antes de concluir: — A solidariedade anda em falta, no mundo de hoje. — Por isso mesmo é preciso cultivá-la, cada vez mais. — Richard levou a mão à testa. — Santo Deus! — O que foi? — Estamos falando em solidariedade... E eu me esqueci completamente de algo muito importante. — Do quê? — Chester indagou, aflito. — De telefonar para um homem que também poderia ignorar tudo o que houve, mas que está muito preocupado com Kate e o pequeno Jonathan. Puxa vida, ele me deixou um bilhete, no painel do jipe, pedindo que entrasse em contato... E eu me esqueci! — Quem é esse homem, afinal? — O motorista da caminhonete que bateu no Escort de Kate. — E Richard correu à porta que separava sua sala particular da de Charlene. — Preciso ligar para ele agora mesmo. Felizmente, guardei o cartão em meu porta-documentos. Com licença, Chester. — Claro, amigo. Richard entrou em sua sala e pendurou o paletó no gancho de um antigo porta-chapéus que ficava próximo à porta. Retirou seu porta-documentos do bolso do paletó e sentou-se à mesa de trabalho. Não tardou a encontrar o cartão do veterinário Charles Albert Oak, que continha vários números de telefone: o de sua residência e três números comerciais. Richard consultou o relógio. Eram quase dez horas da manhã. Portanto, Charles Albert devia estar trabalhando, ele deduziu. Ligou para um dos números comerciais e logo foi atendido, por uma voz feminina: — Clínica Veterinária Oak, bom dia. Em que posso servi-lo? — Meu nome é Richard MacNeal. Gostaria de falar com o dr. Charles Albert Oak, por favor. — Um momento, sim? Vou ver se ele pode atender. — Diga-lhe que se trata de um assunto importante, senhorita. — Está bem. Queira aguardar. Richard esperou por quase três minutos, antes que uma voz masculina, que ele logo reconheceu, atendesse. — Pois não? — Dr. Charles Albert Oak, aqui é Richard MacNeal, o motorista do jipe azul que... — Graças a Deus! — o veterinário exclamou, interrompendo-o. — Eu já estava começando a pensar que o senhor não me procuraria. — Perdoe a demora. Mas passei um fim de semana atribulado, cuidando do pequeno Jonathan e... — Então o senhor está com o menino? — Sim.


— E quanto à mãe... Ela sobreviveu? — A voz de Charles Albert traía uma forte ansiedade. — Por favor, diga que sim. — Bem, ela ainda se encontra em estado de choque. Mas apresentou uma ligeira melhora. E seus sinais vitais estão respondendo aos estímulos. — E o que os médicos acham disso? — Não podem dizer nada, por enquanto. — Era o que eu imaginava. Quando uma pessoa entra nesse estado, já não se pode prever o que acontecerá. Tanto é possível que acorde de uma hora para a outra, como... O dr. Charles Albert Oak não concluiu a frase. Mas Richard compreendia o que ele queria dizer. — Por favor, mantenha-me informado — Charles Albert pediu, após alguns instantes de silêncio. — Certo. Eu farei isso. — A propósito, onde está a moça? — No Baptist Hospital. — Gostaria de vê-la. — Temo que isso não seja possível, ao menos por enquanto. Afinal, ela se encontra na unidade de terapia intensiva... — Entendo — Charles Albert aparteou. — Nesse caso, os pacientes só podem receber visitas das pessoas mais próximas. Richard sorriu, entre comovido e melancólico. Pelo visto, todo mundo o considerava a pessoa mais próxima de Kate Burnett. Por que seria? — É curioso... — Charles Albert comentou. — No sábado, quando tudo aconteceu, julguei que o senhor não conhecesse a moça, nem o menino. — De fato, isso é verdade. — E Richard explicou: — Toda essa situação é por demais singular. Kate acabou de chegar a Memphis e não conhece ninguém, por aqui. Na hora em que entrei no Escort, depois de deixar o menino a seus cuidados, tentei falar com ela... — Kate Burnett — Charles Albert o interrompeu. — Então é este o nome da moça? — Sim. Ela chegou a recuperar a consciência, por um breve instante. E pediu-me que cuidasse do filho. — Essa foi a primeira vez em que se viram? — Exato. — Incrível! — Charles Albert exclamou, impressionado. — De algum modo, ela sentiu que podia confiar no senhor. — Justo em mim, que provoquei o acidente — Richard comentou, com amargura. — Espere um momento, sr. MacNeal... — Sim? — Não creio que o senhor seja culpado pelo que aconteceu. — Mas sou. E o senhor nem imagina o quanto isso me dói. — Nesse caso, eu também deveria me sentir assim. Afinal, fui eu quem bati no Escort daquela moça, fazendo-o rodopiar e se chocar contra o poste. — Isso não teria ocorrido, se eu tivesse desimpedido a rua a tempo. — Ah, pare de se torturar, sr. MacNeal. Ninguém é culpado de nada, afinal. Certas coisas simplesmente acontecem, sem que possamos evitá-las. — Tem razão — Richard concordou, apenas por polidez. No fundo, continuava se sentindo culpado pelo sofrimento de Kate. — Além do mais, o remorso não conduz a lugar algum. O senhor está fazendo tudo o que pode, pela moça e pelo menino. Tenho certeza de que quando acordar ela lhe será muito grata. — Se ela acordar — Richard frisou, invadido por um súbito temor. — É preciso ter fé, sr. MacNeal Vamos pensar de maneira positiva e enviar uma boa


energia àquela moça. — Não tenho feito outra coisa, desde sábado. Mas, às vezes, me sinto enfraquecer. — Isso é muito natural, sr. MacNeal. Todas as pessoas fortes têm seus momentos de cansaço. — Charles Albert fez uma pausa. — Bem, não vou mais tomar o seu tempo. Só peço que me mantenha informado sobre o estado da moça. Aliás, quero visitá-la, assim que ela sair da unidade de terapia intensiva. E sei que isso não vai demorar muito. — Eu o avisarei, pode deixar. Obrigado por seu otimismo e apoio, doutor. — Eu que agradeço. Tenha um bom dia. — O mesmo para o senhor. A propósito, anote meu telefone. — Pode dizer, sr. MacNeal. Richard deu-lhe o número de sua casa e da empresa. Quando desligou o telefone, sentia-se tomado por um novo alento. O otimismo de Charles Albert o havia ajudado. Aliás, ele vinha recebendo apoio de várias pessoas, naquele momento tão difícil. Três anos atrás, quando perdera Stacy e o bebê, as coisas eram bem diferentes. Ou talvez ele próprio não estivesse preparado para receber as demonstrações de solidariedade das pessoas. Talvez fosse isso. O interfone tocou, fazendo com que Richard estremecesse da cabeça aos pés. Apesar de tudo, ainda continuava bastante tenso, ele concluiu, enquanto atendia: — Pois não, Charlene? — Sua mãe está na linha B. — Complete, por favor. — Está bem. Pode pegar. A luz da tecla B do telefone acendeu-se. Richard pressionou-a e recebeu a ligação: — Filho? — Olá, mamãe. Você já está no apartamento? — Ainda não. Mas já arrumei minha valise. — Ótimo. Como vão as coisas, por aí? — Muito bem. Estou ligando para falar sobre uma idéia que eu e Jonathan tivemos... — Sim? — Richard sorriu. — Do que se trata? — Estamos pensando em ir ao shopping. Compraremos roupas e calçados para Jonathan e, depois, esperaremos você para almoçar. O que acha? — Mas não íamos fazer essas compras juntos? — Sim, mas isso levaria tempo. E você só tem uma hora e meia de almoço, filho. Por isso, decidimos cuidar das compras sozinhos. Faremos isso agora e depois desfrutaremos de sua adorável companhia, num almoço bem saboroso. E então, o que me diz? — Estou inteiramente de acordo — Richard respondeu, esquecendo-se momentaneamente de todo o sofrimento. — Sabe de uma coisa? Vocês formam uma ótima dupla. — Contarei isso a Jonathan — Alice afirmou, alegremente. — Agora, vamos combinar o local do nosso encontro. — Bem, vocês podem me esperar na porta principal do shopping. Passarei por lá de carro, para apanhá-los. — E depois, aonde iremos? — Que tal ao Yokota? — Richard sugeriu. — Perfeito! — Alice aprovou, vibrando com a sugestão. O Yokota era seu restaurante japonês preferido. — Será que Jonathan gosta de comida japonesa? — Richard indagou, de súbito. — Acho que sim. Pelo que pude perceber, esse anjinho come de tudo. — Mesmo assim, é bom confirmar. — Então espere um momento, querido. Assim, você mesmo perguntará a ele. Logo em seguida, Richard ouvia a voz de Jonathan, do outro lado da linha: — Oi, amigo. — Olá, Jonathan. Tudo bem?


— Sim. Nós vamos ao shopping. — Já fiquei sabendo disso. Eu os apanharei mais tarde, para almoçarmos. — "Tá" bom. — Estamos pensando em ir até o Yokota, que é um restaurante japonês. Mas, antes, quero saber se você gosta desse tipo de comida. — Adoro. Sabe, desde muito pequeno mamãe me ensinou a comer de tudo. Richard sorriu, ao repetir: — Desde muito pequeno? Quer dizer que você agora é muito grande? — Eu vou fazer cinco anos. E já não sou uma criancinha. Richard agora ria, entre divertido e emocionado. Uma pessoa jamais poderia ser infeliz, tendo um filho como Jonathan, ele pensou. Mentalmente, enviou um recado a Kate Burnett: "Está vendo, menina? Você precisa acordar logo, para cuidar desse anjo..." — Sabe por que eu gosto de comida japonesa? — A voz entusiasmada do pequeno Jonathan interrompeu-lhe os pensamentos. — Sim? — Richard indagou, curioso. — Porque cada prato é colorido e bonito, como se fosse um brinquedo. — Então, está decidido, Jonathan. Almoçaremos no Yokota. — Oba! — o garotinho exclamou, entusiasmado. — Escute, sua mãe quer falar de novo com você. — Após uma pausa, ele indagou: — E por falar em mães, como vai a minha? Richard fechou os olhos por um instante. O pequeno Jonathan sempre o pegava de surpresa, com essas perguntas comoventes. — Ela está melhorando a cada dia, amigo. — Verdade? — Sim. — Então, por que não me deixam visitar... — Porque ela ainda não saiu daquela sala de que lhe falei, Jonathan — Richard aparteou, no tom mais calmo que conseguiu. — Quer dizer que mamãe ainda está naquela sala onde ficam as pessoas que precisam de muito remédio? — Sim. Quando ela for para o quarto, você poderá vê-la. — E isso vai demorar? — Só alguns dias — Richard respondeu, lembrando-se das palavras da sra. Andersen, a respeito da noção de tempo das crianças. — Até lá, continuarei a visitá-la e a levar seus recados para ela. Um breve silêncio se fez, do outro lado da linha. Então Richard ouviu a voz de Alice. — Filho, agora só falta combinarmos o horário de nosso encontro. — Que tal meio-dia e meia, na porta principal do shopping? — Perfeito. — Mamãe, como está Jonathan? Baixando o tom de voz, Alice respondeu: — Chorando um pouquinho, filho. Mas isso é natural. — Não gosto de vê-lo assim, mamãe. — Mas não podemos evitar isso, querido. O choro é seu único jeito de desabafar, de extravasar o medo que está sentindo, com a ausência da mãe. — Será que não estamos dando o suporte emocional suficiente a Jonathan? — Estamos lhe dando isso e muito mais. Apenas, você não pode deixar de considerar um detalhe... — Qual? — O afeto de uma mãe é insubstituível, filho. Por mais que façamos, não conseguiremos suprir a falta que ele sente de Kate. — Você tem razão, mamãe... Como sempre, aliás. — Bem, agora, preciso desligar. Quero ver se consolo um pouco esse anjinho. Até mais tarde, filho. Um beijo.


— Outro, mamãe. Ah, só mais uma coisa... — Diga. — Você está com dinheiro suficiente para fazer as compras? — Claro. Não se preocupe com isso. — Está bem. Mas farei questão de reembolsá-la, depois. — Nem pense nisso! — Alice recusou, categórica. — Mas... — Nada de mas, querido. Quero dar alguns presentes a Jonathan e posso muito bem arcar com os gastos. — Certo — Richard cedeu. — Pelo que estou vendo, seria perda de tempo tentar demovê-la dessa idéia. — Exatamente, meu bem. Até logo. — Até. — E Richard desligou. CAPÍTULO VI Uma semana inteira se passou. Richard começava a ter medo de perder a fé na recuperação de Kate Burnett. Todas as manhãs e todas as noites ele a visitava, levando no coração uma esperança que se desvanecia, tão logo entrava na sala da unidade de terapia intensiva, onde Kate continuava. Será que aquele pesadelo nunca mais terminaria?, ele se perguntava, nas horas de maior desânimo. Depois, dizia a si mesmo que não podia fraquejar... Por Jonathan, por Kate, por tudo. Era preciso manter viva a chama da esperança, a qualquer custo. Assim o tempo transcorria. Certa tarde, a caminho do hospital, Richard resolveu passar comprar algo para Kate. Talvez fosse tolice pensar nisso, já que nem tinha certeza de que ela podia ouvi-lo... quanto mais admirar um presente! De qualquer forma, ele resolveu seguir seu palpite. Entrou em uma floricultura e uma vendedora apressou-se a atendê-lo. Mas Richard avisou-a: — Ainda não tenho certeza do que quero comprar. Portanto, dê-me tempo de escolher, sim? — Fique à vontade, senhor — ela respondeu, num tom solícito. — E se precisar de alguma orientação, conte comigo. — Obrigado. Por um bom tempo, Richard contemplou as muitas espécies de flores e folhagens ali expostas. A princípio, havia pensado num presente clássico: um ramalhete de rosas vermelhas, por exemplo. Ou um arranjo de orquídeas. Depois, pensou que as flores pouco durariam. Talvez fosse melhor comprar algo diferente... Mas o quê? Os olhos de Richard recaíram sobre um vaso de gerânios cor-de-rosa. O vaso, em si, já era uma obra de arte: tratava-se de uma peça de artesanato, decorada com motivos andinos. — Este vaso é da América do Sul? — Richard perguntou à vendedora. — Sim, senhor. Mais precisamente de Cuzco, no Peru. Foi moldado e pintado pelos índios. — É muito bonito. — Sem dúvida alguma, senhor. E combinam perfeitamente com esses belos gerânios.. Richard concordou, com um gesto de cabeça: — Muito bem, vou levá-lo. — Certo, senhor. — A vendedora retirou o vaso da prateleira e colocou-o sobre um balcão. Ajeitou-o em uma embalagem de papelão e celofane, muito bonita. Em seguida perguntou: — O senhor quer um cartão, para escrever uma dedicatória?


Richard considerou a idéia, mas acabou por refutá-la. — Não, obrigado. — Como queira, senhor. De qualquer forma, ela vai adorar. — Espero que sim, senhorita... — Richard respondeu, perguntando-se como a vendedora reagiria, se soubesse para onde e para quem ele tencionava levar os gerânios. — É para a sua namorada, ou esposa? — a vendedora indagou. Richard sorriu: — Digamos que seja para uma pessoa... especial. — Talvez seja para sua noiva... — a vendedora insistiu. — Acertei? — Você faz muitas perguntas, mocinha. — Foi a resposta espirituosa de Richard. — Bem, quanto lhe devo? Pouco depois, ele saía da floricultura, levando o vaso de gerânios. O horário de visitas na unidade de terapia intensiva do Baptist Hospital tinha começado havia dez minutos, quando Richard chegou. — Pensei que o senhor não viesse mais — disse Diane, ao encontrá-lo no corredor. — Pois é. — Richard saudou-a com um sorriso. — Hoje, só para variar, estou um pouco atrasado. — Para variar mesmo. O senhor é sempre pontual. — Bem, como vai Kate? — Na mesma, sr. MacNeal. Teremos de esperar para ver, mas não podemos... — Perder a esperança — Richard completou. — Era isso que ia dizer, não? — Sim — Diane confirmou. — Já perdi a conta de quantas vezes já repeti essa frase, desde que comecei a trabalhar aqui. E sabe com quem a aprendi? — Com a sra. Andersen? — Isso mesmo. — Com quem mais poderia ser? — Richard comentou. — A sra. Andersen é uma pessoa muito bondosa e compreensiva. Vejo-a como uma espécie de anjo da guarda, que sempre chega no momento certo para consolar quem precisa. Pois saiba que todas as enfermeiras daqui, bem como os pacientes e familiares, pensam da mesma forma. — Num tom confidencial e ao mesmo tempo divertido, Diane acrescentou: — Quem sabe se ela não é mesmo um anjo disfarçado de gente? — Quem sabe? — Richard repetiu, no mesmo hora. — E já que a senhorita tem bastante contato com a sra. Andersen, tente passar-lhe a mão nas costas, para ver se não percebe as asas sob o uniforme... Ambos sorriram e Richard despediu-se: — Bem, eu já vou indo. — Isso mesmo, sr. MacNeal. Não deixe a sra. Kate Burnett esperando... — Até parece que ela pode sentir minha falta... — Richard retrucou, num tom melancólico. — Talvez sinta... quem sabe? Richard voltou a sorrir, mas dessa vez com tristeza. E afastou-se em direção à sala onde Kate se encontrava. Diane voltou-se e deparou com o dr. Silverstein, que questionou-a com uma expressão severa: — Diga-me, aquele não é o sr. Richard MacNeal? — Isso mesmo, doutor. — Ele está indo visitar a sra. Kate Burnett? — Sim — Diane confirmou. — Quem mais poderia ser? — E a senhorita não o avisou de que é proibido entrar com flores na unidade de terapia intensiva? — Eu bem que deveria, não é? — Diane sorriu. — Só que não tive coragem. Além do mais, a sra. Kate Burnett está numa sala isolada e...


— Isso não importa — o dr. Silverstein a interrompeu. — As regras desse hospital são muito claras. — Conheço-as de cor e salteado, doutor. Mas achei o gesto do sr. MacNeal tão bonito... Imagine só, trazer flores para a namorada, nessas circunstâncias! Só mesmo um homem muito apaixonado seria capaz disso. O médico meneou a cabeça. Eu desisto. Parece que todas vocês resolveram e1egê-lo o Romeu do novo milénio... Kate Burnett é uma mulher de sorte, doutor. Ela terá sorte se sobreviver ao choque, senhorita. E agora vou lhe pedir um favor: quando o sr. MacNeal for embora, trate de dar um fim àquele ramalhete de flores, está bem? — Não se trata exatamente de um ramalhete, mas de um vaso de gerânios — Diane esclareceu, com uma expressão sonhadora. — Seja lá o que for, acho que a senhorita me entendeu. — Certo, doutor — ela assentiu, num tom mais sério. — Cumprirei sua ordem. Retirarei o vaso de lá, sim. Mas acho que vou levá-lo para a sala das enfermeiras. — Coloque-o aonde quiser mas, pelo amor de Deus, não o deixe perto da paciente. Ela pode se contaminar, sabia? Ou será que a senhorita já se esqueceu dos ensinamentos básicos do curso de enfermagem? — Oh não, dr. Silverstein — Diane assegurou, com um sorriso. — Fique tranquilo. O médico assentiu e afastou-se pelo corredor, resmungando: — Mulheres... Sempre colocando o romantismo acima da razão. — O romantismo não é um privilégio feminino, doutor — Diane retrucou. O médico voltou-se e ela concluiu: — A maior prova disso é o sr. MacNeal. O dr. Silverstein sorriu e continuou seu caminho. Tão logo entrou na sala onde Kate se encontrava, Richard obrigou-se a esquecer do próprio sofrimento. Forjando um tom alegre, saudou-a como se ela pudesse ouvi-lo. — Olá, Kate... Como passou o dia? Você parece muito mais disposta do que pela manhã... Ou será impressão? — Aproximando-se do leito, acrescentou: — Sabe de uma coisa? Está uma noite linda, lá fora, com uma lua nova que mais parece um anel dourado contra o firmamento cheio de estrelas. — Richard ergueu o vaso de gerânios. — Veja só o que eu lhe trouxe... Gostou? Achei que seria mais apropriado, do que um simples ramalhete de flores que, afinal, têm uma vida tão breve. Não sei se você gosta de plantas. Parece-me que sim, já que Jonathan é louco por elas. Sabe que outro dia estávamos no jardim do condomínio do prédio onde moro e um garotinho quebrou a haste de uma folhagem... Minha nossa, você precisava ver a reação de Jonathan! Fez um verdadeiro discurso para o menino, que aliás era maior que ele, sobre a importância das plantas. E repetia, a todo momento: "Elas têm vida, como nós. E devem ser bem tratadas. Você não gostaria que eu puxasse seu cabelo, não é mesmo? Pois as plantas também não gostam que a gente arranque suas folhas..." Richard interrompeu-se, enquanto colocava o vaso de gerânios na mesinha ao lado do leito. — Mas por que estou lhe contando esse fato? Claro que vccê sabe que Jonathan é capaz disso e de muito mais. Aliás, deve ter sido você quem o ensinou a respeitar as plantas. Ah, aquele garotinho é realmente incrível. Richard continuou falando de suas impressões sobre Jonathan, por um bom tempo. Contou, também, que Alice o tinha levado ao shopping, onde lhe comprara roupas, calçados e brinquedos. Demorou, particularmente, falando sobre o almoço no Restaurante Yokota, naquele dia memorável. Depois comentou sobre sua passagem pela floricultura. — Sabe o que a vendedora pensou? — disse, no final. — Que eu era seu namorado, imagine só! A propósito, parece que é isso que todo mundo pensa, por aqui. Vejo os olhares das enfermeiras, os sorrisos... Por que será que todos acham que a única relação possível entre uma bela mulher e um homem é o romance? — Richard fez uma pausa. — Pois você é uma mulher muito


bonita, Kate Burnett. Acho que sabe disso, não? Mesmo assim, tão frágil, você continua sendo muito bela. Imagino como será, quando se recuperar totalmente... Agora a voz de Richard impregnava-se de ansiedade: — Por falar nisso, você bem que poderia sair dessa inércia, não? Parece que faz um século que você está aqui, imóvel, pálida... Richard voltou-lhe as costas. — Oh, desculpe, eu não deveria falar assim. Não tenho direito de reclamar, não tenho direito a nada. É lógico que, se você pudesse, sairia desse estado de letargia agora mesmo. Afinal, você tem Jonathan, tem um sentido para viver. Se dependesse de sua vontade, aposto que você estaria em pé, pronta para enfrentar os desafios da vida e continuar criando seu filho, com toda a dignidade. Ah, como você deve se sentir orgulhosa por... Richard não completou a frase. Tinha acabado de voltar-se para Kate e estava perplexo. Pois ela havia aberto os olhos. — Santo Deus! — exclamou, num tom abafado. — Você... você... voltou! Enfim o milagre que eu tanto esperava aconteceu! Tudo parecia muito novo, para Kate. A única certeza que ela possuía era de que estava diante da Voz... A mesma voz que parecia acariciá-la, enquanto falava. A mesma Voz que a havia ajudado a evitar o poço sem fundo, de onde era impossível retornar. Kate sentiu vontade de agradecer à Voz, por tê-la trazido de volta à vida. Não sabia exatamente como A Voz a ajudara. Mas estava certa de que, sem ela, talvez não conseguisse vencer a tentação de deixar-se ir... para sempre. Kate quis sorrir e dizer uma única palavra: Obrigada. Entretanto, nem conseguia entreabrir os lábios. Quanto mais emitir algum som! — Você voltou... — A Voz repetia, sem cessar. E Kate compreendeu que A Voz possuía um dono. Que pertencia a um homem alto, que a fitava com intensidade e doçura. Um dos primeiros pensamentos que ocorreu a Kate foi que já tinha visto aquele homem antes, embora não o conhecesse. Mas isso não fazia sentido. Aliás, quase nada fazia sentido, naquele retorno. Era preciso organizar a mente, as sensações, os sentimentos, Kate decidiu, respirando fundo e compassadamente. — Você está bem? — o dono da Voz perguntou, sobressaltado. Kate quis responder, mas sua voz parecia adormecida, no fundo da garganta. — Vamos usar aquele velho recurso — o homem propôs. — Se estiver bem, pisque uma vez. Se não, pisque duas. Kate piscou uma vez e ele sorriu, aliviado. Era belo, aquele homem, Kate pensou. O que estaria fazendo ali? — Você não imagina minha felicidade, Kate Burnett. Não imagina mesmo... Então aquele homem se sentia feliz? Talvez por isso fosse tão bonito, Kate pensou. Uma pessoa de bem com a vida sempre irradiava uma aura de rara beleza. Kate continuava a observar aquele homem. Era curioso, mas tinha a nítida impressão de conhecê-lo muito bem... Lembrava-se com tanta clareza de sua voz, soando incessantemente, transmitindo coisas tão boas. Na verdade, não era bem uma lembrança, mas uma certeza. Kate sabia que devia parte de sua vida àquela voz, que a havia acalentado e encorajado quando tudo parecia escuro, frio, sem volta. Mas como explicar isso? De onde viria tal certeza? O esforço mental começava a provocar-lhe cansaço e uma quase irresistível vontade de dormir. Mas Kate não queria abandonar A Voz, ou melhor, o homem a quem ela pertencia. Desejava ardentemente continuar ali, contemplando aqueles olhos bondosos, azuis como um céu de primavera.


— Ah, Kate, você pode imaginar a felicidade de Jonathan, quando eu lhe contar que você enfim acordou? "Jonathan!" Kate repetiu mentalmente o nome do filho, o ser a quem mais amava no mundo. A Voz tinha uma forte ligação com Jonathan. Kate sabia disso, também. Era A Voz quem lhe dava notícias do filho, quando ela ainda estava na escuridão. Novamente a confusão ameaçava apossar-se de Kate. Quem seria aquele homem, afinal? E por que estivera a seu lado o tempo todo? E como podia ter notícias de Jonathan? "Meu filho!", Kate clamou, em pensamento, fixando os olhos verdes nos do desconhecido. "O que você pode me dizer a respeito dele?" Como se compreendesse sua aflição, o homem anunciou: — Jonathan está muito bem. Levei-o para meu apartamento. Eu e minha mãe nos revezamos para cuidar dele, sabe? Mas às vezes tenho a nítida impressão de que é ele quem cuida de nós... Mais uma vez, Kate quis sorrir. Porém, tudo o que conseguiu foi um leve repuxar de lábios. — Devo ter enlouquecido... — disse o homem, subitamente. — Onde estou com a cabeça, Santo Deus? Você acabou de acordar e nem sequer avisei a enfermeira! Kate quis recomendar que não se preocupasse, que estava tudo bem. Mas como, se não conseguia articular as palavras? Além do mais, o homem havia desaparecido de seu campo de visão. Sozinha, ela experimentou olhar ao redor. Não sabia onde estava. Havia uma porta, uma parede de vidro e uma mesinha ao lado, com um lindo vaso de flores. Como era mesmo que se chamavam aquelas flores, que aliás eram as suas preferidas? Aliás, tinha a nítida impressão de que A Voz mencionara qualquer coisa sobre aquelas flores. A Voz... Não podia continuar chamando assim aquele homem. Tinha de descobrir seu nome. Ah, tinha de fazer tantas coisas! Recuperar os movimentos dos lábios, por exemplo. Só para começar, precisava voltar a sorrir e a articular palavras. Precisava, também, tomar consciência de seu corpo. E foi o que Kate fez. Fechando os olhos, procurou se ver como era, antes de... Antes do quê?, ela se perguntou. O que havia acontecido? Como fora parar ali? Como conhecera A Voz e seu dono? "Não posso continuar assim, tão confusa", Kate decidiu, com a intensidade ditada pelo desejo de clarear a mente. Por mera intuição, ela sabia que não devia se fazer muitas perguntas ao mesmo tempo, para não se cansar. Precisava se poupar ao máximo, juntar as frágeis energias de que dispunha, para ganhar um pouco de força. Fechando os olhos, tentou sentir o próprio corpo. Seus pés estavam pesados, assim como suas pernas. De súbito, Kate sentiu uma fisgada num braço, seguida por uma dor lancinante. Tentou mover o outro braço, mas não conseguiu. Ele parecia preso ao longo do corpo. Kate olhou para baixo. Estava, coberta até a altura dos seios com um lençol imaculadamente branco. Gostaria tanto de se ver... Isso a ajudaria a tomar consciência de seu corpo mais rapidamente. Mas não podia ter pressa. Precisava agir com calma, muita calma, para entender com clareza o que se passava ao redor. Um movimento junto à porta chamou-lhe a atenção. No momento seguinte, Kate viu-se cercada pelo dono da Voz e por uma mulher de rosto sardento e jovial. A mulher olhou-a com atenção e sorriu: — Ora, vejam, nossa Bela Adormecida acaba de acordar! — Voltando-se para o homem, comentou: — E, pelo que vejo, o senhor foi responsável por isso. O que fez com ela? Beijou-a para despertá-la do encantamento, como o Príncipe Encantado? O homem sorriu de volta, parecendo um tanto embaraçado: — Ora, senhorita, que idéia!


Mas a enfermeira já se ocupava de Kate. — Querida, como está se sentindo? Será que pode falar? — Ainda não — o homem respondeu por ela. — Mas pedi-lhe que usasse o velho recurso: piscar uma vez para dizer sim e duas para dizer não. — Ótima idéia, sr. MacNeal. — Delicadamente, ela pediu a Kate: — Queira piscar uma vez, se estiver se sentindo bem. E duas, em caso contrário. Kate piscou uma vez. — Ótimo. A mulher parecia muito feliz em vê-la, Kate constatou. Quem seria ela? A propósito, como era mesmo que havia chamado o homem? MacDeal? Mac... Neal? Algo assim. E Kate decidiu ficar atenta, para aprender o nome da Voz, ou melhor: de seu dono. — Bem, sr. MacNeal, é melhor sair, agora — disse a mulher. "MacNeal", Kate tentou memorizar. "MacNeal..." — O quê? — O homem parecia, de súbito, ofendido. — O senhor terá de me dar licença, para que eu possa cuidar da sra. Kate Burnett. — Escute aqui, enfermeira Diane... — O homem reagiu. — A senhorita por acaso tem idéia do quanto esperei por este momento? E agora, que ele chegou, não posso simplesmente ir embora. Quero ficar ao lado de Kate. — Oh, imagino que sim, sr. MacNeal. Mas acontece que já avisei o dr. Silverstein que a paciente acordou. Ele está vindo para cá. E acho que não gostaria de vê-lo. — Por que não? Tenho todo o direito de permanecer aqui e é o que farei. — Sr. MacNeal, seja razoável... O dr. Silverstein terá de examinar a sra. Kate Burnett. A propósito... A mulher não concluiu a frase, Kate observou. Mas viu-a pegar o vaso de gerânios e dirigirse à porta. — Um momento, enfermeira Diane — o homem ordenou. — Aonde pensa que vai, com essas flores? — Preciso levá-las para a sala das enfermeiras, antes que o dr. Silverstein chegue. — Mas eu as trouxe para Kate Burnett. "Isso mesmo", Kate gostaria de dizer. Pois agora se lembrava, embora não soubesse como, de que aquelas flores lhe pertenciam. — É proibido trazer flores para cá, sr. MacNeal. Há o risco de contaminação, sabe? A sra. Kate Burnett ainda está muito frágil e... — Por que a senhorita não me falou sobre isso agora há pouco, quando cheguei? — Porque não tive coragem. O senhor parecia feliz como um adolescente ao presentear a primeira namorada... Fiquei tão comovida, que não o alertei sobre a proibição. Mas levei uma bronca do dr. Silverstein, por isso. E prometi a ele que tiraria as flores daqui. Kate voltou a atenção para o homem, que de repente parecia embaraçado. Seus olhos encontraram os dele. E então Kate sentiu que sua mente se clareava. Aquele homem tinha estado a seu lado, encorajando-a a lutar para viver, fazendo-a recordarse do filho e do quanto ele necessitava de seu apoio. Kate não tinha a menor idéia de como isso acontecera. Mas tampouco duvidava da veracidade daquela sensação: devia muito àquele homem. Aliás, estava ligada a ele de maneira definitiva... Por um laço que talvez nenhuma razão pudesse explicar. — Desculpe, senhorita... A voz do homem voltava a soar, Kate constatou. Mas não se dirigia a ela e sim à mulher: — Estou agindo de maneira totalmente infantil, não é mesmo? — Isso é muito compreensível, sr. MacNeal. Afinal, sua namorada acaba de voltar à consciência. "Namorada?", Kate perguntou-se. Era isso que a mulher tinha dito? — Com licença. — Uma voz masculina soou, próxima à porta.


Kate olhou naquela direção, a tempo de ver um homem de branco entrando. — Enfermeira Diane, será que já não lhe pedi para levar essas flores embora? — disse o homem. — Sim, dr. Silverstein, mas acontece que o horário de visitas ainda não terminou e... — Cuide disso agora mesmo, sim? — o homem ordenou, interrompendo-a. — Certo. Kate gostaria de impedir, mas não pôde. A mulher pegou o vaso de flores e retirou-se de seu campo de visão, depois de brindá-la com um sorriso. — Dr. Silverstein, será que podemos conversar, de pois que o senhor examinar Kate? — o dono da Voz perguntou. Já não parecia embaraçado como antes, Kate concluiu. — Sim, sr. MacNeal — o homem de branco respondeu. — Mas queira me aguardar na sala de espera, está bem? — Certo. Emocionada, Kate viu o dono da Voz, aliás o sr. MacNeal, inclinar-se em sua direção. — Eu voltarei depois — ele avisou-a, num tom suave, que mais parecia uma carícia. Tocando-lhe o rosto de licadamente, acrescentou enquanto sorria: — Seja bem-vinda ao lado claro da vida. Dessa vez, Kate conseguiu que seus lábios a obedecessem, para transmitir a emoção que a dominava. O rosto do homem se iluminou: — O senhor viu, dr. Silverstein? Ela sorriu para mim! Não foi uma miragem! Ela realmente sorriu! — Acredito nisso, sr. MacNeal. Mas agora, por favor, queira deixar-me a sós com a paciente. — Não foi miragem — ele repetiu, enquanto a beijava docemente, na testa. Kate experimentou uma sensação de alegria. O contato dos lábios cálidos daquele homem contra a pele causava-lhe um indescritível bem-estar. E o mais curioso era que ela tinha certeza de que isso já acontecera, antes. O dono da Voz saiu. E Kate sentiu-se de súbito muito frágil. Consolou-se com a idéia de que ele voltaria. Disso, não restava dúvidas. Afinal, ele sempre voltava. Apenas, Kate não podia explicar o porquê dessa certeza. Simplesmente sabia. E isso era suficiente para dar-lhe coragem de continuar lutando para viver. CAPÍTULO VII Kate abriu os olhos e custou a entender onde se encontrava. A sala já não era a mesma na qual havia despertado. Entretanto, parecia mais agradável. A primeira coisa que ela notou foi o vaso de gerânios, na mesinha ao lado da cama. Já o tinha visto antes, com toda a certeza. Aos poucos, lembrou-se de que fora um presente da Voz, ou melhor, daquele homem bonito e gentil, uma espécie de anjo da guarda que surgira em seu caminho, num momento tão terrível. Se pudesse conversar com ele, acabaria esclarecendo muitas coisas. Kate sorriu. Estava certa de que o homem voltaria, para vê-la. Não tinha como explicar essa certeza. Mas sabia que o sr. MacNeal entraria naquele quarto, a qualquer momento. Aliás, o quarto tinha um banheiro contíguo, ela notou, voltando-se na direção de uma porta entreaberta, por onde podia ver um lavabo. Quando a teriam levado para ali?, Kate se perguntou. O quarto era muito bem equipado, ela concluiu, após alguns instantes de acurada observação. Havia um sofá, um armário embutido e até um aparelho de tevê. E também um telefone, ao lado do vaso de gerânios, sobre a mesinha.


— Bom dia, sra. Kate Burnett. — A enfermeira Dia-ne saudou-a, ao entrar. — Caso não se lembre, sou a enfermeira Diane. Nós nos vimos ontem, logo que a senhora acordou. Como está se sentindo? — Bem, obrigada — Kate respondeu. — Vou medir sua pressão, agora. Depois o dr. Silverstein virá vê-la. — Enquanto colocava o aparelho de medir pressão no braço de Kate, ela perguntou: — E então? O que está achando de seu novo aposento? Kate sorriu. — Estou num quarto muito bom, não é mesmo? — No melhor e mais bem equipado que temos. Ontem à noite, quando o dr. Silverstein disse a seu namorado que a senhora já podia sair da unidade de terapia intensiva, ele nos pediu que lhe déssemos o melhor apartamento do hospital. — Namorado? — Kate repetiu, confusa. — Está falando da Voz? — Como assim? — a enfermeira indagou, sem entender. — Refiro-me a... Como era mesmo o nome do dono da Voz? Kate se perguntou. E conseguiu lembrar-se a tempo de concluir a frase: — MacNeal. Diane sorriu: — Então é assim que a senhora o chama? Pelo sobrenome? — Num tom confidencial, acrescentou: — Bem, vou lhe contar um segredo: a princípio, nós pensamos que ele fosse seu marido. Mas daí uma colega viu que vocês têm sobrenomes diferentes. Isso tirou as dúvidas. — Diane interrompeu-se para ler a pressão de Kate no aparelho. — Doze por oito... Não poderia ser melhor. — Enquanto retirava o aparelho, comentou: — A senhora tem sorte de poder contar com um homem tão dedicado e amoroso. O dr. Silverstein disse que nós o elegemos o Romeu do novo milénio. E, cá entre nós, acho que o título vem a calhar. Kate fitava-a com perplexidade. A convicção com que a enfermeira comentava sobre seu suposto relacionamento com MacNeal era impressionante. "Acho que acordei no mundo errado", ela pensou, de súbito. "Pois as coisas não estão fazendo sentido. De onde essa moça tirou a idéia de que eu e MacNeal somos... namorados?" A enfermeira Diane continuava a tagarelar alegremente, sobre assuntos do coração. E a certa altura afirmou: — Quanto a mim, não faço questão de casamento oficial. O que desejo, realmente, é encontrar um homem que me ame e respeite... Quero ser feliz, como a senhora e o sr. MacNeal. Diane fez uma pausa, antes de acrescentar: — Sabe que, no começo, todas nós pensamos que o menino fosse filho dele? E incrível como se parecem! Kate ficou pensativa por alguns instantes. De fato, seu filho tinha olhos azuis, como MacNeal. Mas os cabelos eram ligeiramente mais claros... "Que grande confusão", ela concluiu, voltando a concentrar-se nas palavras da enfermeira. — Ele veio visitá-la, religiosamente, todas as manhãs e todas as noites. E era comovente a maneira como falava com a senhora, o tempo todo, mesmo sabendo que não poderia ser ouvido... Kate sentiu-se invadida por uma forte emoção. De algum modo sabia que isso era verdade. Não havia como explicar, mas sentia-se muito próxima daquele homem! O dr. Silverstein entrou no apartamento, para examiná-la. E Kate aproveitou para fazer-lhe algumas perguntas sobre seu estado. O médico tratou-a com polidez e delicadeza. Mas não esclareceu muitas coisas. Apenas repetia: — A senhora ficou em estado de choque por mais de uma semana. Felizmente já está fora de perigo, para alívio e alegria de todos nós. Depois da consulta, o dr. Silverstein deu instruções à enfermeira Diane, despediu-se e saiu. A sós com ela, Kate crivou-a de perguntas. Precisava localizar-se, entender o que havia


acontecido durante o tempo em que estivera inconsciente. Mais de uma semana, o médico havia dito. Por mais de sete dias, ela ficara alheia ao mundo. Por quê? E como viera parar ali? De onde surgira MacNeal e sua infinita bondade? E por que ele resolvera ficar a seu lado, cuidar de seu filho? Que motivos teria para tanto? Kate queria perguntar tudo isso, e muito mais, à enfermeira, que preparava uma injeção. Mas depois do medicamento sentiu-se tão sonolenta, que acabou desistindo. Aos poucos, conseguiria esclarecer toda aquela situação. Mas, no momento, as pálpebras pesavam-lhe por demais e era impossível resistir ao sono. Kate estava saindo da biblioteca onde trabalhava, na cidade de Jackson. A tarde caía, num espetáculo de cores e luzes de indescritível beleza. A escolinha que Jonathan frequentava ficava a poucos quarteirões dali. No caminho, havia uma sorveteria. O Escort estava estacionado em frente à biblioteca, mas Kate preferia buscar Jonathan a pé. Assim, poderia desfrutar melhor daquele belo entardecer. Jonathan bem que gostaria de caminhar um pouco também... Sobretudo se ela o convidasse para tomar um sorvete. Ao aproximar-se da escolinha, Kate viu vários homens parados junto ao portão. Eram os pais das crianças que ali estudavam. Curioso era que não havia nenhuma mãe, Kate notou. Ao chegar ao portão, ela avistou o filho, junto com outras crianças. — Jonathan! — chamou-o, enquanto acenava. — Mamãe chegou! O menino correu para encontrá-la. Uma professora abriu o portão, dando-lhe passagem. Kate o abraçou calorosamente, enquanto ouvia uma garotinha perguntar: — Jonathan, por que seu pai nunca vem buscar você? — Porque não tenho pai. — Mas todo mundo tem, Jonathan. — Eu só tenho minha mãe. E ela cuida muito bem de mim. Kate abriu os olhos. Estivera sonhando com um fato ocorrido alguns meses atrás. A cena fora realmente assim, com uma diferença: no sonho, Jonathan respondia ao argumento da garotinha. Na realidade, porém, ele nada dissera. Ficara calado, pensativo. E quando ela o convidara para tomar sorvete, Jonathan parecera não ouvir. Kate insistira e ele acabara concordando. Enquanto saboreava uma taça de sorvete de flocos, seu sabor preferido, o garotinho perguntara: __ Mamãe, por que será que o papai foi embora? __ Quem pode saber, querido? — Kate respondera, comovida e penalizada. — Talvez ele achasse ue não poderia cuidar bem de nós... Mas ele não precisava tomar conta da gente. Era só ficar bem pertinho... Morar na mesma casa, me buscar na escola... Fazendo um intenso esforço para não chorar, Kate dissera: — Bem, se ele houvesse visto você, aposto que não teria coragem de partir. Mas nem chegou a conhecê-lo, Jonathan. — E você ficou brava com ele? — Por algum tempo, sim — Kate respondeu, com toda a sinceridade. — Mas hoje penso de um modo diferente: como poderia ter raiva de seu pai, se ele me deu você? Jonathan sorrira, largamente. E depois de algumas colheradas de sorvete, afirmara: — Sabe de uma coisa? Eu até sinto falta do papai. Mas estou feliz com minha mãezinha... Comovida, Kate desatara a chorar. — Você ficou triste com o que eu disse, mamãe? — ele indagara, aflito. — Não, querido. Fiquei feliz. Imensamente feliz, aliás. — E tomando-lhe a mãozinha, por sobre a mesa, sentenciara: — Você é a pessoa a quem mais amo, neste mundo. E meu motivo para viver, querido. — Também amo você, mamãe.


— Muito? — Muito. Com um profundo suspiro, Kate voltou ao momento presente. Um corte brusco havia ocorrido em sua vida, ela pensou. Quando poderia retomar a rotina normal, com Jonathan? Quando poderia voltar ao mundo seguro que construíra para si e para o filho? Estivera inconsciente, por um motivo do qual ainda não conseguia se lembrar. E agora estava difícil entender uma série de coisas. Bem, isso devia ser normal. Aos poucos ela iria clareando as idéias. De súbito, Kate percebeu uma presença a seu lado. Uma presença cálida, amiga, preciosa... — Olá. — Abrindo os olhos, ela sorriu para o homem a quem bem poderia chamar de seu benfeitor. — Olá, Kate. — Ele sorriu de volta. — Desculpe-me por tê-la acordado. — Eu não estava dormindo... Apenas pensando. Tanto, que nem ouvi você chegar. — Entrei o mais silenciosamente que pude, para não fazer barulho. — Pois conseguiu. Os olhos de ambos se encontraram, por um longo momento. — Você está melhor? — ele indagou. — Nem é preciso responder. Pela sua aparência, dá para perceber que já se recuperou bastante. Kate então se deu conta de que havia muito tempo que não pensava em sua aparência. Levantando as mãos à altura dos olhos, observou-as com ar crítico. Estavam ressecadas e ainda traziam as marcas do soro, que a enfermeira Diane retirara na noite anterior. Tocou o rosto e chegou à conclusão de que também estava ressecado. E não era para menos. Afinal, sua pele era muito e sensível. E fazia tanto tempo que não recebia cuidados. — Devo estar horrível — Kate pensou, em voz alta. — Não fale assim — ele a advertiu, num tom suave. — Você está linda. — Não sabia que você, além de tudo, era mentiroso. — Kate tentava gracejar. — Está linda, sim — ele replicou. — A vida voltou a pulsar em seu corpo e espírito. Seus olhos me dizem isso. — Obrigada — ela murmurou, comovida. — Você é a bondade em pessoa. — Não exagere — ele retrucou, modestamente. — A propósito, como se chama? Ele sorriu, exibindo dentes brancos e perfeitos. — Só agora me lembrei de que você não sabe meu nome. — A enfermeira Diane o chama de sr. MacNeal. — Este é meu sobrenome. O primeiro nome é Richard. — Richard — Kate repetiu, devagar. — Muito prazer em conhecê-lo... E isso que devemos dizer, quando uma pessoa se apresenta. Entretanto, tenho a nítida impressão de conhecê-lo há muito tempo. — Isso é porque falei muito com você, nos últimos dias. — Eu sei. — Kate sorriu, emocionada. — Você é A Voz. — Como? — ele indagou, sem entender. — Vou tentar explicar. — Ela ficou em silêncio por alguns instantes, como se escolhesse bem as palavras para traduzir algo impalpável, mágico, absoluto. — Não me pergunte por quê, mas, quando eu estava numa espécie de limbo, sem consciência de meu próprio corpo, sem qualquer elo com o mundo material, eu percebia uma voz. E essa voz era sua. Nos olhos azuis de Richard estampou-se uma forte emoção. — Então você me escutava? — Não sei se escutar é o termo correto para definir o que estava me acontecendo. Em certos momentos, eu conseguia distinguir bem as palavras. Em outros, apenas percebia sons


ritmados, uma espécie de acalanto que me tranquilizava, me fazia desejar a vida e não o nada. Richard tomou-lhe a mão. E Kate comentou: — Também isso eu percebia, vezes. Um calor, uma presença cálida que me ajudava a escapar do poço sem fundo. Ante a expressão curiosa e emocionada do homem a seu lado, Kate explicou: — O poço sem fundo é, talvez, o portal para a morte. Havia momentos em que eu tinha vontade de ceder, de entregar os pontos, de me deixar arrastar para a escuridão. Mas então A Voz chegava e encorajava-me a viver... Sobretudo quando me falava de Jonathan. — Oh, Kate Burnett... — Richard murmurou, tocando-lhe o rosto delicadamente. — Eu não tinha certeza de que você me ouviria. Mesmo assim, continuava falando. Achava que, ainda que você não entendesse bem as palavras, perceberia o carinho, o calor humano que eu tentava lhe transmitir. — Por quê? — Kate perguntou. — Como? — Por que você fez isso? Por que ficou a meu lado nesses dias todos, me trouxe flores, cuidou de meu filho e... — Então você ainda não se deu conta de quem sou? — Richard a interrompeu. Kate franziu a testa. — Tudo é muito confuso. Eu não sabia seu nome e, no entanto, tinha a nítida sensação de conhecê-lo. Também sua fisionomia não me é estranha, embora eu esteja certa de jamais tê-lo visto antes. — Jamais? — Richard repetiu, com o semblante subitamente triste. — Não, Kate Burnett... Você me viu, sim... No acidente. Kate fechou os olhos com força, tentando concatenar as idéias. Mas era tão difícil. — Oh, Deus, espero não ter dito nada de errado — Richard sobressaltou-se. — Talvez eu não devesse tocar nesse assunto. — Está tudo bem — Kate tentou tranquilizá-lo. — Preciso mesmo saber como vim parar aqui. Quer dizer então que sofri um acidente? — Você não se lembra? — Agora que você mencionou essa palavra, sei que algo aconteceu... Mas tudo o que consigo descobrir, a respeito, são vagas sensações. — De súbito, Kate empalideceu. — E meu filho? Ele devia estar comigo, na hora do acidente. — Jonathan vai muito bem. Ele não sofreu nenhum ferimento. — Então estávamos, realmente, juntos — Kate concluiu, num fio de voz. — Calma, por favor — Richard recomendou, visivelmente aflito. — Você não pode se exaltar desse jeito. Isso prejudicará sua recuperação. — Mais prejudicada ficarei, se não conseguir pôr a mente em ordem. — Num tom de súplica, Kate pediu: — Ajude-me, por favor. Conte-me tudo o que sabe, sobre o motivo pelo qual estou aqui. De que modo meu filho foi parar em suas mãos? Quando esse acidente aconteceu? Como é possível que eu tenha saído ferida e, Jonathan, não? A menos que você esteja me ocultando a verdade... — Calma — Richard tornou a recomendar, pressionando-lhe levemente a mão, num gesto de carinho e solidariedade. Num tom suave, acrescentou. — Eu lhe contarei tudo o que quer saber, desde que me prometa uma coisa. — Qualquer coisa — ela concordou, ansiosa. — O que devo fazer? — Procure não se exaltar. Ouça-me com toda a calma do mundo e guarde as perguntas para o final da narrativa, certo? Kate aquiesceu com um gesto de cabeça. — Antes de mais nada, quero que se tranquilize com relação a Jonathan. Eu e minha mãe estamos cuidando dele. — Dessa parte, eu me lembro. Você me disse isso, quando acordei.


— Então, não pense que a estamos enganando, a respeito dele. Aliás, devo trazê-lo logo, para uma visita, assim que o dr. Silverstein permitir. Kate sorriu, enquanto seus olhos inundavam-se de lágrimas. — A perspectiva de rever meu filho já deixa tudo mais claro e tranquilo — ela afirmou, com um profundo suspiro. — Ótimo. — Richard sorriu, aliviado. — Assim está melhor. — E começou a narrar tudo o que acontecera, desde o momento do acidente. Que A Voz era grave e pausada, Kate podia se lembrar. Que às vezes soava como uma doce carícia, também. Mas era reconfortante saber que A Voz tinha um nome, ou melhor: um dono. Mesmo falando de um assunto terrível, como o acidente que a deixara em estado de choque, Richard MacNeal continuava sendo belo, encantador e gentil. Há quanto tempo ninguém a tratava assim, Kate pensou. Há quanto tempo nenhum homem lhe falava daquela maneira... — Pouco antes da ambulância chegar, você me pediu que cuidasse de seu filho — disse Richard, a certa altura. — Lembra-se? — Não. — Uma lágrima furtiva escorreu do olho de Kate. — Mas acho que fiz muito bem em pedir-lhe isso. Pois não conheço ninguém, neste mundo, que possa me despertar mais confiança do que você. — Obrigado — Richard enxugou-lhe delicadamente a lágrima. — Você não imagina o quanto me faz bem ouvir isso. — E você, Richard MacNeal? — Kate segurou-lhe a mão. — Por acaso tem idéia do imenso bem que está me causando? Você me salvou da morte, me ajudou a sair do limbo e, agora, está clareando minha mente. Isso, sem contar que tem cuidado de meu filho. Será que algum dia poderei agradecê-lo? — Sem esperar pela resposta, continuou: — Acho que não. Ainda que eu passasse o resto de minha vida dizendo obrigada, não seria suficiente. Richard engoliu em seco: — Isso era o mínimo que eu podia fazer, para reparar o mal que lhe causei. — Mal? — Kate repetiu, franzindo o cenho. — Do que está falando, Richard? — Do acidente — ele respondeu, com uma expressão de angústia. — Do que mais poderia ser? — Não estou entendendo — Kate afirmou, confusa. — Fui o culpado pelo acidente. Será que você ainda não percebeu isso? Kate fitou-o com perplexidade: — De onde você tirou essa idéia absurda? — Ora, eu estava parado no meio da rua e você não teve como desviar. Depois veio a caminhonete de que já lhe falei e... — Mas você mesmo não acabou de dizer que foi obrigado a parar, para não atropelar o menino que estava andando de bicicleta? — Sim. Mas se eu não estivesse tão cansado, devido às muitas horas de trabalho na empresa, meus reflexos seriam mais rápidos. Teria me refeito mais rápido do susto e seguido meu caminho, deixando a rua desimpedida. — Você está se torturando à toa — Kate sentenciou. — Até mesmo eu, nesse estado tão frágil, posso perceber isso com clareza. — Você não entende... — Richard replicou, irredutível. — Fui realmente o culpado. Kate o fitou com um misto de pena e ternura. — Não entendo como você pode se sentir assim. De qualquer modo, vou continuar pensando que foi a bondade, e não o remorso, que o levou a me ajudar. — Fiz tudo de coração, acredite. — Não há como duvidar disso, Richard MacNeal — ela respondeu, sorrindo docemente. — Ninguém conseguiria ser tão bondoso, se realmente não tivesse um coração iluminado. — Após uma pausa, acrescentou:


— Mas gostaria que você se livrasse dessa culpa. Ele sorriu, com amargura, ao confessar: — Essa culpa me acompanha há um bom tempo, Kate Burnett. Não foi você quem a plantou dentro de mim. — Não? — ela reagiu, curiosa. Richard meneou a cabeça, antes de dizer: — Você apenas reacendeu uma ferida que trago aqui. — Ele tocou o peito. Kate fechou os olhos por um instante. Uma sensação de tristeza a invadia. — Oh, Deus, o que estou fazendo? — A voz de Richard traía uma forte angústia. — Em vez de ajudá-la a se acalmar, acabei deixando-a ainda mais perturbada! — Não se recrimine, Richard MacNeal. Você não pode ser perfeito o tempo todo. — Kate abriu os olhos. — Você é meu salvador. Entenda isso de uma vez por todas e pare de se torturar. — Fitando-o com intensidade, ela pediu: — Se algum dia me der a honra de sua confiança, eu bem que gostaria de saber que dor é essa que você traz no peito. Richard fitou-a longamente, mas nada respondeu. — Você não confia em mim, não é mesmo? — Kate concluiu. — Bem, só me resta respeitar seu silêncio. — Não se trata de desconfiança — ele esclareceu. — Apenas, não quero mais falar de coisas tristes... Não enquanto você estiver convalescendo. Mas algum dia lhe contarei. — Ficarei esperando. E se eu puder ajudar... — Você já me ajudou muito, Kate. — Como? — Sobrevivendo. — Inclinando-se, Richard beijou-a na testa. Kate fechou os olhos, para receber aquela doce carícia. — Sabe de uma coisa? — disse, baixinho. — Sim? — Richard sorriu, com o rosto bem próximo do seu. — Eu nunca tinha visto um anjo, ao vivo. Mas depois que conheci você... — Ah, Kate Burnett, estou tão longe de ser um anjo quanto a Terra está do Sol. Mas se você quiser conhecer um, de verdade, fale com a sra. Andersen. — Trata-se de uma das enfermeiras, não é mesmo? — Sim — Richard confirmou. — Já a conheci. Ela é um anjo. — Eu não disse? — Mais uma vez, Richard assumiu um tom confidencial, ao afirmar: — Mas é um anjo equivocado, sabe? — Por quê? — Ela acha que somos namorados. — A enfermeira Diane também. — E as duas não são as únicas a incorrer nesse mal-entendido. — Richard sorriu. — Por que será que as pessoas pensam que a única relação possível entre um homem e uma mulher é... — Com licença. — A enfermeira Diane entrou no quarto. — O horário de visitas terminou, sr. MacNeal. — Já? — Richard e Kate protestaram, ao mesmo tempo. — O tempo sempre voa, para os namorados — Diane sentenciou. Kate e Richard entreolharam-se, tomados por uma profunda emoção. Acariciando-lhe os cabelos, Richard inclinou-se e beijou-a novamente, dessa vez em ambas as faces. Em seguida despediu-se da enfermeira e perguntou: — Posso falar com o dr. Silverstein? — Sim. — Com um largo sorriso, Diane acrescentou: — Mas acho que já sei o que o senhor vai perguntar a ele... E sobre o garotinho, não? — Isso mesmo. Quero saber quando poderei trazer Jonathan, para visitar Kate.


— Amanhã — disse Diane. — Está falando sério? — Richard indagou, agradavelmente surpreso. Com a respiração suspensa, Kate esperou pela resposta. — Adivinhei que o senhor perguntaria ao dr. Silverstein sobre isso e resolvi adiantar as coisas. — Então ele já autorizou a vinda de Jonathan? — Kate quis saber. — Sim — Diane confirmou, olhando de um para o outro. Parecia tão entusiasmada quanto ambos. — Assim, a família feliz estará reunida. Será um momento inesquecível. — Obrigada, senhorita — Kate agradeceu. — Obrigado — Richard fez o mesmo. — Ora, vocês merecem toda a felicidade do mundo. — Acho que ela é outro anjo da guarda, Kate — disse Richard, referindo-se à enfermeira, que parecia tão alegre quanto comovida. — Pelo visto, estamos cercados por eles — Kate comentou, invadida por uma onda de fé e confiança... na vida... no futuro. Agora, mais do que nunca, tinha certeza de que tudo ficaria bem. E a perspectiva de rever Jonathan aquecia-lhe o coração. CAPÍTULO VIII Richard! Que bom que você chegou! Mas o que você veio fazer em casa, a essa hora? A euforia do pequeno Jonathan podia ser ouvida da cozinha, onde Alice se encontrava. A passos largos, ela dirigiu-se à sala e deparou com uma cena comovente: Richard havia erguido Jonathan nos braços e o mantinha aconchegado contra o peito, enquanto acariciava-lhe os cabelos. — Posso saber o motivo dessa adorável surpresa? — Alice indagou, sorrindo. — Vamos dizer a ela? — Richard perguntou a Jonathan. — Eu conto! — o garotinho decidiu. Richard colocou-o no chão. Com ar solene, Jonathan anunciou: — Eu já posso visitar mamãe. — Ah, que maravilha! — Alice reagiu, emocionada. Voltando-se para Richard comentou: — Pensei que ainda fosse demorar alguns dias, até que Jonathan pudesse vê-la. Afinal, ela só acordou ontem. — Sim, mamãe. Mas estive conversando com o dr. Silverstein, agora há pouco. Ele está impressionado com a recuperação de Kate. — Graças a Deus! — Alice exclamou. — Graças a Deus! — Jonathan repetiu. Richard e Alice entreolharam-se, encantados. Decididamente, Jonathan sempre os emocionava, com sua inocência. — Na verdade... — Richard continuou — Kate não teve muitos traumas físicos. Apenas escoriações e luxações. O que realmente preocupava o dr. Silverstein era o estado de choque em que ela se encontrava. — Mas agora mamãe já sarou, não é mesmo, Richard? — Jonathan perguntou, com o rostinho iluminado por um sorriso. — Ela ainda precisa de cuidados — Richard afirmou. — Mas vai sarar, com toda a certeza. — Ah, que notícia linda! — Alice estava radiante. — Precisamos comemorar, filho. Que tal faltar à empresa, agora de manhã, e ficar para almoçar conosco? Estou preparando uma torta de palmito com legumes que, modéstia à parte, ficará deliciosa. — Convite aceito — Richard respondeu, decidido. — Oba! — Jonathan gritou de alegria.


Richard pegou-o novamente no colo. Alice aproximou-se e Jonathan enlaçou-a pelo pescoço. Richard, por sua vez, enlaçou-a pela cintura. E os três ficaram assim, abraçados, comemorando aquele momento especial. O telefone soou, mas nenhum deles se moveu. O som insistente persistiu por alguns instantes, até que Alice decidiu: — Vou atender esse chato. Que horas para telefonar! Richard sorriu, enquanto colocava delicadamente o pequeno Jonathan no chão. — Bem, mamãe, ninguém poderia adivinhar o momento que estamos vivendo. — É verdade. — E Alice atendeu a chamada: — Alô? Pois não... Ah, é você, Chester? Como vai? Ele está aqui, sim. Queira aguardar um minutinho, por favor. — Tapando o fone, anunciou: — Ele quer falar com você, filho. — Obrigado, mamãe. — Jonathan, que tal me ajudar com a torta, lá na cozinha? — Alice propôs. — Vamos lá! — o garotinho concordou, alegremente. Sozinho, na sala, Richard atendeu Chester. — Alô? Você teve sorte de me encontrar aqui. Porque não ligou para o celular? Como? — Richard tateou o bolso do paletó, onde costumava carregar seu telefone celular. — Puxa, é mesmo! Só agora estou vendo que me esqueci de pegá-lo, hoje cedo. Mas diga-me, Chester, houve algum problema aí na empresa? Como? Temos uma reunião marcada para agora, com os fornecedores? Mas não seria hoje à tarde? Ah, desculpe, acho que confundi os horários. Escute, será que você poderia cuidar desse compromisso, para mim? Faça-me esse favor e eu lhe ficarei eternamente grato... Como? Sim, estou feliz e tenho motivos de sobra para tanto. — Com a voz carregada de entusiasmo, Richard anunciou: — Kate Burnett saiu do estado de choque e está se recuperando de forma impressionante. Ora, claro que eu ia lhe contar... Tencionava fazer isso hoje à tarde. Como? Não, Chester, só chegarei aí por volta de duas horas. Vou almoçar com mamãe e Jonathan, para comemorar. Certo, até logo, então. Não se esqueça de dar a boa notícia a Charlene. Um abraço. — Richard desligou e dirigiu-se a sua suíte. Tinha esquecido o telefone celular sobre o criado-mudo. Aliás, nem sequer havia carregado sua bateria. Richard sorriu. Aquela era a primeira vez, desde que comprara o aparelho, que o esquecia em casa. — Justo eu, que sempre fui tão responsável — murmurou, divertido. Também, tivera outras coisas para pensar, desde a noite anterior... O milagre que trouxera Kate de volta à vida, por exemplo. E sua incrível recuperação. Isso, sem contar o quanto a imagem de Kate havia lhe ocupado a mente, até alta madrugada. Richard passara horas recordando cada detalhe do momento em que Kate emergira das sombras. Decididamente, aquela mulher era especial. Richard tinha certeza de que jamais a esqueceria. De súbito, ele se lembrou de uma providência importante, que precisava tomar: informar o motorista da caminhonete, Charles Albert Oak, de que Kate havia saído do estado de choque. E foi o que fez. A primeira coisa que Kate notou, ao acordar, foi o vaso de gerânios. Não se lembrava de ter agradecido Richard, por aquele belo presente. Bem, poderia fazer isso mais tarde, quando ele chegasse. Aliás, Jonathan também viria, naquela noite. E Kate mal podia esperar para abraçá-lo. Pegando o controle remoto que estava sobre a mesinha, ela ligou a televisão. Desde aquela manhã, depois que Richard se fora, ela havia tentado assistir à tevê... sem muito sucesso. Os programas de auditório lhe pareciam muito barulhentos e agitados. E, na maioria dos filmes, a violência era o ingrediente principal. Assim, Kate havia desistido e desligado o aparelho. Resolveu tentar novamente. Sintonizou num canal que transmitia um festival de música clássica e, fechando os olhos,


deixou-se embalar pela música. Fazia tempo que não ouvia algo tão belo... Kate não tardou a identificar a obra que a orquestra executava: tratava-se de uma peça de Vivaldi, o grande compositor italiano. Aquela música era um bálsamo para a alma, Kate pensava, deliciada. Entregando-se à magia dos acordes perfeitos, ela relaxou como havia muito não conseguia. O concerto chegou ao fim. Kate abriu os olhos. As câmeras focalizavam a plateia, que aplaudia com total entusiasmo. Sorrindo, Kate resolveu bater palmas, também. Era seu modo de agradecer o bem que a música lhe fizera. A transmissão chegou ao fim. E Kate desligou a tevê. Seu espírito estava em paz. E, a mente, muito clara. Kate começou a repensar sua vida. Tinha sido uma criança solitária e triste, filha de pais problemáticos, que nunca chegaram a compreendê-la. Perdera-os num acidente de avião, quando era ainda adolescente. Uma tia, Annabelle Burnett, a acolhera e criara com excessiva severidade. A velha senhora, irmã do pai de Kate, jamais se casara. Era uma mulher taciturna, fechada, que parecia ignorar o mundo exterior. Ao receber Kate em sua casa, não tinha a menor idéia do que sentia ou pensava uma adolescente de quinze anos. Mas estava decidida a amá-la... à sua maneira. Se até então Kate sofrera por ter pais displicentes, que jamais lhe perguntavam aonde ia e a que horas estaria de volta, ou sobre o que pensava e sentia... pepois passara a sofrer justamente pelo oposto: tia Annabelle a proibia de ir a qualquer lugar, até mesmo na sorveteria da esquina, ou ao cinema do bairro. Não a deixava estudar em casa de amigas, nem participar das atividades de lazer do colégio. Namorar, então, estava fora de cogitação. Kate sentia-se como uma prisioneira, sem chances de liberdade, já que não possuía ninguém, no mundo. Quando se rebelava contra a tia, esta a ameaçava, dizendo que a mandaria para uma instituição de caridade. No fundo, Kate achava que Annabelle Burnett não seria capaz disso. Mesmo assim, sentia medo de suas ameaças. Depois de concluir o segundo grau, Kate resolvera trabalhar. Annabelle, porém, fora radicalmente contra a idéia. Kate insistira... em vão. Tia Annabelle, porém, era irredutível em suas decisões. O namoro com Stanley, que morava do outro lado da rua e era dois anos mais velho que Kate, começara como que por acaso. Ambos se encontraram na padaria e começaram a conversar. A simpatia fora imediata e, a partir daí, viviam arranjando pretextos para se ver. Kate, que como a maioria das adolescentes adorava ler romances e sonhava com seu príncipe encantado, não tardara a se apaixonar. Cercando-se de precauções, para que tia Annabelle não descobrisse seu segredo, ela sentiase como as heroína dos romances que devorava. O namoro durara apenas algumas semanas. Uma vizinha bisbilhoteira contara a Annabelle que vira sua sobrinha num banco de praça, de mãos dadas com um rapaz. Isso fora o suficiente para que a velha senhora armasse um verdadeiro escândalo. Humilhada, Kate jurara fugir para sempre daquela casa, daquele bairro provinciano onde as pessoas não sabiam respeitar sua privacidade e muito menos seus sentimentos. Nos meses seguintes, ela ainda se encontrara com Stanley, algumas vezes. Mas ele mostrava-se reticente, como se já não quisesse a continuidade do namoro. Pouco depois, anunciaria sua partida para uma universidade da Califórnia. O primeiro sonho romântico de Kate se desvanecera. E ela julgara-se a mais infeliz das


garotas. Mais tarde, o mundo lhe mostraria que havia desilusões bem piores. Com o tempo, Kate havia aprendido a amar e aceitar tia Annabelle, apesar das diferenças que existiam entre ambas. Afinal, aquela senhora amargurada e excessivamente severa a recolhera em sua casa. E se a cercava de proibições e regras antiquadas, era porque julgava estar agindo corretamente. Tia Annabelle falecera pouco depois de Kate completar dezenove anos. Com a parca herança que recebera, Kate pagara as despesas médicas, comprara um Escort quase novo e alugara um apartamento pequeno, num bairro tranquilo de Jackson. Arranjara um emprego na Biblioteca Municipal, que ficava próxima ao lugar onde morava. O trabalho a agradava bastante. E, assim, Kate resolvera cursar Biblioteconomia. Trabalhava durante o dia todo e estudava à noite. Sentia-se livre, mas também solitária. Estava cursando o terceiro semestre, quando conhecera Bernard Doyle, um rapaz extrovertido e alegre, muito popular entre os estudantes. Tal como muitas outras garotas, Kate admirava-o e, secretamente, sentia-se atraída por ele. Quando Bernard a convidara para acompanhá-lo a um jantar dançante, promovido pelo centro académico, Kate mal pudera caber em si, de tanta alegria. Uma semana depois, ambos começavam a namorar. Kate voltara a construir seu castelo de cartas. Apesar de já ter vinte anos, continuava sonhadora, como na adolescência. O excesso de romantismo a impedia de ver, com clareza e bom senso, a situação em que se encontrava. Para ela, Bernard Doyle era o príncipe encantado com quem sempre sonhara. Para Bernard, ela era apenas mais uma, entre as muitas garotas bonitas que ele adorava cortejar. Quatro meses mais tarde, Kate ficara grávida. E se a princípio sentira-se assustada com a perspectiva de ser mãe, logo se tranquilizara. Tinha certeza de que Bernard a apoiaria, incondicionalmente. Mas a reação dele fora bem outra... Kate sofrera uma terrível desilusão. A despeito da insistência de Bernard para abortar o bebê, ela decidira levar adiante a gravidez. Ele então lhe dissera que não estava preparado para ser pai. E que jamais poderia assumir aquela criança. Kate, porém, mantivera-se firme em sua decisão de ser mãe. No fundo, acalentava a esperança de que Bernard mudasse de idéia, quando o bebê nascesse. Porém, ele partira de Jackson dois meses antes da chegada de Jonathan ao mundo. Fora chamado para trabalhar em uma grande empresa e não podia perder essa oportunidade. Ao menos era isso que dizia a carta breve, um tanto seca, que deixara para Kate. A partir daquele momento, ela decidira nunca mais contar com ninguém. Teria seu filho sozinha, construiria para ele um mundo seguro, cheio de compreensão, delicadeza, confiança... Amor. Essa palavra poderia resumir tudo o que Kate queria, para seu bebê. Com muita força e determinação, ela realizara esse objetivo. Kate afastou as lembranças, voltando ao momento presente. Um sorriso insinuou-se em seus lábios. De fato, havia conseguido cumprir sua promessa, dando a Jonathan um mundo estável, seguro, cheio de afeto. Era verdade que ambos levavam uma vida modesta. Mas viviam com dignidade e eram felizes. Se não sobrava dinheiro, tampouco faltava, para pagar as contas. — Contas... — Kate murmurou, enquanto seus olhos verdes se arregalavam, numa expressão de susto. — Santo Deus! Só agora lhe ocorria que teria de pagar suas despesas, naquele hospital. E não precisava refletir muito, para concluir que as economias de que dispunha não dariam para tanto. Além do mais, tinha pedido demissão da Biblioteca Municipal de Jackson, onde trabalhara


durante anos. Automaticamente, perdera o direito ao convênio médico dos funcionários municipais da cidade. A aflição de Kate crescia. Até o presente momento, ela nem sequer tinha cogitado sobre sua situação financeira. Também, estivera organizando os pensamentos, depois de um período de inconsciência. Fora muito bom retornar a esse mundo... O mundo de Jonathan, de Richard MacNeal, da vida em si. Mas nem tudo eram flores, Kate filosofou, tocando delicadamente as pétalas rosadas dos gerânios que estavam a seu lado, na mesinha. Havia também as dificuldades e, naquele instante, as financeiras pareciam ser as mais assustadoras. As despesas do hospital deviam ser astronómicas, ela pensou. Só a estada na unidade de terapia intensiva teria um custo milionário. Kate apertou as têmporas, que começavam a latejar, devido à tensão que a dominava. Sabia que não devia se desgastar, pois isso prejudicaria sua recuperação. Mas como manter a calma, se acabava de descobrir que estava literalmente falida? Tinha desmontado seu apartamento em Jackson e vendido todos os móveis. Trouxera consigo, para Memphis, apenas os utensílios domésticos, aparelhagem de som e vídeo, bem como objetos pessoais seus e de Jonathan. Alugara um apartamento pequeno, mas confortável, num bairro calmo e arborizado, perto de uma escola experimental, onde conseguira um bom trabalho, como bibliotecária. A escola era ótima e Kate matriculara Jonathan no jardim-de-infância. Ela deveria começar a trabalhar na semana seguinte. Seria maravilhoso poder estar tão perto de Jonathan. Fariam as refeições juntos e teriam mais tempo um para o outro... Mas, então, algo ocorrera. Algo que fora como um corte na nova sequência vida que se anunciava. Kate contraiu o rosto, numa expressão de dor. Não se tratava de dor física, mas espiritual. Ela havia planejado tão bem a mudança para Memphis... Tinha enviado seu currículo à escola experimental e exultara ao ser aceita. Depois, procurara cuidadosamente um bom apartamento, num local tranquilo, para morar. Encontrara um que lhe parecera perfeito, não só pela localização, mas também pelo preço do aluguel. Com as economias de que dispunha, ela pagara seis meses adiantados ao proprietário, que chegara a fazer um abatimento, no total. — Oh, Deus... — Kate lamentou-se, baixinho, ao lembrar-se do dia em que havia chegado a Memphis. Entrara na cidade por volta da hora do almoço, com o carro carregado de bagagem. Descarregara tudo no novo apartamento. O porteiro do prédio, muito solícito, a ajudara. E Jonathan também, claro. Kate recordava muito bem do quanto o garotinho se mostrava entusiasmado com a nova vida que levariam, dali por diante. Kate passara uma boa parte da tarde arrumando o novo apartamento. Depois, saíra com Jonathan para pesquisar preços de móveis. No final da tarde, parara numa lanchonete para tomar um lanche, com o filho. E ao voltar para casa... Aí as recordações se interrompiam. E Kate logo descobriu o motivo: — O acidente — concluiu, em voz alta. Estava voltando para casa quando, ao entrar numa rua, batera no jipe de Richard. Depois, uma caminhonete fizera seu Escort rodopiar e chocar-se contra um poste. O resto, ela já sabia. Richard MacNeal havia lhe contado tudo, em detalhes. A conexão entre os fatos estava completa, agora. Quanto a ela, sentia-se tensa, assustada com a falta de perspectivas para o futuro. Como não voltara mais à escola experimental, era óbvio que perdera seu emprego. A direção, àquela altura, já devia ter encontrado uma pessoa para ocupar seu cargo, na biblioteca.


Isso significava que ela não teria um salário, no final do mês. Tampouco poderia desfrutar de um convênio-saúde. Kate pressionou as têmporas. Tinha de se acalmar, embora não houvesse nenhum motivo para tanto... Estava desempregada e sem perspectivas de conseguir trabalho. Afinal, quem contrataria uma pessoa recém-acidentada, que ainda trazia no corpo as marcas de escoriações? Ela precisaria de algum tempo para se recuperar totalmente. Mas, até lá, como viveria? Bem, ao menos possuía um teto para se abrigar, durante os próximos meses. Mas não tinha móveis e tampouco poderia comprá-los. , Seria mais prudente poupar as economias guardadas no banco, para sobreviver até que a situação melhorasse. Uma leve batida na porta interrompeu os pensamentos de Kate. No momento seguinte, a porta se abriu, dando passagem ao ser que era sua razão de viver. — Mamãe! Jonathan precipitou-se em sua direção. — Meu querido... Kate esqueceu-se momentaneamente de todas as aflições, para entregar-se à felicidade de rever o filho. — Lembra-se do que nós conversamos, Jonathan? — Richard acabava de entrar no quarto. — Sua mãe ainda está convalescendo e, por isso, você deve tomar cuidado para... Richard interrompeu-se. Também, Jonathan nem sequer o ouvia. Galgando a pequenina escada metálica de três degraus, que dava acesso ao leito de Kate, ele atirou-se em seus braços. Kate o beijava, afagava-lhe os cabelos, apertava-o contra si. — Vá com calma, Jonathan — Richard recomendou, mais uma vez... Em vão. — Está bem, eu desisto. Kate chorava de alegria. O mundo tinha várias facetas, ela pensou, aconchegando o filho no peito. Momentos atrás, ela se afligia com a falta de perspectivas para o futuro. Agora, mal cabia em si de tanta felicidade. A vida era mesmo uma somatória de alegrias e dificuldades. — Você está lindo, meu filho — disse Kate, observando o garotinho com atenção. — Mas não conheço essas roupas... — Foi Alice quem comprou. Richard também vive me dando presentes. Os dois são muito bonzinhos, sabe? — Disso não tenho a menor dúvida, querido — Kate respondeu, sorrindo. Voltando-se para Richard, cumprimentou-o: — Como vai? — Bem... E você? — Feliz. — Claro. Que bobagem, a minha, perguntar. — Obrigada por mais este presente — Kate agradeceu. — Acho que eu necessitava mais da presença de meu filho, do que de qualquer outro medicamento, para sarar de vez. — O afeto é um dos remédios mais poderosos que conheço — Richard sentenciou. — Tem razão. Se não fosse seu afeto, talvez eu nem houvesse regressado das sombras. — Ora... Kate fitou-o com ternura. Estava começando a adorar o modo como Richard sorria, quando ficava embaraçado. Era comovente ver um homem tão belo portar-se como um garoto pego em meio a uma travessura. — Mamãe, tenho um milhão de novidades para contar — Jonathan anunciou. — Um milhão?! — Kate repetiu, entre divertida e emocionada. — Então, é bom começar logo. Senão o horário da visita terminará, antes que você chegue à metade. Jonathan começou a tagarelar alegremente, para total deleite dos adultos. Contou sobre os passeios que tinha feito com Alice e Richard, sobre os brinquedos e roupas que ganhara, sobre o dia-a-dia no apartamento, os programas de tevê a que assistia, as crianças com quem começara a


fazer amizade, no edifício... — Seu filho tem uma memória impressionante — Richard comentou, a certa altura. — Nem eu mesmo me lembraria de tantos detalhes. — E num tom carregado de admiração, cumprimentou Kate. — Parabéns. Você tem feito um ótimo trabalho, com Jonathan. Foi a vez de ela ficar embaraçada. O pequeno Jonathan, porém, continuava contando suas aventuras e peripécias. Empolgado, não percebia os olhares significativos que Kate e Richard trocavam, vez por outra. A sra. Andersen entrou no quarto, para anunciar que faltavam apenas dez minutos para o final do horário de visitas. Jonathan sorriu, ao vê-la. E a sra. Andersen convidou-o a tomar uma xícara de chocolate, na cantina. O garotinho aceitou, depois de beijar afetuosamente a mãe e acenar para Richard: — Até logo, amigo. — Até... Nós nos veremos na cantina, daqui a pouquinho. A sra. Andersen comentou, com entusiasmo, a recuperação de Kate. E fez questão de frisar que a dedicação de Richard, durante o período mais crítico, tinha sido fundamental para que isso ocorresse. Só então saiu, de mãos dadas com o pequeno Jonathan. A sós com Kate, Richard tomou-lhe a mão entre as suas. — Acho que nem preciso perguntar se você está feliz... — Por rever Jonathan? — ela completou. — Nenhuma palavra poderia descrever esse misto de alívio e alegria que estou sentindo. Richard fitou-a com intensidade, antes de dizer: — Acredito nisso, mas... Estou enganado ou há uma certa aflição, em seus lindos olhos? Kate surpreendeu-se com a percepção daquele homem. — Você está começando a me conhecer bem mais do que deveria, sr. MacNeal... — disse, forjando um sorriso. Após uma pausa, acrescentou: — Mas, falando sério e sinceramente, estou de fato preocupada. — Com quê? — Richard indagou. — As coisas não poderiam ser melhores. Você está se recuperando com uma rapidez impressionante, seu filho vai muito bem e... — E o futuro, Richard? — ela o interrompeu, tensa. — O futuro será uma decorrência natural do presente — ele respondeu, com simplicidade. — O dia de amanhã resultará de tudo o que fizermos de bom, hoje. — Seu otimismo é comovente. — Kate fitou-o com ternura. — Mas temo que a realidade não seja tão promissora quanto você pensa. Ele sorriu, enquanto acarieiava-lhe os cabelos loiros. — Sabe de uma coisa, Kate Burnett? Você não deve pensar no futuro. Concentre suas energias apenas no presente e procure desfrutar tudo o que puder. Até ontem, você estava inconsciente, correndo risco de vida. Hoje, você se encontra totalmente fora de perigo. Isso não a deixa feliz? — Claro — ela reconheceu, com um profundo suspiro. — O fato de ter saído daquele limbo onde me encontrava causa-me um alívio indescritível. Mas você sabe que a vida é feita de alegrias e preocupações. E não posso ignorar o futuro sombrio que me aguarda. — Como pode ser tão pessimista, Kate Burnett? Isso chega a ser uma blasfémia contra a própria vida! Você é jovem, bonita, está se recuperando a olhos vistos, tem um filho lindo e... — Também estou desempregada, numa cidade estranha, com poucas economias no banco e nenhuma perspectiva — Kate completou, num tom amargo. — O que me diz disso, Richard MacNeal? Ele fitou-a com espanto. E Kate, num desabafo, contou-lhe a situação em que se encontrava. — Terei de ficar inativa, até que consiga me sentir realmente bem, para procurar um novo emprego — ela afirmou, depois de lhe falar sobre o trabalho que conseguira, na biblioteca experimental. — A essa altura, a direção já deve ter contratado outra pessoa. — É provável que sim — Richard concordou, pesaroso.


— Provável, não — Kate o corrigiu. — É certíssimo. — Tem razão. Mas aposto que a vaga de Jonathan, na escolinha, está garantida. — Sem emprego, não terei como pagar as mensalidades. Possuo minhas economias, mas terei de poupá-las, até voltar a trabalhar. — Kate fez uma pausa. — Ao menos poderei morar, por algum tempo, sem preocupações com o aluguel. — E esclareceu: — Paguei seis meses adiantados, ao proprietário. Mas vendi meus móveis, em Jackson. E não comprei outros. — Aos poucos, você conseguirá se reestruturar. Mas precisa ter paciência, Kate. O mais importante de tudo é que você está fora de perigo. O resto, virá depois. — Se minha situação se restringisse ao desemprego e a um apartamento sem móveis, ainda seria suportável. O pior é que estou com uma dívida imensa, para pagar. E não tenho a menor idéia de quando ou como poderei liquidá-la. — Que dívida? — Richard perguntou, interessado. — Ainda não sei o valor exato. Mas posso imaginar o preço astronómico do tratamento que venho recebendo, neste hospital. — Quanto a isso, não se preocupe. Ignorando as palavras de Richard, ela pensou, em voz alta: — Talvez eu possa dar o Escort, como garantia. Se é que ele ainda vale alguma coisa, depois do acidente. — Seu carro encontra-se no pátio do departamento de trânsito — Richard informou-a. — Mas receio que você só poderá vendê-lo para o ferro-velho. Kate suspirou, desalentada. — Tudo bem. De certo modo, eu já imaginava que não haveria outro jeito. Assim, voltamos ao ponto inicial: não possuo seguro-saúde e, ao demitir-me do emprego em Jackson, perdi o convênio ao qual tinha direito. — Kate, não sei se você me ouviu quando lhe disse que assumi o custo de seu tratamento, aqui no Baptist Hospital... — Como? — ela reagiu, espantada. Richard sorriu, ao recomendar: — Fique tranquila, ao menos quanto a isso. Já me encarreguei de tudo. — Mas não é justo! — ela exclamou, aflita. — Você já fez tanto por mim... — Não quero discutir esse assunto. — Richard tomou-lhe a mão entre as suas. — Vou pagar as custas de seu tratamento e pronto. Faço questão disso. Kate fechou os olhos, por um instante. Justo ela, que detestava depender dos outros, estava numa situação terrível. E não podia continuar assim. Tomando fôlego, controlando a inquietação que a afligia, tentou impor um tom calmo à voz: — Escute, Richard MacNeal, você me deu presentes que jamais poderei retribuir. Presentes sem preço, de valor impalpável. Ofereceu-me seu apoio, afeto, solidariedade... Mas agora estamos lidando com outra questão. O custo de meu tratamento é de ordem material. — Sei disso, sra. Burnett — ele gracejava, para aliviar a tensão. — Estou falando sério, Richard. — Eu também, Kate. — Você tem noção da dívida que está assumindo? Por acaso já tentou ver em quanto está o orçamento de minha estada aqui? — Já. Sei muito bem o que estou fazendo. E, acredite, posso perfeitamente arcar com essas despesas. — Richard fez uma pausa, antes de declarar: — Sou um homem razoavelmente rico, Kate. Garanto-lhe que esse gasto não afetará meu orçamento. Ela ficou em silêncio, por alguns instantes. Por fim, cedeu. — Está bem, eu concordo. Mesmo porque, não estou em posição de recusar tamanha generosidade. — Ah, até que enfim você demonstra um pouco de bom senso. — Ele sorria e era como se todo o ambiente ao redor se iluminasse. — Sabe de uma coisa, Kate? Acabo de descobrir que você é uma cabeça-dura.


Ela não pôde deixar de sorrir: — Você também não deve ter um gênio lá muito dócil... — Tente me conhecer melhor e verá. Ambos se calaram. Consultando seu coração, Kate descobriu que sim, que adoraria conhecer Richard MacNeal a fundo. Ele era o primeiro homem, desde seu relacionamento com o pai de Jonathan, que lhe despertava essa vontade. — Aceitarei sua generosidade — ela repetiu, com os olhos fixos nos de Richard. — Mas com uma condição... — Sem condições — ele protestou. Ignorando o aparte, Kate concluiu: — Quero lhe pagar essa dívida, assim que puder. Com certeza, pedirei a você para parcelar, mas... — Sem condições — Richard repetiu. Com uma expressão subitamente triste, acrescentou: — Afinal, eu fui o único responsável pelo acidente. — Oh, não! — Kate o repreendeu, num tom carinhoso, mas firme. — Lá vem você com essa estória maluca, de novo. De onde tirou essa idéia absurda? — Antes que ele respondesse, ela recordou: — Lembro-me de que você disse que tinha um motivo para pensar assim... E que algum dia me contaria. Que tal agora? — Ainda não, querida. — Inclinando-se, Richard beijou-a na testa. — Vamos esperar que você esteja mais forte. Os olhos de ambos se encontraram, por um longo momento. "Querida", Kate repetia, em pensamento, depois da saída de Richard. Havia tanto tempo que ninguém a chamava assim... — Querido Richard MacNeal — ela murmurou, presa de uma forte emoção. — Serei sua eterna devedora. CAPÍTULO IX Acomodada no banco traseiro do Mercedes de Richard, Kate olhava as ruas de Memphis como se contemplasse a mais bela paisagem do mundo. Tinha recebido alta no Baptist Hospital e Richard fora buscá-la. Por exigência dele, Kate ocupava o banco traseiro do veículo. Na verdade, ela bem que teria preferido sentar-se ao lado de Richard, na frente. Mas ele não havia permitido: — Você ainda está convalescendo. Não pode se arriscar. Além disso, ficará bem mais confortável, tendo um banco inteiro para se acomodar. Agora, ali estava ela, recostada em almofadas forradas de cetim. — Está se sentindo bem? — Richard indagou, fitando-a através do espelho retrovisor. — Você já me fez essa pergunta uma dezena de vezes, desde que chegou ao hospital — ela retrucou, sorrindo. — Sim, Richard, estou ótima. Passei quase três semanas internada e sinto-me pronta para reiniciar minha vida. — Com muita fé no futuro? — Ele sorriu de volta. — Sim — Kate respondeu, sem relutar. Nos vinte dias que passara no hospital, ela havia tido tempo para refletir longamente. A princípio a consciência de sua situação financeira a afligira. Mas, depois, Kate resolvera encarar essa dificuldade com firmeza e determinação. Afinal, não seria a primeira vez que teria de enfrentar um duro obstáculo. Era final de primavera, em Memphis. A temperatura estava particularmente agradável, naquele início de tarde. Kate experimentava uma indescritível sensação de bem-estar. Estava totalmente recuperada, tinha um filho maravilhoso e, ainda por cima, contava com pessoas incríveis como Richard e Alice MacNeal.


Kate sorriu ao lembrar-se da visita que Alice lhe fizera, no hospital, cerca de dez dias atrás. Estivera esperando por Richard e Jonathan mas, em vez disso, recebera a visita de Alice MacNeal. A simpatia entre ambas fora imediata. A conversa fluíra fácil, sincera, alegre. Kate emocionara-se ao ver Alice referindo-se a Jonathan como se ele fosse seu neto. Isso a ajudara a abrir seu coração para aquela mulher de personalidade forte, determinada e gentil, como o filho. Outra visita que a comovera fora a do motorista da caminhonete, Charles Albert Oak. O homem fizera questão de vê-la e levara-lhe uma caixa de bombons. Conversara animadamente, demonstrando a todo momento seu alívio por vê-la quase totalmente recuperada. — Nos últimos dias, estive tomando certas providências — Richard anunciou, interrompendo-lhe os pensamentos. — Sim? — Kate indagou. — Que tipo de providências? — Vendi seu carro para um ferro-velho e entrei em contato com a escola experimental onde você ia trabalhar. Tal como prevíamos, a direção já contratou outra bibliotecária. Mas a matrícula de Jonathan continua válida. Ele pode começar a frequentar as aulas até amanhã, se quiser. — Richard MacNeal, será que algum dia conseguirei agradecê-lo devidamente por tudo o que está fazendo por mim? — Ora... — Ele sorriu, um tanto embaraçado. Kate ia dizer algo, mas reparou que Richard estava entrando numa avenida que conduzia justamente à direção oposta a que ela morava. — Você errou o caminho — ela o advertiu. Já fazia vários dias que tinha dado a Richard o endereço do prédio no qual alugara o apartamento. — O edifício fica para lá — Kate apontou na direção correta. — Lembra-se? — Claro. Estive em seu apartamento outro dia, como aliás já lhe contei. Informei ao porteiro sobre o que aconteceu e disse-lhe que você voltaria, tão logo estivesse recuperada. A propósito, dei-lhe o número de meu telefone, para contato. — Ótimo. Como sempre, você não se esqueceu de nenhum detalhe. — E por falar em detalhes, depositei o dinheiro da venda de seu carro em sua conta. Você me deu o número, na semana passada. — É verdade. Bem, obrigada, mais uma vez. — Inclinando-se, ela tocou-lhe o ombro. — Você continua na direção errada. Eu moro para o outro lado... — Eu sei. — Então, por que não faz o retorno? — Porque não estamos indo para sua casa. — Não? — Kate repetiu, surpresa. — Mas eu achei que... — Vou levá-la a meu apartamento, onde você ficará melhor acomodada — ele informou, interrompendo-a. — Aliás, Jonathan e mamãe estão ansiosos por sua chegada. Parece que ela resolveu preparar uma da quelas tortas maravilhosas. E também panquecas, claro, a pedido de Jonathan. Não sei se é exatamente da panqueca que ele gosta, ou daquela frigideira que em forma de gato. Kate suspirou profundamente. Precisava tomar uma posição, perante Richard. Mas não queria ofendê-lo. Por isso declarou, cautelosa: — Agradeço sua boa vontade. Mas não acha que está na hora de eu retomar minha vida? Você já me ajudou tanto, Richard. Agora, pode deixar, que me cuidarei sozinha. — Não duvido, Kate Burnett. Mas preciso ter certeza de que você estará realmente bem. Por isso, quero mantê-la como hóspede, por alguns dias. Kate franziu a testa, com ar pensativo. — Você não está sendo excessivamente paternal, Richard MacNeal? — E você não está sendo excessivamente teimosa, Kate Burnett?


Ela não pôde deixar de sorrir: — Quem é o mais cabeça-dura de nós dois? — Você, claro — ele respondeu, sem hesitar. E ambos desataram a rir. — Você é a pessoa mais incrível que já conheci — disse Kate, após alguns instantes. — Mas acho que já não precisa se preocupar comigo. — E quem disse que me preocupo? — Richard tentava gracejar mas, no fundo, estava pensando no que faria quando Kate saísse de sua vida, definitivamente. Os dias que se seguiram foram, para Kate, uma espécie de sonho dourado. A realidade parecia perfeita demais, para ser verdadeira... E às vezes ela se perguntava até quando duraria aquele paraíso. O dia começava bem cedo, no apartamento de Richard. Ele se levantava por volta de seis e meia. A essa altura, Alice e Jonathan já estavam em pé, preparando o desjejum. Quando Kate entrava na cozinha, encontrava-os em plena atividade, tagarelando alegremente. Ajudava-os a pôr a mesa e então Richard chegava, já pronto para ir trabalhar, usando um de seus elegantes ternos de verão, os cabelos negros ainda úmidos do banho recém-tomado, a suave fragrância de loção pós-barba, o sorriso cativante estampado no rosto de traços perfeitos. — Bom dia. — Ele saudava a todos e então cumprimentava um por um. Para Alice, um beijo nos cabelos grisalhos. Para Jonathan, um abraço que o erguia do chão. E, para ela, um beijo na face. O desjejum começava, num clima alegre e agradável. Todos conversavam sobre os projetos para o dia que se iniciava e então Richard se despedia. Depois do café, Alice e Jonathan iam passear numa praça que ficava a poucos quarteirões de distância apartamento. Os dias estavam cada vez mais quentes e Jonathan já anunciava, com entusiasmo, que logo poderia frequentar a piscina do edifício. Kate ficava sozinha durante uma boa parte da manhã. E era nessas horas que refletia longamente. Não poderia estar melhor do que ali, no apartamento de Richard, onde recebia tanto afeto, consideração, respeito, enfim... Tudo o que sempre desejara. Havia momentos em que tinha a nítida sensação de que aquela era sua verdadeira e única família. E chegava a se comover até as lágrimas. Alice costumava dizer que ela era a filha que jamais tivera. Cobria-a de carinho e presentes. Aliás, fora Alice quem lhe dera as roupas com que voltara do hospital. E, ao chegar ao apartamento, Kate encontrara um guarda-roupa completo, na suíte que Alice lhe preparara. — Não sei se são do seu gosto, querida — ela dissera, abrindo o guarda-roupa de par em par. — Mas você precisará de algo para vestir, nos próximos dias. Kate agradecera, emocionada. Na verdade, nunca tivera tantas roupas, de tão boa qualidade, em sua vida. Sim, Kate pensava, certa manhã, depois que Richard, Alice e Jonathan haviam saído. Ela não tinha do que ou por que reclamar. Mas tinha de seguir seu caminho, retornar a seu mundo... E esse mundo não era composto por Richard e Alice, mas sim por ela e Jonathan. Kate temia que o filho ressentisse, por demais, o afastamento de Richard e Alice. Seria preciso levá-lo para visitá-los, com frequência, até que ele se desligasse naturalmente de ambos. Pois Jonathan os adorava. Por pura brincadeira, tinha começado a chamar Alice de vovó, alguns dias atrás. Como era de se esperar, Alice adorara a idéia. Chegara mesmo a dizer que era uma honra ter um neto tão inteligente e encantador. Kate, assim como Richard, comovia-se com a bela relação de ambos. Mas Kate receava que de repente Jonathan resolvesse conceder a mesma honra a Richard, chamando-o de papai. Só de pensar nessa possibilidade, ela estremecia. Por tudo isso, e muito mais, Kate sabia que precisava afastar-se daquele homem com a maior urgência possível. Nos últimos dias em que estivera no hospital, começara a esperar pela visita de Richard com


uma ansiedade tão intensa, que chegava a fazer-lhe mal. Ele nunca se atrasava. Mas nem por isso a aflição de Kate diminuía. Depois que Richard ia embora, ela rememorava o encontro de ambos. Cada momento, cada gesto, cada olhar tinha um significado especial. Certa noite, após a partida de Richard, Kate descobrira o quanto aquele homem estava se tornando importante, em sua vida. E não era para menos. Afinal, o que Richard fizera por ela não tinha preço. Mas Kate, apesar de ter apenas vinte e cinco anos, era uma mulher inteligente. Não gostava de enganar os outros e muito menos a si própria. Logo havia constatado que seus sentimentos por Richard MacNeal iam muito além da simples gratidão. Julgando que talvez se sentisse assim por estar carente, frágil, saindo de uma convalescença, Kate decidira esperar, antes de tirar conclusões precipitadas. Agora, ela já não tinha dúvidas. Os sintomas de sua paixão por aquele homem eram evidentes demais, para serem ignorados. Às vezes ela despertava em plena noite e ficava sonhando com o momento em que ele lhe daria um beijo, antes do desjejum. E quando, certa manhã, os lábios de Richard deslizaram para perto dos seus, Kate mal pudera conter o ímpeto de atirar-se em seus braços. Andando de um lado a outro da sala do apartamento silencioso, Kate despedia-se de cada objeto, cada móvel... Estava na hora de partir. Naquela noite, quando Richard chegou da Data Enterprises, fitou-a com surpresa e admiração. — Você está linda, sabia? De fato, Kate havia se aprontado com muito esmero, para recebê-lo. Estava usando um vestido novo, azul-cobalto, que valorizava-lhe as formas do corpo bemfeito. O decote, um tanto ousado, deixava adivinhar os seios pequenos e firmes. Depois de escovar longamente os cabelos, Kate prendeu-os num coque, sobre a nuca. Aplicou uma leve maquiagem no rosto e mirou-se com úma expressão crítica. Estava realmente bela, constatou, sorrindo para a imagem refletindo no espelho. No pescoço, Kate usava um fino cordão de ouro, muito delicado. Tanto a jóia quanto o vestido, bem como os complementos, tinham sido presentes de Alice. Depois do almoço, quando Jonathan pegara no sono diante de um programa de desenhos animados da televisão, Kate a chamara para conversar. Delicadamente, expusera a necessidade de dar seguimento a sua vida. A primeira reação de Alice fora chorar baixinho e pedir-lhe que não se fosse, que ficasse por mais algum tempo. Mas Alice, além de sentimental, era também uma mulher inteligente. E acabara compreendendo sua posição. — Richard ficará muito ressentido com sua partida, minha filha — comentara, com pesar. — Portanto, tente dar-lhe a notícia do modo mais suave possível. — Não tenha dúvidas sobre isso, Alice — Kate dissera, com veemência. Agora, ali estava ela, sentada no sofá da sala, diante do homem por quem seu coração pulsava acelerado... O homem mais maravilhoso que já conhecera. — Você vai sair? — Richard perguntou, fitando-a com tamanha intensidade, que ela chegou a enrubescer. — Vou, mas não sozinha — Kate respondeu, com uma ousadia que chegou a surpreendê-la. — Preciso de um cavalheiro gentil, para me acompanhar. E não conheço ninguém mais gentil do que Richard MacNeal. Ele sorriu, daquele modo cativante, e Kate teve de fazer um intenso esforço para não atirárse em seus braços. — Você me daria alguns minutos? — Todo o tempo do mundo, sr. MacNeal.


— Então, com licença. — Richard caminhou em direção ao corredor que conduzia a sua suíte. Porém deteve-se e voltou-se para perguntar: — Onde estão mamãe e Jonathan? — Foram à festa de aniversário de um garotinho aqui do condomínio. — Certo. — Richard afastou-se. Pouco depois, ele retornava à sala. E, dessa vez, era Kate quem perdia o fôlego. Usando calça bege, camisa branca e blazer, Richard parecia mais belo e atraente do que nunca. — Vamos? — Ele tomou-lhe o braço. Pouco depois, ambos deixavam o condomínio. Richard costumava usar o jipe, para ir trabalhar, e o Mercedes para passeios ou viagens. Agora, ele dirigia o Mercedes rumo a um bairro famoso por seus inúmeros teatros, restaurantes e casas noturnas. — Aonde você quer ir? — perguntou a Kate. — A um lugar tranquilo, onde possamos conversar. — Então, acho que você gostará do Tennessee Star. Trata-se de um dos melhores restaurantes da cidade. De fato, o Tennessee Star era um local agradável, ideal para saborear ótimos pratos e conversar com total privacidade. O restaurante funcionava no alto de uma ladeira, num antigo casarão, muito bem conservado. Havia um salão principal e outros, menores, com poucas mesas. Richard devia ser um cliente habitual, Kate deduziu, ao ver a deferência com que o maltre e os garçons o tratavam. — A mesa de sempre, sr. MacNeal? — o maltre perguntou. — Sim... — Richard respondeu, amavelmente. Voltando-se para Kate, disse: — Não sei se você aprovará. — Para mim, é perfeito — Kate opinou, ao ver a mesa isolada numa varanda, que oferecia uma bela vista da cidade. Pouco depois, ambos saboreavam um drinque, enquanto liam o cardápio. Kate bebericava um martíni e, Richard, um uísque. — Que prato você prefere? — ele perguntou. — Gosto de carne branca... Mas aceito sugestões. — Que tal filé de peixe acompanhado por frutos do mar e arroz? — Richard propôs. — Está aprovado! — Kate sorriu. — E para beber? — Você escolhe. Não entendo muito desse assunto. Só sei que o vinho branco é ideal para acompanhar peixe. — Que tal um californiano, gelado na temperatura correta? — Já disse que você é quem sabe. — Então, está decidido. — Richard fez sinal ao garçom, para que se aproximasse. A refeição foi servida logo depois. Não poderia estar mais saborosa. Kate comeu com muito apetite e Richard também. No final, enquanto tomavam licor, ele comentou: — Sou mesmo um idiota, não? — Por que diz isso? — Porque você já se recuperou há vários dias e eu nem a convidei para sair. — Após uma pausa, ele acrescentou: — Precisamos fazer isso mais vezes. Kate sorriu, enquanto o rubor lhe subia às faces. Constrangida, ela baixou os olhos. — Você não acha que é uma boa idéia? — Richard insistiu. — Sim, claro. — Kate ergueu o rosto e o fitou por um longo momento. — Se o convidei para sair, é porque tinha um motivo. — Você queria um cavalheiro gentil para acompanhá-la, lembra-se? — Richard acariciou-lhe a mão, por sobre a mesa. Kate sorriu e anunciou:


— Preciso conversar com você. — Fale, por favor — ele pediu, curioso. — Estou ouvindo. Um profundo suspiro brotou do peito de Kate: — Tenho de retomar minha vida, sabe? — Com certeza — ele concordou, sem hesitar. — Acho que você vem fazendo isso, desde que saiu do hospital, não é mesmo? Kate meneou a cabeça. — Na verdade, eu ainda nem comecei. — Como não? Você está totalmente recuperada. E lutou muito para chegar a este ponto. Kate segurou-lhe a mão e fitdu-o nos olhos. — Por favor, tente compreender: estou em seu apartamento, sendo tratada com todo o carinho e consideração, mas... — Falta-lhe alguma coisa? — Sim — Kate respondeu, com sinceridade. — O quê? — Independência, Richard. Tenho de reassumir a direção de minha vida. E, para isso, preciso... — Ir embora — ele completou. Kate confirmou com um gesto de cabeça. Penalizada, viu que os olhos azuis de Richard assumiam uma expressão de tristeza. — De certa forma, eu já estava esperando por isso — ele confessou. — Tentei me preparar para este momento, mas... Bem... Acho que não consegui. — Como assim? — Está difícil me acostumar com a idéia de perder você e Jonathan. — Mas você não está nos perdendo — Kate afirmou, com veemência. — Os laços que nos unem são indestrutíveis, Richard. Apenas, precisamos retomar nossa vida. — Eu entendo. Quando você pretende ir? — Amanhã. — Oh, não! — Passei a tarde de hoje arrumando minhas coisas e as de Jonathan. — Mas você não pode sair assim... Mamãe ficará muito abalada. — Já conversei com ela, hoje, por volta da hora do almoço. — E como mamãe reagiu? — Ela compreendeu. — Kate esforçou-se para sorrir. — Eu a fiz prometer que não deixará de nos visitar. Alice me deu sua palavra e exigiu que eu fizesse o mesmo. — E quanto a Jonathan? Você já conversou com ele? — Ainda não. Prefiro não criar muita expectativa. Falarei com ele amanhã cedo, do modo mais simples possível. Já será muito difícil, para ele, separar-se de você e de Alice. E não quero que a situação pareça mais dramática do que já é. Richard assentiu, em silêncio. Kate baixou os olhos. De repente, a noite deixava de ser alegre para tornar-se tensa, triste e sombria. Richard pediu a conta e, pouco depois, ambos saíam do restaurante. A noite estava fresca e agradável. O verão já havia começado. Richard e Kate quase não conversaram, durante o trajeto de volta. Estavam quase chegando, quando ela indagou: — Posso lhe pedir uma coisa? — Tudo o que você quiser, Kate Burnett. — Por duas vezes, você me disse que se sentia responsável pelo acidente que sofri. Por duas vezes, eu lhe perguntei por quê. Você então respondeu que algum dia me contaria. Que tal hoje? Richard havia acabado de entrar na rua do condomínio onde morava. Passou direto pela garagem e seguiu adiante.


— Se você quer mesmo saber, terá de me acompanhar num último licor. Há um barzinho, aqui perto, bastante agradável. Kate concordou e, logo depois, ambos chegaram ao local. Escolheram uma mesa na calçada e fizeram o pedido. Brindaram à beleza da noite estrelada e, por alguns instantes, saborearam a bebida em silêncio. — E então? — Kate perguntou, num tom suave. — O que o faz pensar que foi culpado pelo que me aconteceu? — Antes que Richard respondesse, ela fez questão de esclarecer: — Estou retomando este assunto, não apenas por curiosidade, mas sobretudo por não achar justo que você carregue esse remorso. Afinal, você tem sido tão generoso comigo, Richard... Ele fitou-a com uma expressão amargurada. E então começou a falar. Kate poderia imaginar tudo, menos que Richard tivesse perdido a esposa e o bebê que estava por nascer, num acidente de automóvel. — A tragédia aconteceu numa estrada, próxima à divisa com o Estado de Arkansas. — A voz de Richard soava entrecortada pelo sofrimento. — Quando vi uma caminhonete vindo para cima de nós, tentei desviar. Mas, em vez disso, bati em cheio em um poste. Saí praticamente ileso, mas Stacy, que estava a meu lado, foi a mais atingida pelo golpe. Ela ficou em estado de coma por alguns dias e depois faleceu. Os médicos tentaram salvar o bebê, mas também não conseguiram. — Oh, Richard... — Kate murmurou, com os olhos cheios de lágrimas. — Agora compreendo sua aflição. Você tinha medo de que a tragédia se repetisse. Ele assentiu com um gesto de cabeça. O silêncio caiu entre ambos. Kate estava penalizada. Nunca imaginara que aquele homem trouxesse, no peito, tamanho sofrimento. — Escute, você precisa entender uma coisa... — ela disse, por fim. — O quê, minha doce Kate? — ele indagou, com uma expressão de infinita tristeza nos olhos azuis. — A culpa não foi sua, em nenhum dos acidentes. Tire esse peso do ombro, de uma vez por todas. Caso contrário, jamais conseguirá viver em paz. — Oh, já estou acostumado a isso — ele confessou, com um sorriso amargo. — Mas não deveria — Kate retrucou. — Você merece ser feliz, Richard. — Num impulso, Kate levantou-se da cadeira. Contornando a mesa, abraçou Richard com força. Surpreso, ele também se ergueu. Assim, ambos ficaram abraçados, por um longo momento, esquecidos do que se passava ao redor. Os poucos clientes que estavam no bar repararam no belo casal. Alguns entreolharam-se, trocando um sorriso. Porém nem Kate, nem Richard, se davam conta disso. Estavam unidos, tomados por uma forte emoção. Do abraço ao beijo, foi apenas um passo. E Kate descobriu que, de certa forma, estivera esperando por aquele beijo a noite inteira... Talvez a vida inteira. EPÍLOGO Puxa, mamãe, você está tão chata — Jonathan protestou, com uma expressão muito séria no rostinho angelical. — Vá para o seu quarto e não discuta, está bem? — Kate ordenou, estranhando a rispidez da própria voz. Nunca se dirigia assim, ao filho. E, agora, tinha lhe dado uma bronca a troco de nada. O fato era que estava tensa, irritadiça, fazendo tempestades em copo de água. Tinha deixado o apartamento de Richard uma semana atrás. Comprara uns poucos móveis, apenas o estritamente necessário para começar a se organizar. Mas faltavam muitas coisas, para que o apartamento ficasse realmente agradável. Jonathan estranhara muito aquela mudança.


E ela não estava menos abalada. Mas era preciso retomar sua rotina, Kate se lembrava, a todo momento. Não fazia sentido ficar indefinidamente desfrutando um estilo de vida que, afinal, não era o seu. O problema era que Jonathan não podia compreender essa verdade tão simples. Felizmente, Alice dera-lhe uma tevê portátil, como presente de despedida. Assim, Jonathan podia ao menos assistir a seus desenhos preferidos. O garotinho ligava todos os dias para Richard e Alice. Kate pedia-lhe que mandasse abraços e beijos para ambos. Às vezes falava com Alice, mas evitava o contato com Richard. Estava irremediavelmente apaixonada por aquele homem. E sabia que Richard de algum modo se sentia atraído por ela. Mas não julgava possível que ele um dia chegasse a amá-la. Afinal, Richard era um homem rico, belo, atraente, brilhante... Certamente poderia ter quantas mulheres quisesse. Por que se interessaria por ela? A campainha soou, interrompendo-lhe os pensamentos. Kate suspirou, aborrecida. Fosse quem fosse que estivesse tocando, ela não se sentia com a menor disposição para receber visitas. — Que pessoa mais insistente — Kate reclamou, quando a campainha soou pela terceira vez. — Mamãe? — Jonathan retornava do quarto. — Você não ouviu... — Já estou indo — Kate o interrompeu, a caminho da porta. Parou por um instante diante de um espelho de parede, para ajeitar os cabelos, que caíam-lhe abaixo dos ombros. — Ih, você continua chata — Jonathan sentenciou, muito sério, voltando sobre os próprios passos. Kate abriu a porta, pronta para dispensar o intruso o mais rápido que pudesse. Mas era Richard quem estava a sua frente, com uma expressão ansiosa nos olhos azuis. — Ah, que bom encontrá-la em casa! Posso entrar? Kate voltou a cabeça e contemplou a sala do apartamento. Havia apenas um jogo de sofá, próximo à janela. A um canto, uma pilha de caixas de papelão... O telefone estava sobre um caixote, já que ela ainda não havia comprado uma mesinha adequada. Richard repetiu a pergunta, num tom que denunciava um forte nervosismo. E só então ela respondeu: — Se você não reparar na bagunça... fique à vontade. Afastando-se Kate deu-lhe passagem. Richard entrou e começou a andar de um lado a outro. Kate não pôde deixar de notar o quanto ele estava belo, usando calça caqui e camisa branca, de mangas arregaçadas. Pelos botões entreabertos da camisa, ela podia ver-lhe a penugem morena do peito. De súbito, Kate deu-se conta de seu próprio estado. Olhando para si, contemplou com tristeza o vestido de malha rosa-pálido, solto e curto, que já não servia para sair... Apenas para ficar em casa. — Você está linda — disse Richard. — Ora, não brinque — Kate protestou, enrubescendo. — Estou horrível, isso sim. — Você sempre diz isso, quando eu a elogio. — Aproximando-se, Richard ergueu-lhe o queixo. — Por que age assim, Kate? Não tem idéia do quanto é bonita e atraente? Essas palavras a pegaram de surpresa. E Kate sentiu o coração disparar. — Você não deve ter vindo até aqui só para me falar essas mentiras. — Ela tentava gracejar, para disfarçar a tensão. Richard sorriu, tornando a tarde de verão ainda mais luminosa. Depois, num tom excessivamente severo, declarou: — Na verdade, vim até aqui porque fui escorraçado da empresa e de minha própria casa. — Como? — Kate espantou-se. — Meu amigo Chester, que trabalha comigo há muito anos, disse que nunca me achou tão insuportável, nem tão neurótico. Kate arregalou os olhos verdes. — Mas por que ele disse isso?


— Vá se saber. E, o que é pior, minha própria mãe concorda com ele. — Sua... mãe? — Kate repetiu, perplexa. — Isso mesmo. Kate percebeu um sorriso maroto se insinuando nos lábios daquele homem. Desconfiada, indagou: — Você está falando sério... Ou não? Richard fitou-a com intensidade. Então tomou-lhe ambas as mãos entre as suas. Parecia embaraçado e temeroso. — O que há? — Kate perguntou. — Não estou entendendo você, Richard. — O fato é que estou com medo. — Do quê? — Do que preciso lhe dizer. Kate continuava confusa. — Fale de uma vez, Richard. Se tem algo a reclamar, ou... — Tenho algo a pedir — ele a interrompeu. Kate sorriu: — Ora, peça-me o que quiser. Você sabe que nunca lhe negarei nada. Ele suspirou profundamente. — Estou tentando brincar, por que não sei como dizer... — Fale, simplesmente — Kate o encorajou. — Eu te amo. — O quê? — Eu te amo, Kate Burnett. Tenho estado intratável, desde o dia em que você deixou meu apartamento, levando minha alegria, meu motivo para viver. — Richard! — ela exclamou, com a voz carregada de emoção. — Você realmente... me ama? — Sim, Kate. Achei que, depois de Stacy, eu jamais me ligaria a outra pessoa. Mas então aconteceu um milagre. Você surgiu em minha vida e provou-me que ainda é possível lutar pela felicidade. Kate quis dizer algo, mas tudo o que conseguiu foi atirar-se nos braços de Richard. Um longo beijo selou aquele momento. E quando os lábios por fim se afastaram, Kate declarou: — Eu também te amo, Richard MacNeal, como jamais amei ninguém. Apenas, não achava possível que meus sentimentos fossem correspondidos. — Como não? — ele indagou, baixinho. — O beijo que trocamos, naquela noite, não lhe mostrou o quanto eu a quero? — Achei que você se sentia atraído por mim. Mas nunca imaginei que pudesse me amar. Afinal, você é tão belo, inteligente, brilhante... — E você é a mulher mais fantástica do mundo, Kate Burnett. Você me trouxe de volta à vida. — Não, senhor. Foi você quem me trouxe, lembra-se? — Amigo! — A voz do pequeno Jonathan soava cheia de alegria. No momento seguinte, o garotinho saltava para o colo de Richard. Kate contemplou a cena, com os olhos rasos de lágrimas da mais pura alegria. No final daquela tarde, Alice recebeu um telefonema do pequeno Jonathan. — Alice, é você? — Sim, querido. — Liguei para pedir um favor. — Fale, meu anjo. — Você pode vir me buscar? — Agora? — Sim. — E o garotinho explicou. — Richard está aqui e mamãe também. Os dois


ficam se olhando com cara de bobos e depois se beijam, que nem aqueles namorados dos filmes, sabe? Esse negócio já está me cansando. Chamei Richard para jogar, mas ele não quis. Mamãe também não... — Já entendi, querido — Alice apartou. — Estou indo para aí. — Puxa, que bom! Ao sair do apartamento, Alice levava na bolsa um bilhete que tinha acabado de escrever: Queridos Richard e Kate, Estou levando Jonathan para passar a noite comigo. Aproveito para dizer que estou feliz por vê-los finalmente vivendo a paixão que habita seus corações. Vocês demoraram, hein, crianças? Um beijo da mamãe Alice. MARTHA SHIELDS cresceu contando estórias para a irmã, como passatempo durante as longas viagens até a casa de seus avós. E como ela sabia dar vida aos personagens, e não conseguia deixar de sonhar com eles, resolveu contar suas estórias para uma audiência maior... Martha mora em Memphis, no Estado do Tennessee. É formada em Jornalismo e trabalha numa universidade local, também como desenhista gráfica.


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