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PERSPECTIVA
NO LUGAR DO OUTRO O INSTINTO DE AUTOPRESERVAÇÃO PODE NOS IMPEDIR DE CUIDAR DO PRÓXIMO
ASHLEY STATON
Há poucos anos participei de um evento chamado Vozes pela Justiça. O objetivo do encontro foi inspirar, treinar e equipar cristãos para falar com políticos sobre a pobreza mundial. Contudo, com o passar do tempo, confesso que os pormenores daquele fim de semana na cidade de Camberra foram esquecidos, mas uma atividade de simulação ficou gravada na minha memória.
As centenas de participantes foram divididas em grupos menores, em “famílias” que receberam uma missão. Nossa tarefa era “ganhar a vida” pescando e vendendo “peixe” (fotos laminadas) no “mercado” local (organizadores do evento que trocariam o peixe por fichas de dinheiro). Sem ter reservas iniciais, tivemos que lutar para garantir o pão de cada dia, uma moradia e a mensalidade de nossas crianças na escola.
O único problema era que todas as “famílias” receberam as mesmas instruções e o caos foi instalado. Minha competitividade entrou em cena, e disputei com os demais jogadores o maior número de peixes, a fim de garantir alimentação, abrigo e educação para minha família. Uma vez que os organizadores retiravam mais e mais peixes do rio, decidimos tirar nossos filhos da escola para que também fossem pescar.
No decorrer da atividade, estávamos conseguindo apenas dinheiro
suficiente para alimentar nossa “família”. Não tínhamos condições de manter a escola e uma moradia permanente. Resultado: quando os organizadores anunciaram o fim da simulação, eu havia me tornado alguém sem escrúpulos, que tinha feito de tudo para pescar e sobreviver. O pior de tudo é que nossa “família” havia perdido uma criança em um ciclone devido à falta de abrigo adequado.
Aquela simulação demorou menos de uma hora, mas nesse curto período eu me mostrei uma pessoa obcecada, que não se importou com mais ninguém. Essa experiência me ajudou a pensar um pouco também nas pessoas que sofrem ao redor do mundo. O que para mim foi apenas um “jogo” de uma hora é a luta diária para milhões de pessoas.
Naquela noite fui dormir com o estômago cheio, numa cama confortável e sob um teto seguro. Com a noção clara de que sou uma pessoa abençoada. É por causa disso
que foi despertada em mim a consciência esmagadora de que é meu dever como cristão ajudar outros a ter os direitos básicos que tenho.
É natural querer cuidar de si mesmo. A autopreservação é necessária para sobreviver em um mundo corrompido pelo pecado. Mas, se você sabe como vai pagar suas contas ou a que horas fará a próxima refeição, Deus está chamando você para auxiliar aqueles que não têm esse privilégio. E essas pessoas podem estar na sua vizinhança ou do outro lado do mundo.
É verdade que podemos desanimar diante de tanta pobreza e injustiça presentes em nosso planeta, mas somos as mãos e os pés de J esus a trabalhar pelos menos favorecidos. E, se trabalharmos juntos como igreja, o trabalho pode se tornar menos árduo do que individualmente.
Por isso, assine petições para mudanças positivas, doe seu tempo como voluntário para sua comunidade e ajude entidades humanitárias que chegam aonde você não pode ir. Acima de tudo, trate os outros como você quer ser tratado. Que nossa luz brilhe testemunhando do mundo justo idealizado originalmente por Deus! ]
ASHLEY STATON é gerente de comunicação da ADRA Austrália
Mãos que pregam
MERLE POIRIER
Foto: Jeff Jordan (esquerda) com sua esposa, Melissa, ao lado do túmulo de Eliphalet Kimball no Cemitério Oak Hill, em Battle Creek, Michigan (EUA) eu esposo e eu participamos do Concílio Anual da sede mundial da igreja, em Battle Creek, Michigan M (EUA), em outubro. Quando entramos no refeitório, nos sentamos com Jeff Jordan e a esposa, Melissa, e tivemos uma refeição interessante e animada. Interessante pela conversa e animada porque Melissa quase não comeu, muito ocupada interpretando para Jeff, que é surdo.
Jeff lidera um ministério para surdos (deafchurchonline.org) perto de Collegedale, no Tennessee. Suas mãos voam quando ele se comunica na Língua Americana de Sinais (ASL). Em 2016, ele foi nomeado coordenador associado (honorário) para o ministério de surdos no departamento dos Ministérios de Necessidades Especiais da sede mundial da igreja.
Enquanto conversávamos com eles naquele dia, Jeff e Melissa contaram com entusiasmo sobre uma descoberta no Cemitério Oak Hill, em Battle Creek, onde estão sepultados vários pioneiros adventistas, incluindo a família White. Lá está sepultado também Eliphalet M. Kimball, que parece ter sido o primeiro “missionário” adventista entre os surdos. Curiosa, fiz algumas pesquisas e descobri a história fascinante de um homem quase desconhecido no adventismo, o que resultou neste artigo.
BIOGRAFIA
Eliphalet Morrell Kimball nasceu em 15 de março de 1816, em Lyme, New Hampshire (EUA). Ele foi um dos 12 filhos de Eliphalet e Betsey Kimball. Aos 4 anos de idade, Eliphalet contraiu a febre maculosa, que provocou a surdez de ambos os ouvidos.
Naquela época, vários pais de crianças surdas no Nordeste dos Estados Unidos procuravam uma forma de educar seus filhos. Em 1817, eles fundaram o Asilo para a Educação e Instrução de Pessoas Surdas e Mudas de Connecticut, hoje a Escola Americana para Surdos, pioneira nos Estados Unidos.
Isso foi providencial para Eliphalet, pois mudou o curso de sua vida. Quando ele tinha 15 anos, seus pais o enviaram para essa escola, que oferecia uma forte ênfase na leitura, escrita e matemática, mas também no ensino religioso. Foi lá também que ele conheceu sua futura esposa, Mary Webster, que também era surda. Eles se casaram em 1839 e foram morar em New Hampshire. O casal teve dois filhos ouvintes.
Em 1852, eles se mudaram para o oeste, parando em Indiana a fim de visitar um homem surdo. Durante essa visita, Eliphalet recebeu um folheto que afirmava que os seres humanos não têm uma alma imortal. Por ser um batista e ávido estudante da Bíblia, ele passou a comparar os ELIPHALET argumentos do panfleto com as Escrituras. O casal se SE TORNOU mudou novamente, dessa vez para Wisconsin, onde se hospedaram na casa do irmão de Eliphalet. MISSIONÁRIO Quando a família Kimball morava em Anamosa, em Iowa, o pastor adventista Merritt E. Cornell começou ITINERANTE. naquela região uma série de conferências no inverno de 1860. Ele usou um tribunal como auditório e muitos compareceram. O casal Kimball nem ficou sabendo ELE SE MUDAVA DE UM LUGAR das reuniões, mas os filhos deles sim, e frequentaram a série. Foi então que Eliphalet pediu a Cornell PARA O OUTRO, alguma literatura sobre o sábado e voltou a estudar a Bíblia. Convencidos a respeito do mandamento do PREGANDO E sábado, ele e a esposa começaram a guardá-lo fielENSINANDO, mente, embora sozinhos. A filha dos Kimball se casou e mudou para o MisVIVENDO E souri e o filho se mudou para o Kansas. Em 1867, o casal dividia seu tempo entre os filhos: seis meses TRABALHANDO na casa de uma e a outra metade do ano na casa do outro. Dois anos depois, a esposa de Eliphalet morreu e foi sepultada em Leavenworth, no Kansas. COM QUALQUER PESSOA QUE O
MINISTÉRIO ITINERANTE ACEITASSE
Seis meses após a morte de Mary, impulsionado pelo desejo ardente de levar o evangelho aos portadores da sua deficiência, Eliphalet se tornou um missionário itinerante. Ele se mudava de um lugar para o outro, pregando e ensinando, vivendo e trabalhando com qualquer pessoa que o aceitasse. Ele morou no Kansas, Iowa, Illinois, Massachusetts, New Hampshire, Vermont, Connecticut e Maine.
Usando as mãos para ensinar e distribuir folhetos para leitura, Kimball deixou atrás de si um rastro de pessoas convertidas (Advent Review and Sabbath Herald, 28 de janeiro de 1875). Eliphalet morou seis meses, por exemplo, na residência do casal Hill a fim de ensinar a Bíblia e a linguagem de sinais para a filha surda deles. Ellen White, que pregou na campal de Indiana em agosto de 1877, conheceu a família Hill e mencionou que a filha de 16 anos do casal havia chamado sua atenção naquela reunião. “Ela se uniu aos suplicantes e orou com sinais. Foi uma cena muito solene e impressionante” (Advent Review and Sabbath Herald, 23 de agosto de 1877). Ellen White prosseguiu dizendo que os Hill e sua filha foram batizados.
Dez dias depois, em uma reunião campal realizada em Groveland, Massachusetts, mais três surdos foram batizados, entre eles Benjamin Brown e a esposa. Todos levados à verdade por Eliphalet. Um ano mais tarde, Ellen White escreveu sobre seus encontros com o próprio missionário: “Interessou-nos conhecer o irmão Kimball, que é mudo e tem sido missionário entre os mudos. Por meio do seu trabalho perseverante, um pequeno exército aceitou a verdade. Encontramos este fiel irmão nos nossos acampamentos anuais, rodeado de vários dos seus mudos convertidos. Alguém interessado, que tem ouvidos para ouvir, escreve uma parte do discurso e ele se assenta rodeado de seus amigos mudos, pregando-lhes ativamente com as mãos. Ele tem usado livremente seus meios para fazer avançar a obra missionária, honrando assim a Deus com sua obra. Se continuar fiel, um dia ele receberá uma recompensa preciosa” (Signs of the Times, 12 de setembro de 1878). Vale ressaltar que, no tempo de Ellen White, os deficientes auditivos eram chamados de surdos-mudos, termo impreciso e inadequado.
Eliphalet continuou seus esforços missionários, mudando-se mais tarde para o Sanatório de Battle Creek, a fim de se recuperar de uma doença prolongada. Morreu aos 71 anos. Uma lápide marca seu túmulo (foto), enquanto ele aguarda o chamado do Doador da vida, quando então ouvirá, falará e cantará a verdade que tanto amou.
O trabalho iniciado por Eliphalet Kimball há tanto tempo ainda continua. Assim como ele levou surdos a “ouvir” a mensagem por meio da literatura e da linguagem de sinais, atualmente em 12 países do mundo existe um ministério especialmente dedicado para essas pessoas (adventistdeaf.org), inclusive no Brasil (surdosadventistas.com.br).
Que grande festa será o dia em que Jesus voltar e os ouvidos dos surdos forem destampados (Is 35:5)! ]
MERLE POIRIER é gerente de operações da revista Adventist World
A alegria do Senhor é a nossa força
A EXPERIÊNCIA DE ARREPENDIMENTO DO POVO NO CONTEXTO DA RECONSTRUÇÃO DE JERUSALÉM TEM ALGO A NOS ENSINAR SOBRE GRATIDÃO E ESPERANÇA
GERALD A. KLINGBEIL
Dezembro de 2001 marcou um período difícil para o povo argentino. No dia 1º daquele mês, o ministro da Fazenda anunciou o congelamento de todas as contas bancárias. Ninguém podia sacar nenhum valor da conta. Cartões de débito e crédito não funcionavam. Para quem não tinha dinheiro em espécie, as coisas logo ficaram bastante complexas. A previsão era que o congelamento durasse apenas dois dias. A moeda local teve uma desvalorização de 50%. A convulsão social cresceu rapidamente. As pessoas que não podiam comprar comida ainda precisavam comer e, em muitas partes do país, houve saque aos supermercados.
Naquela época, eu lecionava na Universidad Adventista del Plata, no interior da Argentina. Na pequena cidade universitária de Libertador San Martín também não era possível sacar dinheiro. Tínhamos poucos recursos em casa e ninguém sabia quando os bancos abririam novamente. Bem na época em que costumávamos cantar “Noite Feliz” e dar presentes, instalou-se sobre o país uma sensação de desgraça. Nossas duas filhinhas, de 4 e 2 anos na época, não se preocuparam muito com isso.
O clima de verão nas férias escolares era agradável e o Natal já estava se aproximando.
Porém, minha esposa e eu não sentíamos a mesma calma. Para não passarmos fome, a universidade ofereceu crédito no supermercado local. Decidimos ir à cidade grande mais próxima para fazer nossa compra regular no mercado e trazer algum presentinho para nossas filhas. Contudo, mesmo que alguém tivesse dinheiro encontraria as prateleiras vazias. Finalmente, achamos um conjunto de utensílios plásticos, com dois copos, dois pratos e duas tigelinhas para cereal. Aquele não era exatamente o presente dos sonhos, mas era o que tínhamos.
Além da “louça” de plástico, Chantal, minha esposa, tinha feito um avental bonito para nossas filhas. Nunca vou me esquecer da alegria delas quando abriram aquele presente no Natal. Com o rosto radiante, elas seguraram seus
utensílios de plástico já com a intenção de utilizá-los na refeição seguinte. Até hoje, 18 anos mais tarde, ainda temos aqueles pratinhos em nosso armário. Não nos atrevemos a nos desfazer deles, pois contam uma história de gratidão Como você reage e alegria. QUANDO NÃO SENTIMOS ALEGRIA quando ainda está Para Esdras e Neemias, que viveram na Jerusalém pós-exílio, a vida também foi difícil. Décadas antes, preso ao egoísmo e Deus havia conduzido Seu povo de volta do cativeiro babilônico – pelo menos os que quiseram voltar (Ed 1, 2). é confrontado com O que encontraram foi desanimador. A cidade e o templo estavam destruídos. Não havia muralha de proteção. o poder da Palavra Muitos povos vizinhos olhavam para os que retornavam com desconfiança ou ódio explícito. de Deus?
Depois de 80 anos que o primeiro grupo havia retornado e reconstruído o templo, as coisas ainda não pareciam melhores. Como podemos confiar em Deus diante de desafios tão gigantescos? E nos como os que prestamos aos sábaalegrar quando Ele parece ausente na nossa dos. Os líderes leram a Torá desde luta por sobrevivência? Como avançar felizes a manhã até o meio-dia e, como quando Deus Se faz silente? muitos tinham perdido a habili
Os problemas de Israel não eram apenas dade de compreender o hebraico, materiais. Eles precisavam de uma nova muraprovidenciaram tradução simullha para proteger Jerusalém – e Deus supriu essa tânea, que explicava cuidadosanecessidade. Mas, além dos muros derrubados, mente o significado das palavras a necessidade deles era que Deus lhes restaurasse a (Ne 8:7, 8). vida quebrantada. Como reagimos quando estamos
O quebrantamento vem quando ignoramos ainda presos ao egoísmo e somos ativa ou passivamente a vontade de Deus para confrontados com o poder da Palanossa vida. Ficamos quebrantados quando pervra de Deus? A maioria das pessoas demos de vista as pessoas ao nosso redor que chora. Quando olhamos para o necessitam da graça divina e nos concentraespelho da Palavra de Deus, recomos somente em nossas necessidades. Israel nhecemos quem realmente somos. havia ignorado a vontade de Deus e pisoteado Quando os ouvintes de Esdras e os direitos dos mais vulneráveis. O egoísmo Neemias escutaram atentamente, e a ganância matam a alegria e a esperança. eles também choraram (v. 9). Foi então que ouviram Esdras fazer CORAÇÃO QUEBRANTADO uma declaração surpreendente: Foi nesse contexto que Esdras e Neemias tra“Ide, comei carnes gordas, tomai çaram um plano. Esdras, o escriba e sacerdote, bebidas doces e enviai porções aos e Neemias, o governador nomeado pela corte, que não têm nada preparado para convocaram o povo (Ne 8). Eles construíram si; porque este dia é consagrado ao uma plataforma de madeira numa praça, em nosso Senhor; portanto, não vos frente ao Portão das Águas. Todo o povo, “como entristeçais, porque a alegria do se fosse um só homem”, foi convidado a ouvir SENHOR é a vossa força” (v. 10). a única coisa que pode reorientar e reavivar: a Certamente esse não é um texto Palavra de Deus. Esse não foi um culto comum sobre reforma de saúde ou vida saudável. Naquele contexto em que não havia alimentos refinados e o estoque de comida era limitado, comer gordura e beber bebidas doces era uma forma de dizer: “Vamos comemorar a provisão abundante de Deus – e então vamos compartilhar essas bênçãos com aqueles que estão ao nosso redor.” Contudo, é a última parte do verso que chama nossa atenção. Esdras disse que fizessem todas essas coisas porque a “alegria do Senhor” era a força deles.
Os estudiosos do Antigo Testamento ficaram intrigados com essa frase. A alegria do Senhor se refere à alegria de Israel em seu Deus ou indica algo ainda mais emocionante e animador? Será que o texto bíblico aponta para a alegria que o Senhor sente quando vê Seu povo unido em adoração e, finalmente, enxergando o quadro completo?
Linguisticamente, ambas as opções são interpretações válidas. Contudo, teologicamente sou mais propenso à segunda opção. Nossa força não é a alegria autoproduzida – mesmo que isso signifique compreender uma teologia complexa. Nossa força está ancorada na graça de Deus e em Sua alegria pela nossa salvação e compromisso. Foi isso que Jesus sugeriu quando disse que havia alegria no Céu por um único pecador arrependido (Lc 15:7) e ao ter contado a história do pai que celebra o reencontro com o filho (v. 20-24).
Nossas filhas não se lembram da desvalorização do peso argentino nem do congelamento das contas bancárias em dezembro de 2001. Mas elas se lembram bem dos pratos de plástico. A alegria delas alegrou nosso dia. Nossa força está ancorada na alegria de Deus por nós. Daquele que tem prazer em conceder graça a gente ingrata e insatisfeita! ]
GERALD A. KLINGBEIL é editor associado da revista Adventist World