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LITERATURA
OS MEIOS MUDAM, MAS A MENSAGEM NÃO
Editores do Brasil e da Argentina discutem sobre desafios comuns e como ampliar o alcance das publicações adventistas
MÁRCIO TONETTI
e comparássemos uma fotogra
Sfia pessoal de dez anos atrás e outra atual, provavelmente não iríamos notar tantas diferenças. Mas, se colocássemos lado a lado dois retratos da sociedade, perceberíamos que o mundo mudou muito.
Foi para discutir como lidar com as trans formações contemporâneas no ministério editorial que um grupo de quase 70 servidores das duas editoras adventistas sul-americanas (CPB e ACES) se reuniu na sede continental da Igreja Adventista em Brasília (DF), nos dias 21 a 23 de março.
O tema do 4º Encontro Sul-Americano de Editores foi “A Palavra Eterna em uma Sociedade em Mudança”. “De um lado, temos um mundo em processo de profundas transformações, e precisamos ser sensíveis a essa realidade. De outro, há um Deus inabalável e Sua Palavra eterna, os quais devem fundamentar nossa visão e pautar nossos escritos”, sintetiza o pastor Marcos De Benedicto, editor-chefe da CPB.
As palestras proferidas no encontro se desdobraram em duas principais direções. Uma delas tem que ver com a forma. Hoje as pessoas estão consumindo cada vez mais informações nas plataformas digitais. Por isso, a igreja reconhece que precisa ir além da mídia impressa para alcançar seu público. Embora o mercado de livros físicos ainda esteja em alta, é fato que o segmento de revistas está em crise, o que tem levado até mesmo grandes editoras seculares a tirar títulos de circulação, como expôs o pastor Diogo Cavalcanti, editor da CPB.
O evento dedicou também tempo para refletir sobre o conteúdo. Em uma de suas apresentações, Gerald Klingbeil, editor associado da Adventist Review, ressaltou que as publicações adventistas devem se preocupar com a relevância, mas manter a voz profética.
Encontro em Brasília (DF), em março, ofereceu palestras, workshops e painéis sobre o ministério editorial
Ao falar sobre a necessidade de contextualização, Bill Knott, editor executivo do mesmo periódico e da Adventist World, fez uma ponderação adicional: “existe o risco de tornar a história secundária mais importante do que a principal”.
Por sua vez, os teólogos Alberto Timm e Artur Stele tocaram em questões que possivelmente continuarão desafiando o adventismo nos próximos anos, como autoridade da igreja, polarização, evolucionismo, consumismo e per feccionismo, além de novas correntes de interpretação da Bíblia e padrões de sexualidade e família.
Ao mesmo tempo que se falou na importância de ter uma abordagem equilibrada, evitando temas polêmicos e sensacionalistas, discutiu-se a necessidade de oferecer respostas sólidas sobre questões contemporâneas e tornar mais transparente a comunicação sobre os problemas internos na igreja. Conforme disse Bill Knott, “se fizermos bem o nosso trabalho, vamos minimizar a importância da mídia alternativa”.
O pastor Erton Köhler, líder sul-americano da denominação, ressaltou que aqueles que trabalham com as sagradas letras produzem basicamente o único alimento espiritual que membros e pastores adventistas recebem regularmente. Assim, ele aconselhou que as editoras sejam abrangentes nas publicações, equilibrando o lançamento de livros leves e mais densos, obras que vendem mais com as que vendem menos, e os materiais que tratam de temas gerais com os que abordam pontos específicos da nossa fé.
A possibilidade de reunir editores das duas instituições da igreja a cada três anos permite ver que há desafios comuns a ser enfrentados e discutir soluções conjuntas para esse ministério que tem acompanhado a história do movimento adventista. ]
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UMA BÊNÇÃO PARA O FARAÓ
A PARTICIPAÇÃO DO ESTRANGEIRO NA PÁSCOA REVELA A ATITUDE INCLUSIVA DE DEUS
FELIPE CARMO
Ainstituição da Páscoa emerge de forma inaugural no Êxodo. O leitor atento perceberá a costura de pelo menos dois gêneros literários em 12:1–13:16: uma narrativa emoldurada pelo ímpeto de um regulamento. É como se o autor não fizesse distinção entre legislação e história. Com isso, o leitor que se depara com essa porção não sabe distinguir entre o que Deus relata e o que Ele demanda, o que é memória e o que é mandamento, o que é história e o que é liturgia.
Esse detalhe já foi percebido por alguns estudiosos da Bíblia Hebraica que, à sua maneira, explicam o motivo da intersecção dos estilos. Entre eles, podemos citar Lesleigh C. Stahlberg (“Time, Memory Ritual, and Recital: Religion and Literature in Exodus 12”, Religion & Literature v. 46 [2014], p. 75-94) e Gary A. Rendsburg (“The Literary Unit of Exodus Narrative”, em “Did I Not Bring Israel out of Egypt?” [Eisenbrauns, 2016], p. 113-132).
O texto é introduzido com a fala do “ Senhor a Moisés e Arão” (12:1) e segue até o verso 28 como um conjunto de normas estipuladas para a recepção da Páscoa, isto é, para a celebração da libertação do Egito. Em 12:28-41, o texto retoma o estilo da narrativa costumeiro de Êxodo relatando o envio da décima praga contra o Egito e, em seguida, a saída dos israelitas. Novamente, a voz do Senhor irrompe no texto de maneira inesperada (12:42), outra vez detalhando, em forma de preceito, a relação do leitor com o evento histórico. Finalmente, a porção 12:42–13:16 delineia mais algumas obrigações para a celebração da Páscoa e repete outras anteriormente mencionadas. A partir de Êxodo 13:17, a história segue o fluxo narrativo característico do livro.
EXIGÊNCIA LEGAL
É evidente que, na união de tais estilos, o autor dessa porção não introduz a Páscoa como um evento que deve ser meramente relembrado, mas exigido no presente. A utilização de expressões como “este mês”, “nesse mesmo dia” ou “esta noite se observará”, antes da estipulação de uma ordenança, se confunde com o tom nostálgico da narrativa, que é basicamente elaborada como uma ação concretizada no passado (“aconteceu”). A ênfase, contudo, está na inflexão jurídica do texto. Conforme explica a biblista escocesa Avivah G. Zornberg, em The Particulars of Rapture (Doubleday, 2001, p. 172), “o principal evento da noite não foi essencialmente narrado. O que temos é a previsão de Deus sobre a narrativa noturna enquadrada em linguagem judicial”. A libertação dos israelitas submerge nas estipulações divinas, e a história se torna liturgia para ser revivida.
Essa estipulação deveria definir a identidade de Israel dali em diante. Como “registro” (12:14a), a Páscoa está fincada para sempre no solo da história como evidência da salvação (ver Js 4:7).
Contudo, ela também representa uma “recordação do futuro”, justamente por ser observada como estatuto “eterno” (Êx 12:14b). O próprio Deus menciona o futuro como algo que já ocorreu na expressão “porque neste mesmo dia eu retirei”, antes da libertação do Egito. Essa tensão temporal entre o passado, o presente e o futuro transforma a história em ritual, isto é, em padrão que se repete; a ordenança reforça a realidade do evento concretizado e a veracidade de outros ainda por vir.
De uma perspectiva literária, a Páscoa não é um mero acontecimento, mas um regulamento perpétuo para todos os israelitas. Ela não faz parte da história apenas; é parte da conduta moral de Israel. Todas as outras pragas anteriores são história, registro. Mas a última praga, a experiência da libertação, é uma exigência legal. Aquele que não a cumprisse da maneira correta seria “eliminado de Israel” (ver 12:15, 19). Conforme lemos nos comentários rabínicos, portanto, é preciso experimentar a Páscoa para tornar-se israelita: “em todas as gerações, que cada pessoa se considere como se tivesse saído do Egito” (Mishnah, Pesah . im 10:3). EM CRISTO, A Páscoa, assim, é um estatuto atemporal que define a experiência e a identidade do israelita. Essa ideia encontra O CORDEIRO DA PÁSCOA, TODOS paralelo nas observações do biblista nova-iorquino Robert B. Alter, em The SÃO CONVIDADOS Hebrew Bible (W. W. Norton & Company, 2018, p. 1186 e 1196): “o ritual A PARTICIPAR da Páscoa, que comemora a história, é DA CELEBRAÇÃO a promulgação cultural de filiação na nação”; “a história [da Páscoa] codifica FUNDANTE a própria essência e lógica da existência nacional israelita”. Por isso, o texto DA RELIGIÃO bíblico diz: “Quando vossos filhos vos ISRAELITA PARA perguntarem: Que rito é este? Respondereis: é o sacrifício da Páscoa ao SEMPRE Senhor que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas” (12:27).
Entretanto, o caráter nacional da comemoração pascoal parece exigir a inevitável exclusão do outro, do diferente, do forasteiro. Por possuir a conotação de experiência nacio nal, o texto sugere que a Páscoa não seja um evento para estranhos: “nenhum estrangeiro comerá dela” (12:43b; ver 12:19). Se este, porventura, desejasse participar da festividade, deveria ser circuncidado para a ocasião (ver 12:44-49) – e isso também era imposto a qualquer suposto israelita não circuncidado. Mas essa proibição talvez possa ser compreendida melhor no seu contexto literário, já que essa leitura pode soar de forma discriminatória ou separatista.
Logo no início de Êxodo há um “prenúncio” da décima praga nas palavras de Deus ao faraó em 4:23: “deixa ir Meu filho, para que Me sirva; mas, se recusares deixá-lo ir, eis que Eu matarei teu filho, teu primogênito.” Em seguida, o Senhor ameaçou de morte o primogênito de Moisés, Gérson, um estrangeiro; mas este foi salvo por sua mãe, Zípora, que tomou uma pedra e o circuncidou, poupando-lhe a vida (4:24-26). Note que Deus anunciou a morte dos primogênitos egípcios e salvou a vida de um estrangeiro por meio da circuncisão.
EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA
Essa narrativa cria um intertexto com o evento posterior, em que o sangue dos primogênitos de Israel é poupado à custa do sangue do cordeiro, assim como o sangue de Gérson é poupado pelo da circuncisão. À semelhança de Zípora, que “lançou” o prepúcio de Gérson aos pés de Moisés (4:25), os israelitas “lançaram” o pincel às portas, para pintá-las com o sangue do sacrifício (12:22). A utilização do mesmo verbo foi proposital para a criação do intertexto: o sangue de Gérson, o estrangeiro, prenunciava o sacrifício pascoal dos israelitas, unindo assim a experiência de ambos, como ressalta Alter (p. 1183).
Por isso, a vivência do filho de Moisés como estrangeiro não diz respeito apenas a ele. Ela rememora a experiência dos próprios israeli tas no Egito: o seu nome (Gershom) é a união de dois termos, ger (“estrangeiro”) e sham (“lá”), significando, nas palavras de Moisés, “sou peregrino em terra estranha” (2:22). Esse detalhe faz ecoar a importante ideia de que o sentimento de inadequação do estrangeiro também foi experimentado pelos israelitas: eles conhecem o “coração do estrangeiro” (23:9) e, por isso, não deviam afligi-lo (22:21). Ao contrário, eles deviam amá-lo como amavam a si mesmos, porque eles também haviam sido estrangeiros no Egito (ver Lv 19:34).
Dessa perspectiva, a experiência da Páscoa é compartilhada por todos os assim chamados “peregrinos” ou “ex-peregrinos” em terra estranha, em virtude de sua emancipação, no passado, no presente e no futuro. Essa experiência não se resume à história; ela é uma ordenança a todos os que pretendem fazer parte do corpo de Cristo. Em Jesus Cristo – e não mais na circuncisão nem no sacrifício pascoal – a exigência do sangue se concretiza, respondendo à necessidade do judeu e do grego, do hebreu e do estrangeiro (ver Ef 2:11-19; 3:6).
Isso significa que não mais somos “forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus” (Ef 2:19). Em Cristo, o Cordeiro da Páscoa, todos são convidados a participar da celebração fundante da religião israelita para sempre. Ela deve, se possível, ser estendida ao próprio faraó, que, na desesperança de sua situação diante da última praga, rogou aos israelitas que seguissem o seu caminho, dizendo: “ide-vos embora e abençoai-me também a mim” (12:32). ]
FELIPE CARMO, mestre em Estudos Judaicos pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de ensino religioso no Unasp, campus Engenheiro Coelho (SP)