7 histórias de encanto e magia

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A LÍNGUA DO POVO

Foi lá pelos arredores de Córrego Seco: os tiros ecoaram por todo o arraial. Eu avisei Que a língua do povo mata mais Q!..le bala em tiroteio. O moço tudo espiava. punha sentido em tudo o Que era alheio, esmiuçava, rastreava casos do mal feito da vida de um e de outro. pois fazia muito gosto em ir espa­ lhando tudo. Quando os tiros lhe vazaram o pescoço, a cabeça san­ grenta pendeu feito polpa de-fruta muito madura. até se derra­ mar completamente do corpo miúdo, esborrachando-se no chão. Não se sabe como, foi aparecer lá num daQueles caminhos 'da encruzilhada, só a cabeça, e lá ficou à mercê dos cupins e dos olhares de indagação: mas Quem será Que matou esse camarada? Pois de frente para a encruzilhada. na dúvida entre um e outro destino. foi pelo tal caminho Que o moço se decidiu. E tanto caminhou, correndo a vista no alheio, em busca de novos casos para contar. Que à beira de um barranco da estrada, já meio encoberta pela terra e pela folhagem, deu fé da cabeça de um homem. toda roída de cupim. Os olhos se iluminaram: tinha ali caso para um dia inteiro de festa: - Cabeça, Quem te matou? Ele perguntou muitas vezes em vão. Insistiu. a cabeça calada, imóvel feito pedra. Nenhum sinal. nenhum movimento, senão o da marcha


acelerada dos cupins em plena atividade. disputando com as moscas o Que restava dos ossos. Quem teria matado esse infeliz? Principiou o caminho de volta cismado. a se indagar. - Quem me matou foi a língua do povo e vai matar você também! - Ele voltou-se rapidamente e ainda ouviu a cabeça dizer em meio a uma risada sinistra. Apressou o passo. Era preciso voltar depressa. espalhar a novidade a todos. E assim foi Que ligeiro feito bala todo o povoado de Córrego Seco, tirando apenas o delegado, ficou de posse do acontecido. Quando o moço foi contar o novo ao delegado veio, então. a intimação. Ele só poderia sair dali acompanhado da polícia para ir ao local do acontecimento. Se a cabeça falasse mesmo, ele seria solto. se não falasse. então ele seria fuzilado. Quem foi mesmo Que te matou, cabeça? No sem fim de indagações a cabeça resistia calada feito da primeira vez. irredutível no seu silêncio e imobilidade de pedra. Gritaram. sojigaram. espancaram e a cabeça nem dava ares de si. Quem te matou. cabeça? Fizeram alvo no pescoço do rapaz e deitaram fogo. E então eu não avisei Ql..le QJ..1em me matou foi a língua do povo e vai matar você também?

Transcria ção de Adriana Melo. a partir de gravação e transcrição da narrativa oral "A língua do povo".

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A HISTÓRIA DO VELHO E DO MOÇO PRINCIPE Meu avô não era homem Q.Ue se deixasse desatar em pro­ sa. Carrancudo e sistemático, não tolerava conversa fiada. ba­ rulho ou riso. - Esse aí é puro silêncio - diziam. O curioso é · Q!.Je, não obstante toda essa sisudez, ele tinha um capricho: não falhava um dia. no de noitinha, depois dos afazeres da roça. fizesse ou não lua boa, ele reunia a meninada e os demais, os já homens e mulheres feitos, e entrava até no mais escuro da noite no alumiado de fogueira a contar histórias. E tanto mais me desgoverna Quanto mais se me avizinham à lembrança as histó­ rias Que ele nos fazia ouvir com tanto gosto e desvelo. É Q\.le muito me acabrunha agora a falta Q.Ue dele se me assoma no peito, abrindo assim feit0 uma vala sem fim de tão funda e es­ cura. Por Q\.le eu não lhe disse antes?


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