Ressonância SEXUALIDADE
Intersexo: do anonimato à fratura social
ethos
Neuroenhancers: da cafeína ao chocolate
INÍCIO DE VIDA
Designer babies
ED 2 5 IÇ ª Ã O
edição XXV | maio 2017 | distribuição gratuita
ENHANCEMENT
ressonância • 1
2 • cronos
Ficha Técnica direção editorial Ana Brochado Ana Raquel Estalagem Catarina Paias Gouveia Joana Cabrita José Durão José Rodrigues Sérgio Bronze redação Afonso Delgado Gonçalves Ana Lúcia Fernandes Catarina Nunes Cláudia Silva Inês de Sousa Miranda João Bastos Júlia Ribeiro Mafalda Jorge Pilar Burillo Simões Tiago Grohmann Pereira design gráfico e capa Ana Dagge José Rodrigues ilustrações Catarina Paias Gouveia Sofia Pessoa Jorge impressão e propriedade
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 www.aefml.pt | ressonancia@aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml
Índice CRÓNICA 6 |Isoladamente Online: Uma reflexão sobre Machistas, Tacanhos e Comunas
SEXUALIDADE 10 | Intersexo: do anonimato à fratura social 14 | Sexo? Indefinido. 17 | Transexualidade: Os dois lados da moeda
ENHANCEMENT 22 | Nootrópicos: o "segredo" cognitivo do sucesso? 24 | Neuroenhancers: da cafeína ao chocolate 26 | Hormona do crescimento - Definição ou ilusão?
INÍCIO DE VIDA 29 | Substituta 31 | Designer Babies: a nova revolução?
CRÓNICA 34 | O não-lugar
Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.
Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 300 exemplares
ressonância • 3
EDITORIAL Ano de 2002: o Euro entra, definitivamente, em vigor em Portugal; Timor Leste torna-se um Estado independente e o cargueiro Prestige derrama 76 milhões de litros de crude nas costas espanhola e portuguesa. Na “nossa” FML, discute-se o Processo de Bolonha, o 6º ano “profissionalizante” (com a obrigatoriedade de um exame final) e a inauguração do “novo” edifício da Faculdade – o Edifício Egas Moniz. Num ano de tanto rebuliço académico, a Direção da AEFML achou que deveria ter um veículo rápido e eficaz de comunicar com os seus associados. É preciso recordar que, em 2002, não havia Facebook, Instagram, Twitter ou Whatsapp… A tarefa de criar tal veículo coube aos signatários, na altura membros da Direção da AEFML, presidida pela Daniela Cunha. Conhecíamos a revista oficial da AEFCML – o “Frontal” – que era editado pelo José Tiago Baptista. Achámos que era um excelente ponto de partida. Apesar de não termos qualquer experiência de edição gráfica ou de selecção de conteúdos, conseguimos uma colaboração espectacular dos outros membros da Direção, de outros colegas da Faculdade e até do Diretor de então (Prof. Doutor Martins e Silva). Passámos várias semanas à frente de computadores (a trabalhar com software que até então desconhecíamos) e depois na gráfica da AE. O resultado final, modéstia à parte, foi simpático, se tivermos em conta o nosso total amadorismo. Quando terminámos o 1º número partilhámos um com o outro: “o Ressonância é capaz de se aguentar 2 ou 3 anos, não?”. Foi com grande felicidade (e nostalgia) que verificámos que o Ressonância “se aguentou” 15 anos. Fruto, seguramente, de um trabalho empenhado dos seus editores e contribuidores. Fruto de uma necessidade de comunicação que não mudou em 15 anos. Muitos parabéns, aos antigos e aos atuais “fazedores” do Ressonância, com votos de que os próximos 15 anos sejam igualmente profícuos. E obrigado por, apesar de alguns cabelos brancos e quilos a mais, nos levarem de volta a 2002. Daniel Machado e Diogo Cavalheiro, DAEFML 2002-2003, fundadores do Ressonância
Os princípios éticos são os princípios da “humanidade” que há em cada um de nós, essa característica que nos torna tão vastos como se todo um mundo coubesse num só ser. Sendo assentes na moralidade que cada um de nós possui, influenciados pelo mundo em que nos inserimos, não apresentam limites bem definidos e visam garantir a defesa da vida e do ser humano de forma holística. Ser médico não se extingue no mero exercício teórico-prático da assimilação, sistematização e aplicação de conhecimentos e das práticas científicas e com isso cumprir o objectivo de preservar a vida. De forma cumulativa, devem ser garantidos os seguintes princípios: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. Fundamentais no seguimento e tratamento do doente, amplificando o espectro da actuação médica como meio para garantir a harmonia integral da “pessoa”. O carácter transversal destes princípios dota o médico de mecanismos que lhe permite uma adequada avaliação de méritos, riscos e preocupações sociais. A ética não é um conhecimento teórico é uma forma
cronos 4 • EDITORIAL
de ser do mesmo modo que ser médico não é somente mais uma profissão, mas uma forma de estar na vida e na sociedade. Estando numa sociedade em permanente evolução e actualização os conceitos são sempre adaptados, e cabe ao médico, adaptar-se a essa continuidade. A Ressonância assume assim um papel importante na comunidade estudantil médica e não só, como órgão de comunicação, permitindo a projecção das ideias, pareceres e correntes ideológicas actuais no campo do exercício médico. Cabe ao leitor, estudante de medicina, médico ou qualquer outra pessoa integrar sentimentos, saberes e experiências e aplicá-los no campo ético. Recordo a edição de 2010 desta revista em que, na qualidade de editor, procurei promover a aproximação, interacção e debate de ideias do percurso estudantil na faculdade de medicina. Um desafio que é perene e se mantém actualmente. Não se pode procurar ensinar ética, pois é algo pessoal e intransmissível, como uma identificação singular, mas através da transmissão de experiencias apela-se à consciência e reflexão de valores morais, “pedras basilares” da actuação médica e humana em geral. Um médico sem ética será um médico sem estetoscópio, desprovido de toda a sua essência e missão de valorização da interacção entre a saúde física e mental do seu doente. Ser-se médico é ser ser-se indissociável da “humanidade” e por conseguinte da ética. Milton Machado, DAEFML 2009-2010, editor da revista Ressonância Hoje em dia, os anos passam depressa. Se pela velocidade com que os vivemos, se pela avalanche de acontecimentos com que os enchemos, se por ignorarmos o relógio e o calendário, relegando para os cantos mais recônditos das nossas mentes as vozinhas que enunciam “está a acabar” insistentemente, o que é certo é que os carris da montanha-russa eventualmente terminam e saímos da carruagem sem saber bem o que dizer. A 2 de Setembro de 2013, quando aceitei um convite telefónico para integrar a equipa de redacção da RESSONÂNCIA, a revista caminhava aos tropeções, moribunda, cinzenta, sem um rumo definido e sem mãos no leme que lhe soubessem reconhecer potencial. Nesse ano, felizmente, houve vontade de dar nova vida à RESSONÂNCIA e marcou-se o compasso que guiaria a revista para os anos vindouros. Agora, temos uma revista com um design renovado, moderno e atractivo. Temos uma revista com conteúdos diversificados, actuais, adequados à realidade do seu público-alvo. Temos uma revista que vem progressivamente a afirmar-se no mundo digital, aproximando-se cada vez mais da comunidade académica. Temos uma revista que dinamiza concursos jornalísticos e se internacionaliza em associação a um dos melhores congressos médico-científicos da Europa. Temos uma revista que é inteiramente conceptualizada, redigida e editada por estudantes e para estudantes, que se solidifica cada vez mais como um espaço próprio para estimular a criatividade e desejo de escrever e comunicar dos alunos da FMUL, um espaço onde se discutem ideias, onde se cruzam visões e onde se transmite conhecimento. Agora, quatro anos depois, dois deles na coordenação do projecto, sei que o futuro da RESSONÂNCIA está traçado. Mais vinte e cinco edições virão, depois dessas outras tantas, e quando acharmos que a cultura está morta e a língua portuguesa despedaçada, que medicina são livros mastodônticos e palrar de linhas infinitas, a RESSONÂNCIA mostrar-se-á. Aquele caloiro irá seguir o instinto, lançar-se para os meandros da escrita amadora e perceber que tem uma voz. E que ela pode ser ouvida. Um dia esse caloiro vai desenhar um círculo de palavras no chão debaixo de si. Vai cuidar delas, fazê-las crescer em todas as direcções, alargando o círculo cada vez mais. Nelas construirá o seu carácter e marchará sobre ele. E seguirá seguro, sem pressas, vivendo novas palavras e novas viagens, certo de que outros saberão viver as antigas, delas retirando muito mais do que alguma vez poderá ser devolvido. Aos fundamentais, os leitores, um singelo mas tremendo Obrigado. José Durão, DAEFML 2016-2017, editor-chefe da revista RESSONÂNCIA
ressonância 5 Edição XXV •• 5
crónica
João Bastos
Q
Isoladamente Online Uma reflexão sobre Machistas, Tacanhos e Comunas
ualquer pessoa que desafie a ortodoxia dominante dá por si silenciado com espantosa eficácia: Eram estas as palavras que George Orwell tencionava publicar no prefácio da sua famosa crítica ao modelo socialista soviético: Animal Farm.
Publicado no ano que viu o fim do pior conflito bélico do séc. XX, o escritor britânico mal podia supor que a ideia que então redigia viria a obter um estranho significado. Em prol de um (falso) conforto convidativo ao conformismo e à inatividade do córtex pré-frontal, assistimos, hoje, a uma nova etapa no diálogo e confronto de ideias. Desconectados pelas novas tecnologias (imagine-se o paradoxo), urge em pleno séc. XXI uma reflexão sobre a liberdade de expressão. Nas palavras de Orwell: Poupemnos a mais conversa de chacha sobre a liberdade. Se a liberdade significa alguma coisa, é o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir. Confortavelmente sentado no café ou na secretária, o leitor desta modesta tentativa de ensaio prepara-se para seguir a sua rotina, enfrentando consecutivamente aquele que porventura é o pior inimigo à sua capacidade crítica: outros seres humanos. Uma vez mais, a culpa recai sobre estas pobres e vis criaturas
6 • CRÓNICA
que não têm descanso desde o dia em que saborearam o fatídico fruto, para sempre gravado no corpo sob a forma de cartilagem cricoideia. Mas não nos perdendo com devaneios bíblicos, a característica inconveniente destes estranhos primatas é a sua insaciável necessidade de sociabilização com outros seres aborrecidamente iguais. Isto é, criados desde cedo num meio social com especificidades particulares, tendemos não só a agruparmo-nos com indivíduos desse mesmo meio como com aqueles que partilham mais ou menos o mesmo conjunto de ideais que nos define como pessoa. Até aqui nada de extraordinário. Afinal, as questões inerentes à nossa existência tornam-se tão menos pesadas quando parecem ser partilhadas por outros também. No entanto, a emergência de uma nova forma de conexão trouxe-nos também uma nova realidade no que toca ao conhecimento de realidades diferentes daquela em que nos inserimos. Hoje, companhias como a Amazon, o
Google e o Facebook selecionam cuidadosamente os conteúdos que nos apresentam diariamente, combinando complexas redes de algoritmos para escolher a informação que possivelmente mais nos agradará. O modelo online desenvolveu assim uma estratégia brilhante para o seu consumo incessante. Confortavelmente inseridos na nossa monstruosa bolha de amigos e páginas, revemos diariamente os nossos próprios ideais espelhados. Caímos, assim, num processo de feedback positivo altamente viciante para o ego que perpetua ainda mais a procura narcisística de um conjunto de ideias específico. Ao invés de a tecnologia ter aproximado as pessoas como prometia, segregou-as. Em vez de vermos fomentada a procura de informação e o debate, as redes sociais criaram paradoxalmente o modelo perfeito para a criação e adoção de ideias como dogmas. Separados do outro, vislumbramos momentaneamente as suas posições bizarras em raras oca-
Crónica
siões. Mas mesmo nesses estranhos eventos pontuais (por nos encontrarmos tão centrados no nosso pequeno loop de ideias) tendemos a ter uma reação quase visceral quando alguém o aparenta ameaçar. Nessas alturas, somos tentados a ceder aos nossos instintos mais primitivos fazendo uso (e abuso) do clássico mecanismo falacioso ad hominem, tendo para o efeito armazenado um vasto arsenal de designações que cremos desqualificarem automaticamente o nosso adversário. Ignorante, Tacanho, Machista, Racista, Fascista, Comuna, e tantos mais são amplamente usados pelos mais diversos grupos como uma espécie de arma (não tão) secreta, capaz de triunfar sobre qualquer indivíduo. Apesar de muitas vezes algumas destas palavras serem designações efetivamente corretas, e não querendo propor de forma alguma uma espécie de censura ao estilo Orwelliano de 1984, atente-se sim à sua apropriação retórica prejudicial: usadas como um trunfo capaz de calar qualquer opinião dissonante, somente facilitam a perpetuação das posições defendidas por ambas as partes envolvidas, sem qualquer reflexão ou discussão. As ideias ganham desta forma formato de dogmas, as pessoas ostracizam-se e o debate não passa de um aborrecido exercício de masturbação intelectual entre indivíduos que aborrecidamente partilham o mesmo set de ideias. Importante para nos fazer questionar o debate no sec.
XXI, a criação de uma aparente superioridade moral intrínseca a um conjunto de ideais tem vindo de igual forma a ser apontada como a culpada por gerar algo bastante mais perigoso: o sentimento de revolta e injustiça responsável por impulsionar algumas reviravoltas políticas que tristemente temos vindo a assistir nos tempos recentes. A veracidade desta explicação permanecerá certamente uma questão altamente debatível nos tempos conturbados em que vivemos, valendo, no entanto, a pena refletir sobre a etiologia apresentada. Mas não será esta a primeira (nem certamente a última) situação em que o silenciamento de uma opinião dissonante é tido como o caminho mais fácil. Já no sec.XIX, John Stuart Mill explicita de forma clara alguns aspetos que aqui merecem algumas linhas de destaque. Mill relembra-nos que a repressão de uma opinião contrária será sempre prejudicial no sentido em que implica negar aos indivíduos que a expressam a oportunidade de se libertarem do erro. Mais, o ato de defender uma opinião verdadeira contra posições falsas mantém a opinião viva, impedindo que se torne num dogma sem vida, incapaz de incentivar seja quem for a agir. Um último apontamento resta fazer de forma a ilibar o culpado aparente desta enorme trama. Apesar das suas condicionantes gritantes, as redes sociais não devem ser vistas como um pro-
blema em si mesmo, como aliás já tem sido proposto. Pelo contrário, a tecnologia (e principalmente a forma como a usamos) deve ser tida como um reflexo dos padrões e do pensamento de uma sociedade num tempo singular. Assim, quando o individualismo parece impor-se de forma inexorável, o desprezo rápido por opiniões diferentes não deve constituir qualquer tipo de surpresa. Quando somos movidos pela busca dopaminérgica mais rápida e fácil possível, o papel cada vez mais central das redes sociais também não deve ser surpreendente. Pelos olhos de uma imagem agradavelmente criada e projetada pelo próprio, o ser humano conseguiu criar um dos espaços mais confortáveis e acolhedores para existir, praticamente imune às falhas intrínsecas de cada um. Por enquanto, likes e seguidores não parecem conseguir frenar o aumento assustador de patologias do foro mental como quadros ansiosos severos, depressão e ideação suicida que temos vindo a assistir. Afinal o impacto do isolamento social é comparável ao consumo de 15 cigarros por dia. De todas as fantasias ideológicas que o ser-humano desenvolveu na sua história, a ideia de que cada indivíduo deve contar apenas consigo próprio para evoluir é talvez das mais opostas à natureza humana.
Edição XXV • 7 ressonância
8 • cronos
Ilustração: Catarina Paias Gouveia
sexualidade
ressonância • 9
sexualidade
Intersexo Do anonimato à fratura social
AUTORES Cláudia Silva João Bastos
“I’m not a woman, I’m not a man, I’m something you’ll never understand.” – Prince O termo intersexualidade foi utilizado, pela primeira vez, em 1917, pelo geneticista Richard Goldschmidt, num artigo intitulado “Intersexuality and the Endocrine Aspect of Sex”, publicado na revista Endocrinology. Desde então, foi ganhando cada vez mais popularidade e, na década de 1940, Alexander Cawadias sugeriu a substituição do termo hermafrodita por intersexo, o qual permanece na literatura médica desde meados do século XX. Mas afinal, o que significa intersexo? O termo intersexo é, fundamentalmente, usado para definir uma diversidade de condições que se relacionam com características do corpo incompatíveis com o padrão binário considerado normal para a genitália do homem e da mulher. Além de incluir ambiguidade da genitália, o termo intersexo pode estar relacionado com a influência de fatores ambientais, genéticos e hormonais, assim como com variações cromossómicas (distintas de XX e XY) e outros aspetos de dimorfismo sexual 10• SEXUALIDADE • cronos 10
(como o aspeto da face e a voz). É importante realçar que a intersexualidade é uma condição biológica completamente dissociável dos conceitos de género e orientação sexual. Por ser um tema que, ainda nos dias de hoje, parece envolver tanta polémica e falta de unanimidade, é fulcral desmistificar a divisão binária dos corpos (Corpo Masculino vs Corpo Feminino), construída por estereótipos sociais e que representa um dos flagelos da nossa sociedade. Isto porque, como sabemos, não há uma fronteira sólida entre sexos, mas sim um espetro de possibilidades. Assim sendo, até que ponto será correto contemplar a sociedade apenas a “preto” e “branco”, sem considerar todo o espetro de cinzentos que existe por entre essas duas cores? Os traços de intersexualidade podem estar presentes a diferentes níveis e patentear-se em múltiplas fases da vida. Muitas variantes das características sexuais definem-se, imediatamente, ao
nascimento quando, por exemplo, alguém nasce com órgãos genitais ambíguos (e, portanto, difíceis de classificar como masculinos ou femininos). Porém, ainda que a intersexualidade pareça uma circunstância inata, a verdade é que pode tornar-se evidente apenas em fases mais tardias da vida, nomeadamente durante a puberdade (quando se deteta infertilidade ou para algumas condições específicas que não resultam na ambiguidade da anatomia reprodutiva). Há então a irónica hipótese de uma pessoa viver e morrer com anatomia intersexual, sem que a própria se aperceba. Dito isto, qual será a opinião da classe médica em relação a considerar uma pessoa como intersexual? Atualmente, ainda não há um consenso claro entre os profissionais de saúde. Normalmente, os médicos realizam testes laboratoriais e outros exames para determinar exatamente qual a condição da pessoa. Embora a grande maioria dos intersexuais seja saudável, ex-
iste uma pequena percentagem de situações (como certos tipos de hiperplasia adrenal congénita) que podem implicar risco de vida, se não forem tratadas, e é por isso que uma pessoa intersexo deve procurar determinar o seu diagnóstico e verificar se necessita de cuidados de saúde. Recentemente, começou a ser utilizada a expressão “Distúrbios do Desenvolvimento Sexual” (sigla “DSD”) ao invés de “intersexo”, por estar associada a menos estigma e ser mais adequada, particularmente, no contexto médico. Algumas estatísticas estimam que cerca de 1 em cada 100 nascimentos desviam-se, de algum modo, da típica imagem feminina ou masculina e 1 em cada 1000 bebés nasce com aquilo que designamos de ambiguidade sexual. A genitália externa ambígua inclui: clitoromegália (um clitóris grande, com mais de 0,09 cm), micropénis (um pénis de tamanho inferior a 0,25 cm), escroto ou lábios parcialmente fundidos e hipospádias (malformação congénita em que o meato uretral se situa entre a glande e o períneo, em vez de se encontrar na extremidade da glande). Outras variações incluem: agenesia vaginal (vagina pequena ou ausente e útero ausente, deformado ou pequeno), agenesia gonadal (falha no desenvolvimento das gónadas), disgenesia gonadal (gónadas anormalmente formadas, parcial ou completamente disfuncionais) e mosaicismo genético. Neste sentido, algumas das principais causas de DSDs são: anomalias cromossómicas e genéticas, exposição in útero a
hormonas sexuais ingeridas ou produzidas pela mãe, ou variação aleatória no desenvolvimento. Averiguar a etiologia da DSD ajuda a enfatizar potenciais problemas como a insuficiência adrenal ou gonadoblastomas e pode auxiliar na determinação da probabilidade de uma criança subsequente vir a ser afetada. Não obstante, nem sempre é possível identificar a causa exata da variação sexual de um paciente. Emily Quinn trabalhou como assistente de produção no canal Cartoon Network, tendo-se já assumido como intersexual: apesar de ter uma vagina supostamente normal, no seu interior possui um par de testículos, ao contrário do que seria expetável (um útero e ovários). E eis a prova incontestável de que nem tudo é o que parece à primeira vista. Em termos de causas de intersexualidade, podem destacar-se 4 categorias: Intersexual 46, XX: A pessoa tem um cariótipo feminino e ovários, porém a genitália externa tem aparência masculina. Esta condição resulta, frequentemente, da exposição do feto feminino a um excesso de hormonas masculinas antes do nascimento. Entre as causas, refere-se: • Hiperplasia adrenal congénita (sigla HAC): é a causa mais comum, em que a produção excessiva de hormonas da glândula adrenal causa a masculinização dos genitais em crianças do sexo feminino e pode constituir uma ameaça à vida. • Deficiência de aromatase placentária: uma condição
autossómica recessiva caracterizada por masculinização da genitália externa no feto feminino, a partir do segundo trimestre. Intersexual 46, XY: A pessoa tem um cariótipo masculino, mas os genitais externos podem não estar completamente formados, ser ambíguos ou claramente femininos. Intrinsecamente, os testículos podem estar ausentes. Há muitas causas relacionadas, nomeadamente: • Disgenesia gonadal: quando há anomalias no desenvolvimento das gónadas, que resultam na presença de genitais femininos, apesar do cariótipo 46,XY. • Deficiência de 5-alfa-reductase: está associada a risco aumentado de criptorquidia. Há uma carência da enzima necessária para converter a testosterona em dihidrotestosterona, acompanhada de masculinização incompleta dos genitais em crianças do sexo masculino. Na puberdade, ocorre virilização e amenorreia primária. • Síndrome de insensibilidade aos androgénios: é a causa mais provável desta categoria, sendo também designada de feminização testicular. As pessoas nascem com cromossomas XY (geneticamente masculino), mas não respondem às hormonas masculinas (androgénios) e, por conseguinte, têm características físicas associadas às mulheres: crescem como raparigas, mas são inférteis. Intersexual verdadeiro: A pesEdição XXV • 11 ressonância • 11
soa tem, simultaneamente, tecido testicular e tecido ovárico, que podem estar na mesma gónada (ovotestis). Esta condição também se designa de verdadeiro hermafroditismo. Intersexual complexo ou indeterminado: Muitas configurações cromossómicas como: 45, XO e 47, XXX podem resultar em distúrbios do desenvolvimento sexual, sem discrepância entre os genitais internos e externos. Deve ter-se em atenção situações como: • 45, X (síndrome de Turner): uma monossomia parcial ou total do cromossoma X. Tem alta variabilidade fenotípica e associa-se a baixa estatura e sinais de falência ovárica, com fraco desenvolvimento pubertário. Em idade adulta, são comuns as irregularidades menstruais e a infertilidade. • 47, XXY (síndrome de Klinefelter): crianças do sexo masculino nascem com um cromossoma X extra (feminino), que causa tipicamente masculinização incompleta e outras anomalias. A ginecomastia é comum na puberdade e há ainda a possibilidade de azoospermia e atrofia testicular. No que diz respeito às recomendações atuais1, basta um olhar breve por elas para concluir que temos um longo caminho a percorrer no que diz respeito aos cuidados de saúde prestados a esta população singular. Centrados em sete princípios orientadores, vale a pena aqui expôr os mais decisivos, centrais não só para este contexto. Assim, os 12 • SEXUALIDADE cronos
cuidados dirigidos a pessoas intersexo devem, antes de mais, ter como objetivo evitar complicações que representem uma ameaça real para o bem-estar físico do paciente, não devendo, de forma alguma, ter como objetivo encaixar o indivíduo dentro de uma norma social pré-estabelecida. Tão importante será talvez a reiteração de que os tratamentos hormonais e as cirurgias devem ser adiados até que o indivíduo tenha capacidade para participar ativamente na tomada destas decisões. Apesar da tentação inata ao ser-humano em anular a diferença nos outros (seja por mecanismo de exclusão ou de manipulação física ou psicológica), devemos, antes de mais, como comunidade médica, e sobretudo como cidadãos, informarmo-nos e não ceder ao impulso de tomar uma decisão precipitada e irreversível. Considerando isto, apesar do desconforto que alguns pais naturalmente sintam perante a genitália ambígua do recém-nascido, é interessante perceber que este desconforto não existirá necessariamente na pessoa intersexo como, aliás, já tem sido relatado nos diversos casos que corajosamente chegam ao público. Inversamente, o que muitas vezes acaba por suceder, é um sentimento de revolta face aos procedimentos cirúrgicos que foram feitos, cujo caráter é, na maior parte dos casos, irreversível. O papel do médico terá então de ser apaziguador, explicando a natureza da situação e o impacto real para o bem-estar físico da criança. Infelizmente, o
que acontece atualmente parece estar algo afastado deste pensamento, que de utópico, aliás, pouco tem. Havendo poucos dados concretos sobre uma realidade que para muitos ainda é tabu, os relatos que hoje nos chegam continuam na mesma linha de pensamento que os tratamentos de correção da homossexualidade do século passado, isto é, persiste hoje a crença que o melhor para estas crianças é a realização de procedimentos cirúrgicos cujo o intuito se prende exclusivamente com a alteração das suas genitálias, de forma a que estas possam ser enquadradas dentro da norma social. O próprio ensino médico em Portugal ainda reflete esse mesmo modo de pensar. No que concerne a legislação, Portugal prepara-se para dar um passo em diante. Depois de Malta ter sido o primeiro país em 2015 a criar uma lei que proíbe cirurgias e tratamentos às características sexuais de menores sem o seu consentimento informado, Portugal segue estes mesmos passos, criando uma lei de índole idêntica. “O diploma refere que não devem ser realizadas cirurgias em crianças intersexo, a não ser por razões de saúde clínica, e só devem ser feitas após a identidade de género estar expressa”, afirmou a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Catarina Marcelino. Com uma prevalência estimada de cerca de 1,7% (mais ou menos a mesma que a percentagem de pessoas ruivas), a população intersexo permanece ainda nos cantos mais obscuros da nossa sociedade. Precisamente com
isso em mente, a manequim belga Hanne Gaby Odiele revelou, em Janeiro deste ano, fazer parte desta mesma comunidade. Diagnosticada com síndrome de insensibilidade aos androgénios (SIA), a modelo relembra-nos que a invisibilidade destas questões reside no facto de ainda persistir “uma espécie de vergonha em relação aos nossos corpos, como se não fosse suposto falarmos sobre isso”. Como muitas outras crianças com a mesma condição, Odiele passou grande parte da sua infância a entrar e a sair de hospitais, entre salas de operação. Atualmente com 28 anos, não hesita quando afirma “Tenho muito orgulho em ser intersexo, mas fico muito irritada que se continuem a fazer estas cirurgias. Ser intersexo não é uma coisa muito importante. Se tivessem sido honestos comigo desde o início… Tornou-se um trauma por causa do que me fizeram”, afirmou a modelo. Importa, pois, quebrar o ciclo de invisibilidade, de forma a romper com ideias prejudiciais que perduram desde o Iluminismo, altura em que o pensamento essencialista dominava as esferas do conhecimento, tanto a nível filosófico como científico. Para os essencialistas, a sexualidade humana pode (e deve) ser descrita como algo com características fundamentalmente inatas, uma espécie de facto universal e natural, inerente ao corpo. O sexo deverá assumir uma de duas possibilidades o que, por sua vez, determinará de forma linear o género e o sexo pelo qual a pessoa é atraída. A segunda metade do séc. XX viu nascer, no
entanto, uma corrente de pensamento que iria influenciar gerações. Em conjuntos com outros ramos do pensamento existencialista, um novo entendimento sobre a sexualidade começou a compreendê-la como um fator predominantemente socio-cultural. Uma construção humana, digamos assim, sem uma relação causal com a natureza biológica propriamente dita. Assim, a relação essencialista de obrigatoriedade entre sexo, género e orientação sexual (como se estivesse inscrita na natureza) é finalmente destronada, abrindo o caminho para a despatologização de realidades como a transgénero e a da homossexualidade. No entanto, apesar dos avanços tremendos realizados no âmbito dos direitos e da visibilidade da população LGBT, a sociedade permanece nos seus alicerces fundamentalmente igual, continuando a considerar de forma exclusiva a existência binária do sexo feminino e masculino. Falta, pois, uma verdadeira fratura capaz de dilacerar este pensamento. O corpo intersexual, não apresentando características facilmente associáveis aos estereótipos do sexo e do género na visão binária, tem o potencial de realizar precisamente isso. Rompendo e desconstruindo completamente a conceção essencialista sobre a relação entre sexo e género, a pessoa intersexo torna-se até provocativa, ao produzir uma certa perplexidade. O papel da comunidade médica na elaboração de construções sociais também aqui não pode ser esquecido. Com efeito, a
construção do sexo na idade moderna foi consolidada pela ciência, a partir do saber médico que definiu as características morfológicas, psicológicas e comportamentais de cada sexo, através de normas que são culturais, mas que foram naturalizadas pelos discursos científicos. Cabe-nos, agora, adaptar o nosso discurso ao mundo real e legitimizar, assim, a existência destas pessoas. Subjugados pelo obscurantismo medieval relativo às questões da sexualidade humana (que ainda hoje é promovido disfarçadamente pela Igreja), a questão intersexo apresenta-se com um potencial significativo para quebrar definitivamente determinados dogmas presentes na nossa cultura. Por mais que custe a alguns setores “reinterpretar” a passagem “Deus os criou: macho e fêmea os criou” (Génesis 1), a sociedade e, em especial, a comunidade médica, não pode simplesmente fechar os olhos à sistemática ostracização e submissão de crianças a procedimentos cirúrgicos estéticos de normalização, vítimas de um entendimento da biologia humana decrépito e fundamentalmente errado.
Referências
CLINICAL GUIDELINES. Consortium on the management of disorders of sex development. California: California Endowment and Arcus Foundation, 2008. 2 Gondim A, Viana A, Sousa E. O CORPO INTERSEXUAL COMO DESCONSTRUÇÃO DOS GÉNEROS INTELIGÍVEIS: UMA ABORDAGEM SÓCIO-JURÍDICA. 17º Encontro Nacional da Rede Feminista e Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações 1
de Género, 2013.
Edição XXV •• 13 ressonância 13
Sexo? Indefinido. A problemática do terceiro género. AUTORA Pilar Burillo Simões
A
pesar da estranheza que possa causar a uma percentagem cada vez menor da população, as questões relacionadas com identidade sexual são discutidas e abordadas na sociedade com progressiva naturalidade.
Apesar disto, a cada preconceito que vai lentamente cedendo seguem-se novas questões relacionadas com a própria multidisciplinaridade inerente à temática, que prevê aspectos sociais, legais e culturais que nunca conseguimos prever completamente. Dentro destas, a do terceiro género tem vindo a ganhar destaque em Portugal e no Mundo. Tudo começou, insuspeitavelmente, no desporto. Longe vão as verificações obrigatórias de sexo dos anos sessenta, as quais foram extintas trinta anos depois perante a evidência de que esta fronteira aparentemente simples nem sempre é discerníSEXUALIDADE 14 • cronos
vel. Pouco a pouco, a sociedade interioriza os conceitos de sexo genético, cromossómico, gonádico e hormonal. Perante a evidência da nossa própria diversidade biológica, esbarramos agora nas nossas próprias construções sociais, enfrentando a dificuldade de integrar não só toda a abrangência como a complexidade da própria identidade de género no conceito administrativo e social que é o sexo civil, categoria que inevitavelmente nos surge como cada vez mais redutora.
anúncio da “criação”, pela primeira vez num país europeu, do sexo indefinido. Em 2013, a Alemanha inscreveu nos seus documentos de identificação a opção X, além das tradicionais M e F, seguindo os passos da Austrália, Nova Zelândia e Nepal. O objetivo do legislador era reduzir a pressão sobre pais e médicos para tomarem uma decisão acerca do sexo do recém-nascido nos seus primeiros dias de vida, perante provas complementares e exame objectivo pouco esclarecedores. No nosso país nascem cerca de Pioneiros do terceiro género cinquenta crianças por ano nesta Em Portugal, a sociedade civil situação. Mais premente ainda, esbarrou nesta realidade com o esta lei veio travar cirurgias de
atribuição de sexo realizadas sem conhecimento da identidade que a criança irá construir no futuro que, apesar de hoje em dia serem potencialmente reversíveis, po-
culminaram na recente proposta de modificação da lei portuguesa (ver abaixo), foi emitido, no mês de Março, um parecer do Conselho de Ética para as Ciências da Vida
"Tudo começou, insuspeitavelmente, no desporto. Longe vão as verificações obrigatórias de sexo dos anos sessenta, as quais foram extintas trinta anos depois(...)" dem desencadear consequências sobre a temática. Surpreendenfísicas e psicológicas futuras. temente, este órgão mostrou-se favorável à criação de um terceiro Há já algum tempo que a ILGA (In- género, considerando a sua existervenção Lésbica, Gay, Bissexual tência fundamental para enquae Transgénero) defendia o alarga- drar as crianças abrangidas pela mento dos horizontes sociocultu- proibição da realização de cirurrais muito além das tradicionais gias e tratamentos farmacológicos “caixas” de “menino” ou “meni- em idades demasiado jovens para na”, sobretudo com o objetivo de que haja consentimento informaenquadrar legal e administrativa- do. mente estes casos mas, acima de tudo, de desmistificar a realidade Esta recomendação acompanha das pessoas que apresentam ca- o parecer do Conselho da Europa racterísticas de ambos os géneros junto dos seus Estados-membros, (intersexo) e das que não se iden- que considera que as crianças em tificam particularmente com ne- que não existe, de momento, um nhum (chamado género neutro). género definido, devem usufruir de reconhecimento jurídico pleno Na base destas modificações legais e, como tal, de um marcador legal está, por isso, a visão de que exis- de género neutro. te uma continuidade entre ambos os sexos ao invés de dois rótulos Uma outra recomendação incluíseparados que impelem à norma- da no documento procura manter tização de todos os indivíduos a dependência do processo legal para que se enquadrem apenas face ao processo médico. No pasnum deles, mesmo que isto não sado, o Conselho já rejeitara proreflita a sua identidade de género. postas que previam que as pessoas trangénero pudessem proceder à O parecer do Conselho de Ética alteração do Registo Civil sem um Na sequência dos trabalhos que diagnóstico médico prévio de dis-
foria de género, o qual é obrigatório de acordo com a lei que ainda se encontra em vigor à data de redacção. Apesar da receptividade destes especialistas, também entre médicos existem divergências. Aquando da entrada em vigor da nova lei alemã, a TSF recolhia as declarações do Dr. Miguel Oliveira da Silva, antigo Presidente do mesmo Conselho de Ética, classificando a possibilidade de um terceiro género como “um disparate”. Mais recentemente também o Observador reúne opiniões semelhantes de profissionais de áreas como a endocrinologia e a psicologia, que, não admitindo a existência de um sexo neutro, ponderam as potenciais consequências de “crescer na ambiguidade”. Quatro anos após a implementação da lei alemã, existem vozes que afirmam que a definição de um terceiro género
«não admitindo a existência de um sexo neutro, ponderam as potenciais consequências de “crescer na ambiguidade”» apenas agravou o estigma associado a estas crianças, agravando problemas já existentes num contexto escolar. De uma maneira geral, cresce o consenso entre a comunidade Edição XXV • 15 ressonância
médica de que é mais benéfico esperar que a criança se desenvolva até se enquadrar num determinado género do que apressar esse processo ou tomar essa decisão por ela. Todavia, são ainda muito poucos os profissionais que admitam a possibilidade da existência de indivíduos que não se identifiquem com nenhuma destas categorias e que não desejem enquadrar-se em qualquer dos dois sexos. A nova Lei de Identidade de Género A nova proposta foi finalmente aprovada em Conselho de Ministros em Abril deste ano (à data de redação aguardava ainda discussão no parlamento) e tal como a sua predecessora, vem adaptar-se às exigências de uma nova realidade. Numa primeira fase, cabia à justiça autorizar a mudança de género e nome próprio, sendo que a pessoa deveria processar o estado para esse efeito e apenas após cirurgia de reatribuição de sexo. O processo incluía um exame aos órgãos genitais do requerente realizado por um perito do Instituto Nacional de Medicina Legal que atestaria o “erro” a ser corrigido
cronos 16 • SEXUALIDADE
pelo estado. Desde 2011 esta alteração é apenas de cariz administrativo conforme se encontra descrito acima. A nova proposta segue apenas parcialmente as recomendações nacionais e internacionais. Tratando de esclarecer os ainda dúbios conceitos de sexo biológico, género e transgénero, dão-se passos importantes como a proibição das cirurgias corretivas até que a criança manifeste a sua identidade de género. Apesar disto, o diploma não só não prevê a criação de um terceiro género ou qualquer marcador legal equivalente como dissocia a vertente médica da administrativa, contrastando com as duas recomendações vinculadas no parecer do Conselho de Ética. Questões que permanecem… indefinidas A não criação de um terceiro género gera situações potencialmente dúbias. Não existindo esta designação, os pais não encontram resposta para o campo “Sexo” obrigatório na certidão de nascimento da criança em Portugal. Isto significa que, apesar de ser proibida a atribuição de sexo
à criança através de terapêutica médico-cirúrgica, esta é obrigatória do ponto de vista administrativo, o que representa uma adulteração da mesma. Adicionalmente, o diploma não prevê qualquer via de resolução para as situações em que haja desacordo entre os progenitores. Uma questão ainda mais absorvente é o sentido de evolução desta lei a nível internacional. Aquando da criação do terceiro género nos países em que ele já existe, este teve na sua origem uma natureza temporária, “de transição”, como categoria “guarda-chuva” para os indivíduos que ainda não tivessem a sua identidade de género definida. Mas o movimento social e interventivo caminha a passos largos para o reconhecimento de indivíduos adultos, com maturação física e psicológica completa, que não se identifiquem com nenhum dos dois géneros tradicionais, reivindicando o direito à escolha individual ao género neutro.
Transexualidade os dois lados da moeda
AUTORA
Júlia Ribeiro
N
a tentativa de simplificar um assunto complexo, entrevistei o João Guilherme Abreu e procurei esclarecer algumas das questões que podem surgir em torno da transexualidade. Porque acredito que conhecendo pessoas pela sua própria voz saberemos melhor como tratá-las.
Uma breve história Tive uma agradável conversa com o João Guilherme Abreu, que nasceu e cresceu em Felgueiras, distrito do Porto. Chamaram-lhe Rita. Prontamente me avisou que a sua história seria “cliché”. David Bowie dizia que os clichés o são porque são verdade. Desde cedo, brincava com rapazes e invejava a barba do irmão. Na adolescência o peito desenvolveu-se, bem como a sensação de que algo não estava bem. Aos 16 anos começou a sentir-se atraído por raparigas e concluiu que era uma rapariga “lésbica”. A primeira da escola e de Felgueiras, cidade que entretanto se tornou num “paraíso gay”, diz sorridente. Todavia continuava sem se sentir confortável. No 10º ano recorreu pela primeira vez à psicóloga da escola. A partir daí saltou de psicóloga em psicólogo e hoje pensa que por nunca se ter aberto completamente com eles, nenhum conseguiu chegar ao cerne das suas incertezas.
Por volta dos 20 anos, após 2 anos de faculdade, iniciou uma busca intensiva sobre a transexualidade. E sobre si próprio. Começou por sondar a namorada da altura, que sempre se considerara heterossexual, como seria namorar com um transexual. Esta afirmou estar tranquila se isso acontecesse. O Guilherme fez perguntas, por isso não pôde evitar as respostas e assim concluiu que o seu corpo não estava adaptado à sua mente. A mãe levou algum tempo a habituar-se à ideia, o pai disse-lhe que “já estava à espera”. Prontamente toda a família, constituída maioritariamente por pessoas mais velhas, ficou a par do que estava a acontecer. A avó pergunta-lhe por vezes porque é que a sua voz está a mudar. Os restantes elementos estão ainda a habituar-se à transição. O Guilherme iniciou o seu processo de reatribuição sexual em Coimbra em 2016. Viu um psiquiatra e de seguida teve de des-
locar-se a Lisboa para obter o segundo diagnóstico. De seguida, foi encaminhado para a consulta de endocrinologia onde ficou a saber que teria de esperar 6 meses para início da terapia hormonal, o que não lhe agradou. Tinha “ânsia de entrar na vida adulta e no mercado de trabalho com a sua identidade”. Por este motivo, o Guilherme procurou ajuda noutro endocrinologista - no serviço privado - que acelerou o início do tratamento hormonal com testosterona, há 3 meses. Esperas prolongadas (por diversos motivos) para tratamentos ou cirurgias são das queixas mais frequentes de transsexuais para com o serviço nacional de saúde, dado existir apenas um centro que efetua este tipo de tratamentos, em Coimbra. No privado é possível marcar uma cirurgia com 15 dias de antecedência. Ao longo de todo o processo o Guilherme retrata a sua saúde mental da seguinte forma: “está sempre up and down. Antes de Edição XXV • 17 ressonância
saber o que chamar-me estava constantemente em estados depressivos. Cheguei a cortar-me, porque me sentia desconfortável e nunca sabia porquê. À medida que o tempo foi passando, fui tendo ansiedade e crises de pânico, por causa desse desconforto e sentimento de não pertença. No entanto, quando descobri o que era foi também complicado, porque sabia o que teria de enfrentar daí para a frente e as dificuldades acrescidas que possivelmente iria ter na vida. Comecei a tentar ajustar-me, a tentar “gostar” mais do meu corpo, a tentar nutri-lo, por assim dizer. Eu comia muito para me sentir melhor e não fazia absolutamente nada, o que me levou a engordar uns 30 kg desde que entrei na faculdade. Tentei alterar os meus hábitos e com o começo do tratamento hormonal senti-me melhor, mais aliviado e com a sensação que iria sentir-me melhor daí para a frente. O que ninguém avisa, é que as mudanças demoram a ocorrer e isso pode provocar ansiedade, porque uma pessoa está tanto tempo à espera que depois acha que tudo vai acontecer ao mesmo tempo. Sinto também alterações inevitáveis de humor devido à testosterona.” Atualmente, há mais de 2 anos que vive como João Guilherme, pelo que já passou o teste real de vida. Encontra-se a completar a terapia hormonal e a tentar perder peso, para poder efetuar a mastectomia. Afirma que “a partir do momento em que comecei realmente a convencer-me de que tudo leva o seu tempo (...) 18 18 •• ENHANCEMENT cronos
Sinto-me muito mais confiante e a minha auto-estima está sem dúvida a aumentar, portanto a nível de saúde mental está tudo também a melhorar”. Que definições deve um médico saber?1 Género: masculino ou feminino é uma construção social. Sexo: Homem ou Mulher (biologia e fisiologia). Papel (Identidade) social de género: é a perceção de nós próprios como homens ou mulheres. É independente da genética. Orientação sexual: o que achamos sexualmente desejável. É independente do género, sexo e identidade de género. Perturbação de Identidade de Género (PIG) = Transexualidade = Transexualismo = Disforia de Género M->F: Male to Female (Transexual em fase de transição de Homem para Mulher) F->M: Female to Male (Transexual em fase de transição de Mulher para Homem) N.B. Disforia de género é diferente de Fetichismo Travestido (vulgo “travestis”), intersexualidade, anomalia cromossómica, hermafroditismo, pseudo-hermafroditismo (vide diagnósticos diferenciais). Como se faz o diagnóstico de Disforia de Género?1 Têm que estar presentes dois critérios (DSM-IV-TR): 1. Evidência de uma identificação de género cruzada intensa e persistente (desejo de ser ou
insistência de que se é do outro sexo) - Critério A 2. Evidência de um desconforto persistente acerca do sexo que lhe é atribuído ou sentir-se inapropriado no papel de género desse sexo – Critério B Esta identificação de género cruzada não pode ser apenas um desejo de ser do outro sexo em função de alguma vantagem cultural (ou outra). Além disso, para se fazer o diagnóstico de PIG tem de existir evidência de mal-estar clinicamente significativo ou dificuldade no funcionamento social, ocupacional ou noutras áreas importantes do funcionamento. Quais são os diagnósticos diferenciais a serem excluídos?1 - Não conformidade simples com o típico papel de sexo por predomínio dos desejos, interesses e atividades de género cruzado. - Fetichismo Travestido: ocorre em homens heterossexuais (ou bissexuais) para quem o travestir-se (vestir-se com o género oposto) tem o propósito de excitação sexual e alívio de stress. - Disforia de género sem outra especificação: problema de identidade de género com um estado intersexual congénito simultâneo (Ex: síndrome de insensibilidade parcial aos androgénios ou hiperplasia supra-renal congénita). - Psicoses / Esquizofrenia: raramente podem ocorrer ideias delirantes de pertencer ao sexo oposto.
- Intersexualidades orgânicas: Digenésias gonádicas: síndrome de Turner (X0), síndrome de Klinefelter (XXY); Hermafroditismo verdadeiro (indivíduos com ovários e testículos, têm cariótipos que incluem mosaicos de XX e XY - 46XX/46XY, 46XX/47XXY ou 45X/XY); Pseudo-hermafroditismo: - Masculino (défice de 5 alfa-redutase, síndrome do testículo feminizante, defeito da síntese de testosterona, síndrome do testículo evanescente. Têm cariótipo XY); - Feminino (hiperplasia congénita das supra-renais. Têm cariótipo XX). O que é necessário para dar início ao processo de reatribuição sexual (PRS)?1 - Elaboração do diagnóstico e avaliação clínica – são necessários 2 diagnósticos elaborados por equipas independentes para iniciar o processo; - Psicoterapia; - Teste Real de Vida; - Tratamento Hormonal; - Tratamento Cirúrgico; - Reconhecimento Legal. A ordem destes procedimentos não é fixa. O que acontece se a pessoa se arrepender?1 Existem várias histórias de transsexuais que após a fase cirúrgica se “arrependem”. Segundo João Décio Ferreira, este tipo de situações ocorrem em pessoas “vítimas de erro diagnóstico”. Deste modo, é necessário que o diagnóstico seja cauteloso, se
possível feito por equipas especialistas multidisciplinares de Sexologia Clínica. Boas notícias: em Portugal por enquanto não há conhecimento de nenhum caso de “arrependimento”, o que demonstra o rigor dos diagnósticos feitos no nosso país.
- Labioplastia: formação dos grandes e pequenos lábios com a pele do escroto e do pénis - Neo-vagina: formação de uma vagina que pode ser feita à custa da inversão da pele do pénis, de pele do pénis e retalho do escroto, de enxertos de pele, de retalho do cólon (intestino O PRS é a única hipótese para grosso) ou com enxerto de jeum transsexual?1 juno (parte do intestino delNão. A decisão de iniciar o PRS gado). depende do desejo do indivíduo, do apoio da equipa clínica e das Cirurgia mamária: colocação de condições para o avanço do pro- próteses mamárias, semelhante cesso. As alternativas são: a uma reconstrução mamária - um tratamento incompleto, em mulheres mastectomizadas. com abandono do PRS e/ou a Apenas se a hormonoterapia não aceitação do género biológico deu desenvolvimento mamário e do papel estereotipado - esta pretendido. opção leva muitas vezes a uma incongruência mente-corpo vita- Correção de outros caracteres selícia que pode causar sofrimento xuais masculinos: condroplastia ao indivíduo; tiroideia, cirurgia da face se ne- a vivência intermitente do pa- cessário feminizá-la são alguns pel de género desejado; exemplos. - a vivência completa do papel de género desejado, sem efetuar o Cirurgias Female to Male PRS. - Mastectomia bilateral Caso haja alguma indecisão, du- - Histerectomia rante o processo, o “relógio” do - Salpingo-ooforectomia Processo de Reatribuição Sexual - Vaginectomia (PRS) pode estar parado o tempo - Metoidioplastia: formação de necessário, sendo esta interrup- um pequeno pénis à custa do ção feita no superior interesse do clitóris (já muito aumentado doente. pela hormonoterapia) - Escrotoplastia: formação do 1 Que cirurgias se efetuam? escroto à custa da face exterCirurgias Male to Female na dos grandes lábios vulvares. Cirurgia genital: Depois colocam-se próteses tes- Orquidectomia ticulares no neo-escroto - Penectomia: resseção dos cor- - Uretroplastia: aumento do pos cavernosos e de parte dis- comprimento da uretra até à tal da uretra extremidade do neo-pénis - Clitoroplastia: formação de um - Faloplastia: formação de um clitóris com parte da glande neo-pénis de tamanho e forma Edição XXV •• 19 ressonância 19
semelhante o mais possível a um pénis de homem em erecção; existem várias técnicas para o fazer, normalmente à custa de retalhos de pele e tecidos do próprio.
dado que na maior parte das vezes se o médico efetua um pro- Referências: cedimento é porque acha que o 1De Freitas P, Monteiro I, Ferreira JD. Perturbação de Identidade de Género. deve fazer”. 3. Cuidar ativamente da saúde mental: a prevalência de perturbações psiquiátricas nesta população é assustadora: 41% dos transsexuais já tentaram o suicídio (comparativamente com 1-6% na população geral). Cerca de metade foi diagnosticado com depressão, quatro vezes mais que a população geral. Existem também níveis elevados de perturbação ansiosa. Estes números são explicados por diversos fatores, como mostrado no esquema anterior.
Os transsexuais são um grupo com risco aumentado de doença?2 Segundo uma revisão recente do Lancet, transsexuais são ainda alvo de estigma que pode levar a doença, sobretudo por muitas destas pessoas serem marginalizadas da sociedade. Consequentemente estão frequentemente numa classe socio-económica baixa, e a prevalência de trabalhadores sexuais e portadores de HIV nesta população é mais Onde se pode adquirir mais inelevada. Cuidados especiais a ter com um transsexual?2 1. Tratar as pessoas pelo nome pelo qual gostam de ser tratadas: o Prof. João Gorjão Clara ensinara-me a perguntar a todas as pessoas no início da consulta como gostariam de ser tratadas e tratá-las desse modo. O mesmo se aplica com transexuais. Algo que marcou de forma positiva o Guilherme foi ver alguns médicos substituírem manualmente nos processos clínicos “Rita” pelo seu nome. 2. Ter cuidado especial durante o exame mamário e dos órgãos genitais: alguém que não se sinta confortável com o seu próprio corpo pode ter algum pudor quando o médico o examina. O mesmo acontece nestes casos. Para o Guilherme “basta apenas ter delicadeza na abordagem, cronos 20 • ENHANCEMENT
formação? (além da bibliografia deste texto) Guidelines da World Professional Association of Transgender Health (WPATH) - http://www.wpath.org/ Lei n.º7/2011 de 16 de março http://www.joaodecioferreira.com “La piel que habito”, de Pedro Almodóvar. Apesar de não falar diretamente do tema o filme é uma metáfora muito bem conseguida. Deixo um agradecimento especial ao Guilherme Abreu que se mostrou sempre disponível a dar a sua contribuição. Parte deste texto foi baseada no documento “Perturbação de Identidade de Género”, do Dr. João Décio Ferreira.
http://www.joaodecioferreira.com/ media/pdfs/perturbacao-de-identidade-de-genero.pdf. Accessed May 8, 2017.
Winter S, Diamond M, Green J, et al. Transgender people: health at the margins of society. Lancet. 2016;388(10042):390-400. doi:10.1016/S01406736(16)00683-8. 2
enhancement
ressonância • 21
NOOTRÓPICOS O “SEGREDO” COGNITIVO DO SUCESSO?
AUTORA
Inês Miranda
D
o grego noos (mente) surgem-nos compostos, ditos milagrosos, para a amplificação das nossas limitadas capacidades mentais. Limitadas no irrisório tempo conjugado no espaço de infinitas páginas para ler, decorar e saber. Melhoram-nos o processamento da informação interno e externo e os sistemas de recuperação que constroem a tão útil e desejada memória. Sem toxicidade, adição ou outros efeitos colaterais. Estaremos perante a droga perfeita?
Etiologia Inicialmente usada com indicação para tratamento da Perturbação de Hiperactividade/Défice de Atenção (PHDA), a célebre Ritalina (Metilfenidato) ganhou popularidade no meio académico. Mais recentemente surgiu o Modafinil, o Deus da Narcolepsia, como um eficaz estimulante para maratonas de estudo sem dormir. Seremos todos doentes PHDA ou narcolépticos com alucinações hipnagógicas ou estaremos todos doentes por um maior boost intelectual para cumprirmos com aquilo que nos compete? Estamos rodeados de um mercado que apela ao enhancement tanto intelectual como físico. Precisaremos nós de nos sobrepor à nossa inata capacidade ou seremos nós cada vez menos capazes?
22• •ENHANCEMENT cronos 22
Bula medicamentosa A Ritalina é um estimulante do Sistema Nervoso Central, cujo mecanismo de acção assenta na inibição do re-uptake de Dopamina e Noradrenalina na fenda sináptica, aumentando deste modo a actividade destes neurotransmissores no córtex pré-frontal. Por este mecanismo, o café ou o red bull são colocados de lado, dando lugar à anfetamina milagrosa que nos mantém acordados, com maior concentração, maior rendimento intelectual e zero de fadiga. O Modafinil mantém o seu mecanismo de acção menos descodificado, mas pensa-se que esteja envolvido, de uma forma similar à Ritalina, à inibição do reuptake de Dopamina na fenda sináptica. Provoca, do mesmo modo, os mesmos
efeitos de alerta, concentração e energia. São ambos fármacos clinicamente estudados, eficazes, com evidência científica e aprovados pela FDA para o tratamento das patologias supracitadas. Quanto à Ritalina, a esperança vai desvanecendo, uma vez que, sendo uma Anfetamina, não existem estudos que avaliem os seus efeitos cognitivos em indivíduos saudáveis. Ainda assim, esta é amplamente usada por estudantes e, como qualquer anfetamina, há que ter em conta potenciais efeitos associados, tais como adição, febre, ansiedade, entre outros. E quanto ao boost cognitivo, este parece ser mais subjectivo, com a sensação de maior rendimento do que propriamente aquilo que é na realidade Já em relação ao modafinil, indivíduos
com privação de sono revelaram resultados positivos no que toca ao aumento da atenção e da concentração. No entanto, o problema centra-se na população considerada, indivíduos sem privação de sono e com cérebros “sãos”. Afinal, o que diz a Ciência?
provas que são utilizadas para avaliar a cognição das cobaias, de forma a que o efeito do fármaco seja avaliado de uma maneira mais fidedigna, até a uma forma “supra-cognitiva”. Os cientistas rematam ainda que o Modafinil possa ser merecedor do
A perspectiva liberal defende que a história humana, ou pelo menos, o progresso humano, constitui grande parte da história do enhancement. Reflexo disso recai na evolução das ferramentas, da tecnologia e da própria sociedade. A evolução é necessária
«Os cientistas rematam ainda que o Modafinil possa ser merecedor do título do primeiro agente nootrópico validado. Noutras palavras, o primeiro exemplo real de uma smart drug, que pode ajudar genuinamente na preparação dos exames.» O que diz a Ciência? Modafinil Uma nova revisão sistemática, publicada no European Neuropsychopharmacology, mostra os benefícios cognitivos do Modafinil no grupo em questão (indivíduos sem privação de sono e saudáveis), pelo menos em algumas capacidades. A revisão incorporou estudos de Janeiro de 1990 a Dezembro de 2014. 24 estudos demonstraram diferentes benefícios associados ao Modafinil, incluindo a capacidade de planeamento e de tomada de decisão, aprendizagem, memória e criatividade. Não teve efeitos na memória de trabalho ou na flexibilidade de pensamento. Quanto aos efeitos secundários, 70% dos estudos revelaram poucos efeitos colaterais, sendo que alguns reportaram insónias, cefaleias, epigastralgias e náuseas. Críticas foram feitas à sensibilidade, reprodutibilidade e validade ecológica dos estudos. As provas de cognição utilizadas eram inicialmente bastante básicas. Mais recentemente, os testes têm sido mais complexos. E denotouse que quanto maior a complexidade do teste, mais evidente se torna o efeito do Modafinil. Os cientistas concluem dois pontos importantes: 1 - apesar de alguns efeitos secundários, estes são poucos; 2 – os estudos têm de ser melhorados a nível de metodologia, nas
23 • ENSINO SUPERIOR
título do primeiro agente nootrópico validado. Noutras palavras, o primeiro exemplo real de uma smart drug, que pode ajudar genuinamente na preparação dos exames. Ética – Neurocool ou Neurouncool? No entanto, a Ética entra em campo neste debate de neuroenhancement… será tudo isto genuíno? Perdoar ou condenar uma droga que melhora a performance humana na ausência de disfunção cognitiva pré-existente? O facto é que o Modafinil não tem licença para esse uso e não o terá, devido às entidades reguladoras, mas bem sabemos que a regulamentação não é impeditiva da obtenção do fármaco. Duas forças opõem-se: a teoria conservadora vs a teoria liberal. A teoria conservadora constata que devemos preservar a natureza humana. Deste ponto de vista, o enhancement coloca em risco a existência humana, porque pode produzir alterações físicas e sociais indesejáveis nos seres humanos. A evolução não deve ser imposta. Segundo os conservadores, a biotecnologia desgasta os blocos de construção da dignidade humana, exemplificada pela disciplina e esforço que são requeridos para alcançar a excelência e promover a exaltação humana e a sua identidade.
e originária de todo o processo de promoção das capacidades humanas e das suas características. Por esta razão, o enhancement deve ser continuado de forma a reduzir o sofrimento e a melhorar a qualidade de vida humana. Conclusão A amplificação das nossas capacidades naturais através da ciência e da tecnologia não é um novo fenómeno. Independentemente das frentes éticas, os dois pólos do debate de neuroenhancement contribuem involuntariamente para um possível mito de nootropismo cognitivo. Ambas assumem (e grande parte da população também) que substâncias psicoestimulantes, promovem efectivamente a cognição. Temos de ser críticos a olhar os estudos quanto à sua validade e à sua fiabilidade empírica. Temos resultados a curto-prazo, mas a questão resume-se ao seguinte: E a longo-prazo? Estará a nossa memória inata a decair com o avanço da ciência, a decair no ócio da recorrência a vias mais fáceis e rápidas de informação? E por mais seguro que possa vir a ser, até que ponto devemos ir para além das nossas capacidades?
EdiçãoXXV XXII• •23 23 Edição ressonância
NEUROENHANCEMENTS da cafeína ao chocolate AUTORA Catarina Nunes
U
m café e um quadradinho de chocolate por dia, nem sabe o bem que lhe fazia. Para aqueles que adoram café e chocolate preto, aqui vêm excelentes notícias: cada vez se pensa mais que tanto a cafeína como o chocolate preto são neuroenhancers. Quer isto dizer que poderão ser substâncias capazes de melhorar o desempenho cognitivo em indivíduos saudáveis e prevenir doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer. O iMM (Instituto de Medicina Molecular) tem sido um dos centros de investigação a explorar intensamente esta área do Enhancement Cognitivo, como se verifica pela quantidade de papers publicados por investigadores do iMM sobre a cafeína e o chocolate. A cafeína e o chocolate preto têm algo em comum: ambos têm como alvo os recetores de adenosina A2A no cérebro e pensa-se que os efeitos protetores cognitivos advêm desta interação ligando-recetor. Contudo, estudos diferentes acreditam existir envolvimento de outros recetores que não estes. Neste ponto, devo avisar o leitor: no que toca a este assunto ainda nada é tomado como definitivo. Existem múltiplos estudos (sobretudo epidemiológicos) que tentam relacionar os efeitos de proteção cognitiva e perda de memória com a toma diária destas substâncias, sempre com várias ressalvas. A verdade é que ainda não se conhecem muito bem os mecanismos de ação da cafeína e do chocolate e os estudos epidemiológicos têm a desvantagem de não permitirem retirar
24• •ENHANCEMENT cronos 24
relações causa-efeito. Os estudos feitos em modelo animal apresentam outra desvantagem: recorrem a quantidades de cafeína ou chocolate muito pouco relacionáveis com aquilo que uma pessoa toma normalmente no dia-a-dia. Ou seja, as condições em que os estudos estão desenhados dificulta muito o extrapolar as conclusões para o modelo humano. Por último, uma outra limitação de desenhar estudos em seres humanos: é extremamente difícil ter um grupo de controlo de centenas de pessoas impossibilitadas de beber café ou comer chocolate durante anos, tendo em conta que estas substâncias estão tão presentes no quotidiano. Claro que poderíamos recorrer a populações que já de si não gostavam de café ou de chocolate, mas isso introduziria um viés já à partida no estudo. Apesar de todas estas limitações, muito tem sido estudado nesta área e várias conclusões preliminares têm sido retiradas, existindo ainda uma vasta área por explorar. Quanto à cafeína, as informações sobre os benefícios do café multi-
plicam-se: acredita-se que a cafeína é capaz de interferir com as fases iniciais dos processos neurodegenerativos que envolvem a unidade neurovascular, a disfunção da barreira hematoencefálica, a regulação pela insulina e a toxicidade sinática. É um antagonista não-seletivo dos recetores A2A que se pensa estar envolvidos em processos de plasticidade sinática (fundamental na memória e aprendizagem). Estudos em modelos de doença de Alzheimer em ratinhos têm demonstrado que a cafeína previne a deterioração da performance da memória. Outros estudos demonstraram que a cafeína consegue inclusivamente reverter a deterioração da memória relacionada com o avançar da idade em animais saudáveis mais velhos, não tendo efeito em animais mais novos. No seu conjunto, os estudos em animais permitem retirar uma forte relação causal que associa o consumo crónico de cafeína à melhoria da performance da memória. Uma das principais complicações associadas à Doença de Alzheimer
é a depressão e também nisto a cafeína pode ajudar, uma vez que é um regulador emocional associado a um risco reduzido de depressão. Nos estudos em seres humanos, as conclusões foram também muito positivas: a cafeína melhora a performance psicomotora, cognitiva e de memória em indivíduos saudáveis, particularmente em tarefas como escrever rápido num teclado, reagir rapidamente a dados estímulos, manter atenção sustida no tempo, exercícios de raciocínio lógico e até na condução. O próximo passo são os ensaios clínicos, sendo que para avançar com eles falta ainda compreender melhor o mecanismo de ação da cafeína e a sua interação com os recetores A2A. Várias questões permanecem por esclarecer. Quão extrapoláveis são as conclusões obtidas nos estudos em modelo animal para os seres humanos? Até que ponto é que os estudos epidemiológicos são representativos da realidade? Qual a quantidade de café que devo beber para ter estes efeitos benéficos de prevenção do declínio cognitivo? É possível que a partir de determinadas quantidades o café tenha efeitos deletérios? Um estudo realizado no iMM indica a concentração de 30 μM de cafeína como a dose ideal para se estudarem estes efeitos benéficos do café em humanos. No que toca ao chocolate preto, as vantagens do chocolate têm sido associadas aos flavonoides que fazem parte da sua constituição, assim como aos compostos de metilxantinas, nomeadamente a cafeína (está em todo o lado, não é?) e a teobromina. É de destacar
um estudo muito interessante feito no iMM: Chocolate Consumption is Associated with a Lower Risk of Cognitive Decline. Este estudo do iMM foi feito com base numa coorte de 2485 adultos a viver no Porto, tendo-se procurado relacionar o consumo de chocolate preto com a diminuição do declínio cognitivo. Para avaliar o desempenho cognitivo, utilizou-se o Mini-Mental Test, uma ferramenta muito simples de aplicar. Os resultados deste estudo sugerem que o consumo crónico de chocolate preto tem um efeito protetor no que toca ao declínio cognitivo em doentes idosos, definido pela redução em 2 ou mais pontos no Mini-Mental Test. Uma conclusão muito interessante retirada também é que estes efeitos benéficos do chocolate parecem ser mais consistentes nas mulheres do que nos homens, embora a diferença não seja muito evidente. É interessante perceber como algo tão simples e do quotidiano como o café e o chocolate tem um potencial tão grande para a saúde a vários níveis, não só a nível cognitivo. Mais ainda, a área do Enhancement cognitivo é uma área extremamente entusiasmante, onde ainda muito pode ser feito, mesmo tendo em consideração todas as limitações que foram referidas. A importância destes estudos é inegável por se focarem sobretudo na prevenção do declínio cognitivo, tendo em conta que as doenças neurodegenerativas são incuráveis até à data e a prevenção será provavelmente uma das armas mais poderosas que temos nas nossas mãos.
Referências: Franco R, Onatibia-Astibia A, Martınez-Pinilla E (2013), Health benefits of methylxanthines in cacao and chocolate. Nutrients 5, 4159-4173 Moreira A, Diógenes M, Mendonça A, Lunet N, Barros H, (2016) Chocolate Consumption is Associated with a Lower Risk of Cognitive Decline. Journal of Alzheimer’s Disease Ritchie K, Artero S, Portet F, Brickman A, Muraskin J, Beanino E, Ancelin M-L, Carri`ere I (2010) Caffeine, cognitive functioning and white matter lesions in the elderly: establishing causality from epidemiological evidence. J Alzheimers Dis 20(Supplement), 161-166. Arendash GW, Cao C (2010) Caffeine and coffee as therapeutics against Alzheimer’s disease. J Alzheimers Dis 20(Supplement), 117-126. Cunha RA, Agostinho PM (2010) Chronic caffeine consumption prevents memory disturbance in different animal models of memory decline. J Alzheimers Dis 20(Supplement), 95-116. Pelligrino DA,Xu H-L,Vetri F (2010) Caffeine and the control of cerebral hemodynamics. J Alzheimers Dis 20(Supplement), 51-62. Smith AP (2009) Caffeine, cognitive failures and health in a nonworking community sample. Hum Psychopharmacol 24, 29-34. Mendonça A, Cunha R, (2010) Concluding Remarks, Journal of Alzheimer’s Disease 20 S249–S252
Edição ressonância XXV • •25 25
Definição ou Ilusão? - uma polémica em crescimento -
AUTOR
Tiago Grohmann Pereira MODERN PRESSURES, ANCIENT QUESTS O Homem, sem garras ou couro, procurou desde sempre se adaptar às adversidades envolventes. O dia em que tomámos consciência da nossa finitude, quando recebemos esse fogo inconformista de Prometeus, lançamo-nos numa evolução desenfreada: Na pré-história realizámos trepanações com seixos1; na Ásia bebemos poções de metais pesados com sede do eterno2; nos tempos medievais a elite banhou-se no sangue inocente de virgens3… Na busca falhada do santo graal – imaginamos a imortalidade espiritual; quando aceitamos o limite imposto - criámos a ciência e a medicina. Hoje, com a velhice e a morte, sentados à mesma mesa, mantemos a poker-face e lançamos cartas cirúrgicas, trunfos hormonais e, talvez num futuro próximo, transplantes de cabeça. Fazemos bluff ou estamos a mudar o jogo de verdade? Quais os riscos, quais os benefícios e consequências a longo prazo? ANTI-AGING Actualmente, a hormona do crescimento, também conhecida como somatotropina, encontra-se bastante divulgada no combate ao envelhecimento. A (im)prensa, densa de imagens manipuladas, de figu-
cronos 26 • ENHANCEMENT
ras irreais, força-nos a aceitação de um único somatótipo – jovem, atlético, “photomorfo”! A hormona do crescimento é essencial para o bom desenvolvimento e manutenção de todas as estruturas celulares. Um aumento patológico desta hormona na infância resulta em gigantismo; depois das epífises estarem ossificadas, em acromegalia. Na década de 70, foi primeiramente colhida de cadáveres humanos antes de ser banida pelo aparecimento de casos de Creutzfeldt-Jakob4. A primeira versão análoga e biologicamente segura foi produzida na década de 80 com o nome de Somatropin5. Legalmente é usada em doentes seropositivos com caquexia, crianças com défices patológicos da hormona. Ilegalmente o seu uso foi abusivo até ao ano de 2000 por atletas olímpicos, uma vez que os aparelhos eram incapazes de distinguir os níveis endógenos dos exógenos4. A versão bovina, usada na criação de gado e leite, está proibida na Europa; a versão humana recombinante continua a ser consumida ilegalmente, na maioria sem supervisão clínica. YELLOW BRICK ROAD Ao contrário dos níveis de estrogénio
que sofrem uma queda abrupta na menopausa, a hormona do crescimento, tem um declínio gradual e continuado a partir dos 20 anos. Médicos americanos como o Dr. Oz, Dr. Life (retratado acima) e o conhecido médico português, Dr. Manuel Pinto Coelho, consideram ser este declínio a base de várias complicações da senescência. Propõem elevar a hormona para níveis basais correspondentes a uma faixa etária mais nova e assim oferecer um modo alternativo de envelhecer: com menos gordura, com maior libido, maior massa muscular e motivação. A premissa é: se tratamos deficiências de tiroxina e estrogénio com claros riscos/ benefícios, para uma melhor qualidade de vida, porque não fazer o mesmo com a hormona do crescimento ou com a testosterona? Asseguram que esse novo vigor previne o declínio mental e físico, promove uma maior independência e adia em décadas a necessidade de um apoio geriátrico. O preço destes tratamentos, muitas vezes combinados com aporte suplementar de testosterona, ronda entre os 200 a 2000 EUR por mês, durante 2 a 3 meses - os chamados ciclos. Custos, para a maior parte de nós, proibitivos. É ainda apenas um mercado alguns, como celebridades
tais como o Oliver Stone ou o Sylvester Stallone6. Riscos Os exemplos mais concretos chegam-nos de doentes com acromegalia ou do mundo sombra do halterofilismo. Níveis excessivos da hormona aumentam a divisão de todas as células: organomegália instala-se, hérnias desenvolvem-se; o coração perde função7; a mandíbula, as mãos e os pés aumentam desproporcionalmente e o risco do aparecimento de diabetes aumenta. Quando associada a testosterona acresce, a longo prazo, a supressão da produção fisiológica e impotência, ambas por aumento do feedback negativo4. Considerando que este aumento seria, à partida, mais ligeiro pela tentativa de alcançar apenas níveis médios fisiológicos, é sensato inferir que introduzir hormona do crescimento num corpo em envelhecimento, poderá suportar o desenvolvimento de maior número de células neoplásicas. Infelizmente, necessitamos de mais estudos para além de casos pontuais8. Benefícios? Está provado que a administração da hormona do crescimento ajuda à recuperação das fibras de colagénio após rutura9. Isto traduz-se em melhor recuperação pós-treino e diminuição de rugas. Em dois estudos randomizados e controlados, homens idosos, sob suplementação combinada de somatropina e testosterona, mostraram ganhos musculares concretos10 e um aumento da lipólise11. No entanto, em indivíduos jovens, com níveis basais adequados de somatropina, o ganho de força muscular foi reduzido e a perda de gordura pouca. Controvérsia Críticos na área médica, sabendo dos riscos e da falta de mais evidências para os benefícios publicitados, acusam esta prática de nociva e charlatã. Uma prática que se apoia na vontade primordial de sermos novos e numa sociedade envelhecida cada vez mais interessada.
Nos Estados Unidos, a venda deste medicamento com intuito de retardar o envelhecimento é proibida. Contudo é permitida a prescrição da hormona no caso de défice e é aqui que a margem de manobra se proporciona. Após vários testes hormonais, um grupo de médicos determina se a pessoa está deficiente ou não. Este é um valor intrínseco ao indivíduo, variável com a dieta e quantidade de sono12. Um valor médio teórico, de uma idade mais jovem que poucos saberão dizer. À semelhança de alguns casos de diagnósticos de asma em atletas de alta competição13, alguns profissionais poderão estar a incorrer em crime com fim de obter lucros sem uma base científica provada. Como médicos, devemos sempre assegurar o princípio da não-maleficência. Na dúvida não prescrever antes de primeiro testar a hipótese. THE MEANING OF LIFE É compreensível que, aos 70 anos, questões como infertilidade ou o desenvolvimento de cancro não pesem tanto em relação a uma maior capacidade muscular e maior independência nas últimas décadas da vida. Mais estudos são necessários para comprovar estes benefícios relativamente aos riscos que acarretam numa população idosa. Até lá, será melhor enveredamos por formas naturais de manter os níveis fisiológicos da hormona como uma boa higiene do sono (é produzida nas primeiras 3 horas e reduzida na presença de altos níveis de insulina ou álcool), jejum intermitente e exercício regular14. Como disse um dia Seneca (Romano, nascido a 5 AC - falecido a 65 DC) “É a Qualidade, mais que a Quantidade, que realmente importa!” Esta é uma era narcisista, preocupada com filtros e liftings. Acima de tudo, devemos aproveitar cada dia intensamente, crescer pessoalmente e recordar que, neste jogo com a velhice e a morte, nada está garantido
Referências:
Wylie, Robin (29 Agosto 2016). “Why our ancestors drilled holes in each other’s skulls”. 1
BBC Earth 2 Thorne, Tony (29 Junho 2008). “Countess Elizabeth Báthory: icon of evil”. The Telegraph 3 Pesquisado no Wikipédia (22 Maio 2017). “Chinese Alchemical Elixir Poisoning”. 4 Pesquisado no Wikipédia (22 Maio 2017). “Growth Hormone”. 5 Pesquisado no FDA.gov (20 Maio 2017). “Somatropin”. 6 Zeman, Ned (Março 2012). “Hollywood Vial’s Bodies”. Vanity Fair 7 Achar, S., Rostamian, A., & Narayan, S. M. (2010). Cardiac and Metabolic Effects of Anabolic-Androgenic Steroid Abuse on Lipids, Blood Pressure, Left Ventricular Dimensions, and Rhythm. The American Journal of Cardiology, 106(6), 893–901. http://doi.org/10.1016/j.amjcard.2010.05.013 8 Melmed, G. Y., Devlin, S. M., Vlotides, G., Dhall, D., Ross, S., Yu, R., & Melmed, S. (2008). Anti-Aging Therapy with Human Growth Hormone Associated with Metastatic Colon Cancer in a Patient with Crohn’s Colitis. Clinical Gastroenterology and Hepatology : The Official Clinical Practice Journal of the American Gastroenterological Association, 6(3), 360–363. http://doi.org/10.1016/j. cgh.2007.12.017 9 Erotokritou-Mulligan, I., Holt, R. I., & Sönksen, P. H. (2011). Growth hormone doping: a review. Open Access Journal of Sports Medicine, 2, 99–111. http://doi.org/10.2147/OAJSM.S11626 10 Giannoulis, M. G., Jackson, N., Shojaee-Moradie, F., Nair, K. S., Sonksen, P. H., Martin, F. C., & Umpleby, A. M. (2008). The Effects of Growth Hormone and/or Testosterone on Whole Body Protein Kinetics and Skeletal Muscle Gene Expression in Healthy Elderly Men: A Randomized Controlled Trial. The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, 93(8), 3066–3074. http://doi. org/10.1210/jc.2007-2695 11 Sattler, F. R., Castaneda-Sceppa, C., Binder, E. F., Schroeder, E. T., Wang, Y., Bhasin, S., … Azen, S. P. (2009). Testosterone and Growth Hormone Improve Body Composition and Muscle Performance in Older Men. The Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism, 94(6), 1991–2001. http://doi.org/10.1210/ jc.2008-2338 12 Saugy, M., Robinson, N., Saudan, C., Baume, N., Avois, L., & Mangin, P. (2006). Human growth hormone doping in sport. British Journal of Sports Medicine, 40(Suppl 1), i35–i39. http://doi.org/10.1136/bjsm.2006.027573 13 Fitch, K. (2016). The World Anti-Doping Code: can you have asthma and still be an elite athlete? Breathe, 12(2), 148–158. http://doi. org/10.1183/20734735.004116 14 Mawer, Rudy (3 Junho 2016). “11 Ways to Boost Human Growth Hormone Naturally”. Authority Nutrition
ressonância Edição XXV • 27
início de vida
28 • cronos
início de vida
AUTORA Ana Lúcia Fernandes
SUBSTITUTA Terá sido, por fim, no verão do ano passado, aprovada e publicada em Diário de República a lei n.º 25/2016, surgindo na necessidade de regulamentar o acesso à gestação de substituição. O debate foi grande. A primeira versão da proposta viu-se vetada pelo Presidente da República e as brechas eram amplas o suficiente para permitir passagem a um punho de instabilidade e crasso desvelo pelo útero ambicionado. A proposta foi então polida ao ponto de se incluir um contrato escrito que explicitasse as disposições das partes envolvidas em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez. A lei aprovada emerge como uma alteração à lei n.º 17/2006 relativa à procriação medicamente assistida. A gravidez de substituição seria então aprovada em casos específicos de ausência, lesão ou doença no útero que coagissem à impossibilidade de gestação, sendo proibido qualquer tipo de pagamento ou doação de bens, exceto os decorrentes dos cuidados de saúde, à gestante por parte dos beneficiários. É regulamentada uma gravidez gestacional, ou seja, a mulher que se disponha a suportar a criança não poderá ser dadora
de material genético, comprometendo-se no final da gravidez a renunciar aos poderes e deveres da maternidade. Serão os beneficiários os pais legais da criança. A lei portuguesa tende a proteger a gestante. Assim, sendo, para um ato totalmente altruísta como este observamos a total conservação da independência da gestante, proibindo qualquer restrição de comportamentos derivada dos beneficiários, a impossibilidade de celebração de contrato caso a gestante se encontre economicamente subordinada aos beneficiários, a imposição de idade máxima tanto dos pais como da gestante e a permissão da fertilização in vitro de apenas um embrião de modo a limitar as probabilidades de gravidez de risco.
Caminhando agora para os beneficiários, uma alteração da lei n.º 33/2006, efetivada também no ano passado, dilui a massa viciada de casais heterossexuais para um espectro inclusivo de todas as mulheres, independentemente do seu estado civil. Daqui deduz-se que o útero é prioritário, que a lei visa proteger o direito à utilização pela mulher do seu corpo com o fim da reprodução, excluindo-se a possibilidade de reprodução dentro de casais homossexuais masculinos e de homens solteiros. O primeiro país a ter legislação relativa às chamadas “barrigas de aluguer” terá sido o Reino Unido, aplicada em 1985. A sua posição atual é a de que a mulher gestante é a mãe legal, mesmo que não tenha ocorrido doação de oócito da sua parte, defendendo exclusivamente
Edição XXV• 29 • 29 ressonância
a gravidez de substituição altruísta. Por outro lado, a gravidez de substituição comercial é permitida em países como a Índia, Ucrânia e Rússia. Isto implica que casais que não consigam suscitar abnegação suficiente que resulte em empréstimo de útero alheio recorram a estes últimos destinos. Aqui surge o problema do rombo na lei internacional. A globalização deste tipo de gestação pode levar a crianças sem estado e não elegíveis para passaporte se nem os beneficiários nem a gestante forem pais legais nos seus países. Uma série de questões éticas de resposta aberta e criativa podem e deverão surgir. No entanto, foquemo-nos agora em questões de natureza deontológica resolvida e resolução palpável como a exploração vigente em mulheres desprivilegiadas que aceitam ser gestantes a troco de dinheiro em países subdesenvolvidos. Na Índia, a proteção judicial destas mulheres é escassa, dando azo ao usufruto dos seus úteros pelos seus maridos, à sua segregação durante a gravidez para hostels fechados da sua comunidade e ainda à possibilidade de não execução do acordo monetário estabelecido ou à recusa do bebé devido a problemas de saúde. Ainda nesta linha, podemos refletir sobre o caso do baby Gammy, um bebé com síndrome de Down deixado na Tailândia com a gestante que o terá concebido, a ele e à sua irmã gémea saudável. O casal australiano manteve a bebé saudável, descobrindo-se, entretanto, que o pai australiano teria sido anteriormente condenado ju-
30• •EDUCAÇÃO INÍCIO 30 cronosDE VIDA MÉDICA
dicialmente devido agressões sexuais a menores. Se a mãe tailandesa não tivesse aceite a custódia deste bebé, o seu destino seria o do orfanato. Torna-se aqui evidente o descuro da justiça internacional relativamente aos direitos destas crianças. Expostos estes factos, considera-se per-
o seu corpo como entender. Seria então essencial que estas mulheres tivessem disponibilidade de decidir, desviadas de qualquer pressão ou coercividade ocorrente em países onde a deficiente regulamentação permite a sua exploração. E relativamente à adoção? É, de facto, um
«E não, a gravidez de substituição comercial não degradaria a mulher porque esta tem o direito de utilizar o seu corpo como entender. Seria então essencial que estas mulheres tivessem disponibilidade de decidir, desviadas de qualquer pressão ou coercividade ocorrente em países onde a deficiente regulamentação permite a sua exploração.» tinente a reformulação da associação da gravidez de substituição comercial a algo moralmente reprovável, alterando as normas por que esta se rege. Se uma gravidez de substituição altruísta não é suficiente e se observa o ladear desta norma devido à escassez de generosidade, talvez seja de bom tom refletir sobre a implementação de regulamentação relativa à gravidez de substituição comercial. Se esta fosse limitadamente permitida, situações como as anteriores seriam evitadas. Porque não estabelecer um número máximo de vezes que uma mulher poderia ser barriga de aluguer, um limite mínimo e máximo da quantia disponibilizada à gestante, um acomodamento contratual que protegesse principalmente os interesses da futura criança? E não, a gravidez de substituição comercial não degradaria a mulher porque esta tem o direito de utilizar
processo sério que precisa de ser regulamentado e bem normalizado, mas será que se fosse menos burocrático não permitiria uma ligeira redução de recorrência a estes serviços internacionais? Se fosse mais fácil adotar do que alugar uma barriga, provavelmente este ato, também bem altruísta, seria fomentado. Por fim, não será essencial a uma democracia contemporânea a oportunidade de mutabilidade e adaptação da justiça consoante as práticas correntes? A flexibilidade deverá constar no rodapé do processo criativo regulamentar, já que o ético-socialmente reprovável terá sofrido suficientes mutilações para termos consciência das normas voláteis que inclui. Leis como a n.º 25/2016 precisam de ser estimuladas de modo a que encaixem mais e mais corretamente na moldura geral.
“Designer Babies” a nova revolução? AUTORA AUTORA Mafalda Jorge Ana Lúcia Fernandes Na era em que vivemos, uma era mar- cer o que está a ser feito, é preciso ter cada por um grande avanço tecnológico consciência dos riscos e das vantagens. e científico, damos por nós mesmos en- Acima de tudo, é preciso não nos esvolvidos num mundo que se move a um quecermos dos valores e conceitos mais ritmo alucinante, por direções ainda essenciais da Humanidade, do valor de não calculáveis. Damos por nós perdi- uma vida e da igualdade das várias vidos num mundo que constrói novos ca- das, da natureza primordial do mundo minhos através de pequenos progressos e das diferentes naturezas de cada um que, quase sem nos apercebermos, se de nós. vão tornando em algo gigante, algo que tanto tem de fascinante como de temí- Um designer baby é definido como um vel. Damos por nós mesmos fascinados embrião humano geneticamente mocom a possibilidade da mudança e do dificado com o objetivo de se adquirir progresso, mas, ao mesmo tempo, ater- um certo conjunto de características rorizados com um desconhecido que se desejáveis. Uma nova técnica de ediaproxima demasiado rápido, demasiado ção do genoma denominada CRISPRambicioso e, sobretudo, demasiado in- -cas9 está a revolucionar o mundo da consciente. ciência e está a tornar este conceito de designer baby cada vez mais concretiO real problema é quando não nos da- zável. Novos passos estão a ser dados mos conta da velocidade com que a nessa direção. Cientistas chineses iniciência avança e das decisões que estão ciaram, em Junho do ano passado, um a ser tomadas em nosso redor e que, a ensaio pioneiro utilizando a técnica do qualquer momento, vão ser também as CRISPR-cas9 para modificar células hunossas decisões, as quais podemos não manas. Um doente com um cancro de estar preparados para tomar se não ti- pulmão agressivo recebeu as células vermos o devido conhecimento sobre as modificadas como parte do ensaio clínipossíveis consequências do que se avizi- co no West China Hospital, em Chengnha. É, por isso, de extrema importân- du, tornando-se, então, a primeira vez cia ter noção de que há conceitos, con- que se injetou uma pessoa com genes siderados de “ficção científica”, que se editados utilizando a revolucionária e tornarão numa realidade brevemente. ainda controversa técnica do CRISPRE o conceito de designer baby é defini- -cas9. De uma forma simples e sucinta, tivamente um deles. E é preciso conhe- esta técnica combina uma enzima com
uma sonda molecular programada para localizar e direcionar a enzima para o local do DNA onde esta tem de “cortar”. Esse segmento de DNA é então eliminado e, seguidamente, adiciona-se uma nova sequência na posição previamente determinada. Este método tem sido preferencialmente utilizado na edição genómica devido à facilidade da sua execução em comparação com outras técnicas. Contudo, há muitos cientistas preocupados com a rapidez com que se está a evoluir neste campo sem conhecimento total das possíveis implicações e riscos desta tecnologia. Além do ensaio que se iniciou na China, outras decisões foram tomadas a nível mundial. Por exemplo, também no mês de Junho, foi aprovado, nos Estados Unidos, uma proposta para utilizar o CRISPR-Cas9 para criar células imunitárias geneticamente alteradas para atacar três tipos de cancro. De igual forma, também no Reino Unido, em Fevereiro do ano passado, foi permitido a uma equipa do Instituto Francis Crick o uso da mesma tecnologia em embriões humanos para o estudo do seu desenvolvimento inicial. Todas estes passos têm estimulado o debate ético acerca deste tema por todo o mundo. Como foi acima mencionado,
Edição XXV • 31 ressonância
é inegável que a manipulação genética de um embrião humano pode apresentar diversos usos terapêuticos. Mas estaremos de facto conscientes das mudanças que poderão advir se tais avanços continuarem? Estaremos de facto preparados para uma nova concepção de sociedade? Estaremos de facto cientes de que cada porta que se abre é mais um passo irreversível rumo à realidade dos designer babies? Estamos, mesmo sem darmos conta, cada vez mais próximos dessa realidade e, por essa razão, é necessário conhecermos os seus benefícios mais importantes e as suas
No entanto, mesmo que o objetivo primordial desta manipulação genética seja a melhoria da saúde e do bem-estar do indivíduo, depressa caminhará até ao enhancement genético não terapêutico, com o objetivo de melhorar os humanos física e intelectualmente. Este enhancement conduzirá, de certa forma, a uma perda da personalidade individual e das características mais peculiares de cada um, pois tentar-se-á ir de encontro ao conceito de perfeição. É como que uma pré-definição do humano, pois os pais decidem previamente como querem que o seu filho seja sem o consentimen-
«Cada um tem um papel a desempenhar. Se cabe à Escola Médica educar para publicar, depende do estudante, num segundo tempo, publicar para se educar. » implicações éticas, para que sejamos cidadãos informados, conscientes e participativos. Em primeiro lugar, é relevante mencionar que a manipulação genética dos embriões humanos oferece inúmeras vantagens, entre as quais as mais importantes são a diminuição da probabilidade de desenvolver doenças hereditárias e outras doenças genéticas, como o Alzheimer, a síndrome de Down, a síndrome de Huntington, entre outros. Ao descartar os genes defeituosos e manter apenas os genes saudáveis, permite-se automaticamente que a saúde do bebé melhore, o que se traduz num aumento da esperança média de vida.
32 INÍCIO 32 ••• EDUCAÇÃO cronos DE VIDA 32 MÉDICA
to do mesmo. É como que uma restrição da liberdade individual de cada um, moldando os filhos não através da educação que lhes pretendem fornecer, mas sim através da manipulação prévia das suas características. Além disso, os designer babies irão apresentar diferenças óbvias em relação aos outros bebés que nasceram de forma natural, o que irá originar uma clara divisão social, uma vez que os designer babies irão provavelmente transparecer um sentimento de superioridade relativamente aos que não foram geneticamente modificados, por serem mais bem-sucedidos, mais inteligentes, mais saudáveis, mais bem-parecidos...
Contudo, é importante compreender que a tecnologia ainda está numa fase de experimentação e que ainda não se compreende completamente o tipo de implicações que pode ter na disposição genética futura do bebé, assim como o modo como um designer baby poderá afetar a árvore genealógica no futuro. Independentemente da nossa posição em relação aos designer babies, é de extrema relevância compreender que esta será uma decisão “para sempre”, uma vez que, ao alterar material genético, estamos a alterar não apenas o DNA daquele bebé, mas também o DNA de toda a geração que lhe seguirá. Desta forma, nunca poderá ser uma decisão tomada de forma inconsciente e não sustentada. Terá de ser uma decisão informada, eticamente correta e cientificamente comprovada. E esta decisão será uma decisão irreversível. Sim, irreversível. Pois, a partir do momento em que se criar o primeiro designer baby, mesmo que unicamente para uso terapêutico, abrir-se-á uma porta, impossível de fechar. Espero, apenas que, abrindo ou não essa porta, nunca nos esqueçamos que somos sempre, sempre seres humanos, e não apenas um conjunto de células com informação genética, modificada ou não.
'Eu, no fundo, não invento nada. Sou apenas alguém que se limita a levantar uma pedra e a pôr à vista o que está por baixo. Não é minha culpa se de vez em quando me saem monstros.' - José Saramago
ENVIA OS TEUS ARTIGOS PARA RESSONANCIA@AEFML.PT ESTAMOS SEMPRE À PROCURA DE NOVOS COLABORADORES!
ressonância • 33
crónica
O não-lugar AUTOR
Afonso Delgado Gonçalves
U
ma das características que nos torna humanos é a capacidade de decidir entre o bem e o mal, algo que por vezes consegue ser bastante vago. Esse é o lado reverso da moeda de termos uma consciência e de sermos dotados de raciocínio. O Homem, no seu egoísmo inerente, tenta muitas vezes encaixar a moral nas ações que já tencionava realizar. Somos amorais por natureza, no entanto somos capazes de discernir o que é certo e errado. Parece contraditório a princípio, mas realmente não o é. Uma coisa é saber o que é certo, outra coisa é aplicá-lo e viver de acordo com isso. Como diz o ditado: “De boas intenções está o inferno cheio.”. O ser humano caminha numa linha ténue que nunca cruza e trabalha com cinzentos. Sermos bons é uma escolha totalmente nossa, não deve depender das circunstâncias, nem das nossas motivações. O que define um homem moralmente correto é a capacidade que este tem de fazer o que está certo, mesmo que não lhe seja favorável, isto é, trabalha a preto e branco. Trata-se de colocar de lado a nossa pessoa, para nos tornarmos maiores do que nós. Com isto, se calhar, tem-se uma vida acompanhada de algumas injustiças e incómodos, mas vive-se de consciência limpa, que é talvez das ambições maiores que se pode ter na vida. Mas o que são o bem e o mal? Esta é uma das grandes questões filosóficas que acompanham a humanidade desde de sempre. Será que nascemos com estas noções impregnadas
34 • CRÓNICA
no nosso espírito ou que somos condicionados pela sociedade e época? O medo da morte é o grande motivador para muitas das ações corretas e incorretas do homem. Há que ver que o humano morre, como ser mortal que é, mas aspira a uma imortalidade terrena. É neste egoísmo infantil de se querer ser lembrado que reside algum do altruísmo que observamos no Homem. Por outro lado, temos também o envolvimento da religião. O temor ao inferno ou a um Deus serve de base para o conceito de castigo divino, em que uma má ação será devidamente castigada e uma boa, por sua vez, recompensada. Se calhar matar o vizinho que não me deixa dormir por pôr música às três da manhã não vale o bilhete para as chamas. A ética é, assim, altamente cultural, algo passível de ser ensinado e treinado. Idealmente, caindo um pouco na utopia, uma ação boa devia ser realizada por si mesma, sem se querer nada em troca, uma espécie de ato incondicional. Infelizmente, tirando algumas exceções, nós não estamos programados para fun-
cionar assim. Quase que vivemos cheios de uma Vontade, algo instintivamente egoísta, que não vê bem nem mal, apenas comportamentos. A sociedade e a civilização, por outro lado, precisam do bem e do mal para moldar o homem a uma vivência pacífica entre pares. Acima de tudo, se o Homem, como indivíduo, é amoral, a sociedade, como o colectivo do homem, não o pode ser para funcionar. O Homem é um ser amoral, com o poder de escolha para ser moral. É esta capacidade de não sucumbir aos instintos que precisamente nos torna humanos. No fundo, esta é a única maneira de estarmos perto de atingir a imortalidade que tanto desejamos. Só nos tornamos eternos quando nos convertemos em algo maior que nós, e apenas nos transcendemos quando fazemos o bem não pelo medo da morte, mas sim pela retidão do ato em si. Seja na nossas vidas profissionais ou pessoais, as nossas ações tem consequências que afetam os outros, portanto vale a pena refletir sobre elas.
ressonância Edição XXV • 35
Ilustração: Sofia Pessoa Jorge
edição comemorativa da 25ª edição da revista RESSONÂNCIA -
36 • cronos