Penny jordan segredos que ferem

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SEGREDOS QUE FEREM... Título original: To love, honor and betray PENNY JORDAN Dig e Rev Joyce Resumo Cláudia e Garth eram o casal perfeito. Estavam apaixonados, viviam um para o outro, porém queriam algo mais... um filho. Mas Cláudia perdeu o bebê que fora concebido com muito amor e a possibilidade de vir a ser mãe no futuro. Então aconteceu um milagre em suas vidas, e a criança que tanto desejavam podia ser deles. Finalmente eram uma família de verdade. Mas Cláudia e Garth guardavam segredos... um do outro e da filha. A necessidade de mentir abalava a felicidade da família perfeita. E quando Cláudia descobriu que Garth a traíra, toda a estrutura familiar desmoronou. Garth realmente a traíra? Ele jurava que não, mas a prova estava muito evidente nos traços da filha. De qualquer forma, ele mentira e enganara. Mas Cláudia também mentira...

CAPÍTULO I Tara jogou-se na cama, estendendo as pernas, longas como as de uma modelo, à espera de que a mãe terminasse de se maquiar. Afastando do rosto os cabelos fartos e cacheados, começou a ler o jornal da cidade, que comprara a caminho de casa. ― "A cidade homenageia a grande executiva local" ― leu ela em voz alta e teatral. ― "No último sábado foi realizado um jantar de gala, no salão dos Cavaleiros Templários, construído no século doze, para celebrar uma década de existência do Fundo de Ajuda Social de Upper Charfont, destinado a angariar recursos para atividades filantrópicas, e para homenagear sua fundadora e, mais recentemente sua presidente, a sra. Cláudia Wallace." Que ótimo, mamãe!

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A voz de Tara era rouca e sensual, com o ritmo e as ênfases incrivelmente semelhantes às de Cláudia. Quando ela estava em casa, as pessoas que ligavam nunca sabiam qual das duas estava ao telefone. ― "Na última década, a sra. Wallace trabalhou, incansavelmente e com muito sucesso, para promover as atividades do Fundo, que, graças a ela, viu as doações crescerem de maneira espetacular. Além de angariar tantos recursos, Cláudia Wallace ofereceu seu tempo e sua perícia como assistente social do Estado. Ela também é sócia-fundadora de uma entidade privada de aconselhamento e de treinamento, mas, quando necessário, arregaça as mangas e se dedica pessoalmente à filantropia. O conselho da cidade decidiu reconhecer sua dedicação à comunidade dando seu nome ao novo espaço de recreação para deficientes físicos." Tara empurrou o jornal para longe dela e acomodou-se melhor para analisar a mãe, que via refletida no espelho da penteadeira antiga. ― Você decididamente não parece ter quarenta e cinco anos, mamãe! Nunca pensou em se casar de novo? -― Tara nem cogitava em disfarçar a intensa curiosidade. ―: Afinal, você e papai já estão divorciados há dez anos e... Com gestos cuidadosos e deliberados para demonstrar que o assunto não a perturbava, Cláudia parou de passar o rímel. Tara estava com vinte e três anos e, aos olhos do mundo, talvez fosse considerada uma mulher adulta, mas seu instinto materno ainda a via como a sua adorada criança, a dádiva mais preciosa que já recebera da vida. Como todas as mães, sentia uma incontrolável necessidade de protegê-la de tudo e de todos. ― Não é o caso de falta de pretendentes, certo? Só eu conheço pelo menos uma dezena de homens que fariam de tudo para se casar com você, se recebessem um mínimo de encorajamento. ― Não acha que está exagerando demais, Tara? ― A voz de Cláudia era de uma ironia quase agressiva. ― Quer que eu enumere? Há Charles Weatherall e Paul Avery e John Fellows... e logicamente Luke! ― Luke é um cliente de minha empresa, nada mais do que isso. Cláudia parecia muito calmar mas virou o rosto ligeiramente para evitar que sua expressão revelasse alguma emoção ainda não reconhecida por si própria. Afinal, não havia nenhum motivo para sentir o coração disparar ao ouvir o nome de Luke. Para começo de conversa, ele era sete anos mais novo do que ela! ― Hum! Então, quer dizer que não pensa mesmo em se casar de novo? Cansada de ver a filha pelo espelho, Cláudia virou-se de frente para ela. Era evidente que Tara estava bastante tensa, apesar das tentativas de parecer despreocupada com aquele assunto. ― Não mesmo, filha ― admitiu Cláudia, calando-se à espera do motivo que levara Tara a tocar naquele assunto. ― Entendo. E... você tem visto papai? Cláudia sentiu o estômago se contrair e, dessa vez, virou o rosto bruscamente para esconder o quanto a pergunta casual de Tara despertava uma tensão incómoda. Inclinando a cabeça, fez com que os cabelos muito loiros formassem uma cortina, escondendo-a do olhar perspicaz da filha.

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― Não, não o vejo há algum tempo. E por que motivo eu deveria ter visto seu pai? ― Nenhum, nenhum ― afirmou Tara, preocupada com a súbita agressividade da mãe. ― É que ele... bem, papai tem visto bastante uma tal de Rachel Bedlington. Ela é a nova gerente de contas da empresa e começou a trabalhar lá depois do Natal, sabe? Sua especialidade é criar anúncios tendo por alvo um público especificamente feminino... como o da executiva linda e de muito sucesso que entra em um carro do último modelo, enquanto o namorado fica olhando para os dois de boca aberta. Conhece o tipo, não? ― Sem dúvida, conheço muito bem. Cláudia não se referia apenas ao tipo de propaganda que a filha mencionara. Quase conseguia visualizar a nova gerente de contas de Garth. Rachel devia ser bonita, elegante e inteligente, além de fascinada pelo patrão! Que mulher, de qualquer idade e em qualquer posição, não se sentiria muito atraída por seu Garth? Por ser justa, acima de tudo, era obrigada a admitir que ele, aos cinquenta anos, continuava atlético e atraente demais. Na verdade, talvez tivesse ficado ainda mais sedutor na maturidade do que fora quando jovem. ― Não acho que seja nada sério ― apressou-se a dizer Tara. A aparente descontração da filha não convenceu Cláudia. Era evidente que Tara não acreditava em suas próprias palavras e julgava que o pai estivesse na iminência de se envolver seriamente com aquela mulher. ― E seria normal se fosse sério, querida ― declarou Cláudia, com um sorriso calmo. ― Seu pai é livre para ter qualquer tipo de relacionamento amoroso. Afinal, como você mesma disse, nós dois estamos divorciados há dez anos. ― É... eu sei. De novo encarando a filha, Cláudia viu a expressão de Tara e admitiu que as duas não se pareciam fisicamente. Era quase difícil de acreditar que fossem mãe e filha. Em primeiro lugar, Tara era dez centímetros mais alta do que ela, mas isso parecia ser a regra e não a exceção. Todas as filhas de suas amigas eram bem mais altas do que as mães. Além disso, Cláudia tinha a pele muito clara e os cabelos loiros, que a tornavam um exemplo típico da celebrada "rosa inglesa". Tara parecia sempre dourada pelo sol e com cabelos negros e cacheados, como os do pai. Aliás, os olhos também eram idênticos aos de Garth, grandes, amendoados e de um verde intenso. ― Papai disse que você vai ser indicada para o prémio de "Executiva do Ano" ― declarou Tara, abruptamente. Cláudia não conseguiu disfarçar a surpresa. Como Garth teria sabido, se ela mesma só fora informada a esse respeito fazia apenas poucos dias? ― Ele tem muito orgulho de você, mamãe. Aliás, nós dois nos sentimos orgulhosos. ― Tara sorriu, satisfeita. ― Todos a consideram uma mulher maravilhosa, e é a pura verdade! ― Se não me falha a memória... a última vez que você me elogiou assim foi logo depois de ter queimado comple-tamente a minha melhor panela de cobre ― comentou Cláudia, um tanto seca.

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― Eu lembro! Decidi fazer ovos cozidos e depois me esqueci por completo do assunto ― disse a garota, caindo na gargalhada. Então, como se o riso jamais tivesse acontecido, Tara fitou a mãe com uma expressão de intensa seriedade. ― Ryland vai voltar para Boston no final do mês ― disse ela, quase murmurando. ― Pediu-me para ir com ele. ― Para passar as férias? Embora conseguisse manter a voz calma, Cláudia não tinha dúvidas quanto à resposta de sua pergunta, adivinhara a verdade em cada uma das sucessivas ondas de pânico que a haviam envolvido ao ouvir as palavras da filha. ― Não... bem, no começo, talvez. Ry... Ryland Johnson era o namorado americano de Tara. Era sete anos mais velho, e ela o levara para conhecer a mãe naquele Natal. Cláudia simpatizara à primeira vista com o rapaz e percebera que ambos estavam profundamente apaixonados. ― Ele veio para a Inglaterra com a intenção de passar apenas um ano. Agora quer que eu conheça sua família e seus amigos. Ry quer... Tara enrubesceu, nitidamente desconfortável. ― Sei o que está pensando, mamãe. ― Ela sorriu para Cláudia e a fitou como se lhe pedisse um grande favor. ― Por favor, não fique triste! Os Estados Unidos não ficam do outro lado do mundo... pelo menos não hoje em dia. Eu o amo tanto! Incapaz de conter as lágrimas, Tara se jogou nos braços da mãe, como se ainda fosse uma criança. ― Sei como você deve estar se sentindo, e eu gostaria tanto de ter me apaixonado por um rapaz inglês, pois assim poderíamos morar bem perto uma da outra e... ah! vou morrer de saudade de você! Cláudia fechou os olhos, não para conter as lágrimas, mas para controlar a intensa sensação de desastre iminente. ― Você... já falou com seu pai? ― perguntou ela, com a voz distorcida pela emoção. ― Não. Eu queria falar primeiro com você. Papai acha que eu estou indo passar umas férias em Boston. Aliás, é o que eu estou declarando, porque fica mais fácil obter um visto provisório. Não sei o que me apavora mais... ser vetada pelo governo americano ou não receber a aprovação da tia de Ryland. Na verdade, acho que a tal tia Martha será muito mais exigente e severa comigo. Aparentemente, ela é milionária, pertence a uma das famílias mais tradicionais da Nova Inglaterra e, segundo Ry, é um apavorante exemplo de esnobismo e orgulho de raízes familiares antigas. Tara começou a rir, enquanto se soltava dos braços da mãe. ― Para falar a verdade, não tenho a menor vontade de ser apresentada a essa tia assustadora. De acordo com Ry, ela vai querer saber dos menores detalhes da minha vida e de meus antepassados. Não que eu tenha algo a temer. A sua família e a de papai também são muito antigas, não é? ― Tara assustou-se com a transformação das feições da mãe. ― O que houve, mamãe? Por favor, não fique assim! Cláudia empalidecera de repente, e os ossos de seu rosto delicado e em forma de coração se tornaram tão salientes que Tara teve a impressão de estar vendo

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a mãe com vinte anos a mais. Os olhos azuis, sempre tão cheios de calor humano, refletiam um desespero tão intenso que a filha precisou lutar para manter as emoções sob controle. ― Sei como você deve estar se sentindo, mamãe ― repetiu ela, com voz embargada ―, mas sempre existem as visitas, as férias... e talvez Ryland mude de ideia ao me ver em seu ambiente e desista de se casar comigo! Apesar do tom zombeteiro da filha, Cláudia sabia que essa possibilidade a apavorava, pois sofreria demais se não se casasse com Ryland. ― Você já... tirou o visto? ― perguntou Cláudia, tentando se recuperar do desastre que Tara, sem o saber, desencadeara. ― Já pedi, mas ainda não fui chamada. Mas não há motivos para preocupação, porque é bem fácil conseguir um visto temporário, de visitante. A situação se tornará mais difícil quando eu e Ryland formos nos casar, pois talvez surjam algumas dificuldades. Ele está sempre me dizendo que, se eu passar pela inspeção de meus antecedentes pela tal tia, não terei problema algum com o governo americano, e todos sabem como o departamento de imigração dos Estados Unidos é meticuloso e como investigam a fundo as origens da pessoa que se candidata a um green card. Cláudia não conseguiu conter um gemido e, apavorada com a perda de controle, cobriu a boca com as mãos. ― Mamãe! ― exclamou Tara, angustiada. ― O que está acontecendo com você? ― Não é nada ― mentiu Cláudia. ― Devo ter comido algo que não me fez bem e estou bastante enjoada. ― Se está se sentindo mal, é melhor não sair hoje à noite, certo? A atitude maternal da filha teria provocado o riso de Cláudia... em qualquer outra ocasião. O temperamento, as reações emocionais e a maneira de agir de Tara eram absolutamente idênticas às suas, enquanto a facilidade e a rapidez de assimilação e a inteligência inquisitiva eram uma herança paterna. ― Eu preciso sair hoje. Prometi dar uma palestra na associação de empresárias e não posso deixá-las na mão. ― Poderia, mas não o fará ― corrigiu a filha, amorosamente. ― Sinto muito se a choquei ao contar tudo sem rodeios, mas... Ry pediu-me para ir com ele para Boston mais de três semanas atrás, sabe? Não pude vir vê-la, e queria conversar com você frente a frente. Eu o amo demais, mamãe. É tudo que sempre quis e... também gosta dele, não é? ― Claro que gosto ― declarou Cláudia com sinceridade. Infelizmente, não era esse o problema. Tara lhe dissera que sabia o que ela devia estar sentindo, ao lhe anunciar os planos de casamento, mas era impossível sequer adivinhar. Ninguém poderia saber! Talvez ela devesse ter se preparado para esse momento. Afinal, devia ter pressentido a verdade ao ver como a filha e Ryland estavam apaixonados, durante a visita que haviam feito no Natal. Entretanto, concluíra, porque queria e necessitava acreditar, que o rapaz decidira viver na Inglaterra. Mas o que poderia fazer se tivesse sabido antes a verdade? Como seria possível evitar a catástrofe que se delineava em suas vidas?

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De fato, não existia nada no mundo que pudesse evitar o desastre iminente. Podia rezar, implorar a Deus, ao destino ou a qualquer que fosse a entidade com o poder de reger a vida dos seres humanos... podia pedir ajuda apenas! ― Eu vim especialmente para lhe contar ― murmurou Tara. ― Gostaria de poder ficar alguns dias com você, mas não será possível, mamãe. Tenho um encontro com um cliente importante, amanhã bem cedo, e também preciso avisar papai que não estou indo para Boston apenas por algumas semanas. Ansiosa, Tara voltou a abraçar a mãe, com um carinho imenso. ― Por favor... diga que se sente feliz por mim, mamãe. ― Eu estou feliz por você, querida ― repetiu Cláudia, de modo mecânico, enquanto pedia a Deus para que pudesse realmente sentir alguma alegria pela filha em vez de... ― Acho melhor deixar você se preparar para seu compromisso desta noite ― brincou Tara, voltando a abraçar a mãe. ― Prometo que eu e Ry viremos passar um fim de semana antes de viajarmos, e, tão logo estejamos instalados em Boston, queremos que vá nos visitar, sabe? Morro de vontade de apresentá-la à família dele, para que todos vejam a mãe maravilhosa que eu tenho! Você é mesmo especial, mamãe... mal posso agradecer a sorte de ter você e papai como pais! O tema da palestra de Cláudia, naquela noite, fora escolhido ao perceber que muitas de suas amigas íntimas tinham que se readaptar à vida cotidiana depois da saída dos filhos. Todas elas sentiam-se, em muitos aspectos, sem utilidade e sem objetivo por não terem mais as "crianças" em casa! ― O problema é o que fazer com tanto tempo livre ― dissera uma das amigas, lamentosa. ― Nunca pensei que fosse ser do tipo de mãe que espera ansiosa por netos só para se tornar avó, mas... ― Não ficamos velhas como nossas mães ou nossas avós ― comentara outra. ― Elas se sentiam anciãs quando tinham nossa idade e agiam como se fossem mesmo idosas. Hoje em dia, a expectativa de vida é muito maior, e ter cinquenta anos significa ser quase jovem... o problema é o que fazer com os anos que nos sobram e a necessidade de preencher nossas vidas. Trata-se de uma atitude realmente absurda, depois de passarmos a juventude esperando pelo dia em que não teríamos de fazer nada! Agora, após o impacto da declaração de Tara, Cláudia simplesmente não tinha condições de seguir seu plano original, pois temia se descontrolar e revelar suas emoções mais íntimas. Ela mudou o tema da palestra, abordando as experiências de mulheres que tinham filhos mais tarde, em função de suas carreiras. Após a palestra, todas as mulheres queriam cumprimentá-la, conversar sobre o artigo publicado pelo jornal local e que Tara lera para ela. A simples menção ao fato trazia de volta a imagem da filha deitada em sua cama e provocava uma angústia que lhe era difícil suportar. Ela sentiu um alívio imenso ao encaminhar-se para a porta e por saber que logo iria ficar a sós com seus problemas. Na verdade, sentia-se bem feliz por Tara ter ido embora, deixando-a completamente sozinha. Só assim poderia baixar a guarda e deixar a*s emoções aflorar. Ficara transtornada diante da intensidade da sensação de desastre iminente que a envolvera ao ouvir a revelação da filha. Por que não se preparara para

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uma situação como aquela? Por que se tornara complacente, acomodada e... vulnerável? ― Cláudia! Ela parou, forçando-se a sorrir para uma de suas amigas mais íntimas e que vinha em sua direção. ― Eu vi Tara chegando à cidade. Você não sabe a sua sorte em ter um relacionamento tão íntimo com ela ― declarou a amiga, sem disfarçar a inveja. ― Não que você não o mereça, é claro! As duas têm muita sorte. Meus filhos estão tão difíceis que... se você não fosse tão formidável, acho que a odiaria! A sua vida deu certo em todos os aspectos. ― Nem todos ― declarou Cláudia, rindo ao ver a surpresa da amiga. ― Afinal, eu e Garth não estamos mais casados, Chris. ― Eu sei que vocês estão divorciados, mas até seu divórcio foi um modelo de perfeição. Nenhum dos dois fez qualquer comentário maldoso sobre o outro. Apesar do trauma da separação, ambos estavam determinados a fazer todo o possível para que Tara não sofresse. Foi tudo tão... sereno! Você ficou na casa e Garth se mudou para um sobrado antigo do outro lado da cidade. Cláudia não sabia o que fazer para impedir que a amiga continuasse elogiando-a sem motivo. Queria ir para casa, mas Chris não parecia inclinada a se calar. ― Ainda antes do divórcio, enquanto o resto de nós vivia se queixando da dificuldade de criar os filhos e fazer uma carreira, você e Garth se mudaram de Londres para cá. Você deixou seu cargo de assistente social para se dedicar exclusivamente a Tara. Então, depois de se divorciar, abriu seu próprio negócio, trabalhando em casa até ter clientes suficientes para instalar seu escritório. Sei o quanto trabalha, como seu dia é longo e, no entanto, sempre encontra tempo para os amigos e para suas obras de caridade. Nenhum dos dois perdeu sequer um evento escolar da vida de Tara. Além disso, é uma cozinheira excelente... ― Sou apenas regular, Chris ― interrompeu Cláudia, secamente. Mas Chris ignorou o aparte da amiga, insistindo no mesmo ponto. ― Você cozinha muitíssimo bem e ainda consegue estar sempre bonita, bem arrumada e sensual... como meu "querido" marido nunca se esquece de me apontar! Duvido que exista alguma de nossas conhecidas cujo marido não a tenha comparado a você... e a julgado insatisfatória em algum aspecto! ― Eu espero de verdade que isso nunca tenha acontecido ― exclamou Cláudia, aborrecida. ― Pois aconteceu! Mas a minha maior inveja é por você ser uma pessoa tão simpática e cheia de qualidades. É gentil, afetuosa e honesta, consigo mesma e em tudo o que faz. Chris se calou ao ver que os olhos da amiga se enchiam de lágrimas. ― O que houve, Cláudia? Eu não queira embaraçá-la nem... ― Está tudo bem ― afirmou Cláudia, rapidamente. ― Deve ser o cansaço, sabe? Tenho ido dormir muito tarde e preciso recuperar o sono perdido. ― Desculpe-me por tê-la prendido tanto tempo, querida. Acho melhor ir logo embora ― disse Chris, percebendo a insinuação velada. ― Vamos nos ver na próxima quinta-feira, certo? É a semana de nosso almoço mensal. ― Não deixarei de ir...

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Ainda estava claro quando Cláudia saiu da estrada secundária e cruzou o arco de pedra, incrustado no velho muro de tijolos vermelhos que cercava sua propriedade. Ela e Garth tinham visto Ivy House, a Casa de Hera, em um dia de inverno, quando o gramado estava coberto de neve, as árvores despidas de folhas e a hera que cobria as paredes parecia um desenho branco sobre a pedra cor de mel. A casa fora construída no século dezoito, para a mãe do proprietário, que era então lorde Vernon Cupshaw. Toda a propriedade ficara abandonada durante a guerra, quando morreram os três filhos de'sir Vernon e os herdeiros dividiram o património e o venderam. Cláudia e Garth haviam comprado a casa e ficaram sabendo de toda a história da família Cupshaw por uma tia solteirona. Ela ainda se lembrava da velha e gentil senhora, que sorrira ao ver a pequenina Tara em seu colo, embrulhada em xales espessos. ― Esta casa precisa de amor ― dissera a velha solteirona, sorrindo ―, e posso ver que você tem muito para dar. Também precisa de crianças... como a minha família sempre precisou e não teve. Naquela época, Cláudia também não se sentira com forças para revelar a verdade. Já sabia que Tara seria filha única. Ano após ano, Cláudia e Garth haviam trabalhado, com amor e afinco, para transformar a velha casa em um lar confortável e digno de figurar em uma revista. Ao decidir se divorciar, uma das partes mais penosas fora se preparar para perder Ivy House, mas Garth insistira que ela ficasse na casa. ― Afinal, é o lar de Tara ― dissera ele, quando Cláudia recusara a oferta, com violência, afirmando que não queria nem precisava de caridade. Na verdade, fora mais adiante, dizendo que não queria absolutamente nada dele. Entretanto, ambos sabiam que não era verdade, e Garth fora delicado o suficiente para não obrigá-la a encarar a realidade. A descoberta de que o homem a quem ela amara, confiara e se entregara sem reservas, de corpo e alma, a havia traído fora quase impossível de suportar. A confirmação de que ele dormira com outra mulher, a tocara e a possuíra, partilhando uma intimidade que Cláudia acreditara ser apenas sua, por pouco não a destruíra como pessoa e certamente acabara com o casamento. Entretanto, Chris não errara em um aspecto. Ela e Garth haviam feito um pacto. Iriam se lembrar sempre de que, não importa quais fossem suas desavenças ou suas mágoas, não permitiriam que a morte do amor entre eles chegasse a tocar Tara, a filha muito amada e ainda mais adorada por ser a única. Sabia que nunca teria filhos, pois o médico havia lhe avisado depois... ― Você tem sorte! Cláudia lembrou-se dessas palavras, reiteradas por Chris, ao descer do carro em frente à sua casa. A hera continuava a cobrir as paredes de pedra, e as folhas tinham um brilho único. Ela sorriu, orgulhosa de seus cuidados durante tantos anos, enquanto destrancava a porta. Upper Charfont era uma pequena aldeia inglesa do tipo que aparece em calendários ou guias turísticos e, até muito pouco tempo atrás, as pessoas jamais trancavam as portas a chave, e todos os vizinhos sabiam de tudo da vida dos outros. No início, Cláudia sentira-se bastante receosa de se mudar para um lugar assim, mas Garth a convencera a arriscar, pois um ambiente

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rural seria ótimo para a criação de Tara. Além disso, estariam a menos de uma hora do vilarejo para onde os pais dela tinham se estabelecido após a aposentadoria. O pai de Cláudia, brigadeiro Peter Fulshaw, era militar e Garth fora um de seus ajudantes de ordens. A sua infância havia sido bastante errante, mudando-se de uma base naval para outra, e, por esse motivo, ela ansiava por dar à filha a vida estável que sempre desejara e não pudera ter, com amizades que se desenvolviam com o tempo, sem serem interrompidas a cada dois anos. Garth também concordara com ela. Aliás, havia concordado com muitos outros pontos, e os dois haviam chegado a partilhar quase todos os pensamentos. Mas mesmo quando isso acontecera, ele não... Cláudia tentou afastar essas lembranças incómodas, enquanto entrava em casa e trancava a porta. Entretanto, naquela noite, ela não teve sucesso em sua tentativa de sufocar as recordações. Onde quer que pousasse seu olhar, via a presença de Garth e da vida que haviam partilhado. As arandelas de cobre do vestíbulo, que acabara de acender, tinham sido compradas em um pequeno antiquário, em Brighton, trazidas triunfalmente para casa, para ser adaptadas e depois instaladas por ele... Mais ou menos nessa época, Garth se afastara do exército e passou a trabalhar em um escritório de relações públicas, de propriedade de amigos de seu pai. Depois abriu sua própria empresa. Os pais de Garth, como os dela, ainda eram vivos e viviam nos arredores de York, o condado que o pai dele representara no Parlamento, antes de se aposentar. Cláudia os visitava regularmente e era adorada pelo velho casal. Assim como os seus pais, eles adoravam Tara e a mimavam de uma maneira absurda. Afinal, era a neta única de ambos os lados, pois ela e Garth não tinham irmãos nem irmãs. ― É uma pena que não possamos ter outras crianças, querida. ― A mãe ainda a tentara consolar quando lhe comunicara que não teria mais filhos. ― Mas, às vezes... nunca se sabe, não é? ― Tenho certeza absoluta, mamãe ― dissera Cláudia, sem disfarçar o sofrimento. ― Bem, pelo menos você tem Tara, e ela é uma criança linda e saudável. Ninguém diria que é um bebê prematuro! Você não imagina como eu e seu pai nos sentimos ao receber o telefonema de Garth! Eu queria correr para o seu lado, mas não havia um único lugar, em nenhum dos voos, pois não ignorávamos que os pais dele também estavam longe. De fato fiquei muito surpresa quando soube que a deixaram sair tão depressa do hospital. ― Eles sabiam que nós pretendíamos nos mudar ― dissera Cláudia, acrescentando rapidamente ― mas tudo isso pertence ao passado, e eu gostaria que você não ficasse sempre rememorando esse período! Ela se calou ao perceber que magoara a mãe com sua rispidez e tentou se redimir. ― Desculpe-me, mamãe. É que... eu não gosto muito de lembrar... ― Eu entendo, querida. ― A mãe sorrira, segurando-lhe as mãos. ― Imagino como deve ter sido difícil para você, em especial quando... depois de perder o primeiro filho e depois de quase passar pela mesma tragédia com Tara...

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― É... é isso mesmo... Já haviam se passado dezoito meses e Cláudia ainda detestava lembrar-se que perdera um filho, antes da chegada de Tara. As amigas haviam lhe afirmado que era um fato bastante comum, e o melhor era engravidar de novo, o mais rapidamente possível. Naquela época, ela ainda trabalhava, e Garth estava no exército. Cláudia se lembrara de seu entusiasmo ao conseguir o cargo de assistente social e da entrevista com sua chefe. ― Idealismo e preocupação com o outro são sentimentos merecedores de elogios, minha cara ― dissera a chefe, mais velha e experiente. ― Mas, neste emprego, você tem de aprender a manter uma certa distância dos problemas que encontra. É essencial para realizar um bom trabalho. Vinte e tantos anos atrás, os problemas e as armadilhas do trabalho social ainda não eram tão bem conhecidas como nos dias atuais. Cláudia lembrou-se de suas experiências ao entrar na sala de visitas e acender o abajur. Os traumas e sofrimentos, as acusações de negligência e de interferência abusiva na vida alheia ainda pertenciam ao futuro. Entretanto, percebera que a chefe tinha toda razão, pois ela era sensível demais, correndo sempre o perigo de se envolver pessoalmente com os problemas de suas clientes e assim perdendo a possibilidade de ser lúcida e racional. Ela também era sensível demais às críticas das colegas de trabalho, que se ressentiam de seu meio familiar de alto nível e da sua condição de filha única superprotegida. Como poderia ter experiência dos problemas e dos perigos que corriam aquelas criaturas, cujas vidas só haviam conhecido miséria e sofrimento em cortiços e favelas? Por fim, sua consciência a forçara a aceitar que, não importa o quanto se dedicasse ou o quão ansiosamente desejasse ajudar, a despeito de suas excelentes qualificações e sua devoção total ao emprego, não era mesmo a melhor nem mesmo a pessoa certa para ajudar alguém! A sala de visitas sempre fora um dos aposentos preferidos de Cláudia. As proporções eram de uma elegância perfeita e por ser de face sul parecia estar o tempo todo inundada de luz. Ela nunca alterara o esquema de tons inicial, um amarelo pálido, que havia escolhido logo ao se mudarem para a casa. Os dois sofás que ficavam frente a frente e de lado para a lareira tinham sido um presente dos pais dele, e pareciam ainda mais bonitos agora que o brocado ouro-velho se tornara mais suave e esmaecido com o passar de vinte anos. A sala revelava convivência e vida em comum, a ponto de as visitas comentarem o quanto lhes parecia acolhedora. Sobre a lareira havia um retrato do pai, com uniforme de gala. O regimento dele mandara pintá-lo, como presente de aposentadoria, mas sua mãe declarara que já o vira demais com aquele uniforme e o dera a Cláudia. Ela fizera uma espécie de galeria de retratos na escada que saía da sala, onde colocara desenhos a lápis, alguns óleos e até um "retrato" irreconhecível que Tara desenhara, representando os pais, quando ainda estava na pré-escola. Mas era na sala, em cima de uma mesa antiga pertencente à família de Garth, que ela colocara o retrato do marido. Instintivamente, Cláudia se aproximou e acendeu o spot que iluminava o quadro.

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Garth estava com vinte e sete anos quando o retrato fora pintado e lhes fora dado como presente de casamento pelos companheiros de regimento. Apesar de ter sido feito por meio de uma fotografia, era bastante fiel e notava-se o queixo forte e o nariz aquilino que eram uma característica dele. Uma amiga declarara que, se Garth vestisse uma toga romana, imediatamente seria contratado por Hollywood, pois representava a encarnação ideal de um homem sexy e de uniforme. Era verdade! Os antepassados dele eram de Pembrokeshire, no País de Gales, e a família brincava, dizendo que algo além de destroços da Invencível Armada espanhola havia chegado até as praias de Pembroke. O tom dourado da pele e os cabelos negros e fartos de Garth sugeriam algumas gotas de sangue latino em suas veias, e amigos da família acrescentavam que os cachos brilhantes de Tara eram mais um sinal dessa herança genética. Fato ou ficção, Garth era um homem demasiadamente atraente e sexy demais, de acordo com as palavras de uma amiga no dia mesmo de seu casamento. Entretanto, não fora a aparência física ou a atração sexual que despertara suas primeiras emoções em relação a ele. Talvez por causa da carreira e por conhecer bem demais os instintos básicos do sexo masculino, o pai de Cláudia a protegera de maneira exagerada. Fora preciso lutar muito, sempre contando com a ajuda materna, até convencê-lo a permitir que ela fosse para a universidade. Em um final de período escolar, Garth fora convocado para escoltá-la ao baile do regimento. Afinal, ele era um dos oficiais do regimento do pai dela e fora buscá-la em um Morgan vermelho conversível, que os pais haviam lhe dado quando completara vinte e um anos. Cláudia lembrava-se claramente que o julgara superficial, convencido e vaidoso demais de sua própria aparência e da beleza de seu carro esporte. Em questão de segundos, decidira que não era um homem de quem pudesse sequer gostar! Junho chegava ao fim, e era uma noite cálida e ainda clara quando os dois se dirigiram para o baile. Tinham de percorrer a estrada secundária, antes de chegar à principal, e ele comprovou ser mesmo o tipo que Cláudia julgara. Orgulhoso de sua perícia ao volante, dirigiu a uma velocidade excessiva, apenas para se exibir. Então, ao saírem de uma curva, Cláudia viu um porco-espinho bem no meio da pista. Sua reação instintiva foi gritar, diante da inevitável morte do pequeno animal, mas Garth também o avistara, e, antes que ela emitisse um som, jogou o carro para o acostamento e mergulhando o capo em uma valeta cheia de lama e debaixo de uma cerca viva de espinhos. Nenhum dos dois e muito menos o pequeno animal sofreu qualquer dano físico, mas não se poderia dizer o mesmo do belo carro esporte. Além da pintura impecável do capo estar coberta de barro e talos de capim, haviam também riscos fundos, provocados pelos espinhos da cerca viva. Entretanto, não fora o estado de seu precioso Morgan que levara Garth a sair correndo do carro, tão logo saíram da estrada. Na verdade, a maior preocupação dele fora o porco espinho, ainda assustado e paralisado pelo trauma. Carregando-o com cuidado, colocou-o além da porteira, bem no meio do pasto e em total segurança.

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Nesse momento, Cláudia se apaixonara por Garth. Não porque ele fosse um dos homens mais atraentes que jamais vira ou viria a encontrar, nem porque lhe pedira desculpas sinceras por ter corrido demais, quase provocando um acidente que os faria chegar atrasados ao baile. Ela perdera ao coração diante da maneira instintiva e absolutamente natural com que colocara a vida de um pequeno e insignificante animal acima das posses materiais, dando-lhe maior importância do que ao seu precioso e tão querido carro esporte. Fora uma reação honesta e automática, não uma atitude exibida ou falsa apenas com o intuito de impressioná-la. Cláudia se apaixonara pela personalidade de Garth, pelo calor humano, pela afetividade e pela capacidade de carinho que aquela atitude revelara. O mesmo amor e desvelo que ele sempre demonstrara a Tara. Havia um telefone na mesinha ao lado do sofá. Antes de se permitir mudar de ideia, Cláudia discou o número dele em Londres. Depois do divórcio, Garth comprara uma casa do outro lado da aldeia, além de um estúdio na cidade, onde passava os dias de semana, a fim de ficar mais perto de seu trabalho. O telefone tocou cinco vezes e então foi atendido pela voz bem modulada e incrivelmente sensual de uma mulher. Sem nada dizer, Cláudia desligou. Suas mãos estavam trêmulas e, por algum motivo absurdo e desconhecido, sentiu as lágrimas aflorarem. Iria chorar só porque ouvira uma mulher atender ao telefone particular de Garth? Estavam divorciados havia anos, e fora ela quem tomara as providências para a separação. Sempre soubera que existiam outras mulheres na vida do ex-marido. Aliás, também antes da separação... Erguendo a cabeça, ela arrumou os lírios no vaso que arranjara fazia poucas horas, antes da chegada de Tara. De fato, estava em uma idade muito vulnerável, um período da vida em que ainda se sentia atraente e sensual, mas que seus hormônios começavam a contar uma história bem diferente. Quantas vezes, nos últimos tempos, ouvira outras mulheres se queixar da falta de um objetivo definido na vida, após a partida dos filhos... e de se sentirem sem uma vida sexual satisfatória? Cláudia reconhecia bem o problema dessas amigas que estavam mais ou menos com a sua idade. Não tinha um homem em sua vida! Não lhe havia faltado oportunidades... muitos homens haviam se aproximado dela, enquanto ainda era casada e se tornado mais assíduos após a separação. Alguns eram casados, outros não. Com toda a certeza, não precisaria ter se privado de sexo durante todos aqueles anos e talvez conseguisse até encontrar um novo amor... se fosse o que desejava. Mas sempre fora uma mulher ocupada demais para pensar nesse aspecto. Em primeiro lugar, havia Tara, e depois seu trabalho, suas instituições de caridade, os amigos... ―Não sente falta de alguém? ― perguntara uma conhecida, logo nos primeiros anos após o divórcio. ― Falta de sexo, de alguém em quem se enroscar na cama, de braços fortes para envolvê-la num momento de fossa? Você deve se sentir... ― Frustrada? ― completara Cláudia, com toda a calma. ― Pois não me sinto... de verdade! Não tenho tempo para isso. Era verdade, mas também existia outro motivo ainda mais sério. Seu desejo sexual sempre fora ligado ao lado emocional, praticamente dominado por seus sentimentos mais intensos. O

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mais importante sempre havia sido o amor, que pairava acima da volúpia e do prazer físico. E depois de Garth... além de não poder sequer imaginar um amor tão intenso quanto o primeiro, também não queria, de maneira alguma, se envolver emocionalmente com nenhum outro homem. Ela se sentira arrasada ao descobrir que Garth a traíra, derrotada de uma maneira tão absoluta e devastadora que não queria se envolver nunca mais! Seu amor por ele morrera, fora aniquilado diante da infidelidade e da comprovação de que vivera uma grande mentira ao acreditar no marido e no casamento. Entretanto o medo de sofrer não havia morrido! Cláudia tinha amigos e gostava de sair com eles. No entanto, jamais sequer chegara perto de desejar partilhar sua vida com alguém. Ou pelo menos nunca o quisera até conhecer Luke Palliser. Essa mudança na maneira de sentir seria mais uma confirmação de que estava chegando a uma idade perigosa? O fato de sentir-se atraída por um homem mais jovem indicaria a aproximação da tão temida meia-idade? Ao começar a subir as escadas em direção ao quarto, Cláudia parou diante do retrato que Tara fizera dela e de Garth. Era mesmo irreconhecível, a não ser pelo amarelo dos cabelos da mãe e pelo tom quase negro dos cabelos do pai. Tara! Ela sentiu a costumeira e tão familiar onda de amor que a envolvia ao pensar na filha. Infelizmente, agora não era apenas amor que sentia... dessa vez havia muito medo, angústia e culpa. Oh, sim! A culpa era imensa e difícil de suportar.

CAPÍTULO II - Acho que ouvi o telefone tocar... Garth Wallace dirigia-se à secretária, ao entrar no escritório de seu apartamento em Londres, trazendo os papéis que fora buscar em sua pasta, no quarto de dormir. ― Ouviu mesmo ― respondeu ela. Estelle Frensham trabalhava havia dois meses no escritório de Garth, substituindo a secretária dele que estava em licença-maternidade. ― Mas a pessoa desligou sem dizer nada. Verifiquei qual era o número e o anotei. Está aqui. Em silêncio, Garth pegou o papel que a secretária lhe oferecia. Sua expressão não se alterou, a não ser por um ligeiro franzir das sobrancelhas espessas. Reconhecera de imediato o número. E como não o identificá-lo no mesmo instante se fora seu durante dez anos? Havia apenas uma pessoa em Ivy House que ligaria para ele e, pelo que sabia, Tara, sua filha querida, estava em Londres. Tara... a filha deles, dele e de Cláudia. Apesar de ter herdado seus traços, ela era muito mais filha de Cláudia. Cada gesto, a inflexão da voz e até o uso das palavras eram uma cópia das atitudes maternas. Não sabia se essas incríveis semelhanças o faziam odiar a si mesmo com maior ou menor intensidade. Só

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tinha certeza de que não alteravam seu amor pela filha nem seus sentimentos por Cláudia. Se Tara estava em Londres e fora Cláudia quem ligara, só podia ser por algum motivo importante demais! Ela jamais lhe telefonaria por qualquer banalidade. ― Ouça, Estelle... acabo de mudar de ideia e resolvi que chega de trabalho por hoje. Quero examinar melhor este contrato, antes de me decidir. Telefonarei para o cliente amanhã cedo, a fim de transferir nosso encontro mais para o final da semana. Estelle o encarou, com um olhar despudorado. Vinham trabalhando duro, na agência, a fim de terminar o projeto de uma enorme campanha para um novo cliente. Por esse motivo encontrava-se agora no apartamento de Garth em vez de estar malhando na academia. Não que ela se importasse! Preferia a companhia dele, em qualquer dia da semana e à qualquer hora do dia ou da noite, mesmo que fosse apenas para trabalhar. Pelo menos era um começo... Desde o dia em que ele a entrevistara, para preencher temporariamente o cargo de secretária particular, havia dois meses, Estelle decidira que, mais cedo ou mais tarde, iriam para a cama! Só pensar naquele homem irresistível entre os lençóis e sem nenhuma peça de roupa a fazia antecipar o prazer que sabia estar à sua espera. Sempre que o via, sua tensão alcançava um ponto tal que apenas o sexo poderia aliviar. Ela perguntava a si mesma qual seria a reação de Garth se lhe dissesse, naquele minuto, como se sentia e o quanto precisava dele... na cama! Alguns homens gostavam de mulheres desinibidas e capazes de admitir seus desejos sexuais em voz alta, mas suspeitava que ele não era desse tipo. Afinal, durante as oito semanas de convivência, nunca deixara perceber que se sentia sexualmente atraído por ela. Entretanto, não havia nenhuma namorada fixa na vida dele, com exceção da executiva dá seção de finanças, com quem saía de vez em quando. Ora! Aquela mulher de trinta anos e aparência de dama refinada não seria nunca páreo para Estelle Frensham! Fizera todas as pesquisas possíveis a esse respeito, assim como para se assegurar de que ele era tão heterossexual quanto parecia ser... e não havia dúvida alguma nessa área. Até então, Garth não tomara conhecimento de suas tentativas de aproximação ou, pelo menos, as ignorara. Tivera algumas esperanças em relação àquela noite, mas, obviamente, não chegara ainda a hora. Estelle não era inexperiente nem tola e recolheu todos os papéis que estavam espalhados sobre a mesa da sala. Seus planos não haviam dado certo. Se ele não iria satisfazer seu desejo, sempre podia contar com Blade. Ah, sem dúvida Blade estaria a postos! Ele sempre era capaz de lhe fornecer qualquer tipo de sexo. A relação entre os dois não era apenas de amor e ódio, mas sobretudo de desprezo e volúpia. Enquanto apanhava sua bolsa, já pensava em como iria terminar aquela noite. Enquanto esperava que a secretária saísse, Garth imaginava o que ela estaria pensando. Estelle deixara bem claro, desde o primeiro dia, o quanto se sentia atraída por ele, mas a experiência o ensinara a reconhecer os sinais de perigo e a se desviar das armadilhas em potencial. ― Vou chamar um táxi para você ― disse ele.

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Era preciso admitir que Garth era um cavalheiro, do tipo antigo, no tratamento com todas as funcionárias da empresa. Protetor e gentil demais... infelizmente! Ao se inclinar para pegar uma folha de papel caída sob a mesa, Estelle fez com que sua saia envelope se abrisse até o alto, revelando a perna longa e moldada por longas horas de musculação, além de revelar que não havia nada sob a fina seda, caso ele estivesse interessado, é claro! Olhando com o canto dos olhos, viu que Garth olhava pela janela, nitidamente pensando em algum outro assunto. Pois ele não perdia por esperar e, enquanto esse dia não chegasse, procuraria Blade para aliviar sua tensão sexual. Garth esperou até que Estelle entrasse no táxi, que pertencia à firma usada com frequência pela empresa. Ouvira histórias escabrosas demais sobre mulheres estupradas por motoristas não autorizados! Só quando viu o carro se afastar é que saiu da janela e olhou de novo para o número que estava escrito no papel. Depois de tomar um longo banho, Cláudia abriu a gaveta da cómoda e viu o vidro de remédios para dormir que sempre guardava entre suas camisolas. Seu médico particular receitara aqueles calmantes logo após a separação, quando pedira para Garth sair de sua vida. Depois dessa época atormentada, não mais os tomara, mas nunca ficava sem um vidro cheio, temendo que algo reavivasse suas lembranças e a impedisse de dormir. Ou, caso dormisse, fosse atormentada por pesadelos em que se mesclavam culpa, terror e agonia. Quando ocorria uma ocasião dessas, procurava escapar do sofrimento tomando um sonífero. A última vez que isso acontecera fora no final do ano anterior, no aniversário de Garth... quando ele fizera cinquenta anos. Tara decidira oferecer uma festa ao pai. Implorara que Cláudia comparecesse, mas ela explicara à filha que Garth preferiria passar essa data marcante sem a incómoda presença de uma ex-esposa. ― Mas nós ainda somos uma família, mamãe! ― protestara a filha, com uma teimosia obstinada. ― Você e Garth são uma família. Eu e você somos uma família, mas nós três deixamos de ser... ― Vocês dois compareceram à minha formatura e festejaram meu vigésimo primeiro aniversário. Todos disseram que... Tara se calou, e Cláudia sabia porque o fizera. Todos haviam dito que era uma pena os dois não estarem mais juntos, mas a garota sabia que a simples menção desse argumento desencadearia um dos raros acessos de fúria dos pais, uma atitude de autodefesa, por parte de Cláudia, e de proteção, por parte de Garth. ― Os meus quatro avós aceitaram o convite, mamãe ― insistiu Tara. ― Tanto os seus pais quanto os pais dele irão! O argumento não surtiu efeito algum. Cláudia já sabia, pela mãe, que eles iriam à festa de aniversário do genro. ― Seria muito grosseiro recusar o convite, querida! Além disso, meu pai nem admitiria essa possibilidade, pois você sabe o quanto ele aprecia Garth. Cláudia recebera um telefonema ansioso da mãe.

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― Eu acho que vocês dois têm de ir mesmo ― insistiu Cláudia, para tranquilizá-la. ― Mas será estranho se você não estiver lá... ― Não será nada estranho nem para mim nem para Garth, mamãe. Nós estamos divorciados há dez anos! ― É claro que eu sei disso, Cláudia! ― replicou a mãe, ofendida. ― Só não entendi por que... ― Eu lhe contei tudo naquela época, lembra-se? Garth tinha... ele foi... ― Ele foi um tanto desleal, eu sei. Mas todos os homens são assim mesmo, querida. Até seu pai me provocou alguns momentos de ansiedade, mas nunca chegou aos extremos. Só que Garth é atraente demais e sempre foi, desde que você o conheceu! ― Pois eu não vou ― explodiu Cláudia irritada, encerrando a conversa. Ela realmente não comparecera à festa e fora para a cama bem cedo, com um sonífero e um punhado de recordações indesejáveis. Naquela noite, o remédio não teve efeito algum, e as lembranças a impediram de dormir. Talvez hoje fosse melhor tomar dois em vez de um... Quando o telefone tocou, uma hora depois, Cláudia dormia um sono pesado e não ouviu nada. Irritado e um tanto preocupado, Garth telefonou para a filha, em Londres. ― Papai? Que bom que você ligou! ― Ah, então tentou entrar em contato comigo? ― Não, não se trata disso. É que fui visitar mamãe, hoje à tarde. Precisava conversar com ela e... leu a notícia a respeito dela no jornal local? Não é fantástico? ― Sim, eu li. Ele lera mesmo a notícia e vira as fotos que acompanhavam o artigo. Em várias delas aparecia um homem, bem perto de sua ex-esposa, fitando-a com uma expressão possessiva e predatória. Garth conhecia apenas a reputação dele. Era um empresário frio, dedicado apenas a seus próprios interesses e que pretendia sair de Londres e estabelecer parte de sua empresa de informática na região em que nascera. Se os boatos eram verdadeiros, ele se aproximara de Cláudia para obter uma assessoria a respeito dos problemas que encontraria em seus futuros e potenciais empregados. Garth tinha certeza de que as intenções de Luke Palliser eram outras e o que ele queria não era a parte profissional de sua exesposa! ― Essa conversa com sua mãe devia ser muito importante, para você dirigir até Gloucestershire e voltar para Londres no mesmo dia. ― Bem... era mesmo, e eu não podia dormir lá, pois tenho um compromisso importante amanhã cedo. Além disso, não adiantaria ficar, visto que mamãe tinha um compromisso hoje à noite. Papai... Tenso, Garth esperou que a filha falasse. Conhecia bem demais aquela inflexão de voz, que surgia nos momentos de maior tensão da vida de Tara, desde o acidente que entortara o guidão de sua primeira bicicleta à trombada, bem mais dispendiosa, que arrancara a porta do carro que ele lhe dera ao completar dezoito anos.

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― Lembra-se que eu lhe pedi para tirar o dinheiro da minha poupança porque eu estava planejando passar as férias com Ryland, em Boston? ― Claro que lembro! ― Bem... eu não quis lhe dizer nada naquele dia, antes de falar primeiro com mamãe, entende? Acontece que Ry e eu... talvez eu fique mais tempo por lá, não apenas algumas semanas. ― Ela calou-se a fim de dar tempo para o pai absorver suas palavras. Entretanto, Garth não precisaria de tempo algum para entender a mensagem da filha. Desde o início da conversa, pressentira, quase adivinhara uma notícia que o desagradaria. Sentiu que segurava o telefone com força excessiva, e sua mão começava a suar. Agora sabia por que Cláudia tentara entrar em contato com ele. ― Ainda está aí, papai? ― perguntou Tara, insegura. ― Sim, estou ouvindo ― respondeu ele, rfezando para que sua voz soasse calma. ― Você pode falar com ela sobre isso? Sei que ficou muito aborrecida, e a última coisa que quero é magoá-la, mas... eu e Ry estamos tão apaixonados! Nem sei quanto gostaria que existisse um modo de ficarmos todos juntos! Entretanto é um pouco parecido com o divórcio... quando você e mamãe se separaram, concorda? Nem sempre se pode ter todas as pessoas a quem se ama ao seu lado. A família e o trabalho de Ryland estavam em Boston, e ele sempre soubera que um dia teria de assumir seu lugar na empresa familiar. Na verdade sempre desejara isso! ― Você e mamãe podem me visitar sempre ― prosseguiu Tara, ansiosa. ― Já disse isso a ela, sabe? Além disso, nós também viremos para a Inglaterra sempre que pudermos. Mas nada está definitivamente resolvido, papai. Ainda tenho de passar pelo processo de inspeção! Segundo Ry, é mais fácil ser investigado pelo FBI do que pela tia dele. Ela vai querer examinar a árvore genealógica da família e se certificar da inexistência de qualquer herança genética que possa macular a pureza da família dela, tudo isso antes de me chamar pelo primeiro nome! Tara deu uma risada que não escondia seu nervosismo. ― Ry disse que ela vai querer todas as informações possíveis a meu respeito antes de aceitar a possibilidade do sobrinho querido desejar se casar. Não que ele se importe se ela aprovará ou não, mas sabe o quanto isso é importante para a tia. Tão logo perceba que estamos seriamente envolvidos, colocará em ação um processo de investigação minucioso, quer concordemos, quer não. Mais uma vez Tara tentou rir, mas o som tinha um sabor um tanto amargo. ― Ela é a principal acionista da empresa familiar. Seu marido era irmão mais velho do pai de Ryland. Quando ele morreu, as ações passaram todas para ela. Logicamente, o pai de Ry também tem as dele e trabalha na empresa. Essa tia é muito emproada e cheia de preconceitos e, como gostaria que o sobrinho se casasse com uma jovem das dinastias mais ilustres dos Estados Unidos, irá pesquisar a fundo a minha vida. Eu pouco estou ligando para isso, porque sei que vai ser tudo muito tranquilo. Tanto a sua família quanto a de mamãe são centenárias, e vovô brigadeiro sabe quantas incrustações dentárias têm cada membro do clã. Ainda está me ouvindo, papai?

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― Sim, querida ― respondeu ele, em voz baixa. ― Então... promete que vai falar com mamãe a meu respeito? Sei que ela esperava, em seu íntimo, que eu me casasse com um rapaz local e fosse morar bem perto dela, podendo empurrar o carrinho de bebê até seu jardim. Eu também gostaria, mas... me apaixonei por Ry, de verdade. ― Você já tirou seu visto? ― Ainda não. Já preenchi os formulários e os entreguei no consulado ― respondeu ela, estranhando o tom de voz do pai. ― Ry acha que não haverá problema algum, pois trata-se de um visto provisório, e podemos resolver os problemas do definitivo quando estivermos em seu país. É estranho! Mamãe me fez essa mesma pergunta! Depois de falar com a filha, Garth tentou outra vez entrar em contato com Cláudia, mas ninguém atendia ao telefone. Onde estaria ela? Tara lhe dissera que a mãe tinha um compromisso. E com quem? O homem das fotos do jornal, Luke Palliser, seria mais do que um simples contato de negócios? Estaria agora nos braços dele... na cama dele? Assustado com o rumo de seus pensamentos, Garth forçou-se a controlá-los, enquanto caminhava de um lado ao outro do quarto. O que estava acontecendo com ele? Conhecia Cláudia bem demais e, naquele momento, sexo seria a última coisa em que sua ex-esposa pensaria. Aliás, o único pensamento possível seria Tara! Quando a filha ainda era pequenina, ele brincara, dizendo que ela a amava mais do que a ele! ― Sim, acho que amo mesmo ― respondera Cláudia. ― Só que é um amor diferente. Um sentimento profundo e abrangente que apenas uma mãe que já perdeu um filho pode reconhecer. Entretanto, a existência dele não diminui a sua porção de amor, Garth. É apenas diferente... Depois que o táxi a deixou diante do prédio onde morava, Estelle esperou até que o carro se afastasse antes de retirar o celular da bolsa. Talvez estivesse sendo cautelosa demais, porém não se descuidava da regra de jamais misturar sua personalidade pública com a particular, e Blade era parte da porção mais íntima de sua vida. ― Mas... é quase incesto! ― exclamara uma amiga, chocada. Ainda adolescente, Estelle provocara esse comentário ao contar, com detalhes lascivos, o relacionamento que tinha com seu irmão adotivo, o filho de seu padrasto. A outra garota ficara chocada, mas ela sentia um enorme prazer em saber que ambos partilhavam algo que seria terminantemente proibido pelos pais. A situação se tornava ainda mais excitante por ser necessário mantê-la em segredo. Quando ela relatou a Blade que havia contado tudo para uma amiga, ele a agrediu e a forçou a se submeter a um ato sexual violento e degradante. Estelle considerou aquela relação a mais erótica que jamais tivera. Naquela época, estava com treze anos, e Blade com dezoito. Os dois mantiveram o relacionamento sexual durante o período universitário, encontros sexuais ardentes, delirantes e obsessivos, com nuances de sadomasoquismo, intercalados por fases de completo afastamento, quando não se viam nem sequer se falavam ao telefone. Ela lembrava-se em particular de uma ocasião, quando Blade chegou da faculdade pouco antes do Natal e os dois não haviam se encontrado desde o

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final do verão. Estelle saíra com amigos, a fim de não estar em casa, sabendo que o enfureceria por não se encontrar à espera dele quando chegasse. A festa acabou sendo mais excitante do que ela previra, pois sua amiga tinha um irmão mais velho que compareceu com um grupo de amigos. Estelle não fizera sexo com nenhum deles. Ficara mais prudente desde os dias em que contava seus segredos às amigas. O mundo a via de uma forma, mas ela e Blade | viviam uma outra realidade. Entretanto, ela beijara e fora acariciada por vários dos rapazes e, quando chegou a casa à uma da manhã, estava excitada não apenas em função das carícias anteriores como também da expectativa de encontrá-lo após uma longa separação. Os dois se encontraram na sala, e Blade apenas a olhou, esperando que ela subisse as escadas em direção ao quarto. A penumbra do aposento, o silêncio absoluto e a expectativa do momento em que ele a tocaria provocaram uma excitação tão intensa que Estelle chegou muito perto do êxtase antes de ter qualquer contato físico. O quarto dela ficava no outro extremo da casa, bem distante da suíte dos pais. Sua mãe adorava dizer a todos que acreditava na necessidade de privacidade dos adolescentes, mas Estelle sabia que ela realmente não queria saber nada da vida da filha. Ela aprendera, havia muito tempo, que sua mãe não a amava e nem sequer a apreciava. Cansara de ouvir que não fora querida. Não era segredo que sua concepção havia sido acidental, pois Lorraine jamais desejara ter filhos. ― Eu vou me matar! ― ameaçara Estelle, em uma crise da adolescência. ― Você quer mesmo é se livrar de mim! Enquanto se afastava, ela ouviu a mãe resmungar: "Acertou em cheio!". Alguns anos depois dessa ocasião, Lorraine confessou que pensara seriamente em fazer um aborto, logo no início da gravidez. Quando a criticaram por dar uma liberdade excessiva a Estelle, Lorraine foi taxativa. ― Acho que minha filha tem idade suficiente para criar suas próprias regras! Como se uma adolescente difícil não fosse problema suficiente, Ethian Morton, seu segundo marido e pai de Blade, tivera de aceitar a tutela do filho. O atual companheiro de sua primeira esposa declarara que o jovem era incontrolável e rebelde demais, em função da ausência de participação do pai verdadeiro em sua educação, e não aceitava mais a responsabilidade de educálo! Apesar de ter sido expulso de várias escolas particulares, Ethian ficou aliviado quando Blade, aos trancos e barrancos, conseguiu terminar o colegial e entrou em uma faculdade. Naquele ano, os pais de ambos haviam ficado realmente satisfeitos quando seus respectivos filhos recusaram o convite de ir com eles para uma temporada de esqui no Colorado, logo após o dia de Natal. ― Vão deixar Blade e Estelle sozinhos em casa? ― perguntara uma vizinha, sem disfarçar a reprovação. ― Meu enteado é um homem adulto ― declarara Lor-raine, ofendida com o comentário. ― Além disso, Blade e Estelle se dão muito bem. São muito mais íntimos do que se fossem de fato irmãos. Ele tem uma atitude protetora em relação a ela... é encantador! Mais tarde, Lorraine deixara vir à tona sua raiva, desabafando com Ethian.

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― Aquela maldita intrometida! Ela ousa me criticar só porque vive em função de um bando de filhos malcriados! O banheiro de Estelle tinha uma parede de espelhos, um presente de aniversário dos pais e que fora uma sugestão de Blade. Ela entrou, sem preocupar-se em fechar a porta, e, tirando o vestido, permaneceu imóvel, analisando seu reflexo. Estelle era alta e esguia, com seios amplos mas firmes o bastante para dispensar o sutiã. Ela adorava o contato do tecido roçando em seus mamilos, e também os olhares de desejo de todos os homens que viam o contorno moldado por roupas sempre justas. Ela notou que sua boca estava inchada de tantos beijos e, com um sorriso malicioso, tirou a calcinha diminuta. Ouvindo a porta se fechar às suas costas; começou a se acariciar de maneira provocante. ― Onde você esteve? O que andou fazendo? A voz de Blade era muito baixa, mas o tom intenso provocou um gemido de prazer em Estelle. ― Venha cá ― ordenou ele, com a mesma voz baixa e quase gentil. Entretanto o tom suave não enganou Estelle. Durante o longo relacionamento dos dois aprendera que a punição sexual era um dos grandes prazeres de Blade. Enquanto se aproximava, Blade tirou o jeans. No início do relacionamento, Estelle se fascinara com o órgão sexual dele, que era sempre o instrumento de sua punição. Apoiando-se em uma banqueta, Blade puxou-a para junto de si. Estelle tremia de prazer, antes mesmo de sentir a mão dele segurá-la pela cintura. Com um movimento rápido, ele forçou-a a sentar-se sobre seu membro ereto. Sem conter um grito, Estelle sentiu que ele a penetrava com movimentos bruscos e quase violentos, provocando ondas de prazer mesclado de dor. Perdendo a capacidade de se controlar, ela arqueou o corpo, atingindo um orgasmo intenso. Eles passaram o que restava da noite no banheiro, entregando-se a um sexo desenfreado. Estelle sabia que seu corpo estaria dolorido na manhã seguinte, mas não se importava, pois adorava cada minuto passado com Blade, adorava cada segundo de dor e prazer. A lembrança daquela noite ainda conseguia provocar-lhe uma onda de desejo e um sorriso de prazer e antecipação. Ela começou a se acariciar, enquanto discava o número de Blade. ― Alô? Sou eu, Blade. Estelle... ― murmurou ela, com voz rouca. ― Você está em casa? Essa frase era seu código particular e significava "Eu quero sexo". Ela quase conseguia visualizar o sorriso de satisfação no rosto de Blade ao ouvir sua voz. ― Não, infelizmente não estou. ― Então ele se dirigiu a mais alguém. ― Tudo bem, querida. É apenas minha irmã. Estelle o ouviu rir, enquanto sentia uma onda de raiva envolvê-la. ― Se está realmente desesperada... querida... posso fazer você ter um orgasmo por telefone ― disse ele, zombeteiro. ― Ou, então, pode vir e participar da nossa festa.

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Furiosa, Estelle desligou. Conhecia muito bem a predi-leção de Blade por sexo com várias mulheres, mas não estava com disposição para partilhar seu parceiro com ninguém. Queria atenção exclusiva! Enquanto guardava o telefone na bolsa, viu um homem parado pouco adiante de seu prédio, esperando para atravessar a rua. Ela o examinou, avaliando-o como um possível parceiro sexual. Apesar do desejo que precisava ser satisfeito com urgência, aquele rapaz pálido e magro tinha uma aparência dócil demais, e ela queria alguém capaz de dommá-la com violência. Praguejando baixinho, ela culpou Blade por sua insatisfação. Sabia quanto prazer iria dar à mulher que estava com ele, ainda mais por ter certeza de que ela se sentiria frustrada e excluída.

CAPÍTULO III Inquieto, Garth olhou outra vez para o relógio, após mais um telefonema para Cláudia. Por que ela não atendia? Já era uma da manhã! Cláudia saíra, mas... Aquela hora da madrugada, as estradas estavam quase desertas e ele levaria uma hora e meia para chegar a Upper Charfont. Séntia-se bastante inclinado a pegar o carro e ir pessoalmente verificar o que estava acontecendo, Entretanto, sabia que sua ex-esposa reagiria muito mal à sua chegada inesperada e no meio da noite. Além disso, alguém veria seu carro parado à porta de Ivy House e, na manhã seguinte, o vilarejo estaria comentando o horário pouco apropriado de sua visita. Ele pouco se importava que os vizinhos imaginassem algo impróprio, porém Cláudia ficaria enfurecida. O melhor seria telefonar-lhe bem cedo... se é que então ela estaria em casa! Ou será que passaria também a manhã com Luke Palliser? Ele levantou-se e se espreguiçou, tentando aliviar os músculos tensos. Sem ser vaidoso, sabia que estava em esplêndida forma física. Comia bem e saudavelmente, exercitava-se com regularidade e reconhecia todos os aspectos positivos de sua vida. Entre suas bênçãos estava Tara, ocupando o primeiro lugar, é claro! A filha era seu bem mais precioso. O preço de tê-la em sua vida fora muito alto e, em alguns momentos de pessimismo, chegara a pensar que teria sido melhor se ela não existisse, e, em outros, se sentira ridiculamente enciumado do amor de Cláudia por ela. Hoje admitia que talvez houvesse amado mais a esposa do que jamais fora amado. Ainda se lembrava do quanto ficara aborrecido quando seu comandante, o pai de Cláudia, lhe comunicara que deveria acompanhar a garota ao baile do regimento. Ele sabia apenas que o brigadeiro tinha uma filha, a qual estudava em alguma universidade próxima. Ao receber a quase ordem do oficial superior, não sabia bem o que esperar. Só sabia que preferiria levar a modelo loira e de pernas longas, a quem fora apresentado em uma festa em Londres e vinha perseguindo havia quase três

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semanas. Ele não se impressionara tanto com aquela beleza esguia, pois preferia mulheres mais miúdas e com as curvas nos lugares certos. Naqueles dias de relativa inocência, quando ainda não se falava em anorexia ou bulimia, a modelo tinha um ar de quem mal se alimentava e uma expressão distante que sugeria o uso de alguma droga ainda suave, bastante em moda no meio agitado da juventude londrina. Na verdade, seu maior atrativo era a disponibilidade sexual. Garth era jovem, solteiro e com um apetite sexual saudável. A possibilidade de levar ao baile uma garota com quem acabaria por passar o resto da noite na cama era muito mais atraente do que passar algumas horas, conversando polidamente, ao lado de uma garota que, além de ser filha de seu superior, devia ser sem graça e feia. Só que Cláudia era linda e interessante. Logo no início da noite, ficou evidente que- ambos estavam sentindo muito prazer na companhia um do outro Loura e frágil, com curvas delicadas que provocavam seu instinto protetor, Cláudia era de fato sedutora. Garth sentia vontade de envolvê-la nos braços, guardá-la dos perigos do mundo e, ao mesmo tempo, queria colocar as mão na cintura diminuta para se certificar se era tão pequena quanto parecia. No final da noite, não tinha mais dúvidas de que encontrara a mulher com quem desejava se casar. Cláudia levara mais tempo para admitir a verdade. Mesmo sabendo que o amava, tinha visto muitos casamentos de militares subordinados ao pai que haviam se desfeito muito rápido. As constantes mudanças e as pressões conflitantes dificultavam a formação de uma vida familiar estável, e ela não queria arriscar a felicidade de seus futuros filhos, precipitando-se na escolha do homem que seria o pai deles. Antes mesmo de se casar, a prioridade de Cláudia havia sido a segurança da família, que ela ansiava tanto por formar, a felicidade das crianças que desejava muito ter. ― Como pode afirmar que me ama? ― explodira ela, quando tudo viera à tona. ― Como tem coragem de insistir que me ama... depois de ter dormido com outra mulher? Ele tentara explicar, procurara fazê-la compreender que tudo não passara de um erro, um acidente que jamais teria acontecido se... mas Cláudia se recusara a ouvir ou a acreditar em uma só palavra sua. Garth sempre soubera que a fragilidade e o aparente aspecto vulnerável de Cláudia ocultavam uma força inesperada, mas jamais imaginara que essa força pudesse ser dirigida contra ele. Tentara fazê-la mudar de ideia, mas não fora ouvido. Depois de muita insistência, fora obrigado a admitir que o casamento chegara ao fim, pois o orgulho dela a impediria de compreender ou perdoar seus atos. Nos primeiros anos após o divórcio, ele se comportara como os demais homens em sua situação, tentando afastar a dor e a sensação de perda nos braços e nas camas de uma infinidade de mulheres. Lógico, não funcionara, mas Garth nem esperara que funcionasse! Preferira ficar sozinho e livre de qualquer envolvimento emocional mais profundo, dedicando quase todo o seu tempo e a sua atenção ao trabalho. Passara os anos de recessão económica na Inglaterra pensando apenas em aumentar sua

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clientela, e agora se encontrava, inesperadamente, entre as melhores empresas de sua área. Como Cláudia, acompanhara o namoro de Tara e Ryland, mas também como ela, fora pego de surpresa diante da notícia de que os dois pretendiam se casar. Uma hora mais tarde, Garth continuava acordado. Eram duas e quinze da manhã. E se tentasse a telefonar de novo para Cláudia? Sentia-se tentado a ligar mais uma vez, mas temia não encontrá-la ainda em casa e não queria ter certeza de que ela estava nos braços de Luke Palliser. Realmente... preferia não saber! Eles estavam separados havia dez anos e, embora Cláudia não fosse do tipo que se entrega a relacionamentos sexuais fortuitos nem expõe em público seu envolvimento emocional, ela era uma mulher muito atraente de quem os homens sempre desejavam se aproximar e proteger. Sem dúvida, tratava-se de um impulso politicamente incorreto e muito chauvinista, mas... Durante o casamento deles, Garth se irritara com os olhares de admiração dos outros homens e, algumas vezes, de inveja, que o deixavam mais tranquilo, pois comprovavam que Cláudia continuava a ser sua por escolha própria. ― Envolver-me com outro homem? Casar de novo? Oh, não! Jamais! ― dissera ela, durante o processo de divórcio. ― Eu amei você, Garth. Amei, confiei e acreditei piamente em nosso amor... mas fui traída. Se não é possível confiar em alguém que conheço há tantos anos, em quem eu iria confiar? Não posso e não pretendo nem tentar. ― Tudo isso apenas significa que não quer tentar, assim como não quer compreender nem aceitar ― replicara ele, furioso e ainda incapaz de acreditar que Cláudia persistira em sua decisão e estavam praticamente divorciados. ― Você se sente completa com o envolvimento emocional que tem e que pode dar, porque se completa com Tara e não precisa de mais ninguém! Chego a me perguntar o que teria acontecido se, no início de nosso relacionamento, você descobrisse que eu não podia ter filhos. Se fosse assim, não sei se você respeitaria os laços sagrados do casamento ou se me abandonaria de imediato! Garth convencera-se de que a dor evidente nos olhos de Cláudia, provocada por seu comentário enfurecido, era merecida porque suas acusações eram verdadeiras. ― Você não está se divorciando de mim porque eu dormi com outra mulher ― dissera ele, em outra de suas confrontacões doloridas do período que precedera o divórcio. ― Está insistindo em levar adiante essa separação ridícula porque agora eu sou demais. Cumpri meu papel de reprodutor e já não sou mais necessário. Tudo que quer e sempre quis foi Tara! ― Não é verdade ― negara ela, com veemência. ― Não, mesmo? E por que deixamos de ter sexo há três meses, quando você ainda não sabia de nada? Não dormimos juntos desde o Natal! ― Eu tentei! ― exclamou ela, na defensiva. ― Mas você estava viajando tanto, trabalhando até tão tarde e... ― E sexo é algo que só pode acontecer de noite, no escuro do quarto? O que aconteceu com as manhãs de domingo, com as tardes de sábado, com os dias chuvosos?

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― Tara era ainda um bebê, nessa época. Agora ela está maior e poderia perceber... ― Perceber o quê? Que os pais dela têm um relacionamento amoroso normal e saudável? Só que não é esse o caso, certo? Não há nada de natural em nossas relações atualmente, nada de amor, de paixão ou mesmo de afeto! Você apenas suporta o meu toque, permanecendo imóvel e desejando que tudo termine logo e eu a deixe em paz. ― Você está errado. Não é bem assim... Com certeza, não fora a ausência de sexo daquele período que tanto o enfurecera. Agora Garth conseguia perceber que sentira medo de estar perdendo o amor de Cláudia. Ela não mais o queria ou o desejava, formando um círculo fechado com Tara, no qual não havia lugar para mais ninguém. Tornara-se um elemento supérfluo e dispensável na vida da esposa e talvez também no da filha. Entretanto, errara ao acusar Cláudia de frieza emocional e de indiferença sexual. No início de seu relacionamento, ela era amorosa e sensual, entregando-se com uma certa ingenuidade, mas intensa paixão, ao desejo mútuo que parecia ser inextinguível. Ela era virgem quando se conheceram, mas ocultou esse fato durante os primeiros encontros. Entregava-se com tanto ardor às carícias que Garth assustou-se quando por fim a penetrou. A inesperada resistência e a pouca maleabilidade do corpo inexperiente revelaram uma verdade da qual nem sequer suspeitara. A virgindade de Cláudia tornou-a ainda mais perfeita aos olhos de Garth. Homem algum havia tocado aquele corpo que ela guardara para ele! Mais uma vez, ele olhou para o relógio. Três horas da manhã era tarde demais para ligar e teria de esperar até o dia amanhecer. Entretanto, podia imaginar como Cláudia reagira diante da notícia dada por Tara e o quanto se sentira abalada, a ponto de dominar o orgulho e telefonar para ele. Então lembrou-se da voz de Tara, alegre e envaidecida, ao mencionar que a tia de Ryland investigaria os antecedentes familiares de qualquer jovem que pretendesse se casar com o sobrinho. "Vai ser fácil, papai!" Ah, se essas palavras pudessem de fato ser verdadeiras! Estelle abriu os olhos e viu o mostrador luminoso do ra-diorrelógio. Eram três horas da manhã. Ainda sonolenta, perguntou a si mesma por que acordara, e então ouviu o ruído... de uma porta se fechando dentro de seu apartamento. Ela já sabia quem era, obviamente. Só uma pessoa tinha a chave de seu apartamento! Recostando-se nos travesseiros, viu-o entrar, com os passos silenciosos de um grande felino. Reconheceu, trêmula, o brilho quase feroz dos olhos verdes e a aura de intensa sexualidade que parecia emanar da pele dourada. Sentiu também o cheiro inconfundível de sexo... o cheiro dele e de outra mulher, mas nada podia abafar a intensa corrente de atração que se criava entre os dois. Sempre fora assim... ela sempre se sentira dominada pela potência sexual de Blade, desde quando era pouco mais do que uma menina e ele um adolescente alguns anos mais velho. Sempre fora dele e sempre o seria. ― Abra as pernas...

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Com um sorriso de vitória, Estelle obedeceu. Era evidente que a mulher, ou as mulheres, com que ele estivera não o haviam satisfeito, mas esse fato não a surpreendia. Embora Blade a torturasse, privando-a de sexo, sabia que também era essencial para ele. Às vezes, o olhar de Blade pousando sobre seu corpo era o suficiente para excitá-la. E ele aumentava a expectativa de Estelle ao se despir e permanecer um longo tempo imóvel e sem tocá-la. Todas as vezes em que o via nu, Estelle pensava na incongruência do mito sobre o tamanho dos pés e das mãos revelar o do equipamento sexual. Blade tinha pés e mãos pequenos, quase femininos, mas era o homem mais bem dotado sexualmente que ela conhecera. E sua lista de amantes era quase interminável! Mas o tamanho não era a característica mais marcante de Blade. Sempre se surpreendia com o apetite sexual dele. Mesmo quando era possuída muitas vezes e ainda sentia que desejava algo mais, Estelle sabia que nenhum outro homem a satisfaria tanto nem tão plenamente quanto Blade. Ele apoiou-se na cama e deslizou as mãos pelo corpo que se arqueava ao encontro de seu toque. ― Suave... e tão quente ― murmurou ele, acariciando a pele macia da coxa, até tocar o ponto mais sensível do corpo de Estelle. Ela gemeu de prazer e ergueu os quadris, procurando um contato maior. Queria ser preenchida por Blade e não aguentava esperar até que ele a penetrasse. Mas Blade não tinha pressa. Queria apenas torná-la consciente da presença dele dentro de seu corpo ávido, fazê-la implorar pela satisfação maior da penetração. Estelle continuava a arquear os quadris de encontro à mão dele, mas Blade recuava e tornava a invadi-la, provocando um frenesi que se aproximava da raiva. Ele a torturava, como sempre punindo-a ao lhe negar a satisfação rápida do desejo. O riso de Blade ecoava no quarto, enquanto ele afastava de seu corpo as mãos ávidas de Estelle, que queria tocá-lo. Prendendo os braços dela por sobre a cabeça, buscou os seios rijos e deixou neles as marcas de seus dentes. Era bom ouvir os gemidos de dor, enquanto negava-lhe o prazer final. ― O que você quer, boneca ― murmurava ele, rindo. ― Os meus dedos... ou o meu sexo... Ela devia ter imaginado que Blade a torturaria, punindo-a por ter lhe telefonado. Sentiu a mão dele descer sobre suas nádegas com violência e abafou os gritos no travesseiro. Já havia sido espancada outras vezes e sabia que, quando a dor se tornasse insuportável, ele voltaria a excitá-la até deixá-la bem perto de um orgasmo, e então voltaria a bater. Só quando a visse exausta e quase sem voz a possuiria de verdade. ― Ainda não, boneca. Sei o que você quer, portanto... trate bem dele ― murmurou Blade, forçando-a a acariciar seu sexo. Os cabelos loiros de Estelle contrastavam com a pele morena das coxas de Blade, e ele ria enquanto ela percorria com os lábios o mesmo caminho antes traçado pelas mãos. Quando sentiu-se prestes a perder o controle, ele afastoua de modo brusco e, virando-a de bruços na cama, a penetrou. Com um gesto

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automático, apanhou o travesseiro para abafar os gritos de Estelle durante o orgasmo. Já estavam longe os dias em que precisavam evitar que os pais a ouvissem, mas ele preferia ser o único a escutar aqueles sons profundamente eróticos. Estelle não dividia seu apartamento com ninguém, pois aprendera a não confiar em outras mulheres, que sempre acabavam por se entregar a Blade, e por valorizar a privacidade que lhe permitia participar dos mais ousados jogos eróticos. A luz da manhã começava a se infiltrar através das cortinas quando Blade se levantou da cama. Ainda permaneceu algum tempo examinando o corpo nu de Estelle, que adormecera exausta. A pele clara guardaria por algum tempo as marcas daquela noite, e o corpo sensual continuaria dolorido por muitos dias, forçando-a a lembrar-se dele. Com um sorriso satisfeito, Blade apanhou as roupas jogadas ao chão e começou a se vestir. Ele e Estelle jamais dormiam juntos. Era um relacionamento único, baseado apenas em sexo, e nunca haveria nenhum envolvimento emocional. Além disso, as duas garotas que deixara em sua cama ainda o esperavam... para mais algumas horas de prazer e depois o pagamento. ― O que foi, querida? ― perguntou Ryland, puxando Tara para junto de seu peito. ― Como percebeu que eu estava acordada? ― disse ela, evitando responder à pergunta. ― Simplesmente percebi. Está preocupada com sua mãe, não é? Tara aconchegou-se melhor, escondendo o rosto no peito de Ryland. ― Ela não fez nenhum comentário sobre minha ida para Boston, mas... o choque foi nítido em seu rosto. Seu olhar... ― Ela engoliu um soluço. ― Eu sei! Sinto-me tão culpada por estar deixando-a sozinha, porém não suportaria viver longe de você, querido. ― Nem pense que conseguiria escapar de mim. Eu a levaria comigo mesmo se fosse preciso sequestrá-la e arrastá-la para dentro do avião. ― Ele parou de brincar e encarou-a com seriedade. ― Se houvesse algum modo de mudar as coisas, se eu pudesse ficar aqui, juro que tentaria, mas não posso. Sou o único homem dessa geração de minha família. Meu tio era doze anos mais velho que meu pai e... se tivesse um filho, tudo seria diferente. Como isso nunca aconteceu, sempre ficou subentendido que, quando minha tia se afastasse dos negócios, eu assumiria o lugar dela. ― E a sua prima? ― perguntou Tara, referindo-se à filha única dos tios de Ryland. ― Margot não tem o menor interesse pelos negócios. Aliás, nunca quis saber de nada a respeito da empresa. Não é esse tipo de mulher. ― O que você quer dizer com isso? Tara sabia apenas que a prima de Ryland era sete anos mais velha do que ele e continuava solteira. ― Ela trabalha na empresa mas cuida dos arquivos com os originais de todos os livros que já publicamos. Entretanto, não se interessa pelo aspecto executivo da editora, não quer dirigir nada. ― Mas ela ainda pode se casar e ter filhos ― insistiu Tara.

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― Não, ela não vai se casar. ― Como pode ter tanta certeza, Ry? Sei que não é mais tão jovem, mas... ― Margot jamais se casará porque é impossível se unir ao homem que ama ― explicou Ryland, sem rodeios. ― Ela é apaixonada por Lloyd, filho de um irmão de sua mãe, portanto são primos em primeiro grau. A lei do Estado de Massachusetts proíbe casamentos com esse grau de consanguinidade, e minha tia jamais aceitaria que se casassem em um outro Estado. Ela se apaixonou quando tinha quinze anos e, desde então... bem, esse é um assunto que jamais é discutido em minha família. ― E Lloyd... também a ama? ― perguntou Tara, sem disfarçar a compaixão que sentia por aquela desconhecida. ― Bem, Lloyd casou-se e tem dois enteados. O temperamento dele é bem menos intenso do que o de Margot. ― Ryland suspirou. ― Ela chega a ser obsessiva em tudo qUe faz, sabe? Enfim, Lloyd vive na Califórnia, desde que minha tia abriu uma filial na costa oeste, publicando para a UCLA o mesmo material didático que publica para Yale e Harvard. Ela o encarregou de administrar tudo por lá. ― Ela o afastou de Margot, isso sim! ― O casamento dos dois é impossível... ilegal, Tara. Ela agiu assim pelo bem dos dois. Só que Lloyd conheceu alguém, decidiu casar-se e a situação ficou tensa, pois Margot teve um esgotamento nervoso. De qualquer forma, os dois passam todos os verões na ilha. É a ilha que meu avô comprou, a poucas milhas da costa e,.. ― A sua família tem... uma ilha, Ryland? ― perguntou Tara, chocada. ― É apenas um pedaço de terreno rochoso ― disse ele, tentando diminuir o impacto daquela informação. ― Ninguém menciona o fato, mas todos sabem que Lloyd e Margot se encontram lá, todos os verões. Tara sentiu um arrepio percorrer seu corpo, ao imaginar como seria trágico amar um homem e nunca poder viver com ele. No início do namoro, Ryland tentara diminuir a importância do papel que ele teria de desempenhar na empresa de sua família. Contara a Tara que havia ido para a Inglaterra a fim de aprender um pouco sobre o mercado editorial inglês, e então falara sobre a empresa da família. Seu bisavô abrira uma pequena editora cujo objetivo era apenas publicar textos didáticos e teses de seus amigos em Yale e Harvard. A empresa crescera e se ampliara, mas sempre mantendo uma ligação com as publicações universitárias. Depois da morte prematura do tio de Ryland, em um acidente com um veleiro oceânico, durante uma regata da qual ele participava, sua esposa, a tia assumira o lugar dele e passara a ser a diretora financeira. O pai de Ryland continuara com seu trabalho de sele-cionar manuscritos para a editora. Sob o comando da tia a empresa se tornara muito mais ampla e poderosa. Ela era realmente um génio financeiro, e os executivos de Boston a respeitavam demais... assim como Ryland. Na verdade, qualquer das famílias importantes de Boston, que se consideravam a nobreza de um país sem monarquia, adoraria ver uma de suas filhas se casar com o sobrinho de Martha Adams. Ryland não ignorava esse fato, mas jamais pensara em se prender... até conhecer Tara. Não havia

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passado mais do que algumas horas para ele perceber que encontrara a mulher de sua vida, a única mulher com quem se casaria. Talvez ele fosse mais parecido com sua prima Margot do que suspeitava! Havia algo na personalidade de Tara que a tornava muito especial, diferente de todas as outras. Era uma nuance de idealismo, talvez o resultado de ter sempre sido rodeada de amor e proteção de todos e de se saber profundamente amada e sempre valorizada. ― Eu entendo que você precise voltar ― murmurou ela, acalmando os temores de Ryland. ― Só gostaria que Boston não fosse tão longe. ― E não é, querida. Ele segurou-a pelo queixo, buscando os lábios doces de Tara, mas ela sacudiu a cabeça. ― Talvez não seja para nós, mas com certeza o é para mamãe. Eu percebi no olhar dela. Parecia quase... apavorada, entende? Nunca a vi assim antes, nem mesmo quando se separou de papai. Eu fiquei tão triste com a separação deles, Ry. Não quero que aconteça o mesmo conosco! ― Não vai acontecer, amor. Eu juro. Quanto à sua mãe... acho que só precisa de um pouco de tempo para se acostumar à ideia de você morar em Boston. Afinal, ela tem uma vida ativa e ainda é uma mulher muito atraente. Precisaremos de cerca de uma semana para nos instalar e talvez ela possa nos visitar imediatamente. O que acha? Antes que Tara pudesse responder, Ryland começou a beijá-la com paixão, e logo ela esqueceu-se de tudo para entregar-se ao prazer das carícias dele. Logo depois de terem descoberto que estavam apaixonados, Tara e Ryland foram passar um fim de semana ro- , mântico em uma pequena hospedaria à beira do rio Avon, em um quarto encantador com uma cama de dossel e uma lareira com um imenso tapete bem diante do fogo, onde havia espaço para fazer amor aquecido pelas chamas rubras. Eles haviam se amado pela primeira vez e Ryland a provocou, dizendo que jamais encontrara uma garota tão de-sinibida e impulsiva que tivesse aquela aparência de dama vitoriana. ― É porque estou apaixonada por você ― explicara ela, séria, sem perceber a brincadeira dele. Na verdade, ela sempre tivera emoções intensas e fora preciso a influência da suavidade de Cláudia para que aprendesse a moderar o lado impulsivo de sua personalidade, analisando um pouco além da gratificação imediata e avaliando as possíveis consequências de seus atos. Tara sentia-se privilegiada por ter herdado a intensidade passional do lado paterno e a força moderada do lado materno. Paixão e sensibilidade... era duas características que poderiam ser bastante incómodas se não tivessem sido aprimoradas pelos cuidados amorosos de pais atentos. Ela amava e dava um valor enorme a esses dois aspectos de sua personalidade, pois eram a sua herança emocional. Adorava saber que sua individualidade era formada por parte deles, assim como os filhos que teria com Ryland seriam uma soma dos dois. Sua esperança era que, algum dia, pudesse ver no rosto de seus netos a mesma atenção que existira no seu enquanto ouvia as histórias de seus avós, sobre os dias de uma juventude distante, quando o mundo era diferente. Também esperava que eles pudessem absorver, como ela o fizera, uma noção sólida da

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importância da família e da continuidade das gerações, uma sensação de segurança e paz, de calor humano e de certeza de pertencer a um clã. Ainda sentia os olhos se encherem de lágrimas, ocasionalmente, quando visitava os avós e via o olhar de orgulho e amor nos olhos deles, quando tocava objetos que conhecia desde a mais tenra infância: o aparelho de jantar de porcelana SEvres, que um parente de sua mãe trouxera da França; as medalhas recebidas por seu avô materno após a morte de um irmão na batalha do Somme, os lençóis de linho bordado que ambas as avós tinham ganhado na época do casamento e jamais usado, confessando preferir o conforto e a praticidade das roupas de cama mais modernas. Apesar de sua aparência moderna e de sua visão atual da vida, Tara dava uma importância enorme à família e sentia prazer em recordar o passado e seus antecedentes. Ryland logo percebera essa característica dela e esperava que a tia também a notasse, pois com certeza se sentiria mais inclinada a aprovar seu casamento. Talvez ele pudesse dispensar essa aprovação e a herança que a acompanhava, mas sentia que era seu dever assumir seu lugar na empresa familiar, para o qual fora educado desde muito cedo. Havia certos detalhes sobre sua família que ele não revelara a Tara, mas não tinham o poder de afetar seu amor por ela. Além disso, quem sabe se a prima Margot acabasse por mudar de ideia e desistisse de continuar solteira? ― Ryland está voltando para casa e vai trazer uma garota com ele. ― Uma garota? E quem é ela? Apoiando-se nos cotovelos, Lloyd ergueu-se para olhar o rosto da prima. ― Não tenho a menor ideia. ― Margot encolheu os ombros, desinteressada. ― Deve ser alguma garota que conheceu na Inglaterra. ― Então é algo sério? ― Nenhum relacionamento tem permissão para ser sério enquanto não for aprovado por minha mãe. Será que já se esqueceu disso? A expressão e a voz de Margot revelavam amargura e ressentimento. Ela sentou-se na cama e pegou o maço de cigarros na mesa de cabeceira. A luz clara da manhã à beira da praia revelava de uma ; maneira cruel a magreza angular do corpo de Margot. A ausência de curvas pronunciadas, que fora atraente na jovem, se transformara em uma magreza doentia na mulher adulta. Além disso, havia a expressão da amargura e frustração que a corroíam internamente, como se essas emoções intensas e destrutivas tivessem distorcido sua vida e consumido sua carne, com a mesma violência de uma doença fatal. ― Oh, Deus! ― exclamou ela, dando uma tragada funda e olhando para o homem ao seu lado na cama. ― Se ao menos as coisas fossem diferentes! Havia três anos de diferença entre os dois e três milhas de distância os separavam. Além de raros encontros, rápidos e em público, aquelas seis semanas passadas na ilha eram o único tempo que tinham para estar um com o outro. Todos os verões, fazia vinte anos, os dois iam para a ilha da mãe de Margot, tia de Lloyd, para se encontrarem longe de olhares indiscretos. Em alguns

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Estados americanos uma lei proibia o casamento de primos de primeiro grau, impedindo-a de realizar seu sonho mais caro. Na verdade, Margot já não saberia dizer qual era o sentimento predominante em seu coração durante essas tão sonhadas férias de verão: o amor ou o ódio. O amor se tornava mais intenso durante as separações prolongadas, mas o ódio parecia vir à tona quando estavam juntos, e ela admitia que estar naquela ilha paradisíaca significava que nunca poderia se casar com o homem que amava, que jamais viveria ao lado dele, como era seu maior desejo. Aliás, era também o desejo dele, pois Lloyd também sofria com a situação. Mas os dois sempre haviam sabido, antes mesmo de se apaixonar, que esse amor seria proibido. ― E se eu engravidar? Margot fitava Lloyd com um olhar em que se mesclavam o temor e a euforia. Tinham acabado de fazer amor pela primeira vez, sobre a areia macia, à sombra das árvores que orlavam a praia e os escondiam da casa da ilha. ― Não vai ficar ― afirmou Lloyd, explicando-lhe que havia tomado as precauções necessárias. Aquela tarde dourada fora a primeira vez e o início de um relacionamento torturante, de uma dor que jamais era aliviada. Mesmo quando estava nos braços de Lloyd, Margot não conseguia esquecer que essa proximidade era apenas temporária, pois muito em breve o verão findaria e teriam de voltar para suas vidas separadas. ― Fique comigo! ― implorara ela, em um verão distante. ― Eu não posso, e você sabe disso. Tenho a impressão de que Carole-Ann está começando a desconfiar. Na verdade, acho que seria melhor... ― Não! ― gritara Margot, antes que Lloyd pudesse colocar seu pensamento em palavras. ― Se ela suspeita de algo, temos de encontrar uma desculpa que a convença. Ela não pode nos separar, querido! Tem você ao seu lado todo o resto do ano e o verão nos pertence. Por acaso sabe o quanto tem sorte de ser sua esposa? Ah! Como eu desejaria... ― Sabe que é impossível, Margot. ― Por quê? Não é justo termos de viver assim para sempre! Não poderíamos viajar para um outro país e... ― Você sabe por que não podemos. Como iríamos viver? Nós dois dependemos da empresa familiar. ― O verão está passando depressa demais! Só faltam três semanas e você partirá. Oh, Lloyd! Eu não vou suportar! Desesperada, Margot começou a chorar. Lloyd fechou os olhos, sentindo um enorme cansaço. Nenhum dos dois era mais um jovem ardente e impetuoso. A filial da costa oeste, que fora criada apenas para separar os dois, crescera muito, tornando-se muito lucrativa, mas também muito trabalhosa. Claro que amava Margot e sempre a amaria, mas a intensidade da paixão dela e a dependência absoluta do amor dele começavam a cansá-lo. Não tinha mais idade para sentimentos tão intensos. As seis semanas que ambos passavam na ilha, sob o pretexto oficial de estar colocando a tia a par do desenvolvimento da filial da costa oeste haviam se tornado o acontecimento único da vida de Margot.

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― Se não fossem esses dias que passamos juntos, eu não teria mais vontade de viver ― repetira ela, muitas vezes. Entretanto, a cada ano que passava, mais sentia que não estava livre para viver sua própria vida. Quando ambos eram jovens, a paixão fora arrasadora. Os dois sofriam em cada minuto de separação e se entregavam a um sexo desenfreado quando estavam juntos. Mas agora não eram mais os mesmos. Ele estava quase com quarenta anos, e o que tinha para mostrar ao mundo e a si mesmo? Em termos materiais e na opinião das outras pessoas, ele podia ser considerado um sucesso. Tinha um emprego excelente, um magnífico carro importado, que trocava a cada seis meses, um considerável saldo bancário, um fabuloso apartamento de cobertura... E o outro lado da vida? E os aspectos subjetivos que não podem ser calculados em termos de dinheiro ou de posses materiais? Estava divorciado, tinha duas enteadas que quase não via, alguns amigos e Margot... ― Lloyd! ― exclamou ela, apaixonadamente. ― Diga que tudo vai dar certo para nós... algum dia! Diga que ficaremos juntos para sempre! Ele repetiu as palavras que Margot queria ouvir, mas percebeu que o cansaço era mais forte e não havia a menor convicção em sua voz.

CAPÍTULO IV O barulho continuava, insistente. Sonolenta, ' Cláudia tentou localizar de onde viria aque-le som agudo que acabara por perturbar seu sono pesado. O efeito dos dois comprimidos para dormir que tomara na noite anterior fora tão intenso que levou alguns minutos até perceber que o telefone estava tocando e mais alguns para conseguir segurar o fone. ― Cláudia? É Maxine. Está tudo bem com você? Fiquei preocupada quando não chegou, hoje cedo e... A voz da secretária estava decididamente preocupada, e Cláudia abriu os olhos, sentindo-se culpada por ter perdido a hora. Então ela viu o radiorrelógio e quase não acreditou no que via. Já passava das onze. Não era à toa que Maxine se assustara! ― Eu... eu sinto muito, Maxine. Pretendia ligar para você ontem, avisando que não iria ao escritório hoje cedo, pois pretendo trabalhar em casa. Não era bem uma mentira, pois ela de fato precisava organizar alguns papéis. Entretanto, já percebia que o trabalho não iria render muito. Cláudia dormira tão profundamente que, se tivesse tido algum pesadelo, não se lembrava de nada. No entanto, sentia-se tão cansada quanto se tivesse passado a noite em claro, debatendo-se na cama e se torturando com seus problemas insolúveis. O pior é que acordara sem energia e apática, uma condição que sempre a deixava enfurecida por ter cedido à fraqueza e recorrido a um remédio para dormir.

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Antes de perder a coragem e dormir de novo, Cláudia levantou-se da cama e correu para o chuveiro. Enquanto sentia o efeito revigorante da ducha, admitiu que o remédio, ao menos, a impedira de pensar no problema do dia anterior. Parando de se ensaboar, relembrou a alegria de Tara ao lhe revelar os planos que havia feito. O que ela fizera para preparar e proteger a filha tão querida do desastre que a esperava? As lágrimas deslizaram por seu rosto ao admitir que não fizera nada. Diante de uma crise, da necessidade de ser forte e independente, de enfrentar e dominar o perigo à sua frente, ela recuara, buscando a segurança de um comportamento passivo, mais apropriado à geração de sua mãe ao perguntar: "Já falou com seu pai?". Então ampliara sua cota de irresponsabilidade, tomando dois comprimidos para dormir e mergulhando num sono pesado e drogado, cujo único resultado concreto fora assustar sua assistente leal e trabalhadora. Mas o que poderia ter feito, o que poderia dizer? Afinal, talvez estivesse exagerando o problema, tendo uma reação excessiva diante de algo banal. Cláudia saiu do chuveiro e viu seu rosto refletido no espelho do banheiro. A angústia que sentia estava claramente estampada em sua fisionomia. A última vez que ficara assim fora quando ela e Garth tinham decidido se divorciar. Garth... Fora precipitada demais e reagira com um completo descontrole emocional ao telefonar para ele, na noite anterior. Soubera, através de Tara, que ele estava saindo com uma mulher nos últimos meses. A filha se lamentara, achando que a executiva de trinta e poucos anos não era a companheira certa para o pai. Como ela, Garth não tivera nenhum relacionamento sério desde que tinham se separado, mas os motivos não eram os mesmos. Ele era um homem extremamente atraente e sensual que, nos primeiros anos de casamento, não se acanhava de expor sua paixão, tanto por meio de emoções como de gestos misicos, em público. Todos ao amigos haviam comentado e sentido inveja da intensidade do amor que ele lhe dedicava. Talvez ele fosse um dos casos raros entre os homens de sua geração, provenientes de uma educação ainda repressiva, que conseguia se exprimir por meio de contatos físicos, tanto como amante quanto como pai, e Tara se parecia muito com ele nesse aspecto. Ela também não pensava duas vezes antes de abraçar e beijar as pessoas de quem gostava. Cláudia reconhecia que era bem mais contida, sempre esperando que o outro tomasse a iniciativa. Mas agora detestava se lembrar de como sentira falta do calor físico de Garth nos primeiros dias depois de ter descoberto a verdade. Costumava acordar no meio da noite, atormentada sempre pelo mesmo pesadelo cruel, e virava-se para o lado dele, instintivamente procurando o refugio seguro dos braços que nunca se recusavam a acolhê-la. Então, a realidade se impunha e ela se dava conta de que a agonia das horas des-pertas era ainda maior do que a dos sonhos maus. Tudo isso já passara, é claro. Era uma mulher de quarenta e cinco anos, mãe de uma jovem adulta e seria uma atitude reprovável e típica de adolescente desejar um con-tato físico e emocional que a reconfortasse. Já não era hora de sentir falta da intimidade amorosa de um amante ou de alguém muito próximo que a sua vida não mais permitia. Tomara a decisão mais acertada ao

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divorciar-se de Garth, aliás a única possível naquelas circunstâncias. Ele a traíra de uma forma absoluta, a enganara e mentira por tanto tempo que o impacto danoso causado em seu casamento jamais poderia ser superado. Então, por que o procurara na noite anterior, de uma maneira tão instintiva e natural? Ora... simplesmente porque Garth era o pai de Tara. Esse havia sido o único motivo de sua reação impulsiva. Convencida de que essa era a verdade, Cláudia caminhou para o quarto, com passos mais firmes, e começou a secar o cabelo. Desde que se separara, aprendera a proteger, com unhas e dentes, sua independência e sua capacidade de enfrentar o mundo sem ajuda de ninguém, não importa qual fosse a gravidade do problema. Não precisava de homem algum no qual pudesse se apoiar ou de quem recebesse um apoio emocional. Era auto-suíiciente e provara isso. Na noite anterior, entrara em pânico e tivera uma reação descontrolada. Por sorte, Garth não atendera ao telefone. Agora, à luz do dia, sentia-se muito mais forte, muito mais ela mesma! Mas a mão que segurava o secador voltou a tremer, e Cláudia forçou-se a manter a calma. Desligando o aparelho, respirou fundo e começou a contar até dez. É preciso recomeçar, disse a si mesma. Hoje é quinta-feira e já é quase meiodia. A manhã foi perdida, mas ainda resta a tarde e a noite. Mentalmente, procurou lembrar-se dos compromissos daquele dia. Tinha um almoço, informal e ao qual poderia não comparecer, uma reunião de planejamento às três da tarde e depois o único momento pelo qual realmente esperava: o encontro com o homem que iria redesenhar seu jardim. Cláudia ainda não conhecia esse paisagista, mas ouvira falar dele quando fora à exposição de flores de Chelsea, como convidada de um dos clientes de seu escritório, e se apaixonara pelo trabalho desse artista. Logo descobrira que ele era muito seletivo e só aceitava trabalhar com quem sentia alguma simpatia. Além do mais, seria preciso esperar no final de uma lista de espera muito longa. Mas sua persistência acabou sendo recompensada e teriam o primeiro encontro. Ela atravessou o quarto, pensando no jardim, e parou junto da janela. Nos fundos da casa havia uma área livre, onde eles tinham construído um estábulo. Logo ao se mudarem era um espaço malcuidado, com um gramado e alguns arbustos que separavam a horta do pequeno pomar. Quando Tara completou seis anos, tinham colocado uma linda casa de boneca em um dos cantos do jardim dos fundos. Era um presente de aniversário surpresa, e Cláudia passara um mês fazendo cortinas e almofadas para a mobília de tamanho adequado para uma criança. Depois de algum tempo, a filha insistira que se fizesse uma pequena cerca para resguardar o seu jardim particular, em torno da casa de boneca, desistindo do balanço que estragara completamente uma parte do gramado por muitos anos. Por insistência dela, Cláudia havia plantado uma roseira que acabara por cobrir a pequena casa de madeira.

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Tara se recusara a permitir que se destruísse seu refúgio infantil, no qual agora ela nem sequer caberia. Só no último Natal ela decidira que alguém poderia aproveitar aquele brinquedo encantador. Talvez essa atitude devesse ter alertado Cláudia. Talvez o instinto que todas as mães possuem e ela também julgara possuir em alto grau estivesse lhe dizendo que a filha não havia ultrapassado apenas a casinha de boneca, mas já estava pronta para abrir as asas e abandonar o ninho para sempre. Por que não prestara mais atenção nesses sinais? Estaria envolvida demais nos preparativos de Natal, na mistura única de urgência e planejamento, que sempre sentia nessa época do ano ou simplesmente se recusara a enfrentar a verdade? E se tivesse enfrentado o problema... o que poderia fazer? Impedir Tara de se encontrar com Ryland, forçá-la a não amá-lo mais? O jardim! Cláudia forçou-se a pensar no jardim. Afinal, ficara tão entusiasmada com os planos para reformá-lo completamente. Claro que ela se lembrava de quanto se dedicara a esse novo projeto. Passara os últimos meses consultando livros e revistas de jardinagem e se encantando com todo o tipo de estilo. Parecia uma criança em uma loja de doces, incapaz de decidir qual a apetecia mais! Sem dúvida, era melhor pensar no jardim do que se entregar ao pânico e ao terror provocados pela visita de Tara. Uma amiga a avisara para não colocar nenhuma carpa no lago ainda inexistente. ― Elas podem ser lindas, mas não permitem que nada cresça. Devoraram todas as plantas aquáticas que coloquei no lago e tinham a audácia de vir à tona me pedir comida todas as vezes que eu punha os pés no jardim! Cláudia queria um pequeno lago, um enorme canteiro de flores do campo e um caminho de pedras que levaria até um recanto mais íntimo, onde só plantariam flores brancas e talvez um salgueiro de ramos pendentes. Ela tentava, desesperadamente, visualizar o jardim, mas a imagem da filha contando que pretendia ir para Boston surgia à sua frente com muito mais clareza. Convencida de que nada afastaria o problema e que ela não conseguiria pensar mesmo em outro assunto, Cláudia tentou não entrar em pânico novamente. Precisava manter a lucidez e pensar. Ah! Ela precisava mesmo era de tempo! Tempo para pensar, tempo para...

CAPITULO V Garth saiu de Londres um pouco mais tarde do que desejava, em função do telefonema urgente de um cliente. Como se já não bastasse esse atraso, encontrou vários desvios na estrada que o fizeram perder mais uma hora. O resultado foi que já passava do meio-dia quando finalmente chegou a Upper Charfont.

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Sua bela e antiga casa da época georgiana, estreita mas com três andares, com um pequeno jardim e janelas que davam para o rio, era parte de uma área que fora tombada pelo património histórico. O arquiteto e o restaurador responsáveis pela renovação do bairro original tinham sido clientes seus e o haviam alertado sobre a possibilidade de fazer um ótimo negócio imobiliário, além de ser o lugar perfeito para morar. Nos últimos anos, ele não passara tanto tempo quanto desejaria em sua encantadora casa. O período de recessão económica exigira uma dedicação absoluta ao trabalho e tivera que viver em Londres praticamente sem interrupção. Só tomava providências para dirigir os negócios com base em Upper Charfont durante os feriados e as férias escolares de Tara. Cláudia fora imparcial e meticulosa em todos os aspectos relativos ao divórcio, e, como não poderia deixar de ser, também encorajou a filha a passar o maior tempo possível com ele. Não fora forçado a se submeter aos tão odiados "direitos de visita" e a uma fria divisão de dias de convivência. ― Afinal, Tara é sua filha! Cláudia se dirigira a ele com uma voz muito calma e baixa, com os ombros eretos e o rosto semi-oculto pelos cabelos. Se ele não a conhecesse tão bem, jamais teria adivinhado que estava chorando enquanto lhe falava. ― Ela o ama muito e precisa de uma presença paterna atuante em sua vida. O dia amanhecera lindo e, ao meio-dia, o sol banhava o pitoresco vilarejo. Era dia de feira em Upper Charfont, e por toda a parte viam-se turistas e moradores do local, com roupas descontraídas e carregando pacotes de compras. Essa era uma das ocasiões em que se arrependia de ter seguido o exemplo do príncipe de Gales, comprando aquele Aston Martin, um carro que chamava a atenção demais. Garth percebeu olhares de inveja dos desconhecidos e foi cumprimentado por conhecidos desde o momento em que entrou na cidade. Felizmente, ele encontrou um lugar bem em frente ao escritório de Cláudia. Estava certo de que, àquela altura, sua chegada a cidade já teria ido parar nos ouvidos de sua ex-esposa. Garth evitava elogiá-la porque sabia que suas palavras seriam muito mal recebidas e provocariam um atrito desnecessário. Defendida pela atitude fria e muito distante que assumira desde a separação, ela lhe diria que já não tinham uma vida em comum, portanto não havia motivo algum para saber qual era a opinião dele a respeito de qualquer detalhe que lhe dissesse respeito. A verdade é que se orgulhava demais de tudo que ela conseguira, não apenas do fato de ter aberto sua própria firma e de tê-la tornado um sucesso como também de vários outros aspectos. Cláudia era uma conselheira compreensiva e sensível, uma ótima amiga, uma filha e nora amorosa, além de ser uma mãe perfeita. Uma turista viu o homem atraente que descia do magnífico carro esporte e sentiu uma enorme curiosidade em saber quem seria e por que tinha uma expressão de tanto sofrimento no rosto másculo e sensual. Teve certeza de que, não importa quem fosse ele, deveria haver uma fila de mulheres dispostas a alegrá-lo, fazendo-o esquecer o que o preocupava. Maxine Jarvis, a assistente de Cláudia, estava na recepção quando ele entrou.

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― Sinto muito, mas Cláudia não está aqui ― disse a jovem sorrindo. ― Ela decidiu trabalhar em casa hoje. ― Não tem problema... Apesar do tom bem-humorado, Maxine notou que Garth franzira a testa, preocupado, ao ouvir suas palavras. Por alguns segundos, pensou em ligar para Cláudia a fim de avisá-la que o ex-marido aparecera no escritório à procura dela, mas logo desistiu da ideia. Lembrava-se claramente demais da atitude distante e fria que se sobrepunha à habitual expressão amável da chefe sempre que alguém mencionava Garth ou o casamento dos dois. Era melhor não se intrometer e deixar que eles se entendessem. Como todos que conheciam Cláudia, também Maxine admirava o modo como ela conduzira o divórcio, o qual fora causado, se é que se podia acreditar nos boatos, pela infidelidade de Garth. Apesar da raiva inevitável e compreensível provocada por essa traição, ela impedira que essa emoção interferisse no relacionamento de Tara com o pai. A maioria das mulheres não seria tão justa nem tão magnânima ou disciplinada a ponto de controlar os próprios sentimentos, não importa quão penoso fosse, e capaz de colocar os da filha sempre em primeiro lugar. Mas por que se espantar? Cláudia sempre fora a mais dedicada das mães! Maxine lembrava-se que, embora trabalhasse muito e adorasse o que fazia, ela sempre colocara as necessidades de Tara antes de qualquer outro compromisso, mesmo com risco de perder alguns clientes. Os amigos que sugeriam, sempre pelas costas de Cláudia, que ela também colocara os desejos e os caprichos de Tara antes dos de Garth e por isso o casamento não durara, não eram realmente amigos, .na opinião de Maxine. Garth continuava com a testa franzida quando entrou na alameda que levava a Ivy House. Saindo do carro, ele caminhou para a porta da frente e, antes de bater, mudou de ideia e deu a volta na casa até chegar ao jardim de inverno que haviam agregado à construção original para comemorar seu décimo aniversário de casamento. Ele parou para apreciar a construção, toda de vidro, e viu o sapo de bronze que Cláudia dera de presente a Tara naquele mesmo ano e que ainda permanecia junto da porta, como uma sentinela. Com um gesto que o levava de volta ao passado, tateou a mão sobre a estátua e encontrou a chave que procurava. Ele e Cláudia haviam se divorciado de uma maneira civilizada, sem os traumas arrasadores e as agressões que levam os ex-cônjuges a trocar as fechaduras. E, sem dúvida, certos hábitos duram mais do que outros, pensou ele, sorrindo, enquanto abria a porta do jardim de inverno. Na verdade, ele não acreditava nem temia que Cláudia o impedisse de entrar na casa. O relacionamento deles continuava a ser educado, embora frio e distante. Entretanto, queria apenas... Queria apenas o quê? Surpreender Cláudia? Chegar sem avisar e sem lhe dar tempo para erguer as habituais barreiras que o impediam de se aproximar, ver o rosto nu, sem a máscara que ocultava-lhe as emoções? ― Por quê? ― perguntara ele, com veemência, durante os primeiros anos após o divórcio. ― Por que precisa me tratar com essa polidez distante, com mais frieza do que se eu fosse um estranho pouco confiável? Afinal, fomos...

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― É porque eu preciso ― explodira ela, furiosa. ― E preciso porque, se não o fizer, deixarei transparecer exata-mente o que penso a seu respeito. Não posso permitir que isso aconteça, Garth, pelo bem de Tara! ― Você realmente me odeia tanto assim? ― perguntara ele, chocado. ― Mais do que pode imaginar. ― Alguma pessoas dizem que amor e ódio são os dois lados de uma mesma moeda, sabia? Onde há um, existe o outro. ― Pois se engana. O ódio substituiu o amor ― corrigira ela, com um sorriso desdenhoso. ― Sinto ódio de você e ainda mais de mim mesma por ter sido idiota em amá-lo a ponto de confiar em sua integridade. Maxine havia dito que Cláudia estava trabalhando em rasa, mas não vinha som algum da sala que ela transformara em escritório, depois do divórcio. A ausência total de sons e de atividade provocaram um súbito pânico em Garth. O simples fato de Cláudia ter lhe telefonado na noite anterior era um sinal claro de que ela realmente se descontrolara. Aliás, não seria nem necessário o alerta desse telefonema, pois imaginava bem demais o efeito devastador provocado pelos planos de Tara. Aqueles aposentos sob um manto de silêncio alarmante lhe pareciam um lugar estranho, muito diferente da casa cheia de calor humano e ecoando com os ruídos alegres da infância de Tara. Subitamente ele sentiu uma inexplicável urgência e começou a subir a escada de dois em dois degraus. Mais tarde, Cláuflia justificou a si mesma que sua resposta automática ao ouvir a voz de Garth ― que a impelira a escancarar a porta do quarto, apesar de estar apenas embrulhada em uma toalha ― era apenas uma reação mecânica e nada além disso. Ela só se deu conta do insólito da situação quando Garth chegou ao patamar e a fitou, preocupado. ― Garth? O que você está fazendo aqui? Cláudia sentiu que enrubescia como uma adolescente culpada. Acabara de perceber que o fato de ainda continuar em casa e sem ter se vestido revelava, com toda a clareza, o seu estado de intensa perturbação... principalmente para alguém que a conhecia tão bem quanto Garth. O alívio que ele sentiu ao ver que Cláudia estava bem foi de curta duração. Era evidente que ela ficara transtornada com sua inesperada aparição e enrubescera violentamente, olhando de maneira furtiva para o quarto, como se... ― Por que não foi trabalhar hoje cedo? ― perguntou ele, sem disfarçar a suspeita. Cláudia o fitou com frieza. ― Não é da sua conta ― respondeu ela, virando-se para entrar de novo no quarto. Mas Garth a seguiu. ― Não é mesmo? Ele parou no meio do quarto e .viu a cama, impecavelmente arrumada, sem nenhum sinal de uma presença masculina. O secador de cabelos de Cláudia repousava sobre a penteadeira, junto da lingerie que continuava dobrada. ― O que você está procurando? ― explodiu ela, irritada com aquela invasão de privacidade.

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Com um olhar de relance, Cláudia examinou a mesa de cabeceira e suspirou aliviada. Por sorte guardara os comprimidos para dormir. Não que os remédios que tomava fossem da conta de Garth, mas conhecia-o bem demais e sabia como ficaria preocupado e irritado se os visse! ― Não estou procurando ninguém... nada ― negou ele, precipitadamente, percebendo que se traíra, revelando os motivos de sua reação machista e hostil. De fato imaginara encontrar alguém ria cama de Cláudia? , Talvez conseguisse aceitar a existência de um outro homem no quarto dela... racionalmente. Ficara evidente que, apesar de tantos anos de separação, ainda não estava preparado para admitir, emocionalmente, a possibilidade de alguém importante na vida da ex-esposa. ― Você me telefonou, ontem à noite ― declarou ele, sentindo que começava a ficar mais calmo. Ela evitou fitá-lo e encolheu os ombros, num gesto de indiferença. ― Telefonei? Bem, eu nem... ― Não banque a criança ― replicou ele, irritado. ― Eu não lhe fiz uma pergunta, declarei um fato constatado. Você me telefonou e eu sei bem por que motivo. Tara lhe contou que vai se casar com Ryland. ― É verdade, ela me contou, e eu realmente lhe telefonei. ― Cláudia continuava sem fitá-lo, mantendo o olhar em algum ponto no outro extremo do quarto. ― Mas o que não entendo mesmo é essa atitude absurda de invadir minha casa, agindo como se fosse um personagem de um drama de segunda categoria! ― Pare de inventar desculpas e de fugir do assunto, Cláudia. Eu sei por que me telefonou e não há motivo algum para se sentir envergonhada ou achar que foi uma fraqueza de sua parte. Se precisava... ― Eu não preciso de nada e de ninguém. Acima dé <j;udo... não preciso de você! ― ela o interrompeu, indignada. ― Jamais me permitiria precisar de um homem em quem não se pode confiar, um homem que... ― Não se permitiria? ― exclamou ele, furioso. ― Não é vergonhoso sentir medo, ser vulnerável ou procurar a ajuda de alguém! ― Quero que vá embora, Garth. Quero que saia imediatamente de minha casa. Transtornada, Cláudia se encaminhou para junto da janela, dando as costas a Garth. Aquela situação absurda era a gota d'água! Simplesmente não tinha reservas emocionais para enfrentar mais esse problema depois do abalo sofrido na noite anterior. Sentia que o coração batia forte como se quisesse saltar de seu peito, que a garganta parecia ter se contraído, dificultando até a passagem do ar e que as palmas de sua mãos haviam ficado molhadas. Em questão de segundos perderia o controle e revelaria o que estava sentindo, deixando vir à tona todo o pânico, o desespero e o medo quase parali-sante. Na verdade, Garth era a última pessoa no mundo a quem permitiria saber seu verdadeiro estado de espírito. Será que ele não sabia, ou não queria compreender, a verdade? A cada uma de suas recordações de um passado partilhado sobrepunha-se a imagem que ela criara, retirando os elementos dessa visão da parte mais sombria e sórdida de sua imaginação... a imagem de Garth na cama com a outra, fazendo amor, com o rosto transfigurado de prazer, possuindo-a com paixão. Essa cena era uma

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doença letal, enterrada bem no fundo de sua mente e que vinha à tona, como a lava de um vulcão, superando o controle e a disciplina. Com muito esforço conseguira transformar essa dor intensa em um latejar incómodo, mas quando o via tudo voltava com uma nitidez brutal, reduzindo-a a um ser irracional dominado por um ciúme corrosivo e uma amargura infinita. -Ouça, Claudia...sei como deve estar se sentindo. Em vez de acatar a ordem dela e ir embora, Garth aproximou-se mais. ― Não! Não sabe mesmo o que estou sentindo, Garth! E como poderia? Ninguém saberia... muito menos você! Cláudia percebeu a histeria latente em sua voz. Maldito Garth! Por que tivera de fazer isso, por que fora vê-la de surpresa, destruindo o pouco controle que lhe restava? ― Tara também é minha filha. Logicamente também sentirei falta dela. ― Sentir falta de Tara? Não é por esse motivo que estou tão... ― Incapaz de continuar, Cláudia respirou fundo para se acalmar. ― Não sei o que veio fazer em minha casa, Garth. Tenho um dia cheio de compromissos e preciso me vestir ou acabarei me atrasando.. ― Por que me telefonou ontem, Cláudia? Forçando-se a mostrar que a presença dele não a perturbava, Cláudia virou-se de frente. ― Foi um erro ― disse ela, com voz mais calma. ― Eu... ― Discou o número errado? ― interrompeu ele, com um sorriso sarcástico. ― Francamente! Cláudia negou essa sugestão com um gesto de cabeça. Garth sabia muito bem que não fora esse o caso. Ambos não ignoravam que isso não acontecera. ― Foi um erro ― repetiu ela. ― Não, não foi erro nenhum. Você me telefonou porque, contrariando o hábito, suas emoções foram mais fortes do que sua frieza, seus verdadeiros sentimentos superaram a indiferença. Ligou porque estava com medo... porque precisava de mim... ― Pois está muito enganado. Eu não preciso de você, Garth. Deixei de precisar há muito tempo! ― Precisava de mim como pai de Tara ― prosseguiu ele, como se não tivesse sido interrompido, como se não tivesse sequer ouvido as palavras de Cláudia. ― Clo... O uso inesperado do apelido que ele lhe dera quando ainda eram namorados provocou uma dor tão inten.sa que Cláudia estremeceu, enquanto as lágrimas afloravam. Com um gesto rápido, Garth puxou-a para junto de si e a abraçou com ternura. Cláudia ainda tinha o mesmo perfume, um aroma suave de flor, que se sobrepunha a todas as colónias que usava. Ainda parecia se ajustar com perfeição entre seus braços, feminina, frágil e sensual, a única mulher a quem ele amara e a que mais desejara... embora soubesse que ela jamais acreditaria nisso. ― Está tudo bem, Clo ― murmurou ele, mergulhando o rosto nos cabelos macios.

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Subitamente, sentiu-se transportado para um outro lugar, uma outra época e uma vida tão diferente, quando tinha o direito de tocá-la e de prendê-la em seus braços. A força da memória... e do instinto... pode ser poderosa e sem piedade. Com os olhos fechados e o corpo ainda tenso pela raiva e pela rejeição do gesto carinhoso, os sentidos de Cláudia registraram o tom da voz dele, reconheceram o desejo e, como Garth, sentiu-se transportada para o passado, quando uma simples inflexão era o suficiente para excitá-la, quando não resistia ao toque mágico daquelas mãos tocando seu corpo. Sentindo-a relaxar, Garth curvou a cabeça e se apoderou dos lábios trémulos que esperavam seu beijo. Era tão bom sentir a maciez dos lábios de Cláudia... Suas mãos deslizaram pela pele macia dos braços esguios, e ele começou a deslizar a língua pelo contorno da boca sensual, esperando que se entreabrisse. Era um sinal íntimo de um código pertencente apenas a eles dois, uma mensagem cifrada indicando que a invasão ardente da boca ávida apenas precedia a posse total e a fusão de seus corpos. A porta de um carro bateu, a distância, e Cláudia voltou à realidade. Horrorizada com sua fraqueza, tentou escapar dos braços de Garth. Ela estava com quarenta e cinco anos! Aquele comportamento ávido e abertamente sexual era típico de adolescentes! Nem ela nem Garth estavam mais na idade! ― Solte-me! ― exigiu ela, empurrando-o com mais força. ― Não suporto que me toque... ― Não é verdade! Garth percebera que Cláudia estava deliberadamente nutrindo sua própria raiva, e também a dele, a fim de mascarar emoções muito mais complexas. Ao mesmo tempo, chocou-se ao perceber como fora ameaçadoramente fácil permitir que as emoções caíssem na armadilha de acreditar em uma volta no tempo, aceitando uma miragem perigosa que era uma ficção muito diferente da penosa realidade. ― Sim, é verdade ― insistiu Cláudia, com uma expressão gélida. Ela aprendera a congelar seus sentimentos, a se anestesiar, pois só assim conseguira escapar do sofrimento e ter forças para viver quando... ― Não suporto sequer que me toque, Garth! Não tolero isso porque, sempre que acontece, é ela que eu vejo. Imagino você acariciando a outra e fico enjoada... ― Pois quem está enjoado sou eu! ― explodiu ele, com intensa amargura. ― Enjoado de ser tratado como um leproso, de ser considerado um cafajeste sem moral que nunca teve nenhuma integridade. Eu tentei lhe explicar, procurei lhe dizer que não foi como você imaginou. Não consigo nem me lembrar de ter tocado essa mulher, quanto mais... ― Ora! Então não se lembra de nada? ― Cláudia percebeu que estava à beira de um descontrole total. ― Esqueceu-se que a possuiu no nosso quarto, na nossa cama? Ela ouviu sua própria voz, alterada e quase histérica. Estava tão fora de si como no dia em que descobrira a traição de Garth.

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― Cláudia, por favor... ― murmurou ele, sentindo-se impotente diante da fúria feminina da ex-esposa. ― Vá embora! Não quero mais nada, só que saia agora mesmo de minha casa. Sei que veio porque agora se sente vingado... ― Por Deus! Que espécie de homem pensa que eu sou? Nunca pensei em zombar da situação em que você está agora. ― Então veio para me recordar que cansou de me prevenir sobre uma situação como essa? Agora deve estar se sentindo satisfeito, gratificado por saber que suas palavras foram proféticas. ― Eu não vim procurá-la por nada disso, Cláudia. Senti que talvez você precisasse de alguém com quem pudesse conversar. Fiquei preocupado. ― Não menospreze minha inteligência, Garth. ― Ela deu uma gargalhada aguda. ― Preocupado com quem? Com a esposa, a mulher, a quem você traiu tão facilmente? Falou de mim enquanto estava se divertindo na cama com ela? Disse-lhe que estava preocupado comigo, entre uma carícia e outra? Ah, mas eu me esqueci! Não se lembra de ter feito amor com outra mulher, não é? Então, não pode mesmo lembrar de ter mencionado sua adorada esposa. ― Pelo amor de Deus, Cláudia! Eu vim até aqui para conversarmos sobre Tara, sobre nossa filha. Ele prendeu a respiração, esperando mais uma resposta enfurecida de Cláudia. Quando percebeu que não seria novamente agredido com palavras furiosas, voltou a respirar. ― E não é sobre ela que estamos falando? ― perguntou Cláudia, com uma suavidade ainda mais ameaçadora do que a raiva. Os dois se fitaram, em silêncio, por um longo tempo, e foi Garth quem desviou primeiro os olhos. ― Cláudia... Ela apenas balançou a cabeça, negando-se a continuar aquela discussão. Finalmente conseguira controlar a tormenta emocional que se apossara dela. Não permitiria que Garth a provocasse e a forçasse a se expor outra vez, através de um desabafo humilhante. ― Preciso me arrumar para sair, Garth. Já estou atrasada. Bastou um olhar para Garth admitir que estaria perdendo seu tempo se tentasse dialogar com Cláudia. Desanimado, desistiu de continuar e saiu do quarto, resmungando baixinho. Com certeza não soubera manejar aquela situação! Debaixo da aparência calma e polida de sua exesposa havia o mesmo orgulho e o espirito indomável que tornara o pai dela um militar respeitado por mais de uma geração. Mas a inflexibilidade paterna era temperada, no caso de Cláudia, pela sensibilidade feminina que consegue perceber matizes sutis na vida, em vez de vê-la apenas como algo em preto e branco... em todos os detalhes, menos nos que se referissem a ele! Enquanto saía da casa e se dirigia para seu carro, lembrou-se de que quanto maior o amor, maior o ódio diante de qualquer traição. Ele a traíra de uma forma indesculpável, mas sempre existem dois lados em cada moeda. Cláudia nunca estivera, nem estaria preparada para ouvir sua versão da história. Depois de ter perdido o bebê, Cláudia voltara para casa tão deprimida, tão voltada apenas para seu próprio sofrimento que nem sequer percebera o

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quanto ele também se sentira abalado. Mas de que adiantaria reviver tudo agora? Por que pensar em um passado que já deixara de existir? Os dois não tinham mais nada em comum, tudo terminara. Só o amor por Tara ainda os unia. Tara... Enquanto dirigia o carro pela alameda, Garth percebeu que algo obscurecia sua visão. Eram lágrimas, mas aprendera que homens não choram. Lembrarase de ter dito essas palavras quando Cláudia colocara a pequenina Tara em seus braços pela primeira vez. Ao segurar aquela criança frágil e diminuta, sentira um anseio incontrolável de protegê-la para sempre. Agora sua filha era uma mulher adulta, não mais uma criança a quem se pode manter ao abrigo dos perigos do mundo. Já não estava em suas mãos a possibilidade de lhe garantir uma vida segura e sem problemas. Cláudia tentou focalizar a luz do telefone, que piscava sem parar. Ela tentou analisar suas emoções e chegou à conclusão de que o sentimento predominante era o de terror. Por quanto tempo teria ficado imóvel, com o olhar perdido no espaço, diante do aparelho? Havia quantas horas, ou minutos, que Garth fora embora? Ela se sentia vazia, gasta e, ao mesmo tempo, sob um peso imenso quê parecia pregá-la ao chão. A dor se tornara tão avassaladora que a paralisava, tirando toda a sua energia. O telefone parou de tocar. Sem dúvida, a pessoa voltaria a ligar. Ainda estava enrolada na toalha que apanhara ao sair do chuveiro. Ela começou a tremer de frio. Através da janela avistava o jardim dourado pelo sol da tarde, mas já não conseguia sentir nenhuma vontade de transformá-lo em um recanto mágico, rico de cores e de perfumes. Na verdade, nem sequer via o que estava além da vidraça. Sempre detestara discussões e brigas. Depois de uma delas, sentia-se desorientada, fisicamente esgotada e emo-cionalmente gasta. O confronto com Garth, inesperado e num momento de depressão, duplicara o efeito traumático sobre seu sistema nervoso. Como uma sonâmbula, começou a se vestir, mas seus olhos permaneciam fixos na pequena mesa onde ficava sua coleção de fotografias em requintadas molduras. Eram todas de Tara... no batizado, nas festas da pré-escola, nos bailes da adolescência, na cerimónia de formatura. Ela apanhou a chave do carro junto de um dos porta-retratos e dirigiu-se para a porta do quarto. Estava vestida, embora não soubesse que roupa escolhera, nem se importasse com isso. Todas as vezes que pensava em Tara sentia uma dor angustiante. Enquanto descia as escadas ouvia a voz ansiosa em seu íntimo avisando-a de que marcara inúmeros compromissos e não poderia faltar a nenhum deles. Cláudia decidiu ignorar esses alertas. Havia algo mais importante a fazer e um lugar ao qual precisava ir. O telefone em sua escrivaninha começou a tocar, e Lloyd o atendeu, automaticamente. ― Lloyd! Quando você vai voltar para a ilha? Ele sentiu um profundo desânimo ao reconhecer a voz de Margot. Percebeu que ela estava chorando e era capaz até de imaginar a cena.

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Margot devia estar na cama, os olhos escuros brilhando como se estivesse com febre e o corpo magro enrodilhado em posição fetal. O rosto dela adquirira ângulos duros, dando-lhe uma expressão ávida, quase voraz. Mas Lloyd, mais que qualquer pessoa, sabia que a fome de Margot não era por comida. ― O verão é nosso momento ― continuou ela, angustiada. ― O meu tempo de ficar ao seu lado. Aliás, a única oportunidade que temos de viver juntos. Não suporto estar aqui sem você! As palavras vinham rápidas, como um gemido longo e atormentado, emanando uma dor que o agredia fisicamente. ― Eu tive de voltar, Margot, mas estarei na ilha no final da semana, talvez no sábado. ― Só no sábado? Isso significa que perdemos uma semana inteira! Telefoneme hoje à noite. Estarei pensando em você. Lloyd desligou o telefone, sem fixar a atenção em nenhum, dos detalhes de sua sala. Normalmente, ele fechava o escritório para as férias de verão. Afinal, o campus da faculdade ficava deserto e ninguém pensava em monografias ou obras académicas durante esses meses. O grande movimento da editora, tanto na Califórnia quanto em Boston, girava em torno de trabalhos e teses de professores e de estudantes, cujos trabalhos eles publicavam havia muitas décadas. Mas sua assistente lhe telefonara, pois ficara de tal forma entusiasmada com um manuscrito recebido durante sua ausência que ele concordara em interromper as férias e voltar à Califórnia a fim de conversar com o autor e ler a tese. Por isso Margot protestara, implorando-lhe que não a deixasse. ― Temos tão pouco tempo para ficar juntos! Era a pura verdade, mas algo mudara. Nos últimos verões, Lloyd descobrira que a intensidade do amor e da dependência de Margot lhe provocavam uma incómoda sensação de claustrofobia. Isso não acontecia porque a amasse menos, é claro! Como poderia? Ela desistira de tanto por sua causa, pelo amor que os unia, ao ponto de... Empurrando a cadeira da escrivaninha Lloyd foi até a janela do escritório. Ele morava à beira-mar, e seu apartamento tinha uma vista magnífica do oceano Pacífico. Sempre que lhe sobrava algum tempo, adorava andar na praia. Quando eram mais jovens, suas enteadas não perdiam a chance de acompanhá-lo, mas estavam quase adultas, estudando na UCLA, e com programas muito mais interessantes do que visitar o padrasto. Infelizmente, ele não tivera filhos com Carole-Ann. Sempre imaginara que gostaria muito de ser um pai de verdade. Adorava crianças, mas, durante os anos em que estivera casado, parecia estar traindo Margot ao ter relações sexuais com Carole-Ann, embora esta fosse sua esposa. Afinal, seu casamento fpra uma espécie de contrato comercial. Julgara que a presença de uma mulher e de filhas lhe daria uma situação estável, bastante necessária em sua profissão. Ela saíra de um casamento fracassado e de dois relacionamentos traumatizantes. Não queria sexo, e sim segurança emocional e financeira para si mesma e para as duas meninas, ainda bem pequenas.

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Margot odiara o fato de ele se casar com Carole-Ann. Recusara-se a conhecê-la e não fora ao casamento. Logicamente, Carole-Ann sempre soubera da existência de Margot, pois ele colocara as cartas na mesa ao lhe oferecer um casamento de conveniência mútua. ― Eu te amo, mas não podemos nos casar. ― Não em alguns Estados ― havia dito Carole-Ann ―, mas podemos mudar, sair do país... ― Não. Nenhum de nós desejaria viver longe da família e dos amigos, como se estivéssemos no exílio. Margot é uma pessoa sensível demais... Ele não sabia até que ponto deveria revelar a Carole-Ann e acabou decidindo que não era necessário explicar toda a verdade. Preferiu não dizer que as pressões provocadas pelo amor deles a haviam levado muito perto de um colapso nervoso. ― Eu não posso viver sem Lloyd... não posso! ― gritara ela, histérica, quando a mãe interferira em seu romance adolescente, lembrando-a que a lei proibia o casamento dos dois. ― Se tentar nos separar, juro que me matarei! Tanto Lloyd quanto a mãe de Margot sabiam que ela realmente cumpriria a ameaça. Naquela época, ele a amara com idêntica intensidade, mas sempre existira lugar para outras atividades em sua vida. Praticava esportes, participava de regatas e tinha uma vida social normal. Então Margot demonstrara muito ciúme, além de uma amargura incontrolável, diante dos compromissos dele no período em que viviam separados, e Lloyd se afastara de tudo e de todos, a fim de aplacá-la. O mais estranho foi que a ideia de um casamento com outra mulher partira dela. As pressões familiares acabaram forçando-o a concordar em ir para a Califórnia. Logo após sua partida, Margot fez uma greve de fome até a mãe concordar em lhes ceder a ilha durante as férias de verão e permitir que passassem as férias juntos. ― Por que você quer que eu case? ― perguntara Lloyd, sem disfarçar a surpresa, quando ela tocara nesse assunto. ― Porque assim as pessoas param de criar problemas para nós ― declarou ela, com a costumeira intensidade passional. ― Mas... e a minha esposa? ― Não quero que você a chame assim ― gritara ela, furiosa. ― Mulher alguma pode ser sua esposa... só eu. Essa pessoa simplesmente se casará com você, será um contrato, um casamento de conveniência, nada mais. Lloyd rira muito da ideia de Margot. Naquele período da vida de ambos, sentia-se muito indulgente com as manias dela. Depois de se mudar para a Costa Oeste, assumira a responsabilidade total dos negócios e se julgava um homem maduro, enquanto ela continuava sendo uma garota, muito amada mas superprotegida. Então, ele conhecera Carole-Ann, e a sugestão de Margot começou a lhe parecer sensata. No fundo, Lloyd era como seus antepassados, os cavalheiros da Nova Inglaterra que salvavam donzelas em apuros. No início, Margot achara a ideia ótima. Só mais tarde, depois que ele pedira a mão de Carole-Ann, tinha começado a fazer perguntas e a lhe telefonar

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dezenas de vezes, a qualquer hora do dia ou da noite ― um hábito que persistira mesmo depois do casamento. ― Olhe... eu não me importo a mínima se ela perturba seu sono ― dissera Carole-Ann, no meio de uma discussão acalorada ―, mas não quero que essa louca me incomode ou que acorde as meninas. ― Ela me ama... ― protestara Lloyd. ― Ela é louca, obcecada ― interrompera Carole-Ann, furiosa ―, possuída pela ideia de nutrir um sentimento único por você, mas isso não é amor! Na minha opinião, ela não tem condições de saber o que significa isso. Se realmente o amasse, desejaria viver ao seu lado sempre, ter uma vida verdadeira ao seu lado, não importa onde. Aquele tinha sido um dos piores verões e, sem dúvida, o pior ano de sua vida. Seis semanas após seu retorno da ilha, recebera um telefonema histérico de Margot. ― Mas você não pode estar grávida ― protestara ele, chocado, agarrando o telefone enquanto seu coração disparava. ― Estou com um atraso de cinco semanas! ― gritara Margot. ― É mais de um mês... oh, Deus! O que vamos fazer, Lloyd? Após uma semana de intenso nervosismo, Margot descobrira que tudo não passara de um alarme falso, e, após alguns dias, comunicou-lhe a decisão de que desejava ser esterilizada. ― Não, Margot! ― protestara ele, instintivamente, convencendo-se que a sensação de asfixia provocada pela notícia fora causada pelo amor e não por sentir que uma corda estava sendo colocada em torno de seu pescoço. ― Você pode encontrar alguém, querer se casar, ter filhos. ― Não! ― A voz dela parecia a de uma fera ferida. ― Eu jamais me casarei, jamais! O único homem a quem quero é você, e o único filho que desejaria ter seria com você. Está me dizendo isso porque já não me ama mais... não quer mais saber de mim... ― É claro que eu a amo. No final daquele ano, Carole-Ann comunicou-lhe que estava pedindo o divórcio. Tinha encontrado outro homem e não estava nem um pouco preocupada com o quanto a notícia o chocara. Lloyd mantivera contato com as enteadas, embora tivesse ocultado o fato de Margot. Depois do divórcio, ela começara a submetê-lo a verdadeiros interrogatórios sobre os lugares que frequentava e sobre as mulheres que encontrava. Sua vida se tornou solitária demais. Tinha alguns amigos, mas seu relacionamento com ela não poderia ser revelado a ninguém. Pelo menos Margot vivia rodeada pela família! Ele olhou para o relógio. Já eram duas da tarde, e seu encontro com o dr. Jamie Friedland estava marcado para as duas e quinze. Danny, sua assistente, decidira tudo por ele. Como o professor ainda estava procurando um lugar para morar, pois acabava de passar seu primeiro semestre na UCLA, em um quarto cedido por um amigo, parecera mais conveniente marcar o encontro no apartamento de Lloyd. Normalmente, ele preferia entrevistar os autores em potencial em qualquer outro lugar que não fosse sua casa, mas Danny ficara tão absolutamente

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empolgada com o manuscrito do professor que não tivera coragem de lembrála de sua preferência. Já lera todo o trabalho e o considerara bem interessante, embora não entendesse muito do assunto abordado. De acordo com Danny, a tese poderia se transformar em uma obra de referência obrigatória sobre o tema, pois era inovadora e colocava questões sobre procedimentos estabelecidos que outros académicos teriam grandes dificuldades em responder. Pelo canto dos olhos, Lloyd viu um carro parar no estacionamento para visitantes de seu apartamento. Era um modelo europeu, conversível, dirigido por uma ruiva de cabelos longos e despenteados pelo vento. Intrigado, viu a mulher descer do carro e quase perdeu o fôlego. Ela era alta e voluptuosa, caminhava com a segurança de quem ama a si mesma. Decididamente, era o oposto completo de Margot! Então percebeu que ela olhava para a sua janela, antes de se dirigir para a entrada do apartamento. Dez segundos depois, o interfone tocou, para avisá-lo que a doutora Jamie Friedland chegara para ver Lloyd Kennet. Enquanto destrancava a porta, Lloyd teve a sensação de que estava no limiar de algo tão determinado pelo destino que, por um momento, sentiu medo de recebê-la em sua casa. Imediatamente lutou contra essa premonição absurda e começou a abrir a porta. Cometera um engano, imaginando que ela fosse um homem. Por que um detalhe insignificante como esse poderia ser importante?

CAPÍTULO VI Ninguém prestou muita atenção na mulher elegante e bem-vestida que estacionou o carro na encantadora rua residencial. E por que o fariam? O BMW talvez fosse um dos modelos mais caros dessa marca, mas não destoava dos demais automóveis, igualmente sofisticados, que estavam estacionados diante dos portões de entrada impecavelmente envernizados. A maioria dos veículos era, na verdade, do tipo utilitário, com tração nas quatro rodas, que havia se tornado a versão oficial da década de noventa do veículo favorito para fazer compras e levar as crianças à escola. A casa ampla de portas laqueadas de preto diante da qual ela estacionou fora convertida, havia pouco tempo, em hotel, uma pequena hospedaria do tipo procurado por senhoras da sociedade, que vêm de suas mansões no campo a fim de passar alguns dias na cidade, para fazer compras, visitar velhas amigas e ir ao teatro. Talvez não tivesse a sofisticação dos estabelecimentos semelhantes situados no requintado bairro de Knightsbridge, mas era confortável, seguro e, obviamente, os preços costumavam ser muito mais baixos. Cláudia não fora até ali para ver ou para se hospedar naquele hotel, embora tivesse permanecido diante da casa, observando-a com um olhar perdido, por um longo tempo.

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Aquela rua, tão conhecida e familiar, passara por transformações drásticas desde'a época em que ela e Garth haviam alugado um pequeno apartamento, em uma das casas velhas e descuidadas. Todas as moradias tinham sido remodeladas a ponto de se transformar em pequenas mansões, com portas laqueadas e maçanetas de bronze, janelas com impecáveis cortinas de renda e jardins bem-cuidados. Cláudia se sentiu desorientada e perdida diante daquela mudança radical. O apartamento dos dois era o número doze, no último andar da casa. Ali devia ter sido o sótão, e era preciso subir vários lances de uma escada estreita e com degraus que rangiam, cobertos por um empoeirado e gasto tapete vermelho... pelo menos eles supunham que devesse ter sido vermelho em algum dia do passado! Haviam encontrado aquele lugar após uma longa e exaustiva semana percorrendo Londres, de ponta a ponta, em busca de uma moradia, um apartamento situado em um bairro razoável e que estivesse dentro de seu orçamento reduzido. Como sobravam a Garth apenas algumas horas de licença antes de retornar ao regimento, eles respiraram aliviados diante da oportunidade de alugar aquele apartamento, o menos ruim entre todos os que haviam visitado. ― Pelo menos tem uma cozinha e um banheiro ― murmurara Cláudia, quando Garth se horrorizou diante dos quartos minúsculos e com a pintura descascada. ― A decoração será uma distração bem-vinda quando você não estiver em casa comigo. ― Você estará trabalhando também e não terá tempo para mais nada. Além disso, não me agrada a ideia saber que se encontra em cima de uma escada, pendurando cortinas, enquanto eu estiver fora. Os dois ainda estavam em lua de mel, ansiosos por proteger sua intimidade, e Cláudia se sentira feliz e orgulhosa quando Garth recusou a oferta de ajuda financeira dos pais de ambos, que queriam vê-los mais bem-instalados, em um bairro mais elegante e num apartamento maior. ― Não, obrigado. Precisamos viver dentro do orçamento de que dispomos! ― declarara ele, com firmeza, quando o assunto fora discutido em família. Cláudia até pensara em convencê-lo a mudar de ideia, mas os protestos foram afastados por beijos. ― Eu quero tomar conta de você, amor. Quero cuidar de você sozinho... sem ajuda de ninguém. Talvez eles estivessem na agitada década de setenta e Cláudia tivesse uma carreira que pretendia tornar um sucesso, mas ela fora criada em um lar em que os pais mantinham com orgulho os padrões de vida tradicionais herdados de seus próprios pais. Detestaria se Garth fosse um marido autoritário ou dominador, que esperava ser tratado como um ser superior apenas porque era homem. Entretanto, não escondia de ninguém o quanto adorava ser mimada por ele, como se sentia feliz com as demonstrações de afeto e amor, ou quanto apreciava o instinto protetor do marido. Afinal, o pai dela tratara a esposa exatamente da mesma maneira, e os dois viviam um casamento feliz que já durava vinte e cinco anos.

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Eles tinham se mudado para o apartamento num fim de semana chuvoso, ajudados por alguns dos amigos do regimento, que haviam carregado, com incrível bom humor, os móveis mais pesados, oferecidos pelos pais de Garth. ― Por que gastar dinheiro comprando móveis, querido? Nós temos tantas peças que não usamos ― insistira a mãe dele, quando Cláudia tentara objetar. Mais tarde, quando foram ao sótão escolher o que precisavam, ela explicara: ― Essa mesa pertenceu à sua bisavó, Garth. Talvez lhe pareça apenas velha, mas já é uma antiguidade valiosa. Apesar dos móveis grandes e pesados destoarem do apartamento sem requintes, era reconfortante estar rodeada de objetos que haviam pertencido à família dos dois. Cláudia sentia-se parte de um amplo contexto familiar sempre que olhava para cada uma das peças antigas. Apenas a cama do casal era nova ― graças à persistência obstinada de Garth ―, e Cláudia se sentira profundamente acanhada quando, na hora da compra, o vendedor insistira que eles a experimentassem. ― A maioria dos jovens que se casam hoje prefere camas maiores, do tipo king size ― dissera o vendedor, almejando uma comissão mais alta. Garth não quis sequer ver os modelos maiores. ― De jeito nenhum! ― murmurara ele, ao ouvido de Cláudia. ― Quero você o mais perto possível dè mim. Não quero nenhum espaço, nenhuma distância, nada ou ninguém entre nós, querida. Mais tarde ele voltara a tocar nesse assunto e, saindo da estrada rural, estacionara o carro à sombra de um pequeno bosque. Tomara Cláudia nos braços e a beijara, apaixonadamente, para reforçar a intensidade de suas palavras. Ela correspondera com idêntica paixão, mas ainda com uma certa timidez. Embora já não fosse mais virgem, continuava hesitante e até um pouco temerosa de sua recém-descoberta sensualidade. Assustara-se com o prazer que sentia quando estava na cama com Garth e não sabia se devia ou não se libertar de todas'as suas inibições. Depois que Garth e seus amigos terminaram de carregar os móveis pelos quatro lances de escada até seu minúsculo lar no sótão, Cláudia lhes serviu um delicioso e farto espaguete à bolonhesa, feito no antiquado fogão a gás, que era parte da cozinha do apartamento. Ela e a mãe tinham levado muitas horas e gasto dezenas de pacotes de esponja para conseguir limpar aquela peça antiquada. Após o jantar, foram todos para o pub do bairro, onde o corte de cabelo muito curto de Garth e de seus companheiros os diferenciava dos demais frequentadores, os jovens de cabelos muito longos tão típicos da década de setenta. O ar do pub estava quase irrespirável por causa da fumaça dos cigarros. Cláudia ficou aliviada quando os amigos de Garth finalmente se despediram e ela pôde voltar para casa. Ela e Garth caminharam sem pressa pelas ruas quase desertas do bairro, usufruindo os primeiros momentos de sua nova vida juntos. Ao passarem por uma arcada mergulhada nas sombras, ele a puxou para junto de si e beijou-a com paixão. ― Você não sabe como eu a desejo, querida.

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Garth parou de falar, sem saber como Cláudia reagiria se lhe dissesse que sentira uma incontrolável onda de desejo naquela tarde, quando os amigos ainda estavam com eles. Vira quando ela se inclinara sobre a pia para apanhar algo e o jeans justo moldara ainda mais a perfeição de suas nádegas. Por um instante, a tentação de chegar por trás dela e acariciar os seios rijos enquanto... Agora, vendo o rosto delicado e banhado pelo luar, concluíra que talvez tivesse sido sorte os dois não estarem sozinhos. Cláudia era doce e gentil, reagia às suas carícias com uma timidez tão comovedora e excitante que ele hesitava em exigir mais, em revelar-lhe um lado mais intenso de sua sexualidade. Cláudia tinha algo indefinível, talvez uma combinação única de doçura e educação que a tornava diferente das jovens ousadas de sua época, e esse fora, certamente, um dos motivos que o fizeram se apaixonar por ela. Já passava de meia-noite quando os dois entraram no apartamento às escuras. As lâmpadas que iluminavam as escadas eram fracas demais, e Garth seguroua pelo braço para ajudá-la a subir. Não lhe agradava nem um pouco saber que ela teria de usá-las todos os dias, enquanto ele estivesse no regimento. Iria falar com o síndico, na manhã seguinte, a fim de conseguir trocá-las por outras, mais fortes, antes de partir. Sua licença terminaria no dia seguinte, e mais tarde, na cama, ele ouviu Cláudia suspirar. ― O que foi, querida? ― perguntou ele, puxando-a para mais perto de si. ― Nada... só gostaria que você não tivesse de partir amanhã. ― Eu sei, amor. Felizmente não será por muito tempo. Logo terei um mês inteiro de licença de verdade. No escuro do quarto, Cláudia mordeu os lábios. Sem dúvida uma licença de verdade, pois seria seguida por um período de acantonamento na Irlanda do Norte. Ela era filha de militar e conhecia bem demais as táticas do exército. ― Papai me disse que está diminuindo o número de recrutas a ser aceitos anualmente e que pensam em unir vários regimentos sob um só comando. ― Sim, é verdade. O sogro de Garth já o prevenira a esse respeito, alertando-o que as promoções iriam se tornar mais difíceisde ser obtidas. No final do ano seu contrato expiraria e ele ainda não decidira se devia renová-lo ou não. No início, ao escolher uma carreira no exército, não pensara em como essa opção afetaria uma esposa e filhos. Nos últimos tempos, vira vários casamentos de amigos ser desfeitos devido à pressão das separações constantes que a mulher de um militar tem de suportar. Enquanto Garth buscava sua boca, Cláudia admitia que a partida iminente do marido não era o único motivo de sua ansiedade. Na segunda-feira de manhã, começaria seu novo trabalho como assistente social em um dos distritos mais pobres de Londres. Tecnicamente, ela era bem qualificada para o emprego, mas sentira, durante a entrevista, que sua chefe se mostrara um tanto hostil. Não se tratava de nada que se pudesse definir com clareza, apenas um ou dois comentários ferinos e desnecessários sobre seu ambiente familiar. Percebera uma atitude desafiante em sua futura chefe, embora soubesse que as condições de vida no bairro cheio de cortiços onde trabalharia seriam de fato muito duras.

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― A vida que se leva nos acantonamentos militares não é tão protegida e distante da realidade quanto se imagina ― justificara-se ela, com toda a calma que lhe foi possível manter, diante do interrogatório insistente de Janice Long. ― Existem problemas de drogas, de alcoolismo, crises conjugais sérias e, claro, o trauma de homens feridos e mutilados em ação. ― Homens? ― replicara a outra mulher, sarcástica. ― Aqui neste distrito temos de lidar com crianças que sofreram abusos, que foram espancadas, que passaram fome, enfim, que foram submetidas a todo tipo de degradação emocional, física e sexual. Tornam-se tão vulneráveis que uma palavra banal pode fazê-las perder todo o senso da realidade. Acha que está mesmo bem preparada para lidar com isso? ― Eu sei que não estou ― respondera Cláudia, com toda a honestidade. ― Mas também duvido que qualquer pessoa esteja. Acho impossível ignorar de modo absoluto os próprios sentimentos nessas circunstâncias, porém, com tempo e treino, espero que se possa controlar a emoção pessoal a fim de ajudar melhor àqueles a quem precisamos dar a mão. Cláudia conseguira o emprego, mas desconfiava que Ja-nice Long não se convencera de que ela era a candidata certa para aquele cargo. ― Você tem um gosto tão bom ― murmurou Garth, mordiscando os lábios de Cláudia. ― Seu corpo inteiro tem esse sabor delicioso. Ela estremeceu. Reconhecia o tom de intenso desejo na voz de Garth. A primeira vez que ele lhe dissera que queria beijá-la inteira, degustar o sabor de cada centímetro de seu corpo, ficara chocada e ainda não se sentia completamente à vontade diante de certos aspectos da intimidade entre os dois. Entretanto, a sensação dos lábios dele... Com um estremecimento de prazer, entregou-se à sensação inebriante de sentir os lábios de Garth rodearem seu mamilo. Sem muito esforço, conseguiu não pensar mais nos problemas que enfrentaria na manhã seguinte e abandonou-se ao prazer que a envolvia. Garth adorava os seios de Cláudia. Ou melhor, amava cada centímetro daquele corpo sensual, mas tinha uma pre-dileção especial pelos seios, amplos mas delicados, cálidos e acetinados, com mamilos rosados como uma pétala de flor mas prontos a intumescer à primeira carícia. Na verdade, eles eram um retrato de Cláudia, modestos e pouco exuberantes em público, enquanto, na privacidade, se mostravam de um erotismo irresistível. Então ela sentiu as mãos dele descerem por seu corpo, buscando a pele macia do ventre, enquanto os lábios continuavam a sugar seu mamilo. Um gemido de prazer ecoou no quarto mergulhado na penumbra. Garth reconheceu o som de intenso desejo e deitou-se sobre Cláudia, para sentir melhor a vibração do corpo que reagia com abandono às suas carícias. Não havia mais nada na mente de Cláudia além do prazer do momento. Agora só pensava em satisfazer Garth e em sentir a volúpia arrastá-la para um mundo feito de paixão e êxtase. Com os olhos fechados, ela visualizava o momento em que seus corpos se uniriam, o instante em que receberia no seu interior a vibrante masculinidade de Garth. Ela o receberia naquele recanto íntimo, um jardim do Éden onde ele se nutriria de prazer em segurança. Então seu instinto de mãe Terra, a. antiga

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divindade adorada e temida pelos gregos, o lembraria do objetivo final, e seus músculos se contrairiam, passando de ternos a exigentes, levando-o a obedecer as leis da natureza, desencadeando a centelha criadora de vida. Talvez não fosse necessário alcançar o êxtase para engravidar, mas Cláudia se convencera de que havia algo nos movimentos convulsivos de um orgasmo que tornaria seu ventre mais receptivo ao ato de procriação. Se não fosse assim, por que a mãe Natureza criara a mulher com o desejo de acolher o homem em sua profundidade úmida? E por que o homem também sentiria essa necessidade incontrolável de buscar a penetração total? Os lábios de Garth agora buscavam o clitóris de Cláudia, provocando uma onda de prazer tão intenso que ela não controlava os gemidos de prazer. ― E assim que você deve se lembrar de mim, quando não estivera a seu lado, amor ― murmurava ele, entre uma carícia e outra. ― Lembre-se de como é bom quando eu a toco aqui... Cláudia perdeu o controle de seu corpo, que parecia agora se mover por vontade própria, buscando uma proximidade maior. Mas Garth continuou a mantê-la a distância, excitando-a sempre mais. ― Você me quer muito, Cláudia? Então tome a iniciativa... mostre-me o quanto me deseja. Ele a provocava, incitando-a a superar todas as inibições que ainda a reprimiam e impediam de dar rédeas livres à sensualidade. Cláudia ainda não tomara consciência da força de seus próprios instintos sexuais e hesitava diante de uma atitude mais ousada. Por fim, ele também chegou muito perto de perder o controle e, erguendo-a sobre seu corpo, deixou-a descer até ser penetrada. Suspensa sobre Garth, Cláudia viu o prazer estampado no rosto dele e a expressão de volúpia era todo o encorajamento que precisava para assumir a intensidade da paixão que sentia. Garth mantinha a boca presa ao mamilo rijo, sugando-o com avidez, e a sensação combinada da penetração e das carícias inebriantes levaram Cláudia a um ponto distante do mundo, onde só havia prazer e volúpia. Ela ouviu sua própria voz ecoar no silêncio do quarto, gritando o nome dele, no momento de êxtase intenso. Ela continuou a tremer nos braços dele, muitos minutos após o orgasmo, e sentiu o rosto molhado por lágrimas de felicidade. ― Ah, Clo! Quero que você se lembre deste momento quando estiver sozinha na cama. É assim que eu vou fazer amor com você... quando formos conceber nosso filho. Eles já haviam discutido a formação da família que teriam, no futuro. Pretendiam esperar algum tempo, mas nenhum dos dois tinha vontade de protelar muito esse momento de grande felicidade. Cláudia queria duas meninas e dois meninos, mas Garth achava que talvez fosse mais prudente ficarem apenas com dois filhos. ― Será muito dispendioso educar quatro filhos, querida. ― alertara ele. ― Principalmente se eu continuar no exército... Esse era outro assunto que haviam discutido muitas vezes. Cláudia sabia muito bem o que significava ser esposa de um militar, porém não queria, em hipótese alguma, se tornar um obstáculo entre o homem que amava e a

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carreira desejada por ele. Entretanto, Garth também reconhecia os inúmeros problemas de criar filhos sem se estabelecer em lugar algum, sempre se mudando de uma base do exército para outra, e começara a pensar na possibilidade de mudar de carreira. ― Eu gostaria tanto que você não tivesse de ir embora amanhã cedo ― murmurou ela, com voz sonolenta. ― Eu também gostaria muito, Clo... Ele acariciou o corpo relaxado de Cláudia e assustou-se com a nova onda de desejo que o envolveu. Nunca se julgara obcecado por sexo, mas Cláudia o excitava como nenhuma mulher o fizera antes. Se acordasse bem cedo, ainda poderia amá-la mais uma vez, antes de partir. Com um sorriso nos lábios, pensou como ela reagiria se lhe pedisse para não usar nenhuma roupa de baixo para recebê-lo quando voltasse para casa. Com certeza ficaria chocada, mas seria excitante imaginá-la nua debaixo do vestido. Segundos antes de adormecer, lembrou-se que precisava acordar cedo e possuir Cláudia antes que viessem os dias de separação... Cláudia ouvia com atenção enquanto Janice Long a informava de todos os detalhes sobre um dos casos em que ela trabalharia. ― A garota está com dezoito anos... ― Janice lhe estendeu uma fotografia, esperando pela reação de Cláudia diante do rosto extremamente belo da jovem de cabelos negros. ― E é viciada em heroína. Tomamos conhecimento de sua existência quando a polícia a prendeu por prostituição. Na época, estava com dezessete anos e contou que fugira de casa porque seu padrasto a violentara. Ao ouvir a exclamação abafada de Cláudia, a supervisora deu um sorriso amargo. ― Trata-se de uma história das mais comuns entre as jovens que estão sob nossa responsabilidade. ― Sim, eu sei, mas isso não torna o fato menos chocante. ― De fato seria... se fosse verdade. Mas Katriona, infelizmente, é uma mentirosa hábil e contumaz. Aliás, a maioria dessas garotas vive mentindo. Vivem em um mundo irreal a maior parte do tempo. Esse é o problema delas, e o nosso consiste em separar a fantasia da realidade. Cláudia não fez nenhum comentário, mas achou que sua supervisora estava sendo dura demais. A pobre garota era ainda uma criança, e ela sentia uma pena imensa de Katriona, ao pensar em como deveria ter sentido medo ao se encontrar sozinha e desprotegida nas ruas de uma metrópole. Janice Long a observava disfarçadamente e reprimiu um suspiro de desânimo. Sem dúvida, estava diante de mais uma novata, inexperiente e comovida, transbordando de bondade e vontade de ajudar o resto da humanidade. Bem, Cláudia logo aprenderia, e pelo método mais difícil, como ela tivera de aprender. As pessoas com quem estavam lidando talvez fossem vítimas que precisavam de ajuda, mas isso não as impedia de ter sua parcela de vícios, de ser manipuladoras e dissimuladas, fingidas e desonestas, além de se tornarem, muitas vezes, perigosas demais. Katriona, a despeito de sua beleza perfeita e juventude extrema, não era nenhum anjo. Diferentemente de outras companheiras de degradação, o vício

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não a forçara a aceitar um café tão determinado a mantê-la "na ativa", a fim de viver com o dinheiro obtido pelo corpo dela. Mencionara a Janice Long, inúmeras vezes, que não precisava de um. Era ela quem usava os homens, e não o contrário. Também contara a Janice que começara a usar drogas apenas porque queria ver como era e gargalhara quando a estagiária não conseguira disfarçar o choque diante dessa informação. Em seu íntimo, Janice desconfiava que Katriona encontrava dinheiro para financiar o vício vendendo drogas para seus companheiros de apartamento, mas nem ela nem a polícia tinha conseguido provar nada. "Vocês não têm prova alguma para me botar atrás das grades", anunciara ela com um sorriso vitorioso na última vez que a polícia a prendera. Janice percebera que ela se divertia diante da impossibilidade das autoridades de fazer algo para ajudá-la. Janice também sabia, ou pelo menos acreditava saber, que, apesar das negativas categóricas, Katriona sofrera abusos sexuais ou talvez físicos e emocionais por parte de um homem, em algum momento de sua vida. O ódio e a amargura que sentia por eles era um sintoma clássico, e indicavam esse fato embora a jovem jamais o admitisse. Na verdade, todo o passado dela era envolto em mistério. Entretanto isso também não era raro entre esses jovens que se perdiam no submundo da droga. Rapazes e garotas chegavam a Londres, vindos de todas as partes do país, e passavam a viver nas ruas ou em apartamentos comunais dilapidados e infectos, e desapareciam nos labirintos do vício, até serem apanhados pela polícia e então entregues ao serviço social. A essa altura, já haviam inventado um novo passado para si mesmos. Algumas vezes, infelizmente muito raras, o destino era piedoso e um jovem muito querido acabava voltando aos braços dos pais desesperados. Em geral, isso não costumava acontecer. Janice franziu a testa ao ver que Cláudia se abalara com a história de Katriona. Essas jovens de classe média-alta, idealistas demais e que não tinham a menor noção da realidade da vida e descreviam os pais como "papai" e "mamãe" diante de jovens pertencentes a um outro mundo, sempre davam mais trabalho do que conseguiam ajudar. Céus! Katriona morreria de rir ao ouvir Cláudia se referir a "papai" e "mamãe". Ou então desataria a falar os maiores impropérios, ao ouvir a dicção perfeita de sua nova assistente. Entretanto, o seu trabalho não era proteger as Cláu-dias do mundo da dura realidade! Ninguém as forçava a aceitar o emprego, um cargo para o qual estavam totalmente despreparadas, na opinião de Janice. Ela crescera em uma região bastante pobre do norte da Inglaterra. Conseguira chegar à sua posição atual apenas porque o diretor da escola primária interferira, conseguindo convencer seus pais a lhe deixar frequentar um curso secundário. Então, passara pela humilhação de ter de usar um uniforme de segunda mão, de nunca dispor de dinheiro para os lanches da escola e de nem poder pensar nas excursões escolares...

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Logo Janice aprendera a adotar uma atitude de completa indiferença, um escudo que a protegia das zombarias das colegas. Já na faculdade, quando não estava estudando para a monografia de conclusão do curso, tivera de trabalhar duro para se sustentar e afastar as atenções indesejadas dos patrões. Durante o período letivo, ela trabalhava em bares e lanchonetes; nas férias se esgotava colhendo frutas. Esses empregos temporários de verão eram os piores. Sempre havia algum homem que a julgara devedora de um grande favor. O fato de lhe ter permitido trabalhar devia ser pago sempre da mesma forma... permitindo que ele usasse seu corpo entre os caixotes de maçã e ainda agradecesse! Mas Janice Long não se prestava a esse tipo de abuso, pois cansara de ver os resultados desse tipo de concessão. ― E quem são os pais dela? Afinal, de onde veio? Ela voltou ao momento presente com a voz de Cláudia, que lhe fizera essa pergunta enquanto examinava a ficha de Katriona, com uma expressão interrogativa. ― Quem sabe? ― respondeu Janice, encolhendo os ombros. ― Talvez nem ela tenha muita certeza. A julgar pela aparência, Katriona pode ter sangue cigano ou talvez mediterrâneo, mas... ― Ninguém lhe fez essa pergunta? Não conversaram com ela? ― Conversar? Estamos lidando com uma viciada em heroína, minha cara. Nunca se fala com ela, apenas para ela, entende? Quando se tem sorte, alguma informação vem à tona, mas sempre acidentalmente. ― Você se refere a Katriona como se se tratasse de um caso perdido... e fosse melhor desistir dela. ― Katriona desistiu por conta própria ― declarou Janice, sem rodeios. ― Ela estará morta antes de completar vinte e um anos. ― Mas... com certeza ainda deve haver algo que se possa fazer por ela ― persistiu Cláudia, incapaz de esconder o quanto estava chocada com o caso. ― Uma clínica de reabilitação ou... ― Estaríamos desperdiçando tempo e o dinheiro dos contribuintes ― disse Janice, com uma expressão em que se mesclavam indiferença e amargura. ― Katriona jamais aceitaria ir para uma clínica, e mesmo que.concordasse... uma das primeiras regras que você tem de entender é... Janice calou-se e balançou a cabeça, revelando o quanto julgava inútil continuar. De que adiantaria explicar os problemas desses casos perdidos? O melhor era deixar Cláudia descobrir por conta própria. Ah, essas novatas idealistas! Por que sempre iam parar em suas mãos? Com muito esforço e determinação, Cláudia recusou-se a permitir que sua reação de repugnância transparecesse. Ela mal continha as náuseas enquanto seguia Janice pelas escadas de cimento cobertas de lixo, respirando um ar que recendia urina e vómito. O prédio de concreto sem revestimento, igual aos vários outros que formavam o conjunto habitacional, era um labirinto formado por paredes imundas e grafitadas, que ocultavam vidas em processo de degradação final. Na sua opinião, eram a expressão e o testemunho da desumanidade do homem.

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― Mais dois andares ― avisou Janice, quase sem fôlego. ― Antes que eu me esqueça... nunca se sinta tentada a arriscar o uso dos elevadores nestes locais. Vivem quebrando! Uma das assistentes sociais de nossa equipe esqueceu-se disso e acabou presa em um deles por quarenta e oito horas. Cláudia estremeceu, imaginando o quanto se sentiria aterrorizada. ― Bem... aqui estamos... Horrorizada, Cláudia seguia a supervisora por um corredor aberto. Lá do alto, avistava-se a área malcuidada que era circundada pelos blocos de apartamentos. Lá embaixo, um grupo de adolescente caminhava sem destino, chutando o lixo que encontrava à frente, com ombros curvados em uma postura ao mesmo tempo de defesa e de derrota. ― É aqui... ― declarou Janice, parando diante de uma porta de metal que mais parecia a de uma prisão do que de um lar e uma janela com barras de ferro, obviamente sem cortinas. Janice bateu à porta e as duas esperaram. Cláudia podia ouvir o som de várias fechaduras sendo destrancadas e, subitamente, sentiu o estômago se contrair. Teve a estranha sensação de que estava diante de um evento vital e determinado pelo destino. Uma onda de pânico irracional tomou conta dela, banindo todos os resquícios de lógica e de raciocínio. Quando o pequeno painel da porta deslizou, para que o morador pudesse ver quem batera, Cláudia lutou contra uma vontade incontrolável de fugir, de afastar-se daquele local sórdido antes que fosse tarde demais. ― O que você quer? ― perguntou uma voz masculina bastante hostil. ― Quero ver Katriona Spencer ― respondeu Janice, igualmente agressiva. ― Bem... ela não quer ver você. Está ocupada... ganhando seu pão de cada dia. Entende o que isso significa, não? ― Então diga-lhe que sem visita ela não recebe nem um tostão do seguro. Passaram-se mais alguns minutos, e quando Cláudia julgou que teriam de ir embora sem ver Katriona, ouviu mais algumas fechaduras sendo destrancadas e a porta se abrir. Ela cometera um grave engano ao julgar que o mau cheiro das escadas fosse insuportável, pois piorara muito ao entrarem no apartamento. Mal controlou uma onda violenta de náuseas, e descobriu que aquele era o odor da degradação mais sórdida, de seres humanos que haviam descido ao mais profundo patamar de um mundo sombrio e obsceno. As duas cruzaram um minúsculo vestíbulo, antes de entrar na sala, e Cláudia viu um rapaz, ainda muito jovem, vestir apressadamente as calças. Atrás dele estava uma garota nua, deitada sobre um colchão imundo. Cláudia desviou os olhos, mas Janice estava acostumada com aquele tipo de situação e encarou a garota magra. ― Onde está Katriona? ― No andar de cima ― resmungou a garota, sem preocupar-se em cobrir sua nudez ou em fechar as pernas, enquanto apanhava uma seringa que estava ao seu lado. Quando ela se moveu, Cláudia pôde ver as marcas em seu braço quase esquelético, e a repulsa que sentira se transformou em uma compaixão intensa.

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― Guarde a sua piedade ― disse Janice, lendo os pensamentos de Cláudia e indicando-lhe que a seguisse em direção ao vestíbulo. ― Como Katriona, Lucy se prostitui para poder sustentar seu vício. Entretanto, já tem uma condenação e um processo pendente. Katriona ainda não chegou a esse ponto, mas isso não tardará. ― O que Lucy fez para ser condenada? ― perguntou Cláudia, esperando ouvir que a garota tinha roubado algo para comprar droga ou talvez por tê-la vendido a outros consumidores. ― Ela matou o próprio filho. Isso não é incomum ― declarou ela ao ver a expressão horrorizada de Cláudia. ― Não foi intencional, é claro... mas nunca é. Simplesmente perdeu a paciência com o pobrezinho, numa noite em que não conseguira homens suficientes para alcançar a soma que precisava para comprar a dose necessária de heroína. A criança não saiu de seu caminho com rapidez suficiente e ela o jogou de encontro à parede. O menino tinha quase cinco anos, mas era esquálido, pois nunca fora bem alimentado. Teve uma fratura de crânio e, felizmente, morreu no hospital, três dias depois, sem recuperar a consciência. ― Felizmente? ― protestou Cláudia, chocada com a frieza de Janice e incapaz de esconder seus próprios sentimentos. ― Se o pobrezinho vivesse, teria lesões cerebrais sérias. Lucy não estava preparada para cuidar de uma criança relativamente saudável, não poderia nunca amá-lo e protegê-lo como uma mãe normal. Acha que ele teria alguma chance de sobreviver com uma deficiência qualquer? Cláudia não respondeu à pergunta de Janice. Aquele mundo em que penetrara não tinha respostas fáceis. As duas subiram a escada que saía do vestíbulo e pararam diante de uma porta. ― E aqui ― disse ela, empurrando a porta. Depois da imundície da sala no andar debaixo, somada ao horror da história que acabara de ouvir, a visão de uma jovem de cabelos longos e limpos, sentada na cama enquanto se admirava num espelho, era tão normal e destoava tanto do ambiente sórdido do apartamento que Cláudia pôde apenas fitá-la, sem reação. Essa jovem tinha olhos verdes, muito límpidos, e uma expressão inteligente. Era de fato bonita e vestia-se como uma estudante, com uma malha clara e limpa. ― Quem é essa aí? ― perguntou a jovem, apontando para Cláudia. ― Chama-se Cláudia e acabou de entrar em nossa equipe ― explicou Janice, com toda a calma. A jovem examinou Cláudia da cabeça aos pés, com um olhar de desprezo. ― Mais uma novata? Ai, Jesus! Olhe só para ela... aposto que nuca abriu as pernas para homem nenhum! Cláudia lutou para dominar a repulsa e a raiva diante da intromissão daquela jovem drogada em sua intimidade com Garth. Aquelas palavras violavam um aspecto glorioso de sua vida, e só o treinamento para esse tipo de trabalho fez com que conseguisse ignorar o comentário. ― E isso não é da sua conta, Katriona.

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Antes que a garota pudesse se prevenir, Janice segurou-lhe o braço e, puxando a manga da malha, expôs as marcas que evidenciavam o uso pesado de heroína. ― Pelo menos ela não usa drogas... e você também não o faria se tivesse um pingo de inteligência. ― Não mesmo? ― replicou Katriona, jogando para trás os cabelos longos e brilhantes. ― Só se eu fosse muito idiota ouviria essa seu sermão batido sobre não usar drogas. E o que você quer aqui? ― Você está em condicional por prostituição, lembra-se? Um dos requisitos da condicional é que nós a visitemos sempre. ― Pois já me viram e eu tenho de sair para trabalhar. Com uma expressão de indiferença, Katriona apanhou um batom vermelho e começou a aplicá-lo nos lábios com uma atenção exagerada. Katriona era esguia e, apesar de alta, tinha ossos delicados e a graça de uma bailarina. Quem seria ela, de onde teria vindo? Por que vivia naquele ambiente sórdido, quando era evidente que poderia escolher outro, menos degradante? Cláudia forçou-se a controlar a imaginação. Uma das primeiras lições em seu curso fora não julgar nem questionar ninguém. ― Não precisa se submeter a esse tipo de trabalho, Katriona ― disse Janice, quase com suavidade. ― Daqui a uma hora pode estar dentro de um carro, com um cliente colocando uma faca em sua garganta e se recusando a pagar o que lhe deve pelo uso do seu corpo. Mas se ele pagar, você ainda tem de voltar ao apartamento sem encontrar nenhum café tão que tente lhe extorquir uma comissão. Por que enfrentar tantos ristos se pode receber uma receita de metadona e... ― E ir para uma clínica de reabilitação? Pode se esquecer disso, cara! ― Você é uma idiota, Katriona. Um dia se tornará igual a Lucy, drogada demais para se importar em fechar as pernas entre um cliente e outro, quanto mais para se preocupar em se vestir. É isso que realmente quer? ―- Eu nunca serei igual a Lucy ― gritou Katriona, com os olhos verdes brilhando de fúria. ― Agora caiam fora daqui! Fora! E da próxima vez... mande ela. Cláudia mal controlou a surpresa. Katriona queria que ela fosse? — Estou falando sério ― declarou a jovem ao ver a expressão indiferente de Janice. ― Ela entra... você não!

CAPITULO VII - Você está com uma expressão tensa e cansada, Cláudia. Há algum problema?

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― Claro que não, está tudo bem, mamãe ― respondeu ela, arrependendo-se em seguida de seu tom de voz agressivo. ― Sinto muito, querida... só estou um pouco cansada, mais nada. Cláudia se censurou mentalmente, enquanto segurava as mãos de Jean Fulshaw, num gesto de remorso. A última coisa que queria ou precisava era sentir pena de si mesma e se queixar para a mãe da tensão que sentia com a ausência de Garth. O regimento estava na Irlanda do Norte. Garth conseguira uma licença de apenas vinte e quatro horas antes de partir para essa nova missão, e tinham passado a maior parte desse tempo na cama, se amando. Embora estivesse fisicamente satisfeita, continuava tensa e sempre prestes a cair no choro. Não era de espantar que seu pedido para uma licença fora muito mal recebido por Janice Long. Com os olhos cheios de lágrimas, despediu-se da mãe na estação de Wa-terloo, sabendo que voltaria a ficar sozinha. Jean Fulshaw fora para Londres a fim de passar o dia com a filha e fazer algumas compras. Mas Cláudia não estava nem um pouco disposta a sair de casa. Acabava de se recuperar de um resfriado muito forte, que a deixara cansada e apática. Além disso, duas outras assistentes sociais haviam sido transferidas e ela tivera que assumir seus casos, somando-os aos próprios que já não eram poucos. Talvez Janice tivesse razão, pensou ela, quase arrependida. Talvez não fosse mesmo a pessoa certa para esse tipo de trabalho. ― Não leve os problemas para casa―avisara a supervisora. Apesar de ter sido prevenida, Cláudia estava achando cada vez mais difícil erguer a barreira emocional necessária para separar-se dos problemas de suas pacientes, em especial os de Katriona. ― Você está se envolvendo demais nesse caso ― insistira Janice. Sua supervisora tinha toda razão! Havia algo nessa garota, em particular, algo desesperador e angustiante no desperdício absurdo que se tornara a vida dela. ― Mas não tem de ser assim! ― Cláudia tentara aconselhar Katriona, esquecendo-se de seu lado profissional, na ânsia de ajudar a jovem, de mudar o rumo dos acontecimentos, antes que fosse tarde demais. ― Já é tarde demais ― declarara Janice, com aspereza, quando Cláudia discutira o caso de Katriona, deixando transparecer seus sentimentos e confirmando, aos olhos da supervisora, que ela não era mesmo a pessoa certa para aquele tipo de trabalho, por ser excessivamente emocional. Mas quanto dessa avaliação era verdade e quanto resultava de um ressentimento, bastante natural, provocado pela insistência de Katriona em falar apenas com Cláudia e com mais ninguém? ― Ela está fazendo isso porque você é novata nesse tipo de relacionamento ― declarara Janice, após uma reunião para discussão dos problemas de Katriona, na qual fora resolvido que Cláudia seria a encarregada do caso, pois havia uma facilidade maior de comunicação entre elas. ― Pessoalmente, não sei por que somos tão condescendentes com essa garota! Mas Janice sabia muito bem o motivo, assim como todos eles. Katriona estava jogando um jogo perigoso demais. Em troca de uma certa liberdade, ela fornecia informações à polícia, avisando sobre os movimentos

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de uma rede de traficantes poderosos que agiam no submundo dos conjuntos habitacionais. ― Você precisa tomar muito cuidado ― pedira Cláudia, aflita, quando Katriona lhe falara sobre a facilidade com que os homens confiavam nela. ― Se algum deles desconfiar... A garota deu uma gargalhada. ― Jamais vão desconfiar de mim! Eu sou apenas uma transa rápida e barata. Acham que pelo fato de eu estar ocupada em satisfazê-los sou incapaz de ouvir. Além disso... o que podem fazer comigo? Nada, porque sei demais a respeito deles. O rosto de Katriona se transformou e passou a refletir quase ódio por Cláudia. ― Ao contrário de você, certo? Você não sabe de nada. Quantos anos tinha quando perdeu a virgindade? Cláudia apenas balançara a cabeça, demonstrando desaprovação, mas não conseguiu conter um rubor intenso. Na maioria das vezes Katriona se interessava mais em questionar Cláudia do que em falar sobre sua própria vida. ― Mamãe e papai ― dissera Katriona, imitando a voz e a dicção perfeita de Cláudia. ― Aposto que eles mimaram você até não poder mais, certo? Ela agarrou a mão de Cláudia e olhou zombeteiramente para a aliança de ouro. ― E ele também a mima para valer, não? Como ele é na cama? Bom ou apenas regular? Céus! Não sei por que lhe fiz essa pergunta. Se ele for bom... sabe o que significa, não? Os homens não aprendem a excitar uma mulher ficando castos até poderem ter relações sexuais com a querida esposa! Katriona deu uma gargalhada maldosa. ― Ele já usou muitas prostitutas? Como você poderia saber se era um hábito na vida dele? Nunca lhe fez essa pergunta? Não tem coragem para tanto? Ao ver que Cláudia se levantava para ir embora, Katriona deu um sorriso de intensa satisfação. ― Ah! Cutuquei a ferida, certo? Todos eles usam prostitutas, cara. Não importa o quanto pareçam respeitáveis, fiéis ou amorosos... todos fazem a mesma coisa. Pelo que sei, seu marido pode ser um dos meus clientes. Ela calou-se, à espera de uma reação. Embora já conhecesse melhor a maldade da jovem e soubesse o quanto Katriona adorava chocá-la e aproveitar um momento de descuido de sua parte, Cláudia caiu na armadilha. ― Pois eu duvido muito. Garth pertence ao exército e raramente está em Londres... ― No exército? Pois eles são os piores ― interrompeu Katriona, com um sorriso triunfante e um brilho feroz nos olhos verdes, que já começavam a refletir a necessidade de mais uma dose de heroína. ― Como o conheceu? A pergunta fora casual, mas Cláudia já recuperara o controle de si mesma. Katriona estava com um ferimento profundo no braço, que parecia ter sido causado por uma faca. Ao tirar essa conclusão, Cláudia também admitiu que percorrera um longo caminho de aprendizado. Há seis meses não teria a menor ideia da aparência de uma facada! ― Foi Lucy ― disse Katriona, ao perceber que Cláudia olhava para o ferimento.

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― É um machucado feio. Alguém já o viu? ― Claro... todos os meus clientes desde ontem viram a ferida e devem ter sido... cerca de vinte. Ontem eu atendi a um grupo de garotos. Eram todos de uma escola para filhos de gente rica e tinham medo de usar uma prostituta sem estar rodeados pelo bando, entende? Eu deixei o resto do grupo olhar, enquanto eu mostrava a um deles o que é o verdadeiro sexo. Céus! Eram todos cretinos, mas me pagaram muito bem. Cláudia não disse nada. Acostumara-se ao jeito de Katriona e preferia não fazer o jogo dela, mostrando o quanto ficava chocada. Determinada a não ser desviada de seu caminho, Cláudia voltou a sentar-se. Katriona se recusava, terminantemente, a revelar detalhes pessoais, portanto era parte de seu trabalho fazer o possível para obter qualquer informação, por mais banal que fosse, sobre a família e a vida da jovem, antes de ir para Londres. ― Você deve ter pais, e eles... ― Eu devo mesmo? ― interrompeu Katriona, nitidamente amarga. ― Por quê? Só porque seu manual de assistente social diz isso? Pois vou lhe dar uma notícia nova, cara... a vida nem sempre segue as regras escritas. ― Mas deve ter alguém... mãe, pai ou avós... ― Avós? ― Ela deu uma sonora gargalhada. ― Céus! Se eu tivesse, eles seriam verdadeiros anciãos! Minha mãe tinha quarenta e sete anos quando eu nasci... fui um "milagre", o bebê do ano!. Eles achavam que não podiam ter filhos, entende? Estavam casados havia vinte e seis anos quando eu apareci. Talvez alguém precisasse ter dito aos dois que era necessário fazer sexo um pouco mais cedo. ― Mas só podem ter amado você demais ― sugeriu Cláu-• dia, com delicadeza. ― Você acha? Eu não tenho a menor ideia sobre isso. Minha mãe ainda estava em choque, envergonhada demais porque agora os vizinhos saberiam que ela transará com meu pai. Morreu... de infarto, pois o fato de me dar à luz enfraqueceu seu coração. A verdade é que estava velha demais, tanto para fazer sexo como para parir! Embora se ressentisse diante da maldade presente na voz de Katriona, Cláudia conseguiu se controlar e não fazer nenhum comentário. ― E seu pai? ― Oh! Meu pai... era um santo! Todos diziam isso, portanto deve ser verdade, não? Não consigo nem imaginar como eles me produziram... ― Ele ainda é vivo? Katriona encolheu os ombros num gesto de indiferença. Ela injetara sua dose de heroína antes da chegada de Cláudia, e a droga começava a fazer efeito. A última coisa que queria era falar sobre seus malditos pais. ― Não sei nem quero saber! Por que eu me importaria com ele se ele nunca se importou comigo? Sua maldita escola sempre foi mais importante do que eu. ― Sua escola? ― Meu pai era professor e diretor de uma escola particular para meninos. ― Katriona imitou uma voz educada e de dicção impecável, muito semelhante à de Cláudia. ― Logicamente, não aceitavam meninas, e fui obrigada a ir para a escola pública da vila, mas recebia aulas suplementares em casa. Meus... pais se conheceram quando ambos estavam em Oxford. Embora não pudesse pagar

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um internato de nível educacional alto, ele fazia questão que eu viesse a cursar a mesma faculdade que minha mãe. ― E qual era? ― perguntou Cláudia, ansiosa por descobrir mais detalhes sobre o passado de Katriona. ― Lady Margaret Hall, Somerville ou... ― Você se julga muito esperta, não é? Não tem a menor importância saber que faculdade minha mãe cursou. Eu jamais iria para lá! Se tivesse mesmo de frequentar uma universidade, nunca escolheria Oxford. Existem muitas outras mais modernas e menos cheias de mofo, como Essex e... Mas meu pai preferiria morrer a concordar com isso. Ou eu ia para sua maldita alma mater ou ficava em casa. Nem Cambridge seria boa o bastante para mim... para a filhinha dele. Cláudia não fez nenhum comentário, mas percebeu a amargura e a raiva ocultas pelo desprezo presente na voz da jovem. ― Você gostava da escola? ― E você enlouqueceu? ― Katriona deu uma gargalhada histérica. ― Claro... eu amava a escola! Adorava ser diferente de todos, ser ridicularizada porque tinha um pai que era professor em um colégio para filhinhos de papai! Aliás, eu também me sentia eufórica por passar horas a fio, todos os dias, trancada no escritório dele, ouvindo-o repetir como era importante que eu tivesse uma boa educação académica. Logo lhe mostrei, muito claramente, que a vida tem aspectos mais importantes e menos enfadonhos do que a leitura dos clássicos. Na verdade, eu poderia ensinar coisas muito mais vitais para aquele bando de idiotas cheios de dinheiro. Katriona entreabriu os olhos e sorriu com malícia para Cláudia. ― Meu pai jamais admitiria que seus ensinamentos não levariam ninguém a lugar nenhum! E com certeza a prática de sexo na adolescência não fazia parte do currículo aprovado por ele. Mas o que importava isso? Os garotos aprenderam muito mais comigo, quando nos escondíamos pelos cantos escuros do colégio para transas furtivas, do que com ele. Cláudia viu a mágoa transparecer no rosto sempre duro e hostil de Katriona. Sentiu uma pena imensa da garota. Lendo as entrelinhas daquele relato fragmentado, suspeitava que o pai, muito mais velho e acostumado a lidar apenas com meninos, transmitira a impressão de que a rejeitava após a morte da mãe. Então, ela chegara à conclusão de que o único modo de obter sua atenção era agindo mal e desrespeitando todas as regras. ― Não é tarde demais, Katriona ― murmurou Cláudia, com ternura. ― Você ainda pode voltar e... ― Claro que é tarde demais ― interrompeu Katriona, enfurecida. ― Céus! Você é tão cretina que me dá náuseas! Em primeiro lugar, por que acha que eu quero voltar? E depois... voltar para que inferno de vida? Eleja deve mesmo estar morto. Pelo menos, deveria estar. Todas as pessoas com mais de vinte e um anos tinham de estar mortas, sabia? Eu pretendo estar... Foi difícil disfarçar o choque. Cláudia já fora avisada por Janice que Katriona não viveria muito por causa da vida que levava. Além disso, não deveria se chocar tanto com as palavras da jovem, pois também fora prevenida para não se envolver emocionalmente em nenhum de seus casos. À noite, enquanto estudava os relatórios e tentava preencher os vazios da história de Katriona, no silêncio de sua casa, Cláudia suspirou, incapaz de

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juntar os fragmentos de informação que recebera. Estava com uma enorme mancha roxa em um dos braços. Naquela tarde, um garoto tentara roubar sua bolsa na saída do conjunto habitacional. Já havia passado alguns minutos tensos, nas escada, quando um viciado quisera obrigá-la a lhe dar dinheiro. Se fosse honesta consigo mesma, admitiria que aquele trabalho a estava deixando deprimida e exausta, sem que recebesse nada em troca. Até agora, não sentira a mais insignificante manifestação de que seus esforços estavam tendo algum resultado positivo. Sem dúvida, fora um dia péssimo. Apesar de parecer existir um canal de comunicação entre as duas, Katriona parecia sentir um enorme prazer em provocá-la e até mesmo magoá-la de verdade. Os comentários eram tão maldosos que pareciam revelar um ódio intenso contra ela. A jovem conseguia encontrar seus pontos fracos, pois tinha uma inteligência excepcional. O desejo do pai de mandá-la para Oxford não era apenas um sonho ambicioso. Já sabia o que Janice lhe diria quando relatasse a história do passado familiar de Katriona. Sua supervisora não hesitaria em afirmar que tudo não passava de um amontoado de mentiras, uma ficção para glorificar a si mesma. Entretanto, Cláudia tinha quase certeza de que, naquela tarde, a jovem falara a verdade. Ainda antes de escrever o relatório, Cláudia tentava preencher os detalhes que Katriona deixara de mencionar. Era evidente que a garota sentira ciúmes da dedicação do pai ao ensino e aos meninos que ensinava. Aliás, não passava de uma reação natural. A morte trágica da mãe afetara a ambos profundamente. Não seria difícil entender como um professor de meia-idade devia ter reagido diante da morte súbita da esposa. De um momento para o outro, passara a ser o único responsável por uma criança... uma menina] O pobre homem não devia ter a menor noção de como agir e, desorientado, mergulhara de cabeça em seu trabalho. Sentindo-se abandonada, Katriona tentara forçá-lo a tomar consciência de sua presença e de suas necessidades, tornando-se uma adolescente difícil e rebelde. Na verdade, era um caso clássico da criança que decide atrair a atenção paterna por meio de mau comportamento, certa de que será melhor assim do que não conseguir atenção nenhuma! ― Quantos anos você tinha quando saiu de casa, Katrio-na? ― perguntara Cláudia. Ela tentara não mostrar a importância dessa pergunta, mas Katriona ficara imediatamente alerta. ― Eu tinha catorze anos e não saí de casa... fui mandada embora. Ao notar a expressão compadecida no rosto de Cláudia, Katriona deu um sorriso maldoso. ― Você não acredita em mim, não é? Pois é verdade, cara. Recebi um ultimato... assim como meu pai. Se ele quisesse manter seu emprego, eu tinha de ir embora. Minha presença adolescente no meio de um bando de meninos era bastante perturbadora. É claro que poderíamos ter deixado a escola e ido viver na cidade. Eu odiava aquele lugar, mas ele adorava seus alojamentos. A expressão de Katriona se tornou distante, como se ela estivesse relembrando um lugar real do passado.

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― Era um apartamento amplo, com cômodos muito bem proporcionados e de arquitetura clássica. Entretanto, o pé-direito era muito alto, tornando o aquecimento quase impossível, e a escola se recusava a instalar um aquecedor central. No inverno, as janelas do meu quarto ficavam sempre cobertas de gelo, e só podíamos tomar banho depois de todos os alunos e, obviamente, a água estava gelada. ― Deve ter sido difícil para você... Katriona já não ouvia as palavras de Cláudia. A droga fizera efeito, bloqueando sua capacidade de raciocinar. A expressão da jovem se tornara desconfiada e quase desvairada, tornando impossível qualquer conversa produtiva. Catorze anos... Cláudia suspirou, antes de continuar a redigir o relatório. Katriona era apenas uma criança quando saíra de casa, mas as ruas de Londres e de muitas outras metrópoles estavam cheias de adolescentes dessa idade, e até mais jovens. A década de setenta provocara uma revolução cultural, e esse era um dos aspectos mais desoladores. ― Você não devia estar trabalhando em Londres ― declarara Janice, havia apenas uma semana. ― Está mais preparada para ajudar pessoas idosas em alguma cida-dezinha do interior! ― Tenho as qualificações necessárias para esse tipo de trabalho ― respondera Cláudia, irritada com o comentário desdenhoso da supervisora. ― Talvez esteja preparada no aspecto académico, mas emocionalmente... ― Janice dera um sorriso sarcástico ― nunca estará. Você é do tipo que cerra os dentes e tenta aguentar a pressão, até o momento em que entra em colapso. Então, somos obrigadas a assumir sua carga de trabalho, sem nenhum aviso prévio. É preciso ser dura para sobreviver nesse ambiente. A pessoa tem de compreender bem com que tipo de gente irá lidar. Sentir pena dos pacientes não produz resultado algum, e o único modo de compreender é viver a mesma realidade... ― Como você viveu? ― Isso mesmo ― concordara Janice. ― Como eu vivi! Enfrente a realidade, Cláudia. Existem algumas pessoas que nunca vão dar certo e nasceram apenas para morrer. Vejo que ficou chocada, mas é a pura verdade. Elas não têm futuro nem esperança... nada! Cláudia não respondera, reconhecendo a verdade das palavras de Janice e sentindo uma pena imensa de tantos jovens que iriam perder a vida por causa da droga. Ela ainda se sentia mais angustiada ao pensar no caso de Katriona em especial. Aquela jovem linda e excepcionalmente inteligente não era igual aos casos perdidos mencionados por Janice, e seria capaz de se reerguer, construindo uma nova vida. Se concordasse em ir para uma clínica de reabilitação, seria ajudada a se livrar do vício e poderia procurar uma melhor qualidade de vida. Cláudia tinha certeza de que ela conseguiria ver um lado mais positivo do mundo e agarraria a chance de ser feliz. ― Katriona não quer ver! ― explodira Janice, irritada com a obstinação cega de Cláudia. ― Quanto mais você tentar persuadi-la, mais ela insistirá no erro. Sua única missão na vida é atingir a degradação total. E sua forma de punir a quem quer que a tenha magoado no passado. Alguns desses jovens perdidos têm essa característica au-todestrutiva. Tome cuidado, minha cara. Ela tentará

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punir você, da maneira que puder, pois precisa também destruir os outros, assim como a si mesma. No fundo, Cláudia sabia que era verdade. Em muitas ocasiões, sentira uma maldade profunda, uma verdadeira crueldade, nos comentários de Katriona a seu respeito. Também percebera a obstinação raivosa da jovem em tirá-la do sério, em destruir tudo que fosse diferente de sua visão sombria da realidade. O fato de compreender e sentir pena de Katriona não diminuía a dor causada por seus comentários ferinos. Cláudia acordou quando Garth estava entrando na rua onde moravam. Os dois haviam passado o final de semana na casa dos pais dele ― o primeiro após sua missão na Irlanda do Norte. Depois de três noites dormindo tarde e saboreando os pratos perfeitos e irresistíveis da sogra, Cláudia adormecera a caminho de casa. Fora um fim de semana delicioso, pois Cláudia se dava muito bem com os sogros, que a haviam recebido como se fosse uma filha querida. Entretanto, Garth se mostrara tenso e irritado. Ele não estava aborrecido com ninguém, mas parecia ter dificuldades de se adaptar à vida normal, após semanas de muita tensão e perigo, provocados pela permanência em um ponto altamente explosivo da Irlanda do Norte. Ninguém mencionara essa missão nos dois jantares oferecidos pelos pais dele, mas Cláudia suspeitava que Garth discutira algo muito importante com o pai, enquanto ela ajudava a sogra a preparar o almoço de domingo. Um amigo de escola do pai de Garth fora jantar lá na sexta-feira. Ele dirigia sua própria agência de relações públicas, com clientes do mundo político e financeiro. Cláudia ouviu-o dizer a Garth que lhe daria um emprego caso decidisse deixar o exército. ― Mas eu não sei nada a respeito de relações públicas ― havia dito Garth, rindo. ― Pois está enganado, meu caro ― declarara Nicholas Forbes. ― Você promove uma imagem por meio de seu trabalho, e essa é a essência do relacionamento público. Tem facilidade de se comunicar, sabe trabalhar com os indivíduos, tirando o que eles têm de melhor. Ao ouvir as palavras de Forbes, Cláudia percebeu que ele fizera uma avaliação perfeita de Garth. Também saberia que o filho do amigo tinha dúvidas sobre o futuro dentro do exército, agora que estava casado e pensando em criar uma família? ― Não creio que eu seja ambicioso demais ― havia dito ele, logo após chegarem^e enquanto tomavam chá na aconchegante cozinha. ― Entretanto, logo terei uma família para sustentar e também não quero ser um pai ausente. Garth não pretendia dizer toda a verdade aos pais, para não feri-los. Ele e Cláudia haviam decidido, ainda antes do casamento, que os filhos de ambos nunca seriam mandados para colégios internos, uma experiência que os dois tinham detestado. Enquanto Garth trazia as malas e os caixotes de frutas e verduras que a sogra insistira em mandar, pois haviam sido cultivadas em sua horta e seu pomar, Cláudia decidiu fazer um chá. Ela estava enchendo a chaleira quando ouviu os passos de Garth às suas costas. Ao virar-se, foi envolvida pelos braços dele.

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― Garth! Eu ia fazer um chá para nós. ― Eu não quero chá, querida... quero você. Quando ele chegara, na quarta-feira, tinham se amado apaixonadamente. Na quinta-feira, haviam saído para jantar, mas voltaram mais cedo porque Garth não podia manter as mãos longe dela. Na sexta-feira, fora acordada por carícias que indicavam mais um intenso ato sexual. Cláudia percebera que a urgência de Garth e a intensidade quase excessiva das carícias eram resultado de várias semanas da tensão na Irlanda do Norte. Sempre que voltava para casa, após um período de ausência, ele não disfarçava o quanto a desejava nem a necessidade quase urgente de recuperar a intimidade interrompida pela separação. Mas dessa vez havia algo mais. Era como se ele estivesse reafirmando o poder da vida e mal conseguindo controlar um lado mais agressivo da personalidade masculina. Na casa dos pais dele, Cláudia se dera conta da fragilidade da vida. Durante a ausência do marido, recusara-se a pensar nos perigos que Garth corria em Belfast. Como todas as outras pessoas que temem pela vida de seres amados, evitava admitir os próprios terrores, acreditando que assim o tornaria mais vulnerável. Nessa noite, acordara inúmeras vezes, apenas para ter certeza de que ele estava mesmo ao seu lado. Talvez por esse motivo não tivesse objetado quando ele insistiu em fazer amor, na casa dos pais, algo que sempre a deixava constrangida e sem condições de relaxar comple-tamente, apesar de o quarto deles ficar no outro extremo da casa. Também sentira a necessidade incontrolável de alcançar uma proximidade ainda maior que só seria alcançada por meio do sexo. Conseguira superar mais algumas de suas inibições e se entregara ao prazer. Agora Garth parecia estar disposto a dar mais um passo na conquista das últimas barreiras que a separavam de um abandono total. Garth estava às costas dela, segurando-a com firmeza pela cintura, enquanto abria a blusa de cambraia, a fim de tocar os seios rijos. ― Incline-se para a frente, amor ― murmurou ele, enquanto abria o botão da saia de Cláudia, deixando mais essa peça cair ao chão. A julgar pelos comentários de amigas, ela se considerava bem pouco aventureira em questão de sexo. Era bastante convencional, imaginando que a noite era o momento ideal para o amor, e a cama o lugar mais certo. Os dois estavam na cozinha, quase em frente a uma janela, e Cláudia tinha certeza de que não conseguiria relaxar. Mas Garth a enlouquecia com carícias, e ela esqueceu-se de onde estava. A posse foi rápida e quase violenta, mas Cláudia nunca tivera um orgasmo tão intenso e prolongado. Sentiu-se como se estivesse prestes a desmaiar e apoiou as costas no peito do marido para não cair, pois suas pernas pareciam não sustentá-la mais. ― Sabe o que vamos fazer agora? ― murmurou ela, carregando-a nos braços. ― Iremos para a cama... fazer amor mais uma vez e pelo resto da noite. Cláudia estava sem energia para protestar. Entretanto, ela encontrou forças para mais um ato sexual intenso, e só quando o sol começou a raiar levantouse para ir ao banheiro. Então, deu-se conta do que fizera... ou melhor, do que deixara de fazer.

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A caixa de pílulas anticoncepcionais estava sobre a cómoda, onde a deixara antes de ir para passar o fim de semana na casa dos pais de Garth. Nem havia percebido que as esquecera! Apavorada, admitiu que deixara de torná-las por três dias... três noites em que haviam feito amor muitas vezes, sem tomar nenhum outra precaução. Ela sentiu o estômago se contrair. Sem dúvida, seria difícil ter engravidado... afinal, não estava em seu período mais fértil... ou será que estava? Na manhã seguinte Cláudia contou tudo a Garth ― antes de fazerem amor mais uma vez. Mas ele não pareceu tão preocupado quanto imaginara. ― Isso quer dizer que você pode estar grávida. Mas nós somos casados ou será que esqueceu-se disso? Estamos querendo iniciar uma família... com muitos filhos. ― Mas não pretendíamos começar agora ― protestou ela. ― Não podemos criar uma criança neste apartamento, concorda? E também não temos posses suficientes para pagar o aluguel de um outro, em um bairro melhor de Londres. ― Podemos sair da cidade e morar em um vilarejo do interior, onde tudo é muito mais barato do que aqui. Seria assim tão ruim? ― A minha supervisora ficaria furiosa. Sei que Janice jamais me aprovou completamente. Continua achando que não estou à altura do trabalho que ela orienta. ― Sei o quanto você se importa com o fato de poder trabalhar, mas... Garth a abraçou, apoiando o queixo sobre sua cabeça. Cláudia encostou o rosto no peito amplo, aspirando o perfume másculo do marido. Sentira tanta falta desses momentos de infinita ternura! ― Você se sente de fato feliz em Londres, querida? Gosta mesmo de morar e de trabalhar nesta cidade agitada? Cláudia ergueu o rosto, disposta a afirmar que adorava viver em uma metrópole, pois sempre morara em cidades pequenas. Então, percebeu que seus olhos se enchiam de lágrimas e uma verdade desconhecida até mesmo por ela escapou de seus lábios. ― Não! Pensei que gostasse, mas... não é verdade. Acho que Janice estava certa, sabe? Talvez eu não tenha o preparo necessário para lidar com esse tipo de problema. Talvez minha vocação seja cuidar de pessoas idosas em algum vilarejo do interior, como ela mesma disse, ou em quermesses de igreja! ― Não seja tola ― declarou Garth, tentando animá-la. ― Existe pobreza e sofrimento também em cidades pequenas e no interior. Os problemas são iguais, mas as formas são diferentes. Três semanas depois de a licença de Garth terminar, Cláudia sentou-se na cama e sentiu uma violenta onda de náuseas. Ela soube, naquele instante, que estava grávida, mas decidiu fazer o exame e ir ao médico, antes de dar a notícia ao marido. ― São más notícias, creio eu ― murmurou ela, sentindo a palma das mãos se cobrir de suor, enquanto segurava o telefone. ― Estou mesmo grávida, Garth. Quando ele lhe perguntou se tinha certeza absoluta, Cláudia concluiu que Garth também não ficara feliz com a notícia. Na verdade, os dois desejavam muito ter filhos, mas era cedo demais e seria melhor esperar até que seu casamento estivesse mais sólido e a vida mais resolvida.

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Depois de desligar o telefone, ela não lutou mais contra as lágrimas. "Não pense que eu não quero você, amor", murmurou ela, tocando o ventre ainda sem nenhum indício de gravidez, "mas ainda é cedo, e nós não estamos preparados para ser pais." Por que se esquecera de tomar as pílulas? Desanimada, ela olhou ao seu redor e viu o quanto o apartamento era apertado e escuro. Seria impossível criar um filho naquele lugar... mesmo que o regulamento do prédio permitisse crianças. Na verdade, ainda não vira nenhuma, e desconfiava que lhes pediriam para mudar quando o bebê nascesse. Além disso, havia o problema de seu emprego. Janice já notara sua palidez e sua falta de energia. O trabalho a que se dedicava exigia muito de seu físico e de suas emoções, as pressões eram ainda maiores porque a equipe diminuíra e seria impossível assumir os casos de quem não tinha forças para dar conta da carga que" lhe coubesse. Ela sabia que algumas companheiras de trabalho, entre as quais estava Janice, acreditariam piamente que ela engravidara a fim de usar esse fato para desistir de seu cargo de assistente social sem passar pelo vexame de admitir que não fora forte o suficiente para continuar. Mesmo que aceitassem as explicações dela, jamais deixariam de pensar que se tratava de uma gravidez deliberada e muito oportuna. Entretanto, Cláudia se julgava à altura daquele tipo de trabalho e nada a convenceria do contrário. Só precisava de mais tempo para aperfeiçoar a arte de se manter a distância e não se envolver emocionalmente com seus pacientes. ― Você continua a mesma! Sua supervisora a surpreendera quando dobrava alguns cobertores que guardara na mala de seu carro. Convencera sua mãe e a de Garth a lhe darem os mais velhos e pretendia distribuí-los entre os sem-teto que dormiam sob as arcadas da via férrea, bem perto de seu apartamento. Era um grupo grande, mas que continuava crescendo a cada dia que passava. ― Eles não irão lhe agradecer por estar bancando a dama de caridade ― alertara Janice, depois de interrogá-la e de saber a quem se destinavam os cobertores. ― Eu não quero que me agradeçam ― replicou Cláudia, com calma, ignorando a provocação da supervisora. Exausta, ela afastou a prancheta sobre a qual redigia mais um imenso relatório. Já passava das seis e todos os outros haviam ido embora, embora não fosse raro que alguém trabalhasse até tarde da noite. Cláudia sentia-se tão cansada que até o esforço de levantar-se parecia excessivo. Como um bebê ainda tão pequeno e quase sem peso algum-poderia exigir uma concentração tão alta das energias maternas, a ponto de deixá-la exaurida como se tivesse escalado o monte Everest? Ela praticamente se arrastou até a rua onde estacionara seu carro e, dez minutos depois, entrou no vestíbulo do prédio, olhando para as escadas com uma expressão de desânimo. Cláudia começou a subir lentamente os quatro lances de escada. Ao alcançar seu patamar, estava tonta e enjoada. Colocou no chão os mantimentos que

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comprara na hora do almoço e estava procurando a chave na bolsa quando a porta se abriu. ― Garth! O que você está fazendo aqui? ― Bem... eu moro aqui ― disse ele, sorrindo e carregando-a nos braços. ― Consegui uma licença de vinte e quatro horas, querida! Achei você um tanto desanimada ao telefone e decidi vir. Ei! Por que está chorando? ― Desculpe-me ― soluçou ela, incapaz de conter o pranto. ― Não sei por que estou chorando, mas... acho que se trata de medo. Não me sinto pronta para ser mãe e... não tínhamos planejado... Ela não pôde prosseguir, porque Garth a calara com beijos muito ternos. ― Agora, me ouça bem, querida. Tudo vai dar certo. Talvez não tivéssemos planejado um filho tão cedo, mas aconteceu, certo? Eu te amo muito, Clo. Não sei se é possível, porém acho que o amor ainda cresceu mais depois dessa notícia maravilhosa. Adoro vocês dois e ― ele tocou o ventre de Cláudia, com uma expressão possessiva ― acho que vou chamá-lo de Hector... ― Jamais! ― exclamou Cláudia, horrorizada. ― Detesto esse nome e, além disso, vai ser uma menina!. Ela começou a rir, mais feliz, até lembrar-se de como era difícil Garth conseguir uma licença, e então sentiu-se culpada. ― Você não precisava ter vindo. ― Mas eu queria estar ao seu lado... ao lado dos dois! Que tal tomarmos uma xícara de chá enquanto conversamos? Você fica sentada, pois está cansada demais. Deixe que eu prepare... Mais tarde, os dois se acomodaram no sofá amplo e confortável, para tomar o chá. ― Eu decidi largar o exército, tão logo seja possível. ― Oh, Garth! Sei que discutimos o assunto, mas só mais tarde. Você... ― Talvez eu esteja mesmo saindo mais cedo do que planejei, mas isso não tem a menor importância. Vou telefonar para Nick Forbes para saber se ele foi sincero ao me oferecer um emprego. ― Mas, Garth... estou me sentindo tão culpada! ― Francamente, Cláudia! Esse bebê é também responsabilidade minha. Talvez mais minha do que sua... Ele lembrava-se muito bem do fim de semana em que seu filho fora concebido. Acabara de voltar da Irlanda do Norte, uma missão tensa demais, que desencadeara nele uma urgência sexual tão intensa que só poderia mesmo ter gerado uma nova vida. O regimento vivera semanas de intenso nervosismo, sempre à espera da morte, como vítima de uma bomba ou de um franco atirador. Seria estranho se ele, como os demais, não tivesse se sentido afetado por esse terror e pelo alívio profundo de ter escapado de uma sombra opressiva, desejando celebrar a vida da forma mais primitiva e natural. Começara a entender os companheiros que já haviam participado de várias missões na Irlanda do Norte, que diziam que tinham a sensação de estar participando de uma roleta russa, sem saber em que momento encontrariam a única bala da agulha e de qual das viagens retornariam em um caixão.

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Logicamente, Garth não mencionara nada disso a Cláudia. Ela imaginava os riscos de cada missão, pois era filha de militar. Entretanto, sua amada parecia ter se tornado ainda mais vulnerável ao engravidar, e seu único objetivo era protegê-la, e à vida que haviam criado juntos, de todos os perigos e aborrecimentos. Na sua opinião, o único lugar seguro era ao seu lado! Já não tinha dúvidas de que abandonaria o exército e, se tivesse sorte, conseguiria um emprego na firma de Nick Forbes. Então, poderia comprar uma pequena casa no campo, perto o bastante para trabalhar em Londres e retornar no mesmo dia para junto de Cláudia e do filho. O futuro talvez ainda não fosse róseo, mas começava a ser mais claro e definido. Garth respirou aliviado e sentiu que Cláudia relaxava em seus braços.

CAPITULO VIII - Você mudou. Está muito diferente...O que é? Cláudia prendeu a respiração ao ouvir as perguntas de Katriona. Estava descobrindo, com muita rapidez, que aquela jovem, apesar de dependente de drogas, tinha uma intuição poderosa. ― Não é nada ― respondeu Cláudia. Nesse instante, o jovem que estivera largado sobre um cobertor imundo no canto do quarto levantou e, dando um salto, aproximou-se muito de Cláudia, que, sem perceber, colocou as mãos sobre a barriga, num gesto protetor. ― Cai fora, Oz ― berrou Katriona. ― Ela é uma assistente social, não passa droga para ninguém! Para alívio de Cláudia, o rapaz afastou-se dela e caminhou, cambaleante, em direção ao corredor, parando apenas para lutar contra uma onda de náuseas. ; ― Esse cara fez uma viagem péssima 'ontem à noite ― explicou Katriona, sem nenhuma emoção no rosto lindo mas frio. ― Não vai durar muito. Ela fez um gesto, como se traçasse uma linha sobre a garganta, e caiu na gargalhada ao ver a expressão horrorizada de Cláudia. ― Aposto que está pensando a mesma coisa de mim, não é? ― O riso se transformou, subitamente, em uma careta de ódio. Essas alterações de estado de espírito não eram apenas um efeito da dependência da heroína, mas também uma característica da personalidade da jovem. ― Katriona... ― Você está grávida, não? Não? ― interrompeu Katriona, à beira da histeria e ignorando as tentativas de Cláudia de levar a conversa com mais objetividade. ― E como seu querido maridinho militar reagiu? Aposto que ficou furioso... eles nunca ficam felizes... ― Na verdade, Garth ficou encantado! ― interrompeu Cláudia, furiosa. Então, ela se calou, percebendo que cometera um grave erro. Deixara que Katriona invadisse sua privacidade, revelando-lhe fatos de sua vida pessoal. Mais uma vez, permitira que as emoções fossem mais fortes que seu lado

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profissional, e o sorriso triunfante da jovem era uma prova de que fora manipulada. ― Garth... ― repetiu Katriona, imitando Cláudia. ― Então ele ficou encantado? Mas você não é mesmo uma mulher de sorte? Eu fiquei grávida uma vez e o pai detestou a ideia. Só queria que eu me livrasse logo do bebê. Ela ouviu a exclamação sufocada de Cláudia e riu maldosamente. ― No fim, não foi preciso fazer um aborto. Eu perdi a criança, certo? Ainda bem! Mas pessoas como você não passam por esse tipo de situação. Planejam tudo, nos mínimos detalhes, não é mesmo? O que disse para ele? Vamos fazer logo um filho, porque assim não preciso mais ir visitar aquela maldita Katriona? É claro que seu bebê vai ter tudo. O pai e a mãe estão encantados e vão comprar o que há de melhor, não é? Aposto que a vovó maravilhada já está retirando a roupa do batizado de algum baú no sótão... o mesmo que você e ela usaram... Cláudia percebeu a intensa amargura por detrás das zombarias de Katriona. A inveja e a raiva da jovem eram tão intensas que, pela primeira vez, sentiu um arrepio de medo, pensando não em si mesma e sim no filho. Atónita, foi envolvida por uma onda de amor materno, um instinto que a impelia a proteger o bebê que ainda não nascera. Pela primeira vez desde que engravidara percebeu o quanto amava aquela criança... o filho dela e de Garth! ― Já pensou um pouco mais na possibilidade de seguir aquele programa de reabilitação? ― perguntou ela a Katriona, ignorando as provocações. Sua intenção era comunicar oficialmente que deixaria de trabalhar quando completasse três meses de gravidez. Garth entrara em contato com Nick Forbes, que confirmara a oferta de trabalho, oferecendo um salário que superava as expectativas de ambos. ― Agora poderemos comprar algo especial, desde que seja fora de Londres, onde os preços são absurdos ― dissera Garth, sem conter o entusiasmo. Os pais de ambos haviam recebido a notícia de que se tornariam avós com uma emoção e uma alegria sem limites. Cláudia era obrigada a admitir que tinham muita sorte, pois tudo estava dando certo na vida deles. Garth seria um pai maravilhoso. Sua reação diante daquela gravidez não planejada lhe revelara um lado da personalidade dele que a fazia amá-lo ainda mais. Cláudia também sentia que seu novo estado lhe permitia demonstrar seu amor pelo marido de uma maneira mais livre, despindo-se das últimas inibições. ― Você fica ainda mais bonita grávida ― dissera ele, uma noite após fazerem amor. ― Acha que poderemos... continuar a ter relações sexuais sem prejudicá-lo? Por sorte, o escuro do quarto escondia o rubor de Cláudia ao fazer essa pergunta. Ela percebera que se entregara com muito mais abandono a Garth, como se a gravidez houvesse aumentado sua sensualidade, transformando-a em uma mulher madura e completa. ― De maneira alguma, querida. Afinal foi assim que o bebê foi parar em sua barriga, certo? Segurando-a pelo queixo, Garth a beijou com infinita ternura. ― Eu já lhe disse o quanto te amo e como você está ainda mais sexy?

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― Mas vou ficar muito gorda! ― protestara Cláudia. ― Vai ficar ainda mais sensual... como a deusa da fertilidade, querida. ― A moda é ser magra. Todas as modelos... ― Todas as modelos são cabides de vestidos e mais parecem esqueletos ambulantes! Você sempre foi muito mais bonita do que qualquer uma delas e ficou ainda mais sensual agora. Logo depois dessa noite, Cláudia se sentiu tentada a aproveitar sua hora do almoço para ir a uma loja especializada em artigos infantis a fim de ver um carrinho de bebê. Garth queria um modelo tradicional, sem nada de muito moderno, que fosse fácil de manejar. ― Para quando eu for levá-lo para passear, aos domingos, enquanto você prepara o almoço! ― brincara ele. Cláudia dera uma gargalhada de alegria. Agora que superara o choque inicial de saber que estava grávida, sentia-se eufórica, esperando ansiosamente pelo dia em que se tornaria mãe. Também não aguentava esperar a hora de ver Garth como pai. Afinal, os dois sempre haviam desejado muito ter filhos e formar uma família grande, e esse aspecto era, para ela, o aspecto mais importante do casamento. Agora tinha condições de compreender melhor as palavras de uma de suas orientadoras, um comentário que, na época, julgara ser uma crítica sem fundamento. "Seu lado maternal é muito forte", alertara a mestra experiente. "Você precisa tomar cuidado para que esse lado não se torne o mais forte e a leve a avaliar as situações de maneira incorreta. Mães costumam ser cegas diante das falhas de seus filhos." Antes de retornar para o regimento, Garth lhe comunicara que já havia marcado uma entrevista com o coronel de seu pelotão. Ela percebeu a tensão na voz do marido e ficou angustiada. ― Você tem certeza de que quer mesmo largar o exército, querido? Eu disse que não gostaria que meus filhos fossem, criados mudando de uma base militar para outra, mas... ― Eu também tenho essa opinião, Cláudia. Com toda a honestidade, acho que optei pelo exército porque não encontrei nada mais interessante para fazer. Creio que, no aspecto psicológico, a escolha significou apenas dedicar-me a uma carreira segura, com um tipo de rotina familiar e bem organizada, sem grandes novidades. ― A educação que recebemos nos torna propensos a fazer parte das instituições e a não arriscar muito. ― Pois tudo vai mudar, querida. Tão logo eu fale com o coronel, começaremosfa procurar um lugar para morar. ― Desde que seja uma casa e no campo ― declarara Cláudia, entusiasmada. ― Eu terei de trabalhar em Londres, mas concordo com você. Procuraremos uma pequena propriedade, não muito distante daqui nem da casa de nossos pais. Talvez com terreno suficiente para uma horta, um pomar e até um pequeno pasto para criarmos carneiros... ― Céus! Assim vai ser difícil. Acho melhor começar a ligar cara algumas imobiliárias especializadas. ― Otimo ― murmurara ele, beijando o pescoço de Cláudia. ― Lembre-se de dizer-lhes que queremos muitos quartos.

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― Para hóspedes? Está planejando convidar todo o regimento para passar os fins de semana conosco? ― brincara ela. ― Não acha que vamos ter um filho só, não é? Quero encher a casa de crianças, e agora sei como é fácil e... gostoso fazer um bebê! Sabe que você estava... diferente, na noite em que... aconteceu? ― Francamente, Garth! Eu me esqueci de tomar a pílula por três dias... e só podia acontecer! ― Não estou falando disso. Sei muito bem quando ficou grávida, querida. Foi naquela noite em que voltamos do fim de semana na casa de meus pais. Você se entregou a mim de uma maneira absoluta... ― Sem nenhuma inibição ― murmurara ela, tão emocionada quanto ele. Aconchegada e protegida pelos braços do marido, Cláudia admitiu que nunca se sentira tão feliz. Entretanto sabia que sua felicidade aumentaria muito quando o bebê nascesse. Uma onda de euforia a envolveu, e, afastando-se de Garth, ela o fitou com uma expressão de alegria pura iluminando seu rosto. ― Eu estava pensando sobre o bebê e... você já se deu conta de como temos sorte? Somos completamente felizes... ― Eu entendo... Garth terminara o discurso que ensaiara por algum tempo, comunicando ao oficial superior a decisão de pôr um fim em sua carreira de militar. Viu o coronel levantar-se da escrivaninha e caminhar até a janela. O coronel era um homem alto, de cinquenta e poucos anos, que vinha de uma família de tradição militar, mas capaz de compreender as mudanças culturais da tão agitada década de setenta. Seu próprio filho, que cursara Eton, a escola mais aristocrática da Inglaterra, e fora destinado desde menino a seguir a carreira paterna, resolveu que preferia viajar para a índia e sentar-se aos pés de um famoso guru. Logicamente essa decisão provocara discussões acaloradas entre pai e filho, mas nada levara o rapaz a mudar de ideia. Na opinião do pai, o garoto mais parecia uma menina, com cabelos longos e roupas extravagantes. Obviamente, o coronel não era o único que tinha essa opinião a respeito de uma juventude disposta a romper todos os padrões e quebrar todas as regras. Havia poucas semanas, ele encontrara um colega de Eton cujo filho deveria assumir o lugar do pai no banco da família. O rapaz se negara a seguir uma carreira que considerava absolutamente sem graça e formara um conjunto.de rock. ― O regimento irá sentir a sua falta ― disse o coronel, virando-se para Garth. ― E eu também. Garth sentiu um imenso alívio. Não era nenhum segredo no regimento que o coronel, sempre bastante colérico diante de mudanças imprevistas, estava ainda mais ranzinza depois da decepção que tivera com o filho. Por sorte, ele era um homem justo e compreensivo. ― Eu gostaria de me desligar antes do nascimento do bebê ― pediu Garth. O regimento iria permanecer na base não muito distante de Londres por seis meses, e Garth queria aproveitar esse tempo para procurar uma casa. Além disso, julgava necessário alguns meses para se adaptar à sua nova vida profissional, antes da chegada do bebê. Em vista de todos esses preparativos,

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precisaria estar livre de qualquer obrigação com o exército dentro de três meses. ― Acho que não haverá nenhum problema ― disse o coronel. ― O seu termo de compromisso conosco termina em três meses e não podemos forçá-lo a assinar um outro. Era uma questão de honra para Garth, tanto como indivíduo como quanto oficial, não largar seu regimento às vésperas de uma missão importante e fora da base. Felizmente, não estava planejado nenhum período de permanência na Irlanda do Norte nos próximos seis meses! Não temia pela própria vida, mas inquietava-se por causa de Cláudia. Ela se comportara muito bem quando ele estivera em Bel-fast, mas ficara -bastante ansiosa, e a angústia sem dúvida aumentaria muito, agora que estava grávida. Depois de superar o primeiro choque diante daquela gravidez não planejada, ela estava decididamente eufórica e encantada com seu papel de futura mãe. Parecia ter se tornado mais madura, deixando para trás a personalidade ainda juvenil. Ele pressentia que, quando o bebê nascesse, iria exigir todo o amor e a dedicação de Cláudia, mas não se sentia ameaçado ou aborrecido com essa possibilidade. Também partilhava a felicidade da esposa e se comprazia em ver o brilho de realização no rosto ainda mais belo da futura mãe. De fato, Cláudia nunca se sentira tão feliz. Ainda não comunicara oficialmente sua decisão de parar de trabalhar, mas suspeitava que sua supervisora já desconfiava que logo teria de substituí-la. Nem mesmo os comentários ferinos de Katriona tinham mais o poder de magoá-la. Parecia estar vivendo em um mundo à parte, protegido de todos os perigos. Chegara a sugerir à jovem que talvez preferisse conversar com uma outra assistente social, pois só tinha críticas a respeito da maneira como o caso estava sendo dirigido. Mas Katriona, que parecia ter criado um relacionamento de amor e ódio em relação a Cláudia, se recusara com firmeza a aceitar outra pessoa. Perdera o controle e a acusara de querer abandonar o caso e de não ter mais tempo para ela depois que ficara grávida. Iria chegar o momento em que teria de entregar o caso de Katriona a uma outra assistente social, mas Cláudia sentia em seu íntimo uma estranha sensação de estar abandonando um ser desamparado. Apesar do ódio evidente e das constantes tentativas de magoá-la, ela não gostaria de ser mais uma a virar as costas para aquela jovem tão vulnerável. Embora as negativas fossem enfurecidas, Katriona estava se tornando mais e mais dependente da heroína, aumentando demais seu risco de vida. ― Ela estará morta em menos de um ano ― declarara Janice, após ter acompanhado Cláudia ao apartamento da jovem, em uma visita mais recente. ― Grave bem as minhas palavras. Já vi outras iguais a ela. Conseguem suportar por um bom tempo a devastação física e, de um momento para o outro, fenecem e morrem. Cláudia apressou-se, chegando quase a correr pela rua. Tinha um encontro marcado para o almoço com um corretor, cuja imobiliária contava com várias filiais fora de Londres. Um sorriso de alegria pairava em seu rosto. Garth a prevenira de que não poderiam escolher nada muito grandioso, mas ela nunca desejara uma

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mansão. Queria apenas uma casa simpática, com uma cozinha ampla e confortável e um jardim para as crianças brincarem. Crianças que seriam uma mistura dela e de Garth. Até os enjoos matinais lhe davam uma sensação de plenitude, reafirmando a realidade de sua gravidez. Era impossível ser mais feliz! Na verdade, era difícil descrever o modo exato como se sentia. Parecia-lhe ter encontrado seu lugar no universo e haver se tornado um ser completo e realizado. A maternidade a levara a descobrir, de súbito, o verdadeiro sentido da vida. Ela amava Garth, mas sabia, intuitivamente, que o amor pelos filhos seria a emoção mais forte e poderosa que jamais conheceria! Angustiado, Garth percorreu o pátio do quartel com um olhar vago. Já havia passado uma hora desde que recebera a notícia e ainda não assimilara o choque. O conflito na Irlanda do Norte já destruíra muitas vidas, tanto de católicos como de protestantes, e agora provocara mais essa tragédia. Um caminhão de transporte de tropas, com soldados ingleses, sofrera uma emboscada em uma estrada isolada na região dos maiores conflitos. Eram cerca de cinquenta homens, e só haviam escapado oito deles, todos tão feridos que não se sabia se sobreviveriam. Seria impossível não sentir uma agulhada de remorso ao se alegrar porque não era um dos mortos mutilados à beira da estrada em meio ao campo, nem um dos feridos em uma cama de hospital. Nem a milagrosa medicina moderna conseguiria juntar as peças e reconstituir um corpo cujas pernas ou braços haviam sido decepados pelas bombas. Ele não conhecia nenhum dos membros desse pelotão em especial, mas isso não importava. Sem dúvida, existiam rivalidades e ciumeiras entre um regimento e outro, porém todos pertenciam ao mesmo exército. Cada um deles era vulnerável, e a tragédia poderia ter ocorrido com qualquer um. ― Terão de embarcar o restante do batalhão, enviando-os para sua base ― comentara um dos oficiais, que ouvira a notícia na mesma hora que Garth. ― Não podem deixá-los lá, porque seria péssimo para o moral da tropa. Deus ajude o regimento que irá substituí-los, e só espero que não sejamos nós os escolhidos. Esse tipo de episódio deixa todos os soldados nervosos demais... O oficial não disse mais nada. Nem seria preciso, pois Garth tinha conhecimento sobre o efeito psicológico de um moral alto, como todo militar graduado e inteligente. ― Você acha que seremos nós os enviados? ― perguntou ele, tenso ao pensar nessa possibilidade. ― E difícil dizer. Nós temos o treinamento especial e a experiência para lidar com situações desse tipo, mas não faz muito tempo que estivemos na Irlanda do Norte. Garth deu alguns passos pelo pátio, relembrando as palavras do amigo. Dentro de algumas semanas, ele se desligaria do regimento e pretendia ver as casas que Cláudia selecionara entre as apresentadas pelos corretores. Isso não demoraria mais do que algumas semanas, depois começaria a trabalhar em seu novo emprego, esperando ter aprendido o essencial, antes da chegada do bebê. Cláudia entrara no quarto mês de gravidez, mas a barriga ainda não começara a aparecer. Um sorriso aliviou a tensão da fisionomia de Garth ao lembrar-se

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de sua última licença. Ela lhe mostrara, orgulhosa, as roupas de gestante que havia comprado. Ah! Ele só esperava que o regimento não fosse enviado para a Irlanda do Norte. Caso isso acontecesse, a honra o impediria de se desligar antes dessa missão! ― Mas... você disse que seu regimento não seria enviado de novo para a Irlanda do Norte! Cláudia encarava o marido com uma expressão angustiada. Quando Garth lhe telefonara, avisando que iria para casa inesperadamente, julgara que ele tivesse conseguido mais uma licença e queria ver o carrinho de bebê que já fora comprado. Sem dúvida, a última coisa que se passaria em sua mente era algo tão desagradável quanto a notícia de uma nova missão no centro da área de conflitos. ― E não íamos mesmo ser enviados, mas houve uma mudança de planos. Garth não pretendia lembrar a esposa da tragédia ocorrida um mês antes e tão divulgada pela mídia. Não se falava mais no assunto, mas Cláudia era filha de um militar e não se deixou enganar. ― E por causa do grupo emboscado na estrada, não? Eles estão trazendo o regimento de volta à base e vocês terão de substituí-lo, certo? ― Sim ― respondeu ele, com um tom de voz sombrio. ― Oh, Garth! Você não precisa ir, é claro! Só lhe restam duas semanas e... ― Você sabe que não é bem assim, Clo. Não posso deixar meus homens na mão e, se eu não for... ― Eu sei ― murmurou ela, desanimada. Irlanda do Norte... Cláudia estremeceu, sentindo uma sombra sobre sua cabeça. Todas as esposas de militares temiam ouvir a notícia de que seus maridos teriam de ir para lá. Normalmente, tentaria não mostrar a Garth o quanto uma missão desse tipo a deixava temerosa e angustiada. Mas dessa vez era diferente. Dessa vez... só conseguiu não se descontrolar e implorar que ele não fosse, lembrando-o de que não seria a única a ficar desamparada se algo lhe acontecesse. Mas Garth lera seus pensamentos. ― Sei o que você está pensando, querida, e posso lhe < jurar que tive os mesmos pensamentos. Mas tenho de cumprir meu dever, entende? Seria uma desonra se eu não fosse junto com meus companheiros de tantos anos. Ela fez um movimento de cabeça, concordado com o marido, mas sentiu o pânico crescer quase sem controle. ― Quando? ― Devo partir no final da próxima semana. Cláudia fechou os olhos. Naquela noite eles fizeram amor com uma intensidade quase desesperada. Depois, em vez de dormir, Cláudia permaneceu acordada, bem junto de Garth, como se não quisesse deixá-lo partir. ― Por que você não vem passar o fim de semana conosco? ― sugeriu a mãe de Cláudia, quando a filha lhe telefonou para dar a notícia da missão de Garth. ― Poderíamos fazer algumas compras para o bebê.

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Ela concordou, e Garth ficou feliz ao saber que Cláudia passaria um fim de semana alegre, ao lado da mãe, e teria menos tempo para se preocupar com ele. O regimento deveria partir na tarde de sexta-feira. Na manhã desse dia, Cláudia foi conversar com Katriona, mas estava tensa demais com a partida do marido e mal conseguia prestar atenção nas palavras da jovem, que, imediatamente, percebeu seu estado de espírito quase ausente. Logo no início da entrevista, Katriona acusou-a de não prestar mais atenção nela desde que engravidara, e quando essa provocação não surtiu efeito, mudou de tâtica. ― O que houve? Você não teve uma tremenda briga com seu maravilhoso Garth, não é? ― Não houve nada e nós não brigamos. ― Ah! Então ele virá neste fim de semana? ― Não ― replicou Cláudia, com frieza. ― Pobrezinha! Quer dizer que vai ficar abandonada todo esse tempo? ― Na verdade, não ficarei abandonada nem um minuto. Vou passar o fim de semana com meus pais. Que horas eram? Garth já teria partido ou ainda teria tempo de telefonar a ele mais uma vez? Se ao menos conseguisse se livrar logo de Katriona! Cláudia olhou de relance para o pulso e lembrou-se de que não estava usando o relógio, pois a pulseira se rompera e ela o guardara na bolsa. Cláudia nem percebeu o olhar de intenso ódio de Katriona, que a observava abrir a bolsa e procurar o relógio. Aquela maldita não estava mesmo prestando a menor atenção nela! Quem ela pensava que era? Por que se julgava tão especial, tão superior? Naquele instante, duas pessoas começaram a brigar no corredor, e o som de vozes alteradas distraiu a atenção de Cláudia. Katriona inclinou-se e retirou as chaves, que brilhavam no fundo da bolsa aberta. Quando Cláudia voltou a olhar, Katriona já as escondera sob sua malha. Sua expressão era de triunfo e poder diante de um furto perfeito. Só imaginava a reação daquela maldita quando não encontrasse as chaves e não pudesse entrar em casa! Pois era bem feito! Katriona tocou as chaves, imaginando como seria o apartamento que Cláudia partilhava com o maravilhoso Garth. Ela sabia o endereço de cor, pois abrira a carteira de Cláudia em outro momento de distração. Agora só faltava abrir a porta e invadir a casa daquela idiota. Uma hora antes da partida do regimento, um dos recrutas foi encontrado no quarto, enforcado. Ele preferira tirar a própria vida a enfrentar o terror de alguns meses de tensão constante, durante os quais não sabia como reagiria. Sem dúvida, era impossível manter em segredo um fato desses, assim como também era impossível permitir que os demais homens fossem para a Irlanda do Norte nessas condições. Foram feitos novos planos, com toda a rapidez, e outro batalhão acabou sendo encontrado para substituir o de Garth. ― Por que não vai ver sua esposa? ― sugeriu o coronel. ― Nenhum de nós poderá fazer nada agora. Será preciso que se instaure um processo. Naturalmente, ninguém tem dúvidas do que aconteceu e não precisamos ouvir que o pobre rapaz estava apavorado e imaginava que sofreria a mesma

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desgraça dos homens a quem iria substituir. Preferiu tirar a própria vida a perdê-la pelo efeito de uma bomba. Garth concordou, angustiado. Ele detestara o fato de ser obrigado a cumprir mais uma missão na Irlanda do Norte, mas não se conformava de ter sido poupado graças a uma tragédia como aquela. Enquanto dirigia para Londres, Garth tentava imaginar a angústia do soldado, nas últimas horas, antes de tomar a decisão final de tirar a própria vida. Por que nenhum deles desconfiara? Visualizou o soldado, quase um garoto, entre seus companheiros de regimento. Ele era calado, pouco comunicativo, e os outros zombavam dele porque gaguejava um pouco. Pois agora não seria mais o objeto de brincadeiras sem graça. Tenso e enfurecido, Garth apertou a buzina, por um longo tempo, quando um carro entrou à sua frente na estrada. De repente, não conseguia mais suportar aquela viagem. Queria chegar logo a casa, queria encontrar Cláudia. Só depois de estacionar o carroé que se lembrou de que Cláudia não estaria! Ele abriu a porta do apartamento e, sem sequer tirar o sobretudo, abriu a porta do armário da sala e retirou uma garrafa de uísque. Nunca apreciara muito as bebidas alcoólicas, mas sentia uma necessidade quase urgente de afogar a dor em uma dose dupla e sem gelo... ou melhor, várias doses bem generosas. Já havia chegado à metade da garrafa quando lembrou-se de comer algo, mas Cláudia, a perfeita dona de casa, deixara a geladeira vazia, limpou-a antes de viajar para o fim de semana. O uísque começar a fazer efeito e, embora tivesse encontrado uma lata de feijão, não conseguia achar o abridor, Depois de alguns minutos olhando ao redor, um tanto desorientado, achou mais fácil tomar outra dose. Pobre rapaz! Devia ser terrível a sensação da corda apertando o pescoço e... Decididamente, ele estava ficando muito bêbado! Talvez fosse melhor ir para a cama, antes de acabar dormindo na sala. Afinal, ia ser pai... e isso jamais aconteceria para aquele pobre rapaz, que nunca teria um filho, mas devia ainda ter um pai. Como esse homem teria se sentido quando recebeu a notícia? Como ele se sentiria se alguém lhe telefonasse para dizer que seu filho cometera suicídio? Angustiado, Garth parou de se despir e, enchendo o copo de uísque, tomou-o de um gole só. Ele fora o primeiro oficial a chegar, chamado pelo recruta que encontrara o corpo do companheiro. Já vira outros mortos antes, mas aquele era diferente. Garth encheu mais uma vez o copo antes de largar a última peça de roupa jogada ao chão e se atirar na cama, derrubando uma boa parte da bebida nos lençóis perfumados de Cláudia. Ah, se ao menos ela estivesse ali! Pobre rapaz... Ele sentiu o rosto úmido, e só quando o tocou percebeu que eram lágrimas Com um sorriso maldoso, Katriona balançou as chaves. Será que Cláudia já sentira falta delas? Teria alguma ideia de onde as deixara? Katriona duvidava que a idiota tivesse percebido que ela as furtara. Estava preocupada demais com o maldito marido e o maldito bebê para prestar atenção em mais alguma coisa. Por um instante, sentiu-se tentada a jogá-las

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pela janela do quarto, para que se perdessem para sempre. Então, as segurou com força, enquanto alimentava o ódio por Cláudia. Era nela que Cláudia devia se concentrar. Era ela quem precisava de ajuda e de atenção. Aquela maldita se julgava tão segura, tão superior em seu mundo perfeito! Katriona a odiava mais do que já odiara qualquer outra pessoa. O efeito da dose de heroína que injetara havia algumas horas começava a passar. Aliás, o efeito estava passando com uma rapidez assustadora! Ou melhor, assustaria a alguém diferente de Katriona, que pouco se importava com detalhes banais. Nunca tivera medo de nada nem de ninguém! Não temia os clientes ineptos que usavam seu corpo ou os cafetões que tentavam ameaçá-la, forçando-a a trabalhar para eles, ou os traficantes de quem comprava as drogas. Se nunca tivera medo desses indivíduos ameaçadores, com certeza não iria ter daquela idiota metida a aristocrata! Era patético ver como adorava o marido militar, como acreditava em cada palavra que o maldito dizia. Katriona sabia bem demais que todos os homens eram bandidos e falsos. Se tivesse a menor chance, o tal de Garth se tornaria idêntico aos outros, um imbecil que pensa com o sexo e não com a cabeça! Katriona chacoalhou as chaves. Seu fornecedor aumentara o preço da dose, pois o maldito sabia como ela ficava desesperada quando não a conseguia. Estava tentando enganá-la, forçá-la a ceder e aceitar o cafetão de quem era amigo. Havia dito a ela que precisava da proteção daquele maldito, que lhe garantiria clientes suficientes para sustentar seu vício e nunca mais precisaria se importar com dinheiro ou falta de homens. E desde quando ela deixara de encontrar homens que pagassem por seu corpo? Bastava ir para a rua, e era melhor se apressar, ou não reuniria o dinheiro necessário para a dose da noite. Voltou a olhar para as chaves e lembrou-se de que Cláudia iria viajar no fim de semana. Isso significava que o apartamento estaria vazio e... Katriona levantou-se da cama, cambaleante, e se dirigiu para a porta. ― Aonde você vai? ― berrou uma das garotas, ao vê-la tropeçar nos degraus da escada. ― Ainda é cedo demais para encontrar homens! ― Cuide da sua própria vida ― resmungou Katriona, abrindo a porta e quase recuando diante da luz clara do final da tarde. Já escurecera quando Katriona chegou ao apartamento de Cláudia e Garth, após ter seguido um caminho tortuoso e demorado. O ar tinha o cheiro limpo de outono, um aroma nostálgico que lembrava a infância e fogueiras de folhas secas. Mas Katriona nem sequer notou a fumaça perfumada que vinha dos jardins. Ela se concentrava apenas em encontrar o apartamento que procurava. Com um sorriso vitorioso, atravessou o vestíbulo do prédio que, felizmente, estava vazio. A necessidade de mais uma dose tinha se tornado enlouquecedora, e ela não podia perder tempo. Suas mãos tremiam, e precisou tentar várias vezes antes de conseguir enfiar a chave na fechadura. Girou a maçaneta, entrou no apartamento e quase caiu ao tropeçar na maleta de mão que Garth largara bem no meio do caminho. Quando conseguiu achar o interruptor de luz, examinou o obstáculo em seu caminho e procurou ouvir algum som no apartamento. Tudo estava silencioso,

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e ela se arriscou a abrir a maleta, jogando para fora as roupas de Garth, à procura de dinheiro ou algo de valor que pudesse vender. Não havia nada! Katriona entrou na sala e viu o espelho de moldura dourada sobre o aparador. Ela parou e começou a fazer caretas e a imitar a voz de Cláudia. Maldita Cláudia! Ela merecia que seu apartamento fosse invadido! Não tinha o direito de viajar e se divertir, deixando Katriona na mão! Não tinha o direito de ter aquele maldito bebê! Sem perceber, Katriona começou a coçar os braços, sentindo a pele arder por efeito da privação da droga. Irritada, atravessou a sala. Precisava de dinheiro, e aquele idiota devia ter algumas notas escondidas em algum canto. Talvez estivessem na gaveta de calcinhas! Cláudia era bem desse tipo. Viu o relógio e descartou essa possibilidade, pois era pesado demais para carregar, assim como as outras peças de prata. Deviam ter algum valor de revenda, mas não poderia sair do apartamento com um saco nas costas, como se fosse Papai Noel! Havia também alguns bibelôs no aparador e em um armário aberto, mas... Katriona não podia saber que os bibelôs eram de porcelana Dresden do século dezoito e bastante valiosos. A prata também era muito antiga, pois pertencera aos avós de Cláudia. Mas ela queria dinheiro vivo! Começando a ficar desesperada, Katriona desistiu de examinar a cozinha e se dirigiu para o quarto. Teria sido mais proveitoso se houvesse seguido sua rotina de todas as noites e saído à rua para procurar clientes. A essa altura, já haveria reunido cerca de vinte e poucas libras! Ela abriu a porta do quarto e parou, assustada. Não esperara encontrar alguém no apartamento, e havia um homem, completamente nu, largado na cama. Só podia ser o tal de Garth, e ele parecia estar desmaiado depois de ter bebido a garrafa que agora estava vazia ao pé da cama. O instinto a aconselhava a fugir dali, mas uma vontade de se arriscar em uma aventura perigosa a fez ficar. Aquele homem era o marido de Cláudia, o sr. Perfeito, o pai da criança mais importante do mundo! O homem que era tudo que os homens da vida de Katriona jamais haviam sido. Ela se aproximou em silêncio da cama. Reconhecia um homem inconsciente pela bebida. Afinal, perdera a conta dos que já vira nesse estado. Segurou a mão dele e apertou os dedos. Não houve nenhuma reação. Ele estava apagado! Curiosa, examinou o corpo musculoso, de pernas longas e bem proporcionadas. Completamente à vontade, avaliou o tamanho do sexo de Garth. Não era o maior que já vira, mas a maldita Cláudia não tinha do que se queixar. Talvez ela não fosse tão puritana quanto parecia ser. Se seu precioso marido tivesse um mínimo de habilidade e não preferisse uma relação rápida... se a idiota fosse capaz de tirar alguma vantagem dos dotes que a natureza concedera a ele... Katriona podia até imaginar o choque de Cláudia se os visse naquele momento. Iria acreditar que o precioso marido esfava nu por acaso e ela apenas de passagem pelo quarto? Subitamente, Katriona sentiu o impulso de ser a dona daquele quarto e daquele homem. Precisava ser mais forte que Cláudia e vingar-se da falta de atenção dela. Depois de despir-se, com gestos rápidos, ajoelhou-se na cama,

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ao lado de Garth. Então viu um vidro de perfume na mesa de cabeceira e usouo até a última gota, espalhando o líquido entre os seios e acima do sexo. Ela o acariciou por algum tempo, até perceber que recuperava parte da consciência e a fitava com um olhar ainda vago. ― Vamos... quero que você me possua agora, Garth! Quando teve certeza de que ele começara a se excitar, curvou-se para colocar o mamilo entre os lábios dele. ― Por favor, Garth... quero sentir mais prazer. Garth entreabriu os lábios, de maneira instintiva. Uma espécie de sinal de alarme parecia soar em seu cérebro anestesiado, mas não conseguia entender a mensagem. Algo lhe dizia que Cláudia não diria aquelas palavras nem agiria com tanta ousadia. Mas é evidente que só podia ser Cláudia... o perfume era dela. Estava em sua casa, na sua cama e com certeza a sua esposa o acariciava, exigindo que ele participasse de uma relação sexual. Isso nunca acontecera antes, mas... Katriona não abafou uma exclamação de prazer. Não era o sexo que a fazia vibrar, e sim o fato de ser ela a agressora, de ser quem determinava a posição e dava as ordens naquela relação sem nenhuma passividade. O que você acharia agora de seu maravilhoso marido, dona Cláudia? Katriona por fim deixou o corpo descer sobre o membro ereto de Garth e sentiu que ele se movia, ávido de prazer. Tecnicamente, é impossível uma mulher violentar um homem, pelo menos por meio de uma relação sexual convencional. Se Cláudia entrasse no quarto naquele momento, jamais acreditaria que Garth não tomara a iniciativa. ― Agora... vamos, Garth... me mostre do que você é capaz! As palavras pareciam vir de muito longe, um tanto desconexas, mas a mensagem era inconfundível, e o corpo de Garth reagiu da maneira mais primitiva e natural, atendendo a um apelo tão antigo quanto a raça humana. Segurando Katriona pela cintura, começou a se mover dentro dela, ignorando a dor de cabeça brutal e a impressão angustiante de que havia algo muito errado. Katriona sentiu que ele chegava ao orgasmo e sorriu, com um ar vitorioso. Quando Cláudia voltaria para casa? De manhã cedo? Talvez chegasse a tempo de descobrir seu precioso marido dormindo ao lado de outra mulher, ambos nus e abraçados... na cama dela!. Sempre sorrindo, ela deitou-se ao lado de Garth.

CAPITULO IX - Tem certeza de que está se sentindo bem o bastante para dirigir até Londres, querida? Você poderia deixar que eu e seu pai a levássemos... ― Estou ótima, mamãe. Só tenho esse enjoo matinal que é bem forte, mas acaba passando. ― Eu também fiquei muito enjoada ―admitiu a mãe, com um sorriso confortador. ― Deve passar logo, você vai ver.

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― Pois espero que passe mesmo... A gravidez de Cláudia já estava bastante adiantada, mas o peso que perdera junto com o apetite fazia com que ela nem sequer parecesse estar grávida. Aliás, não tinha nada da imagem exuberante e gloriosamente arredondada que costumam representar as futuras mamães. Ela estava com uma lista de casas para visitar e planejara vê-las junto com Garth. Agora ele estava na Irlanda do Norte e ela teria de ir sozinha. Um tremor de ansiedade a percorreu. O que ele estaria fazendo agora? Estava em segurança ou... Um pouco antes da hora do almoço Cláudia conseguiu se despedir dos pais e entrou no carro. Já estava relativamente perto de Londres quando parou para abastecer, e só então percebeu que não encontrava as chaves do apartamento. ― Droga! ― resmungou ela, virando a bolsa sobre o banco do carro e espalhando as dezenas de itens inúteis que haviam se acumulado. Tentou lembrar-se de quando as vira pela última vez, mas não conseguiu. Uma outra realidade de sua gravidez, junto com as náuseas, era o fato de esquecer-se de tudo. Bem... teria de entrar em contato com o zelador, que tinha um conjunto extra das chaves de todos os apartamentos. Talvez as houvesse deixado na casa de seus pais. Tão logo chegasse, telefonaria para eles. Um barulho acordou Garth. Seu cérebro registrou o ruído como sendo estranho, e portanto perigoso, capaz de alertá-lo a despeito da brutal dor de cabeça que quase o impedia de raciocinar. Ele abriu os olhos. Uma respiração alterada pelo susto alertou Katriona que Garth despertara. Ela estava agachada ao lado da cama e com a carteira de dinheiro na mão. Com um gesto furtivo, retirou todas as notas e, enfiando-as no bolso, levantou-se e correu para a porta. Garth foi rápido, apesar da ressaca, mas Katriona correu mais depressa do que ele. Tinha a vantagem de estar vestida e desperta. Ela alcançou as escadas e as desceu, rápido, na direção da rua e da liberdade. Garth permaneceu no patamar de seu apartamento, frustrado, pois não poderia persegui-la completamente nu. Quem era aquela jovem? Na verdade, o mais importante era saber como entrara em seu apartamento. Com movimentos lentos devido à incessante dor de cabeça, ele começou a se vestir. A área em que estavam morando não era bem de luxo, e tinha visto vários grupos de jovens ociosos deitados sob as arcadas, fumando e bebendo. As garotas usavam saias quase inexistentes, de tão curtas, e meias rendadas e passeavam pela calçada, atraindo a atenção dos motoristas dos carros que diminuíam a marcha para examiná-las melhor. Ainda bem que ele e Cláudia iriam se mudar logo dali. Na sua opinião, Londres não era a cidade ideal para criar um bebê. As crianças precisam de espaço, ar fresco e liberdade. Além disso os dois gostariam que seus filhos tivessem a mesma infância descontraída e feliz que haviam tido por morarem no campo.

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Não havia motivo para voltar a dormir agora. Aliás, seria quase impossível. O quarto estava com um cheiro muito forte de uísque e ar viciado, com suas roupas espalhadas por toda a parte. Enquanto abria a janela, tentou imaginar como aquela garota que roubara o dinheiro de sua carteira teria entrado no apartamento. Ele apertou as têmporas, procurando aliviar a dor de cabeça, e lembrar-se da noite anterior. Suas lembranças eram mesmo muito vagas! Recordava-se muito bem de ter chegado a casa, aberto a porta e apanhado uma garrafa de uísque. Depois disso, tudo se tornava confuso e sem sequência. Parecia-lhe ter escutado uma voz feminina, sentido o cheiro de um perfume. Garth franziu a testa, forçandose a evocar os acontecimentos, mas tinha a impressão de estar revendo algum sonho, onde se misturavam sombras e sensações indefinidas. Como aquela criatura entrara no apartamento? Ele foi verificar a fechadura, que já examinara antes, e confirmou que não fora forçada. Precisava conversar com o zelador, saber se mais algum apartamento fora invadido e se haviam notado a ausência de algum objeto valioso. Mas, antes de tomar essa providência, teria de arrumar logo o apartamento, pois Cláudia logo chegaria da casa dos pais. Ela estava pensando em Garth quando virou a esquina e avistou o carro dele parado diante do apartamento. Era uma visão tão inesperada que estacionou mal e, sem se preocupar em retirar as malas, subiu as escadas correndo. Sem fôlego, bateu à porta sem parar, enquanto chamava por ele. ― Garth! Você está aí? Garth? Um bom banho de chuveiro, várias xícaras de café forte e alguns comprimidos para dor de cabeça tinham devolvido Garth ao mundo das pessoas normais, embora não houvessem restaurado mais nenhuma recordação da noite anterior. Parecia-lhe ter perdido as horas entre sua chegada e o despertar sobressaltado, como se a noite não tivesse existido. ― Garth? Eu vi seu carro e... você não devia estar aqui... houve algum problema? ― Eu estou ótimo ― disse ele, segurando-a pelo braço e conduzindo-a até o sofá. ― E você quem parece não estar nada bem. ― Passei a viagem de volta pensando em você. Estava tão preocupada! Quando vi seu carro, subi as escadas... um pouco depressa demais. Por que voltou? Devia estar na Irlanda do Norte! ― É... eu sei. A missão foi cancelada. Algo no tom de voz de Garth alertou Cláudia. Examinou o rosto do marido e percebeu que realmente ele não estava bem. ― Algo está muito errado, Garth. Você... ― Não há nada de errado comigo, mas... ― Garth explicou rapidamente o que acontecera, com uma voz angustiada e a expressão tensa. ― Pobre rapaz! E os pais dele, a família... ― A missão teve de ser cancelada, claro. É impossível manter em segredo um acontecimento como esse, que acaba com o moral da tropa. E... eu tive que dar-lhes essa notícia trágica, Cláudia. ― Oh, querido! Com um gesto carinhoso, Cláudia abraçou o marido. Garth aspirou o perfume dos cabelos dela, fechando os olhos para refrear as lágrimas.

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― O coronel sugeriu que eu viesse para casa. Esqueci-me que você não estaria aqui. ― E você ficou sozinho bem nesse momento tão difícil. Por que não me telefonou? Ele apontou a garrafa vazia, que apanhara a fim de jogar fora, e deu um sorriso desenxabido. ― Tive uma atitude absolutamente idiota ― desculpou-se ele, ao ver a expressão de censura no rosto de Cláudia. ― Mas juro que estou pagando por meus pecados... minha cabeça parece que vai explodir. Agora me fale sobre você. Como está se sentindo? ― Estaria ótima se não fosse o enjoo. O médico disse que deveria passar na décima segunda semana, mas continuo sentindo náuseas. Ah! Antes que eu me esqueça... por acaso não viu minhas chaves por aí? Não consigo encontrálas. Percebi que estava sem elas no meio do caminho. ― Não, eu não as vi. Talvez as tenha deixado na casa de seus pais. ― É... pode ser. Vou telefonar-lhes à noite. ― Acho que deveria telefona agora, Cláudia ― disse Garth, com voz séria. ― Quando eu acordei, hoje cedo, havia alguém tirando dinheiro da minha carteira. A fechadura não foi forçada, portanto... ― Alguém invadiu nosso apartamento ― completou Cláudia, assustada. ― Eu... acha que podem ter furtado minhas chaves? ― Não saberemos enquanto você não verificar se elas estão na casa de seus pais ou não. Mas não acho que seja impossível alguém tê-las roubado de sua bolsa... em vista do seu trabalho. ― Não é mesmo impossível. Cláudia estremeceu, lembrando-se dos corredores imundos, com cheiro de urina e lixo decomposto, das escadas sórdidas dos blocos habitacionais que visitava. Por toda a parte havia gangues de adolescentes drogados e dispostos a tudo para comprar mais uma dose de heroína. O que teria acontecido se ela estivesse no apartamento e fosse acordada por um intruso remexendo em sua bolsa? Cláudia não queria nem pensar nessa possibilidade. Como se adivinhasse o que se passava pela mente da esposa, Garth a abraçou com força. ― Quanto mais rápido nós três encontrarmos uma casa nova, melhor será. Cláudia sorriu para ele e sentiu que o abraço se tornava mais passional. ― São duas horas, Garth! Estamos no meio da tarde e ainda nem tirei as malas do carro. ― E daí? Uma mulher em seu estado delicado não deve descansar toda tarde? ― Isso era na época de nossas mães, querido! Apesar da resposta indignada, Cláudia não se afastou de Garth. Ele sentiu o contato inebriante do corpo sensual e tão familiar... Tão familiar? Um sinal de alerta parecia ecoar em sua mente, mas era algo tão distante, vindo do fundo de seu subconsciente, que ele ouvia apenas um eco vago, um murmúrio que desapareceu antes de poder chegar ao consciente. ― Você acha mesmo que podem ter roubado minhas chaves, Garth?

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― É bem possível, querida. Vou colocar uma trava de segurança na porta., antes de voltar para a base ― prometeu ele, carregando-a nos braços e levando-a até a cama. Garth havia trocado a roupa de cama e levado os lençóis com cheiro de uísque para lavar na lavanderia self-service do bairro. Imaginando que Cláudia iria lhe perguntar por que os trocara, começou a beijá-la para desviar-lhe a atenção. Agora que ela estava grávida eles faziam amor com mais ternura e menos ímpeto. Era uma relação cheia de magia, de meiguice, mas ainda apaixonada e talvez até mais rica de significado, como se a consciência de terem criado uma nova vida os tornasse mais maduros e menos ousados. ― Tenho até medo de possuir você... não quero machucá-la ― murmurou ele, momentos antes de penetrá-la. ― Eu sei, mas o médico disse que não há problema... Na verdade, o ímpeto sexual de Cláudia diminuíra bastante após as primeiras semanas de euforia. Seus seios estavam doloridos e as náuseas ainda não haviam desaparecido. Entretanto, aumentara o desejo e a necessidade de estar sempre bem perto de Garth, de ser abraçada por ele, sentindo uma proximidade física e emocional. Adorava a sensação de proteção que só existia quando os braços dele a rodeavam, de saber que permaneceria ali para cuidar dos dois... dela e do bebê. ― Eu tive tanto medo quando você partiu, querido. Não terá mais de ir para a Irlanda do Norte, não é? ― Acho que não. Agora que a missão foi cancelada, posso adiantar meu desligamento e ficar logo ao seu lado. Cláudia fechou os olhos e se abandonou às sensações de prazer que percorriam seu corpo. Logo seus movimentos acompanhavam os do marido. Apesar de ser um ato sexual muito mais suave, ambos tiveram um orgasmo tão intenso quanto os dos seus primeiros reencontros após as missões de Garth. ― Quanto tempo você vai ficar em casa? ― perguntou ela, quando os dois repousavam, saciados. ― Só quarenta e oito horas. Apoiando-se no cotovelo, ele olhou para a barriga de Cláudia e sorriu, encantado. ― Às vezes, não consigo acreditar que seja verdade. ― Eu também não ― murmurou ela, comovida. ― Você... está realmente feliz, querido? — Claro que sim, amor! ― Ele a abraçou com muita força. ― Estamos realizando um sonho que ambos sempre tivemos, certo? Agora começará a parte mais importante de nossas vidas.

CAPÍTULO X

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Estelle empurrou a porta com o pé e, depois de colocar no chão as duas sacolas de supermercado, ligou a secretária eletrônica para ouvir os recados. Sabia que não encontraria nenhum de Blade, pois ele estava em uma de suas fases mal-humoradas. Entretanto, conhecia bem seu temperamento instável e não tinha dúvidas de que acabaria ligando para marcar um encontro. Ela já estava a meio caminho de volta para a cozinha quando ouviu uma voz familiar. Por uma fração de segundo ficou tensa, e então, deliberadamente, fechou a porta, deixando a voz do pai ecoar no silêncio de uma sala vazia. Seu pai! Ou melhor, o homem que era responsável por sua concepção. Pois ele podia continuar fingindo que queria entrar em contato com a filha querida, que desejava vê-la. Que utilidade tinha a presença dessa figura em sua vida... agora? Três meses... esse fora o período de tempo que ele permanecera junto com um bebê que não queria e depois se fartara de ser pai. Não a desejara antes de nascer nem durante a infância. Pois agora quem não o suportaria por perto era ela. Sentia um enorme desprezo por filhos, do tipo de Tara, que viviam falando dos pais, elogiando a preciosa mamãe e o insuperável papai! Enquanto guardava as compras imitou a voz de dicção aristocrática da jovem. Na verdade sentia ainda mais raiva diante da verdadeira adoração que Garth tinha pela filha. Em sua opinião, pais eram um mal necessário, que se devia suportar até o momento de libertar-se dessa tutela incómoda e mandá-los para o inferno! Na verdade, ela nunca tivera grandes problemas para se livrar. Sua mãe encarava a vida de uma maneira egoísta, e isso significava que nunca fora uma presença dedicada e constante na vida da filha, porque esse papel convencional não a atraía nem um pouco. Estelle lembrava-se da crise de frustração raivosa da mãe, quando mais uma escola de Blade ameaçou expulsá-lo. ― Isso significa que teremos de ficar com os dois em casa conosco ― queixara-se Lorraine ao marido. Nessa época, Estelle tinha seis anos e escutara a conversa da mãe e do padrasto no quarto de dormir. ― Ele ainda não foi expulso ― declarara Ethian, tentando acalmá-la. ― Se isso realmente acontecer, acho que encontraremos logo uma outra escola para ele. ― Eu gostaria muito de enviar Estelle para um colégio interno. Mas se eu tomar essa decisão, tenho certeza de que o pai dela cortará minha pensão, limitando-se a pagar as mensalidades. Vou perder dinheiro! ― Ele sabe que você a colocou em uma escola pública? ― perguntara o padrasto de Estelle. ― Claro que não! Ele não tem a menor ideia de quanto é necessário para sustentar uma filha. Nem posso pensar na fortuna que deve ter gasto com a casa que comprou para Sophie ou no fundo que deve ter feito para o filho deles. Por que não fez o mesmo para Estelle? ― Porque ela é uma menina e não justifica esse tipo de investimento.

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Agora Estelle sabia por que motivo o pai a abandonara! Tinha ido embora quando ela ainda era um bebê porque nunca quisera uma filha mulher. Pensativa, ela caminhou de volta para o próprio quarto. Estava mais do que acostumada a ouvir as queixas da mãe sobre a mesquinharia do pai. Lorraine adorava roupas bonitas e caras, para frequentar todas as festas da sociedade; exigia férias de verão em Barbados e de inverno na Toscana. E Estelle aprendera bem cedo que a mãe se ressentia profundamente com quem a impedisse de realizar seus desejos. Não havia nada que Lorraine gostasse mais do que acompanhar o marido às recepções de grandes empresários, uma obrigação social que Ethian era obrigado a cumprir, em função de seu trabalho. Era uma mulher bonita, vaidosa ao extremo e profundamente egocêntrica, que dividia seu tempo entre salões de cabeleireiro, massagistas e compras. Estelle sabia perfeitamente bem que, se ligasse para o apartamento no condomínio de elite que a mãe persuadira Ethian a comprar, sempre ouviria apenas a mensagem da secretária eletrônica. Se deixasse um recado, Lorraine jamais se dignaria a perder alguns minutos de seu precioso tempo para responder. ― Agora você é uma mulher adulta ― declarara a mãe, quando ela completara dezoito anos. ― E acho que devia começar a procurar um lugar para morar sozinha. É realmente importante nessa idade... Estelle entendera muito bem o que a mãe pretendia dizer. As duas eram mulheres adultas, e Lorraine não tinha a menor intenção de partilhar nada que considerasse seu com ninguém, nem mesmo com a filha. ― Você tem a mesada de seu pai, e eu darei uma palavrinha com Ethian a esse respeito. Estou certa de que ele se prontificará a ajudá-la. Ela estava vivendo havia menos de seis meses em um apartamento minúsculo e escuro, quando Ethian parara de mandar-lhe o dinheiro que prometera dar. Restava a mesada que o pai enviava, mas não era suficiente para se sustentar, mesmo somada à quantia ridícula que recebia como vendedora de uma butique exclusiva em Bond Street. Era uma loja requintada e lhe permitia comprar roupas a preço de custo, mas não ganhava o bastante. Então, uma das garotas com quem trabalhava insinuara que sabia como Estelle poderia ganhar um bom dinheiro. No fundo não era algo muito diferente do que Lorraine fazia! Sim, sua mãe podia estar casada com Ethian, mas nunca fora nenhum segredo para a filha que Lorraine usava as relações sexuais com o marido apenas para conseguir o que desejava em questão de roupas, férias e jóias. A única diferença seria que Estelle não se restringiria a um homem só! ― Estelle já telefonou? ― perguntou Sophie Frensham ao marido. O pai de Estelle balançou a cabeça, num gesto de desânimo. ― Ainda não. Vou esperar um ou dois dias e ligarei de novo. Interpretando corretamente a expressão do marido, Sophie afastou as frutas que preparava para fazer geléia e, enxugando as mãos, cruzou a cozinha para abraçá-lo. A cozinha, como o resto da casa, era enorme e antiquada. Ao herdar aquela propriedade do pai, cerca de dez anos atrás, John lhe prometera que ela poderia modernizar tudo, tão logo sobrasse algum dinheiro. Mas se ele podia

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ser considerado rico em termos de terras e bens imóveis, nunca tinha um centavo no bolso. Ele sempre dizia que tomar conta de uma fazenda pequena não era uma maneira sensata de ganhar a vida. Apesar disso, Sophie sabia o quanto John se orgulhava do fato do filho deles, Ian, ter decidido seguir os passos do pai. Sophie conhecia John desde a infância. Seu avô fora o lorde superintendente do condado e, embora a família dele não arrendasse terras da propriedade senhorial, costumava ser convidado, como todas as crianças locais, para as duas festas importantes realizadas na mansão e oferecidas por seus avós aos arrendatários. Apesar de terem aproximadamente a mesma idade, tinham seguido caminhos diversos para alcançar seus obje-tivos diferentes. Sophie morara no exterior, aprendendo e depois ensinando francês. John, como a maioria de seus contemporâneos, repudiara as tradições e se recusara a cumprir o papel determinado pelos pais para ele. Em vez de aprender a ganhar a vida na fazenda que um dia herdaria, fora para Londres, que, na época, era a Meca de todos os jovens. Londres na década de setenta... Sophie lera e ouvira falar muito desse período de loucuras e despreocupação, mas não conseguia imaginar John, o homem que amava e conhecia tão bem, como parte daquele cenário exuberante e tresloucado. Os pais dela havia ficado bastante preocupados quando lhes comunicara que pretendia se casar com John. ― Ele é divorciado e tem uma filha ― comentara a mãe, com calma, mas se esconder a contrariedade. Sophie se recusara a ouvir conselhos e não desistira de seus planos. Sua fé em John fora mais do que justificada, e ele retribuíra todas as suas expectativas. No final do mês, Rebecca, a filha deles, celebraria o vigésimo primeiro aniversário. O irmão de Sophie, que herdara a propriedade senhorial do avô, oferecera o salão de baile da mansão para celebrar o evento, e Sophie sabia o quanto a presença de Estelle, a primogénita, era importante para John. Em seu íntimo, Sophie nutria sérias dúvidas a respeito da vida que Estelle estava levando. Uma espécie de instinto feminino em relação à enteada a alertava que John ficaria profundamente chocado... e ferido, se soubesse da verdade. Ela o amava demais para mencionar o assunto diante do marido. Não queria decepcioná-lo, e esperava, com fervor, que a jovem também não o fizesse! ― Ela é minha filha, a primeira que eu tive, mas é uma estranha para mim ― lamentou-se ele. ― Não posso me queixar, porque a culpa é toda minha\ Eu devia ter tentado com mais empenho, feito alguma coisa concreta. Na verdade, estava tão feliz por me livrar daquele casamento que nem pensei em exigir meus direitos de acesso a Estelle. ― Tudo era diferente naquela época. ― Sophie tentou reconfortá-lo, abraçando-o mais forte. ― As pessoas realmente acreditavam que uma criança pequena estaria melhor sob os cuidados da mãe. Além disso, você tentou, querido.

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Sophie lembrou-o de todas as tentativas inúteis para persuadir a ex-esposa a permitir que Estelle passasse as férias escolares na fazenda. Lorraine nunca recusara claramente, mas criara empecilhos que tornavam impossível uma estada mais longa. A menina só passara alguns fins de semana prolongados com eles. Também havia o problema da mesada exorbitante que John fora obrigado a enviar para a filha mais velha até seu vigésimo primeiro aniversário. Era uma quantia muito mais alta do que os dois filhos do segundo casamento recebiam. Quando Ian cursara a faculdade de agronomia, tivera de trabalhar para ajudar a financiar sua educação, assim como Rebecca. A política agrícola atual, aliada à doença que afetava todo o gado inglês, impedindo-os de vender carne para o exterior, provocara uma alteração drástica nos métodos utilizados por John para administrar a fazenda. Cada centavo ganho precisava ser reinvestido, e a situação ficara bastante dura. Entretanto, sempre que começava a se ressentir com a fortuna enviada para a filha mais velha de John, Sophie se forçava a lembrar o quanto seus filhos tinham sorte por poderem contar com a presença amorosa do pai em sua vida e como sempre fora gratificante o convívio de todos os momentos ao lado de um homem maravilhoso. John admitira, constrangido, que nunca se interessara por Estelle enquanto ela era apenas um bebê. ― Tudo estava errado! A gravidez de Lorraine e o nascimento de Estelle nunca deviam ter acontecido, entende? Lorraine jurou, durante os três" primeiros meses, que ia fazer um aborto. Acabei convencendo-a a mudar de ideia... eu não poderia permitir isso. A expressão de John revelava o quanto um aborto o chocava. ― Nós brigávamos como cão e gato... jamais devíamos ter nos casado. Foi desastroso desde o primeiro momento. Só Deus sabe o que eu estava pensando naquela época! Então, quando Lorraine percebeu que eu falava a sério sobre voltarmos para a fazenda, definitivamente, foi a gota d'água. Ela preferia a morte a sair de Londres. Na verdade... Ele se calou, desanimado. De que adiantava reviver tudo? Afinal, Sophie já ouvira a história de seu casamento destrutivo ainda que por sorte breve. Sophie o observava em silêncio. Sabia o que o marido estava pensando. Ele desejava, ardentemente, que Estelle lhe telefonasse e aceitasse o convite para o aniversário da meia-irmã, Rebecca. John sonhava em ver a filha mais velha se tornar parte de seu conjunto familiar, que era tão feliz. Na verdade, ela não tinha muita certeza sobre que fato, em especial, a alertara sobre a verdade a respeito de Estelle. Talvez fosse um sexto sentido, um sombrio pressentimento, que tentara com desespero afastar de sua mente, até a suspeita se tornar uma realidade, pelo comentário inocente de uma amiga sua que encontrara a jovem em Londres, na companhia de um homem muito mais velho. O homem em questão era cerca de trinta anos mais velho e muito bem-casado. A amiga de Sophie julgara que o fato de encontrá-los juntos fosse completamente inocente. Afinal, ela mesma o apresentara a Estelle no último Natal, quando a jovem surgira, sem ser esperada, na casa do pai.

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Sophie sabia que isso não era verdade, mas jamais tocaria no assunto com John para não magoá-lo. Ele já se sentia culpado demais em relação à filha. ― Eu devia ter processado Lorraine e pedido a custódia de Estelle! ― havia dito ele, quando a menina estava com onze anos. Estelle acabara de passar uma semana com eles, recusando-se a partilhar de todas as atividade, com uma expressão desdenhosa no rosto encantador. Também evitava a companhia dos irmãos, trancando-se no quarto e passando horas a fio no telefone. A conta daquele mês fora astronómica! ― Ela devia estar correndo no campo, brincando com os outros, e não... Estelle não parece uma criança e sim um adulto em miniatura. Eu me sinto tão culpado, Sophie! Tão impotente... por que não tentei com mais empenho? E poderia mesmo ser diferente se John tivesse tentado e Estelle crescesse rodeada de amor e segurança, como Rebecca e Ian? Se ela se adaptasse à disciplina carinhosa mas rígida à qual os outros dois haviam sido submetidos? Se ela soubesse, como os mais novos nunca haviam ignorado, o quanto era amada e desejada? John viu a expressão compadecida de Sophie, mas não teve coragem de lhe dizer que de nada adiantaria mudar seus sentimentos a respeito de Estelle. A culpa jamais deixaria de atormentá-lo. Ele a observou medir o açúcar para fazer a geléia e agradeceu a Deus pela presença dela em sua vida. Só um ser muito benigno poderia ter colocado aquela mulher maravilhosa em seu caminho e permitido que ela o amasse. Sophie era uma antítese de sua primeira esposa... não existiam no mundo duas criaturas tão diferentes. Conhecera Lorraine no início da década de setenta, enquanto estava morando em Londres. Ela pertencia a uma família operária de um vilarejo no norte da Inglaterra e já estava na capital havia cerca de dois anos quando ambos se encontraram na festa de um amigo de John da época da faculdade. A família dele, principalmente o pai, não havia escondido a reprovação quando John comunicara que, em vez de seguir a tradição familiar de frequentar a universidade local, pretendia estudar na Faculdade de Economia de Londres. ― Esse lugar não é uma faculdade! ― protestara o pai, enfurecido.―É uma sementeira de esquerdistas e desajustados! Mas John não pretendia mudar de ideia. Estava quase com dezenove anos e não se conformava em levar a mesma vida dos pais, que considerava provinciana, sacrificada e bastante monótona. A vontade de fugir daquela vivência estreita provocara uma firme determinação de escapar daquele mundo tacanho de uma cidade interiorana, de ser livre para usufruir o momento histórico de total irresponsabilidade, em Londres, a cidade mais agitada do mundo. Fora nessa fase de rebeldia que conhecera Lorraine. Um ano mais velha do que ele, Lorraine acabara de terminar um namoro com um homem de quarenta anos, alto executivo de uma gravadora que recusarase, conforme John viera a saber mais tarde, a ser arrastado até o altar. Talvez Lorraine fizesse parte da juventude londrina livre de preconceitos e disposta a não aceitar os valores dos pais, mas continuava a ser calculista e fria. Só aceitava o sexo antes do casamento desde que essa concessão de sua parte garantisse o casamento.

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Ela vira a mãe, as tias e a avó levarem uma vida muito dura, que as tornara velhas antes dos quarenta anos. Suas amigas de escola também estavam começando esse processo desgastante, arrumando um namorado local, transando em um incómodo banco de carro, engravidando, sendo obrigadas a aceitar um casamento apressado e socialmente vergonhoso. Algumas já haviam alugado uma casa geminada, em uma rua modesta, pois tinham sorte de contar com um bom provedor e podiam se dar a esse luxo. Outras tinham de se mudar para um quarto vago na moradia dos pais, quando estes aceitavam o fardo. De qualquer forma, a vida dessas criaturas terminava antes mesmo de começar, na opinião de Lorraine. Pois ela não se submeteria a esse destino, em hipótese alguma! Com deliberação obstinada, fez as malas e foi para Londres, onde encontrou seu primeiro emprego em uma das pequenas lojas que surgiam como cogumelos por toda a cidade. Era o momento de derrubar barreiras, de criar uma in-teração entre as classe sociais, sempre absolutamente rígidas na Inglaterra. Embora a maneira da falar menos polida de uma família operária fosse motivo de orgulho, Lorraine preferira treinar sua dicção até perder os hábitos de linguagem que denunciavam suas origens. Também percebeu logo que os homens eram o passaporte para a vida de riqueza que almejava. Só em uma das últimas brigas violentas antes do divórcio Lorraine contou a John que, na época, ele lhe parecera o candidato ideal. Ela o julgara bemrelacionado e, num erro fatal de avaliação, bastante rico. Além disso, percebera que ainda não se tornara cínico como a maioria da juventude dourada de Londres. Sem perda de tempo, havia começado a manipular a atra-ção que John sentia por ela. Encontrara um homem ingénuo o bastante para acreditar que seus sentimentos eram partilhados pela mulher amada e para idolatrá-la como se fosse uma deusa. Os dois se casaram três meses depois de terem se conhecido. A família de John não gostou desse casamento precipitado nem da escolha do filho. E a reação de Lorraine durante a primeira visita à fazenda também fora de profundo desagrado. ― Céus! Como alguém pode viver no meio desse barro todo? ― comentara ela, pouco se importando em ser ouvida pelo sogro. Também reagira mal quando a mãe de John sugerira que dessem um passeio a cavalo. "Deus me livre! Esses animais fedem!" Sem dúvida, Lorraine não se preocupara em se tornar simpática à família. Também percebera, nessa primeira visita, que ele ainda era totalmente dependente do pai. ― O que você quer dizer com "papai parou de mandar a mesada"? O que ele tem a ver com isso? O dinheiro é seu! ― Não, não é, Lorraine. Um tanto nervoso, John explicara a situação à esposa. Ele de fato tinha um fundo substancial, mas não teria acesso a esse dinheiro antes dos trinta anos. Além disso, como se tratava da única poupança familiar, destinada ao filho mais velho, fora decidido que cada centavo deveria ser investido na fazenda.

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― Você enlouqueceu? Se pensam que vou permitir esse roubo estão muito enganados ― explodira ela, ao saber a verdade. ― Esse dinheiro jamais será aplicado na fazenda! Dez semanas mais tarde, depois de os pais de John terem deixado transparecer sua opinião a respeito daquele casamento, ele e Lorraine foram chamados para uma conversa séria na fazenda. ―- Visto que vão ter mais despesas, decidi dar-lhe novamente uma mesada. A situação continua a me desagradar muito, e ainda acho que agiram de uma maneira irresponsável e sem demonstrar a menor consideração por nós. Você sempre soube que... ― o pai parara de falar, balançando a cabeça antes de prosseguir. ― Não vou dizer mais nada. Afinal Lorraine é sua esposa e vai ser a mãe de seu filho... John ainda se lembrava nitidamente do choque que sentira ao ouvir as palavras do pai. Tão logo pôde se livrar, saiu da biblioteca e correu para o quarto, a fim de encontrar a esposa. Ela estava sentada diante da penteadeira, admirando a própria imagem. ― Por que não me contou que estava grávida? ― explodira ele, controlando-se para não perder de vez a calma. ― Eu estava esperando para ter certeza absoluta ― respondera ela, com frieza. ― Não me disse nada, mas contou para meus pais? ― Sua querida mamãe me ofereceu o carrinho de bebê que você usou... ― Então, Lorraine deixou toda a raiva vir à tona. ― Que infelizes! O mínimo que podia se esperar deles era a oferta de mobiliarem o quarto do bebê, certo? Afinal não se trata de um caso em que não existam condições financeiras para tanto. Bastaria vender um pedaço de terra! John a fitava, incapaz de acreditar no que ouvia. Após as primeiras semanas de lua-de-mel, começara a entrever a verdadeira Lorraine, mas agora acabava de se defrontar com uma mulher detestável e interesseira. Ela comprovara, por aquele comentário impensável para quem ama a terra, que o abismo entre eles era impossível de ser transposto. Naquele momento, John soube que seu casamento terminara. Fora um erro monumental! Infelizmente, ele não pensou na criança pela qual os dois sempre seriam responsáveis, enquanto contemplava a armadilha em que caíra por estupidez sua. Sentira pena de si mesmo, raiva de Lorraine e, para sua eterna vergonha, nem se lembrara da existência de um futuro bebê. Na viagem de volta a Londres, Lorraine o submetera a um interrogatório a respeito de seu fundo, comentando que conhecia inúmeras pessoas que haviam conseguido contornar as regras e obter acesso ao dinheiro. ― Pois eu não posso ― explicara ele. ― Tenho de obter o consentimento da família e dos curadores do fundo. ― Pois eu não posso ter esse bebê ― gritara Lorraine, descontrolada pela fúria. A determinação dela em conseguir pôr as mãos no dinheiro do fundo passou a ser uma verdadeira cruzada santa para Lorraine. Ela se mostrou impiedosa, implacável e persistente por semanas a fio. Por fim, mostrou-lhe o cartão de consulta de uma clínica de abortos, à qual fora para marcar uma hora. Então, John admitiu que sua esposa ganhara a guerra. Ele também jamais esqueceria da vergonha e da humilhação que sentira, da sensação de ter decepcionado seus pais e deixado toda a família na mão,

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quando teve de procurar o pai e lhe pedir, chegando a implorar, para que interviesse no assunto, convencendo os curadores do fundo a liberar o dinheiro. A expressão de tristeza nos olhos do pai ficara gravada para sempre em sua mente. Depois de muita insistência por parte de seu pai, fora liberada a quantia existente no fundo. Metade fora usada para comprarem uma casa, e a outra parte foi colocada em uma conta conjunta, da qual Lorraine se apoderou, até o último centavo, durante o processo de divórcio. John jamais se perdoaria por ter pensado, por uma fração de segundo, como teria sido melhor se Lorraine tivesse cumprido a ameaça e feito o aborto. O bebê que ela carregava podia ser seu, mas não se sentira pai daquela criança. Fora um acidente do qual não sentia orgulho nem alegria, só a sensação de ter se tornado responsável por uma carga pesada, que nunca desejara nem planejara assumir. Durante a infância de Estelle, ele tentara conversar sobre o assunto, mas não tivera o menor sucesso. ― É tarde demais para fingir que se importa comigo ― dissera ela, com frieza. ― Mamãe me contou tudo. Sei que você queria que ela fizesse um aborto, sei que nunca me quis... John ficara chocado demais para falar a verdade. No fundo tinha muito medo de prejudicá-la ainda mais, contando que fora a mãe quem pensara em fazer um aborto, que o ameaçara com essa possibilidade até pôr as mãos no dinheiro da família. Também preferia não mencionar que Lorraine sempre a usara como um instrumento bélico, uma maneira de ferir, de magoar e de manipular todos, ele e os pais dele. Se ele pagara um preço alto, em termos financeiros, pelo erro brutal de ter se casado com Lorraine, a pobre Estelle fora mais lesada em termos emocionais e psicológicos. O segundo marido de Lorraine era um homem astuto para lidar com dinheiro, tão mesquinho e ganancioso quanto ela. Nas poucas vezes em que haviam se encontrado, John fora obrigado a ouvi-lo se gabar de certas "comissões" polpudas que eram parte de seu alto cargo de executivo. Segundo Sophie, Ethian era o tipo de homem que, apesar de ter um salário muito alto, tinha um orgasmo quando se apoderava das canetas e do papel de carta da empresa, sentindo que levava alguma vantagem. ― Eles são muito parecidos ― comentara Sophie, após um incidente particularmente desagradável em torno das mensalidades escolares de Estelle. ― E nós também somos. John reconhecia que, pelo menos, Ethian conseguira dar a Lorraine o estilo de vida que ela sempre desejara. A empresa em que ele trabalhava era muito conhecida, costumava patrocinar eventos de caridade, jogos de pólo, bailes de gala, exposições culturais e inúmeras atividades sociais de destaque. Se os boatos eram verdadeiros, ela comparecia a esses acontecimentos com vestidos magníficos, coberta de jóias e nitidamente eufórica em seu papel de esposa de um alto executivo. ― Ela está sempre tão elegante ― comentara Sophie, no último Natal, quando uma amiga lhe mostrara uma foto de Lorraine em uma revista de sociedade.

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― Talvez a aparência seja até agradável, mas no fundo ela continua a ser a mesma criatura egocêntrica, fria e gananciosa que sempre foi ― respondera ele, antes de tomá-la nos braços. ― Não se passa um dia sem que eu agradeça a Deus por ter colocado você em meu caminho, amor. Você é a minha felicidade e tem todas as qualidades que um homem pode desejar em uma mulher. John olhou para o telefone e suspirou. Esperaria mais uma ou duas horas e voltaria a ligar para Estelle. Nada alteraria o fato de que nunca havia sido um verdadeiro pai, quando ela ainda era pequena. Fora preciso encontrar Sophie e se tornar pai de Ian, para que se desfizesse a amargura e o ódio, para que se apagasse a sensação de ter sido traído e enganado que sentira quando da concepção da filha mais velha. Só então aprendera como ser pai e descobrira a alegria infinita de ter um filho. Cheio de remorsos, tentara compensar os anos de ausência. Na verdade, continuava tentando! Estelle era sua filha mais velha, a primogénita, mas também era filha de Lorraine. Em seu íntimo, sabia que esse fato seria sempre uma barreira entre os dois, uma realidade inesquecível e penosa que talvez jamais fosse superada.

CAPÍTULO XI - Por que você está com essa cara? Janice viu Cláudia franzir a testa, como se algo a incomodasse, na hora em que a jovem levantou-se da cadeira ― Não me diga que está sofrendo porque vai deixar este "lindo" escritório e nos abandonar... Cláudia deu um sorriso forçado. Tinha passado um dia bastante desagradável, com uma sensação incómoda que não chegava a ser dor, mas... Como se seu organismo sentisse prazer em contrariá-la, uma pontada funda a fez soltar uma exclamação de susto, para logo se transformar em uma cólica violenta, que a obrigou a segurar-se no espaldar da cadeira para não cair. Ela estava no quinto mês de gravidez e pararia de trabalhar dentro de dez dias. Garth também se desligaria do exército em pouco tempo e os dois haviam decidido que ele não começaria a trabalhar no novo emprego até o bebê nascer. O pai de Garth fora promovido, inesperadamente, a um cargo mais elevado no Parlamento, que exigia uma participação muito mais intensa. Esse novo estilo de vida significava viajar inúmeras vezes para fora do país nos próximos doze meses. ― Por que não se mudam para nossa casa? ― sugerira ele, quando Garth e Cláudia comentaram as dificuldades que vinham tendo para encontrar um bom lugar para morar. ― Eu agradeço muito, mas temos de encontrar uma casa logo, antes de o bebê nascer.

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Cláudia soltou um gemido ao sentir uma dor ainda mais forte percorrer seu corpo. ― Cláudia? Ela ouviu Janice, percebeu a intensa ansiedade na voz sempre calma da supervisora e assustou-se ao perceber que murmurava baixinho. ― Oh, meu Deus! Alguém ligue para chamar uma ambulância. Depressa! Agora! Mas Cláudia estava além da capacidade de ouvir ou compreender e conseguia apenas se concentrar na dor, na agonia que parecia rasgar seu corpo. Ela permaneceu consciente durante o trajeto entre o escritório e o hospital, ouvindo a sirene emitir sua mensagem frenética. Percebeu quando a retiraram, com uma rapidez nascida do pânico, da sala de parto e a conduziram para a sala de emergência. Continuou lúcida tempo suficiente para perceber que estava perdendo muito sangue e, para seu horror, para desejar algo que a impedisse de sentir a dor lancinante e impossível de suportar. Cláudia já não estava mais consciente quando o cirurgião declarou que o bebê não respirava, nem quando ele tomou a decisão de remover seu útero. ― Ou operamos agora ou ela morre por causa da hemorragia ― declarou ele, bruscamente. Quando Garth foi por fim foi localizado, tudo terminara. Ele chegou ao hospital em tempo de ver a maca que levava Cláudia, inerte e ainda anestesiada, para a enfermaria. ― O que aconteceu? Cláudia... ―A enfermeira-chefe pediu que vá conversar com ela, major Wallace ― disse a atendente que acompanhava a maca. Garth não teve ânimo de corrigi-la. Ele ainda estava de uniforme e era capitão. Todos os detalhes pareciam mais nítidos e, ao mesmo tempo, sem nenhuma importância diante do que acontecera com Cláudia. Por que aquela impressionante lividez, como se estivesse morta? Por que tão imóvel e... tão sem barriga? A enfermeira-chefe o recebeu em uma pequena sala. Era uma mulher com cerca de cinquenta anos, eficiente e ríspida, com anos de experiência em dar más notícias para.parentes de pacientes. Entretanto, o hábito não tornava mais fácil essa tarefa penosa. ― Sente-se, capitão Wallace. ― Cláudia... a minha esposa ― perguntou Garth, recusando a oferta de uma cadeira e ignorando a determinação mais intensa da expressão dela indicando que deveria ouvir e não falar. ― Sua esposa está sedada e bastante debilitada. Ela perdeu muito sangue e, obviamente, o trauma da operação provoca uma espécie de choque no organismo... ― Operação? Que operação? Garth empalideceu, sentindo que tudo desmoronava ao seu redor. Só haviam lhe contado que Cláudia fora para o hospital, de ambulância, pois as colegas de trabalho julgavam que ela pudesse abortar. ― Cláudia... minha esposa está esperando um bebê e... A imobilidade e o silêncio sombrio da enfermeira-chefe

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deviam tê-lo prevenido sobre a gravidade do que iria ouvir, mas esse alerta não foi o bastante para prepará-lo. ― Sinto lhe dizer que sua esposa perdeu o bebê. Foi um aborto natural, pois a criança estava morta. Ele sentiu como se uma bomba tivesse estourado, inesperadamente, sob seus pés, só que atingindo-o com uma violência muito mais devastadora. A dor, a perplexidade e o terror angustiante dos segundos de silêncio à espera da explosão, seguida pela cacofonia de homens gritando, gemendo de pavor e sofrimento. ― Cláudia perdeu o bebê. Garth ouviu sua própria voz repetindo as palavras da enfermeira-chefe, sem saber por que o fazia, uma vez que ela fora bastante clara. ― Sim. Sinto muito... Quando a enfermeira-chefe calou-se sem terminar a frase, ele sentiu um arrepio de pavor, como se pressentisse algo ainda pior. ― O que... o que mais aconteceu? ― Sua esposa estava com uma hemorragia copiosa. O dr. Knowles tentou estancá-la, enquanto realizava uma transfusão de sangue, mas... ― As mãos que a enfermeira cruzara à sua frente se crisparam, traindo-a. ― Infelizmente, de nada adiantou. O doutor teve de remover o útero. ― Remover o útero? Garth tinha a sensação de que perdia o controle do próprio corpo, tornando-se letárgico e quase paralisado, como um nadador contra a correnteza muito forte e já no fim de suas forças. ― Não havia outra solução, capitão Wallace. Ou ela era operada ou... a hemorragia provocaria a morte da sua esposa. São casos raros... ― Mas infelizmente não tão raros assim ― explodiu Garth, descontrolado pela dor. ― Oh, meu Deus! Cláudia sabe? Ela... ― Ela esteve consciente durante o aborto. Mas foi sedada para ser operada. Ele fechou os olhos, agoniado. ― Quando... a que horas poderei vê-la? ― Só amanhã, capitão. Ela deverá sair da anestesia antes, mas não aconselho... ― Quero vê-la agora! Preciso estar ao lado de Cláudia quando ela acordar. Agora! ― Eu realmente acho que não será aconselhável e... A enfermeira-chefe tentara, mas Garth se recusava a ouvir. ― Quero ver o médico que a operou! Ela suspirou, contrariada. Não havia nada que detestasse mais do que pessoas descontroladas em sua enfermaria. Aquele homem parecia saber muito bem como fazer um escândalo e estava prestes a começar. ― Sua esposa foi colocada em uma enfermaria isolada. Como já lhe disse, seu estado é bastante delicado e não queríamos que fosse perturbada pelos ruídos dos outros pacientes. A enfermeira-chefe preferiu não dizer que já pedira que colocassem uma cama extra, junta da paciente, a fim de poder ficar a noite toda acompanhando o caso, embora fosse sua folga. Não gostara nem um pouco da aparência da

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jovem ao sair da kala de cirurgia, e não toleraria um marido preocupado e furioso andando de um lado para o outro, perturbando a rotina do hospital. Pensando rapidamente, decidiu escolher o menor dos males. ― Está bem, capitão. Poderá ficar com sua esposa, mas lembre-se a cada minuto de que se encontra em meu território, e nele a minha palavra é lei. Para que compreenda melhor, sendo um militar, eu diria que nesta enfermaria eu sou o oficial no comando, e espero obediência absoluta a todas as minhas ordens. A enfermeira-chefe não chegava a ter um metro e sessenta, mas ao olhá-la Garth via uma mulher com uma determinação férrea e uma força que poucos homens possuíam. Para sua surpresa, sentiu, em meio à angústia e à dor, uma espécie de alívio por saber que Cláudia estava nas mãos dela. A enfermaria isolada era uma sala pequena, e os únicos móveis eram o leito do hospital no qual Cláudia dormia, tão imóvel que não parecia sequer estar respirando, e uma cadeira desconfortável. Ela estava com a cânula do soro presa ao braço e parecia não ter uma gota de sangue no rosto lívido. Garth sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Ele estava morto, dissera a enfermeira. Isso significava que Cláudia... que eles iriam ter um filho. Agora as lágrimas escorriam pelo seu rosto, queimando sua pele. O seu filho. Ele deixara de existir antes que Garth tivesse a felicidade de vê-lo, de chegar a conhecê-lo. Uma nova dor se sobrepôs às outras, um sofrimento intenso que o acompanharia por toda a vida. Sentiu uma ânsia incontrolável de segurar nos braços a pequena vida que se apagara. Então viu a enfermeira-chefe parada à porta da enfermaria. ― O bebê, o meu filho... onde posso... Normalmente era a mulher, a mãe, quem fazia essa pergunta. A enfermeirachefe foi pega de surpresa ao ouvi-la de Garth, e ela detestava não ter o controle absoluto da situação. Quase chegou a dizer que o corpo estava no necrotério, mas calou-se a tempo. Na maioria dos hospitais, bebês prematuros ou natimortos não eram considerados "bebês", mas St. Chad era uma maternidade de projeção internacional na área de obstetrícia, orgulhando-se de sua postura moderna. Uma pesquisa feita entre as mães que haviam perdido seus filhos antes do término da gravidez mostrara que essas mulheres tinham uma necessidade muito evidente de saber algo sobre o bebê que não chegara a viver. Ninguém com a experiência da equipe dessa maternidade de alto nível negaria que mesmo natimortos de cinco meses, como o de Cláudia, estavam completamente formados, embora fossem diminutos. A própria enfermeirachefe vira muitas mães ficarem menos angustiadas depois de olharem e até de carregarem os pequeninos corpos sem vida. A política de St. Chad, contrariando a da maioria dos hospitais, não aceitava o costume de dispor, em silêncio e com rapidez, dos bebês que não haviam sobrevivido. Preferiam conferir um tratamento muito mais humano e piedoso tanto para essas pobres crianças como para seus pais. Foi por esse motivo que ela preferiu não revelar a verdade cruel a Garth. ― Não tenho ninguém disponível no momento. Mas amanhã, se quiser vê-lo... ―Vê-lo?―questionou Garth, encarando-a com desconfiança.

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― Algumas mães acham mais fácil... aceitar a perda depois de terem visto... seus filhos. Garth sentiu uma opressão no peito. Era de fato isso que ele queria? Deveria... Cláudia tossiu, interrompendo aquele momento de dilema intenso. Franzindo a testa, a enfermeira-chefe correu para junto da cama. Eram duas da manhã, a hora da morte. A cabeça de Garth começava a ficar pesada, quando viu um ligeiro movimento de Cláudia. Ela mexeu-se na cama e depois abriu os olhos e o fitou com um olhar vago. O rosto pálido parecia feito de cera e refle tia uma dor intensa. Eram duas horas da manhã, a hora da morte. O gemido inicial foi crescendo até se transformar em gritos histéricos que trouxeram para seu lado a enfermeira-chefe e duas ajudantes. Ela tomou o pulso de Cláudia e deu algumas ordens em voz baixa. ― O que vai fazer? O que é isso? ― perguntou ele, ao ver que as duas enfermeiras retornavam com uma injeção. ― E um tranquilizante ― explicou a enfermeira-chefe. ― O dr. Knowles deixou instruções para que o administrássemos... caso fosse necessário. Garth ia protestar, justificando que ela começava a voltar da anestesia, mas não houve tempo, pois a enfermeira já enfiara a agulha na veia de Cláudia. ― Ela ainda não sabe que o dr. Knowles teve de operá-la ― explicou a enfermeira, tão logo Cláudia voltou a ficar inconsciente. ― Ainda não se encontra forte o bastante para receber essa notícia. O organismo precisa de mais tempo para se recuperar da perda excessiva de sangue e também da cirurgia. Nesse estado... Enquanto a enfermeira-chefe falava, Garth aproximou-se da cama e se horrorizou com o rosto pálido e encovado de Cláudia. ― Eu quero vê-lo ― disse ele, abruptamente. ― Quero ver o... meu filho. Dessa vez ela estava preparada, pois sabia que o pedido seria refeito. O corpo minúsculo da criança perfeitamente formada esperava por Garth em uma pequena sala, denominada de "quarto dos pais", para onde estes eram levados para ver os bebês que não haviam sobrevivido. O quarto fora pintado de tons pastel, dando a impressão de que o sol estava raiando através da névoa. Havia um pequeno sofá onde duas pessoas podiam sentar-se com conforto, mas próximas o bastante para seus corpos se tocarem. Discretamente escondido, estava um monitor, que acompanhava os movimentos dos pais, para alertar as enfermeiras, caso a situação escapasse do controle. Os bebês eram colocados em um pequeno berço branco, com um cortinado de tule. Garth sentiu que prendia a respiração ao entrar no quarto. A jovem enfermeira que o conduzira desapareceu, fechando a porta atrás de si, sem nenhum ruído. Ela parou no meio do aposento, incapaz de se mover, de respirar ou até de pensar, pois seu olhar se fixara no pequeno berço. Uma estranha sensação o envolveu, como se, em instantes, o bebê fosse se mover e talvez chorar, naquele tom agudo e comovente dos recém-nascidos. Quem sabe, se ele se concentrasse muito, isso acontecesse?

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Procurando se controlar, Garth aproximou-se do berço. O bebê estava deitado, vestido de branco e com os olhos fechados. Ele não saberia dizer o que esperava, mas com certeza não era aquilo... não um rosto minúsculo com os traços tão distintos. Com uma gentileza de que não se imaginava capaz, tocou a mãozinha diminuta com a ponta do dedo. O bebê era pouco maior do que sua mão. Garth fechou os olhos, e a enfermeira que acompanhava a cena pelo monitor julgou que ele fosse se virar e sair do quarto. Então o viu inclinar-se e levantar o corpo pequenino, tomando-o nos braços. A enfermeira abaixou a cabeça. Havia momentos de privacidade intensa, quando olhos alheios não podem interferir com uma mirada menos emocionada. Algumas dores e certos sofrimentos são profundos demais para ser suportados. Com uma lentidão de sonho, Garth trouxe o corpo do filho até mais perto de seu rosto. Ele era tão pequeno, tão frágil... Percebeu que prendera a respiração, temendo que sua falta de jeito pudesse, de alguma forma, provocar-lhe alguma dor. Desorientado, ele engoliu em seco. Por que o corpinho lhe parecia quase quente? Quase vivo? ― Eu sinto muito. ― Garth surpreendeu-se ao ouvir a própria voz ecoar no quarto, sofrida e ao mesmo tempo de uma doçura inesperada. ― Você não sabe como me sinto triste, filho... Como suportar a dor intensa de saber que nunca chegariam a se conhecer e jamais iriam descobrir a intensa felicidade e os momentos de inquietação de serem pai e filho? Esses poucos instantes, num quarto de hospital, seriam os únicos que partilhariam, representariam toda a vida ao lado daquela criança tão querida e perdida antes de um doce convívio. Não teria lembranças comuns, e esse bebê jamais saberia o quanto significava para eles, o quanto fora desejado e amado. Depois de beijar a testa do filho, Garth o colocou delicadamente no berço. Então lembrou-se de que rira de Cláudia quando ela conversava com o filho ainda na barriga, como se o bebê pudesse mesmo ouvi-la e compreender suas mensagens de ternura. Talvez ele tivesse sentido o quanto era amado... Num impulso de paternidade instintiva, Garth sentiu um desejo incontrolável de proteger aquele pequenino ser, a necessidade urgente de impedir que outros o tocassem e o magoassem de alguma forma indefinida. Por que acontecera essa tragédia? Por que ninguém pudera salvar seu filho? Por que ele não conseguira poupar aquela vida preciosa? ― Nós sempre nos lembraremos de você, meu amor ― murmurou ele, com voz embargada. ― Seus irmãos e irmãs também... A enfermeira viu que o rosto daquele pai estava molhado, e as lágrimas corriam quando ele se despediu do filho com um olhar terno e inconformado. Mas foi só quando Garth entrou na enfermaria que a amargura da realidade o atingiu, com o impacto de uma agressão física. Ele se despedira, dizendo que os irmãos o lembrariam para sempre. Não haveria mais nenhuma criança. Nem agora, nem nunca... Garth acabara de dormir na cadeira, quando foi acordado pelos gritos de Cláudia. Ele conseguira adormecer quando a claridade da aurora começava a

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se infiltrar pela janela da enfermaria e a luz lhe permitiu vê-la sentar-se na cama e se apalpar, tomando consciência do que significava a ausência de barriga. Ele a acompanhou quando a colocaram em uma cadeira de rodas e a conduziram até o "quarto dos pais". Cláudia apertou o bebê de encontro ao peito, com tanta força que Garth mal controlou o impulso, absurdo e ridículo, de protestar, dizendo-lhe que iria machucar o filho. Foi a enfermeira no monitor, muito mais experiente do que Garth em casos como aquele, quem percebeu o que iria acontecer e alertou a enfermeirachefe. Quando Cláudia começou a gritar, recusando-se a permitir que lhe tirassem o bebê dos braços, ela entrou no quarto sem demora e lhe deu a segunda dose de tranquilizante. Ainda assim, foi preciso esperar que Cláudia ficasse totalmente inconsciente antes de conseguirem soltar o bebê de seus braços. Só depois de uma semana, um prazo bem maior do que o previsto, Cláudia melhorou o suficiente para ser informada da remoção do útero. ― Você tem sorte de estar viva ― disse o médico que a operara. ― Sorte? Sorte! Garth estremeceu, sentindo uma piedade imensa, ao ouvir o choro descontrolado e inconsolável da esposa. Cláudia insistiu que ninguém, em hipótese alguma, deveria saber que ela fizera uma histerectomia. Nem mesmo os mais próximos e que a amavam muito! Garth estava tão preocupado com a fragilidade emocional da esposa que concordou sem argumentar. Os pais de Cláudia julgavam que ela apenas tivesse perdido aquele bebê. ― É terrível, querida ― dissera a mãe dela, quando Cláudia voltou do hospital, tentando reconfortá-la. ― Sei que você nem consegue pensar nisso agora, mas virão outros muito em breve. Vendo que suas palavras desencadeavam uma nova crise de choro, a mãe de Cláudia olhou para Garth, sem saber o que mais poderia dizer. Ela havia sugerido que a filha fosse passar alguns dias em York, para se recuperar. Entretanto, o médico dissera a ele, de forma bastante brusca, que o melhor seria encorajá-la a voltar ao trabalho, tão logo estivesse disposta fisicamente. ― Se sua esposa ficar pensando no problema ― declarara ele a Garth, em uma conversa franca ―, e é isso que vai acontecer se não forem tomadas algumas providências, acabará entrando em depressão. Garth concordara, tentando afastar o próprio estado depressivo. Agora já não se podia falar em continuar a busca por uma casa no campo. Também já não havia motivo para ficar à disposição de Cláudia antes de iniciar o novo emprego, mas seria preciso esperar até que ela se recuperasse um pouco mais. Naqueles primeiros e tão difíceis dias, Cláudia alternava momentos de profundo desespero, quando queria que Garth a abraçasse fortemente, com crises de amargura, quando a presença dele a incomodava a ponto de não querer vê-lo e de clamar que o casamento terminara e não adiantava tentarem salvar algo que não teria nenhum futuro. Afinal, qual o objetivo de permanecerem casados se o motivo primordial dessa união deixara de existir?

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― Milhares de mulheres não podem ter filhos, Clo ― repetia ele, com ternura. ― Tantos casais adotam uma criança... nós podemos... ― Adotar? Uma criança qualquer? Eu quero o meu filho, o nosso filho! Eles não tinham mais tido nenhuma relação sexual, embora o médico já a houvesse declarado fisicamente recuperada para retomar a vida de antes. Ao menor sinal de desejo por parte dele, Cláudia apenas se tornava uma estátua de gelo. Qual era a finalidade de um ato sexual, perguntava ela, enfurecida, se não era mais uma mulher de verdade e nunca mais poderia conceber um filho? Garth quase não resistira à tentação de dar-lhe uma resposta pouco gentil, enumerando alguns motivos vitais. O desejo que sentira por ela nunca se prendera à necessidade de concepção, continuava querendo amá-la com ardor. Aparentemente, Cláudia não via a situação sob o mesmo prisma ou não sentia mais nada por ele. ― Sexo, sexo! É só nisso que você pensa? Cláudia o fitara com ódio quando sugerira que já se passara um bom tempo que ela deixara o hospital e, embora partilhassem o mesmo leito, pois o apartamento era minúsculo e não haveria mesmo outro lugar para dormir, nada acontecia entre os dois. Procurara ser gentil, mas com certeza não o fora, pois suas palavras haviam provocado uma reação violenta por parte dela. Essa seria sua última licença antes de se desligar formalmente do regimento, algumas semanas depois da data que ele pretendera, mas já deixara de haver a mesma urgência, diante de seu drama familiar. Chegara a casa cheio de boas intenções. Pretendia levar Cláudia para jantar em algum lugar especial e, após uma refeição perfeita, acompanhada por algumas taça de vinho, talvez ela relaxasse o bastante para que pudessem ter uma conversa séria sobre o assunto de sexo. Seu plano não funcionou. Cláudia ficou tensa o tempo todo e, quando retornaram ao apartamento, mostrou-se raivosa e em uma posição defensiva, fitando-o do outro lado da sala, sem permitir uma aproximação maior. ― Não é verdade, Cláudia ― protestara ele. Ela o impediu de continuar, tomada pela raiva. ― Não mesmo? Tem coragem de me dizer que não me levou para jantar apenas para... me tornar mais complacente com seus desejos? Para criar uma "atmosfera"? ― Fazer amor não é... ― Fazer sexo ― interrompeu ela, com amargura. ― Não doure a pílula, meu caro! ― Tudo bem ― concordou ele, secamente. ― Fazer sexo, como diz você, é uma parte muito importante do casamento. Quando nos casamos... ― Eu não me casei para fazer sexo. Casei-me para ter muitos filhos, criar uma família. Sem essa finalidade, o ato sexual perde o sentido, não significa nada. Nada, entendeu? Garth a fitou, abismado diante daquela afirmação. Ela estaria falando a verdade? Os momentos de intimidade entre os dois, o sexo e o carinho que acreditara terem sido uma partilha de sentimentos, não teria passado de meios para atingir um objetivo único? Muito pouco tempo atrás, acabaria rindo diante dessa ideia absurda, pois ainda eram recentes as lembranças do

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ardor de Cláudia, delirando de prazer em seus braços. Mas agora as reações dela eram de repulsa, de amargura e de ódio. A declaração de que ela jamais o desejara como homem e sim apenas como futuro pai de possíveis filhos o magoava demais. Sentia-se como se tivesse levado um soco no estômago e ficado sozinho para absorver a dor e a humilhação de ser pego de surpresa por um golpe inesperado. As palavras de Cláudia feriam seu orgulho masculino, o castravam! Sua reação instintiva foi segurá-la pelos braços, forçando-a a ouvir. ― Não é verdade! ― Solte-me, Garth! ― Ela tentava escapar das mãos que a prendiam. ― Você está me machucando! ― E você acha que não está fazendo o mesmo comigo? ― Sexo, sexo, sexo! Estou farta de ouvir você se queixar disso! Se precisa mesmo de uma mulher... vá procurar outra, uma que seja... completa... Cláudia parou de falar, dando livre vazão às lágrimas, que começaram a escorrer por seu rosto. No mesmo instante, a raiva de Garth se evaporou, desfeita pela necessidade de proteger a esposa e pelo amor que sentia por ela. ― Eu nunca disse isso, querida. Você é uma mulher completa, a minha adorada mulher e a única a quem desejo tanto. Subitamente, Cláudia se entregou ao abraço do marido, voltando a ser a mulher doce que sentia prazer em uma proximidade sensual. Ele a apertou mais forte nos braços e a beijou com ardor. Ele gostaria, como planejara, de ser calmo e gentil, mas sentiu que seria impossível refrear as emoções, conter a ânsia, tanto física quanto emocional, de possuir aquela mulher, de torná-la sua de novo. Para sua surpresa, Cláudia parecia também ávida, e retribuía cada beijo e cada carícia com idêntica paixão. Os dois fizeram amor na sala, ansiosos demais por fundirem seus corpos e apressados demais para irem até o quarto. Cláudia parecia ter se tornado mais agressiva, segurando-se no sofá e pedindo-lhe que apoiasse as costas dele e mantivesse as mãos livres para acariciá-la. Mesmo durante os momentos de intensa paixão, parte de Garth permanecia preocupada com a fragilidade potencial daquele corpo esguio e, momentos antes do orgasmo, admitiu que suas vidas nunca mais seriam as mesmas. Não era possível voltarem a ser as pessoas que haviam sido antes. Pelo resto de seus dias, o desejo seria menos intenso porque teria de proteger Cláudia, que seria vulnerável para sempre. Garth sabia que ela escondia essa fragilidade vulnerável de todas as pessoas: dos próprios pais, dos sogros, dos companheiros de trabalho e até de seu novo médico. Cláudia decidira que nenhum deles jamais saberia que houvera algo mais sério do que perder um bebê. Ele tentou convencê-la a contar a verdade, a falar sobre o assunto até se libertar do trauma, mas ela resistiu a todos os argumentos, teimando em guardar segredo de sua histerectomia. Mais tarde, Garth a carregou para a cama e foi fazer um chá. Ao voltar para o quarto, viu uma pasta aberta sobre a cama, com a foto de uma garota de olhar desafiante. ― Quem é... ela? ― perguntou Garth, quase derrubando a xícara.

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― É Katriona Spencer ― respondeu Cláudia, fechando a pasta. ― Estou bastante preocupada com esse caso, sabe? Ela desapareceu, e nenhum de seus companheiros de apartamento tem a menor ideia de seu paradeiro. Por que perguntou? O aspecto confidencial do trabalho de Cláudia levava Garth a jamais lhe fazer perguntas a respeito dos pacientes. Ele era uma pessoa de muita sensibilidade e, diferente de outros maridos de suas colegas, nunca se ressentira pelo fato de existirem certos detalhes que ela se recusaria a discutir. Obviamente, uma carreira de sucesso dentro do exército significava que o militar tinha uma noção muito clara do aspecto confidencial. É lógico que existiam inúmeros elementos de seu trabalho que nunca deveriam chegar aos ouvidos da esposa. ― Por nada ― replicou ele, tentando parecer indiferente. Como revelar a Cláudia, agora tão frágil, que reconhecera a garota da foto como sendo a mesma que encontrara roubando sua carteira, dentro do apartamento? Era evidente que a jovem se "apossara" das chaves de Cláudia. Garth franziu a testa, sentindo a perplexidade aumentar. Não tinha muita certeza se o motivo de sua relutância em contar esse fato diante de Cláudia se devia apenas à necessidade machista de poupar a mulher, sempre mais fraca. Afinal, haviam trocado a fechadura e colocado uma trava de segurança na porta. Além disso, não pretendia desistir dos planos anteriores ao drama familiar e continuava determinado a encontrar uma casa e sair logo daquele apartamento. Como não lhe ocorria nenhuma razão para essa resistência em admitir a verdade, afastou o assunto de seus pensamentos. A carta estava à sua espera quando retornou ao quartel, pela última vez. Fora colocada discretamente sobre sua escrivaninha e, desde a porta, era possível ver a palavra "confidencial", escrita em letras bem grandes. Despreocupado, ele abriu o envelope. Ao tomar conhecimento do conteúdo, o choque o fez empalidecer . Era uma folha de papel normal, onde alguém escrevera "Parabéns, papai" e, ao ver a outra folha que havia atrás dessa, soltou uma exclamação de susto. Era o resultado de um exame clínico, confirmando a gravidez de uma mulher. No primeiro instante, teve certeza de que só poderia ser uma brincadeira de mau gosto, uma zombaria cruel que destruiria Cláudia, caso ela ficasse sabendo. Então, Garth chegou à conclusão de que só poderia ser uma peça que o destino cruel estava pregando nele, não por um soldado inconformado por não ter sido promovido. A carta não fora endereçada a Cláudia, mas a ele, e enviada por Katriona Wallace, uma desconhecida que usava seu nome. Engolindo em seco, ele leu o endereço nas costas do envelope. "Katriona Wallace, Stanway House, Victoria Street, apartamento doze." Ele sentiu o estômago se contrair, ao reconhecer o primeiro nome. Katriona... Spencer! A paciente de Cláudia, a garota que invadira seu apartamento, depois de ter roubado as chaves, a jovem que ele vira remexendo suas roupas e esvaziando sua carteira. E essa Katriona agora dizia que ele era o pai da criança em seu ventre? Impossível!

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Era mesmo um absurdo, porque nunca chegara nem perto dela! Jamais a tocara! Suas suspeitas de que os pacientes de Cláudia eram pessoas psicóticas e perigosas acabava de se confirmar. Que alucinação a levara a escolher um desconhecido como ele para assumir o papel de pai de seu filho? Com certeza não seria a quantia mínima que roubara de sua carteira. Então o que a motivara? Teria sido uma ação deliberada de perversidade ou um ato de malícia fortuita, nascido em um momento de tédio? Katriona certamente decorara seu endereço do regimento, pois não roubara os documentos de sua carteira. Isso indicava que houvera deliberação! Parabéns. Com a fisionomia alterada pelo choque, Garth amassou as duas folhas de papel e jogou-as na cesta de lixo. Então, levado por um impulso que não saberia definir, voltou a apanhá-las e procurou por uma caixa de fósforos. Com fria determinação, rasgou-as em pedaços diminutos antes de queimá-las. Essa tal de Katriona estava tentando encontrar um bode expiatório, um idiota que assumisse o erro de outro. Tinha de ser isso! Era absolutamente impossível que ele fosse o pai verdadeiro dessa criança. Essa probabilidade estava fora de cogitação. ― Teve mais sorte com os corretores? Garth forçou-se a assumir um tom de voz alegre ao telefonar para Cláudia. Enquanto esperava a resposta à sua pergunta, visualizou-a parada junto do telefone que haviam mandado instalar no apartamento logo após a volta dela do hospital. Ele planejara estar de volta no início do fim de semana, mas fora retido no quartel pára finalizar seu desligamento do exército. ― Eles não apareceram com nada que pudesse nos interessar. Parece que as únicas propriedade que têm, no momento, são casas enormes e bastante antigas. Não é isso que queremos. Ele ia protestar, mas calou-se em tempo. Na opinião de Cláudia, como jamais teriam uma família, não havia o menor sentido em visitar essas casas grandes e com muito espaço externo. Decidira permanecer em seu cargo de assistente social do Estado e, já que ele também trabalharia em Londres, o ideal passara a ser um apartamento no bairro mais'moderno de Londres, como Canary Wharf. Embora fossem muito caros, ainda eram mais baratos do que essas enormes mansões campestres. Garth não concordava. A última coisa que queria era um apartamento novo e sem personalidade no centro da cidade! Sonhara em passar os fins de semana em um sonolento vilarejo do interior, que tivesse algum rio cheio de peixes, de preferência que passasse em seu quintal, e um belo campo de golfe. Mas, nos últimos tempos, aprendera a evitar a maioria dos assuntos normais diante de Cláudia, a fim de não provocar uma daquelas violentas e sombrias crises de desespero e depressão, que eram causadas por tudo capaz de lembrá-la do que acontecera. Na verdade, Garth a estava achando muito frágil e vulnerável, bem mais do que quando saíra do hospital. Parecia ter piorado bastante, tanto na aparência quanto no estado de espírito. Mas Cláudia resistia, com uma teimosia obstinada, às suas tentativas de conversar sobre esse assunto. Diante de qualquer sinal de preocupação por parte dele, cortava um possível diálogo, insistindo que se sentia muito bem. Mas ambos sabiam que não era verdade, e Garth co-

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meçara a lhe telefonar diariamente apenas para ficar mais tranquilo ao ouvir a voz dela. Por que o fazia se a voz sempre revelava uma tentativa de esconder o intenso desânimo que não melhorava nada diante da conversa que ele tentava manter animada e alegre? ― Hoje mesmo vou ver o que me parece ser o lugar ideal ― disse ela, forçando-se a parecer entusiasmada. ― É um apartamento em Canary Wharf, mas de frente para o rio. Além disso, fica a meia dúzia de quadras do local onde você irá trabalhar... é perfeito para nós. ― Cláudia... eu não acho que... ― Preciso desligar ― interrompeu ela, recusando-se a permitir qualquer discussão. ― Tenho uma reunião em meia hora e, se não sair de casa agora, vou chegar atrasada. Garth conseguiu se livrar da burocracia relativa ao seu desligamento bem antes do que previra. Almoçara com os companheiros de regimento e partira, tendo toda a tarde livre à sua disposição. Obviamente, só pensou em correr para junto de Cláudia! Pouco antes de entrar no perímetro urbano de Londres, encontrou um congestionamento que o obrigou a fazer inúmeros desvios e acabar parado na mesma avenida de antes, sem nada a fazer exceto esperar. Cedendo a um impulso que preferia não analisar, retirou o guia das ruas da cidade e o folheou. Como imaginara, Stanway House, em Victoria Street, era um conjunto habitacional, construído pela prefeitura londrina na década de sessenta. Além disso, ficava bastante perto do ponto em que ele estava parado. Depois de fazer alguns malabarismos para escapar do congestionamento e pegar uma travessa lateral mais livre, avançou por um verdadeiro labirinto de ruas estreitas e, depois de meia hora, chegou a uma praça malcuidada, bem diante dos blocos de apartamentos que procurava. Parando o carro em uma outra rua, a fim de que não fosse depredado, Garth caminhou até o conjunto habitacional e, muito antes de se aproximar sentiu o brutal cheiro de lixo, urina e degradação humana. Ele já se arrependera de ter tomado aquela decisão insensata, quando encontrou um grupo de adolescentes nas escadas imundas e escuras, mas bastou um olhar seu para que recuassem, desistindo de abordá-lo. ― Maldito tira ― resmungou um deles, enquanto Garth passava e começava a subir mais um lance de escadas. ― Esse sujeito não é tira, cara ― protestou um de seus companheiros. ― Só pode ser do exército. Olhe o cabelo dele! Garth seria capaz de admirar a capacidade de observação do rapaz se não sentisse raiva de ver um jovem desperdiçando qualquer qualidade em potencial, perdendo-se naquele submundo do vício. O apartamento doze ficava no terceiro andar, um território sem dono formado por janelas fechadas por tábuas quebradas e portas com grades de ferro. Era óbvio que a maior parte dos apartamentos estava desocupada, possivelmente sendo preparada para a demolição do conjunto inteiro. A prefeitura, que os construíra havia dez anos, decidira acabar com um grupo de edifícios em que os apartamentos originais tinham se tornado antros perigosos. Nem a polícia ousava pôr ordem naqueles ninhos de ratos.

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E o apartamento doze não era melhor do que os demais. A única diferença era que a janela, em vez de ter sido vedada por tábuas, tinha uma placa avisando que qualquer visitante não seria bem-vindo. Garth ignorou a mensagem ameaçadora e bateu na porta. Depois de esperar alguns minutos sem ouvir ruído algum dentro do apartamento, decidiu arrombá-la, embora deplorasse esse tipo de comportamento pouco civilizado. Não fora até ali para perder a viagem! Ele bateu com o ombro na porta, que rangeu, quase saindo dos batentes. Estava prestes a realizar a segunda investida, que com certeza seria a última, quando ouviu o som de passos e uma voz feminina. ― Droga! Será que está tão desesperado assim, cara? A porta se abriu e, quando Garth entrou no vestíbulo malcheiroso e úmido, seu primeiro pensamento foi que ela era bem mais bonita do que se lembrava. Ao mesmo tempo, percebeu que também fora reconhecido de imediato. ― Ora! Como vai... papai! Decidiu vir confirmar pessoalmente? Pois fique à vontade... olhe bem para ele. A garota era de uma magreza excepcional, e talvez por isso o ventre parecesse maior e mais arredondado. ― Não é verdade ― declarou Garth, categórico. ― Não pode ser! ― Não mesmo? ― Ela o provocou, com um sorriso em que se mesclavam raiva e satisfação. ― Então, por que veio até aqui? Tem medo de que sua mulherzinha descubra a sua traição? Ou não quer ouvir os berros dela quando souber de tudo? Acho que não vai gostar nem um pouco, concorda? Mas ela não pode nem contar vantagem, porque não conseguiu segurar o dela! Katriona virou-se de lado, expondo o ventre muito grande. ― O meu vai ser um garoto forte e sadio. Ela já estava de cinco meses e nem parecia grávida. E ainda se acha uma mulher de verdade! Aposto que nunca lhe deu prazer na cama... pelo menos, não como eu lhe dei. Deve ser fria e sem imaginação, incapaz de aceitar outra posição que não seja a aprovada pelos missionários puritanos. ― Katriona deu uma gargalhada perversa. ― E você adorou a minha criatividade, papai! ― Cale a boca ― explodiu Garth, enojado. ― Está inventando essa história toda. Eu nunca tive nenhuma relação sexual com você e... ― Por que negar, papai? Quer que eu diga o que você fez, que palavras disse, enquanto delirava de prazer? Quer que eu descreva a pinta que tem na virilha? Quando Katriona mencionou o locai exato da pinta, Garth recuou assustado. ― Como vai negar agora? Você implorou para ter sexo comigo. Não podia aguentar mais... disse que nunca sentira tanto prazer antes, com mulher alguma e muito menos com a sua. Ah! Também falou que eu era mil vezes melhor do que ela, que eu sabia agradar a um homem... quer que eu lhe diga quantas vezes me possuiu? Para quem bebeu uma garrafa inteira de uísque, você até que teve um desempenho fantástico, sabe? Suponho que seja por causa do treinamento do exército... Garth recuou, horrorizado com as palavras de Katriona. Ela só podia estar distorcendo grotescamente a realidade. Não podia ser verdade. Era impossível ter feito sexo com uma mulher e não se lembrar de nada!

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Entretanto, enquanto seu consciente negava tudo, uma voz em algum lugar enterrado no fundo de sua mente alertava-o de que havia algo verdadeiro naquela história absurda. Não reconhecia as palavras como suas nem se lembrava de ter feito o que Katriona afirmava, mas a sensação era de admissão de um fato. ― Então? Agora não tem mais nada a dizer? Engolindo em seco, Garth tentou se recompor. Se aquela garota estivesse dizendo a verdade, se o bebê no ventre daquela criatura no último estágio de depravação fosse seu, ele teria de assumir a responsabilidade moral pelo ser que ajudara a conceber, por mais que essa perspectiva o desagradasse. Se o filho fosse seu... o seu filho! Oh, Deus! O que faria? Como iria contar para Cláudia? ― Precisamos conversar ― declarou ele, dando alguns passos, a fim de entrar na sala. ― Conversar sobre o quê? ― Katriona se moveu, bloqueando o caminho dele. ― Sobre o fato de a criança em sua barriga ser meu filho. Teremos de tomar algumas providências. Angustiado, Garth enfiou os dedos nos cabelos. Ele jamais poderia imaginar que, algum dia, fosse se encontrar em uma situação tão terrível. A fase de juventude ainda irresponsável, de pular de cama em cama, já passara fazia muito tempo. Era um homem maduro, e nunca fora de grandes excessos sexuais. Além disso, o contraste entre essa situação sórdida e as esperanças cheias de amor que partilhara com Cláudia o deixavam transtornado. A euforia e a felicidade com que havia esperado o filho querido se transformara em tristeza, e aquela mulher conseguira algo que sua esposa jamais teria. ― Eu não tenho nada a conversar, porque a única providência que vou tomar é marcar o dia para fazer o aborto. ― De maneira alguma! Você não pode... ― E quem é você para me dizer se posso ou não? O bebê é meu e posso fazer o diabo que eu quiser com ele! Garth viu o brilho excessivo dos olhos de Katriona e percebeu que não adiantaria continuar a discussão. Tinha um certo conhecimento do problema com drogas, pois aconteciam casos em toda a parte, até no exército. ― Talvez não seja nem seu! ― Katriona mudou de tática. ― Não foi o único homem com quem transei, entende? Não era difícil de acreditar nela. Garth virou o rosto para que Katriona não visse, em sua expressão, o quanto ele desejava que o bebê não fosse seu. Detestaria se aquela jovem drogada, que talvez se prostituísse para alimentar o vício, fosse a mãe de um bebê que ele ajudara a conceber. Mas, acima de tudo, temia por Cláudia. Ela seria destruída se fosse verdade! ― Por que veio até aqui? Achou que teria a chance de conseguir uma boa transa? De experimentar o que não tem em casa? A gargalhada de Katriona se transformou rapidamente em uma demonstração de raiva. ― Você se acha bom demais para alguém como eu, não é? Pois não foi assim na noite em que fez esse bebê! ― Ela tocou a barriga, triunfante. ― Era a mim

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que você queria, não a sua preciosa Cláudia! Céus! Até o nome dela tem classe, mas sou eu quem vai ter o seu filho! ― Acabou de me falar que talvez não fosse meu ― declarou Garth, forçando-a a lembrar-se do que dissera. ― Ah, é! Eu disse mesmo? ― Se for meu, tenho o direito... ― Você não tem direito algum sobre mim. Aliás, homem algum jamais terá! Se esse bebê for um menino... que Deus se compadeça dele porque... odeio homens. Acho que o castrarei assim que nascer. Garth fez um esforço sobre-humano para se controlar, enquanto a ouvia delirar sob o efeito da droga. ― Eu só quero ajudar você, Katriona. ― E como? Dando-me uma grana para eu me esconder em algum canto ou para eu calar a boca... ou para desaparecer sem deixar rastros? Garth desviou o olhar. Ele realmente chegara a pensar em mandá-la para algum lugar seguro, onde pudesse se alimentar bem e ter um filho saudável, mas nada dissera para evitar uma nova crise de raiva por parte de Katriona. Além disso, se assumisse uma participação ativa, estaria se tornando mais vulnerável e, assim, também afetaria Cláudia. Na verdade, começava a acreditar que esse fosse o cerne da questão. Aquela garota não o conhecia e pouco se importava com ele. Não era nenhum caso de paixão recolhida ou atração instantânea. Era Cláudia que Katriona queria atingir. Seu instinto lhe dizia que descobrira o motivo de tudo, pois podia sentir e até cheirar o ódio, a hostilidade e o ciúme brutais que transformavam a voz e a expressão da jovem sempre que mencionava o nome de sua esposa. ― Imagino que ela esteja tentando, desesperadamente, ficar grávida de novo, mas ganhei essa parada, sabe? ― vangloriou-se Katriona, confirmando as suspeitas de Garth. ― Sou eu quem lhe dará primeiro um filho. Você pode imaginar... o meu e o dela terão o mesmo sangue! ― Se está mesmo esperando um filho meu, teremos de tomar algumas providência, como eu já lhe disse antes. A perversidade daquele golpe do destino era brutal. Como se não bastasse o fato de ter gerado um filho da maneira mais acidental possível, a mãe era aquela megera que poderia magoar Cláudia de uma forma inacreditável. Katriona não sabia que Cláudia jamais poderia ter outro filho. Se descobrisse... ― Você não quer tocar o bebê? ― perguntou Katriona, colocando a barriga para a frente. ― Eu deixo... Mais uma vez, Garth evitou olhar. Sofria ao notar a diferença entre aquela jovem que, apesar da magreza causada pelo vício, parecia transbordar de saúde e Cláudia. Sua esposa tinha se tornado cada dia mais frágil e pálida durante a gravidez. Era injusto demais! Bastava olhar para aquela criatura alucinada pela heroína para ver que não chegaria nem aos pés de Cláudia como mãe. ― Perdeu a fala? ― Katriona ficou subitamente séria. ― Bem, sei que veio até aqui para me oferecer dinheiro, certo? Quer que eu me livre logo dessa criança que ninguém deseja, nem eu. Mas vai custar muito caro, entende? Eu já devia ter feito o aborto antes, mas você demorou para me procurar e...

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Garth percebeu que ela falava consigo mesma, como se tivesse se esquecido da presença dele. Também reconheceu que estava sentindo um alívio vergonhoso. O melhor era dar logo o dinheiro e acabar com um problema sem solução. O suor cobria sua testa. Seria melhor para todos os envolvidos. Cláudia jamais saberia e... até a criança sofreria menos. ― Não trouxe nenhum dinheiro comigo... ― Mas tem onde conseguir a grana que quiser, certo? Katriona estava começando a ficar desesperada. Devia uma verdadeira fortuna para seu fornecedor, e ele a estava pressionando a pagar logo ou não lhe daria mais nenhum grama de heroína. Aquela barriga inoportuna a impedia de trabalhar, além disso, não se sentira muito bem nos primeiros meses de gravidez. ― Traga a grana amanhã. Eu preciso fazer logo o aborto. Se demorar... a sua Cláudia vai ficar sabendo o que o ma-ridinho perfeito andou aprontando! Uma hora depois da saída de Garth, Katriona abriu a porta para o rapaz com quem estava dividindo o quarto. ― Vamos logo, Kat. Temos de dar o fora daqui... depressa e definitivamente. ― Mas eu não posso. Tem um cliente que vai me trazer uma grana, amanhã ou depois. Ele me deve... ― Esqueça. A bomba vai estourar! Enquanto falava, o rapaz olhava pela fresta das tábuas da janela, apavorado. ― Eu estou numa encrenca sem tamanho, Kat. O pior é que você vai de embrulho junto comigo. Devo uma nota para uns caras do diabo e, se me pegarem por aqui, acabam com a minha vida e com a sua também. Tenho uns amigos que vivem na estrada, nunca estão em lugar nenhum e sempre estão em toda parte, entende? Vamos para junto desse bando. Katriona mordeu o lábio, indecisa. Ela e esse companheiro tinham chegado a Londres na mesma época. Conheciam-se havia muitos anos e eram amigos, dentro do conceito de amizade de seu mundo distorcido. Tinham sido amantes por um período muito breve, mas continuavam a se apoiar mutuamente ao longo dos anos. Ela sabia que o companheiro se envolvera de uma forma perigosa no mundo dos traficantes. Sabia muito bem o que ele queria dizer ao mencionar "caras do diabo". Se esses indivíduos fossem procurá-los, não iriam se importar se a encontrassem sozinha. Estavam querendo vingança e não perderiam a chance de dar um exemplo aos outros, acabando com a vida dela. Já vira muitos casos como esse e, diante de tudo que teria a perder, o dinheiro de Garth não significava nada. ― Então? Você vem comigo ou não? ― Estou indo...

CAPÍTULO XII

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Katriona reapareceu. Garth ergueu a cabeça bruscamente, numa reação instintiva, ao ouvir a comunicação de Cláudia. Os dois estavam jantando bem tarde da noite, quase ceando, pois ambos haviam trabalhado bem além do horário. ― Katriona? ― perguntou ele, sentindo a boca seca e se odiando por seu próprio fingimento, ao dar um tom de perplexidade diante daquele nome, como se não o conseguisse localizar. Na verdade sabia bem demais quem era aquela criatura. Durante todo o mês após Katriona tê-lo acusado de ser o pai da criança que carregava, Garth procurara voltar a encontrá-la, sem sucesso. Mas essa busca inútil acontecera seis meses atrás. Enfim, desistira, convencido de que tudo não passara de uma grande mentira, uma tentativa de extorsão, pois era absolutamente impossível ter qualquer responsabilidade naquela gravidez. Fora um completo idiota em permitir que a jovem testemunhasse seu pânico e sua dúvida diante de uma possível paternidade. Entretanto, ainda não conseguira tocar no assunto com Cláudia. ― Não se lembra, Garth? Ela é uma de minhas pacientes. Aparentemente, andou alguns meses sem destino, viajando pelo interior. Agora reapareceu em um dos apartamentos que servem de base para esses jovens sem rumo. Encontrei-a por acaso, quando fui cuidar de um outro caso. Uma das garotas me disse que ela andou perguntando por mim, mas é difícil ter certeza. Esses tipos costumam mentir tanto, que se torna quase impossível distinguir quando estão falando a verdade. ― Então ela voltou? ― Sim. Voltou acompanhada... teve um bebê. Garth afastou o prato, subitamente sem apetite. ― Um... bebê? ― Parece que ela deu à luz enquanto estava na estrada. É uma menina muito linda. Claro que Katriona se recusa a dizer quem é o pai... se é que sabe! Não creio que esteja alimentando bem a pobrezinha, pois mal pode cuidar de si mesma, quanto mais de um bebê. Uma das garotas do apartamento está ajudando-a, mas posso até imaginar a falta de higiene de ambas. A menina é tão... tão maravilhosa, Garth... Cláudia parou de falar e seus olhos se encheram de lágrimas. Embaraçada, ela abaixou a cabeça, fixando os olhos no prato também quase intocado. Para os observadores casuais, Cláudia parecia ter superado a perda do bebê, recuperando a capacidade de viver normalmente e até de trabalhar. Ninguém sabia, porque não via, como Garth, quando ela acordava no meio da noite, soluçando desesperadamente. Então ele a tomava nos braços e reconfortava-a até que conseguisse se acalmar e voltar a dormir. Infelizmente, havia ocasiões em que a raiva e a dor se voltavam contra Garth e Cláudia insistia para que ele a deixasse e fosse encontrar outra, uma mulher completa que pudesse lhe dar filhos. Garth não mencionava essas crises a seus pais ou aos dela. Os dois casais mais velhos continuavam certos de que ambos estavam apenas esperando algum tempo antes de tentarem novamente.

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O pai dele elogiara, recentemente, a sensatez do filho e da nora por aguardarem até que Garth cuidasse mais de sua nova carreira antes de assumir a responsabilidade adicional que um filho significava. Na verdade, estavam vendo os pais dele muito raramente, nos últimos tempos. O trabalho do pai de Garth exigia que viajassem com frequência ao exterior e Cláudia parecia determinada a evitar qualquer tipo de reunião familiar, em especial aquelas em que pudesse encontrar crianças e se lembrar de seu drama pessoal. Não queria pensar em tudo que perdera. Garth também tivera de recusar tantos convites de seus colegas de trabalho, que começava a se sentir decididamente embaraçado. A desculpa de sempre era o trabalho de Cláudia, com horários tardios que a impediam de comparecer à maioria dos compromissos. Na verdade, ela estava realmente voltando para casa cada dia mais tarde. Mas os dois demonstravam essa dedicação quase obsessiva com a carreira porque ainda não conseguiam enfrentar a realidade penosa de um apartamento vazio. Tinham mesmo deixado de lado os planos de mudar para uma casa nova, até conseguirem sentir um pouco mais de entusiasmo em relação a essa mudança. ― Precisamos conversar sobre um assunto bastante importante, Cláudia ― disse Garth, tentando afastar da mente as lembranças provocadas pelas palavras da esposa. Ele voltara a se sentir preocupado e tenso ao saber q\ie Cláudia estava tendo novamente um contato maior com Ka-triona, embora o período em que não conseguira encontrá-la lhe tivesse dado tempo para pensar melhor no problema. Convencera-se de que tudo não passara de uma extorsão, quando a jovem entrara em pânico diante de uma gravidez indesejada e tentara lhe arrancar o dinheiro necessário para um aborto. Chegara até a encontrar uma explicação para o fato de ela ter mencionado a pinta em sua virilha. Naquela noite fatídica, ficara praticamente desacordado em função do uísque que bebera, e Katriona poderia ter entrado no apartamento bem antes de ele acordar, pelo menos o tempo suficiente para ter empurrado as cobertas e... e o quê? Perdido alguns minutos examinando seu corpo nu? Teria apenas olhado ou... ela teria... ― Garth! Você disse que queria falar comigo sobre um assunto importante ― reclamou Cláudia, com expressão cansada. ― Espero que não se demore muito,.pois tenho de terminar alguns relatórios e preciso sair muito cedo amanhã. Na opinião de Garth, ela estava realmente se esgotando. Aumentara demais a carga de trabalho, como se aquela ocupação fosse um torniquete colocado junto de uma ferida aberta. Infelizmente, só servia para impedir a hemorragia e não para ajudar a cicatrização. No momento em que fosse retirado... ― Garth! ― insistiu ela, irritada. ― Sim, claro! Nick Forbes está pensando em se aposentar. Sua esposa anda adoentada, como você sabe, e os médicos a aconselharam a procurar um clima mais quente, se quer ter uma maior qualidade de vida. Como ele é a agência... Garth parou de falar ao ver a expressão preocupada de Cláudia. ― O que está querendo me dizer? Que Nick pretende se livrar de você? ― Não é nada disso, Cláudia. Aliás, é bem o contrário disso! ― apressou-se Garth a explicar. ― Na verdade, sugeriu que eu abrisse meu próprio escritório,

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pois já tenho uma carteira de clientes bastante significativa. Uma empresa grande ofereceu uma soma irrecusável para comprar a firma dele e, obviamente, eu não teria essa quantia para lhe oferecer. ― Mas... estabelecer-se por conta própria... ― Faz sentido, querida ― interrompeu Garth, animado. ― Conversei com meu pai, por telefone, e ele concordou comigo. ― Você falou com seu pai antes de conversar comigo? ― explodiu ela, nitidamente furiosa. ―Você tem estado... bastante absorvida com seu trabalho ― justificou ele, suspirando. ― Bem... ― ela não tinha nenhum argumento para essa observação incómoda mas verdadeira. ― Acho um pouco arriscado demais. ― É verdade, mas Nick acha que eu tenho grandes chances de me tornar um sucesso nessa área. Muitas empresas de primeira linha estão procurando agências do tipo da nossa, para assessorá-las em diversos aspectos. Tudo se resume a apresentar a imagem certa ao público, tornando-as mais humanas e não como se fossem instituições distantes e inatingíveis. Enquanto ouvia Garth falar, a cada instante com maior entusiasmo sobre seus planos de futuro, Cláudia fechou os olhos, sentindo uma intensa onda de inveja. Garth adorava o que fazia, bem ao contrário dela. Sua relação com o trabalho era mais de dependência e de ressentimento do que de prazer. Precisava trabalhar para impedir-se de pensar sobre... sobre sua grande tristeza, mas havia inúmeros aspectos que detestava ao extremo. Tinha total consciência de não poder dar a cada caso o tempo necessário para conseguir realmente obter algum resultado Na verdade, detestava referir-se a seus pacientes como "casos"! Eram seres humanos, pessoas com incontáveis necessidades que, infelizmente, ela não podia suprir por total falta de tempo. De que adiantavam os inúmeros cursos que vinha fazendo ou o quanto aprendesse sobre as melhores maneiras de estabelecer um relacionamento produtivo com o indivíduo? Qual era o objetivo de acumular tantos conhecimentos se simplesmente não sobrava tempo para colocá-los em prática? No último curso que fizera, tinha encontrado várias assistentes sociais que haviam mudado o rumo de suas vidas e se dedicado à consultoria pessoal. As palavras dessas pessoas tinham sido uma verdadeira revelação. Vira a intensa realização que elas sentiam ao acompanhar um caso, ao se tornarem parte de um processo visando a melhoria de vida do paciente. Então, se lembrara do motivo pelo qual havia escolhido aquela profissão, um objetivo que acabara sendo esquecido, soterrado pelo imenso volume de trabalho E agora sentia essa inesperada e súbita onda de inveja de Garth. Ele tinha tanto a esperar do futuro... uma nova carreira e, provavelmente, uma nova mulher, uma esposa que pudesse dar-lhe a família sonhada e que ela jamais poderia lhe proporcionar. Os olhos fortemente cerrados de Cláudia não serviram de barreira contra a torrente de lágrimas que banharam suas faces. ― Por favor, Clo! Por favor, não chore ― pediu Garth com ternura, aproximando-se dela e ajudando-a a levantar-se da cadeira.

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― É tão injusto, Garth! ― protestou ela, angustiada. ― Até alguém como Katriona, uma viciada em heroína que viverá até o final do ano, se tiver muita sorte, consegue produzir uma criança saudável... um bebê que ela jamais quis e muito menos ama. Só eu não posso! Você devia me deixar, procurar uma mulher de verdade. Sou uma inútil... Garth controlou a emoção, diante de mais uma crise. Seria inútil, além de muito cruel, lembrar a esposa que já haviam discutido esse assunto, com as mesmas palavras, dezenas de vezes! ― Eu não quero outra mulher, Clo. Só você... Cláudia o fitou e reconheceu a total sinceridade do marido. Garth ainda a queria de verdade. Mas, até quando? ― Nós temos um ao outro, querida. É tudo que precisamos. Infelizmente, não era o bastante para ela! Mais tarde, quando Garth dormiu, Cláudia permaneceu acordada, incapaz de esquecer aquelas palavras. Por mais que o amasse, faltava-lhe algo ainda mais importante. Sonhava, desejava e precisava ter um filho, queria ser mãe mais do que tudo na vida! Naquela tarde, reencontrara Katriona e, ao ver o bebê, os sentimentos que custara tanto a reprimir, tinham vindo à tona. Quando a jovem empurrara a filha para mais longe, sobre o cobertor imundo e jogado sobre o chão de cimento frio do apartamento, não resistira ao impulso de carregar a criança. A menina cheirava a fraldas sujas e a leite azedo, mas Cláudia não se importou com esse detalhe. Surpreendeu-se com a intensidade do desejo de proteger a criança e, por um momento, esqueceu-se de tudo o mais. A necessidade de manter o bebê bem perto de si, de nutrir e de proteger, fora tão irresistível, que sua mão tocara o botão da blusa, num gesto instintivo, antes de se dar conta do que estava fazendo. Aparentemente a criança também sentia necessidade dessa proximidade, de ser amada e protegida, porque se calou no colo de Cláudia e recomeçou a chorar quando Katriona a pegou de volta, irritada. ― Ela é minha! ― disse com uma agressividade descontrolada. ― Só minha! ― Se é que ainda não o fez... você precisa registrar a menina ― aconselhou Cláudia, lutando para manter sua postura profissional e não se envolver com a paciente. Na verdade, ela teria de entrar em contato com sua supervisora e com o grupo de saúde encarregado de acompanhar os moradores daquele bloco habitacional, pois Katriona tivera um bebê, e essa criança precisava de cuidados que a mãe não poderia fornecer. Provavelmente a menina apresentava algumas sequelas que eram consequência da dependência materna. ― Eu... eu o farei quando achar que está na hora ― replicou Katriona, mal humorada, pois já haviam discutido esse ponto antes. Cláudia já conhecia aquela paciente e sabia que era melhor não fazer pergunta alguma sobre o pai da criança. A primeira indagação desencadearia uma torrente de insultos, provocados pala raiva e pelo descontrole emocional. Além de sua repulsa pessoal em se sentir o alvo de um ataque verbal tão violento, não queria criar um abismo entre ela e Katriona, levando a jovem a pedir que lhe enviassem uma outra assistente social, impedindo-a de voltar a vê-la.

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Não queria que isso acontecesse pelo bem de Katriona... ou pelo bem do bebê? Ela desviou os olhos, deliberadamente, quando ouviu o choro débil do bebê, que encostava o rosto na blusa de Katriona, procurando pateticamente pelo seio materno. ― Aí não tem nada, sua idiota! Vamos... tome isso. Cláudia estremeceu ao ouvir a raiva na voz de Katriona. Ao virar a cabeça, viu que a jovem apanhara uma mamadeira nitidamente suja e fria, enfiando o bico na boca da menina, sem se preocupar se ela teria ou não condições de sugar. ― Não preciso adivinhar o que você está pensando, sabe? Ocasionalmente, a sensibilidade aguda de Katriona conseguia vir à tona, apesar da droga que ela vinha consumindo sempre em maior quantidade. Um dos aspectos que mais deprimiam Cláudia nesse caso era o fato de que aquela jovem era excepcionalmente inteligente e estava desperdiçando esse dom divino. ― Se ela fosse sua, você a estaria amamentado no peito, certo? Mas não é, entendeu? Embora seja... Katriona parou de falar e olhou para Cláudia com um sorriso tão perverso que ela sentiu um profundo mal-estar. Era uma expressão de triunfo sádico, de quem conhece um segredo vital mas jamais o revelará. O coração de Cláudia disparou, e ela foi tomada pela já tão conhecida sensação de terror, mesclada ao pânico, amargor e ressentimento. Era evidente que Katriona jamais poderia ter adivinhado a verdade a seu respeito! Como saberia que ela nunca poderia ser mãe? Aquela jovem inconsciente nem imaginava a ânsia intensa, a inveja incontrolável, a dor e a desolação que sentia ao ver uma mulher com o filho nos braços. Afinal, só ela e Garth tinham conhecimento da verdade. ― Vamos... pegue a criança A hostilidade na voz de Katriona e seu gesto inesperado tomaram Cláudia de surpresa. Estendeu os braços, automaticamente, segurando o pequenino corpo e aconchegando-o ao peito, num gesto instintivo e protetor. Então, apanhou a mamadeira. Mas o bebê não estava interessado em leite ― não precisava ou não o queria, agora que voltara ao colo aconchegante! Ajeitou-se com naturalidade, como se Cláudia fosse a mãe e não Katriona. Com os olhos bem abertos, fixou-os no rosto que se debruçava sobre ele, e sua expressão era atenta e confiante. Cláudia engoliu em seco diante daquele olhar límpido e cedeu à inebriante sensação de se sentir mãe, nem que fosse por alguns minutos. Então, teve a estranha certeza de que acabara de ver nascer uma paixão fulminante... e mútua. Ao fitar os olhos muito verdes do bebê, Cláudia sentiuse como se tivesse cruzado uma porta para entrar em um mundo particular e íntimo, um lugar perfeito onde só existiam ela e aquela criança especial. ― Ela a faz lembrar-se de alguém? A voz provocadora e hostil de Katriona trouxe Cláudia de volta à realidade. ― Acho que é bem parecida com você ― murmurou, com toda a diplomacia, porque realmente não via a menor semelhança entre o bebê e a mãe.

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― Acha mesmo? Pois não tenho dúvida de que se parece muito mais com o pai. Por que essa expressão de espanto, Cláudia? Surpreende-se por eu saber quem ele é? Katriona deu um de seus sorrisos ferinos e maliciosos. ― Sei bem demais quem é o pai, porque ele é maravilhoso. Ela não foi o resultado da transa inepta de um cliente idiota! Não, esse homem especial não precisou pagar para usar meu corpo. Quer que eu lhe conte tudo? Katriona já a desafiara outras vezes, mas nunca de maneira tão direta. Não havia motivo para se recusar a ouvir a descrição explícita de mais um ato sexual, pois a jovem já lhe contara sobre vários, até exagerando nos detalhes. Entretanto, algo indefinido a fazia recuar diante daquele relato em especial. Não queria saber absolutamente nada sobre a concepção daquela criança. ― Ele era bom... bom demais ― declarou Katriona, sem desviar os olhos de Cláudia ― Disse que estava cansado de fazer sexo com uma mulher que não sabia apreciar o prazer de uma boa transa. A idiota nem tinha ideia de como excitá-lo, imagine! Achou que eu era especial na cama... tão especial que me deu... esta criançal O tom de complacência e satisfação da jovem deixava os nervos de Cláudia à flor da pele e provocava uma repulsa tão intensa que ela chegou a recuar, aumentando a distância entre as duas. Foi difícil resistir à tentação de esquecer a postura profissional e perguntar por que aquele homem tão encantado com a transa e com a própria Katriona não estava por perto depois do nascimento da filha. Nos últimos dias, repetia-se essa assustadora sensação de estar à beira de um precipício, de encontrar-se a um passo de perder totalmente o controle. Como se sentisse sua inquietação, o bebê começou a chorar. Cláudia esqueceu todos os problemas diante daquele som e apertou a criança de encontro ao peito. ― Olhe só a idiotinha ― resmungou Katriona, ao ver o bebê buscar o seio de Cláudia. ― Você não vai encontrar nada aí. Subitamente, sua expressão tornou-se novamente sombria e ela arrancou o bebê dos braços de Cláudia. ― Ela é minha! Só minha! E vai continuar sendo, nem que seja preciso... O rosto de Katriona começou a se crispar, revelando o efeito da droga que ela injetara pouco antes da chegada de Cláudia. Sua voz tornou-se aguda e ainda mais hostil. ― Ainda bem que você é uma menina! Espero que continue bonitinha, pois assim pode começar logo a trabalhar. ― Ela ignorou a exclamação chocada de Cláudia diante de suas palavras. ― Muitos homens gostam de meninas bem pequenas... quanto mais, novas, mais se excitam. Cláudia sabia que o melhor era não protestar nem pedir a Katriona que tentasse se livrar da droga, através de uma clínica de reabilitação. Se não queria se tornar uma pessoa normal por si mesma, pelo menos que o fizesse pela filha. Mas o bom senso e a experiência lhe diziam que já era tarde demais. Aprendera muito nesse trabalho e a Katriona que retornara, após meses "viajando" sem destino pelas estradas, parecia ter vinte anos a mais do que a jovem que partira para essa peregrinação tão atraente para a juventude. Emagrecera muito, ficara com as mãos trêmulas de uma velha e, ao mesmo

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tempo, se tornara mais dura e agressiva. Os olhos, que haviam brilhado de vigor e inteligência, já refletiam o final trágico e não muito distante. Cláudia tinha quase certeza de que a jovem sabia que não lhe restava muito tempo. Ainda assim era necessário tentar. ― Katriona... você... ― O quê? ― perguntou ela, desafiando Cláudia a colocar em palavras o que estava pensando. ― Você sabe onde estou, caso precise de mim. Cláudia desistiu de argumentar e levantou-se para ir embora. Já estava quase junto da porta quando Katriona a chamou. ― Quero o número do seu telefone ― pediu a jovem, nitidamente tensa. ― Mas você já tem esse número. ― Não estou me referindo ao do escritório. Quero o da sua casa. Era absolutamente contra as regras permitir esse tipo de aproximação entre a assistente social e uma de suas pacientes. Cláudia hesitou, até que um impulso impreciso que não conseguia nem definir nem ignorar, a levou a arrancar uma folha da agenda, escrever o número do telefone de seu apartamento e entregar o papel a Katriona. Mais tarde, ela quebrou mais uma regra. Quando preenchia o relatório, já no escritório, não mencionou que Katriona lhe pedira o número do telefone nem mencionou que o dera.

CAPITULO XIII - Você tem certeza de que vai ficar bem, Cláudia? ― Eu já lhe disse que sim, Garth ― respondeu ela, tentando impedir que a irritação transparecesse em sua voz e forçando-se a sorrir. Ele permanecia parado junto da porta, com a maleta de mão perto de seus pés. Todo o seu corpo revelava a ansiedade de transpor a soleira e iniciar uma vida para os dois... ou a necessidade de ir em busca da liberdade. Ou seria para livrar-se dela? Tensa, Cláudia procurou afastar aquela ideia da mente. Garth lhe repetira, infinitas vezes, que a amava muito. Entretanto, havia momentos em que só conseguia ver um homem a quem não conhecia, um estranho de terno e gravata, com a mente já concentrada na reunião de negócios para a qual iria. Ela se sentia assustada diante dessa imagem pouco familiar, que não se parecia em nada com o marido com quem se acostumara. ― Posso cancelar essa reunião e ficar com você, se acha que... ― Eu quero que você vá ― insistiu Cláudia, embora ambos soubessem que não era verdade. Ela estava passando por uma das costumeiras crises de depressão, e o fato de saber que os compromissos profissionais de Garth o manteriam longe de casa por duas noites, algo que normalmente não a inquietava, a tornara ainda mais tensa.

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Por que Garth simplesmente não ia embora? Não sabia o quanto se sentia tentada a lhe pedir que ficasse? A cada segundo que ele passava dentro do apartamento, mais crescia a tentação. ― Vá embora, Garth ― declarou ela, rispidamente. ― Já lhe disse que ficarei muito bem. Depois da partida dele, Cláudia andou sem destino pelo pequeno apartamento. Procurava alguma ocupação e, quando começava a fazer algo, perdia o impulso de prosseguir. Sabia que precisava preparar um lanche, mas não sentia nenhuma fome nem a menor vontade de entrar na cozinha. Embora tentasse esconder o corpo com roupas largas e escapar dos braços do marido na cama, percebia o olhar atento de Garth, como se medisse sua cintura que dia a dia se tornava mais fina. Ele estava constantemente insistindo que comesse, e lhe trazia caixas de chocolates, que ela levava para o escritório e distribuía entre as colegas de trabalho. Seu corpo não precisava de comida. Suas emoções e todo o seu ser ansiavam por algo inatingível... um bebê. Essa seria a confirmação de sua feminilidade, a realização definitiva e o único motivo pelo qual a natureza a criara. Apenas um bebê... Cláudia estava dormindo quando o telefone tocou. Ao estender a mão para atender, seus. olhos se fixaram no ra-diorrelógio e ela estremeceu. Era uma hora da manhã! Imediatamente ficou desperta e ansiosa. Seu primeiro pensamento foi que algo acontecera com Garth. Em seguida pensou em seus pais e nos pais dele. Telefonemas à uma hora da manhã sempre são arautos de péssimas notícias! No início, ela teve dificuldade para entender a voz feminina, desconhecida e arrastada que vinha do outro lado da linha. A pessoa que ligara parecia embriagada. ― Sinto muito, mas acho que se enganou... A garota que falava a interrompeu, revelando uma crescente histeria na voz. ― É Kat... ela me pediu para ligar. Está mal e... quer que você venha logo! ― Kat? Mas a jovem desligou, deixando Cláudia sem resposta. Só podia ser Katriona. Impelida pela descarga de adrenalina, ela saltou da cama e se vestiu em segundos. Tentava não pensar no que significaria aquele telefonema, enquanto agarrava as chaves do carro e corria para a porta do apartamento. Para algumas pessoas, uma hora da manhã não era um horário tão tardio. Afinal, estava-se em Londres e a essa hora as ruas continuavam cheias. Entretanto, apesar do movimento ainda grande, Cláudia se sentia alienada de tudo que a cercava, lutando contra um pressentimento funesto. Nem passou por sua cabeça que o lugar onde ficava o conjunto habitacional era perigoso e que a maioria dos londrinos não se aproximaria daquela área nem durante o dia. Indiferente a esse tipo de ameaça, ela estacionou o carro e percorreu rapidamente o pátio entre os edifícios às escuras, lançando um olhar desafiador para o grupo de jovens que se aproximou, com intenções claramente hostis. Para sua surpresa, eles se afastaram. Em algum lugar daqueles blocos de cimento, alguém estava dando uma festa, e o som era quase ensurdecedor. Ao subir as escadas, Cláudia ouviu uma

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discussão, seguida pelo ruído de louça quebrada. Do outro lado do corredor mal-cheiroso vinham gritos e vozes altercadas. Mas ela continuava a subir a escada, quase correndo. Nunca fora dada a fantasias mórbidas, mas tinha uma sensação muito forte de que não estava sozinha. Enquanto se apressava para chegar ao apartamento de Katriona, quase podia ouvir o som de asas que batiam sem parar, como se o mensageiro da morte acompanhasse seus passos. O apartamento estava completamente mergulhado na escuridão, e Cláudia parou, desorientada. Não sabia por que motivo imaginara que encontraria luzes acesas e a sala cheia de pessoas e sons, mas só encontrou um silêncio soturno. Ela erguera a mão para bater quando a porta se abriu, e uma garota, que vira rapidamente em uma outra visita, esticou a mão magra e puxou-a para dentro. ― Ela está no andar de cima... esperando. A garota falou muito baixo, mas Cláudia reconheceu a voz da pessoa que lhe telefonara. ― O que aconteceu? Ela... ― Ela já era ― disse a jovem, com uma frieza chocante. ― Fez uma viagem miserável, por causa da heroína misturada. ― Você já chamou um médico ou a ambulância? ― Para quê? Não vai adiantar nada mesmo. Médicos e ambulâncias nunca correm para socorrer ninguém por aqui, não têm pressa em acudir gente como nós. Além disso, Kat não queria isso. ― Pois pode ir telefonar agora para pedir uma ambulância, entendeu? Diga que se trata de uma emergência. Não perca mais tempo. Vá imediatamente! Encolhendo os ombros, a garota caminhou para a porta, sem pressa alguma. ― Não vai adiantar nada. Já é tarde demais. Mas Cláudia não a ouviu, pois começara a subir as escadas. Como o resto do apartamento, o quarto de Katriona também estava escuro, mas a luz de uma única vela iluminava o aposento o bastante para demonstrar que a garota não mentira nem exagerara. Katriona estava realmente morrendo. Era inacreditável que ela continuasse consciente. Não apenas estava lúcida, como parecia esperar a morte com calma. Os olhos de Katriona piscaram, quase refletindo a tão conhecida expressão de zombaria, ao notarem o choque na fisionomia de Cláudia. ― Você veio... eu sabia que viria. A voz era um mero sussurro, quase tão baixo quanto o arfar da respiração, que se tornava a cada instante mais difícil. Katriona mal conseguia levar o ar até seus pulmões. ― Não fale ― disse Cláudia, ajoelhando-se no chão e segurando a mão fria de Katriona. ― O médico vai chegar logo. A garota emitiu um som que lembrava uma risada. — E tarde demais. Não fique tão chocada... ― ela tentou rir novamente. ― Você não vivia me avisando que isso iria acontecer, algum dia? Devia ficar contente, por que é uma prova de que estava certa. ― Por favor, Katriona. Poupe suas energias. O médico.,.

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― Não pode fazer mais nada. Não sou nenhuma idiota, sabe? Eu pedi ao meu traficante uma última dose de graça. Ele literalmente me deu a derradeira. Estava misturada e... Naquele instante, um choro baixo interrompeu Katriona. O bebê! Cláudia levantou-se, instintivamente, a fim de pegar a criança que estava em um colchão do outro lado do quarto. ― Traga-a para mim ― pediu a jovem. Cláudia logo percebeu que se enganara ao pensar que, em seus últimos momentos de vida, Katriona demonstraria amor maternal pela filha. ― Droga! Ela fede demais. ― A voz de Katriona tornou-se momentaneamente mais forte. ― Pegue logo essa criança! O bebê começara a chorar mais forte no instante em que a mãe o pegara. Como por milagre, ficou quieta ao ser acomodada nos braços de Cláudia. Era possível que aquela criança, ainda tão pequenina, estivesse sorrindo para ela, como se a reconhecesse? Seria apenas imaginação ou as mãozinhas haviam agarrado sua blusa, como se não quisesse ser afastada daquele lugar seguro? Cláudia esqueceu-se de Katriona por uma fração de segundo, enquanto revivia a sensação que tivera na primeira vez que carregara o bebê. ― Você ainda não ficou grávida de novo, não é? ― murmurou Katriona. Incapaz de afastar os olhos do bebê, Cláudia apenas balançou a cabeça num gesto de negação. ― Deve haver alguma coisa errada com você ― insistiu a jovem. ― Se não houvesse, já teria o seu bebê nos braços. Não pode mais ter filhos, não é? Cláudia foi pega de surpresa e sua expressão de choque revelou a verdade que Katriona tentara descobrir de todas as formas. A jovem deu um sorriso triunfante, que tornava seu rosto ainda mais parecido com uma máscara mortuária. ― Pobre Cláudia! Tão desesperada para ser mãe! Não tem medo de perder o seu precioso Garth agora que não pode mais dar lhe um filho? Como se sentisse a angústia de Cláudia, o bebê começou a chorar. Ela o abraçou mais forte, até que os gritos ansiosos da menina se tornaram um choro manso e finalmente cessassem. ― Não tenha medo dela, Katriona. Carregue um pouco sua filha. ― Eu não quero ― murmurou ela, erguendo ligeiramente os braços, como se desejasse afastar a criança que continuava nos braços de Cláudia. ― Nunca a quis, sabia? Perdi muito tempo e não pude mais fazer o aborto. Ela ficaria muito melhor na vida se você fosse a mãe dela e não eu. Katriona fechou os olhos, nitidamente esgotada pelo esforço de falar. Ela parecia estar perdendo as forças com uma rapidez assustadora e Cláudia começou a rezar, pedindo a Deus que o médico não demorasse muito mais. Onde estava a garota que fora telefonar? E por que ainda não ouvia a sirene da ambulância? ― Quero que... fique com ela, entendeu? Você e... Garth têm de ser os pais dela. E o mais certo... Como poderia ficar com aquele bebê, a filha de Katriona, tratando-a como se fosse sua? Ela nunca o faria, era impossível e ilegal. O bebê parou de chorar e Cláudia olhou para o rostinho minúsculo que parecia esperar sua reposta.

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― Leve o bebê e cuide dele. Sabe que é o melhor para ela. Essa criança precisa de uma mãe e um pai de verdade. O que acha que vai acontecer se largá-la aqui? Será enviada para uma creche do governo e passará por várias casas, sempre rejeitada e não querida. Você não a quer de verdade, Cláudia? Leve-a logo, enquanto não chega ninguém para ver... agora! Desesperada, Cláudia fechou os olhos, desejando fugir para bem longe, para impedir que as palavras de Katriona, tentadoras e perigosas, acabassem por convencê-la. Mas sabia que não poderia abandonar a jovem naquele momento tão trágico. Então, ela finalmente ouviu a sirene da ambulância e seus músculos tensos começaram a relaxar. Recolocou o bebê entre os cobertores no canto do quarto, onde o encontrara, e voltou para o lado de Katriona. ―Você logo estará melhor ― disse ela, tentando se mostrar uma profissional, agir como Janice agiria. >― O médico... ― Oh, meu Deus... nenhum médico do mundo pode me salvar, Cláudia. Estou morrendo. Antes que eu dê meu último suspiro... quer saber quem é o pai da criança? Tem medo de levar minha filha para a sua casa porque acha que Garth não vai aprovar? Seu marido pode imaginar que o pai dela também era drogado, como a mãe? Pois não é verdade. Ele não era mesmo, sabe? Acho que se surpreenderia muito se eu contasse a verdade... Cláudia rezava, desesperadamente, para que a ambulância chegasse a tempo. Já perdera as esperanças de que os paramédicos pudessem salvar Katriona. A respiração da jovem se alterara ainda mais, e,o som parecia quase o estertor final. Na verdade, esperava que alguém chegasse a tempo de impedi-la de cometer um crime, de ceder ao pedido tentador de Katriona. Seria tão fácil! Sabia que a jovem ainda não registrará a filha, e os casos de crianças desaparecidas em conjuntos habitacionais ocupados por rapazes e moças que eram vítimas da droga eram uma ocorrência quase diária. Nenhuma das criaturas alienadas e sem destino certo, que vagavam sem rumo por um submundo sombrio, pensaria em cuidar de um bebê. Ninguém saberia... ninguém faria perguntas... ― Fique com ela... ― murmurou Katriona, já com os olhos vidrados. ― Leve-a com você, Cláudia. A porta se abriu e os paramédicos entraram no quarto. Cláudia se levantou para lhes dar lugar ao lado de Katriona. ― Sou a assistente social encarregada desta jovem. Ela... ― Ela está quase morta ― declarou o paramédico que se ajoelhara ao lado de Katriona. ― Que juventude idiota! Por que se matam tão sem motivo? Coloquem a moça na maca. Então, ele segurou o pulso de Katriona e sua expressão se tornou ainda mais sombria. ― Não adianta. Ela está morta. ― Não pode ser ― protestou Cláudia, embora soubesse que ele dizia a verdade. Mas o paramédico se esquecera da presença dela e dava ordens à sua equipe, que se preparava para ir embora. Após a chegada ruidosa, o apartamento voltara a mergulhar em um silêncio absoluto. Nem o bebê emitia algum som.

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Mais tarde, Cláudia juraria a si mesma que tivera a intenção de avisar que havia um bebê no apartamento, que não pensara em esconder esse fato da equipe de paramédicos. Mas, antes que pudesse abrir a boca, uma voz havia soado no rádio do coordenador. ― Temos uma outra emergência e já não podemos ajudar esta jovem. Houve um desastre de carro muito grave em Vauxhall Bridge. Já avisei as autoridades e logo deve chegar alguém para confirmar o óbito, antes de levarem o corpo. Qual era o nome dela? Ele rabiscou apressadamente o nome de Katriona em um bloco de notas e correu para a porta, seguido de sua equipe. ― Eu... devo ficar? Não havia mais ninguém no apartamento para responder à sua pergunta. Cláudia olhou para Katriona e viu apenas uma jovem quase esquelética e com poucos vestígios de sua antiga beleza. Nada restara do espírito desafiador, da presença combativa que habitara aquele corpo sem vida. Agora existia apenas uma concha vazia... Cláudia fechou os olhos da jovem e, cedendo a um impulso que não saberia explicar, começou a rezar a oração dos mortos e depois o salmo vinte e três, que parecia vir do fundo de sua memória. Sua voz se tornou mais forte à medida que recordava as frases e repetia as palavras familiares. Como Katriona teria rido se pudesse ouvi-la! Também daria aquele sorriso sarcástico se percebesse que Cláudia não conseguia ir embora, por medo de deixá-la tão sozinha. Um movimento no canto do quarto chamou sua atenção. Seu coração começou a bater mais forte enquanto se afastava de Katriona e caminhava na direção do bebê. Ela chegou a jurar que pretendia apenas carregar a menina no colo, mais nada. Não tinha nenhuma intenção de levá-la embora, de sair do conjunto habitacional com uma criança escondida em seu casaco, para protegê-la do frio, enquanto andava depressa, quase correndo, até seu carro A rua estava vazia. Cláudia destrancou a porta do carro e colocou o bebê, ainda enrolado em seu casaco, no banco de trás. Antes de virar a primeira rua, olhou para o relógio Eram duas e quinze. Não ouvira dizer sempre que era nessa hora que o corpo se tornava mais fraco e a morte costumava chegar? Durante o percurso, ela ouvia o som do balbuciar de um bebê de poucos meses. Dirigia devagar, sempre olhando pelo espelho retrovisor, certa de que estava sendo seguida por um carro de polícia. Logo ouviria as sirenes e seria acusada de roubar uma criança... a filha de uma jovem drogada. Mas a noite permanecia silenciosa e as ruas vazias, a não ser pela presença de um táxi tardio. O vestíbulo de seu apartamento estava vazio. Na verdade, só havia um apartamento alugado no térreo, e o casal de velhos que o ocupava tinha viajado para visitar o filho, em Brighton. Cláudia subiu as escadas com toda a calma, carregando o seu bebê. Katriona lhe pedira que cuidasse da filha e a menina agora seria amada como se fosse realmente sua.

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Depois de trancar a porta, Cláudia colocou o bebê no sofá e ficou admirando o rostinho encantador e os lindos olhos verdes que pareciam fitá-la com muita seriedade. ― Você deve estar com fome, querida ― murmurou Cláudia, com voz doce. ― Mas não sei o que posso lhe dar para comer. De qualquer forma, também precisa tomar um banho. Que tal uma água quentinha que deixará você limpa e cheirosa? Cantarolando baixinho, ela despiu a menina, fazendo planos que pretendia realizar tão logo amanhecesse. Assim que acordasse, iria até uma farmácia. Não a do bairro, mas uma bem grande e movimentada, longe daquela rua, onde seria apenas mais uma mulher comprando artigos para bebês. Ou talvez fosse melhor comprar poucas peças em lugares diferentes? Entraria em muitas lojas, mas teria que levar a menina consigo, claro! Não poderia deixá-la sozinha no apartamento. Aliás, não queria se afastar dela nem por um segundo. ― Não tenha medo de nada, coração ― murmurou Cláudia, enquanto enchia uma bacia com água morna. Depois de tirar as roupas imundas da criança, Cláudia a colocou na banheira improvisada, sentindo uma profunda emoção ao tocar o corpinho frágil. A menina era realmente miúda, de uma delicadeza de miniatura. Ela devia estar morrendo de fome! Infelizmente, naquela noite, só poderia lhe dar um pouco de leite, na mamadeira que encontrara no apartamento de Katriona e que teria de esterilizar. Conversando com a criança através da fala amorosa das mães, Cláudia parava para sorrir, repetir o quanto a amava, e se deliciar com a resposta dos lindos olhos verdes daquela menina que agora era sua filha. O telefone estava tocando quando Cláudia voltou das compras. Havia deixado as rodas do carrinho de bebê na mala do carro e trouxera a menina na parte removível de lona. Depois de colocá-la sobre o sofá, voltou para buscar o resto dos pacotes. Ainda sem fôlego, depois de subir as escadas correndo para não deixar a menina sozinha por muito tempo, Cláudia atendeu o telefone e ficou tensa ao ouvir a voz irritada de Janice. ― Cláudia? Você está bem? É a terceira vez que lhe telefono. ― Eu... ― Podia ao menos ter avisado que não viria trabalhar, não? O trabalho! Cláudia havia se esquecido completamente de seu trabalho, mas era evidente que não poderia continuar em sua função. Agora tinha uma criança para cuidar! Ela tomou uma decisão rápida, mas que seria definitiva. ― Eu ia lhe telefonar, Janice, mas não tive tempo. Garth e eu tivemos uma conversa séria e tomamos uma decisão importante. Como ele está iniciando sua própria agência, é melhor que eu desista do meu trabalho. Vou parar e... ― Vai parar de trabalhar? Mas você precisa dar um mês de aviso prévio e... ― Não posso ― Cláudia a interrompeu, completamente calma. ― Sinto muito, mas tenho de desligar, Janice. Ela decidira cortar logo a conversa ao ver que Tara ― pois era assim que decidira chamar a filha ― começava a acordar. A menina devia estar faminta,

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pronta para experimentar a nova mamadeira e a fórmula nutritiva que fora comprada naquela manhã. Logicamente, não era tão perfeita quanto o leite materno, mas só poderia ser muito melhor do que a rotina alimentar de Katriona. ― Cláudia! Espere ― protestou Janice. ― Tenho uma notícia desagradável para lhe dar. É sobre Katriona. O corpo de Cláudia ficou tenso e sua mão se crispou no telefone. Janice iria mencionar o bebê? Teria descoberto alguma coisa? Saberia... ― Ela... morreu, Cláudia. Sinto muito. A polícia nos comunicou sua morte, hoje, pela manhã. Aparentemente, alguém alertou as autoridades, na noite passada, que Katriona teve uma overdose. Quando os paramédicos chegaram, já não havia nada a ser feito. Achei que você gostaria de saber. Afinal ela era uma de suas pacientes. ― Ah, sim... obrigada... Milhares de possibilidades se entrecruzavam na mente de Cláudia. Se a polícia comunicara a morte de Katriona ao escritório central, significava que ninguém sabia da sua presença no apartamento. Deviam ter suposto que a decisão de chamar a ambulância fora tomada pela garota que dera o telefonema. ― Quem... Como se tivesse adivinhado o restante da pergunta de Cláudia, Janice terminou de explicar. ― O apartamento estava vazio quando a polícia chegou, mas isso era de se esperar. Quanto ao seu trabalho... ― Sinto muito, mas não quero discutir esse assunto ― declarou Cláudia com firmeza, desligando o telefone. Janice não dissera uma só palavra sobre o bebê de Katriona. Talvez nem soubesse de nada... ainda. Cláudia mencionara que a jovem tivera uma filha, em seu último relatório. Achara importante avisar que havia uma criança, a qual deveria ser tratada pelo departamento de saúde. Entretanto, quando a equipe encarregada de cuidados infantis começasse a examinar o caso, já seria tarde demais, pois Tara teria se tornado sua filha. Cláudia pretendia registrar o nascimento de Tara ainda naquela tarde. Agora ela e Garth teriam mesmo de mudar para um outro lugar. Recusava-se a criar um bebê, a sua filha, naquele apartamento! Uma criança precisa de ar fresco, de sol, de um quarto claro e bem arejado e de um jardim. Sorrindo para a menina, retirou-a do berço e, colocando-a de encontro ao ombro, foi para a cozinha preparar a mamadeira. Era espantoso perceber como certos comportamentos são naturais e espontâneos. Cláudia ajeitou a criança para tomar a mamadeira, maravilhando-se com sua facilidade em lidar com a filha. Tara estava com muita fome e queria sugar rapidamente a mamadeira, mas Cláudia não permitiu que ela engolisse todo o leite com muita avidez, para não engasgar. Logo depois de alimentá-la, continuou com a menina no colo até que ela adormecesse, pelo simples prazer de senti-la em seus braços. Amava aquela criança com uma intensidade que julgara impossível existir, e não teria um amor maior por um filho gerado em seu próprio útero.

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Precisaria telefonar para o escritório a fim de saber quando seria o funeral de Katriona. Era um débito que tinha para com a jovem, e não deixaria de pagálo. ― Você é a minha adorada ― murmurou Cláudia, enquanto colocava a filha no berço. ― Sou sua mãe e amo você mais do que a minha própria, vida. Quando Garth retornasse, teriam de escolher um berço de verdade. Garth... uma inquietante sombra de dúvida e inquietação toldou a alegria esfuziante de Cláudia, mas logo foi afastada. Era óbvio que ele compreenderia. Na verdade, tinha de entender! Entretanto, quando o marido lhe telefonou, à noite, a fim de avisar que sua volta fora adiada, ela sentiu-se aliviada. ― Sabe, Garth ― disse, rapidamente, pouco antes de desligar ―, mudei de ideia a respeito de vivermos em Londres, e decidi que você tem razão. Precisamos mesmo encontrar uma casa no campo. Também pedi demissão. Esse era mais um aspecto em que estava certo, querido. Aquele tipo de trabalho me deprimia muito. Depois de desligar, Garth permaneceu algum tempo imóvel, intrigado com a súbita transformação da esposa. Cláudia parecia muito diferente ao telefone. Na verdade, fazia-o lembrar-se da jovem entusiasmada que ele conhecera. Por que não se sentia aliviado e feliz em vez de nitidamente perturbado? Cláudia era a única pessoa presente ao funeral de Katriona. Ignorando a desaprovação de Janice, tomara todas as providências, comprando um lote e uma lápide no cemitério da pequena igreja, no vilarejo de Dorset, onde ela fora criada. Depois de tudo terminar, Cláudia permaneceu junto do túmulo, com Tara nos braços. Juntas, a mulher e a criança partilharam um momento de silêncio em memória de Katriona. ― Ela é minha filha agora, como você pediu, Katriona. Vou amá-la por nós duas, sabe? Seu murmurar se perdeu no silêncio da manhã chuvosa. Ao voltar para o carro, Cláudia virava-se disfarçadamente para trás, a todo instante, para certificar-se de que ninguém a seguia. Quando Garth retornou, no final da tarde, a primeira diferença que notou, ao entrar no seu apartamento, foi o cheiro. Era um aroma doce e puro, que o fazia recordar-se de sua infância. Em segundo lugar, notou o sorriso radiante de Cláudia, que veio recebê-lo, com uma expressão de felicidade no rosto que ele quase se acostumara a ver tenso e deprimido. A terceira surpresa causou mais impacto, porque foi o inesperado e impossível choro de um bebê. Ele largou a maleta de mão e olhou para a esposa, desnorteado. ― O que é isso? ― Não é "isso", querido. ― Cláudia sorriu, calma e feliz. ― É o nosso bebê, Garth. Trata-se do choro da nossa filha. ― Nosso... bebê? Mas, Cláudia... Garth não terminou de falar, pois Cláudia saíra da sala e, momentos depois, retornava com uma criança que, milagrosamente, parara de chorar e parecia muito à vontade no colo de sua esposa. ― Ela é minha, Garth! ― declarou Cláudia, quase ferozmente. ― Ninguém vai tirá-la de mim, entende? Nós teremos de mudar deste local, e foi uma sorte os avós, de ambos os lados, estarem fora do país. Teremos de dizer que

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escondemos a minha gravidez, pois temíamos um aborto. Como prevíamos, o bebê foi prematuro, e todos vão acreditar porque se trata mesmo de uma criança pequena demais. Então, quando procurarmos um outro médico, eu fingirei que os relatórios médicos se extraviaram. Inventarei o nome de algum doutor e... ― Pare, Cláudia! ― Garth a interrompeu, horrorizado. ― Esse bebê não é nosso. ― Agora já é, Garth! A mãe a deu para mim, pediu-me, que ficasse com ela. Eu não podia recusar. O que aconteceria se eu não quisesse aceitar essa criança? É melhor nem pensar nessa possibilidade horrível. Foi melhor assim. Ela será muito amada por nós. Não a acha linda? O tom de pele é até parecido com o meu, mas os olhos lembram os seus. Katriona também tinha cabelos escuros e... Garth sentiu o coração parar de bater por uma fração de segundo. ― Esse bebê é de... Katriona? ― Era, porque Katriona morreu. Cláudia começou a relatar os últimos acontecimentos ao marido, abraçando a filha mais junto do peito, como se quisesse protegê-la da realidade. ― Katriona tomou uma overdose e pediu-me que fosse para junto dela. Então, me implorou para ficar com o bebê. Ela insistiu muito, queria mesmo que eu a aceitasse. Estava tão desesperada que decidiu me revelar o nome do pai da criança. Disse que era um homem especial. ― Ela lhe revelou... o nome? Garth estava tenso e com a garganta tão seca que sua voz lhe pareceu áspera e despida de emoção. ― Não. Katriona tentou, mas já não tinha forças para falar. De qualquer forma, isso não é relevante. Não importa quem seja esse homem, porque agora o pai é você. E a mãe dela sou eu. Decidi chamá-la de Tara. Não acha que combina com ela? Cláudia falava rapidamente, temendo que Garth a interrompesse. Ele continuava com uma expressão chocada e tensa. ― Tara é tão esperta! Olha para tudo e acompanha cada movimento meu. Vai ser uma garota muito inteligente. Ela já sabe que está na hora de tomar a mamadeira, Garth. A pobrezinha estava subnutrida, mas não posso deixá-la exagerar. Pode ficar com gazes ou cólicas. Percebendo que não adiantaria interrompê-la naquele exato momento, Garth a viu mover-se pela cozinha, com a criança no colo. Cláudia e a menina pareciam completamente à vontade e felizes... como se fossem realmente mãe e filha. Aquela criança não era, definitivamente, filha de Cláudia, mas talvez fosse sua. Engolindo em seco, Garth preparou-se para enfrentar a esposa. ― Esta criança não é nossa, Cláudia. Não podemos ficar com ela, e você sabe muito bem disso. Seria um ato ilegal e... Ele procurara falar com delicadeza, para não magoá-la, e assustou-se quando Cláudia voltou-se para encará-lo, com os olhos brilhando de fúria. ― Ela é minha e ninguém pode me obrigar a desistir dela, Garth! Ninguém! ― Por favor, querida! Sei que passou por um período terrível, e entendo que esse bebê...

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― Tara, o nome dela é Tara ― Cláudia o interrompeu, exaltada. ― Diga o nome dela, Garth. Ela gosta de ouvir o próprio nome! ― Este... Tara não pode ficar conosco, Cláudia. Ela precisa ser entregue às autoridades, que já devem estar à sua procura. Ou talvez a família... ― Ela não tem família a não ser nós dois. As autoridades acabarão por supor que algum dos amigos drogados de Katriona levou a criança. Isso acontece com muita frequência, sabe? Tara precisa de amor, de um pai e uma mãe que a adorem. Tem ideia do que aconteceria se eu a entregasse? Encontrariam um lar de adoção, depois outro e outro... ― Ou então seria adotada por um casal, parecido conosco, que a amaria muito, Cláudia. ― Mas ela não precisa desse casal porque tem a nós, certo? Não me obrigue a devolvê-la, Garth... porque eu não farei isso, jamais! Se você não a quer, nós duas iremos embora e eu refarei minha vida em algum outro lugar. Ninguém vai tirá-la de mim, porque ela é minha. Garth reconheceu que Cláudia se tornara absolutamente irracional, e de nada adiantaria argumentar. Parecia uma leoa defendendo sua cria, e quem tentasse tocar o filhote teria de enfrentar sua fúria selvagem! ― Não podemos fazer isso ― protestou ele, ainda mais uma vez, percebendo que perdia seu tempo. Cláudia não queria ouvir. ― Podemos, e é exatamente o que iremos fazer! Naquele momento, a criança olhou para Garth. Seus olhos verdes, muito sérios, se fixaram nele, como se soubesse o que ele estava pensando. Parecia julgá-lo e, ao mesmo tempo, lembrá-lo que ele poderia ser o seu pai. Estaria rejeitando a própria filha, carne de sua carne e sangue de seu sangue? Teria de ceder à teimosia obstinada de Cláudia e manter aquela criança, que talvez fosse realmente sua? Ousaria assumir o risco de insistir em entregá-la às autoridades, sem saber se era ou não o pai verdadeiro? Mas... e se ele não fosse? Como passar o resto da vida sentindo dúvidas e remorsos, sempre tentando encontrar uma resposta inexistente? Por outro lado, se ele fosse realmente o pai, a criança não seria um motivo sempre presente para que se lembrasse de algo muito penoso? Preferia esquecer aquele episódio degradante, um incidente que estava se tornando ainda mais vago em sua mente. Convencera-se de que Katriona mentira e só dissera que ele era o pai para conseguir dinheiro. ― Não é possível, Cláudia. Seria um crime e... Ele se calou, percebendo que perdera a batalha. Não importava se o processo normal de adoção fora simplesmente ignorado, se estava certo ou errado... Tara chegara para ficar. Na verdade, o aspecto que o surpreendia mais não era o amor maternal quase feroz de Cláudia e sim a lógica e a determinação com que planejara todos os movimento de sua campanha para transformar Tara em sua filha legítima. A sombria depressão dos últimos meses se afastara e surgira uma nova mulher. Ela não voltara a ser o que era antes, uma jovem alegre mas ainda sem forças. Do sofrimento nascera uma mulher adulta, madura e poderosa.

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― Por que não a carrega um pouco ― sugeriu Cláudia, com uma voz suave e persuasiva como a de Eva a tentar Adão. Ela realmente,se transformara. O manto da maternidade, protetor e todo poderoso, caíra sobre seus ombros, envolvendo-a com um brilho etéreo. Só um cego não veria que ser mãe era mesmo a razão de viver de Cláudia. Garth segurou a criança, sem disfarçar a relutância. Então, o ser delicado e de uma fragilidade comovedora abriu os olhos, fitando-o com uma intensidade inesperada em uma criança. Naquele instante, ele soube que estava perdido de amor pela filha. Todos os seus argumentos, a sua lógica fria, as objeções diante do desejo de Cláudia simplesmente se evaporaram, como a névoa dissipada pelo luz intensa do sol. Não importava saber se ela era ou não sua filha de verdade. Nunca teria coragem de ignorar aquele olhar de total confiança, de contentamento pleno e de curiosidade atenta que brilhava nos mais lindos olhos verdes que já vira. ― Está vendo só? ― murmurou Cláudia, triunfante. ― Ela quer ficar conosco, precisa de nós. Você precisava ver como estava quando eu a trouxe para casa... tão magrinha, tão suja. Cláudia respirou fundo, lutando contra as lágrimas. Ainda sofria muito ao pensar no descuido e nos maus tratos que Tara sofrera em suas primeiras semanas de vida. A pobrezinha estava com feridas por ficar dia e noite com fraldas sujas. Seu choro era alto e agudo, revelando medo e fome. Mas, felizmente, tudo isso pertencia ao passado. Agora a pequenina estava em segurança. Segura, desejada e muito amada! ― Deixe que eu a carrego ― ordenou Cláudia. Garth entregou-lhe a criança e assustou-se com a sensação de vazio que o envolveu ao não sentir mais o peso da filha em seus braços. ― Para todos, ela é nossa, pois ninguém saberá o que aconteceu, Garth. Fui ao cartório e a registrei, usando os nossos nomes. Também mudei de médico. Disse ao novo que ela nasceu quando você estava em uma missão fora da Inglaterra. Escolhi um hospital muito movimentado e sei que ele não terá tempo para verificar os dados de todas as mães que se apresentam na seção de pediatria. Além disso, logo estaremos mudando de Londres, porque quero que Tara cresça no campo. Não havia nada que Garth pudesse fazer, diante de um fato consumado. Só lhe restava admirar a rapidez, perícia e tática que Cláudia demonstrara ao montar sua campanha... e chegar à vitória. Tara havia se tornado filha deles, mas seria realmente sua filha?

CAPITULO XIV Tara ergueu a cabeça do colo de Ryland para procurar o controle remoto da televisão. Haviam acabado de ver um filme no vídeo, enquanto jantavam. Ele

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tinha mandado vir comida chinesa, que ambos adoravam, para comemorar seu primeiro aniversário de namoro. Exatamente um ano antes, haviam se encontrado pela primeira vez. ― Você já pensou? ― murmurou Tara, se espreguiçando, antes de voltar à confortável posição com a cabeça no colo do namorado. ― Dentro de um mês, estaremos em Boston. ― Será? ― perguntou Ryland, provocando-a, enquanto mergulhava os dedos nos cabelos de Tara. Ele adorava aqueles cabelos sedosos e brilhantes que pareciam vibrar com a mesma energia de Tara. Um dos aspectos que mais o atraíra nela havia sido essa vitalidade saudável, uma espécie de aura de felicidade irradiante. Talvez nunca tivesse mesmo encontrado uma pessoa tão de bem com a vida, tão cheia de euforia ou mais ajustada em seu ambiente. Notara, desde o primeiro encontro, o calor de sua personalidade comunicativa aliada a uma nítida confiança em si mesma. ― Você ainda não recebeu seu visto. Não sei se vão permitir que uma pessoa como você entre no país. Ryland começou a rir quando viu Tara seritar-se e olhar para ele com uma expressão indignada. ― Ora! Você está só me provocando ― disse ela, ao perceber que tudo não passara de uma brincadeira. Tinha certeza de que seus pais iriam adorá-la! Sua mãe a receberia como uma filha e a amaria tão logo a visse, Também não tinha dúvidas que seu pai ficaria encantado. Ryland não se lembrava de nenhuma situação em que tivesse brigado com os pais por uma diferença de opinião. Os dois perceberiam, como ele, que Tara era a mulher ideal. Mas tia Martha não seria tão fácil de agradar. A situação se complicava mais, nesse caso, porque ela esperava que o sobrinho se casasse e produzisse herdeiros. Ryland sempre soubera o quanto seu casamento era importante aos olhos dela. Depois da morte do marido, Martha canalizara no trabalho toda a sua capacidade de amor e afeição, além de todas as suas esperanças para o futuro. Não podia dedicar esses sentimentos a Margot ou aos netos que sua filha pudesse lhe dar. Obviamente, os netos seriam os herdeiros naturais da imensa fortuna que Martha herdara de sua família paterna, uma fortuna que ela trouxera como dote ao se casar com o irmão do pai de Ryland. Mas os netos jamais viriam. Margot a privara dessa felicidade ao anunciar, com uma amargura desafiante, que nunca teria filhos. Como a lei e a postura familiar a impediam de casar-se com Lloyd, ela tomara a decisão de jamais aceitar a união com qualquer outro homem e fizera, sem consultar ninguém, a operação que a tornara estéril. ― Agora não poderei mais ser mãe ― declarara ela, com a dramaticidade que era parte integrante de sua personalidade. ― Recuso-me a ter filhos com um homem a quem eu não ame, e o único que amarei toda a minha vida é Lloyd! ― Como acha que sua família vai me receber? ― perguntou Tara, lendo os pensamentos dele. ― Estou me referindo à sua tia, em especial. Ryland forçou-se a sorrir a fim de tranquilizá-la.

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― Tia Martha vai gostar de você, querida. Tudo vai dar certo! Tara sabia, intuitivamente, que Ryland estava lhe escondendo algo muito importante, talvez vital. A atitude dele lhe provocava a mesma sensação de insegurança que surgira quando pressentiu um problema sério entre seus pais. No início, ainda antes do divórcio, os dois haviam tentado fingir que tudo estava bem, a fim de protegê-la, mas ela não se deixara enganar. Finalmente, eles foram obrigados a admitir a verdade, pois nunca haviam mentido para ela. A recusa inicial em revelar-lhe que a situação chegara a um ponto insustentável a deixara com medo de que as pessoas a quem amava lhe escondessem algo ou que não fossem honestas com ela. ― Você está escondendo alguma coisa de mim ―- declarou Tara, com uma expressão de desafio no rosto encantador. Ryland precisou esforçar-se muito para não se trair e manter a fisionomia confiante. ― Minha família vai adorar você ― insistiu ele, sabendo que estava falando a verdade. Mesmo reconhecendo a sinceridade na voz de Ryland, Tara ainda sentia que ele estava lhe ocultando algo. Poderia ser um namoro com alguma garota, talvez até uma vizinha, cujos antecedentes familiares a tornavam a esposa ideal aos olhos da família dele? Se fosse esse o caso, Ryland devia temer uma certa pressão por parte da tia, pois nunca lhe esconderia que tivera algum relacionamento mais sério. Tara queria silenciar aquela voz incómoda que provocava um início de angústia e acabaria destruindo a felicidade daquele momento único em sua vida. Entretanto, Ryland parecia ter ideias muito diferentes. ― Ryland ― protestou Tara, quando ele começou a beijá-la e deslizou a mão sob a camiseta. Não queria que Tara continuasse a fazer perguntas sobre sua família. Ainda não encontrara a maneira certa de revelar-lhe que ela não seria apenas a esposa de um executivo bem pago e em ascensão na empresa familiar da qual, um dia, viria a assumir o comando. Na verdade, ele estava sendo treinado para o cargo mais importante de uma empresa imensa, com um património respeitável e uma lucratividade muito acima da média. A fortuna pessoal de sua tia, e conseqúen-temente a dele, era de vários milhões de dólares. A experiência de vida em um ambiente familiar estável e amoroso, somada à sua sensibilidade e inteligência, o haviam ensinado a reconhecer o perigo de abrir sua intimidade a pessoas que estivessem apenas impressionadas com a imensa fortuna que herdaria. Mas nada o preparara para se apaixonar por uma mulher que não tinha a menor ideia das restrições que a sociedade moderna impõe aos muito ricos. Na verdade, Ryland pressentia que Tara iria detestar essa situação. Boston não era Hollywood, mas nem precisava ser! No mundo inteiro, inclusive na Inglaterra, os donos de grandes fortunas estavam descobrindo que, para proteger suas famílias, era necessário montar um esquema de segurança que provocaria protestos veementes de qualquer sociedade de direitos humanos. Ser obrigado a permanecer atrás de muros altos como prisões e sair dessa fortaleza apenas acompanhado de guar-da-costas não era, decididamente, a

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espécie de vida que ele queria dar a seus filhos. Talvez a situação não chegasse a ser tão exagerada assim, mas Ryland duvidava que eles pudessem ter a mesma infância livre de Tara. Infelizmente, também não tinha dúvida de que Tara desejava que os filhos pudessem ter as mesmas experiências de vida que ela tivera. ― E lógico que eu quero dar a meus filhos a felicidade de ter o pai e a mãe sempre juntos, vivendo na mesma casa! ― declarara ela, ainda no início do namoro, quando haviam começado a discutir esse assunto. Naquela época, depois que Tara lhe descrevera suas aventuras infantis em uma tranquila região campestre da Inglaterra, quando saía com um bando de outras crianças para colher frutas silvestres que as mães usariam para fazer geléia, Ryland não tivera coragem de lhe dizer que esses prazeres simples jamais seriam conhecidos pelos filhos deles. Filhos e filhas de milionários precisam de proteção absoluta e só podem brincar atrás dos muros seguros de suas mansões. Talvez ele devesse ter sido mais franco e honesto com Tara desde os primeiros encontros. Agora era fácil perceber e admitir isso, mas sentira medo de assustá-la ou perdê-la, pois o relacionamento deles ainda estava nos primeiros estágios de insegurança e hesitação. Algumas mulheres seriam capazes de tudo para se aproximar de um homem rico, mas outras fugiriam o mais depressa possível diante dos problemas que uma grande fortuna poderia significar na vida delas. Tara pertencia a essa última categoria. Se ele tivesse sorte, sua tia ainda teria dez anos para dirigir a empresa, antes de se aposentar. Martha estava com sessenta anos e declarara, em seu último aniversário, que ainda não se sentia nem um pouco disposta a ceder o posto de comando para ninguém, nos próximos anos. Ryland esperava que, quando isso viesse a acontecer, Tara já tivesse tido tempo bastante para se acostumar à realidade. Passado o choque inicial, acabaria por se habituar a uma situação financeira familiar muito diferente de sua experiência anterior. Ele voltou a beijá-la, determinado a não pensar mais naquele assunto. ― Nós estamos celebrando o primeiro aniversário de namoro... ou será que me enganei? ― perguntou ele, entre um beijo e outro. Era impossível manter qualquer tipo de conversa quando as carícias se tornavam mais ardentes. ― Ah, você tem mesmo sorte, Ry ― murmurou Tara. ― Porque você me ama? Ela balançou a cabeça e, soltando-se dos braços de Ryland, o encarou com seriedade. ― Não... é porque seus pais ainda continuam casados. Adoro meu pai e minha mãe, mas... falta algo. Seria tão maravilhoso se voltassem a viver juntos! A minha vida ficaria perfeita. ― Eu posso até compreender como você se sente, Tara. Mas não se esqueça que está falando de dois adultos. ― É claro que concordo com você... racionalmente. No fundo, continuo magoada e querendo... eu tentei reconciliá-los, uma vez, mas não deu certo. Naquela época, Tara estava com quatorze anos, sentindo uma falta enorme da presença do pai em casa. Além disso, o fato de começar a se sentir mulher a

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tornava ainda mais consciente de que a mãe era uma mulher muito atraente e vários homens pareciam se interessar muito por ela. O ciúme e a certeza de que logo teria um padrasto provocaram a crise. Havia um homem, em particular, que era cliente de sua mãe. Com trinta e poucos anos e recém-divorciado, ele telefonava com muita frequência e acabou convencendo Cláudia a aceitar um convite para jantar. ― Eu tenho mesmo que ir, querida ― explicara Cláudia, quase pedindo desculpas à filha. ― Trata-se de... um jantar de negócios. Ashley é muito ocupado e só podemos discutir o caso dele à noite, depois que ele para de trabalhar. ― Então, por que não o convida para discutir negócios aqui em casa? ― perguntara Tara, irritada. ― Por que tem de sair e jantar com ele? Não quero que você vá! Cláudia se assustara ao ver que a filha começava a chorar. ― Por favor, querida! O que está realmente acontecendo? Você teve algum problema na escola? ― Não é nada disso ― explodira Tara, inconformada. ― As outras garotas na escola falam sobre o que acontece quando... quando mulheres saem para jantar com os homens. Também cansei de ver isso na televisão. Ele só quer levar você para a cama, ouviu? Papai sabe das suas intenções? O tom de voz de Tara deixara de ser lamentoso para se tornar desafiante. Diante dessa transformação, Cláudia parara de se desculpar e ficara enfurecida. ― O que eu faço e com quem eu saio são assuntos meus e não têm nada a ver com seu pai! Nós estamos divorciados e agora temos nossas próprias vidas, Tara. Ele não tem o menor direito de comentar minhas ações ou meu comportamento, assim como eu não posso criticar nada a respeito da vida dele! ― Mas papai ainda tem a sua fotografia na mesa de cabeceira ― dissera Tara, ainda inconformada. ― E sei que não leva mulheres para jantar com ele! Sua mãe comprimira os lábios, nitidamente perturbada, e virara a cabeça. Naquela noite em que a mãe decidira jantar com um homem, Tara tivera uma perturbação de estômago, e Cláudia fora obrigada a cancelar o compromisso. Algumas semanas mais tarde, Tara fora passar o fim de semana com o pai e confessara seu temor de que a mãe se envolvesse com um outro homem. ― Eu quero que nós três voltemos a viver juntos ― declarara ela, com veemência. ― Detesto as coisas como estão agora! ― Sabe que isso não é possível, querida. ― O pai se esforçara para acalmá-la. ― Sua mãe tem todo o direito de viver a própria vida como desejar, de conhecer outras pessoas, sejam homens ou mulheres, e de sair com quem quiser, para jantar ou não. Eu entendo como você se sente, assim como sua mãe também não ignora seus sentimentos, mas muitos casais se divorciam, e isso não é o fim do mundo. O fato de não vivermos mais juntos não modifica em nada o nosso amor por você. Nós dois a amamos muito, muito mesmo, Tara. Posso lhe prometer que nada nem ninguém mudará esse amor. ― Não quero que mamãe encontre um outro homem e se case com ele! Não quero que nenhum de vocês faça isso, entende? ― Tara não conseguira conter o pranto. ― Quero meu pai e minha mãe juntos... detesto a minha vida como está agora!

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O pai a abraçara, carinhosamente, tentando consolá-la. ― Por que você não fala com mamãe? Podia lhe dizer algo que... ou então podia voltar para casa. O pai balançara a cabeça, dando-lhe um sorriso quase triste. ― É impossível, querida. Não posso voltar. Nos meses seguintes, Tara continuara tentando reconciliar os pais, de todas as maneira que lhe ocorriam, mas suas táticas não tiveram sucesso. Agora que era uma mulher adulta, percebia que os dois deviam ter se encontrado para discutir essa sua atitude adolescente, pois haviam permanecido firmes e unidos em sua calma determinação. Ambos repetiam, quase com as mesmas palavras, que o amor por ela nunca seria afetado, mas seu casamento terminara definitivamente. Agora compreendia que ambos tinham todo o direito de viver suas próprias vidas, mas restava sempre uma esperança idealista e certamente infantil de que os dois se reconciliassem e voltassem a ser apaixonados como no passado. Ela dissera a Ryland, desde o início do namoro, que o casamento dela seria para todo o sempre. Depois que tivessem constituído uma família, jamais se divorciaria porque sabia o quanto os filhos iriam sofrer. ― Deve estar achando que eu sou muito antiquada, não é? ― perguntara ela, desafiando-o a concordar. ― Não. Tenho as mesmas ideias que você a esse respeito ― respondera Ryland. ― Nosso casamento vai durar por toda a vida, Tara. Como poderia ser diferente se eu a amarei eternamente? Ele falara com tanta convicção que todas as dúvidas de Tara em assumir um envolvimento emocional tão profundo quanto o casamento deixaram de existir. ― E também não teremos segredos um para o outro, não é? ― perguntou ela, aconchegando-se nos braços de Ryland, agora disposta a celebrar o primeiro aniversário de namoro. ― Sempre diremos a verdade... toda a verdade! Quero conhecer tudo a seu respeito... ― Até mesmo que eu sou um lobisomem? ― brincou ele, tentando disfarçar o constrangimento com uma brincadeira. No fundo, sentia-se culpado pois estava mantendo em segredo alguns aspectos muito importantes a respeito de sua vida, fatos que Tara tinha todo o direito de saber. Então, jurou a si mesmo que contaria toda a verdade antes de embarcarem para Boston. Assim, ainda lhe restaria algum tempo para prepará-la, antes de lhe revelar tudo. Afinal, casar-se com um milionário devia ter algumas vantagens e uma delas seria a possibilidade de viajar sempre que sentisse vontade de ver a mãe. Quando Estelle completou onze anos, sua mãe anunciou, subitamente, que ela iria passar aquelas férias de verão com o pai. ― Eu não quero ir! ― protestara Estelle, horrorizada com a ideia. ― Aquela fazenda horrível fica no fim do mundo, longe de tudo! Não há nada para fazer por lá. Detesto aquele lugar! Por que não posso ficar aqui em Londres? ― Ethian e eu vamos viajar ― dissera Lorraine, indiferente à explosão de raiva da filha. ― Portanto, você não pode ficar.

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― Vão viajar outra vez? E para onde? Já saíram na Páscoa e... ― Essa foi uma viagem de negócios ― interrompera Lorraine, irritada. ― Mas vocês foram esquiar. ― Já lhe disse que foi uma viagem de negócios, Estelle. Eu simplesmente acompanhei seu padrasto e farei o mesmo agora. Ele foi convidado para juntar-se a um grupo de outros empresários no iate de alguém que não conheço ainda. ― Que bela viagem de negócios! ― comentara Estelle, com sarcasmo. ― Estelle! Se você pretende me criar problemas... ― Então o que você vai fazer? Abandonar sua filha sozinha em casa? Sabe que é ilegal. ― Estou começando a perder a paciência com você, Estelle. Vai ter de ficar com seu pai e... ponto final neste assunto, entendeu? ― Você não devia ter me parido se não queria cuidar de uma criança! ― Tem toda a razão, menina! ― replicara a mãe, com idêntica fúria. ― E pode acreditar em mim... a cada dia me arrependo mais por isso! Naquela noite, Estelle havia ido, como era seu costume, colar a orelha na porta do quarto da mãe e a ouvira se queixar para o padrasto. ― Não aguento mais essa menina, Ethian! Estelle está criando problemas, porque não quer passar as férias com o pai. Acho que sente ciúmes de mim, sabe? Não quer que eu me divirta. E pensar em tudo que sacrifiquei por ela... John nunca a quis. ― Talvez você devesse dizer isso a ela. Assim perceberá a sorte que teve. ― Começo a achar que você tinha razão, meu caro. Eu devia ter mandado essa menina para o colégio interno há muito tempo! A visita de Estelle ao pai não foi um sucesso. Ela detestava a fazenda e o meio irmão Ian. Tratava Sophie com um desprezo insolente e, quanto a Rebecca... era impossível odiar tanto uma pessoa! ― Você não me quer na sua casa. Nunca me quis! Era esse tipo de reação que ela sempre tinha quando o pai a censurava por ter provocado e brigado com Ian ou com Rebecca. Na verdade, Estelle não saberia dizer se tinha mais raiva do pai ou da mãe. Nenhum dos dois a amava e o pai agravara ainda mais a ausência de qualquer afeto ao oferecer, com tanto exagero, uma amor excessivo para os filhos de seu segundo casamento. Estelle sentia uma mistura de raiva, amargura e ressentimento ao ver como o pai brincava com Rebecca, ao perceber o amor que irradiava do rosto dele e o tom de voz meigo quando o ouvia falar com sua meia-irmã. Em relação a Ian, Estelle não sentia nada além de desprezo. Ele tentava não criar-lhe problemas, como se tivesse pena dela por não ter a sorte de viver junto com o pai. Essa atitude chegava a causar-lhe ódio. Pois aquele idiota podia ficar com o querido papai, pois não o queria mesmo em sua vida! Em hipótese alguma! Quando crescesse, ela iria encontrar um milionário, alguém mais rico que Ethian e muito, muito mais rico que o pai. Esse homem sempre a colocaria em primeiro lugar, antes de tudo!

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Estelle desprezava Rebecca e Ian porque ambos tentavam se mostrar amigos dela. E porque qualquer um dos dois sentiria qualquer afeição por uma meiairmã que mal conheciam? Ela simplesmente os detestava. Na verdade, Estelle chegara à conclusão de que não gostava de ninguém. As pessoas fingiam gostar de outra quando queriam conseguir alguma coisa. Sua mãe fingia gostar dela quando queria obter algum favor, como convencê-la a perder as férias de verão naquela maldita fazenda, e assim poder viajar e se divertir. Portanto, ter filhos significava não se divertir! Com o passar dos dias, Estelle começara a não disfarçar mais o desprezo diante do amor do pai por sua segunda família nem as reações de hostilidade quando ele procurava incluí-la nas atividades de todos. Quando terminaria aquela visita infernal? Pelo menos em Londres tinha liberdade total, pois Lorraine era ocupada demais para se interessar em saber no que consistiam as atividades da filha. Desde que não cruzasse o caminho da mãe, Estelle podia fazer o que bem entendesse. Ignorando todas as manifestações carinhosas de Sophie e as insistentes tentativas do pai em se comunicar com ela, Estelle passara as férias emburrada, dizendo a todos que estava contando os dias para aquela tortura acabar. Ela sentira um enorme prazer em saber que estava aborrecendo a madrasta sempre que discutia com o pai e perturbando a todos com sua atitude insolente e mal-humorada. E por que não deixar os outros tão infelizes quanto ela? Detestava todos, mas especialmente o pai. Mas, apesar de todo o ódio, estava determinada a não permitir que seu pais a mandassem para um colégio interno, como Ethian fizera com Blade. Blade... Havia momentos em que ele parecia se concentrar em fasciná-la e, em outros a antagonizava. Embora sua mãe e Ethian estivessem casados havia quase quatro anos, Blade passara menos de quatro meses em casa durante esse período. Lorraine recusava-se a permitir que ele fosse morar em sua casa. ― Já é um terror ter de suportar Estelle aqui em casa! ― dissera ela a Ethian, tarde da noite, sem saber o hábito da filha de escutar atrás da porta de seu quarto. ― Não vou tolerar também a presença de Blade nesta casa, perturbando minha vida. No último natal, Blade viera do colégio interno, pois esse era um dos únicos feriados em que Lorraine aceitava a presença dele em casa, e revelara algumas verdades a Estelle. ― Meu pai só se casou com sua mãe para poder ter sexo todos os dias ― dissera ele. ― Você sabe o que é sexo, não? Claro que ela sabia! Passara muitas noites ouvindo os sons que vinham do quarto da mãe. Também vira alguns filmes bastante explícitos na televisão e conversava sempre sobre esse assunto com as colegas de escola. Além disso, Lorraine trouxera muitos outros homens para casa antes de conhecer Ethian. Blade detestava o próprio pai, como Estelle detestava o dela. A desconfiança e o ódio de ambos pelos pais que controlavam suas vidas eram um elo muito forte entre os dois. Além disso, Blade tinha um temperamento

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sombrio que atraía Estelle, uma masculinidade ameaçadora e deliciosamente perigosa. Ele era diferente de todos os outros rapazes que conhecia, não da escola porque sua mãe a colocara em um colégio só para meninas. Também não era igual a ninguém mais porque parecia estar sempre lutando contra o mundo. Estelle reconhecia que Blade sempre seria perigoso, instável e excitante, mas o mais importante era que ambos pertenciam ao mesmo mundo, eram o mesmo tipo de pessoa. Ela não saberia dizer de que forma chegara a essa conclusão, porém tinha certeza absoluta de que encontrara seu reflexo no espelho...

CAPITULO XV A voz de uma criança discutindo com a mãe aem ao lado da janela do carro trouxe Cláudia, bruscamente, de volta ao momento presente. Estava com o corpo1 dolorido, com frio e chocada ao perceber que a tarde chegava ao fim. Por quantas horas permanecera sentada dentro do carro revivendo o passado? E o que a levara a tomar essa atitude absurda, abandonando seus compromissos e responsabilidades para vir até o bairro onde vivera havia tantos anos? Por que fazer a si mesma uma pergunta desnecessária, já que sabia muito bem qual era a resposta? Ela fora motivada por um intenso sentimento de culpa e pelo sofrimento. Culpa, dor e medo, muito medo! Nunca se sentiria culpada por ter aceitado Tara. Quando a apertara junto do peito, ao saírem do apartamento de Katriona, prometera àquela criança de poucos dias que seria sempre a mais amada das filhas, mesmo não sendo sua mãe biológica. Na verdade, sentia-se profundamente culpada por ter deixado Tara crescer ignorando a verdade, e também por saber que agira assim não apenas para proteger a filha, mas também a si mesma. ― Um dia você terá de contar a verdade a Tara ― dissera Garth, quando a menina se preparava para seu primeiro dia na escola. Cláudia prometera que o faria... quando chegasse o momento certo para isso. Então, antes de ajudar a criar a ocasião ideal, descobrira a verdade sobre a concepção de Tara. Garth, seu próprio marido, era o pai verdadeiro daquela criança! Depois dessa revelação que quase a destruíra, não conseguiu mais reunir coragem necessária para contar à filha quem ela realmente era... pois sentia-se quase em pânico ao pensar em admitir essa verdade. Nos momentos da vida de Tara em que a verdade poderia ser descoberta, Cláudia simplesmente prendera o fôlego, esperando pelo desastre inevitável. Para seu alívio, essas ocasiões críticas haviam passado, ninguém questionara nada e as mentiras elaboradas para tornar mais autêntico a certidão de nascimento da filha nunca foram descobertas. E, no entanto, sua fraude poderia ser revelada com tanta facilidade! Bastaria que alguém procurasse um médico, no hospital mencionado por Cláudia.

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Segundo ela, esse clínico geral a atendera em casa e tivera de fazer o parto porque Tara era prematura e não houvera tempo para sequer chamar a ambulância. Logo que se mudaram para Ivy House, ela conseguira evitar mais problemas, declarando ao médico local que os papéis referentes ao parto haviam se extraviado. Ninguém questionara o fato da certidão de nascimento ter sido tirada muitas semanas depois da data do nascimento da menina. O importante é que Tara tinha um documento completo, com o nome de seus pais: Cláudia e Garth Wallace. Bem... pelo menos metade desse documento não era mentira, embora Cláudia ainda não soubesse a verdade quando registrará Tara como sendo sua filha e de Garth. Mas ninguém ignorava como o consulado americano era minucioso ao verificar os antecedentes das pessoas que pretendiam entrar no país. E, segundo Tara, a tia de Ryland era ainda pior! Cláudia sentiu o coração disparar. Garth tinha razão! Não podia permitir que Tara descobrisse a verdade por intermédio de outra pessoa. Mas como poderia contar tudo agora? E o que aconteceria quando chegasse esse momento difícil demais? Ela compreenderia ou a odiaria, afastando-se de sua vida para sempre? Tara a amava muito, mas Cláudia sabia com que rapidez o amor pode se transformar em ódio, quando se descobrem as mentiras e as traições da pessoa amada, quando a confiança que se tem nela é totalmente destruída. Pelo menos, ela jamais esqueceria como se sentira no dia em que descobrira que Garth era o verdadeiro pai de Tara. Teria sido um dia igual a todos os outros, a não ser por terem uma hora marcada com o oftalmologista do hospital da região, durante a qual discutiriam a possível operação de amígdalas de Tara. Desde que começara a ir à escola, ela sofrera várias infecções de garganta bastante fortes e o clínico geral finalmente convencera Cláudia, a despeito de suas objeções iniciais, a procurar um especialista. Desde o nascimento de Tara, Cláudia evitara ao máximo qualquer contato com a classe médica. As pessoas julgavam que essa aversão se originasse do trauma de ter perdido o bebê e da necessidade de esquecer para sempre esses momentos de sofrimento. Só Garth sabia que a esposa sentia um verdadeiro terror de ser questionada sobre detalhes do nascimento da filha. Por esse motivo, ele decidira acompanhá-la ao hospital, naquela tarde, onde encontrariam o oftalmologista que examinara Tara na semana anterior e agora queria discutir os detalhes de uma possível operação com os pais da paciente. Os anos desde a chegada de Tara e a mudança deles para Ivy House pareciam ter voado. A agência de Garth crescera muito e o sucesso o obrigava a trabalhar até muito tarde e a viajar com frequência. Cláudia estava tão envolvida com a maternidade e as necessidades da filha que simplesmente não tinha tempo para sentir falta do marido. Ocasionalmente, ela se dava conta, com um certo sentimento de culpa, de que o marido estava sendo empurrado para a periferia de sua vida, uma vida que girava única e exclusivamente em torno de Tara. Embora Garth reclamasse,

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quando estava mais mal-humorado, que nunca tinham tempo para ficarem juntos e que, quando podiam conversar a sós, o assunto era sempre a filha, Cláudia sabia que, no fundo, ele também a amava muito. O fato de a vida sexual deles se limitar a uma relação apressada nos domingos de manhã e a alguns momentos, a cada dia menos frequentes, de relativa intimidade, também não a preocupava muito. Depois de ouvir as queixas de várias mulheres, concluíra que não era a única a ter problemas para conciliar o papel de amante, de mãe e de dona-de-casa. Felizmente, Garth parecia aceitar essa situação. Naquela manhã fresca de outono, Cláudia foi com Garth ao hospital, pensando apenas em controlar a costumeira tensão que sempre sentia ao ter de encontrar um médico. ― Lembra-se da primeira vez que a convidei para sair de carro comigo? ― perguntou ele, relembrando o passado. ― Claro. O aquecimento do carro não estava funcionando e... ― E eu parei para consertar. Então, descobrimos um modo muito mais agradável de nos aquecermos... ― Garth! ― ela o interrompeu rispidamente. ― Preste atenção no ciclista! Disfarçando o aborrecimento, ele voltou a se concentrar no movimento da estrada. Nos últimos tempos, Cláudia invariavelmente desviava o rumo da conversa quando o assunto era sexo. Ainda não descobrira se ela não queria mais contato sexual algum ou se não o queria como marido! Compreendia a profundidade do envolvimento de Cláudia com a filha e, se ele fosse menos gentil, diria que a menina se tornara uma verdadeira obsessão para ela. Também sabia que não era racional sentir-se excluído, enciumado e até com uma certa raiva, pois as necessidades de Tara eram sempre mais importantes que as dele e, portanto, deviam ser atendidas em primeiro lugar. Depois de pensar muito sobre o assunto, Garth concluíra que não sentia ciúmes do tempo e da atenção que Cláudia dedicava à filha. Sofria ao admitir que sua esposa preferia a companhia de Tara, criando uma vida fechada, onde um marido passara a ser algo secundário e até dispensável. Era óbvio que não poderiam ter a mesma vida sexual sem inibições dos primeiros meses de casamento! Não eram mais um casal em lua-de-mel que podia partilhar de uma intimidade completa todos os minutos do dia. Tinham uma filha de doze anos que também morava na mesma casa, uma garota inteligente e muito curiosa. Preocupada, Cláudia franziu a testa, olhando para a janela do carro com uma expressão quase apavorada. Se ela usasse um pouco de lógica, admitiria que não havia motivo algum para sentir esse medo absurdo de conversar com um médico. Ninguém duvidava que Tara fosse sua filha... filha dela e de Garth, é claro. Mesmo assim, estava apreensiva e quase se descontrolou quando entraram no estacionamento do hospital. Garth notou,o mal-estar da esposa e sentiu-se culpado por ter discutido com ela a necessidade de contar a verdade a Tara. Ou, pelo menos, uma parte dos fatos que pudessem ser compreendidos por uma garota de quase treze anos.

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No início, Cláudia tinha concordado com ele e parecia apenas esperar a ocasião ideal. Nos últimos tempos, estava assumindo uma postura defensiva e quase agressiva sempre que tocavam nesse assunto delicado. ― Como posso contar uma... coisa tão difícil assim? ― perguntara ela, irritada, na última vez que Garth insistira naquele ponto. ― Ela ainda não tem idade para compreender todas as implicações. Além disso, o que eu poderia dizer? "Ouça, Tara... eu não sou sua mãe." Você acha que deveria ser assim? ― Ela terá de saber algum dia, Cláudia ― insistira ele, sem perder a calma. ― Talvez não tenha! ― protestara ela, teimosamente. ― Todos acreditam que Tara é realmente minha... nossa filha. Se alguém tivesse mesmo intenção de descobrir a verdade, já teria conseguido há muito tempo. Garth recuara, com medo de que a discussão se deteriorasse. Cláudia ficara nitidamente perturbada e ele não queria deixá-la mais nervosa. Talvez ela tivesse razão. Talvez Tara nunca precisasse saber que eles não eram seus pais biológicos. Mas o que aconteceria se a verdade viesse à tona por acidente? ― Um dia eu contarei ― dissera Cláudia, visivelmente contrariada. ― Quando eu achar que chegou a hora. Garth estacionou o carro no pátio do hospital e tentou se redimir de todas as vezes que aborrecera a esposa tocando naquele assunto incómodo. ― Nossa conversa com o oftalmologista não deve demorar mais de meia hora. Por que não vamos almoçar juntos? Nunca fomos ao novo restaurante italiano que abriu... ― Impossível, Garth. Preciso comprar o tecido para uma fantasia que Tara quer usar na festa de aniversário de uma amiga. Além disso, tenho que ir ao centro comunitário. Duas ou três vezes por mês Cláudia doava uma tarde de trabalho para o centro comunitário do vilarejo próximo a Ivy House, dando aconselhamento e consultoria a quem precisasse. Garth sabia que ela gostava desse tipo de trabalho, mas Cláudia insistia em ressaltar que só continuaria indo ao centro enquanto as tardes de aconselhamento não entrassem em conflito com a rotina de Tara. ― Eu quero estar em casa, à disposição dela ― protestara Cláudia quando ele reclamara que não sobrava tempo para mais ninguém em sua vida. ― Não se trata de sacrifício algum, e sim do que realmente desejo! O oftalmologista os esperava, com a ficha de Tara sobre a escrivaninha. ― Trata-se de uma operação extremamente simples e eu aconselharia que vocês não esperassem muito mais. Essas infecções de garganta são debilitantes, apesar de não provocarem lesões futuras. Descobrimos que crianças com esse tipo de problema acabam tendo um menor rendimento na escola. E um procedimento muito penoso para um adulto, e Tara está na idade ideal para ser operada e ter uma recuperação perfeita. O médico apanhou a pasta de Tara e a abriu. ― O único problema que poderíamos ter seria relativo ao tipo de sangue dela, que é muito raro. Então, verifiquei que você ― ele olhou para Garth, sorrindo ― tem o mesmo tipo. Dizem que todas as crianças sabem quem é a mãe, mas só as sabias sabem quem é o pai. No caso de Tara, não restam dúvidas a esse respeito.

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Cláudia olhou para o marido, esperando encontrar uma expressão de espanto, mas quase perdeu o fôlego ao perceber que ele estava lívido, pouco à vontade e com um ar culpado. Naquele instante, ela teve uma revelação que a deixou estonteada. Não só admitiu que a expressão do marido era o reflexo de uma verdade absoluta, como também aceitou imediatamente essa possibilidade. Garth era mesmo o pai de Tara! Logo em seguida, teve um choque ainda maior ao pensar que ele sempre soubera e mantivera a paternidade em segredo. Entretanto, a descoberta mais dolorosa era saber que Tara, a quem ela adorava e muitas vezes considerava apenas sua, não tinha sido gerada em seu útero, mas era filha legítima de Garth! Ela conseguiu se controlar até entrarem no carro. Então o acusou com fúria. ― Admita a verdade, Garth! Eu não descansarei enquanto não souber toda a verdade, entendeu? Você é o pai de Tara, não é? ― É bem possível que eu seja ― disse ele, sem olhar para Cláudia. ― É... bem possível? Vocês dois têm o mesmo sangue de tipo raro! Você só pode ter sabido antes e... ― Eu sabia que havia probabilidade de Tara ser minha filha ― interrompeu ele, tenso. ― Mas nunca houve certeza alguma. Até hoje... ― Até hoje você esperava que ela não fosse? Garth não disse nada porque não tinha resposta alguma. Como explicar que apagara da mente as palavras de Katriona, convencendo a si mesmo que seu amor por Tara não dependia do fato de ser ou não seu pai biológico? Se o fosse, estaria cumprindo seu dever e dando-lhe tudo, principalmente carinho. Se não o fosse, ela continuaria sendo sua filha e muito amada. Embora tivesse certeza de que Cláudia jamais compreenderia, ele simplesmente não quisera saber a verdade. Jamais se arrependeria de ter gerado uma criatura tão maravilhosa quanto Tara, mas parte dele desejava, com ardor, ignorar uma possível participação nesse fato. Acabara concluindo que seria melhor, mais prudente e mais seguro esquecer tudo que Katriona lhe dissera. Quando pensava no assunto, forçava-se a lembrar que ela nunca tivera muita certeza a respeito de quem era realmente o pai da criança. Era fácil acreditar nessa possibilidade porque não se recordava de nada. As únicas lembranças daquela noite estranha se resumiam a uma presença feminina em seu quarto, uma mulher que não parecia ser Cláudia, mas estava muito próxima... que talvez não fosse a sua esposa. ― Você soube, todos esses anos, que Tara é sua filha. Todos esses anos mentiu para mim, me enganou... Cláudia começou a chorar, mas quando Garth virou-se para abraçá-la, ela o empurrou, recuando para junto da porta, com uma expressão de ódio no rosto muito pálido. ― Não toque em mim! Nunca mais ouse pôr as mãos em mim! Você dormiu com Katriona... fez sexo com ela! Por que, Garth? Como pôde? Como teve coragem de me trair... de trair nosso casamento? Quantas vezes...? Onde a encontrava? Quando... ― Pelo amor de Deus, Cláudia! Não foi assim... não foi como você pensa. Ele estava desorientado, sem saber como lidar com Cláudia, à beira de uma crise histérica, dentro de um carro parado no estacionamento de um hospital.

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― Vamos para casa, Cláudia. Lá, nós poderemos discutir melhor esse assunto. Juro-lhe que, até hoje, nunca tive prova alguma de que Tara fosse minha filha. ― Mas sabia que talvez ela fosse ― insistiu Cláudia. ― Sim ― respondeu ele, com as mãos crispadas na di-reção. ― Eu não ignorava que havia... uma possibilidade, mais nada. Francamente! Não podemos continuar essa conversa aqui. Vamos esperar até... ― Até que você tenha mais tempo para pensar? Até poder inventar mais mentiras? ― Eu nunca menti para você, Cláudia. ― Mentiu, sim... por omissão. Já admitiu que sempre soube da possibilidade de ser o pai dela, mas nunca me disse nada, nem uma só palavra. Deixou que eu entrasse naquele consultório sabendo o que iria acontecer e não... ― Eu não sabia o que poderia acontecer! Não tinha a menor ideia, entende? Por favor, Clo! Sei o que deve estar pensando, mas não foi assim. Deixe-me explicar... ― Você acha mesmo que eu sou uma completa idiota, não? Sei que Katriona é a mãe biológica de Tara. Você acabou de admitir que é o pai dela. Pelo que aprendi até hoje, só existe um jeito para isso acontecer. Ou será que você conhece outros? ― Fique calma, Clo. Se me ouvir por um momento, eu poderei... ― Você poderá fazer o quê? Garth conseguira dirigir até a saída do estacionamento e, ao entrar na avenida, teve de parar no semáforo vermelho. Cláudia abriu a.porta do carro e saiu rapidamente. ― As únicas palavras que quero ouvir de você, Garth, são aquelas que nunca poderá dizer! Sem dar tempo para Garth responder, ela bateu a porta com violência e começou a andar na direção da rua mais próxima. O orgulho fez com que mantivesse as costas eretas e desse passos firmes, mas essa determinação só durou até virar a primeira esquina. Então, as lágrimas vieram, copiosas e quentes. Cláudia chorava de raiva, de choque e de tristeza. Mas, acima de tudo, seu pranto era o retrato de uma dor que nascia da angústia e da agonia. Todos aqueles anos ela nem sequer desconfiara... "Fique com ela", pedira Katriona em seus últimos minutos de vida. Agora Cláudia sabia por que a jovem insistira tanto! Como os dois devem ter rido dela, na cama, quando... ― Você está bem, moça? Uma senhora, de aparência maternal, acabara de colocar a mão em seu braço, lembrando-a de que estava em plena rua. ― Sim... ― mentiu ela, lutando para se controlar. ― É apenas um cisco... algo em meu olho... Algo no olho? A verdade é que havia um dardo cravado em seu coração, espalhando o veneno do ciúme e do ódio, destruindo todas as suas emoções positivas. Não era apenas a traição sexual que a magoava profundamente. Embora fosse quase insuportável pensar em Garth e Katriona na cama, Cláudia sentia uma dor ainda mais brutal ao reconhecer que ele sempre soubera que Tara podia

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ser sua filha verdadeira e nunca lhe dissera nada. O homem em quem confiara fora capaz de mentir anos a fio. Todo esse sofrimento talvez pudesse ser esquecido, ou pelo menos amenizado, com o passar do tempo. O que Cláudia jamais perdoaria e nunca poderia suportar era o fato de Tara ser filha de Garth e não dela, de existir entre os dois um laço de sangue muito forte, que não existiria entre ela e a filha adorada, de haver um elo reconhecido pela lei entre pai e filha. Ela, a mãe que só dera amor, fora excluída desse pacto, eliminada dessa ligação. Sentia ódio de Garth e mais ódio de si mesma por ser capaz desse sentimento. Automaticamente, ela começou a voltar para casa, rezando para não encontrar conhecido algum no caminho. Seus movimentos eram duros e instintivos, como se sua mente tivesse parado de funcionar e ela seguisse apenas o instinto. Seu único objetivo era chegar, procurar o refúgio de seu quarto, onde encontraria segurança e abrigo. Até alcançar Ivy House, estava sozinha, em um mundo hostil, e não ousava examinar mais a fundo seus sentimentos. Mas as mesmas perguntas continuavam a atormentá-la. Quantas vezes Garth teria se encontrado com Katriona? Onde costumavam se ver? Certamente não era naquele apartamento imundo! Não conseguia ver Garth em um antro de droga. Aliás, só de imaginar o seu marido e aquela jovem em qualquer lugar lhe provocava náuseas e uma vontade quase incontrolável de gritar bem alto, de contar para o mundo quanto sofria por causa daquela traição. Entretanto, sabia que tinha de calar essa voz, de controlar a angústia pelo bem de Tara. Pelo bem de sua filha, precisava agir da maneira mais normal que lhe fosse possível. E por que Garth procurara Katriona? O que faltara em seu relacionamento? Existia alguma falha grave em seu casamento para que ele sentisse necessidade de procurar outra mulher? "Militares... Eles são os piores." Cláudia se lembrava agora do tom triunfante de Katriona ao pronunciar essas palavras. Ela já saberia que estava grávida de um filho de Garth? E ele também? Cláudia já sabia que não encontraria Garth em casa. Ele tinha uma palestra em Londres e só voltaria muito tarde. Ao entrar em Ivy House, disse a si mesma que estava muito feliz por não ter de encontrá-lo. Na verdade, não queria vê-lo nunca mais! Quantas vezes eles tinham estado juntos? Garth encontrara Katriona para os dois passarem alguns momentos juntos ou apenas para ter sexo? E sentira mais prazer com aquela jovem inconsequente do que com ela? Bem, era óbvio que sim! Se não a desejasse mais do que desejava a própria esposa, nada disso teria acontecido. Katriona contara a" Garth que estava esperando um filho e que ele seria pai. Certamente se vangloriara por poder engravidar, enquanto a esposa dele não era uma mulher completa e nunca poderia lhe oferecer a dádiva da paternidade. Cláudia sentiu a histeria crescer em seu íntimo, percebeu que a dor se avolumava e só poderia ser eliminada de seu organismo se gritasse, se rompesse o silêncio da casa vazia. Subitamente, ela estava revivendo, com a mesma intensidade quase intolerável, a dor que sentira ao descobrir que nunca poderia ter filhos.

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Mas Tara era sua filha. Fora ela quem a salvara, quem a amara desde o primeiro minuto, quem lhe ensinara tudo. Tara... Logo estaria na hora de ir buscá-la na escola, um ritual que ambas adoravam. Ultimamente a filha começara a protestar, afirmando que tinha idade suficiente para voltar sozinha para casa, como as amigas. Mas Cláudia pensava nesses momentos como um presente, uma oportunidade de ouvir todas as novidades do dia. Amava ouvir a voz entusiasmada que tagarelava sem parar ao seu lado, enquanto caminhavam de mãos dadas. Tara era sua filha. Uma vida gerada por Katriona, mas filha sua. Um óvulo fecundado por Garth, mas uma pessoa criada por ela! Cláudia percebeu que estava com as costas curvadas e balançando o corpo, sentada na cama... a cama dela e de Garth. Subitamente, sentiu que a náusea voltava e com maior intensidade. Garth fizera sexo com Katriona... na cama que eles dois haviam partilhado desde os primeiros dias de seu casamento? Ela correu para o banheiro, incapaz de conter a forte náusea. Depois, permaneceu um longo tempo com o rosto encostado nos azulejos frios, tremendo da cabeça aos pés. Garth devia ter contado a Katriona que ela não podia ser mãe. Quem sabe se queixara da esposa que nunca lhe daria filhos. Seria por esse motivo que... Parar... Era preciso parar de se atormentar dessa forma! Cláudia lavou o rosto com água fria, procurando se controlar. Tinha de manter a calma e ao menos uma aparência de normalidade, pelo bem de Tara. Agora, só a filha tinha realmente importância, mais nada ou ninguém. Seu casamento com Garth estava definitivamente terminado. Como suportaria prolongar essa farsa sem sentido? Seu marido deixara de lhe contar algo vital, não a preparara para enfrentar esse choque arrasador. Todas as vezes que Garth olhava para Tara devia lembrar-se de Katriona. Talvez por esse motivo nunca tivesse lhe revelado a verdade... para manter invioladas as suas recordações de um grande amor que resultara na concepção de uma filha. Sem dúvida ele a amara muito... Ela voltou para o quarto, forçando-se a pensar apenas que precisava ir buscar a filha na escola. Garth adorava Tara porque havia amado muita a mãe dela? Veria Katriona sempre que olhava para a filha? Seus pensamentos pareciam girar em círculos repetitivos, estonteando-a com sua intensidade e com a brutal capacidade de lhe causar dor e angústia. Tara... O telefone estava tocando quando Cláudia saiu de casa. Ela ouviu, mas nem pensou em atender. Não queria falar com Garth e não estava em condições para conversar com ninguém. Garth desligou o telefone praguejando baixinho. Maldita palestra! Era evidente que Cláudia não atenderia ao telefone e ele não podia ignorar o compromisso, que lhe tomaria parte da noite, e ir para casa. Precisava de tempo para conversar com ela, tinha de èxplicar-lhe como tudo acontecera, forçá-la a escutar seu lado da história. Mas como poderia dispor de algumas horas de atenção de Cláudia, enquanto Tara estava em casa? Além disso, a filha perceberia que havia algo muito errado! Impulsivamente, ligou para a casa dos pais dela. Embora tivesse ficado surpresa com seu telefonema inesperado, a sogra concordou em ficar em Ivy

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House, por alguns dias, cuidando de Tara, enquanto ele levava Cláudia para uma pequena viagem, a fim de ambos descansarem um pouco. ― Sei que não estou lhe dando muito tempo para se preparar, mas... ― Não se preocupe com isso, Garth. Adoramos ficar com Tara e acho que você teve uma ideia maravilhosa. Cláudia precisa de um fim de semana romântico. Para onde pretende levá-la? ― É... é segredo ― disse ele, sem realmente estar mentindo. Não tinha ainda a menor ideia de aonde levar Cláudia, só sabia que teria de ser um lugar onde pudessem ficar absolutamente sozinhos. Só assim ele conseguiria contar seu lado da história e talvez salvar seu casamento. Cláudia ainda estava sob o efeito do choque e desorientada demais para discutir quando Garth lhe comunicou os planos. Ele encontrara um romântico chalé para alugar na fronteira do País de Gales, bem próximo da pitoresca Hay-on-Wye. Cláudia não disse uma só palavra durante a viagem de algumas horas, mas não se calara porque quisesse castigá-lo com seu silêncio, e sim porque era mais fácil e mais prudente. Se falasse, deixaria vir à tona toda a raiva e sofrimento que estavam contidos a duras penas e, quando suas emoções fossem liberadas, seria muito difícil controlá-las. O dia amanheceu frio e uma chuva mansa mas constante começou a cair no meio da viagem. Cláudia estava muito pálida e suas feições pareciam ter se tornado mais salientes, como se ela tivesse envelhecido subitamente. Até seus movimentos estavam diferentes, duros e quase rígidos. Garth notou que ela andava mais depressa, ao descer do carro, caminhando em direção ao chalé sem olhar para trás ou esperar por ele. Nas quarenta e oito horas após aquela revelação devastadora, Garth sentira o ódio de si mesmo crescer a cada minuto que passava. Culpava-se pelo que acontecera, é claro! Mas se aquela noite da qual pouco se lembrava não tivesse ocorrido, Tara não existiria. Podia jurar, sem falsidade, que não sabia como acabara tendo uma relação sexual com Katriona. Também não estaria mentindo ao dizer que não fora um ato premeditado nem desejado de sua parte. O chalé fora planejado para acolher um casal apaixonado. Havia apenas uma sala, no andar de baixo, com uma enorme lareira e sofás confortáveis. No de cima, ficava o quarto amplo e um banheiro forrado de espelhos. Os dois cómodos tinham candelabros com velas perfumadas, e o ambiente propiciava uma intimidade sensual. Ele percebeu que Cláudia ficou tensa ao entrar na sala acolhedora e, se não o tivesse encontrado colocando a caixa de mantimentos na cozinha, teria voltado imediatamente para o carro, exigindo ser levada de volta para casa. ― Não acho que tenha sido uma boa ideia virmos para cá ― disse ela, parando junto do balcão que separava a sala da cozinha. ― Mas precisamos conversar, Cláudia. Nós dois concordamos que era necessário, e em casa seria impossível. Conversar! Garth transformava uma situação chocante em um encontro polido entre duas pessoas civilizadas. Cláudia não queria agir como uma dama, não tinha a menor vontade de manter um diálogo educado com o

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marido. Seu único desejo era gritar e ofender, perder a compostura e culpar a ele por uma traição indesculpável e a si mesma pela cegueira e pela estupidez de não ter adivinhado a verdade. ― Como você a conheceu? ― perguntou ela, com uma voz sem inflexão alguma, ainda controlando a fúria que logo teria de vir à tona. ― Quantas vezes... ― Eu a vi apenas duas vezes ― respondeu Garth, mantendo a calma. ― A primeira foi quando acordei e a vi mexendo em minhas roupas e tirando o dinheiro.de minha carteira. A segunda... Ele terminara de guardar os mantimentos e foi para a sala acender a lareira. ― A única outra vez foi quando... quando fui vê-la depois de ter recebido uma carta onde ela me comunicava sua gravidez. ― Garth deixou de cuidar da lareira e olhou para Cláudia, que o fitava com uma expressão de repulsa e ódio. ― Pelo amor de Deus, Clo! Eu nem me lembro dessa relação sexual. Katriona... ― Então, não lembra! ― explodiu ela, dando uma gargalhada amarga. ― Não seja cínico! Ela era melhor do que eu... na cama? Só pode ter Vido, é claro! Você sentiu um prazer inesquecível ao usar o corpo de Katriona? E falaram a meu respeito... antes ou depois desse sexo maravilhoso? Riram de minha impossibilidade de ter filhos, enquanto geravam Tara? ― Pare, Cláudia ― pediu Garth, arrasado. ― Não foi assim, você não... ― Não entendo? E isso que quer dizer? Cláudia riu novamente e o som lembrou Garth de um cristal que se partia, de algo muito precioso e frágil se rompendo em mil pedaços. ― Mas é claro que eu entendo, meu caro! Alguns fatos são claros demais para não serem compreendidos de imediato. Você "transou" com uma garota chamada Katriona. Ela concebeu a sua filha. E onde esse evento único aconteceu? Na nossa cama? Cláudia percebeu que começara a tremer convulsivamen-te e sentia a mesma náusea violenta do dia em que soubera toda a verdade. Foi preciso muito esforço para se controlar, mas ela conseguiu apenas para não mostrar a Garth a intensidade de seu sofrimento. ― Eu juro que não foi como você está pensando, Cláudia! Era vital fazê-la compreender o que realmente acontecera. Na verdade, suas recordações daquela noite continuavam vagas e ele apenas juntara fragmentos de sensações e fatos desconexos. Bebera demais e acordara com Katriona agachada ao lado da cama. Tudo que ocorrera entre aqueles dois momentos não passava de suposição de sua parte. Provavelmente, ela se aproveitara de sua embriaguez! Embora essa história soava mal até para ele, era a única que poderia contar, pois aquele episódio continuava a ter a textura vaga de um sonho mau. Percebera que Cláudia parecia não ter tomado conhecimento de nenhuma de suas palavras, como se não quisesse ouvir nem compreender nada. ― Não quero que você diga mais nada, Garth. A mente de Cláudia se concentrava em um único fato, o qual provocava a dor mais intensa. Garth levara Katriona para dentro do lar que os dois partilhavam. Tivera relações sexuais com ela na mesma cama em que a havia

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amado tantas vezes. Tocara o corpo de outra com a idêntica ou maior paixão. Também jurara que a amava apaixonadamente? Cláudia sempre pensara que a dor de perder seu bebê e todas as esperanças de ter filhos fosse o sofrimento mais terrível da sua vida. Imaginara que nada seria comparável a essa agonia, mas agora percebia que se enganara. Aquela dor do passado tinha sido profunda, mas limpa. Agora o sofrimento era outro, muito mais sórdido e degradante. Sentia como se um veneno potente estivesse se espalhando por todo o seu organismo, um ácido, corrosivo ou uma gangrena que a devoraria por dentro até destruí-la por completo. ― Eu sei como você deve estar se sentindo, Cláudia. ― Ah, sabe mesmo? ― Ela ergueu a cabeça, encarando-o com uma expressão desafiante. ― Como pôde fazer isso comigo, com nosso amor? Agora entendo por que aceitou tão depressa quando eu disse que iria ficar com Tara. Imagino como vocês dois devem ter rido de mim! Eu, a esposa ignorante e crédula, ansiosa por receber de braços abertos a filha do marido com outra mulher. E amando muito essa criança! ― Eu não sabia que Tara era minha filha, Cláudia. Poderia ser... ― De qualquer outro homem ― interrompeu Cláudia, novamente envolvida por um ódio frio. ― É claro que podia, pois Katriona se prostituía para sustentar o vício. Mesmo sabendo disso, levou-a para a cama. Você a amava, Garth? ― Não. A resposta dele fora muito rápida e completamente honesta. Para seu desalento, a afirmação aumentou a amargura de Cláudia em vez de deixá-la menos angustiada. ―Então, é um homem ainda mais desprezível! Se a amasse, acho que eu até compreenderia, mas ter satisfeito apenas uma necessidade física e gerado uma criança sem amor é revoltante... Não posso continuar casada com você, Garth ― declarou ela, sem emoção alguma. ― Não suportaria vê-lo, estar na mesma sala e muito menos na mesma cama... Cláudia parou de falar, como se a conversa tivesse perdido o interesse, e se afastou na direção da porta de entrada. ― Você está exagerando ― declarou Garth, irritado. Ele estava começando a perder a paciência com a atitude obstinada da esposa. Cláudia não ouvira suas explicações nem dera chance a si mesma de participar de um diálogo produtivo. Mostrara-se pronta a aceitar o pior a respeito dele, sem nem sequer procurar uma explicação. ― Era exatamente por isso que estava esperando, certo? Uma desculpa para me fazer sair de sua vida! Afinal, o meu papel dentro da família passou a ser supérfluo e dispensável. Você não quer um marido, Cláudia, e muito menos um amante. Na verdade, não quer homem algum por perto. Seu único e obsessivo desejo é ser mãe, mas não é... ― Não sou mãe de Tara? É isso que quer dizer? Garth a fitou, chocado com a própria agressividade. Cláudia estava pálida, com os olhos vermelhos e a fisionomia distorcida pela dor e pelo ódio. No entanto, ele a via como se fosse a jovem encantadora por quem se apaixonara à primeira vista e a amava com a mesma intensidade do início de seu

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romance. Precisava demonstrar quanto a desejava, quanto sofreria se não a tivesse ao seu lado para sempre. O chalé era pequeno e bastaram dois passos para chegar junto de Cláudia. Ele a abraçou, puxando-a para junto do peito, como se quisesse protegê-la da dor que lhe causara. ― Clo, meu amor... ― Não me chame de seu amor! Cláudia erguera a cabeça ao ouvir aquelas palavras, mas Garth não estava em condições de ver a dor da rejeição no rosto da esposa. Ansiava por um contato físico, precisava reforçar a ligação amorosa que acreditava ainda existir entre os dois, e ele só conhecia uma maneira de mostrar isso à mulher que sempre amara e amaria pelo resto da vida. Abaixando a cabeça, ele começou a beijá-la com ardor. O peso de seu corpo empurrou-a de encontro à parede e os lábios ávidos procuravam afastar todos os problemas e destruir a barreira intransponível que se erguera entre os dois. Cláudia foi tomada de uma onda de fúria tão intensa que sentiu um desejo incontrolável de agredir fisicamente aquele homem, uma reação que a assustava, pois nunca fora agressiva ou violenta com ninguém em toda a sua vida. Então, sentiu que seu corpo se moldava ao dele, procurando um contato sensual, apesar de tudo que soubera. As emoções mais primitivas e mais profundas vieram à tona e Cláudia perdeu a capacidade de racionar. Ela o agrediu, batendo com os punhos fechados no peito de Garth, numa tentativa pueril de provocar alguma dor no homem que a ferira. Mas esse ato insensato não trouxe alívio algum nem deteve as lágrimas que escorriam em seu rosto. ― Eu te odeio, Garth... Te odeio! ― gritou Cláudia, descontrolada. Ela ainda gritava quando Garth a carregou, à força, até o quarto no andar de cima. Depois, Garth juraria a Cláudia, e a si mesmo, que sua única intenção tinha sido jogá-la na cama e deixá-la sozinha no quarto até que se acalmasse. Então, quando vira o rosto molhado de lágrimas e marcado pelo sofrimento fora invadido pelo sentimento de culpa e não resistira ao impulso de tocá-la para demonstrar quanto a amava. ― Querida... não foi como você imagina... Mas Cláudia precisava silenciar aquela voz, precisava impedir que mais mentiras fossem pronunciadas, e ergueu as mãos para cravar as unhas no rosto que um dia amara. ― Não! ― gritou ele, segurando os pulsos de Cláudia. Aos olhos de Cláudia, aquele gesto era a mais grotesca paródia da intimidade partilhada por dois seres que se amavam. O rosto de Garth estava muito próximo e ela precisava encontrar uma válvula de escape para uma emoção mais forte do que o amor. Seguindo um instinto primitivo, mordeu o lábio dele. Garth sentiu a dor, o gosto do sangue e viu a satisfação quase feroz no rosto de Cláudia, quando ela percebeu que conseguira feri-lo. Foi esse olhar de vitória e a súbita euforia de descobrir quanto sentira.prazer em magoar que eliminaram os últimos vestígio do controle que ele lutava para manter.

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Cláudia se debatia nos braços dele e Garth se surpreendeu ao descobrir o intenso erotismo daquele duelo de vontades e de desejos. O corpo suave e delicado sob o seu tentava escapar de uma dominação, mas se submetia à força. Ele sabia que, além da raiva e da necessidade de se impor, ambos estavam liberando uma sensualidade primitiva, que jamais haviam admitido existir em seus íntimos. Presa sob o peso do corpo mais forte que o seu, Cláudia viu a expressão de Garth e reagiu àquela demonstração muda de desejo animal. Era o mesmo olhar de provocação sexual que a primeira mulher lançara ao primeiro homem e, embora seu lado racional censurasse essa entrega por meio da violência, o lado físico sentiu uma volúpia e uma excitação jamais experimentadas antes. Antes mesmo de Garth rasgar sua blusa e tocar seus seios, ela já sabia como se sentiria quando isso acontecesse. O ódio, a amargura e o desprezo tinham se transformado em chamas de desejo, tornando cada sensação mais intensa e delirante. Quando ele a beijou, Cláudia sentiu o gosto de sangue nos lábios que exigiam submissão. O mundo parecia girar à sua volta, num redemoinho de cores vibrantes. Raiva, dor, desejo e posse eram emoções fortes demais, porém conhecidas, entre inúmeras outras que seu consciente não ousava admitir. Foi uma relação intensa e violenta, mas rápida como o fogo que transforma tudo em cinzas. Cláudia sentia ódio de si mesma por desejar que Garth a dominasse, mas não tinha forças para resistir. Segundos antes do êxtase, ela cravou as unhas nas costas de Garth, como se quisesse aprisioná-lo em seus braços e esgotar até a última gota de uma masculinidade opressora. Talvez, em seu subconsciente, desejasse deixá-lo vazio da potência viril que poderia gerar filhos em uma outra mulher, por não ter mais a possibilidade de carregar em seu ventre a semente de um novo ser. Muito mais tarde, quando pensava nessa relação, admitia que tentara extravasar seu ódio e se livrar de todos os sentimentos de amor por Garth. Nos meses após a separação, descobriu que isso não acontecera. Para todos os conhecidos e amigos, o divórcio foi amigável e incrivelmente civilizado. ― Não posso mais viver com você, Garth ― dissera Cláudia, com uma frieza distante. ― Ou melhor, não quero. Ele concordara, apenas porque sabia que não lhe fora dada escolha alguma. Após todas as suas tentativas de dialogar com Cláudia, sem o menor sucesso, desistira de lutar contra a obstinada teimosia da mulher que passara a considerar o casamento deles uma farsa sórdida. Os dois concordaram que Tara ficaria com Cláudia, enquanto Garth teria acesso à filha, para continuar sendo uma presença marcante na vida dela. ― Não posso mesmo impedir que a veja, concorda? ― comentara Cláudia, no último encontro antes da homologação do divórcio. ― Afinal, ela é sua filha! ― E sua filha também. Mas Cláudia se recusara a erguer a cabeça. Garth percebera que ela estava chorando, mas qualquer tentativa sua de aproximar-se ou de procurar consolá-la, de dizer-lhe quanto a amava ou como sofreria com essa separação, só a faria odiá-lo ainda mais.

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CAPÍTULO XVI O único pensamento de Cláudia, enquanto cru-' zava o trânsito movimentado de Londres, ainda era Tara. Lembrava-se da expressão chocada da filha quando lhe dissera que ela e Garth iam se separar, e também não esqueceria de suas lágrimas e dos apelos insistentes para que desistissem da ideia e continuassem juntos. Se as circunstâncias tivessem sido um pouco menos graves, Cláudia teria cedido aos pedidos da filha e de Garth, aceitando o desafio de reconstruir seu casamento. Mas não suportara pensar em um convívio diário que a destruiria. Sempre que olhasse para o marido, sempre que ele a tocasse, veria apenas Katriona. Quando o visse com Tara, seria obrigada a admitir que não era a mãe verdadeira e seu bem mais precioso pertencia a outra mulher e ao homem que a traíra. Aos poucos, Tara fora aceitando melhor a separação. Cláudia mantivera a palavra de permitir que a filha encontrasse o pai quando sentisse vontade, independente das datas de visita oficiais. A menina se transformara em uma adolescente esbelta e, por vezes, parecia-lhe que a dor crescia em vez de diminuir. Tara, aos dezoito anos, tinha a mesma idade de Katriona quando... Agora sua filha ultrapassara o limiar de um mundo novo, pronta a dar o primeiro passo na vida como uma mulher adulta. Uma vida que poderia ser destruída pela traição, como a sua fora arruinada havia tantos anos. Mas Tara não descobriria a dor de uma mulher que é traída por um homem. Seu sofrimento seria muito mais profundo e devastador pois retrataria a traição de uma criança pela mãe. Tantas vezes Garth insistira para que ela contasse a verdade a Tara! ― Não posso! Meu dever é protegê-la de tudo e... ― Você está protegendo a si mesma e não a Tara, Cláudia. Já pensou no que pode acontecer, no que ela vai sentir se descobrir a verdade através de outra pessoa? ― Mas ela nunca vai descobrir! Apesar de parecer confiante, Cláudia sempre sentira um medo que beirava o pânico. Sabia o quão frágil era a teia de mentiras que tecera em torno do nascimento de Tara e com que facilidade os fatos poderiam ser ligados se alguém estivesse determinado a descobrir a verdade. Como Tara se sentiria, se tivesse de enfrentar essa realidade perturbadora em um país estranho? Se a tia de Ry-land descobrisse a verdade e a usasse como arma para afastá-la do sobrinho e herdeiro? O que ela faria, se estivesse no lugar da filha? Quais seriam seus pensamentos e seus sentimentos pela mãe que lhe permitira ser colocada em uma posição humilhante, porque nunca a prevenira?

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Como mediria um amor de uma mãe capaz de colocar sua própria necessidade de ser vista sob o melhor ângulo possível pela filha, acima do direito dessa filha de ser protegida de tudo e de todos? Tara teria todo o direito de se sentir traída pela mãe e de odiá-la, com a mesma intensidade com que ela odiara a traição de Garth. Seus sentimentos e suas necessidades nunca deveriam ter sido mais importantes do que os de sua filha. Sim, Tara era sua, porque a amara com amor de mãe, com a mesma intensidade que amaria um ser gerado em seu próprio útero. Emocionalmente, Tara era carne de sua carne, sangue de seu sangue. Cláudia sempre fora o tipo de mãe capaz de sentir que a filha distante está infeliz ou doente, pois o laço entre elas era forte demais. Não podia permitir que Tara fosse para os Estados Unidos sem saber a verdade. Subitamente, sua visão se tornava muito clara e ela via o erro brutal que cometera. Por que não revelara tudo desde o princípio? Cláudia admitia sua covardia. Deixara que seu próprio medo de ser rejeitada pela filha se tornasse mais importante do que qualquer direito de Tara. Ela virou a direção, bruscamente, assustando e enfurecendo o motorista do carro atrás do seu. Entrou na pista reservada aos ônibus, passou por cima da faixa amarela que proibia conversões à esquerda e entrou em uma rua estreita. Se sua memória não estivesse falhando, era o caminho certo para chegar ao seu destino. Só havia um lugar para onde poderia ir, um único refúgio no qual se sentiria segura,e apenas uma pessoa a quem desejava ver, pois só ela poderia ajudá-la, teria forças para não deixá-la desistir antes de tomar a decisão final por medo. Amar alguém significava colocar suas necessidades antes das próprias. O verdadeiro amor de mãe era altruísta e nunca egoísta. Garth praguejou baixinho ao ouvir o interfone, indicando a chegada de uma visita. Tinha sido um dia péssimo, que se tornara pior à medida que se afastava de Ivy House. Enquanto dirigia, admitiu que, embora ele e Cláudia já tivessem vidas separadas havia muitos anos, uma parte dele sempre a consideraria sua. Seria eternamente a esposa, a alma irmã, a amante. Como seria fácil assumir o papel do passado e demonstrar... Demonstrar o quê? Que ainda era o mais forte e poderia possuí-la à força? Que atitude machista! Então ele se tornaria mesmo um herói aos olhos dela! Ele atendeu o interfone, com voz irritada. ― Sim? ― Garth? Sou eu, Cláudia. Preciso... falar com você. Decidi contar a verdade a Tara e... ― Diante do silêncio do outro lado da linha, ela insistiu ― Garth? Está me ouvindo? ― Sim, é claro! Suba, Clo. Não, espere! Vou descer e abrir a porta para você. Garth tentou não agir como um adolescente, mas não conseguia se conter. Desceu as escadas correndo, envolto por uma sensação de euforia. ― Cláudia... Clo... Ela foi pega de surpresa ao ser abraçada com um carinho tão evidente e não teve nenhuma reação. Simplesmente se deixou envolver pelos braços de Garth e foi tomada por uma inexplicável serenidade ao se entregar àquele contato afetuoso. Não, na verdade sentia-se grata ao ex-marido não apenas por aquela

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demonstração de calor humano, mas também pela capacidade dele em pressentir seu estado de espírito, sua incerteza e fragilidade. ― Eu passei o dia todo pensando... em tantas coisas! ― disse Cláudia, nitidamente embaraçada, depois que ele a soltou e a conduziu na direção das escadas. ― Fui até o apartamento. Está tudo tão diferente. ― É, eu sei. ― Você... sabe? ― Ela o fitou, atónita, enquanto entrava no apartamento de Garth. ― Bem... às vezes passo por aquela rua. Garth não tinha a menor intenção de contar a Cláudia que o fazia com muita frequência. Quando se sentia especialmente deprimido, parava o carro diante da porta do antigo apartamento e rememorava o passado, desejando que nada tivesse mudado. ― Fui tão cega, Garth, tão egoísta! Achei que estava agindo da maneira mais certa protegendo Tara da verdade. Hoje, foi como se eu tivesse uma revelação e subitamente me desse conta de meu erro. Mesmo assim, continuo sem sequer imaginar de que forma abordar o assunto. ― Cláudia evitava olhar para ele e mantinha os olhos fixos na janela da sala, através da qual se via o rio Tamisa. ― Só sei que preciso falar logo, antes que alguém o faça. Estou... apavorada! Cláudia ficou chocada ao perceber que confessava seus temores mais íntimos justamente diante de Garth. ― Tenho tanto medo que, depois de saber a verdade ela... ― E claro que ela vai ficar chocada, Clo ― disse Garth, com suavidade. ― Mas ela é sua filha em todos os aspectos que são realmente importantes. Herdou seu dom de raciocinar e julgar com muita compaixão e bondade. Acabará entendendo porque nunca lhe contou a verdade. ― Será que vai entender mesmo? Aceitará o fato de que fui egoísta e me preocupei mais com meus próprios sentimentos, com o medo de perder o amor de minha filha, do que com os dela? Subitamente, Cláudia começou a tremer, revelando a intensidade de suas emoções. Pela terceira vez no mesmo dia, Garth a abraçou, procurando confortá-la através de um contato físico. ― Venha... não prefere se sentar? ― Então, ele se voltou para um aspecto mais prosaico da vida. ― Você já comeu? Eu estava indo preparar meu jantar. Não era verdade. Garth já havia tomado um bom lanche e não tinha a menor fome, mas Cláudia parecia faminta... não dava a impressão de precisar de alimento só para o corpo, mas de todos os tipos de satisfação emocional. Calor humano, compaixão, apoio e, principalmente, amor. ― Não, não estou com fome. Cláudia começava a cair em si e a se arrepender da atitude impulsiva que tomara. O que estava fazendo ali? Por que viera procurar Garth? Ele era a última pessoa no mundo em que devia pensar quando sentisse necessidade de ser compreendida e ajudada. ― Bem... acho que estou com um pouco de fome. Tão logo falou, Cláudia se deu conta de que mudara com-pletamente de rumo. Talvez Garth não percebesse a importância de suas palavras, mas ela reconhecia o significado extremo daquele momento. Desde o dia em que lhe

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pedira para sair de sua vida para sempre, estava admitindo que, apesar de tudo, ainda precisava dele. ― Espere só alguns minutos ― pediu ele. Enquanto permanecia em pé no meio da sala, com o olhar perdido em algum ponto da cidade iluminada, Cláudia ouvia. os sons que vinham da cozinha. Já estivera uma outra vez no apartamento de Garth, mas fora uma visita muito rápida. Agora podia examinar melhor a decoração. Toda a mobília era confortável, e ninguém duvidaria que os móveis tinham sido escolhidos por um homem. Percebeu também que havia um ar de transitoriedade naquela sala, uma ausência de toques pessoais, como se ele jamais tivesse realmente se adaptado ao lugar onde morava. Também era óbvio que nenhuma mulher vivia ali. Cláudia deu um sorriso amargo ao perceber sua reação diante dessa conclusão. Não tinha o direito sequer de pensar na presença de outra mulher na vida do marido... ou melhor, do ex-marido! Afinal, ela terminara o casamento porque não suportara a amargura e o ciúme devastador, ao imaginar os momentos de intimidade entre Garth e Katriona. Então, ela sentiu o cheiro que vinha da cozinha, e seu coração bateu mais rápido. Uma omelete! O primeiro prato que Garth fizera para ela. Os dois haviam comido e depois... Cláudia lembrava-se de ter protestado diante daquele prato prosaico, que considerava apenas reconfortante, quando havia lhe pedido que preparasse um jantar romântico. Mas Garth acompanhara a refeição com carícias tão inebriantes que ela logo perdeu o interesse em classificar o que seria ou não idílico! Ao ver Garth vindo em sua direção, com uma bandeja, Cláudia lembrou a si mesma que estava com quarenta e cinco anos e que haviam vivido dez anos separados porque ele a traíra. Mas foi em vão. Sentiu que seus olhos se enchiam de lágrimas. ― Você fez uma omelete. Ainda se lembra... A comida foi esquecida. Subitamente, Cláudia não queria mais nada além de se aninhar nos braços de Garth para poder chorar no ombro amigo. ― Não fique assim, Clo. Vamos sentar e... conversar. Só depois de quase meia hora Cláudia assumiu novamente um certo controle de suas emoções. ― E diferente para você. Afinal, é mesmo o pai dela e... ― Não importa. Tenho certeza de que não ficará nem um pouco impressionada quando souber de que forma me tornei seu pai. ― Bem... os jovens de hoje têm um ponto de vista muito diferente sobre... fidelidade. Talvez ela não... ― Não foi isso que eu quis dizer ― Garth a interrompeu, com expressão sombria. ― Não tenho a menor ideia de como vim a ser o pai de Tara. Como tentei lhe contar tantas vezes, não me lembro de nada sobre... a mãe dela. Só recordo de estar muito embriagado e, sem saber se continuava dormindo ou não, me dei conta... ― De quê? ― pressionou Cláudia. ― Parecia haver alguém no quarto e, ao mesmo tempo, eu tinha a sensação de que havia algo muito errado. Não chega a ser propriamente uma lembrança

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porque tudo era muito vago. Não consigo imaginar como ela conseguiu que eu... Garth calou-se, percebendo que iria tocar em um detalhe daquele drama do passado que só aumentaria o descontrole de Cláudia. ― Está dizendo que não sabe como ela conseguiu... que tivessem uma relação sexual? Mas você a levou para a cama, Garth! ― Não, ― negou ele, com veemência. ― Em hipótese alguma eu a levei para a cama! Fui me deitar, porque estava bêbado demais. Quando acordei, havia uma jovem, que só mais tarde vim a saber que era uma de suas pacientes. Ela estava remexendo em minhas roupas e, depois de retirar o dinheiro de minha carteira, fugiu com a rapidez de um raio, não me dando tempo para descobrir como havia entrado no apartamento e porque estava em nosso quarto. E possível excitar um homem a ponto de levá-lo a ter uma relação sexual... ― Sem que ele saiba de nada? ― Cláudia o interrompeu, irritada. ― Francamente, Garth! ― Lembre-se que eu estava bêbado, Cláudia. E óbvio que ela conseguiu provocar uma reação física automática em meu corpo. Nunca neguei isso, porque seria uma insensatez, mesmo não me lembrando de nada. Mas o resultado, a concepção de Tara, não ocorreu com minha participação consciente. Minha colaboração é ainda menos verdadeira do que a de um doador de esperma, porque esse toma a decisão de doar a semente de uma vida. ―Você acha que ela fez isso deliberadamente... que queria... Cláudia engoliu em seco, sentindo o estômago se contrair. Agora estava pensando em certos aspectos do passado, em detalhes que bloqueara desde o divórcio. Lembrou-se de quando Garth lhe falara de uma intrusa no apartamento e, nessa mesma época, suas chaves haviam desaparecido. Talvez Katriona tivesse planejado algo! ― Como saber? ― disse Garth, encolhendo os ombros. ― Acho que nem ela tinha muita noção do que estava fazendo. Entretanto, continuo a ter uma única certeza... você é a única mulher que amei ou desejei, não só emocional como fisicamente. Ainda a desejo... Mais uma vez, Cláudia lutou contra uma onda de emoções conflitantes. Onde estaria a verdade? ― Mas Garth... você me disse que foi amante de Katriona. ― Não, eu nunca disse isso, Cláudia. Katriona e eu jamais fomos amantes. Tivemos uma relação sexual... aliás, eu sou obrigado a admitir que houve esse ato, embora não consiga me lembrar de um único detalhe, porque Tara foi concebida. De qualquer forma, só aconteceu uma vez e sem minha participação consciente. Era como se eu estivesse em estado de coma! ― Mas você me contou ― murmurou Cláudia, num fio de voz. ― Disse que tinham sido amantes. ― Não, Cláudia. Foi você quem disse isso. Eu tentei lhe explicar como tudo realmente tinha acontecido, mas as palavras pareciam resvalar em sua mente, sem serem absorvidas. ― Você não se esforçou muito para me convencer a ouvi-lo ― defendeu-se Cláudia, chocada.

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― Talvez não ― concordou ele. ― Naquela época, eu estava me sentindo excluído, tinha a impressão de ser um empecilho entre você e Tara, um elemento supérfluo e não desejado no relacionamento exclusivo das duas. Parecia-me que você chegara ao ponto de se agarrar a qualquer pretexto só para poder terminar nosso casamento. Achei que não queria ouvir a verdade porque não lhe era conveniente. ― Eu devia ter prestado mais atenção no que você dizia ― admitiu ela, curvando a cabeça. ― Se tivesse sido qualquer outra mulher que não Katriona, talvez eu conseguisse. ― Você havia acabado de passar por uma fase traumática demais. ― Garth a defendeu. ― Talvez nenhum de nós dois tenha percebido o quanto aquele sofrimento afetou você. Perdeu um bebê com o qual sonhava, dia e noite, e também a possibilidade de vir a ter outro. Então, Katriona... Nunca lhe disse nada antes, Cláudia, mas quando eu a via cuidando de Tara, admirava-a por sua generosidade de espírito, que lhe permitia amar tão completa e instintivamente. Se fosse eu... ― Você agiria de outra forma? Puniria a filha de Katriona pelo fato de eu não poder ter filhos? Não acredito que o fizesse, Garth. Não seria capaz. ― Como você também não foi. ― Tara era tão fácil de amar ― murmurou Cláudia, comovida. ― Desde o primeiro instante em que a vi... quando a carreguei... Quem pode saber? Talvez eu pressentisse e, no fundo do meu subconsciente, reconhecesse que ela era sua filha. Vocês dois são tão parecidos! ― É engraçado ― riu Garth. ― Eu acho que ela é idêntica a você, Cláudia. Os dois riram, mas logo a expressão de Cláudia voltou a ficar tensa. ― Exatamente o que direi a ela, Garth? Que explicações posso dar quando estivermos frente a frente? Como Tara irá reagir, como se sentirá... ― Cláudia fechou os olhos, tentando conter novas lágrimas. ― Tenho medo de não suportar... pois vai ficar chocada demais. É como se eu estivesse roubando seu passado, privando-a de todos os conceitos que tem de si mesma. Já trabalhei com vários casos de adultos que descobriram ser filhos adotivos e é assim que eles se sentem. Finalmente Cláudia colocou a cabeça entre as mãos, tomada pelo desespero. ― Por que não lhe contei tudo antes, quando era jovem o bastante para simplesmente aceitar que não era minha? Não foi apenas por ter medo de que a tirassem de nós... de mim. Também não foi porque eu temia perdê-la física e emocionalmente. No fundo, me sentia apavorada por acreditar que Tara não me desculparia por não ser sua verdadeira mãe, por ter vivido quando Katriona morreu. ― Você é a mãe dela, Cláudia. Garth levantou-se e encheu um copo de vinho para Cláudia e outro para ele. ― Tara é uma mulher adulta, Clo. É lógico que vai ficar chocada e angustiada, nós dois sabemos disso. Talvez até se afaste de nós por algum tempo, e essa atitude também seria natural. Mas continuará sendo sua filha, a criança que você amou muito e a quem ensinou tudo. Ela herdou seu caráter firme e a habilidade de julgar pessoas e situações com calma e compreensão. Aprendeu com você a amar de uma forma saudável e generosa.

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― Cometi tantos erros! ― lamentou-se Cláudia, recusando-se a ser consolada. ― Veja como fiz um julgamento completamente distorcido a seu respeito. Se eu estivesse aconselhando uma mulher em uma situação semelhante à sua, a culparia porque um homem a usou sem permissão? Ela seria rejeitada por mim? ― É bem mais fácil manter a calma e raciocinar quando não estamos envolvidos emocionalmente, Cláudia. ― Sem dúvida. Eu o amava tanto que não conseguia tolerar a ideia de sua traição. Não podia pensar em você com outra mulher, especialmente com Katriona. ― Será que me amava tanto assim? ― perguntou ele, tenso. ― Talvez se eu me sentisse mais confiante em seu amor... ― Mas você sabia! ― protestou ela, chocada. ― Tinha que saber como eu me sentia a seu respeito! ― Achei que sabia, no início. Depois da chegada de Tara, fui aos poucos me sentindo supérfluo e... dispensável. Eu parecia estar sempre no seu caminho, atrapalhando, e nossa vida sexual praticamente deixou de existir... ― Eu... me sentia culpada, por não poder lhe dar filhos ― murmurou Cláudia, com a voz trêmula. ― Achava que, quando fazíamos amor, uma parte de sua mente só podia pensar em quão sem sentido era aquele ato mecânico porque perdera o significado primordial. Muitas vezes, depois que você deixava a semente da vida em meu ventre e adormecia, Nu permanecia acordada, chorando aquele desperdício... tanta energia gasta, tanto esforço, tantos bebês em potencial... ― Era isso que você pensava, Cláudia? Achava que fazer amor era sem sentido? ― perguntou Garth, encarando-a com um olhar magoado. ― Algumas vezes. Mas... mas não sempre. Garth a fitou por alguns minutos, com uma expressão quase angustiada. ― Quando eu levava você para a cama, Clo, quando fazíamos amor, a última coisa que passava por minha mente era ier filhos. Tudo o que eu queria era você, só desejava tê-la cm meus braços, ouvir seus murmúrios de paixão, ver seu rosto refletindo volúpia e sentir que correspondia a cada carícia minha. E vou dizer-lhe mais... não há nada que eu queira mais, neste momento, do que recuperar essas emoções, e pode crer que não estou pensando em iniciar uma nova geração! Percebendo que Cláudia ficara embaraçada com as palavras dele, Garth sorriu. ― A culpa é sua, Clo. Você trouxe de volta tantos momentos maravilhosos que passamos juntos, quando mencionou que eu deixava a semente da vida em seu ventre. ― Garth! ― protestou ela, sem convicção. Cláudia se surpreendeu ao perceber que não queria convencer Garth a mudar de ideia. Não reagiu nem recuou quando ele retirou o copo de vinho de suas mãos, e também não desviou os olhos quando ele a fitou, momentos antes de abaixar a cabeça, buscando seus lábios. Suas bocas se tocaram, ainda num mero roçar de lábios, e Cláudia sentiu que uma onda de emoções a envolvia. Como i tivera coragem de negar a si mesma tanta doçura? Sentia o sangue correr mais depressa em suas veias, transformando-se em uma lava ardente.

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― Oh, Garth ― murmurou ela, permitindo que o instinto guiasse suas reações e amoldando seu corpo ao dele. Ao ouvi-la murmurar seu nome, ao sentir que o corpo sensual respondia à proximidade do seu, Garth reconheceu os sinais que haviam permanecido gravados em sua mente. Cláudia cedia ao desejo e se entregava com paixão ao beijo, que se tornou mais possessivo e exigente. Cláudia também percebeu que correspondia ao beijo com paixão. Ela teria sido assim tão ardente, tão passional, quando era mais jovem? Não conseguia se lembrar com exatidão, mas jamais poderia comparar nada aos sentimentos que agora a envolviam, com uma força irresistível. Teriam sido os anos de separação e de aridez de emoções que a transformavam em uma mulher ávida de paixão física? E por que seria assim? Afinal, impusera a si mesma um celibato absoluto por decisão própria. Haviam surgido vários homens em sua vida e, se tivesse demonstrado um mínimo interesse, eles a amariam, talvez até com ardor. Luke havia chegado mais perto de um relacionamento íntimo, mas agora percebia que nunca o desejara realmente. Não poderia comparar a atração quase morna que sentira por ele com a volúpia despertada por Garth. Na verdade, o sexo nunca fora uma prioridade em sua vida, a não ser quando se tratava de Garth. Não sentira falta de um relacionamento mais íntimo, mas agora mal controlava o desejo e seria capaz até de... arrancar as roupas dele. Cláudia recuou, subitamente, ao perceber que acabara de tirar a gravata de Garth e já abrira os primeiros botões da camisa dele. ― Não pare, querida ― murmurou ele, com a voz distorcida pelo desejo. As mãos de Cláudia tremiam demais, mas ela finalmente conseguiu tirar a camisa de Garth e tocar o peito másculo. Há quanto tempo não tocava a pele macia, não sentia sob seus dedos os desenho dos músculos e o calor que emanava dele! ― Continue, Cláudia ― insistiu Garth. ― Eu a desejo tanto, querida. Esperei por esse momento, há tanto tempo, que não sei o quanto poderei resistir... Ele realmente não aguentou nem mais um minuto de espera e começou a despi-la, com uma urgência contagiante. Os movimentos dos dois se tornaram mais ansiosos, como se cada segundo significasse mais uma eternidade de frustração e desejo irrealizado. Então, Cláudia lembrou-se que, quando Garth vira seu corpo nu, ela era uma mulher muito mais jovem, e ficou tensa. Mas bastou ver a expressão dele para admitir que não havia motivo para temer. Homem algum conseguiria fingir tanto desejo. Não havia sequer a necessidade de palavras para confirmar aquele olhar maravilhado e possessivo. ― Eu tinha me esquecido de como você é perfeita, Clo... Garth tocou os seios perfeitos, redesenhando-os com os dedos e depois seguindo o mesmo caminho de paixão com os lábios. Cláudia teve a sensação de que voltara aos dias dourados de sua juventude, mas sabia que, no passado, nunca fora tão livre de qualquer inibição. Agora aceitava a intensidade de seu próprio desejo e reconhecia as nuances sutis de sua sensualidade. Não se lembrava de ter, alguma vez, tomado a iniciativa, de

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admitir a urgência de seu corpo que exigia uma satisfação plena e imediata. Por que nunca sentira antes essa euforia diante do ato sexual? Ele parecia lembrar-se de todas as carícias que mais a excitavam, e Cláudia perguntou a si mesma como pudera viver tanto tempo sem a paixão de Garth. Tinha a sensação de estar acordando de um sonho mau para ir ao encontro de uma realidade perfeita, com os lábios dele percorrendo seu corpo e despertando um desejo jamais igualado. Garth a deitou sobre o tapete em frente da lareira, e as chamas pareciam se refletir nos movimentos ardentes de seus corpos. Subitamente, não havia mais tempo para carícias. Cláudia ouviu sua própria voz, exigindo que ele a possuísse. Seus corpos se uniram com uma volúpia quase violenta, e ela sentiu que se transformara em uma mulher que não conhecia, uma criatura primitiva e sensual, buscando um êxtase mais intenso e explosivo. ― Não quero me levantar daqui ― murmurou ela, quando suas respirações serenaram. ― E eu não ouso me mexer, mas ― ele a fitou, sorrindo - quero possuí-la... a próxima vez na cama... ― A próxima...vez? ― perguntou ela, ainda sem coragem de pensar no futuro. ― Nós não tivemos apenas uma noite de paixão que não se repetirá, Clo. Nem eu nem você somos do tipo que se contenta com isso. Não é tarde demais para recomeçarmos. ― Para começarmos a esquecer o passado? ― insistiu ela, com voz trêmula. ― Não. Vamos reconstruir nossa vida sobre esse passado, usando a experiência de nossos erros para que, desta vez, nada nem ninguém possa se colocar entre nós. Eu nunca deixei de te amar, Clo. Nunca! E acredito que você também não. Garth estaria certo? Cláudia desconfiava que sim. Além do sexo perfeito que tinham partilhado havia algo ms Parecia-lhe tão natural estar nos braços dele! Tentou ima ginar-se voltando para Ivy House e para uma vida solitária na qual ele estivesse ausente, e foi obrigada a admitir que essa perspectiva a desagradava profundamente. ― Tara vai precisar de nós dois quando souber a verdade ― disse Garth, lendo os pensamentos dela. ― E precisamos estar juntos, nos completando como antes. O que você acha, Cláudia? Vamos tentar? Cláudia pretendia dizer que ainda tinha dúvidas e precisava de tempo, mas ouviu sua voz pronunciando palavras muito diferentes, que pareciam ter vindo de seu íntimo, sem que sua mente as analisasse. ― Eu gostaria de tentar e... Ela não pode dizer mais nada. Apesar de ter se queixado da idade e do desconforto de ter feito amor no tapete da sala, Garth levantou-se rapidamente e a carregou. ― A cama é o melhor lugar, aliás o único, para se ter este tipo de conversa, amor. Entretanto, vamos esquecer tudo o mais esta noite... hoje não existe passado, nem futuro, apenas o prazer de redescobrirmos nossa paixão... de recomeçarmos. Começar de novo? Cláudia ainda queria ser mais sensata, ter uma resposta de mulher adulta diante daquela afirmação romântica e fora de uma realidade

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fria, mas bastou-lhe ver a expressão de Garth para calar seus temores. Com a mesma insensatez de adolescente ela o fitou, com um olhar apaixonado. ― Acha que poderemos recomeçar, Garth? Obviamente, tudo seria diferente quando amanhecesse. Quando o novo dia começasse, Cláudia precisaria de toda a sua força e maturidade, além de uma coragem imensa, para enfrentar Tara e lhe revelar porque escondera toda a verdade. Mas naquela noite ela precisava de amor. Ansiava por se refugiar nos braços de Garth, sentir que ele a amava e assim recuperar a força e a sabedoria para construir a ponte que a levaria, junto com a filha, por cima de um abismo que poderia destruí-las, para unir passado e futuro com coragem e determinação. ― Eu nunca deixei de te amar, Clo. A voz apaixonada de Garth ecoou no silêncio do quarto, e Cláudia não pensou em mais nada. A noite pertencia ao amor.

CAPITULO XVII - Bem, pelo menos agora sabemos por-'que meu visto ainda não chegou! ― disse Tara, mordendo uma torrada, enquanto entregava uma carta a Ryland. ― Houve algum problema com o sistema de computação do consulado que resultou em um atraso enorme na entrega dos documentos. Ryland colocou mais duas fatias de pão na torradeira, pois estava faminto. ― Tenho de ir ao apartamento de meu pai ainda no período da manhã. Ele deixou um recado na secretária eletrônica, me pedindo para lhe telefonar. Não tenho ideia do que ele possa querer! Não apareceu no escritório nos últimos dois dias. De acordo com sua secretária, teve de resolver um imprevisto e não queria ser perturbado... por ninguém. Suponho que deva ser algum problema com um de seus clientes. Tara pegou uma das torradas que já estavam prontas, aparentemente tão faminta quanto Ryland. -― Tentei ligar para minha mãe, mas não a encontrei. Maxine disse que ela telefonou, avisando que ia viajar, porém não mencionou para onde nem por quanto tempo ficaria. Mamãe não é do tipo que sai sem dar até os mínimos detalhes de sua viagem. É estranho! As torradas haviam terminado e Tara olhou para a que estava na mão de Ryland, sem disfarçar a cobiça, enquanto lambia a geléia que escorrera em seus dedos. ― Você vai comer a sua ou... ― Ela sorriu maliciosamente. ― Estou faminta e deve ser por causa de toda a energia que gastei ontem à noite. ― Nem tente me culpar por isso! Não fui eu que quis experimentar uma posição sexual exótica encontrada em uma revista para adolescentes! ― Você disse que era impossível ― insistiu Tara. ― E eu tinha razão, era mesmo.

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― Não completamente. ― Tara o fitou com um olhar provocador. ― Seu problema é que está ficando um pouco velho, Ryland. Se tivesse a mesma agilidade... ― Eu precisaria não ter articulações! Não fui eu que mencionei joelhos doloridos ou... ― Está bem, está bem! Mas você sabe que eu detesto ficar por cima. ― Prefere que eu faça o trabalho duro? ― brincou ele, dando um pedaço de sua torrada para Tara. ― Não é verdade. Pode me chamar de romântica ou sentimental, se quiser, mas adoro a sensação do seu corpo sobre o meu, me envolvendo e... dentro de mim, principalmente. ― Ela deu um sorriso de falsa timidez. ― Quando formos para a casa de seus pais... não irão esperar que fiquemos em quartos separados, não é? ― Provavelmente é o que vão esperar, mas não haverá nenhum problema para nós. A casa é muito grande e daremos algum jeito. ― Eu não quero "dar algum jeito", Ry. Eu quero tudo e mais um pouco. Também espero que você não tenha intenções de aguardar muito tempo, depois de nos casarmos, para começarmos nossa família. Acho que estou ficando impaciente para ser mãe. Ryland a fitou, fingindo que as palavras de Tara o assustavam, mas ela não se deixou enganar. Já haviam discutido inúmeras vezes qual seria a hora certa de terem filhos. Ambos queriam o que Tara chamava de "uma família de bom tamanho". ― Pelo menos três ― havia dito ela. ― E alguns cachorros, além de um quarto de hóspedes para convidarmos amigos para passar os fins de semana conosco. Ah! E também a suíte da vovó, para quando mamãe ficar velha. ― Céus! Sua mãe sabe desses planos para envelhecê-la tão rapidamente? Eu não havia notado que ela estivesse na iminência de se tornar uma anciã. ― Não, é claro que não contei nada a ela ― dissera Tara, rindo. ― Mas sei que vou sentir muita falta dela. Sempre fomos muito unidas. Não se trata de uma proximidade gerada pela dependência, que chega a ser claustrofó-bica e sufocante. Mas... mamãe sempre esteve ao meu lado, foi uma presença amorosa constante em minha vida e, no fundo, acho que estou sentindo um pouco de medo de uma situação em que ela não se encontre por perto. Ryland observara o rosto de Tara, sempre tão expressivo, e entendera o que não fora dito. Ela crescera em um ambiente de muito amor, com uma mãe que sempre a protegera, envolvendo-a em um manto mágico de uma segurança qile estava presente nas ações daquela jovem única. Tara demonstrava, do tom de voz ao olhar firme, o quanto fora amada, e que esse amor a cumulara de dádivas abstraías, como confiança, estima e respeito por si mesma. No tempo certo, ela também transmitiria essas qualidades aos próprios filhos e, na opinião de Ryland, essas crianças seriam muito ricas porque teriam recebido presentes de valor inestimável. ― Vai ser divertido planejar o casamento ― disse Tara, comendo o último pedaço de torrada. ― Eu só gostaria que minha família fosse maior! Não tenho sobrinhas ou sobrinhos para levarem as alianças!

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― Pode emprestar alguns dos meus, pois tenho sobrinhos em excesso! Sem contar dezenas de primos de todas as idades, do lado da família de minha mãe. A expressão de Tara se tornou mais sombria. ― Também gostaria que meus pais ainda estivessem juntos. Sei que ambos vão se comportar da maneira mais civilizada possível, e todo o mundo terá a impressão de que são perfeitos e se dão muito bem. Mas eu não queria toda essa educação polida e sim que tudo continuasse a ser como antes. Seria tão bom se eles ― Tara lutou para encontrar as palavras certas ― fossem felizes. ― Tenho certeza que eles são felizes, Tara ― declarou Ryland, com muita firmeza. ― Ambos têm idade suficiente para decidir sozinhos como querem que seja a vida deles. ― É claro que eu sei disso! E é justamente a vida deles que me preocupa. Nenhum dos dois tomou nenhuma decisão de se unir a outra pessoa, entende? Se não querem escolher um novo parceiro... por que não continuam juntos? Poderiam estar ainda casados um com o outro, obviamente. ― Eles nunca se encontram, se vêem muito raramente, Tara. ― Mas tenho certeza de que papai ainda ama minha mãe. Tem inúmeras fotos dela em seu quarto. Devem ter sido tiradas logo após meu nascimento, pois ainda sou muito pequena e... ― E provavelmente ele não se desfez dessas fotos porque você está nelas. Ryland sabia muito bem da obsessão de Tara em reunir os pais novamente. Era um dos temas favoritos dela e, com certeza, de todos os filhos de casais divorciados, mesmo os mais maduros e adultos o bastante para saberem que não deveriam se intrometer em um assunto que não era da conta de ninguém a não ser do casal envolvido. ― Mamãe também não tem nenhum namorado ― continuou Tara, empolgando-se, como sempre, com o assunto. ― E não foi por falta de pretendentes! ― Claro que não. Ela é uma mulher muito atraente. Sem aviso, Tara deu-lhe um pisão no pé. ― Ei! Por que essa agressão gratuita? ― Você já disse várias vezes que minha mãe é muito atraente! Pode me dizer até que ponto a admira? Rindo, Ryland levantou-se da cadeira e puxou Tara para seus braços. ― Ela é uma mulher muito bonita mesmo, mas não chega nem perto da filha ― declarou ele, começando a beijar o pescoço de Tara. ― Ora... achei que você precisava ir trabalhar mais cedo, hoje. ― Ainda bem que você me lembrou. Preciso mesmo sair de casa mais cedo. ― E eu também tenho de sair. Papai pediu que eu vá para o apartamento dele, em vez de ir para o escritório, nesta manhã. Só Deus sabe o que ele quer, embora eu esteja desconfiada que talvez seja um bónus... uns trocados a mais viriam bem a calhar. Ryland sempre admirara a postura dos pais de Tara, que a haviam criado sem grandes luxos. Embora os dois ganhassem bem, nunca haviam cedido à tentação de mimar a filha única, e obviamente adorada, cobrindo-a de presentes caros.

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Tara vivia com o salário que recebia como estagiária no escritório do pai e não ganhava um centavo a mais do que as outras jovens contratadas. Como ela iria reagir quando lhe contasse que nunca mais precisaria pensar em economizar? Na verdade, a pergunta que mais o inquietava era quando iria lhe revelar toda a verdade a respeito de sua situação financeira. ― Tara... ― começou ele, disposto a tentar. ― Preciso ir embora ou chegarei atrasada ― interrompeu ela, soltando-se dos braços de Ryland. ― Vou levar um tempo enorme cruzando toda a cidade. Ei! O que acha de pedir novamente comida chinesa para o nosso jantar? Acho que nós não teremos tempo de preparar nenhuma refeição esta noite... meus planos são outros! Depois que Tara saiu do apartamento, Ryland suspirou aliviado. Gostaria de ter contado a verdade, mas não seria a hora perfeita para uma revelação de tal importância. Era melhor aguardar o momento ideal e, afinal, ainda tinha muito tempo para isso. Meia hora depois, Ryland estava abrindo a porta do apartamento e teve de voltar para a sala a fim de atender o telefone. Surpreso, ouviu a voz do pai do outro lado da linha. ― Você tem de vir para casa, filho ― disse o pai, com voz sombria. Já verificamos ao horários e reservamos um lugar para você no vôo que deixa Heathrow às onze da noite no horário de Londres. Terá de fazer uma conexão em Nova York e comprar sua passagem para Boston. Nós o esperaremos no aeroporto. ― Mas... ― Sinto muito, mas não posso explicar-lhe nada, filho. Só quero que você volte imediatamente. Ryland estremeceu. Algo devia estar muito errado ou seu pai não exigiria seu retorno imediato. Além disso, o tom de voz paterno era grave demais. ― Mamãe está bem? As meninas... ― Sua mãe e suas irmãs estão bem, Ryland. Por favor, não me faça mais perguntas porque não posso falar sobre o assunto agora. Você compreenderá o motivo assim que chegar, filho. E... acho melhor vir sozinho. O pai desligou antes que Ryland pudesse lhe fazer qualquer outra pergunta. O que estaria realmente acontecendo? Por que lhe pedira para ir sozinho? Ele sentiu o estômago se contrair de nervoso. O fato do pai ter lhe reservado um lugar num vôo para os Estados Unidos já era alarmante, mas seu tom de voz despertara uma reação de medo irracional em Ryland. Só podia ter acontecido uma tragédia! A adrenalina que corria em suas veias o impelia a agir com toda a rapidez. Enquanto ligava para o aeroporto a fim de saber se seu lugar estava mesmo reservado, Ryland apanhou a maleta de mão e jogou nela artigos de primeira necessidade. Logo soube que deveria estar em Heathrow às onze horas, portanto teria de avisar Tara e sair à procura de um táxi, sem perder muito tempo. Ele ligou imediatamente para o apartamento de Garth, mas o telefone tocou várias vezes e a linha caiu. Tentou entrar em contato com Cláudia e também não teve nenhum resultado. Embora fosse estranho, parecia que os dois haviam desligado a secretária eletrônica. Talvez ò trânsito estivesse pior do que

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de costume e Tara ainda não houvesse chegado à casa do pai que, obviamente, também ainda não retornara de algum compromisso matinal. Aflito com os minutos que passavam com excessiva rapidez, Ryland decidiu deixar um bilhete para Tara. Não lhe restava nenhuma outra alternativa, caso quisesse mesmo chegar a tempo de embarcar naquele vôo. E como explicar o pedido de seu pai, se ele mesmo não o entendera? Finalmente, Ryland anotou seu número de telefone nos Estados Unidos no canto da folha em que deixou seu recado. Recebi um telefonema de meu pai. Quer que eu volte para casa imediatamente, mas ainda não sei qual o motivo dessa ordem. Telefonarei o mais rápido possível. Eu te amo muito. ― Oh, Garth... eu acho que não mereço ser tão feliz! ― murmurou Cláudia. Ela acabara de sair do chuveiro, e Garth lhe tomou a toalha e começou a enxugá-la. Os dois haviam passado três dias juntos e, por decisão mútua, haviam abdicado de suas responsabilidades rotineiras, inclusive deixando a secretária eletrônica receber todos os recados, a fim de poderem conversar e se amar à vontade, sem interrupções inoportunas. Embriagados pelo prazer da intimidade renovada, eles dormiam abraçados, sempre de madrugada. Durante o dia, reviam e lamentavam o desperdício de tantos anos sem amor. ― Por que nunca conversamos assim antes, Garth? Cláudia não se conformava com sua obstinação em não ouvir e chorou quando Garth lhe contou quanto sofrera diante de sua insistência em pedir o divórcio. ― O importante não é conversar e sim ouvir, querida. Talvez nenhum de nós dois tivesse maturidade suficiente para perceber isso. Aliás, acho que também não sabíamos o que estávamos jogando fora. ― Eu decididamente não sabia ― confessou Cláudia. ― Senti tanta falta sua, embora só agora esteja me dando conta de quanto. Sinto-me como se fosse uma árvore que perdeu todas as folhas no inverno e se vê novamente coberta de flores. Eu não mereço ser tão feliz e tenho medo que algo... Ela sorria, encantada com o prazer da descoberta, quando uma sombra toldou sua fisionomia. ― Como você acha que Tara reagirá à verdade, Garth? Oh, Deus! Eu nem pareço ter aconselhado tantas pessoas em situações difíceis! ― É diferente quando nossas emoções estão envolvidas. ― Garth a abraçou carinhosamente. ― Vai levar algum tempo, provavelmente mais do que eu ou você gostaríamos, mas Tara acabará entendendo por que agimos assim, por que não lhe dissemos nada. ― Eu menti porque tinha medo de perdê-la ― interrompeu Cláudia, novamente desesperada. ― Você não mentiu, Clo ― Garth a corrigiu, delicadamente. ― Menti por omissão. Escondi a verdade e, embora sinta vergonha de dizer, parte de mim ainda quer agir dessa forma. Se fosse possível continuar ocultando tudo... Percebendo que Garth a fitava com uma expressão preocupada, Cláudia deu um sorriso trémulo.

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― Não se assuste, querido. Não pretendo recuar agora. Sei que é impossível adiar mais o momento da revelação. Esses dias que passamos juntos me levaram de volta ao passado, e retornei ao momento presente com lembranças maravilhosas, imagens jamais imaginadas antes, e uma nova visão de mim mesma que não pode ser ignorada e esquecida. Cláudia fechou os olhos, suspirando. ― Tenho tentado, a todo instante, imaginar como eu me sentiria se estivesse no lugar de Tara. Como reagiria se meus pais me contassem que eu não era... que minha mãe não era... ― ela calou-se, mordendo os lábios para não chorar. ― Estou completamente apavorada, Garth. E não se trata de um medo egoísta, sabe? Temo por Tara, pelo que minha falta de responsabilidade possa causar na personalidade dela. Quando a tirei daquele lugar... prometi a ela e a Katriona que sempre a amaria e a protegeria. ― E foi exatamente o que fez, querida. ― Não, não é verdade. Eu a amei, sem dúvida, mas em função de minhas próprias necessidades. Também por pensar apenas em mim, deixei-a sem proteção, vulnerável a uma traição brutal e a um sofrimento sem tamanho. Eu deveria saber o quanto dói ser enganada... ― Pare de se torturar, Clo! ― disse Garth com firmeza, abraçando-a bem forte. ― Não vai ser fácil, mas você precisa ter fé. Pelo menos confie em Tara, se acha que não consegue ter confiança em nada mais ou em ninguém. ― Não sei, Garth... ― Ela deve estar chegando, querida. Garth inclinou a cabeça para beijá-la. Era o beijo terno e seguro de um homem que encontrou a mulher em quem confiará pelo resto da vida. Cláudia reconheceu o significado profundo daquela carícia e correspondeu com igual intensidade. Não importava o que o encontro com a filha lhes traria, pois ambos estavam unidos e com força para lutar pelo amor de ambos e pelo de Tara.

CAPÍTULO XVIII Não! Eu não acredito no que vocês estão me dizendo. Não é verdade... não pode ser! Tara movia a cabeça num gesto de negação quase mecânico, negando insistentemente o que acabara de ouvir. Sua voz se tornara aguda, refletindo pânico, e assumira um tom quase de lamento dolorido que aumentou a angústia de Cláudia. Lutando contra as lágrimas, ela desviou os olhos da mãe e encarou Garth, como se lhe pedisse para negar aquelas palavras arrasadoras. ― E verdade, querida ― afirmou ele. ― Mas nada mudou, procure entender! Nosso amor continua o mesmo que você sempre teve. E nossa filha adorada e... ― Sua filha talvez... ― O rosto de Tara estava lívido. ― Não dela...

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Cláudia se moveu na direção da filha, mas Tara recuou e a postura de seu corpo esguio refletia rejeição e desconfiança. ― Não! Não toque em mim ― gritou Tara, descontrolada. - Não posso suportar sequer a ideia de que porá as mãos cm mim. Como pôde fazer isso comigo? Você sempre insistiu na importância da honestidade, da confiança... agora tenho a impressão de que não a conheço mais. Que tipo de pessoa você é? Não pode ser a que eu conhecia, não é mais... ― Tara! A voz autoritária de Garth ecoou na sala e Tara parou de falar, sem realmente dizer o que pretendia. Quem eram aquelas pessoas, aqueles dois estranhos, que juravam amá-la e, no entanto, a haviam enganado deliberadamente e sem qualquer escrúpulo, ocultando-lhe verdades de importância vital que tinha todo o direito de saber? Garth e Cláudia haviam decidido contar-lhe inicialmente os fatos. Depois Tara sentira a necessidade de fazer-lhes perguntas, sem dúvida as mais penosas, mas começaram com os acontecimentos básicos. Fatos. Infelizmente, essas palavras frias englobavam um universo de emoções doloridas e de muito impacto. Fatos... Como um simples relato fatual poderia traduzir o que eles estavam vivenciando naquele momento dramático? Que poder os acontecimentos já distantes teriam para anular vinte e três anos de vida em comum, de experiências partilhadas e muito amor? Por que conseguiam, num piscar de olhos, transformar em cinzas um passado de afeto e carinho? ― Por que nunca me disseram nada? Por que esperaram até agora? Se realmente me amassem, teriam me contado antes. Se algum dia me amaram... ― Nós sempre a amamos e continuamos amando, Tara ― protestou Cláudia, com ardor, desejando mais do que tudo tomar a filha nos braços para acalmála e protegê-la, como fizera milhares de vezes desde que a pegara no colo pela primeira vez. ― Não! Tara recuou novamente, com a mesma agilidade felina que Cláudia lembravase de ter sido uma das características mais marcantes de Katriona. ― Você não me amava, em hipótese alguma! Amava apenas a ideia de ter um filho, qualquer criança serviria para seu propósito. Não ouse dizer que me poupou por amor, porque teria me contado a verdade... se realmente soubesse o que é amar. ― Eu sei que devia ter contado tudo antes, Tara. Por favor, tente compreender... eu tinha medo. ― Você tinha medo? ― Tara deu uma gargalhada amarga. ― Pede-me para compreender, mas... por acaso tentou compreender meus sentimentos? Tem ideia do que é saber, de um momento para o outro, que a pessoa mais amiga e mais próxima, a mãe que a criou, não passa de uma estranha? Apenas uma intermediária que a pegou e a levou para casa, deixando a mãe verdadeira morrendo... ― Tara! ― interferiu Garth, mais uma vez, com voz ríspida. ― Isso não é verdade, Tara ― murmurou Cláudia, num fio de voz. ― Não mesmo? Você disse que minha verdadeira mãe pediu-lhe para me criar, para me levar para sua casa. É óbvio que deveria estar viva para poder

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falar, não? Se acedeu ao pedido dela e me levou embora, ela ainda não tinha morrido e... Cláudia curvou a cabeça, sem saber como enfrentar o ódio da filha. ― A sua mãe ― Garth olhou deliberadamente para Cláudia ― estava com Katriona, quando ela morreu. Foi sua mãe quem tomou as providências para que ela tivesse um enterro decente. E foi sua mãe quem sempre visitou o túmulo dela, durante todos os anos de nosso casamento, e nada indica que tenha deixado de agir assim, no aniversário do nascimento e da morte de Katriona... e também no dia em que você nasceu. Por uma fração de segundo Cláudia viu o olhar duro de Tara se tornar um pouco mais suave. As palavras de Garth tinham conseguido deter a onda de fúria da filha, mas a trégua não durou mais do que um breve momento. ― Quanta generosidade! ― exclamou Tara, com um sorriso desdenhoso. ― E onde é esse túmulo? Ou será que eu não tenho o direito de saber? Desesperada, Cláudia fechou os olhos, lembrando-se do passado. Fora preciso ser muito insistente e persuasiva a fim de obter a permissão oficial para que Katriona fosse enterrada no cemitério do pequeno vilarejo onde os pais dela repousavam em sua última morada, mas Cláudia finalmente conseguira. Plantara alecrim, para manter a memória, e flores azuis de todos os tipos, para celebrar a beleza selvagem daquela jovem de vida tão breve. Garth observava a filha com uma expressão compreensiva. A reação de Tara era natural, e teria sido ilusão esperar algo diferente. Ele havia alertado Cláudia que a primeira atitude da filha seria rejeitá-los, por causa do ódio e da dor que estaria sentindo. ― Admito que deveria ter contado tudo antes ― confessou Cláudia em voz baixa. ― Seu... Garth sempre insistiu para que eu o fizesse, mas... ― Ela ergueu a cabeça e encarou a filha. ― Você tem razão, Tara. Fui egoísta. Sentia muito medo de perdê-la, principalmente depois de descobrir que... depois que eu e seu pai nos divorciamos. Afinal você era filha dele e... ― E tinha medo que, se eu soubesse a verdade, quisesse viver com ele e a rejeitasse, certo? ― Tara lançou um olhar de profundo desprezo a Garth. ― Sua filha! Talvez eu tenha sido gerada por você, mas não fui concebida deliberadamente ou por amor. Não é assim, papai? ― Esse aspecto é completamente irrelevante nesta discussão, Tara. ― Ele encarou a filha com determinação. ― Uma pessoa teria de ser absolutamente ingénua para acreditar que todas as crianças são concebidas por amor. ― Pois não é irrelevante para mim ― declarou Tara, com o rosto distorcido por uma expressão de fúria. ― O aspecto mais importante de todos ― prosseguiu Garth, ignorando a declaração da filha ― é que você foi uma criança muito amada e desejada. ― Por quem? Certamente não por você, posso até apostar nisso! Ela lhe contou que estava grávida? Contou ou não? ― Cláudia sempre a quis ― continuou ele, imperturbável. ― Ela a amou desde o primeiro momento, por você mesma, e certamente muito antes de saber que eu era seu pai. Pense em quantas pessoas podem dizer isso. Quantas sabem que foram amadas e desejadas, não por causa de

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características genéticas dos pais, que podem ou não ter herdado, ou em função de expectativas paternas, mas apenas por si mesmas? ― Estão dizendo que vocês me amaram a despeito de minhas características genéticas e não por causa delas? Sinto muito, mas esse argumento não me convence. ― Tara apontou para Cláudia, com um gesto quase insolente. ― Ela queria um bebê para substituir o que perdera e nunca mais poderia gerar. Eu estava ali, era conveniente e oportuna... um negócio de ocasião! Amou-me por que não lhe restava outra opção, porque não havia mais ninguém por perto. Ou entregava todo seu amor a mim... ou jogava seus sentimentos maternos na lata do lixo! Cláudia não conteve uma exclamação de profunda mágoa. ― Não é verdade, Tara! Eu a amei desde o primeiro momento em que a vi. Sempre existiu uma ligação muito especial entre nós... Como explicar para essa jovem enfurecida e desdenhosa, que a encarava com ódio e rejeição, quão especial fora a ligação estabelecida entre elas à primeira vista? Como fazê-la compreender que haviam se amado desde o primeiro minuto? Era mais um fato concreto que perdia o significado vital ao ser transformado em palavras. Além disso, Tara não queria ouvir nada. ― Pois eu quero saber mais sobre minha mãe de verdade! Tara encarava os pais com uma expressão de desafio, nitidamente ignorando as tentativas de Cláudia de explicar a intensidade do laço existente entre as duas ou o vínculo emocional formado no primeiro instante em que se viram. ― Já lhe explicamos que Katriona era uma das pacientes de sua mãe ― disse Garth, ainda mantendo a calma. ― Uma das pacientes! ― repetiu Tara, imitando a voz do pai. ― Isso não é suficiente para mim. O olhar de Tara revelava tanta repulsa que Cláudia, instintivamente, deu um passo na direção dela. A filha recuou mais uma vez, e sua expressão corporal revelava a total rejeição de qualquer tentativa de aproximação. Garth e Cláudia se entreolharam, desesperançados. Naqueles dias de isolamento a dois, tinham discutido muito quanto deveriam contar à filha sobre a verdadeira história de Katriona. ― Ela tem de saber a verdade ― havia dito Garth, procurando encorajar Cláudia a ser mais confiante. ― Mas não podemos lhe revelar tudo de uma vez! ― exclamara ela, em pânico. ― São fatos chocantes demais. ― Vamos esperar e ver como Tara reage. Então descobriremos o quanto ela quer realmente saber. Cláudia fechara os olhos, deixando-se envolver pelos braços de Garth. Iria ser mais difícil do que ele imaginava. Por temperamento, Tara era firme e corajosa. Nunca fugiria diante de uma dificuldade em seu caminho e insistiria em saber tudo. ― Bem... ― Garth começou a falar, nitidamente constrangido ― Katriona era... ― Espere ― interrompeu Cláudia, tensa. ― E melhor que eu fale. Afinal, Katriona era... minha paciente e a conheci... melhor do que você.

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Procurando as palavras certas, Cláudia começou a descrever Katriona para a filha, estendendo-se mais nos aspectos positivos que a haviam encantado, como a inteligência, a vivacidade e um senso de humor muito desenvolvido. ― Você está dizendo que ela saiu de casa e veio para Londres ― interveio Tara, rispidamente. ― Por quê? ―Era algo que a maioria dos jovens daquela época costumava fazer. Londres havia se tornado a Meca de toda a juventude, e Katriona não era o tipo de pessoa que... Uma comunidade pequena, no interior, seria sufocante demais para ela... Cláudia percebeu que não seria possível poupar Tara e, com medo de prosseguir, olhou para Garth, desnorteada. Haviam concordado em ser totalmente honestos e responder todas as perguntas que ela fizesse. Tomar essa decisão tinha sido difícil, mas a hora de transformá-la em ação, diante do olhar reprovador e chocado da filha, estava demonstrando ser quase impossível. ― Não tínhamos muitas informações ― continuou Cláudia, depois de respirar fundo para criar coragem. ― Pelo que pude deduzir, Katriona veio para Londres depois de ter se desentendido com o pai. Ela... ― Ela fugiu de casa, é isso que quer dizer, não? Infelizmente, Cláudia estava tensa demais para controlar as reações de seu corpo e se tornou nitidamente tensa diante da afirmação da filha. Tara percebeu o gesto dela e ficou com os olhos novamente cheios de lágrimas de raiva. ― Oh, Deus! Acho que só se eu fosse muito idiota não adivinharia o resto. Com quantos anos ela estava nessa época? Dezessete? Dezoito? Não precisa me dizer mais nada! E tudo tão previsível e tão patético! ― Katriona nunca foi patética ― interrompeu Cláudia com firmeza. ― Ela... ― Ela era uma de suas pacientes, não? E por quê? Não, não me diga porque é muito fácil adivinhar. Era viciada em alguma droga, claro! ― Ela realmente tinha um problema desse tipo, mas... ― Era viciada e devia sustentar o vício através de alguma atividade ainda mais vergonhosa... por acaso se prostituía? A expressão chocada de Cláudia foi o suficiente para Tara deduzir que acertara. ― Não precisa dizer mais nada. Vejo em seu rosto que era exatamente isso. Então minha mãe era viciada e se prostituía. Quanto a meu pai... ― ela olhou para Cláudia e depois para Garth. ― Por acaso foi um dos seus clientes? Um homem que apanhou na rua? ― Não! ― gritaram Cláudia e Garth, ao mesmo tempo. ― Ah! Foi por isso que você se divorciou dele? ― perguntou Tara, voltando-se para Cláudia. ― Por que descobriu que ele também era viciado... mas em usar prostitutas para se satisfazer? Ou talvez eu seja o produto de alguma experiência social inovadora? Pagou para minha mãe ser inseminada com o esperma de Garth? Não, claro que não! Simplesmente pagou para usar o corpo que tantos outros já haviam usado, e ela engravidou. Deve ter sido um grande susto, não? Por acaso não insistiu para que ela abortasse? ― Não foi assim, Tara ― interrompeu Cláudia, desesperada. ― Você precisa compreender...

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― Eu não preciso compreender nada, porque tudo está claro demais. ― Tara deu uma gargalhada cínica. ― Deus meu! Que tipo de pessoas são vocês? Uma, que se diz meu pai, usa uma prostituta viciada para uma transa rápida, e a outra, que se diz minha mãe, rouba o produto desse ato sexual furtivo. Não sei qual dos dois é mais desprezível! ― Espere, Tara! ― Garth a interpelou com autoridade. ― Ainda há muito que você não sabe e... ― Então me conte. Estou muito curiosa para saber mais detalhes dessa história sórdida. Cláudia percebeu que Garth a fitava com um olhar interrogativo e moveu a cabeça, para que ele assumisse o comando e contasse os detalhes ainda não revelados. Aquele momento estava sendo ainda mais difícil do que ambos haviam previsto, e tentava imaginar como se sentiria se estivesse no lugar de Tara. Ela queria dizer o quanto se sentia culpada e impotente diante da fúria justificada da filha e como desejaria poder poupá-la daquela dor, mas não ousou se manifestar. Calada, ouviu Garth explicar as circunstâncias da concepção de Tara, mas sem revelar a desconfiança dos dois sobre a premeditação de Katriona em engravidar do marido de Cláudia. Depois que Garth terminou seu relato, o silêncio reinou por alguns minutos na sala do apartamento. Então Tara deu mais uma de suas gargalhadas quase histéricas. ― Vocês acham mesmo que eu vou acreditar nessas mentiras? Francamente! Devem pensar que eu sou muito idiota, não? ― É verdade ― murmurou Cláudia, com a cabeça baixa. ― Como ousa dizer isso? O que sabe a respeito dessa palavra? Você só mentiu para mim! Não tinha o direito de me esconder nada. Roubou-me, ainda bebê, de minha mãe que estava agonizante, e passou o resto de minha vida me enganando, escondendo de mim a verdade a respeito de meu nascimento. Não roubou apenas à minha mãe mas também a mim, Cláudia! Roubou meu direito de ter um passado, e jamais a perdoarei por isso. Curvando ainda mais a cabeça, Cláudia admitiu que tudo estava perdido. Ao ouvir a filha chamá-la pelo nome, em vez de "mamãe", como sempre, sentiu como se tivesse sido apunhalada. Mas merecia ser ferida com toda a brutalidade, pois talvez tivesse destruído Tara com seu egoísmo. ― Estou indo embora e não quero vê-los nunca mais... nenhum dos dois! Percebendo que Cláudia erguia as mãos, num gesto involuntário de protesto, Garth colocou um braço nos ombros dela, como se assim pudesse impedi-la de aproximar-se de Tara, que agarrara a bolsa e corria na direção da porta. ― Não podemos deixá-la ir embora assim, Garth ― exclamou Cláudia, descontrolada ao ouvir a porta sendo batida com violência. ― Ela precisa... ― Ela precisa de tempo para se reconciliar consigo mesma e conosco, querida. ― Nada disso devia ter acontecido! A culpa é toda minha! Você estava com a razão, Garth. Se eu tivesse contado toda a verdade antes, quando era jovem o bastante para me ouvir e aceitar... Oh, meu Deus! O que fui fazer? ― Você foi apenas a mãe dela, a melhor mãe do mundo. Tara acabará reconhecendo também essa verdade.

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― Acha mesmo? Neste momento, Tara admite apenas que Katriona é a mãe dela e eu sou apenas a criatura mal-intencionada que a roubou e... Finalmente, Cláudia perdeu o controle e começou a chorar, desconsoladamente. ― Não chore assim, querida ― murmurou Garth, tentando acalmá-la. ― Neste momento, como já percebeu, Tara não tem capacidade de raciocinar normalmente, pois está furiosa demais conosco. Entretanto, ela continuará sendo nossa filha... você é a mãe dela, Clo. ― Não posso me esquecer da expressão dela quando nos perguntou sobre Katriona. Acha que devíamos mesmo ter lhe revelado tanto assim, Garth? Talvez tivesse sido melhor... ― O que seria melhor, Cláudia? Continuar mentindo e dizer-lhe que Katriona era uma pessoa normal? ― Ela era normal, não passava de uma jovem vulnerável que se sentia rejeitada e não amada pelo pai. As drogas e a prostituição foram consequências desse desvio. Oh, Garth! Tenho tanto medo por Tara! Para onde ela irá, o que pretenderá fazer agora... ― Tara nunca será Katriona, Cláudia. Em primeiro lugar, é mais velha e, em segundo, sempre foi amada e sabe muito bem disso. Além do mais, tem Ryland para confortá-la neste momento difícil. Não se esqueça desse detalhe, que é muito importante, e dê-lhe algum tempo para absorver tudo o que ouviu hoje. ― Talvez fosse melhor telefonar para Ryland. Se ele estivesse prevenido... ― Não podemos interferir, querida ― declarou Garth, preocupado com o desespero de Cláudia. ― Você tem de deixar que ela mesma revele toda a verdade ao namorado. ― E se Tara não voltar mais? Se não quiser mais nos ver... ― Ela voltará, Clo. Quando se acalmar e puder pensar melhor, reconhecerá que a amamos muito. Tara só queria voltar ao aconchego do apartamento que dividia com Ryland. Apesar de ser um dia quente, ela sentia arrepios de frio, sem dúvida porque ainda não absorvera as revelações de momentos atrás, e estava tão desorientada que não conseguia analisar seus sentimentos. Na verdade, achava difícil até acreditar em tudo que ouvira. Era brutal demais! Parecia-lhe impossível que sua mãe... não a podia mais considerar assim, que Cláudia tivesse mantido em segredo, por tanto tempo, algo tão importante, vital demais! Enquanto ela crescia, feliz por ter uma ligação tão especial com a mãe, Cláudia devia sempre estar lembrando que ela não era realmente sua filha e estava agindo com nobreza e bondade ao dar um lar decente e respeitável para a filha do marido com uma criatura do submundo, uma drogada que se prostituía para pagar seu vício e oferecia o corpo a qualquer homem que pagasse por isso. ― Não! ― exclamou Tara, cerrando os punhos, sem perceber os olhares assustados das pessoas que passavam a seu lado, na calçada. Durante todos aqueles anos Cláudia fingira amá-la. Mas como poderia realmente amar uma criança que trazia tantas lembranças sórdidas? Na

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verdade, o que mais a magoava era saber que ela nunca a amara de verdade, pois não era sua filha. "Eu te amei desde o primeiro momento", afirmara Cláudia. Mas Tara não era tão idiota a ponto de acreditar nisso! "Havia uma ligação muito especial entre nós." E que ligação, especial ou não, poderia haver? O fato de Garth ser o pai da criança representaria algum laço único? Impossível! E como sua verdadeira mãe teria se sentido ao descobrir que estava grávida? Teria amado, ainda que pouco, a criança por nascer, ou a considerara um transtorno em sua vida de prostituição? "Ela queria que eu ficasse com você. Sabia que estava morrendo e desejava, acima de tudo, saber que a amariam e a protegeriam de tudo." Teria sido mesmo assim? Tara não acreditava. A partir de agora, como poderia acreditar em qualquer palavra proferida por Cláudia ou por Garth depois de saber que haviam lhe ocultado a verdade por tantos anos? E todos aqueles anos se passaram sem que ela suspeitasse de nada. Tanto tempo de ignorância cega, quando eles sabiam de tudo e ela permanecia sem saber de nada... Odiava os dois e nunca mais queria vê-los, pelo resto de sua vida! O quanto antes ela e Ryland partissem para os Estados Unidos melhor seria. Poderia recomeçar a vida do outro lado do oceano, ser novamente feliz e esquecer o passado. Tara estava chorando e murmurando o nome do namorado quando entrou no apartamento. Sentia o perfume do gel de barbear de Ryland pairando ainda no ar e, cruzando a sala, correu para o quarto. Então, parou e, caindo em si, percebeu, pelo silêncio, que não havia ninguém em casa. Lutando contra as lágrimas, voltou para a sala, desorientada. Então, avistou a nota que ele deixara no aparador da lareira. Suas mãos tremiam ao apanhar o papel e ficaram ainda mais instáveis quando terminou de ler a mensagem. Muito pálida, sentou-se no sofá, como se suas pernas não tivessem mais força para sustentá-la. Ryland não estaria de volta no fim da tarde. Ele voltara para casa... a chamado do pai. Desesperada por ouvir a voz dele, Tara começou a discar o número que ele escrevera no alto do papel e subitamente colocou o fone no gancho. Ele fora chamado de volta pela família, e essa família incluía a famosa tia Martha. Todos os comentários de Ryland sobre ela voltavam agora à mente de Tara, em especial a confissão do namorado sobre suas opiniões categóricas a respeito da jovem com quem seu sobrinho deveria se casar. Tara voltou a sentar-se no sofá, sentindo-se ainda mais perdida. Como aquela matriarca poderosa, que comandava toda a família, iria reagir quando descobrisse a verdade sobre a futura noiva do sobrinho? E a mãe de Ryland, as irmãs, enfim todos? Essas eram perguntas que nem precisavam ser feitas! Se tivesse dignidade e orgulho, não colocaria Ryland em uma posição de ser obrigado a escolher entre ela e a família. Amava-o demais para permitir que sofresse assim. Se a escolhesse, uma parte dele sempre se sentiria culpada por ter decepcionado seus familiares, e Tara não queria que seu casamento carregasse as marcas penosas desse abandono. Seu sonho era uma união de

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corpos e almas, um relacionamento saudável e positivo, mas já não seria mais possível. Nada mais seria como antes em sua vida! Sua mãe era uma prostituta e uma drogada. Ela passou um longo tempo sentada no sofá, tentando encontrar um caminho que pudesse seguir. Infelizmente, não havia nenhuma maneira de fugir da verdade que lhe fora revelada naquela manhã. "Se passaram toda a vida me escondendo a verdade, por que decidiram falar justamente agora?", perguntara ela, enfurecida. "Descobriram, de um momento para o outro, que estavam cansados de bancar os pais amorosos e queriam mudar um cotidiano entediante? Ou desejavam mesmo que eu saísse para sempre de suas vidas?" Os olhos de Cláudia tinham se enchido de lágrimas ao ouvir suas palavras. ― Eu tive medo que surgisse algum problema com a tia de Ryland, que ela descobrisse a verdade. Seu visto não chegava e achei que... era melhor você estar preparada. ― Não chegou por causa de um problema nos computadores e não porque alguém tenha descoberto as suas mentiras! Tara ficou surpresa ao perceber que parte dela preferia ter sido mantida na ignorância, de não saber nada daquela verdade sórdida. Por que os dois não haviam continuado a guardar os próprios segredos? Mas Cláudia não tinha motivos para poupar seus sentimentos. Não significava nada para ela, não era realmente sua filha. Levantando-se do sofá, com muito esforço, Tara voltou a pegar o papel com o recado de Ryland, onde ele anotara o número de seu telefone nos Estados Unidos e, antes de ser tentada a fazer uma ligação, rasgou-o com gestos bruscos e jogou os pedaços na cesta de lixo. Ela não podia mais ficar naquele apartamento. Não tinha mais esse direito. Não era a jovem para quem aqueles poucos aposentos tinham sido um lar e depois um ninho de amor. Transformara-se em outra pessoa, uma desconhecida a quem ainda não conhecia realmente. Passara a ser a filha de uma outra estranha, não possuía mais casa, passado ou futuro e nem mesmo uma identidade. Até seus objetos de uso pessoal, as roupas nos cabides, pareciam pertencer a outra pessoa. Estava completamente sozinha no mundo, sem nada que lhe pertencesse. Mais uma vez lutando contra as lágrimas, caminhou para a porta do apartamento. Não sabia o que fazer nem para onde ir, apenas tinha consciência de que toda sua vida, até aquele momento, lhe fora roubada. A pessoa que sempre acreditara ser nunca existira, era uma ficção, uma falsidade, uma fraude. Diante da negação de tudo que já fora, ela não era... nada, ninguém. Antes de cruzar a porta e sair, Tara lembrou-se de um detalhe que deveria ser cuidado. Tirando o anel que Ryland lhe dera, logo após declarar-lhe seu amor, e o colocou junto do telefone. Uma lágrima solitária deslizou em seu rosto, mas ela nem notou. Ao separarse daquele anel, estava colocando uma enorme distância entre si mesma e a Tara do passado. Deixara de existir aquela pessoa confiante e amorosa. Ninguém, incluindo Ryland ou ela mesma, teria condições de amar a estranha sem nome que surgira em seu lugar. Manteria o mesmo nome, mas essa nova

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mulher trazia em seu sangue as características genéticas de uma desconhecida. Como teria realmente sido sua verdadeira mãe, a jovem drogada que recebia dinheiro dos homens que usavam seu corpo? Com medo de mudar de ideia, ela correu para a porta e não teve coragem de olhar para trás e se despedir de tudo que estava deixando para sempre. Não podia perder mais nem um segundo ou acabaria fraquejando. ― Já pensou no que eu lhe disse? Estelle olhou para o rosto ainda sonolento de Blade e suspirou. Ele chegara na noite anterior, quase de madrugada, e num estado de excitação claramente provocado pela droga. Batera à porta, insistindo para que ela abrisse imediatamente, e seu objetivo principal, pela primeira vez desde que o conhecia, não fora satisfazer seu apetite sexual. Blade contara uma história confusa sobre estar tendo problemas com o "chefao", e Estelle ficara bastante nervosa. Nunca ignorara que ele estivesse envolvido com drogas, tanto consumindo-as como sendo mais um no intrincado labirinto do tráfico. Ela também as consumia, às vezes, quando queria aumentar os prazeres do sexo. Não via nada de errado nesse uso ocasional, desde que não abusasse a ponto de perder a noção do que estava fazendo e se tornasse dependente. Infelizmente, nos últimos meses, percebera que Blade estava consumindo mais e se envolvendo demais no cenário da droga. Agora ele estava pressionando-a de novo, querendo saber se já encontrara uma outra garota para participar de uma noite de sexo com esse "chefao" e mais alguns traficantes pesados. Tinha de ser alguém com mais classe e refinamento, que poderia conseguir um preço mais alto dos clientes, depois que ele a tivesse treinado bem. ― Esses sujeitos não estão interessados em duas garotas vulgares para se divertirem com elas na cama ― havia dito Blade, quando mencionara o assunto pela primeira vez. ― Já fizeram de tudo e querem algo muito especial. ― E o que considerariam "algo especial"? ― perguntou Estelle, sentindo-se intrigada e, ao mesmo tempo, irritada. Ela percebia que, ultimamente, a obsessão de Blade por sexo estava começando a cansá-la e a causar-lhe até um certo tédio. Se fosse honesta, admitiria que não suportava mais aquela situação, mas sempre conseguia afastar esse pensamento perigoso de sua mente. Precisava manter-se fiel a Blade porque sem ele não era ninguém! ― Bem... eles querem uma garota excitante, diferente, entende? Esses homens vêm de outro país e querem levar para casa alguns vídeos que os lembrem dessa estadia na Inglaterra. Estão dispostos a pagar caro, mas não gostam de esperar e começam a ficar impacientes. Você tem de conhecer alguém desse tipo. O importante é que não seja uma qualquer, uma mulher que se pode pegar em toda esquina. Enjoaram de prostitutas experientes. ― Se você quer uma virgem desista, porque não conheço nenhuma ― dissera Estelle. ― Não é isso. Querem uma garota que compreenda o prazer da dor e goste desse tipo de sexo. Como você... O efeito da droga da noite anterior estava passando e o apetite sexual de Blade começava a retornar.

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― Você sabe muito bem o quanto a dor aumenta o prazer, não é? Blade começou a rir quando Estelle tentou se afastar, iniciando o jogo tão conhecido dos dois. Ela sempre procurava fugir e, ao mesmo tempo, sentia a excitação aumentar diante do perigo que representava a força e a violência sexual daqueles atos sem amor. Estelle realmente nunca sabia como Blade iria agir e em que ponto iria parar de torturá-la. Essa incerteza era um elemento inebriante que a mantinha escrava daquela ligação. ― Você está fazendo sexo com um outro homem ― dissera ele, na última vez que viera ao apartamento de Estelle. ― Não! Eu não... Mas Blade fora muito rápido e prendera os pulsos dela antes de forçá-la a se submeter. ― Não minta para mim, Estelle. Posso sentir o cheiro dele em seu corpo. Esse sujeito lhe dava tanto prazer quanto eu? Naquela noite, a tortura se prolongara até de madrugada e, pela manhã, Blade a recompensara, dando-lhe um anel de ouro para prender no seio. ― Precisamos de uma garota com espírito aventureiro, Estelle ― disse ele, enquanto a acariciava. ― Esses homens são muito amigos do chefão e querem um desempenho especial e inesquecível. Quando Estelle começava a gemer de prazer, Blade voltava a torturá-la, até ouvir seus gritos de dor. Então, quando a julgava prestes a não suportar mais, recomeçava a excitá-la. ― Não vai ser fácil encontrar essa garota ― murmurou ela, com voz trêmula. ― Pois trate de encontrar! Os homens têm muito dinheiro e estão começando a ficar impacientes. Eu me recuso a decepcioná-los... entende o que eu quero dizer, não? Ela compreendia bem demais. Uma única vez, havia algum tempo, não conseguira fornecer o que Blade lhe pedira. Passara dez semanas sem vê-lo e ainda não se esquecera de quanto se sentira abandonada e solitária. Ainda não encontrara outro homem que a satisfizesse sexualmente como ele. Aliás, já se convencera de que nunca encontraria! ― Farei o possível, Blade. Já eram quase nove horas da manhã, e Estelle não sentia a menor vontade de sair da cama. Seu corpo estava dolorido após a longa madrugada de sexo, mas não podia ficar em casa. O trabalho era sua principal fonte de clientes e se faltasse muito acabaria sendo despedida. O escritório tinha clientes do tipo que ela precisava. Homens ricos, dispostos a pagar muito bem por algumas horas de diversão que rompessem a monotonia de seus casamentos. Além de lhe fornecerem o dinheiro necessário para viver muito bem, também provocavam o ciúme de Blade, sempre que ela relatava exatamente o que fizera na cama com cada um deles. Afinal, ele nunca lhe pagara um centavo para usar seu corpo da maneira mais brutal possível e, para Estelle, o dinheiro era tão importante quanto o sexo. ― Acho melhor fazer o impossível, minha cara. Só não se esqueça que esse sujeitos querem uma garota com classe, realmente fina e que pareça uma menina rica.

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E onde ela iria encontrar essa garota com classe e aparência de menina rica, disposta a ter sexo com um bando de homens com desejos perigosos como os traficantes de Blade? No passado, fora buscar jovens ousadas e dispostas a se aventurar nas boates da moda, onde havia muitas delas à espera de um cliente endinheirado. Mas essa mulher especial que Blade queria agora era algo muito diferente e nem sabia onde procurá-la! Irritada, Estelle terminou de se arrumar para sair e não conteve um gemido de dor ao retirar o anel de ouro do seio. Blade estava exagerando um pouco, nos últimos encontros dos dois. Parecia estar perdendo a noção dos limites! Ela teria um encontro à tarde e decidiu usar uma blusa de seda, como sempre sobre a pele. O cliente certamente não tiraria os olhos dos mamilos intumescidos que o tecido fino realçaria. Estelle fez uma careta de desdém. Esse homem não era muito importante e, em outra ocasião, nem se preocuparia em provocá-lo com artifícios de sedução. Entretanto, precisava pagar as prestações de seu BMW e não duvidava que Blade tivesse tirado todo o dinheiro de sua carteira. O melhor seria deixá-lo encantado com sua sensualidade e sempre à espera de um novo encontro. Seria imprudência de sua parte não ter alguns clientes fiéis para dias mais difíceis. Logo precisaria encontrar um outro emprego, e a situação ficaria bastante problemática por semanas e talvez até meses. Suspeitava que Garth estivesse começando a perceber suas atividades paralelas, e ele era o tipo de homem que faria um escândalo ao se dar conta de que uma funcionária estava usando o escritório para esse tipo de contato. Era realmente uma pena! Se ele fosse diferente, Estelle não perderia um só minuto para colocá-lo no topo da sua lista de clientes e até lhe ofereceria descontos bem grandes. Percebera, tão logo começara a trabalhar naquele escritório, que Garth não se mostraria receptivo ao tipo de sexo que ela podia lhe proporcionar, embora não tivesse perdido as esperanças de seduzi-lo, num momento de fraqueza. Na primeira vez que Garth ignorara, deliberadamente, suas tentativas de sedução, Estelle o catalogara como sendo um homem pouco imaginativo na cama, incapaz de grandes arroubos sexuais, pois assim seu fracasso pessoal a incomodava menos. Entretanto, no fundo, sua feminilidade mais recôndita sabia que não era assim. Talvez ele não apreciasse o tipo de sexo especialmente violento que Blade a ensinara a gostar, mas sem dúvida sabia excitar e dar prazer a uma mulher, embora com técnicas bem mais suaves. Enquanto pegava a bolsa, Estelle lembrou-se que seu pai voltara a lhe telefonar. Ela sentia prazer ao pensar em como aquele homem antiquado reagiria quando soubesse qual era seu meio de ganhar a vida. Certamente ficaria horrorizado! Como explicaria à adorada Rebecca que a filha mais velha vendia o próprio corpo para qualquer homem com dinheiro bastante para pagar por uma transa bem-feita? Por um instante, um sorriso maldoso de satisfação pairou nos lábios de Estelle, ao pensar que poderia levar Rebecca para distrair os traficantes que Blade queria agradar. Infelizmente, não daria certo, porque ela adoraria ver a expressão de seu pai quando descobrisse que a preciosa filhinha fora usada da maneira mais degradante por um bando de homens sem escrúpulos, e a responsável por isso teria sido ela!

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Por sorte, a outra garota com quem ela dividia a pequena sala de trabalho estava de férias, pensou Tara, enquanto abria as gavetas de sua escrivaninha e retirava tudo que lhe pertencia. Ao lado do computador estava a foto que mandara ampliar, no último Natal, na qual aparecia com a mãe e os avós maternos e paternos. O tremor de suas mãos traía um intenso nervosismo, quando jogou o porta-retrato na cesta de lixo. Aquelas pessoas não tinham mais lugar em sua nova vida! Pela porta entreaberta, ela via o movimento do escritório e se surpreendia diante da normalidade das outras pessoas em um dia idêntico aos outros. A sua vida desmoronara e nada mais seria igual, mas o mundo ignorava o trauma de sua descoberta. Seu pai não viera trabalhar. Sem dúvida estava com ela, com Cláudia. A vida tinha mesmo ironias cruéis! Passara tantos anos tentando reconciliar os pais, acreditando que só seriam felizes juntos. Agora os dois haviam voltado a se unir e ela pouco se importava. Ou talvez ainda se importasse, porque sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, enquanto abria a última gaveta da escrivaninha. Estelle estava passando pelo corredor e viu Tara retirando uma pasta da gaveta e... chorando. Curiosa, entrou na saleta e fechou a porta atrás de si. Com uma expressão compreensiva, segurou o braço dela. ― Qual é o problema, Tara? O choque de perceber que outra pessoa havia sido testemunha de seu sofrimento descontrolou Tara. Incapaz de reagir com mais firmeza, apenas balançou a cabeça, enquanto as lágrimas continuavam a rolar. Tomando uma decisão rápida, Estelle passou o braço sobre o ombro de Tara. Ela ignorou as tentativas da outra jovem em se livrar de seu abraço "confortador", percebendo intuitivamente que encontrara a solução de seu problema. ― Ah, pobrezinha! ― ela murmurou, com uma certa ironia, ao notar que Tara não estava usando o anel que nunca tirava do dedo. Se ela fosse Tara, teria insistido em ganhar uma jóia mais cara e ostensiva do que o pequeno coração de brilhantes. A idiota parecia supremamente feliz em usar aquela lasca de pedra preciosa sem nenhum valor de revenda! ― E isso mesmo, querida. Chore bastante, até aliviar seu coração. Os homens são todos iguais. Como Estelle previra, essa manifestação de solidariedade feminina só renovou os soluços de Tara. Ela disfarçou um sorriso triunfante. Bastava demonstrar um mínimo de simpatia a uma irmã sofredora e a pobre coitada se tornava sua escrava para sempre! Mas, a julgar pelas evidências, Tara estava exagerando. Chorar um pouco ao perder um namorado era uma coisa, mas limpar a escrivaninha para largar o emprego era outra muito diferente. Seus olhos experientes lhe diziam que aquela garota mimada estava prestes a abandonar tudo por causa de uma banalidade qualquer. E as palavras de Tara confirmaram suas suspeitas. ― Por favor, me solte. Tenho de ir embora e... ― Claro que tem! ― concordou Estelle, pensando rapidamente. ― Deixe-me ajudá-la, querida.

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Antes que Tara pudesse detê-la ou recusar qualquer ajuda, ela organizou todos os objetos retirados das gavetas em uma pilha bem ordenada sobre a escrivaninha. ― Vou carregar tudo isso até o carro. Você não conseguirá fazê-lo sozinha. Com uma incrível rapidez, Estelle abriu a porta e, diante do olhar indefeso de Tara, saiu da sala carregando as pastas. Ela cruzou o escritório, procurando conduzir a outra garota até o elevador sem perder um só segundo. O tempo era de importância vital. O carro de Tara estava parado no estacionamento do escritório e Estelle continuou a controlar a situação, tirando-lhe as chaves da mão e destrancando a porta. ― Para onde você pretende ir, Tara? Não posso deixá-la, dirigir nesse estado, seria uma falta de consciência de minha parte. ― Estelle deu um sorriso que deveria transmitir simpatia. ― Tenho uma ótima ideia! Estou na hora do meu almoço e poderíamos ir a um lugar sossegado... Tara balançou a cabeça, num gesto de negativa bastante veemente. Ela e Estelle nunca tinham trocado mais do que simples cumprimentos, ao entrar e sair do escritório. Não simpatizava com aquela garota e, sem saber bem porque motivo, sentia uma certa repulsa pela sensualidade ostensiva da companheira de trabalho. Na verdade, tinha ouvido alguns comentários, que inicialmente julgara maldosos, sobre a vida sexual de Estelle. As outras garotas diziam que ela perseguia os clientes de seu pai e abusava de roupas justas e decotadas para atrair qualquer homem que entrasse no escritório. No princípio, acreditara não passar de inveja diante de um corpo exuberante e um modo de viver sem nenhuma repressão, mas já não tinha muito certeza de suas próprias opiniões. ― Não aceitarei uma resposta negativa, querida ― insistiu Estelle com firmeza. ― Nem pense que vou deixá-la sair por aí nesse estado! Seu pai... Tara empalideceu. Não queria ver Garth e temia que Estelle lhe comunicasse a situação, caso ela. não aceitasse o convite para almoçarem juntas. ― Está bem... eu vou. Percebendo o nervosismo de Tara, que olhava para a entrada do prédio do escritório, como se temesse a chegada de alguém, Estelle a empurrou para dentro do carro e depois sentou-se no lugar do motorista. Tara imaginara que iriam a algum lugar nas proximidades, portanto caminhariam até o restaurante, mas estava tão sem energias que desistiu de argumentar com Estelle, antes mesmo de começar. A tenacidade dessa garota a deixava estonteada e, no fundo, só queria se afastar para bem longe do escritório do pai, ir para algum local distante em que ninguém a conhecesse e ela não visse nenhum rosto familiar, e onde pudesse recomeçar, assumindo sua nova identidade, ainda muito nebulosa demais. Na verdade, a última coisa que queria era um almoço en-tediante na companhia de uma garota com quem não simpatizava, mas discutir com Estelle exigiria muito esforço de sua parte e mais forças do que tinha naquele momento. O melhor era poupar suas energias e acompanhá-la sem dizer nada. Encostando a cabeça no banco do carro, Tara fechou os olhos, deixando que Estelle manobrasse o carro para sair do estacionamento.

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Enquanto dirigia, a ideia apenas em semente começou a germinar na mente de Estelle. Era um plano tão desafiador e excitante que ela sentiu um arrepio de prazer e medo. "Eles querem alguém com classe, com aparência de menina rica", dissera Blade. Pois Tara tinha essas qualidades em excesso! Mal podia esperar a hora de ver aquela garota com ar de aristocrata presa a uma cama, esperando pela chegada do homem que a torturaria. O temperamento contido a impediria de chorar ou gritar, mas só no início. O rosto crispado de dor aumentaria o prazer dos que observavam o corpo vulnerável sendo submetido a violências sutis, como a de colocar inúmeras argolas de ouro nas partes mais delicadas da anatomia feminina. Esses anéis não eram apenas um enfeite da moda nem serviam só para intensificar o prazer das carícias de um amante. Significavam submissão e domínio pela dor. Estelle não continha um sorriso de intensa satisfação. Encontrara exatamente o que Blade lhe pedira e muito mais! Admitia que não seria fácil forçar Tara a se submeter, mas existiam drogas que podiam diminuir a resistência e a vontade de uma pessoa, além de torná-la mais ávida por sexo. Ele certamente saberia onde buscá-las. Os olhos de Tara continuavam fechados, e Estelle parou no cruzamento, decidindo-se para onde deveria ir. Se fizesse Tara beber bastante durante o almoço, ficaria mais fácil levá-la para seu apartamento. Avisaria Blade, ainda no restaurante, e ele as estaria esperando para... Tara continuava concentrada demais em sua própria dor para perceber o que estava acontecendo. Ryland... o que ele pensaria? O que faria quando retornasse dos Estados Unidos e descobrisse que ela se fora para sempre? É claro que entraria em contato com Garth e Cláudia e eles teriam de contar-lhe tudo o que acontecera. Relataria apenas os fatos ou afirmariam que era melhor assim, pois ela não era digna de ser esposa de um rapaz de família tão boa, nem uma mãe apropriada, nem... As lágrimas voltaram a escorrer silenciosamente por seu rosto. Estelle percebeu os sinais de sofrimento na fisionomia de Tara e riu intimamente. Aquela menina rica e mimada iria logo descobrir o verdadeiro significado da dor. Se conhecia bem Blade, ele a usaria antes dos traficantes chegarem, preparando-a para a degradação final. Muitas pessoas achavam que Blade tinha uma personalidade perversa e quase psicótica, mâs ela não concordava com a opinião geral. Sabia o que o motivava. Dor e prazer. Afinal essas eram as duas únicas certezas da vida, as duas sensações em que realmente se podia confiar. Sem dúvida, eram muito mais seguras e confiáveis do que as juras falsas de apaixonados ou as promessas mentirosas dos pais... principalmente dos pais!

CAPITULO XIX Projeto Revisoras


Ryland avistou imediatamente o pai, que cor-;reu ao encontro dele, abraçando-o com firmeza. Preocupado, percebeu que Jed envelhecera demais durante sua ausência, què não fora tão longa assim. Parecia mais grisalho, mais baixo e toda sua postura se transformara na de um velho. O rosto, sempre alegre, estava pálido e com rugas de ansiedade. Segurando o filho pelo braço, ele apressou-se a cruzar o saguão do aeroporto, como se algo urgente estivesse à espera deles. Essa pressa aumentou o nervosismo de Ryland. ― O que aconteceu, papai? Dever ser importante demais ou... ― Espere até chegarmos ao carro, filho. Tenha paciência por mais alguns minutos, sim? Mas o trânsito na auto-estrada do aeroporto estava congestionado, como sempre, e Jed parecia totalmente concentrado em conseguir uma brecha para entrar no fluxo de carros. Ryland começou a ficar irritado com aquela demora. ― Francamente, papai. Até quando... Ryland estava começando a sentir os efeitos daquela viagem longa, com diferentes fusos horários, somada à tensão de esperar pela notícia que levara seu pai a exigir sua volta com tanta dramaticidade. ― Sinto muito, filho ― disse Jed, reconhecendo e compreendendo a irritação do filho. ― É que... foi um choque tão grande... ― Que choque? Será que você vai me contar ou... ― Bem... houve um terrível acidente na ilha... Um incêndio. Quando os bombeiros chegaram... ― Mas como? Um incêndio na casa? ― Não tenho condições de dirigir e lhe contar todos os detalhes, filho. Os acontecimentos foram trágicos e confesso que estou ainda um tanto sem controle. ― E quem estava lá? Alguém morreu? A pequena mas encantadora ilha na costa da Nova Inglaterra passara a ser propriedade da família quando o irmão mais velho de Jed se casara com Martha, que a havia herdado do avô. Logo se transformara no cenário de muitas férias felizes e de inúmeros feriados animados, desde a infância de Ryland. Mesmo depois da morte do marido, em uma competição de iates a poucos quilômetros do local, ela continuara a visitar as praias agrestes e a ficar na casa rústica mas com requintes de luxo que havia reformado logo nos primeiros anos de casada. Por tradição, todos da família se reuniam na ilha para passar juntos o Dia do Trabalho, e Ryland imaginara que, nesse ano, levaria Tara para conhecer o enorme clã. ― Margot estava na ilha... com Lloyd ― murmurou Jed, com voz rouca. Após um minuto de silêncio, ele prosseguiu: ― E Martha também. Era o dia de folga da governanta, por isso Esme, pelo menos, não... ― Margot, Lloyd... e tia Martha? Eles... ― Ryland interrompeu o pai, mas não conseguiu terminar de formular a pergunta, pois já antecipava qual seria a resposta. As mãos de Jed se crisparam na direção.

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― Os três morreram, filho. O chefe dos bombeiros acredita que tenham perdido os sentidos por causa da fumaça... ― Mas é evidente que devem ter percebido essa fumaça antes de desmaiarem. Devem ter notado algum sinal em tempo de sair da casa... ― Não sabemos, filho. Existem algumas evidências, e o corpo de bombeiros continua investigando as possíveis provas. Parece que o fogo começou bem tarde da noite e, se todos estavam dormindo... ― Não é possível ― murmurou Ryland, chocado. ― Não consigo acreditar. ― Eu sei como se sente, filho. Mas vamos esperar até chegarmos em casa para entrar em maiores detalhes, sim? ― Tudo bem, papai. Eu entendo. Eles já haviam deixado a auto-estrada e começavam a percorrer o caminho tão familiar para Ryland, que levava até a pequena cidade da Nova Inglaterra, onde ele crescera. Parecia-lhe irónico estar voltando ao lar... sozinho! Durante os últimos meses, em Londres, só pensava no dia de retornar àquele lugar que tanto amava, na companhia de Tara. Os dois estariam eufóricos, antecipando o momento do encontro da futura nora e dos sogros. Até imaginara a cena. Seus pais estariam sorrindo evsuas irmãs não disfarçariam a alegria. Chegara a visualizar a fisionomia severa e distante de tia Martha se transformando em uma expressão de satisfação diante do encanto e do calor humano contagiante de sua noiva. Agora percebia quanto desejara que sua tia conhecesse Tara. Queria ver os olhos da velha senhora refletirem a certeza de que ela seria a mulher ideal para o sobrinho, que dirigiria o império familiar, e a mãe perfeita para os filhos que um dia herdariam tudo. Tia Martha saberia que o futuro da empresa e de toda a família estaria em total segurança nas mãos daquela encantadora garota inglesa. Talvez Tara não se sentisse muito feliz ao descobrir as repressões que seriam impostas a seus filhos, em função de uma imensa fortuna, mas Ryland desconfiava de que, sob a aparência suave, havia uma combinação das qualidades marcantes de Garth e de Cláudia. Ela seria sempre leal, não apenas a ele e ao amor dos dois, mas também ao conceito de responsabilidade de usar sabiamente a fortuna, em benefício da família e da humanidade em geral, como tia Martha sempre acreditara. Tara. Como precisava da presença dela naquela hora! Necessitava da força, do calor humano, da compreensão e, acima de tudo, do amor da mulher adorada! Aquele era um dos momentos em que a natureza se tornava menos bela na Nova Inglaterra. O verão se aproximava de seu final pouco glorioso e o outono ainda não chegara para ficar. Havia folhas verdes nas árvores, mas pareciam pender dos galhos, sem a energia exuberante da primavera, gastas e exaustas... como seu pai. Aquela região campestre era sempre encantadora, na opinião de Ryland, a não ser nessa época. Os últimos dias do verão traziam sempre uma atmosfera de esgotamento e espera, enquanto se aguardava a explosão de colorido do outono, quando as folhas assumiam as cores intensas que iam do vermelho do fogo ao dourado. A casa de madeira branca, construída por seu tataravô para a noiva, ficava em uma pequena elevação junto a um lago de águas cristalinas. Ryland a avistou

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quando o pai cruzou o grande portão de pedra e começou a percorrer a alameda de entrada. Nada parecia ter mudado, nem a sempre necessária e constantemente adiada pintura das venezianas. A pintura das portas e janelas da casa era uma espécie de tradição familiar. Jed sempre se encarregava dessa tarefa, mas nunca na primavera, como era o costume. Ele acabava adiando a tarefa até as férias de verão, quando Ryland podia ajudá-lo, muitas vezes a contragosto. Sua tarefa, quando ainda era menino, consistia apenas em permanecer junto da escada, mas no último verão que passara em casa fora ele que limpara o telhado e desentupira as calhas, enquanto o pai ficara no chão, pintando as janelas mais baixas. Ao pensar na sua progressão desde o primeiro degrau ao topo da escada, Ryland a comparou ao caminho seguido dentro da empresa, dirigido pelas mãos experientes da tia. Agora Martha não estaria mais a seu lado, para guiá-lo e apoiá-lo. Suspirando, ele voltou a olhar para a sua casa. Mesmo antes de seus pais se mudarem para o lar ancestral, quando seus avós ainda eram vivos, Jed sempre passara as férias de verão naquela casa ampla e descontraída, com a esposa e os filhos. Desde então, aproveitava os dias ensolarados para pintar as portas e as janelas. Sem dúvida, era uma moradia muito confortável, embora pudesse ser considerada grande demais para os padrões atuais. Muitas noites, no diminuto apartamento de Londres, Ryland tomava Tara nos braços e ambos tentavam visualizar a casa que construiriam junto da propriedade da família. Ele também passaria longos dias pintando a casa, com a ajuda dos filhos que teriam, um bando de meninos e meninas... Apesar da tensão, Ryland sorriu ao perceber que o simples fato de pensar em Tara o reconfortava, trazendo-a para tão perto de seu coração que parecia possível esticar a mão e tocar a pele cálida e sedosa. Tia Martha possuía uma imponente mansão em Boston, no bairro mais antigo dessa cidade aristocrática. Mesmo sem terem discutido esse assunto, sabia que Tara iria preferir, como ele, viver em meio à natureza sedutora da Nova Inglaterra. Antes do pai parar o carro, Ryland avistou a mãe e as irmãs, paradas diante da porta à sua espera. As meninas pareciam ter se tornado jovens mulheres durante sua ausência de um ano, mas refletiam a mesma incredulidade chocada que devia estar presente em seu rosto. ― Oh, Ry! ― exclamou a mãe, abraçando-o com muita força. ― Como eu gostaria que você não tivesse sido obrigado a voltar para casa por um motivo tão trágico, querido. Espero que sua Tara compreenda e nos perdoe por tê-lo chamado de volta ao lar tão precipitadamente. Ryland beijou a testa da mãe, comovido. Ela não precisava dizer que lhe pedira para vir sozinho, a fim de não tornar o momento do encontro de Tara com a família um evento menos alegre e festivo, por causa do acontecimento trágico que acabara de abalar a todos. ― Felizmente, seu avô está na casa de amigos ― disse ela, automaticamente, olhando para a casa mais próxima ao lago, onde morava o avô materno. ― Ele gostava demais de Martha. Os dois viviam discutindo política e economia... A mãe se calou, comovida demais, mas logo recuperou as forças de mulher que comanda, sem alardes, os destinos da família. ― Vamos entrar. O chefe de polícia Amory telefonou, Jed.

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Todos se encaminharam para a porta, muito próximos uns dos outros, como se precisassem se tocar para obter mais força e conforto. ― Eu disse que você havia ido buscar Ry no aeroporto e lhe telefonaria quando voltasse. Por que não se acomodam na biblioteca, onde poderá contar os detalhes da tragédia, enquanto preparo um café? O pai de Ryland preferiu esperar pela chegada do café e, depois de fechar a porta quando a esposa saiu, começou a falar com o filho. ― Eu não queria discutir esse assunto no carro, Ry. Mas... parece que o incêndio... De acordo com algumas evidências já examinadas, há probabilidades de que o fogo tenha começado... de maneira deliberada. ― Está me dizendo que alguém ateou fogo na casa... de propósito? ― Ryland encarou o pai, sem disfarçar a incredulidade. ― Pelas mãos de um incendiário? Mas., como essa pessoa teria ido parar na ilha? Subitamente, Ryland lembrou-se de todos os problemas relacionados a pessoas muito ricas, que ainda não discutira com Tara, e sentiu um enorme cansaço. ― Bem, acho que tia Martha poderia mesmo ser o alvo de um crime desse tipo por causa de sua fortuna. Lembro-me que, quando Margot ainda era pequena, ela recebeu algumas ameaças de sequestro. ― O incêndio não teve nada a ver com a fortuna de Martha ― murmurou Jed, angustiado. ― Foi pior... Ryland esperou que o pai se servisse de mais uma xícara de café e a tomasse antes de prosseguir. As mãos de Jed tremiam e, apesar de bronzeada, sua pele parecia quase lívida. ― Parece que... o incêndio foi provocado por Margot. ― Margot? ― Ryland quase deixou cair das mãos a sua xícara de café. ― Mas é impossível! ― Ninguém ignora, na família, como Margot sempre se sentiu em relação a Lloyd. Eu não posso aceitar o tipo de relacionamento entre eles, mas também não consigo condená-los. Só agradeço a Deus por não ter sido colocado nessa posição trágica. Amei sua mãe no momento em que a vi e, pelo que sei, o mesmo aconteceu com meu irmão e Martha. Acho que deve ser um traço genético. Ryland preferiu nada dizer. Não era a hora mais certa para revelar a Jed que também se apaixonara por Tara ao primeiro olhar. Era um tipo de confissão íntima, que une um pai e um filho ainda mais, e não queria que a delicadeza frágil de um grande amor fosse maculada pelo horror da tragédia que estava sendo relatada a ele. ― Como teríamos reagido se, como Margot, estivéssemos apaixonados por alguém com laços de sangue muito próximos para permitir o casamento? Sei que todos gostamos de nos enganar e dizer que iríamos perceber o perigo e fugir de uma situação insustentável antes de ser tarde demais. Margot... ― Jed balançou a cabeça, desconsolado. ― Ela transformou Lloyd no centro de sua vida, passou a respirar em função desse amor. Preocupado, Ryland tentou conter a impaciência. Seu pai não estava lhe dizendo nada de novo.

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― Lloyd também a amava muito ― disse Ryland, como se o pai não se lembrasse desse fato. ― Se não fosse assim, ele teria tomado outro rumo na vida. ― É claro que Lloyd a amava, mas seus sentimentos nunca foram tão intensos quanto os de Margot, que chegavam a ser... obsessivos! Desconfio de que nunca terminou essa ligação de tantos anos porque temia a reação dela. Realmente, não tenho provas concretas que apoiem minha suspeita, mas agora há novos elementos. Jed ficou ainda mais pálido e se serviu de outra xícara de café. ― Tão logo foi confirmada a morte de Lloyd, junto com Margot e Martha, liguei para o escritório da Califórnia e avisei a assistente dele. Algumas horas mais tarde, recebi o telefonema de uma professora da UCLA, cujo livro seria publicado por nossa editora. Depois de tomar um gole, Jed lembrou-se de oferecer mais uma xícara ao filho, mas Ryland estava ansioso demais e queria saber logo a verdade sobre o incêndio. ― Essa professora nos disse que ela e Lloyd haviam se tornado muito íntimos e a ponto de discutir um futuro em comum. Ele lhe contara tudo sobre Margot e também dissera que iria encerrar essa relação antiga e obsessiva a fim de ficar livre para iniciar uma nova vida. Pretendia avisá-la de que pelo menos o lado físico do relacionamento devia terminar. A situação começava a ficar mais clara para Ryland. ― Segundo Jamie Friedland, os dois se conheciam há apenas algumas semanas e não tenho motivos para duvidar de suas palavras. Não se trata de uma garota imatura, e sim de uma mulher adulta e inteligente. Enfim, parece que os dois se apaixonaram e Lloyd confessou que a amava, portanto queria se casar com ela. Jed levantou-se e foi até a janela da biblioteca, inquieto demais para permanecer sentado. ― Lloyd também lhe disse que Margot, seu amor de tantos anos, merecia ser avisada com toda a calma e que precisaria passar alguns dias na ilha, quando a prepararia para se resignar ao fim de uma relação que era o motivo único de sua vida. Confessou a Jamie Friedland que seus sentimentos haviam mudado ao longo dos anos e, embora a amasse como prima, já não sentia atração física alguma por ela. No entanto, sabia que esse desinteresse não era mútuo. Suspirando, Jed começou a andar pelo aposento. ― Jamie me contou que lhe pediu para ser muito cuidadoso quando fosse contar a verdade a Margot. Chegara até a sugerir que a aconselhasse a procurar ajuda profissional para superar o que certamente seria um trauma. Nunca saberemos realmente o que aconteceu, se Lloyd falou com ela ou que lhe disse. Só temos certeza, por meio de provas concretas, que alguém provocou o incêndio, e talvez essa pessoa seja Margot. Ryland mal conseguia acreditar no que estava ouvindo. ― As provas periciais e as autópsias indicam que Margot e Lloyd havia bebido bastante e tomado uma dose muito grande de barbitúricos. Ela andava sempre com uma receita médica que lhe permitia comprar sedativos bastante potentes. No início, a polícia julgou que tivesse sido um pacto suicida, uma possibilidade até aceitável por causa da natureza ilícita e secreta de seu

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relacionamento. Acho que todo mundo suspeitava do envolvimento dos dois e, por simpatia ou caridade, fingia-se não ver nada de errado na situação. Sua tia Martha era muito respeitada e querida nesta região. Ajudou muito a desenvolver projetos que trouxeram benefícios ao vilarejo. O chefe de polícia me contou que, quando interrogaram Esme, a governanta, praticamente tiveram de gritar que já sabiam do relacionamento dos dois primos, antes de ela falar sobre o assunto. Nitidamente cansado,Jed voltou a se sentar na frente do filho. ― Na minha opinião, sabendo que Lloyd iria abandoná-la para se casar com outra mulher, Margot dissolveu alguns comprimidos para dormir no vinho que ambos iriam tomar. Ela deve ter feito isso depois de reunir tudo que precisava para iniciar o fogo. ― Mas tia Martha estava na casa. Certamente Margot não pretendia... ― Não sei, filho. Acho que ninguém jamais saberá. Segundo o depoimento, Esme deixou um jantar frio para os dois, que haviam saído para passear na praia. Lloyd tinha chegado à ilha naquela manhã e parecia muito nervoso e preocupado. Margot fora buscá-lo no cais e ambos estavam decididamente tensos ao retornar. Era o dia de folga de Esme, que estava se preparando para sair, quando tocou o telefone. Como Margot e Lloyd ainda continuavam fora de casa, ela atendeu e ficou sabendo que Martha viria passar alguns dias na ilha. Deu ordens para que a governanta não ficasse à sua espera, mas deixasse o carro no cais, com as chaves no contato. Foi exatamente isso que ela fez. ― Então Margot talvez não soubesse que a mãe estava na casa da ilha? ― É possível que ignorasse esse fato. Sabemos que os dois comeram o jantar deixado por Esme e, se Lloyd não havia mencionado antes, contou-lhe nessa hora seus planos para um futuro ao lado de Jamie Friedland. Se foi nesse momento que Margot tomou a decisão de atear fogo na casa ou se o fez mais tarde... nunca descobriremos. Mas, em algum momento entre o entardecer e a madrugada, ela pegou uma lata de gasolina e a levou para seu quarto. Depois de retirar todas as roupas do armário, despejou nelas o líquido inflamável. Também sabemos que foi ao encontro de Lloyd e os dois tomaram o vinho com o barbitúrico. Talvez tenha tentado, ainda uma vez, convencê-lo a mudar de ideia e não terminar sua ligação. Enquanto conversavam, Martha deve ter entrado em casa, mas provavelmente não os avisou que chegara. ― E acha que eles não perceberam nada? ― Certamente estavam discutindo muito, filho. A uma certa altura, ambos deviam ter sentido o efeito do sedativo, pois, segundo a polícia, a dose era bastante forte. Como Margot não conseguiu convencer Lloyd, voltou para o próprio quarto e então... ― Jed curvou a cabeça suspirando. ― O médico da polícia disse que eles não sofreram nada. Tudo foi muito rápido e a fumaça... ― Oh, meu Deus! ― exclamou Ryland, horrorizado. ― É terrível. Acha que Margot tinha alguma noção do que estava fazendo? ― Como saber, filho? Ela nunca foi uma pessoa fácil de entender. Havia um lado, em sua personalidade, que parecia sempre no limite de um certo desequilíbrio e a tornava instável e intensa demais. Sempre senti muita pena de Margot, mas confesso que tinha ainda mais pena de Martha. Jamais esquecerei a expressão no rosto de sua tia quando a filha lhe comunicou que

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não poderia mais ter filhos, porque fizera uma histerectomia. Foi no feriado do Dia do Trabalho e toda a família estava na ilha... Jed lembrava-se nitidamente da cena. Martha fitara a filha, chocada, e Margot correra para a praia, chorando desconsoladamente. Lloyd a seguira, e ele ficara junto da cunhada, na sala vazia. ― O que eu fiz, Jed? Onde errei? ― perguntara Martha, desesperada. ― A culpa deve ser minha, mas... Não se ouviu som algum na biblioteca até que Jed voltasse ao momento presente e percebesse a presença do filho. ― O chefe de polícia ainda não confirmou oficialmente, mas pretende arquivar o processo como tendo sido suicídio por parte de Margot e morte acidental no caso de Lloyd e de Martha. Ninguém pode saber o que se passava na mente dela e de nada adiantará culpá-la, pois já está morta. ― E agora? ― Bem, Martha sempre expressou o desejo de ser enterrada na cripta da família, em Boston, junto do marido. ― E quanto a Margot e Lloyd? ― Talvez o melhor que possamos fazer pelos dois será enterrá-los ao lado de Martha. Afinal, trata-se de um túmulo da família e ficarão juntos para sempre. ― Se não na vida, ao menos na morte ― murmurou Ryland. ― Foram exatamente essas palavras que sua mãe disse. Só não sei quanto tempo mais teremos de esperar até o funeral. Já conversei com o advogado de Martha e logo se realizará a leitura oficial do testamento, mas o herdeiro é você, como já sabe há muitos anos. Certamente ela deixou vários legados para as instituições de caridade que ajudava, além de somas razoáveis para os antigos funcionários da empresa, porém a parte mais substancial de sua fortuna particular, além das ações da editora, será sua, filho. ― E minhas irmãs? ― perguntou Ryland, preocupado. ― As meninas receberão somas bastante consideráveis que permanecerão em um fundo, administrado pela área financeira da empresa. Mas a grande responsabilidade recairá sobre seus ombros, Ryland. Ao menos tem Tara para dividir o peso dessa carga. Ryland lançou um olhar desanimado ao pai. ― Qual é o problema, filho? ― Bem... Tara ainda não sabe sobre... o dinheiro. Não lhe contei nada sobre a situação financeira de nossa família. Estava esperando por um momento especial, pela hora certa e... ― Ryland suspirou ao ver o olhar de preocupação do pai. ― Sei que deveria ter sido mais franco, porém tive medo de estragar nosso relacionamento. Tara não vai gostar nada de saber que sou milionário, papai. Não por si mesma, mas por nossos filhos, entende? ― Ela vai gostar menos ainda quando descobrir que você lhe ocultou a verdade, filho. ― E... eu sei muito bem disso! Agora era tarde demais para se lamentar. Não encontrara o momento certo, ou melhor, não criara a ocasião ideal, para discutir o que o futuro lhes reservaria, e, agora, o futuro passara a ser o presente. Ryland tentou flexionar

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os músculos tensos de suas costas, como se já sentisse a carga dos milhões que herdara da tia pesando em seus ombros. ― Devia ter lhe contado tudo, é claro. Mas tive medo e me convenci de que não estava cometendo um erro porque tia Martha ainda viveria muitos anos antes de... Subitamente, uma outra realidade se apresentava diante dele. A morte da tia alterara de maneira radical os próximos passos de sua vida. ― Droga! Fui mesmo muito irresponsável! E não posso lhe contar algo tão importante assim pelo telefone, concorda? Teria de ser pessoalmente, e a empresa... ― Era justamente sobre isso que eu ia falar agora, Ryland. Detesto ter de aumentar ainda mais as pressões provocadas por essa tragédia em sua vida, mas precisamos de você aqui nesta hora difícil. O advogado de sua tia já marcou uma reunião, e o da empresa também quer falar com você. Além disso, será preciso marcar o dia para anunciarmos, formalmente, a mudança de comando da editora. Enquanto o pai falava sobre os problemas que a morte de Martha estava provocando no cotidiano da empresa, Ryland sentiu que sua atenção se dispersava. Tara. Por que ele não fora mais previdente e capaz de prever que algo pudesse ocorrer e alterar todos os seus planos? Por que esperara tanto, até ser tarde demais?

CAPITULO XX Tara acordou abruptamente. Estava desorientada, com um gosto amargo na boca e sua cabeça latejava como se fosse explodir. Como dormira em um sofá que nunca vira naquela sala que não conhecia? Ela tentou sentar-se e abafou um gemido ao perceber que tudo girava ao seu redor. O relógio sobre o aparador marcava quatro e meia. A julgar pela luz, só podia ser da tarde! Tinha uma vaga lembrança de ter estado em um restaurante com uma das garotas com quem trabalhava, a qual insistia para que tomasse mais um copo de vinho. Novamente Tara tentou se sentar e desta vez conseguiu. Havia um quarto no outro extremo da sala e, pela porta entreaberta, ela ouvia o som de um casal fazendo amor. Com um certo esforço, conseguiu levantar-se do sofá. Os acontecimentos anteriores ao seu despertar nesse apartamento começavam a aflorar em sua mente. Fora trazida até ali por Estelle. Tara estremeceu, horrorizada consigo mesma. Quantos copos de vinho teria tomado? A julgar por sua dor de cabeça, bebera mais do que podia suportar! Decididamente fora um erro vir para o apartamento de Estelle. Para começo

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de conversa, nem sequer simpatizava com essa garota e muito menos depois dos comentários a respeito dela que ouvira no escritório. Durante o almoço, Estelle falara abertamente sobre sua vida sexual e sobre os homens com quem transará, dando detalhes desnecessariamente minuciosos. Tara teve a impressão de que ela não era motivada nem por amor nem por lascívia, mas apenas pelo dinheiro que recebia para realizar alguns atos bastante degradantes. ― Ora! Não vai bancar a santinha, não é? ― provocara Estelle, após relatar um incidente particularmente escabroso. ― Não acredito que nunca tenha experimentado algo parecido! ― Detesto ser forçada a me submeter, principalmente em termos de sexo ― respondera Tara. Talvez ela detestasse, mas sua mãe biológica devia ter muita experiência nesse sentido. Estelle não parara de afirmar como era fácil conseguir que os homens pagassem para usar seu corpo. Durante todo o tempo, Tara pensava na possibilidade de existir algo, em sua conformação genética, que houvesse herdado de Katriona. Talvez a outra garota só estivesse insistindo naquele assunto porque percebera essa característica hereditária! Sem dúvida esse fora o principal motivo de ter bebido tantos copos de vinho! Ela raramente tomava qualquer bebida alcoólica e, quando o fazia, parava bem antes de atingir seu limite. ― Você devia tentar ― voltara a insistir Estelle. ― Talvez acabe descobrindo que adora ser forçada a se submeter... na cama! ― Nunca! ― exclamara Tara, sentindo um arrepio de repulsa. Enquanto ouvia a outra garota, mesmo estando com a mente menos alerta por causa do vinho, Tara sabia, por instinto, que ela só teria sexo com um homem por dois motivos e ambos tinham por base o amor. Ou amava seu parceiro sexual ou tentava proteger alguém a quem amasse, tendo uma relação com um homem que não amava. A opção de se entregar por dinheiro, como sua mãe biológica, era uma opção inaceitável, que jamais conseguiria suportar. Existiam milhares de outras maneiras de ganhar a vida! Ao chegar a essa conclusão, ela sentiu um certo alívio. A profunda depressão que a envolvera ao saber a verdade sobre suas origens se tornou ligeiramente mais leve. Poderia ser filha de Katriona, mas era dona de si mesma. A mãe talvez ganhasse a vida vendendo o próprio corpo, mas Tara sabia, com muita convicção, que jamais agiria dessa forma. Embora suas pernas não estivessem muito firmes, conseguiu cruzar a sala e apanhar a bolsa que deixara no aparador. Depois de vestir o casaco, que também deixara na entrada do apartamento, saiu na ponta dos pés para não perturbar os ocupantes do quarto que continuavam a transar. Ao deixar o saguão do prédio, viu seu carro estacionado do outro lado da rua. Não se lembrava de ter parado ali e certamente ainda não se encontrava em estado de dirigir a parte alguma. Então, ela avistou um táxi e fez sinal para que parasse. ― Para onde? ― perguntou o motoristas, laconicamente. Tara estava prestes a lhe dar o endereço de seu apartamento quando, se.m saber por que o fazia, mudou de ideia.

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― Eu queria pegar um trem para Dorchester, mas não sei de que estação eles saem. ― Os trens para Dorchester saem de Waterloo, moça. Fazendo uma conversão proibida, o motorista de táxi arrancou, cantando os pneus e fazendo a cabeça de Tara quase explodir de dor. Ela também sentiu o estômago se contrair, mas sabia que não era por causa do vinho consumido na hora do almoço. ― Sua mãe era de um pequeno vilarejo perto de Dorchester ― havia dito Cláudia, quando ela exigira mais informações a respeito de Katriona. ― O pai dela, seu avô, era professor em uma escola para meninos que ficava nesse local. Cláudia insistira em dizer que a amava por completo, sem se importar com quem haviam sido seus antecedentes. Mas não podia ser verdade! Se fosse assim, por que ela tomara tantos cuidados para esconder a identidade de seus pais e manter o mais absoluto segredo a esse respeito? Se não sentisse vergonha de admitir quem fora a mãe verdadeira, não ficaria tanto tempo calada! "Eu te amo" afirmara também Cláudia, mas só poderia amar como uma substituta, algo inferior que se usa para colocar no lugar de um bem mais precioso. Como alguma mulher, em todo o mundo, poderia amar a filha de outra com a mesma intensidade que amaria a criança nascida com seu sangue e sua carne? E como alguém igual a Cláudia amaria a filha de alguém do tipo de Katriona? Impossível! Tara acabou por se convencer que Cláudia a amava porque não lhe restava outra alternativa. Não sabia quem a magoara mais... a verdadeira mãe por ser quem era ou Cláudia por ser quem nunca fora! Como Ryland iria se sentir quando tivesse de lhe revelar toda a verdade? De um minuto para o outro, havia um enorme vazio em sua vida, pois a pessoa que sempre julgara ser não existia e em seu lugar havia uma estranha, uma total desconhecida. Ela não tinha a menor noção de quem realmente era! Suspirando, Tara pagou o táxi, que acabara de parar diante da estação de Waterloo. Estelle resmungou quando Blade a empurrou para longe e sentou-se na cama. ― Vamos logo! ― ordenou ele, rispidamente. ― Acho que chegou a hora de acordarmos a nossa bela adormecida. ― É melhor ir com cuidado, Blade. Essa garota não é uma qualquer, que se pega na rua. Ela tem pais, amigos e... ― Não se preocupe. Quando eu terminar de treiná-la e os meus amigos tiverem feito o que bem entenderem com essa boneca mimada, ela jamais terá coragem de mencionar o que passou para alguém, pois estará morrendo de vergonha. Além disso, minhas técnicas para forçar uma mulher a se submeter são muito eficazes, como você deve saber. Se tudo isso falhar, resta a droga. Estelle relaxou um pouco. Embriagar Tara fora mais fácil do que imaginara, mas não quisera se arriscar, deixando-a sozinha. Depois que a vira adormecer, tinha telefonado para Blade e lhe contara tudo que havia acontecido. ― Estou indo para seu apartamento agora mesmo! ― dissera ele, com aquele tom de voz rouco e ligeiramente melodioso, que indicava satisfação. ― Se ela for tão boa quanto me diz, vou ficar muito contente com você. Muito mesmo.

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Blade vestiu a calça jeans e, empurrando a porta, saiu do quarto. Então ele voltou e a fitou com ódio. ― O que foi? Algo está errado? ― Ela foi embora, sua maldita! E isso que está errado! Apavorada, Estelle saltou da cama e correu para a sala. Blade não mentira! Tara não estava mais lá. ― Mas não é possível! ― exclamou Estelle, começando a entrar em pânico. ― Ela estava quase desacordada... o vinho... ― Céus! Como você é idiota! Estelle não viu o braço de Blade se erguer, mas pressentiu o golpe e não teve rapidez suficiente para escapar do punho que acertou o lado de sua cabeça. Em vão, ela procurou fugir antes de ser novamente agredida. Sentiu o gosto de sangue e percebeu que estava sendo arrastada até a cama. Tentou gritar e sua voz foi abafada pelo travesseiro, enquanto o corpo dele a prendia de encontro ao colchão. Havia muito tempo Blade não era obrigado a puni-la daquela forma. Ele não se sentia especialmente excitado ao usar de violência, mas sabia onde atingi-la onde não deixar muitas marcas e provocar mais dor. E Estelle adorava essa degradação. ― Idiota... ― dizia ele, enquanto aumentava a força de seus golpes. ― Maldita idiota! ― Um café, por favor ― pediu Tara, quando a jovem com o carrinho de bebidas se aproximou de sua poltrona. Já não sentia mais nenhum efeito do vinho que bebera no almoço, mas seu estômago continuava a se contrair de nervoso e não conseguiria comer nada. O trem estava inesperadamente cheio para um dia de semana, mas ela conseguiu uma poltrona no fim do vagão, ao lado de uma mulher de trinta e poucos anos que lhe sorriu, depois de pedir também um café. ― Você mora em Dorchester? ― perguntou Tara. Ela começava a se acalmar agora que conseguira superar o choque provocado por aquela decisão impulsiva. Na verdade, estava mesmo sentindo um certo arrependimento por ter ido para a estação, comprado a passagem e embarcado no trem em menos de meia hora, mas só precisaria comprar a passagem de volta e tudo se resolveria sem traumas. O que esperava encontrar no final dessa viagem sem sentido? Sua mãe morrera e certamente seu avô também! ― Eu moro em Londres, mas meus pais vivem em Dor-chester e estou indo à casa deles buscar minha filha. Ela foi passar alguns dias com os avós e, por ser a primeira vez que viaja sem mim, quase morri de saudade. A inflexão de voz daquela desconhecida ao falar "minha filha" atingiu Tara com a força de uma agressão física. Havia tanto orgulho e amor contidos em apenas duas palavras! Ela teve certeza absoluta de que apenas a polidez, e nada além disso, a levou a continuar a conversa. ― Quantos anos ela tem? ― Oito. Quer ver uma foto dela? Disfarçando o aborrecimento, Tara concordou com um gesto de cabeça. Por que começara aquela conversa banal? Poderia pedir um jornal ou até dormir para se distrair durante a viagem.

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― Ela se parece muito com você ― comentou Tara, depois de olhar, sem muito interesse, para a foto da garota de cabelos castanhos. ― Todos acham ― disse a mulher, dando um sorriso de felicidade. ― E isso é realmente irónico, porque Gemma é adotada. Tara sentiu seus músculos ficarem tensos e o sangue fugir de seu rosto. Com mãos trêmulas, segurou melhor a xícara de café. Era uma estranha coincidência e, se ela tivesse um pingo de juízo, encerraria aquela conversa imediatamente. Parecia-lhe ver uma sombra escura pairando sobre sua cabeça. ― Eu só vim a descobrir que não podia ter filhos muitos anos depois de me casar. Fiquei arrasada e meu marido também. Tínhamos tentado tudo e, durante muito tempo, a coisa mais importante do mundo, para mim, era ter um bebê, uma criança com o meu sangue. Fiquei tão obcecada que até descuidei de David. Em pânico, Tara olhou disfarçadamente para o lado, procurando um lugar vazio, mas o trem estava lotado. ― Meu marido sentiu que estava sendo deixado de lado e me deu um ultimato. Ele queria uma vida normal e se eu continuasse pensando unicamente em engravidar, isso não seria possível. Então, colocamos nosso nome no fim de uma longa lista de casais que queria adotar uma criança, mas não tínhamos muitas esperanças de que fosse acontecer antes de cinco ou seis anos. Para nossa surpresa, logo depois, recebemos um telefonema da agência de adoções. Havia chegado um bebê e eles achavam que nós seríamos os pais ideais. Custei a acreditar na minha felicidade, naquela época, e ainda hoje preciso me beliscar para ter certeza de que não. estou sonhando e Gemma é mesmo nossa. Fomos abençoados... A mulher se calou, com os olhos cheios de lágrimas, mas Tara não conseguiu se conter. ― É óbvio que não pode ser igual a ter um filho de verdade! Você não pode amá-la como se fosse mesmo sua filha... ― Ela é minha filha de verdade ― afirmou a mulher, com orgulho. ― Não posso negar que uma outra mulher a carregou nove meses em seu útero, mas Gemma tinha apenas seis semanas quando veio para nós. Estava subnutrida e abaixo do peso, porque não era alimentada regularmente. A mãe, uma adolescente, já tivera dois outros filhos, cada um com um homem diferente. O primeiro pediatra que consultamos achou que ela sofrera uma lesão cerebral durante o parto porque não conseguia sugar o leite. No instante em que a tomei nos braços e a olhei, bem nos olhos, soube que a pequenina só precisava de alguém capaz de amá-la muito. A mulher encarou Tara com um olhar quase duro. ― Não sei por que estou lhe contando isso, pois não creio que seja possível explicar como me senti ao carregar minha filha a quem nunca passou por um momento tão sublime como esse. A maioria das pessoas acha que é preciso dar à luz uma criança para poder amá-la de todo o coração, mas não é verdade. Se fosse assim, não existiriam filhos e filhas maltratados ou rejeitados, concorda? ― Ela... Gemma sabe que é adotada? ― perguntou Tara, com o coração batendo muito forte.

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― Ela sabe apenas que sua mãe biológica não podia ficar com ela e, porque a amava muito, queria que fosse viver com alguém capaz de amá-la da mesma forma. Conversamos bastante sobre esse assunto. ― A mulher sorriu e sua expressão voltou a se tornar muito suave. ― Acho que amo mais ainda a minha filha justamente porque não a trouxe ao mundo. Para mim... e para meu marido, é claro, ela representa a dádiva mais preciosa que nos foi dada por Deus e sabe que, não importa como seja o resto de sua vida, esse laço que nos une jamais será rompido. Se quiser procurar seus pais biológicos, quando tiver idade suficiente para isso, será um direito seu. David e eu a ajudaremos em tudo que for necessário para alcançar esse objetivo. ― Mas você não fica preocupada... ― Que ela os ame mais do que a nós? ― interrompeu a mulher, completando o pensamento de Tara. ― Claro que sim. Mas a grande verdade é que o mais importante sempre será o quanto você ama sua filha e não o quanto ela a ama. Pergunte a qualquer mãe adotiva e receberá essa mesma resposta. ― Também não se preocupa com algum traço genético que ela possa ter herdado dos pais biológicos? Tara nem percebia que estava fazendo perguntas íntimas a uma desconhecida, procurando saber detalhes pessoais demais, porque refletiam sentimentos que ela ainda não ousara analisar. ― Nenhuma criança nasce boa ou má. Os pais de Gemma eram dois jovens um tanto irresponsáveis que queria usufruir os prazeres do sexo e não pensaram nas possíveis consequências. A mãe havia fugido de casa para escapar dos abusos sexuais do padrasto e ficou grávida, pela primeira vez, quando tinha apenas quinze anos e o segundo filho veio quando estava com dezesseis. Gemma nasceu antes dela completar dezessete, mas isso não a torna uma pessoa má ou imoral. O único mal está na sociedade que não ampara essas criaturas sem muita orientação familiar. Talvez ela tivesse mais pontos em comum com aquela menina do que imaginara no começo da conversa, pensou Tara. ― Gemma tem sua própria personalidade e a amamos por ser diferente de nós dois. Ao mesmo tempo, parece ter herdado características nossas e, com o passar dos anos, nem pensamos que isso seria impossível. Veja só... David e ela adoram animais e vivem trazendo-os para casa. Por outro lado, ela monta muito bem e o instrutor disse que tem um dom inato para cavalgar, possivelmente uma característica genética. Nem eu nem meu marido sequer chegamos perto de cavalos! A mulher começou a rir, encantada com as habilidades da filha. ― Ter uma filha adotiva é algo muito especial, sabe? Cada dia é o começo de uma nova aventura formada por incontáveis descobertas. Você parte sem qualquer ideia preconcebida e não procura moldar a criança dentro dos seus padrões familiares. Sua responsabilidade é dar-lhe o alimento espiritual necessário para que possa atingir seu potencial pleno. Gemma sabe o quanto é preciosa para nós e levará essa certeza não importa para onde vá durante toda a sua vida. Toda criança adotada partilha essa qualidade de ser especial! ― Mas o que aconteceria se depois você tivesse tido uma filha que fosse realmente sua? ― insistiu Tara, incapaz de ser gentil ou de manter a conversa

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no tom distante que é apropriado para duas estranhas que se encontram em uma viagem de trem. ― Acho que você não entendeu ― disse a mulher, franzindo a testa. ― Gemma é realmente minha filha. Acho impossível amá-la mais do que amo. A expressão da mulher se tornou mais preocupada e Tara deduziu que ela estava arrependida de ter iniciado aquela conversa. ― Eu sinto muito, mas... Antes que pudesse terminar a frase, Tara ouviu a voz do condutor avisando que chegariam a Dorchester dentro de cinco minutos e a companheira de viagem começou a reunir seus pertences, enquanto olhava pela janela com o rosto subitamente cheio de expectativa. Tara a viu, rapidamente, depois de ambas terem saído do trem. A mulher abria os braços para uma encantadora menina de cabelos castanhos que correu pela plataforma gritando pela mãe, numa verdadeira explosão de alegria. Os olhos de Tara se encheram de lágrimas. Teria errado ao culpar Cláudia, dizendo que ela a amara apenas porque não lhe restava outra alternativa? Mesmo se tivesse cometido um grande erro de julgamento, Cláudia continuava sendo muito culpada, porque lhe escondera a verdade sobre seu nascimento por vinte e três anos. Teria agido assim porque sentia vergonha e medo do que fizera, porque temia que descobrissem sua ação ilícita e por isso viesse a perder a tutela da filha, como afirmara várias vezes? Ou simplesmente sentia uma vergonha imensa por saber de quem Tara era realmente filha e um medo muito grande de vê-la se transformar em alguém como Katriona? A recepcionista que atendeu Tara no pequeno hotel perto da estação era bem treinada demais para demonstrar curiosidade ou surpresa diante da ausência de bagagem ou da incerteza vaga quanto à duração da estadia. Como ela poderia responder a essa pergunta se nem mesmo sabia o que viera fazer em Dorchester? Ela já estava quase perto da escada, quando decidiu voltar até a recepção. ― Você sabe, por acaso, se existe algum escola particular para meninos perto de Dorchester? ― Claro. Há Wheatly Park, logo na saída de Dorchester e Darlington, a mais famosa. Mas... Tara já começava a se afastar, arrependida por ter voltado e feito aquela pergunta idiota. Era absolutamente impossível descobrir algo sobre sua família sem ter informações mais precisas. Fora muito insensata em vir para Dorchester sem se preparar antes. Mas havia um telefone público no saguão e ela não pretendia jogar fora o esforço de ter feito aquela viagem. Com firmeza, discou o número da casa do pai, dizendo a si mesma que Cláudia talvez não estivesse mais lá e, caso continuasse a partilhar o quarto de Garth, talvez se recusasse a lhe dar qualquer informação. Ao ouvir a voz de Cláudia do outro lado da linha, Tara quase perdeu a coragem e sentiu uma enorme tentação de desligar. Mas forçou-se a não bancar a covarde e persistiu. ― Sou eu. Tara.

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Parada na sala do apartamento de Garth, Cláudia crispou a mão no telefone, enquanto seu coração disparava. Quando Tara saíra correndo, ela sentira uma angústia tão intensa quanto a que a envolvera quando o bebê morrera. Entretanto, havia uma diferença... a dor agora era muito mais aguda e arrasadora. "Deixe-a ir" dissera Garth. "Dê-lhe tempo." Aparentemente, ele estava certo. ― Tara? Onde você está, querida? ― perguntou ela, com voz trêmula. ― Eu... eu preciso de uma informação. A voz de Tara parecia ter se tornado mais jovem, como se ela fosse ainda a adolescente que desafiava pai e mãe diante de algum projeto filantrópico que julgava ser maravilhoso e já aceitara antes mesmo de conversar com os dois. ― Preciso saber o sobrenome de minha mãe e o nome do vilarejo de onde ela saiu. Cláudia sentiu um profundo desânimo. Tara não telefonara porque, milagrosamente, mudara de ideia e passara a compreender toda a situação sob o ponto de vista dos pais. Ela simplesmente entrara em contato porque continuava preocupada apenas em descobrir quem era Katriona. Em silêncio, Cláudia engoliu os soluços que ameaçavam vir à tona. Ela merecia aquela rejeição cruel e só podia culpar a si mesma por toda essa dor. Infelizmente, sua filha também estava sofrendo e a responsabilidade era toda sua. ― Sua mãe se chamava Katriona Spencer ― respondeu Cláudia, num fio de voz. ― Ela vivia em um vilarejo chamado Upton Villiers, perto de... ― De Dorchester, eu sei ― interrompeu Tara, bruscamente, enquanto secava o suor das mãos para poder escrever as informações fornecidas por Cláudia. ― Eu sei o quanto você deve estar transtornada, querida ― disse Cláudia, aflita. ― Mas, por favor, acredite em mim! Eu te amo muito, Tara. Não posso pensar que você continue achando que não foi amada o bastante. Sempre representou o bem mais precioso de nossas vidas e a dádiva mais especial que Deus nos concedeu... As palavras de Cláudia pareciam as mesma usadas pela mulher do trem, ao descrever os sentimentos que nutria pela filha adotiva. Tara lutou contra uma tentação quase irresistível de abandonar tudo e correr de volta para Londres e para o aconchego dos braços dos pais, sabendo que a protegeriam com o mesmo carinho com que a desconhecida recebera a menina de cabelos castanhos na plataforma da estação. Foi preciso muito esforço para não ceder e lembrar-se que Cláudia passara vinte e três anos mentindo. Insistia em dizer que amava muito, mas nunca tivera a dignidade de lhe contar a verdade. ― Preciso ir ― disse ela, abruptamente, desligando o telefone antes de mudar de ideia. Cláudia recomeçou a chorar quando Tara cortou a ligação. Garth fora até o escritório, mas lhe prometera que voltaria o mais depressa possível. Como teria sido bom se ele estivesse presente quando a filha telefonara. Certamente saberia lidar melhor com a situação! Garth! Era espantosa a facilidade com que voltara a viver como antes, sendo a outra metade do homem que amava. Os anos de separação pareciam não ter existido e recuperara a confiança nele. A independência, que lhe parecera tão impor-

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tante logo após o divórcio, tinha deixado de importar e sentia-se feliz por poder se apoiar na força máscula de Garth. Sabia que sua vida precisava ser novamente assumida. Tinha compromissos de trabalho que precisavam de sua atenção, mas como se concentrar em algo que não fosse o único fato realmente importante... a felicidade de Tara? Depois de desligar o telefone, cortando sua comunicação com Cláudia, Tara permaneceu imóvel por um longo tempo, apertando na mão o pedaço de papel no qual anotara o nome de sua mãe. Aos poucos, conseguiu se controlar e pensar racionalmente. Precisava de uma muda de roupa, um mapa e um carro. Tinha de se apressar, porque começava a anoitecer. A recepcionista sugeriu um pequeno shopping na saída da cidade, que ficava aberto até as dez da noite e chamou um táxi para levar Tara até lá. Enquanto isso, prepararia os papéis necessários para o aluguel do carro. Estelle sentiu uma inesperada onda de fúria quando os golpes de Blade se tornaram violentos demais. Ele estava com as mãos em torno de seu pescoço e um instinto primitivo a impelia a lutar. Sem saber o que fazia, arranhou o rosto dele. Seu vestido estava rasgado e custara uma fortuna! Aquele desperdício aumentou a fúria de Estelle e ela conseguiu afastar a mão de Blade de seu pescoço. Começava a perceber que a violência daquela tarde era excessiva e não fora motivada pelo desejo. ― Idiota! Ele continuava a gritar e parecia ter perdido o controle que o levava a agredi-la sem deixar marcas, pois começara a bater no rosto de Estelle. ― Pare! ― gritou ela, apavorada. Seu rosto era importante demais para ser desfigurado, pois lhe garantia o sustento. ― Você está me machucando! ― E é isso mesmo que eu quero fazer, sua idiota! Você merece apanhar muito mais! Quando Blade ergueu o braço para desferir mais um golpe, Estelle conseguiu sair debaixo do corpo dele e seu movimento brusco o desequilibrou. Nunca o vira agir dessa forma antes e, subitamente, sentiu um verdadeiro pavor se apossar dela. Essa sensação terrível era muito diferente do medo que vinha acompanhado por uma extrema excitação e a levava a uma intensidade única de prazer. Agora estava sentindo um terror frio e sinistro, que prenunciava tragédia e não um ato sexual plenamente satisfatório. Ela precisava fugir... ou algo muito trágico iria acontecer. Correndo para a porta do apartamento, Estelle parou apenas para agarrar o casaco. Blade a perseguiu pelas escadas, mas Estelle estava alguns metros na frente e, ao sair do prédio, viu o carro de Tara, do outro lado da rua. As chaves ainda estavam no bolso do seu casaco e, sem tempo para pensar em outra saída, ela abriu a porta e ligou o motor, ignorando os gritos dele. Então, quando Blade começou a bater com os punhos fechados no pára-brisa, ela arrancou com toda velocidade, passando sobre a calçada e entrando no meio do fluxo de outros carros, sem nem sequer esperar que lhe dessem passagem ou mesmo ouvir as buzinas que soavam de todos os lados.

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Pelo espelho retrovisor, ainda via o rosto de Blade contorcido de ódio, mas estava sendo movida pelo instinto de fuga e de sobrevivência. Estelle começou a tremer e ligou o aquecimento do carro. Céus! As vezes ela odiava Blade! Nunca lhe recusava nada, sempre se submetia aos atos mais degradantes e ainda era tratada daquela forma? Não tinha culpa se ele se envolvera com traficantes da pesada! Se Blade precisava comprar algumas pessoas, se necessitava saldar suas dívidas, o problema não era dela. Por que deveria se oferecer para ajudá-lo? Quando ele tentara retribuir qualquer favor? Depois de quase atropelar um pedestre, Estelle pisou ainda mais forte no acelerador. Não sabia exatamente para onde ir, mas a sensação de velocidade era inebriante. Sempre adorara dirigir no máximo da velocidade e, naquele momento, essa euforia de poder ao volante a ajudava a aliviar o medo que sentira. Éla poderia continuar dirigindo assim pelo resto do dia! A sensação de perigo ao passar muito perto dos outro carros era embriagadora e sentia-se ainda melhor quando se lembrava da expressão de Blade, parado na calçada, impotente diante da máquina que a tornava veloz e a levava para longe do alcance dele. Pois aquele mal agradecido podia ficar praguejando por horas a fio, por que só voltaria quando estivesse pronta para enfrentá-lo. Na verdade, acreditava que ainda demoraria muito a se sentir pronta para enfrentar Blade, depois de não ter encontrado a garota que ele precisava. Decididamente, preferia a liberdade de uma estrada ao luar do que a violência gratuita de Blade!

CAPÍTULO XXI - Tara ligou ― disse Cláudia no ins-__ tante em que Garth entrou no apartamento. ― Mas cortou a ligação antes de me dizer onde se encontrava. Estava em um telefone público e queria saber o sobrenome de Katriona e o vilarejo de onde ela veio e... Subitamente Cláudia percebeu a expressão transtornada de Garth e entrou em pânico. ― Oh, meu Deus! O que aconteceu, Garth? Ele largou o corpo no sofá e, estendendo as mãos, pediu que Cláudia se sentasse ao seu lado. Não existia nenhuma maneira fácil de contar-lhe o que acontecera, nem a possibilidade de manter segredo. ― Tara foi ao escritório e tirou tudo que lhe pertencia da escrivaninha de sua sala. Então, fui até o apartamento dela e só encontrei um recado de Ryland, que fora rasgado e já estava na cesta de lixo. Consegui juntar os pedaços e fiquei sabendo que ele teve de ir para os Estados Unidos, pois o pai pediu-lhe que voltasse, sem perda de tempo. ― Ela... tirou tudo da escrivaninha? ― perguntou Cláudia, com uma expressão de profundo desespero.

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Era muito estranho! Em vez de estar com uma aparência mais envelhecida e derrotada por causa do trauma que ambos estavam sofrendo, Cláudia parecia mais jovem e vulnerável, como a que conhecera no passado, a garota doce que confiava nele e não hesitava em se mostrar dependente. ― Talvez... ela tenha ido com Ryland para Boston ― sugeriu Cláudia, esperançosa. ― Pode ser que tenha me telefonado do aeroporto! Garth sentiu ódio de si mesmo por ter de decepcioná-la, mas seria pior deixar Cláudia acreditar em uma fantasia criada por uma esperança falsa. ― Não creio que isso tenha acontecido. Telefonei para alguns aeroportos e... ― Conseguiu falar com Ryland? Perguntou-lhe se Tara... ― Ainda não liguei para ele. Achei melhor voltar para casa e telefonar daqui. Tara disse mais alguma coisa? ― Não. ― A voz de Cláudia refletia uma tristeza infinita. ― Ela desligou antes que eu pudesse lhe fazer qualquer pergunta. A ligação não durou mais do que um minuto. Garth a segurou nos braços por um longo tempo, até que o pranto amainasse e Cláudia recuperasse o controle das emoções. ― Ela só precisa de tempo, querida... Na verdade, ele acreditara que alguns dias, ou até semanas, de afastamento ajudariam Tara a superar o trauma de ter sabido a verdade, mas imaginara que ela passaria esse tempo junto com Ryland. O namorado a confortaria, enquanto o desespero fosse muito grande, e a ajudaria a se adaptar à sua nova realidade. A descoberta de que Ryland estava em Boston o descontrolara e não queria que Cláudia percebesse que ele praticamente entrara em pânico. Conseguiria pensar no sofrimento da filha, sem se desesperar, se ela estivesse com Ryland. Saber que se encontrava sozinha no mundo, naquele momento de crise, era angustiante! ― O carro dela não está na garagem, nem no estacionamento do escritório ― acrescentou ele, num tom de voz sombrio. Os dois se fitaram em silêncio, igualmente angustiados. ― O que você está pensando, Garth? ― perguntou Cláudia, com amargura. ― Que ela foi procurar a verdadeira mãe? Mas Katriona está morta e será uma busca tão sem sentido! ― Tente não se preocupar demais, querida. Neste momento, Tara está com muita raiva de nós dois. Também deve se sentir abandonada, com medo e também um pouco curiosa a respeito de Katriona. É natural, concorda? Precisamos dar-lhe tempo, Clo. Só o tempo a ajudará a superar esse trauma. ― Eu sei que você tem razão, mas gostaria de poder ajudar, de saber... não posso nem pensar se ela está infeliz, angustiada... ― São onze horas. O que acha de irmos para a cama? Há um telefone no quarto e ambos estamos exaustos depois desse dia terrível. ― Amanhã... eu preciso voltar para casa ― murmurou Cláudia, num fio de voz. ― Eu sei, querida. ― Ele deslizou os dedos pelo rosto de Cláudia. ― Gostaria muito de ir com você, mas as circunstâncias... ― Não, você tem que ficar aqui! ― exclamou ela, aflita. ― Tara pode telefonar.

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― Talvez não seja a melhor hora para tocar nesse assunto, querida... Mas eu não mudaria nada do que aconteceu entre nós, Clo. Talvez seja arrogância de minha parte dizer isso, porém não posso me conter. Você e eu fomos feitos um para o outro e nosso destino é continuarmos juntos. Estou lhe avisando que, a partir de agora, quero voltar a ser parte de sua vida. Não me deixe fora de seu coração. Garth puxou Cláudia para dentro de seus braços e a apertou junto do peito. Ela permaneceu imóvel por um momento, mas logo ergueu a cabeça e o fitou. ― Você é a minha vida, Garth. Você e Tara são meus bens mais preciosos. Eu sei que tenho muitos amigos, um trabalho que me satisfaz e dezenas de outras atividades que ocupariam cada minuto do meu dia, se eu permitisse. Estaria mentindo se dissesse que não são importantes para mim, mas dar e receber amor aos seres mais próximos a mim... Cláudia respirou fundo, como se precisasse coragem para abrir completamente seu coração diante de Garth. ― Senti uma enorme falta de você em minha vida ― admitiu ela, sem desviar os olhos. ― E talvez não compreenda minha maneira de pensar, mas eu o amava demais Por coincidência, o carro que alugara era da mesma cor do seu. Seria um presságio? Talvez fosse, mas o que prenunciaria? Que encontraria o que esperava? E o que desejava realmente encontrar? Não Katriona, é claro! Ela estava morta havia muitos anos. Suspirando, Tara abriu o carro e preparou-se para partir. Embora bastante sólido, aquele carro não fora construído para fazer curvas em alta velocidade, em estradas estreitas e muito menos dirigido por uma motorista pouco concentrada no que estava fazendo. Quando ela percebeu que avaliara mal a velocidade para entrar na curva, era tarde demais para corrigir a direção. As rodas do carro travaram, impelindo-o na direção das árvores que ladeavam a estrada. Um casal idoso, cuja casa ficava a poucos metros da curva fatídica, ouviu o estrondo do carro se chocando contra a árvore, justamente na hora em que abriram a porta para deixar seu cachorro, também muito velho, sair para o costumeiro passeio noturno. Eles telefonaram no mesmo instante para a polícia. Depois, o policial foi procurá-los e lhes disse que, se tivesse corrido para o local do acidente, não poderiam fazer nada pela única passageira do carro. ― Ela deve ter morrido na hora ― afirmou o policial. Ele não lhes contou que teria de mencionar, em seu relatório, que a jovem estava sem o cinto de segurança e fora atirada para fora do carro. Era académico perguntar-se se essa proteção adicional teria lhe salvado a vida, pois a velocidade era excessiva e o choque fora frontal. Seu chefe assumira o comando e, como a jovem acidentada não trazia consigo nenhum documento, fora necessário comunicar-se com Londres, enviandolhes o número da chapa do carro a fim de identificá-la. Por esse motivo ele seria poupado da triste tarefa de avisar os parentes. Londres era uma cidade enorme e com muitos policiais. Eles que cuidassem do assunto!

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Garth estava saindo da cozinha, levando uma bandeja com o café da manhã para Cláudia, quando chegou o policial da Scotland Yard. Era um rapaz bastante jovem e sua fisionomia ingénua não combinava com a expressão solene e preocupada. ― Poderia me dizer se ainda é o proprietário do veículo com a chapa J850AYG? ― Sim, é o carro de minha filha ― respondeu Garth, sem sentir nenhum sinal de alarme ou qualquer premonição sinistra. O carro fora registrado em seu nome simplesmente porque a empresa pagava parte do seguro dos dois veículos que ele e a filha usavam para trabalhar. O policial desviou o olhar e respirou fundo antes de prosseguir. ― Sinto ter de lhe infortnar que seu carro... sofreu um acidente fatal. Disse que o veículo pertencia à sua filha, não? A jovem que estava dirigindo não tinha nenhum documento que a identificasse e, diante das circunstâncias... sou obrigado a lhe pedir que venha comigo para reconhecer o corpo. ― Garth? Ouvi a porta se abrir... é Tara? Cláudia parou na porta da sala e a esperança deixou de brilhar em seus quando viu o jovem policial. ― Oh, me desculpem... Subitamente, ela percebeu a expressão transtornada dos dois homens e empalideceu. ― O que houve, Garth? É Tara, não é? Algo aconteceu com ela! À medida que a voz de Cláudia se elevava e se tornava mais aguda, seu corpo parecia se encolher, como se já pressentisse o golpe que se abateria sobre ela. O sangue fugiu de seu rosto e precisou segurar-se no batente da porta para não cair. ― Houve um acidente ― disse Garth, sabendo que não poderia ocultar a verdade. ― Eu tenho de ir... ― Onde está ela? Em que hospital? ― Ela se dirigiu diretamente ao policial, mas o jovem continuou mudo, olhando para Garth, como se pedisse ajuda. ― Ela não foi... ― Garth aproximou-se dela e colocou o braço sobre o ombro curvado. Sua garganta parecia ter se fechado e sentiu uma dificuldade enorme em formular as palavras. ― Tara está... Ele a viu absorver a mensagem incompleta e percebeu que os olhos de Cláudia refletiam o mesmo horror e a mesma incredulidade que os seus. ― Acho melhor você ficar aqui, enquanto eu acompanho o policial, querida. ― Não! Eu vou também! A voz de Cláudia era surpreendentemente firme e ela lutava para não perder o controle diante das emoções que ameaçavam destruí-la. Tara morrera? Não, não era possível! Ela teria percebido, sentido que sua filha corria perigo. Mas a expressão consternada do jovem policial e o choque estampado na fisionomia de Garth a convenceram de que só podia ser verdade. Cláudia se sentiu como se tivesse aberto a porta da sala e caído em um terrível pesadelo. Não podia ser verdade! ― Onde...? Como...? ― começou a perguntar ela, enquanto Garth a conduzia na direção da porta.

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― Mais tarde, querida ― murmurou ele, apertando-lhe a mão. ― Depois falaremos. Os dois se sentaram lado a lado no carro de polícia. Imóveis e em silêncio, pareciam ter se transformado em estátuas de pedra diante da enormidade de sua perda. Era como se, por deterem seus movimentos e bloquearem a respiração, pudessem impedir que a trágica notícia recebida há instantes se tornasse real. O necrotério do hospital ficava no final de um corredor interminável. Os passos dos três ecoavam no espaço vazio, rompendo o silêncio como o rufar de um tambor que prenunciava a morte, agora tão próxima deles. Garth lembrou-se da noite, já muito distante, em que fora ver o filho que nunca chegara a viver. Tinha sido um dos momentos mais tristes de sua vida, nas não poderia nunca ser comparado ao sofrimento arrasador desse momento. Ele e Cláudia pararam diante da porta do necrotério, incapazes de dar mais um passo, mas o policial a abriu, afastando-se para deixá-los passar. O corpo estava em uma maca na parte mais distante do aposento e Garth estremeceu, baixando a cabeça, sem coragem de olhar ou de se aproximar mais. Seu treinamento de tantos anos do exército parecia não lhe valer de nada nessa situação trágica. Vira muitos homens mortos, mas agora mudava. Tara era sua filha. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele se voltou para Cláudia, a fim de ampará-la, pois devia estar sofrendo ainda mais. Para sua surpresa, ouviu a voz dela, clara e firme. ― Não é nossa filha. Não é Tara. Ele previra que seria difícil demais para Cláudia e talvez não fosse anormal ouvir uma mãe negar, até o último minuto, que a filha estava morta. Mas falariam sempre com essa voz firme e determinada? Seu olhar embaçado pelas lágrimas percebeu apenas os cabelos escuros e o corpo esguio sobre a maca. ― Clo... ― murmurou ele, aflito, segurando o braço de Cláudia. ― Minha querida, eu sei que é terrível... ― Não é Tara, Garth! ― Cláudia o interrompeu, soltando o braço. Antes que Garth pudesse detê-la, ela caminhou até a maca e olhou atentamente para o corpo. ― Não é nossa filha, querido. A voz de Cláudia se tornara mais suave, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas ao ver o rosto do corpo que ele ainda não tivera coragem de olhar. ― Acredite em mim, querido ― disse ela com a ternura de quem está lidando com uma criança assustada. ― Juro que não é Tara. Venha ver. Garth segurou a mão que ela lhe estendia e, embora com muita relutância, aproximou-se mais. Não chegou a pensar que Cláudia estava sendo muito forte e confortando-o em um momento difícil, quando deveria ser exatamente o contrário. ― Olhe bem, querido. Não é Tara ― repetiu ela mais uma vez. Então Cláudia teve mais uma atitude que o deixou confuso. Ela acariciou o rosto da jovem morta e curvou-se para beijá-la. ― Pobre criança. Não sei quem é, mas sinto uma enorme tristeza por ela e por sua família.

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Finalmente Garth criou coragem e olhou para a jovem, pela primeira vez. Sua expressão o traiu, pois o policial aproximou-se rapidamente. ― Reconhece a moça, senhor? ― Sim... E Estelle, uma jovem que trabalha em meu escritório. Ele tentou se controlar diante da tragédia, sempre mais brutal, quando se trata da morte de alguém tão jovem. Estelle podia não ser sua filha, mas tinha um pai, um homem que ainda não pressentia a tragédia prestes a se abater sobre ele, um homem que sofreria muito ao receber a notícia. Garth manteve alguns segundos de silêncio, em respeito ao pai que muito em breve começaria a sofrer, antes de sentir o alívio de não ter perdido Tara. ― Você disse que ela estava dirigindo o carro de minha filha? ― perguntou ele ao policial. ― Não entendo como... ― Talvez Tara tenha emprestado o carro para Estelle ― sugeriu Cláudia. Garth já havia pensado nessa probabilidade, mas ouvira certos comentários a respeito de Estelle e achava que possivelmente essa jovem "emprestara" por conta própria o carro de Tara. Talvez sua filha estivesse tão aflita por sair depressa do escritório que esquecera o chaveiro sobre a escrivaninha. Ou então, o que era ainda mais preocupante, Tara teria decidido rejeitar não apenas os pais, mas tudo que a ligasse ao passado, inclusive o carro, que fora um presente de aniversário. Saíra da vida deles e deixara as chaves à vista de todos. ― O senhor poderia me dar o nome completo da jovem? ― pediu o policial, com muita delicadeza. Estonteado, Garth comunicou-lhe o nome e o sobrenome de sua funcionária. Em menos de uma hora, fora avisado que sua filha morrera e descobrira que não era verdade. Ele já tivera antes essa estranha sensação de ter perdido o contato com a realidade, quando a bala de um franco atirador atingira o homem ao seu lado, em uma missão na Irlanda do Norte. Ele não fora atingido e se sentira ao mesmo tempo incrédulo, aliviado por continuar vivo e com um enorme complexo de culpa por ter sobrevivido. Ao se encaminharem para o carro de polícia, Garth percebeu que o rosto de Cláudia estava molhado por lágrimas. ― É o choque, querida. ― Ele passou o braço por sobre os ombros de Cláudia e a puxou para junto de seu corpo. ― Sei como você está se sentindo. ― Não é só isso, Garth. Estou chorando por aquela pobre garota... e pela mãe dela. Quando a vi e certifiquei-me de que não era mesmo Tara, tive uma súbita revelação. O pior que pode acontecer comigo não é perder o amor e a confiança de minha filha. O mais dramático e a dor mais insuperável seria encontrá-la em um necrotério. As lágrimas continuavam a deslizar pelo rosto pálido de Cláudia. ― Talvez Tara nunca venha a me perdoar pelo que fiz, talvez eu tenha de viver o resto dos meus dias sem ela, mas ao menos saberei que minha filha está viva, que vive e pode. ser feliz. Eles já estavam se afastando do local, dentro do carro de polícia, quando Cláudia encarou o marido com um olhar mais confiante.

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― Eu sabia, mesmo antes de ver o corpo, que não podia ser minha filha. A vida de Tara não poderia ter terminado sem que eu sentisse algo... uma premonição, um aviso. Simplesmente não seria possível. ― É o famoso sexto sentido materno? ― brincou Garth, com um sorriso de ternura. ― Tara é minha filha ― declarou Cláudia com firmeza. ― Sinto por ela um amor de mãe e nossas existências estão entrelaçadas de uma maneira que não comporta qualquer explicação. No momento em que peguei no colo, ainda com poucas semanas de vida, e seus olhinhos sérios me fitaram, eu soube que éramos uma só. Não poderia amá-la mais, mesmo que a tivesse carregado em meu útero. ― Eu sei disso, querida. E pode crer que, no fundo, Tara também sabe. O policial havia pedido a Garth que lhe fornecesse todas as informações possíveis sobre Estelle. Ele despediu-se de Cláudia, na porta de seu apartamento, e depois de lhe dizer que telefonaria mais tarde, quando ela já estivesse de volta a Ivy House, seguiu para a central de polícia. Da janela da cozinha, Sophie avistou o carro de polícia que se aproximava e hesitou, por uma fração de segundo, antes de chamar John, que estava na sala. Intuitivamente, soube que era uma notícia muito trágica. Quando o carro parou diante da casa da fazenda, ela teve a impressão de que o ar se tornou mais pesado, de uma imobilidade funesta. Por coincidência, uma nuvem escondeu, momentaneamente, a luz dourada do sol. O policial deu a notícia com toda a delicadeza de que era capaz, mas Sophie viu, pela expressão e pelo olhar do marido, o quanto ele estava despreparado para receber um choque como aquele. John empalideceu e um tremor de angústia percorreu seu corpo. ― Não! Não pode ser... Estelle não... Imediatamente Sophie aproximou-se do marido e segurou suas mãos trêmulas. ― Isso não devia ter acontecido ― murmurou ele, com os olhos cheios de lágrimas. ― Estelle não podia ter morrido assim. Minha pobre criança... Era tarde demais para desejar mudanças ou se arrepender do que não fora feito. Sophie reconhecia que a morte os privara do direito de lutar por um melhor relacionamento. Nunca mais poderiam ajudar aquela jovem que se perdera nos caminhos da vida e não amadureceria para se reconciliar com o pai. Ela murmurou, em silêncio, uma prece por Estelle. Pediu a Deus que a jovem inquieta e insatisfeita finalmente encontrasse, na morte, a paz que nunca tivera em vida. Tara já estava acordada quando o telefone tocou, na hora marcada para despertá-la. Na noite anterior, chegara a sair de Dorchester e seguir alguns quilômetros pela estreita estrada rural que a levaria a seu destino, mas mudara de ideia, subitamente, e retornara para o hotel. Ela não sabia se agira assim porque finalmente ouvira a voz do bom senso avisando-a que sua busca se tornaria mais fácil durante o dia. Ou teria desistido daquela viagem dentro da noite porque fora tomada por um medo irracional do que iria encontrar no fim da jornada?

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Na verdade, não poderia ser nada pior do que a revelação de suas origens. Criada por um pai já velho demais para ter filhos ou para compreendê-los, Katriona fugira de casa quando ele se recusara a perceber, ou nem sequer notara, que seu comportamento rebelde era um pedido mudo de amor e atenção. Longe de casa, se envolvera com drogas e passara a se prostituir para sustentar o vício. Sem dúvida, era uma história bastante banal e comum demais para causar qualquer espanto, uma característica da vida moderna que provocaria apenas um encolher de ombros indiferente por parte de quem ouvisse essa história e não tivesse nenhuma ligação emocional com os personagens envolvidos. Entretanto, Tara não era simplesmente uma espectadora. Além disso, havia Ryland. Ryland... Como ele se sentiria quando contasse o que lhe fora revelado? Tara sabia que era amada e, depois de sua reação na tarde anterior diante de um mesmo tipo de vida levada por Katriona, passara a ter certeza de que jamais seguiria os passos maternos. Aprendera com Cláudia a ter compaixão pelas outras pessoas, as menos favorecidas pela sorte, a compreender e até desculpar suas fraquezas. Também reconhecia que nenhuma dificuldade, por mais árdua que fosse, a levaria a abandonar os ideais em que acreditava com muito fervor. Na verdade, o amor absoluto e incondicional de Cláudia lhe dera o que o pai de Katriona jamais haviam conseguido lhe proporcionar. Tara sabia, e não duvidava nem por um segundo, que era muito amada. Pelos pais, por Ryland e, acima de tudo, por si mesma. Ela levantou-se rapidamente da cama. O dia estava muito claro, ensolarado, e não havia nenhuma nuvem no céu azul que maculasse a perfeição daquela manhã perfeita. Se quisesse, poderia também afastar todas as nuvens do seu horizonte pessoal tomando a decisão muito simples de abandonar a busca e voltar para casa. Poderia, como Cláudia, carregar o segredo de suas verdadeiras origens sobre os próprios ombros, sem nunca dividir o peso com ninguém mais. Tudo continuaria como sempre fora e Ryland nunca seria colocado na desconfortável posição de mostrar-se honrado e contar a verdade sobre a futura esposa para a família dele. Bastaria escolher esse caminho. Entretanto Tara sabia que simplesmente não possuía esse tipo de força e jamais conseguiria se calar para sempre. Tara deixou o hotel no meio da manhã. Encontrou o vilarejo com muita facilidade e, depois de estacionar o carro, passeou um longo tempo pelas ruas tão calmas que pareciam ainda adormecidas. Ela já havia passado pelo colégio no qual seu avô fora professor. Darlington ficava ha entrada do vilarejo e a enorme casa de tijolos vermelhos, rodeada por gramados amplos, pertencia agora a uma organização multinacional. A escola deixara de funcionar há dez anos. Enquanto caminhava pelas ruas, Tara tentava imaginar Katriona passando pelos mesmos lugares, embora Cláudia tivesse lhe dito que a jovem vivia na escola, onde o pai morava seu próprio apartamento. Sua mãe teria feito amigos naquele pacato vilarejo, fizera parte da comunidade, participando de

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todos os eventos locais, como ela? "Ou sempre se sentira deslocada, uma estranha que era rejeitada pelas outras crianças por ser diferente? A igreja ficava no fim da rua principal. Pequena e muito antiga, a construção de pedra de um amarelo quase dourado, era o tipo de igreja na qual todas as noivas sonham em se casar. Os bancos de madeira e a pesada porta de carvalho pareciam pedir guirlandas de flores e a simplicidade das paredes nuas evocava a solenidade de votos que deveria durar para sempre. Tara caminhou sem pressa até a porta e, empurrando-a, penetrou no interior da igreja. A luz da manhã ensolarada se infiltrava através dos vitrais coloridos, banhando a nave de tons rosados. Nos altares, as flore e as velas indicavam que os fiéis ainda cuidavam muito bem daquele templo de religiosidade. O chão de pedra gasta era mais uma testemunha de uma fé que durava há séculos. Sua mãe conhecera essa igreja e talvez tivesse parado exa-tamente no mesmo lugar em que ela estava agora. Para sua surpresa, Tara não sentiu a emoção intensa que imaginara, mas apenas uma curiosidade racional. Cláudia lhe dera uma foto de Katriona e, ao olhar agora a jovem esguia e de cabelos escuros como os seus, continuava a ver apenas um retrato antigo, mesmo naquele local que deveria torná-la mais presente. Por mais que tentasse, Tara não conseguia imaginar a jovem da foto como um ser humano de carne e osso, não tinha condições de fazê-la viver em sua mente. Entretanto, o mais revelador era a sua reação inesperada: quando sua mente formulava as palavras "minha mãe" apenas a imagem de Cláudia surgia imediatamente diante de seus olhos, não a de Katriona. Pela porta lateral, Tara avistou o pequeno cemitério da igreja. Sem pressa, ela caminhou na direção da saída e parou, subitamente tensa, ao avistar as costa da mulher imóvel junto de um dos túmulos. Ao sair do apartamento de Garth, Cláudia pretendia ir para Ivy House e não para Dorset, embora suspeitasse que Tara devia ter se dirigido para lá. Tinha plena consciência de que não tinha mais o direito de ser parte da vida da filha. Na verdade, fora Tara quem comunicara a ela e a Garth que não os queria mais em sua vida! Mas Cláudia não tinha forças para resistir a algo que parecia chamá-la para o vilarejo e sabia que não o fazia apenas por causa da filha. A dona da loja de flores sorriu para a visitante, pois a conhecia há muito tempo. Afinal, essa bela mulher costumava vir ao vilarejo, ano após ano, sempre escolhendo cuidadosamente os arranjos florais mais bonitas. Mas hoje ela parecia tensa e nervosa, sem vontade de conversar e obviamente com pressa, pois pagou os botões de rosa sem notar quais eram os mais bonitos e logo foi para o túmulo que costumava visitar. Cláudia não perdera tempo nas ruas do vilarejo, como Tara fizera, e nem entrou na igreja. Foi diretamente para o túmulo de Katriona que ficava quase junto ao muro externo, formado por pinheiros que protegiam as lápides do vento constante que vinha do campo aberto. A lápide era de pedra. Dois pequenos anjos esculpidos ladeavam os dizeres em letras góticas. Katriona Spencer

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Filha de Robert e Patrícia Mãe de Tara Descanse na paz do amor Abaixando-se, Cláudia começou a retirar as flores do pequeno vaso de cobre ao pé do túmulo. ― Nunca tive a intenção de mentir ou enganar, Katriona ― murmurou Cláudia. ― Mas Tara tem toda razão, sabe? Senti sempre muito medo de perdê-la para você, como já havia acontecido com Garth. Talvez continue a não me acreditar, mas sempre me achei sem graça e pouco bonita quando me comparava à sua vivacidade e à sua beleza. Eu sempre invejei seu ar de deslumbramento diante da vida e sua energia con-tagiante. Sua filha também possui essa qualidade mágica e muito especial. Ela teria ficado fascinada se a conhecesse... Cláudia arrumou as flores que comprara, com movimentos delicados mas precisos. ― Mas ela errou ao dizer que era apenas uma segunda escolha, uma substituta para um bem mais precioso. Tara seria e sempre será a primeira em meu coração. Você sabe que é verdade, não? Viu quando a tomei nos braços pela primeira vez e percebi que nascera um amor sem o limite dos laços de sangue entre mim e aquela criança de poucas semanas. Lembra-se daquele dia? Enxugando as lágrimas, Cláudia deslizou a ponta dos dedos no nome de Katriona, esculpido na pedra da lápide. ― Tara foi a dádiva mais preciosa que a vida me deu. Foi tão fácil amá-la, tão natural e instintivo! Durante tantos anos a rodeei de cuidados e de proteção talvez excessiva. Contei como sofri e me preocupei quando ela teve pneumonia e também pouco antes de ser operada para tirar as amígdalas, não se lembra? Você achou graça em mim, como eu previa. Assim como riu enquanto eu me preocupava com a necessidade de liberdade da adolescente que passava de criança a mulher diante de meus olhos. Deixe-a crescer, foi o que me disse naquela época. Toda garota precisa ser livre... Cláudia não conteve um soluço. ― Passei tantos anos tentando protegê-la e, no fim, fui eu quem mais a feri e prejudiquei! Devia ter contado tudo, eu sei. Ao me calar, roubei e enganei as duas. Tara está certa pois sempre teve todo o direito de saber quem era você, de tornar-se parte de sua vida e eu lhe neguei essa possibilidade. Mas nunca deixei de sentir ciúmes e um medo terrível de que ela a amasse mais do que a mim. As vezes, ouvia sua voz dizendo... "é claro que vai me amar, porque é minha filha!" Uma voz clara soou às costas de Cláudia, sobressaltando-a. ― Mas não é verdade. Você é minha mãe. Cláudia virou-se, enrubescendo diante do olhar direto de Tara. ― Eu não sabia... o que está fazendo aqui, Tara? ― Eu estava saindo da igreja quando a vi passar. Aproximei-me e... fiquei ouvindo você conversar com ela. ― Eu admito que você tem toda razão de estar com raiva de mim ― murmurou Cláudia desviando os olhos.

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― Tenho mesmo ― interrompeu Tara ― e estou bastante brava, mas... compreendo sua posição e sinto muito ter dito que você não me amava de verdade e só me aceitou porque eu era sua única opção. Sei que não é verdade. ― Oh, querida... se você soubesse o quanto sentir menos do que um amor infinito é e sempre será impossível para mim! ― O que mais você contou a ela a meu respeito? ― perguntou Tara, apontando o túmulo de Katriona. ― Eu contei tudo ― disse Cláudia, sem hesitar. ― Relatei todos os seus primeiros passos, desde que começou a andar. Falei que sua primeira palavra foi "linda" e como senti um ciúme enorme porque achei que você estava se referindo à sua verdadeira mãe. Ela foi realmente muito bonita, Tara. Vocês são parecidas, mas tem algo diferente... Katriona era como um brilhante, faiscante, com ângulos marcantes e... ― E dura ― completou Tara, com o sorriso de uma mulher mais adulta e mais sábia. ― Mas você se assemelha mais a uma esmeralda, com um brilho cálido e iluminado, querida. ― Enquanto você é como uma pérola ― murmurou Tara, com meiguice. ― Suave, pura e dotada de um infinito brilho interior... Tara ficou subitamente séria, criando coragem para fazer mais uma pergunta, talvez a que mais a preocupasse. ― Acha que Katriona queria ter um filho com o seu marido? Talvez por uma espécie de... vingança? Cláudia respirou fundo, sabendo que não mentiria mais para a filha. ― Eu realmente não sei, Tara. Katriona era temperamental e mudava de estado de espírito com muita rapidez. Talvez não tenha entrado no apartamento com essa ideia, mas encontrou Garth... e deve ter pensando em me ferir, de alguma maneira. Eu tinha tudo e ela não tinha nada. ― Não se importa de falar nesse assunto? ― Não mais, querida. Eu sofria, quando acreditava que Garth tivera um relacionamento amoroso com Katriona. Nessa época, sentia um verdadeiro terror em pensar que você, como ele, podia gostar mais dela do que de mim. ― E por que eu faria isso? ― perguntou Tara, surpresa. ― Porque ela era sua mãe e eu não passava de... uma substituta. ― Mas você mesma me afirmou que o amor não depende de laços de sangue! Disse que, quando nos olhamos, criou-se uma ligação especial entre nós duas. ― É verdade. Você me fitou, como se estivesse me escolhendo e pedindo para ser protegida e amada por mim. ― Talvez eu pressentisse que você me daria esse amor infinito. ― Eu sempre quis acreditar nisso, querida ― murmurou Cláudia, suspirando. ― Mas nada altera o fato mais grave... cometi um terrível erro, agi com inconsciência ao levá-la para casa, como se a estivesse roubando. Não posso pedir ou esperar que me perdoe. Só gostaria que entendesse o quanto a amo. Não seria possível amar mais uma filha, mesmo se ela tivesse sido gerada em meu útero. ― Eu entendo... e acredito ― declarou Tara, com uma inesperada solenidade. Depois da conversa que tivera com a mulher, no trem de Dorchester, Tara admitira que sempre havia sido muito amada.

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― Você veio de carro? ―- perguntou ela a Cláudia. ― Sim. Por que? ― Pode me dar uma carona de volta para Londres? E no caminho... ― Tara sorriu maliciosamente ― o que acha de me explicar por que passou os últimos dias no apartamento de um homem, com o qual não é casada? Vendo a expressão comovida de Cláudia, Tara a abraçou, carinhosamente. Entretanto, enquanto voltavam para o carro, Cláudia notou que a filha se mantinha a uma certa distância dela, em vez de segurar seu braço, como no passado, e não a havia chamado de mãe nenhuma vez.

CAPITULO XXII - Estão chamando os passageiros do I meu vôo para o embarque ― disse Ryland, abraçando a mãe e depois o pai. ― Voltarei logo que tiver conversado com Tara. O enterro da tia havia sido no sábado e Ryland passara a segunda-feira em reuniões com os departamentos da empresa, após a leitura formal do testamento, que ocorrera no início da manhã. Como todos já sabiam, ele era o herdeiro da editora e de todo o património deixado por Martha. Ryland acomodou-se na poltrona, preparando-se para enfrentar o longo vôo, e percebeu que já não pensava mais no que deixara para trás. Com um certo remorso, admitiu que sua mente se concentrava no encontro, agora mais próximo, com Tara. Ele quase não suportara as saudades! Talvez tivesse se ressentido mais porque não conseguira se comunicar com Tara por telefone. Soubera por intermédio de Maxine que Cláudia havia tirado alguns dias de folga e acabara deduzindo que ela convencera a filha a acompanhá-la. Só podia ser isso! Se ele fosse honesto consigo mesmo, admitiria que sentia um certo ciúme da ligação entre Tara e a mãe. Sempre fora muito amigo de seus próprios pais, mas nunca existira um laço tão estreito entre eles. Talvez fosse assim porque ela era filha única, mas não se tratava da atitude excessivamente protetora e sufocante de uma mãe possessiva e uma filha dependente. As duas tinham um amor muito especial! Por sorte, poderiam viajar com muita frequência para a Inglaterra e Cláudia certamente também iria muitas vezes para Boston, visitar a filha. Cláudia era uma mulher independente, capaz de dirigir sua própria vida. Pelo que observara, estava sempre ocupada e não tinha muitas horas livres para encher com atividades que não a interessassem. Embora ela e sua mãe fossem muito diferentes, Ryland acreditava que se dariam muito bem. Tara... Ele fechou os olhos, ansioso para que as horas passassem depressa e logo a pudesse tomar nos braços. Então lembrou-se do motivo principal de sua ida para Londres e estremeceu. Qual seria a reação dela diante do que iria lhe contar?

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Tara voltou para casa bem, tarde. Seus pais havia insistido em que fossem jantar juntos, pois Garth queria que ela servisse de testemunha quando fosse pedir Cláudia em casamento. A noite fora agradável e o pedido de casamento, após dez anos de separação, tinha sido comovente. A visão da felicidade dos dois a lembrava do momento difícil ainda à sua espera. Como iria ocupar o imenso vazio que Ryland deixaria em sua vida? Agora compreendia quanto Cláudia a amava e por que agira daquela forma. Conseguira superar uma dor aguda, mas devia preparar-se para outra, talvez ainda mais intensa. Decidira não revelar à mãe o que pretendia fazer, a fim de não lhe provocar um enorme complexo de culpa, porém esperava que ela viesse a compreender por que tinha de terminar seu relacionamento com Ryland. Depois de muito pensar e se desesperar, concluíra que jamais se conformaria de ser a culpada por um desentendimento entre Ryland e a própria família. Tia Martha e todos os demais membros desse clã pertenciam à elite de Boston, uma sociedade que se considera a mais aristocrática dos Estados Unidos e dá uma importância enorme a árvores genealógicas e antepassados célebres. Como se sentiriam se um deles se casasse com uma garota sem raízes ilustres? Tara já sabia qual seria a resposta. Também não ignorava quanto Ryland a amava, mas o amor, muitas vezes, não é o suficiente! Evitara ligar para ele em Boston, pois temia que sua voz a traísse. Se Ryland a ouvisse falar, perceberia que havia algo errado e insistiria em saber do que se tratava. Tara preferia esperar para contar-lhe tudo pessoalmente. Na verdade, queria tocá-lo mais uma vez antes de lhe revelar a verdade e desaparecer definitivamente da vida dele. Ela queria Ryland ao seu lado para sempre, mas não era mais possível. Tara fechou os olhos e lutou contra as lágrimas que seriam apenas as primeiras de muitas ainda por vir. Já passava das três da manhã quando Ryland entrou no apartamento de Tara. O avião atrasara, porque não pudera aterrissar em Heathrow e depois tinha havido um problema qualquer com as bagagens e ele fora obrigado a perder mais tempo. Largou a mala e o paletó no meio da sala; não acendeu luz alguma para chegar ao quarto. Percorreu o corredor às escuras e entreabriu a porta. Tara estava dormindo e o corpo em repouso parecia ocupar toda a cama. Os cílios muito longos formavam uma sombra em semicírculo na pele rosada do rosto, e os cabelos brilhantes se espalhavam pelo travesseiro, livres e revoltos. Ele engoliu em seco ao ver o seio perfeito que escapara dos limites da camisola. Desde o primeiro olhar se encantara com as curvas suaves de Tara e ansiara por tocá-la... como agora. Ryland começou a se despir sem desviar .os olhos dela. Não queria sequer virar a cabeça, pois temia que ela desaparecesse, como se fosse uma miragem criada apenas pelo seu desejo de vê-la. Então ele notou o pé delicadamente arqueado, que escapara por entre as dobras do acolchoado. Rindo baixinho, segurou-o nas mãos. Tara detestava que mexessem em seus pés, ou pelo menos era o que sempre dizia. Sentia

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tantas cócegas que a simples respiração dele, quando próxima demais, provocava-lhe acessos de riso. Com muito cuidado, Ryland curvou-se e beijou um dos dedos. Tara não acordou, mas seus lábios delicadamente sensuais se curvaram num início de sorriso. Ainda rindo, ele continuou a beijar a perna esguia, até sentir que o corpo de Tara estremecia. A carícia penetrava as densas camadas de sono e ela suspirou de prazer. ― Oh! ― exclamou ela, subitamente sentando-se na cama e olhando para Ryland com incredulidade. ― Deus meu! Estarei sonhando ou... Você voltou mesmo? Eufórica, Tara jogou-se nos braços do namorado. ― Quando você chegou, Ryland? ― Acabei de entrar ― murmurou ele, com voz rouca de desejo. ― Por que você tinha de acordar? Eu estava adorando beijar sua perna. Pretendia continuar subindo até... ― Não era nada disso! Senti que mexia no meu pé. Confesse! Estava ou não me torturando? ― Por falar em tortura... tem ideia da falta que senti de você, amor? ― Sentiu mesmo? Acho que não acredito... Os beijos, tão esperados, eram intensos e ardentes. Logo não havia mais momento algum para palavras entre as carícias que se tornavam mais exigentes. O quarto voltou a ficar tão silencioso com quando Tara estava adormecida, mas agora ouvia-se o suave sussurro de suas respirações alteradas, o roçar de suas peles e de suas bocas se tocando. Tara arqueou o corpo quando sentiu as mãos de Ryland tocarem seus seios, e um suspiro de prazer ecoou no quarto quando os lábios dele percorreram o mesmo caminho e se apossaram de um mamilo rijo. Ele não tinha pressa alguma, pois passara todas as noites de ausência antecipando o momento da volta. Tara adorava ser acariciada por um longo tempo, enquanto ambos esperavam, vibrando de prazer, pelo momento da posse definitiva. Mas naquela noite o desejo foi mais forte. ― Ry... eu não posso esperar mais. Quero você agora... A madrugada já trazia a cor da manhã quando Ryland, finalmente saciado, respirou fundo, criando coragem para enfrentar o momento difícil que o esperava. Mas ele não imaginara que Tara fosse impedi-lo de começar. ― Não, Ry! ― pediu Tara, aflita. ― Deixe-me falar antes, por favor! Há algo muito importante que preciso lhe dizer. A tensão do corpo de Tara, ainda em seus braços, o assustou. Aliás, a ansiedade na voz dela já seria suficiente para alertá-lo de que algo muito grave acontecera. Uma onda de pânico o envolveu, pois pressentia que o amor dos dois estava seriamente ameaçado. Embora tentasse afastar esses pensamentos sombrios de sua mente, Ryland lembrou-se de que não conseguira entrar em contato com Tara durante toda a sua ausência. Como ela também não lhe telefonara, começara a desconfiar de que, de alguma forma, a verdade a seu respeito fora descoberta.

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Eles haviam partilhado de momentos de total intimidade e Tara se entregara a ele sem reservas, como sempre. Mas agora sentia que ela se distanciava emocionalmente, como se já estivesse em um outro mundo, enquanto seus corpos permaneciam abraçados. ― Tara... eu preciso falar... ― Não, Ry. Não diga nada agora e me ouça com atenção. Talvez seja o momento mais difícil que eu terei de enfrentar e preciso que preste atenção e... tente compreender. Ela ensaiara cada palavra dessa conversa, em sua mente, dia após dia, mas ainda não se sentia à vontade para falar tudo sem gaguejar. Previa que a cada instante iria hesitar, calar-se enquanto procurava a palavra certa e, durante todo o tempo, evitaria olhar para Ryland. Não queria ver o rosto tão amado, iluminado pela luz ainda fraca da manhã que chegava. Se o fizesse, perderia a coragem e não terminaria. Tara respirou fundo e começou a falar. ― Meu Deus! Por que eu não estava ao seu lado nesse momento?! ― exclamou Ryland, interrompendo-a durante o relato. ― Por favor, não me odeie por não ter estado aqui e... ― Eu nunca poderia sentir outro sentimento por você, querido, a não ser amor ― murmurou ela, já sofrendo por saber que logo seria Ryland quem a odiaria. Tara percebeu que o silêncio de Ryland depois de ter lhe revelado quem era sua verdadeira mãe era diferente, carregado de tensão, mas ele não a interrompeu nem fez qualquer comentário. ― Por um certo tempo, eu senti ódio de Cláudia pelo que fora feito comigo, mas acho que agora a entendo um pouco melhor. Talvez tenha sido por causa da conversa que tive com a mulher, no trem para Dorchester. Parece que foi um encontro predestinado... um sinal que o destino colocou em meu caminho, talvez. Ela havia adotado uma menina e disse tantas coisas importantes... Ela calou-se, percebendo que estava falando demais, apenas para adiar o momento que mais temia. Então ergueu o queixo, num gesto de desafio corajoso, e não recuou. ― Pensei muito a nosso respeito, durante sua ausência, e... ― Ela abaixou a cabeça, fugindo do olhar de Ryland. ― Não podemos mais nos casar, entende? Não seria justo com você. Sei que vai me dizer que não faz a menor diferença, que ama a minha pessoa, e que não se interessa em saber quem são meus pais e que continuo sendo a mesma, não importa quem tenha sido minha mãe. Se só existíssemos nós dois, talvez fosse possível, mas não é assim. E preciso pensar em sua família e em seu trabalho. Não sou mais o tipo de mulher que eles desejariam para sua esposa. ― Por Deus, Tara! Você não sabe que é muito mais importante para mim do que qualquer pessoa ou qualquer coisa no mundo? Embora Tara continuasse com a cabeça abaixada e não pudesse ver o rosto de Ryland, ouvia a paixão e a angústia na voz dele. ― Você é a mulher que eu amo, a única que amarei em toda a minha vida, e todo o resto pode ir para o inferno! ― Está me dizendo isso agora e sei que realmente acredita em suas palavras. ― Tara finalmente encarou Ryland. -― Mas também tenha plena consciência

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de quanto sua família é importante em sua vida e não posso sequer pensar que, algum dia, se sinta culpado por ter se afastado deles e venha a se arrepender por ter se casado comigo. A sua tia... ― Minha tia morreu, Tara ― declarou Ryland, com uma expressão repentinamente sombria. ― Ela foi morta pela própria filha. Ele não pretendia contar tudo a Tara de uma forma abrupta demais e percebeu que a chocara profundamente com aquelas palavras tão pouco pensadas. ― Foi por esse motivo que tive de voltar para casa com tanta pressa. Rapidamente, Ryland contou a Tara tudo que havia acontecido na ilha. ― Oh, querido! Deve ter sido terrível para todos vocês... ― Sem dúvida, mas... há algo mais, Tara. Eu devia ter lhe contado tudo semanas atrás. Ela sentiu que o pânico fazia seu coração disparar. Sabia, pelo tom de voz e pela expressão sombria, que Ryland iria lhe revelar algo muito grave. Talvez ele tivesse sido casado antes... ou vivido muitos anos com uma mulher com quem tivera filhos... Desesperada, tentava antecipar a notícia que receberia e que certamente a magoaria demais. ― Ryland... eu acho melhor... ― Não diga mais nada e me escute, por favor ― pediu ele, tenso. ― Você acabou de me contar as circunstâncias de seu nascimento e eu não menti ao dizer que te amo demais. Continua sendo a garota maravilhosa por quem me apaixonei e realmente pouco me importo com quem tenha sido sua mãe verdadeira. Mesmo se me contasse que seus pais eram criminosos, não faria a menor diferença, entenda. O olhar de RyLand revelou a Tara que ele estava sendo absolutamente sincero. A certeza de que era tão amada tinha o dom de afastar todos os sofrimentos anteriores, como um bálsamo poderoso capaz de devolver a vida. Mas, ao erguer a mão para acariciar o rosto querido, sentiu que ele a impedia de tocálo. ― Espere, pois ainda não ouviu tudo que preciso lhe dizer. Quando me falava sobre Katriona, você afirmou que sofrera mais porque Cláudia lhe ocultou a verdade sobre uma parte muito importante de sua vida. Ryland hesitou antes de revelar o segredo que poderia destruir seu relacionamento com Tara. ― Pois eu também ocultei uma verdade sobre minha vida. Guardei segredo de um aspecto muito importante e... Sei que devia ter contado tudo e realmente queria falar com você antes, mas senti medo de perdê-la. ― Sobre o que está falando? ― perguntou ela, num fio de voz. ― Conversamos muitas vezes sobre minha obrigação de assumir o comando da empresa familiar, quando minha tia morresse, não? ― Claro! Você me contou que veio para a Inglaterra a fim de aprender mais sobre as editoras inglesas, mas não percebo o que isso tenha a ver com essa verdade que me ocultou... ― Eu omiti um detalhe. Além de herdar a maioria das ações, assumindo assim o controle da empresa, sempre soube que também seria o único herdeiro do restante do património pessoal de tia Martha.

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Tara o fitou, sem entender realmente o que ele queria dizer, e Ryland apressou-se a explicar o significado de ser o herdeiro da tia. ― Martha era uma mulher muito rica. Ela era filha única de um milionário e trouxe uma grande fortuna ao casar-se com meu tio. Não estou falando de uma herança razoável, com a qual possamos viver bem e deixar algumas propriedades para nossos filhos. Na verdade, o património de minha tia é de muitos milhões de dólares. ― Milhões... de dólares? ― Tara o fitou, boquiaberta. ― Está mesmo falando a verdade? Então era por isso que sua tia não teria me aceitado para seu sua esposa? ― O dinheiro não teria a menor importância na opinião de tia Martha a respeito da mulher com quem eu viria a me casar, algum dia. Ela não era esse tipo de pessoa. Na verdade, preocupava-se acima de tudo com a filha, com o amor perigoso e compulsivo que Margot sentia por Lloyd. Esses problemas a deixaram muito ferida e abalada. Talvez por esse motivo eu tenha crescido com o sentimento de que deveria recompensá-la me casando com uma mulher... ― Que sua tia pudesse aprovar ― completou Tara, com voz muito grave. ― Pois ela nunca teria me aprovado, Ryland. ― Você se engana. Martha teria adorado você, querida. ― Não é verdade e sei que você também tem dúvidas a esse respeito. Se não tivesse, jamais precisaria me falar sobre a fortuna de sua família. Por que nunca me contou nada antes? Temia que eu fosse realmente uma caçadora de dotes e... ― Não seja tola ― interrompeu ele, irritado. ― Calei-me exatamente pelo contrário. Você sempre falou sobre sua própria infância e como queria que nossos filhos crescessem com a mesma liberdade. É por isso que eu sabia quanta diferença iria fazer a minha fortuna em seus planos para o futuro. Estamos vivendo em tempos difíceis, Tara. Na maior parte das vezes, a proteção que precisamos dar a nossos filhos significa quase mantê-los em uma prisão. Eu tive sorte, pois meus pais nunca foram milionários, mas nós iremos enfrentar uma situação diferente. Martha era uma mulher muito rica mesmo. ― Portanto, agora você é um homem... muito rico mesmo! ― Eu queria lhe contar tudo, mas também desejava protegê-la e dar tempo para o nosso amor crescer. Tara lutou contra as lágrimas que a tornariam mais fraca e menos combativa, pois precisava de todas as suas forças. ― Eu devo ter alguma falha grave para que todos queiram me proteger! ― explodiu ela. ― Você e meus pais realmente me consideram tão ingénua ou tão fraca a ponto de não ser capaz de fazer meus próprios julgamentos? Pensam que não posso proteger a mim mesma? ― Não é a sua vulnerabilidade que nos leva a agir assim, Tara. É nosso medo de perdê-la ― explicou ele, comovido. ― Nós nos tornamos vulneráveis porque te amamos demais, entenda! Temos plena consciência de que você é única, especial e insubstituível, e por isso tememos não merecer seu amor. Sentimos medo de não ser bons o bastante para você, querida. Tara nunca vira a situação sob aquele ponto de vista e ficou sem voz diante da intensidade do amor de Ryland... e também de seus pais.

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"Tive medo de contar a verdade e perder você" dissera Ryland, e Tara lembrava-se de que Cláudia praticamente usara as mesmas palavras. Pois ela só podia dar a mesma resposta para os dois. ― Como ousa duvidar de mim? ― perguntou ela, num tom desafiante. ― Como tem coragem de achar que o meu amor é menos forte, menos duradouro e oferecido menos livremente do que o seu? Eu amo você como pessoa e pouco me importo se tem alguns centavos ou muitos milhões para me sustentar! Aliás, também não estou preocupada, no momento, com os problemas que você terá de enfrentar no futuro por causa dessa fortuna toda! Tara estava realmente enfurecida e sua voz se tornava mais aguda por causa da indignação. ― Não quero mesmo que nossos filhos cresçam protegidas por uma redoma de cristal que os separe do resto da humanidade, e você sempre soube disso. Mas também não admito que sejam concebidos por um pai que não seja o meu grande amor. Eu te amo muito, Ryland, e acabaremos descobrindo um jeito de lhes dar a liberdade necessária para aprenderem a viver como seres humanos completos, a darem valor a si mesmos e não ao dinheiro que herdarão, algum dia. A voz de Tara se tornava mais exaltada a cada instante que se passava e seu rosto parecia transfigurado pela emoção. ― Termine tudo por causa de minhas origens, se quiser, mas não para me proteger ou por pensar que não serei forte o suficiente ou por achar que meu amor não durará para sempre! ― Terminar tudo? Oh, meu amor! Eu não suportaria viver sem você. Nunca! Ryland a tomou nos braços e calou todos os protestos de Tara com beijos que prometiam um renovar da paixão. Mais uma vez, a conversa deixava de ser importante diante da urgência do desejo. ― Agora tente me dizer que não me ama ― murmurou Ryland, ainda mantendo nos braços o corpo saciado de Tara. ― Mas era você que duvidava do meu amor, não eu! ― disse ela, antes de ter coragem de prosseguir ― O dinheiro... ― Esqueça o dinheiro! ― exclamou Ryland, aborrecido. ― Eu preferia doá-lo todo, só para não correr o risco de perder você, mas tenho obrigações para com meus pais... ― Talvez pudéssemos comprar uma casa no campo ― murmurou ela, sonolenta, como se não tivesse ouvido o comentário explosivo de Ryland. Ele tinha razão, pensou Tara, aconchegando-se mais nos braços fortes que a envolviam. Achava difícil pensar em uma vida com excesso de dinheiro, mas o mais importante era viver ao lado do homem a quem amava. Se os dois pudessem estar juntos, os problemas potenciais de uma fortuna grande demais poderiam ser resolvidos. ― O campo é o lugar ideal para criarmos nossos filhos com uma certa liberdade ― prosseguiu ela. ― E também poderíamos dar um pouco dessa fortuna toda para algumas instituições de caridade... ― Claro que sim. Minha tia ajudava muitas e tenho certeza de que procurarão você para ocupar o lugar dela nos comités filantrópicos. ― Eu pensei em... ajudar jovens que...

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― Achei que você iria procurar algo nessa linha de ajuda, querida. Mas, antes de tudo, precisamos nos casar, concorda? E o mais importante e eu não quero esperar muito. Que tal amanhã? ― Calma, Ry! Tenho certeza de que minha mãe vai querer um casamento tradicional, com todos os detalhes e requintes. ― Pode crer que a minha também! ― A pequena igreja, em Dorset, onde Katriona está enterrada... é muito linda ― murmurou Tara, embaraçada. ― Cláudia sempre será a única mulher no mundo em que posso pensar como mãe, mas essa pobre garota também é uma parte de mim... de minha história. ― Nós nos casaremos onde você quiser, amor. Uma hora mais tarde, Ryland e Tara prepararam juntos o café da manhã e começaram a abrir as cartas que haviam se acumulado durante a ausência dos dois. ― Acho que esta é para você, querida. Ryland jogou sobre a mesa um envelope com o brasão da embaixada dos Estados Unidos. ― Meu visto! ― gritou Tara, ao abri-lo. ― Se este papel não tivesse demorado tanto tempo para chegar, Cláudia jamais teria me contado a verdade, sabe? Ela ficou apavorada, achando que o atraso se devia a alguma imprecisão em minha certidão de nascimento. Aparentemente, sempre acreditou que, algum dia, a verdade viria à tona, mas não por meio dela. Tara sorriu, com uma expressão pensativa. ― Logo depois de saber a verdade, desejei que nunca tivessem me contado nada, mas agora sinto-me feliz por tudo ter sido esclarecido. Pode parecer estranho, porém eu e mamãe ficamos ainda mais próximas. Ela passou a ser mais vulnerável e nos tornamos apenas duas mulheres adultas e muito amigas. Graças a Deus, não temos mais segredos! Nunca mais! ― Nunca mais ― repetiu Ryland, fechando os olhos por um instante, admitindo quanto se sentia aliviado. Ele jamais entenderia a prima Margot. Sabia que nunca privaria a mulher amada do direito de amar outro homem e muito menos o de viver, mas também tinha certeza de que sua existência perderia todo o sentido se ela deixasse de amá-lo. Felizmente, o destino e Tara o haviam poupado e não conheceria esse sofrimento.

EPÍLOGO Tara saiu do consultório médico e se dirigiu para o carro, com um sorriso de felicidade que aumentava ainda mais a beleza serena de seu rosto. Sentia o suave toque dos raios de sol acariciando seus braços, enquanto tocava a barriga e olhava ao seu redor como se o mundo todo pudesse adivinhar o motivo de sua alegria. Ela voltou para casa dirigindo com todo o cuidado, pois já sentia a necessidade de proteger a nova vida que crescia em seu ventre. Desconfiava, havia algumas

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semanas, que estava grávida, mas esperara pela confirmação médica antes de sequer falar sobre o assunto. Quando cruzou a pequena e encantadora cidade próxima à casa dos pais de Ryland e onde também eles haviam decidido morar, Tara só pensava em uma pessoa. Finalmente pôde pegar o telefone e, sempre sorrindo, discar o número que desejava. ― Mamãe? Eu estou grávida ― exclamou ela, no instante em que ouviu a voz de Cláudia. ― Queria que você fosse a primeira a saber. Ela começou a rir diante da reação que ouviu do outro lado da linha. ― E como está se sentindo com essa notícia... vovó? Nem Ry sabe oficialmente, pois acabei de voltar do consultório do médico. Você é mesmo a primeira a ter certeza ― murmurou Tara, sentindo os olhos se encherem de lágrimas ao perceber a emoção na voz de Cláudia. ― E não terei o bebê se não estiver do meu lado... segurando a minha mão! Ela ouvia a voz do pai, mais distante, tentando descobrir o que estava acontecendo. Então, Garth pegou o telefone e, depois de deixar claro como se sentia feliz com a notícia, lembrou-a de que voariam para Boston dentro de dois dias. ― Eu sei que vocês estão para chegar, mas não consegui esperar. Queria que soubessem agora! Cinco minutos depois, quando desligou o telefone, Tara ainda sorria, mas desta vez por causa da felicidade dos pais. Ela e Cláudia tinham superado e esquecido aqueles dias difíceis em que quase haviam perdido o contato e rompido o laço tão especial que as unia. Na verdade, pareciam ter se tornado ainda mais amigas! Seu trabalho junto de jovens vindos de lares desfeitos e onde não havia amor, um grupo de auxílio e assistência que ela criara e transformara em mais uma instituição de caridade entre as sustentadas pela tia de Ryland, a ajudara muito a compreender os problemas de crianças e adolescentes que cresciam sem o afeto dos pais. Vira, com seus próprios olhos, o que acontecia com mães dependentes da droga. Por mais que amassem os próprios filhos, colocavam sempre suas próprias necessidades e o vício em primeiro lugar. Tara se adaptara perfeitamente à vida calma e sem excitação de uma pequena cidade da Nova Inglaterra. "E por que eu não me daria muito bem aqui?" perguntara ela a Ryland, quando ele comentara esse fato. Ela carregava seu lar dentro de si mesma e sua vida estava contida no amor que partilhavam. Sem dúvida, sentia falta dos pais e dos amigos, especialmente de Cláudia, mas nos dezoito meses desde que se casara, ela e Ryland haviam ido várias vezes para a Inglaterra, e seus pais também a tinham visitado bastante. Tara e Ryland haviam passado seu primeiro final de ano como marido e mulher em Ivy House. Garth e Cláudia tinham decidido se casar novamente três dias antes do Natal. A cerimónia fora muito simples, e Cláudia parecia iluminada por um felicidade sem limites, que tornou seus olhos mais brilhantes ainda quando Garth colocou em seu dedo a mesma aliança que havia usado antes de se separarem.

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Os olhos de Tara se encheram de lágrimas ao recordar o dia de seu próprio casamento. Ela e Cláudia ficaram sozinhas no quarto, momentos antes da cerimónia. Já estava com o vestido de noiva, e a mãe, aflita, dava os últimos retoques na grinalda. ― Eu ainda não lhe agradeci... por tudo isso, mamãe ― murmurara ela. Tara moveu o braço, fazendo um gesto englobando não apenas o vestido e a grinalda, mas toda a trabalhosa organização de um casamento perfeito, em tão pouco tempo, pois Ryland não aguentara esperar mais do que duas semanas. ― E também não lhe disse... quanto eu a amo e como me sinto feliz por você ser minha mãe. Ao ver Cláudia baixar a cabeça, Tara soube que a mãe estava chorando e apressou-se em abraçá-la, ignorando a possibilidade de amassar o vestido impecável. ― Não diga nada... você é minha mãe de verdade, a melhor que eu poderia ter e a única que eu poderia desejar. Mas talvez o mais importante seja dizer que eu sou sua filha, sabe? Foi você que me amou, me ensinou tudo e me deu o alimento espiritual para que eu pudesse ser quem sou hoje. Eu te amo muito, mamãe. Quando Tara saiu da igreja, havia uma pequena multidão de curiosos, pessoas do vilarejo que estavam fascinadas pela beleza da noiva e pela profusão de flores que transformavam a pequena capela em um cenário de sonho. Uma delas sorriu diante da jovem que se inclinava para a mulher ao seu lado. ― Olhe! A noiva está falando com a mãe! Como são parecidas! Tara não conteve um sorriso de felicidade e olhou para Cláudia, a fim de que ambas partilhassem aquele momento perfeito. Ela sentiu seus olhos se encherem de lágrimas de alegria e amor, o mesmo amor e alegria que via brilhar nos olhos da mãe. ― Então... é oficial? ― perguntou Ryland, beijando o ventre ainda muito liso de Tara. ― Sim, papail Telefonei imediatamente para minha mãe. Queria que ela fosse a primeira a saber e já lhe disse que exijo sua presença na hora do bebê nascer. Espero que não fique magoado porque eu a quero ao meu lado... além de você, obviamente. ― Mas é claro que a quer ao seu lado. Afinal, ela é sua mãe. ― Sim... ela é mesmo minha mãe. É a minha mãe! PENNY JORDAN nasceu em Preston, em Lancashire e hoje vive, com o marido, em uma bela casa do século catorze em Cheshire, na Inglaterra. Seu sucesso é tão fascinante quanto as aventuras dos personagens que ela constrói com tanta arte e um profundo conhecimento da alma humana. Penny tem mais de setenta e cinco romances publicados, inclusive a que se tornou um bestseller segundo o New York Times, Dança do Destino (que será relançado na série As Melhores Histórias de Clássicos Históricos no mês de setembro). Sem dúvida, ela é uma autora excepcional, pois seus livros já venderam mais de cinquenta milhões de exemplares e foram traduzidos para de-zenove idiomas.

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