Ressonância XXII - Amani

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Ressonância edição XXII | dezembro 2015 | distribuição gratuita

amani Educação Não-Formal

Medicina Humanitária

Objetivos do Milénio

Grande Entrevista

Literacia em Saúde

Atrás das grades em Guantánamo

Metas até 2030

Doutor Jorge ressonância • 1 Sampaio



MENSAGEM INICIAL

A

mani. Termo swahili para paz. A palavra de ordem da actualidade e que nos deve acompanhar no dia-a-dia e para todo o lado. Deve espelhar-se no nosso falar, no nosso andar, no nosso olhar, no nosso pensar. Num ano que já leva mais ataques terroristas do que dias, o estado de espírito global encontra-se ameaçado pelo medo, a insegurança e o preconceito. Agentes da discórdia como o auto-proclamado Estado Islâmico, qual comboio desgovernado, potenciam o propagar da doença do ódio além-fronteiras e alimentam as bocarras escancaradas e insaciáveis das trevas, que se alastram a todas as nações do planeta. Urge o estabelecimento de uma sintonia mundial. As redes sociais deram-nos a aldeia global e há que tomar essa realidade como uma vantagem preciosíssima no combate à guerra e à intolerância. Os ataques de Novembro passado em Paris despoletaram uma onda de solidariedade pelo mundo fora como há muito não se via. Se um hashtag tem efeito? Muito pouco. Se outros focos de miséria e morte foram, por comparação, praticamente esquecidos pelos holofotes dos media na mesma altura? Foram. São-no quase diariamente. Infelizmente, muitas são as vidas que se apagam todos os dias, vítimas da violência do Homem, sem que o planeta se aperceba, relegadas, na melhor das hipóteses, à condição de estatísticas debitadas num telejornal. Mas nem por isso a união de milhões de pessoas no luto dos seus semelhantes desconhecidos tem menos valor. Enquanto houver humanidade, haverá Homem.

no panorama actual do estado da civilização e procurando sensibilizar ainda mais os estudantes de medicina para as crises de valores e direitos básicos que atravessamos, decidiu a redacção da revista RESSONÂNCIA centrar a sua vigésima segunda edição na Medicina Humanitária e no papel do médico em missão. A intervenção do profissional de saúde em missão humanitária está revestida de obstáculos que o médico habitual não encontra na sua prática clínica e perigos para os quais nenhum dos dois foi preparado. Falha. Falha constantemente apesar de todos os esforços em contrário. Mas nunca desiste. Nunca deixa de lutar pela humanidade, a sua e a de todos. Almeja a equidade no acesso aos cuidados de saúde. E aí reside o coração mais secreto do ideal do médico. A total e cega entrega de si (a dado momento da sua própria vida) em prol do outro, do doente, do necessitado, com os meios e saberes que tiver ao seu dispôr. Paralelamente, chegados à data acordada entre 189 países na Declaração do Milénio, procuramos entender o que não mudou e, mais preocupante, porque é que não mudou. Depositamos toda a nossa esperança nos dezassete novos objectivos mundiais, esperando que em 2030 sejamos uma Humanidade síncrona, iluminada e sustentável, em paz consigo e com a sua Terra. Sejamos nós, médicos do futuro, portadores do ramo de oliveira. Sejamos estandarte da cura e da liberdade. Sejamos agentes da mudança. Sejamos humanos. José Durão

Conscientes então da relevância desta temática

Coordenador-Geral da revista RESSONÂNCIA

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Ficha Técnica

Índice

editores Ana Raquel Estalagem Catarina Paias Gouveia José Durão Sebastião Martins

CRÓNICA

redação Afonso Delgado Gonçalves Afonso Schönenberger Braz Francisco Barbosa Inês de Sousa Miranda Joana Cabrita João Ramalhão José Rodrigues Miguel Esperança Martins Nuno Fernandes Nuno Ribeiro Patrícia Pires Pedro de Vasconcelos Monteiro Pilar Burillo Simões Sebastião Martins Sérgio Bronze Vasco Ricoca Peixoto design gráfico e capa José Durão ilustrações Catarina Paias Gouveia impressão e propriedade

Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 300 exemplares

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05 | Maria e Manuel

EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL 08 | Massive Open Online Courses 10 | Mudar de país ou mudar o país? 12 | Literacia em Saúde

MEDICINA HUMANITÁRIA

16 | Valerá a pena o risco? 19 | Grande Entrevista Doutor Jorge Sampaio 24 | Atrás das grades em Guantánamo 27 | Medicina Humanitária Falhada 28 | Democratizar porque sim 1º lugar do concurso Je suis Journaliste

OBJETIVOS DO MILÉNIO INVESTIGAÇÃO

36 | IMM - Maria Mota Lab 37 | 2º cérebro intestinal

CRÓNICA

38 | Humanitas

Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.


Editorial “Três soldados americanos entraram na casa de Elahi. Aminah gritou, um grito agudo como uma doença. Tudo se encheu de medo, até as paredes, que pareciam tão sólidas. E ali estavam todos naquele momento singular, um tabuleiro medianamente preto com peças desarrumadas, um chá derramado no tapete, Aminah aos gritos, soldados americanos com armas. Fazal Elahi encostou-se à parede, Aminah mantinha o seu grito agudo, o mudo Badini permanecia impassível. (...) Houve uns segundos, talvez no singular, em que a cara de uma criança olhou para a cara de um soldado: opostos, completamente opostos. Todo o universo parou nessa altura, meio criança, meio soldado. Depois ouviu-se uma arma e o fim do mundo aconteceu. O soldado ganhou a guerra contra uma criança, como aliás acontece quase sempre: as crianças perdem tudo, até a juventude. Perdem guerras, perdem inocência, perdem pureza, perdem o cheiro a bebé. O Mal venceu com todas as armas que tem e o Bem perdeu com todas as armas que não tem. Foi assim que Fazal Elahi viu o filho morrer. Com uma bala do destino, do acaso, mas também do injustificável, de duas cebolas e de uma astrologia pouco benevolente. Aminah correu para junto de Salim e agarrou-lhe a cabeça desfeita, como uma sombra, como um bocado de naan entregue aos pássaros. Com a cara ensaguentada, ela gritava para o céu, toda vermelha do sangue que tinha por dentro e do sangue que tinha por fora. Fazal Elahi estava de joelhos e levantou-se muito devagar. Deu uns passos em direcção a Aminah e enconstou-se a ela enquanto os soldados se retiravam.”

CRÓNICA

MARIA E MANUEL AUTOR

Sérgio Bronze

M

aria e Manuel são as personagens desta história, unidos pelo anel oxidado, ao qual se soma o fastio próprio do tempo. Seria uma história normal se Manuel e Maria não passassem grande parte dos seus dias imbuídos nos problemas do mundo. Na fúria do desapego ao que é material, entre páginas de Orwell e Camus, não se esquecem do projeto que é viver. Quezílias somente com as injustiças e com as lágrimas em vão. É a forma gentil como Manuel desenha as palavras na frase que conquistou o coração mole de Maria, cuja solidez de espírito magnetizou a atenção de Manuel. Maria, mulher de tarefas hercúleas, vive castrada num mundo de domínio masculino. Não se conforma com o estado de hipnose em que grande parte das suas congéneres se encontra mergulhada, e, para si, a democracia é como que uma santa de altar, da qual já nem milagres se esperam. Reconheço-lhe alguma utopia nessa ávida batalha pela igualdade. Manuel, bom marido, ceifa dia após dia os campos áridos da ignorância. Eterno sabedor, cuja vida é escrita a par e passo com a caneta que há muito perdeu o encanto. Defende que o esquecimento é o mal comum, esquecemo-nos até de nós. Negligenciamo-nos numa tentativa de ascensão distópica, num sequestro ao que o outro espera de nós. Ensaiamos hoje aquilo que seremos amanhã. Caímos na penumbra pela diluição da vontade e sentimos raízes a brotar dos pés. Porém, Maria e Manuel jamais se entregam às trivialidades. Cedo acordam, rápido se envolvem no clima que recria o casamento e atentos permanecem ao desenrolar das horas, tomando sempre o máximo como pouco. Não só o destino interessa, o trajeto é eminentemente essencial, e é nessa certeza que cada inspiração é tida como a última. Chegada a estação das chuvas, depositamos na água as esperanças que nos Homens não arriscamos depositar, para que arraste tudo aquilo que é obsoleto e jamais merece atenção, a lembrar uma indulgente simbiose do etéreo e do natural. Estamos a soro numa sociedade que se julga renovada. Os problemas de ontem, em parte são os problemas de hoje e arriscam ser os de amanhã. Maria e Manuel morrem sem ver a mudança para a qual lutaram. Sejamos Maria e Manuel.

in Para onde vão os guarda-chuvas de Afonso Cruz

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O QUE HÁ DE NOVO AUTORES Afonso Delgado Gonçalves Francisco Barbosa

“Caça” ao cancro do pâncreas

Nervo vago e o parkinson

Dias contados para a distrofia muscular?

Como será o mundo

100 anos?

daqui a

A taxa de sobrevivência aos 5 anos de indivíduos com cancro do pâncreas é de apenas 5%, prevendo-se que seja a 2ª causa de morte no mundo. O que o torna tão mortal é a sua deteção numa fase já avançada. Durante este ano, um novo estudo encabeçado pelo M.D. Anderson Cancer Centre descreveu uma proteína, a GPC1+crExos, relacionada com exossomas das células cancerígenas. Os investigadores foram capazes de distinguir, com 100% de acuidade, entre indivíduos com doença pancreática benigna e com uma fase precoce de cancro do pâncreas. Quando retirado o tumor, os níveis desta proteína diminuíam bastante. Esta descoberta pode levar à produção de um teste sanguíneo para o diagnóstico precoce deste cancro.

O trabalho de investigadores da Universidade de Aarhus e do respetivo hospital universitário indica que o Parkinson pode começar no trato gastrointestinal e espalhar-se pelo nervo vago para o cérebro. Foram avaliados cerca de 15 000 doentes que tiveram o seu nervo vago cortado (procedimento comum no tratamento de úlceras entre 1970 e 1995), observando-se que, quando totalmente decepado, os doentes estavam protegidos da doença e o risco era diminuído após 20 anos. No entanto, doentes que apenas tivessem um corte pequeno não tinham proteção.

A forma mais comum da distrofia muscular - distrofia muscular de Duchenne (DMD) - é causada por uma mutação genética que leva à perda de função da proteína conhecida por “distrofina”. A sua ausência leva à degeneração muscular e invariavelmente à morte. A novidade é que investigadores da Universidade de Missouri conseguiram curar cães com DMD. Através de terapia genética, com um microgene contendo o gene terapêutico, os cientistas conseguiram injetar esse microgene através de um vírus e direcioná-lo para as células musculares. Testes em humanos vão começar em breve.

Decorreu no início do mês de dezembro, na fundação Champalimaud, uma conferência onde se discutiu como será o mundo daqui a 100 anos. O encontro juntou três prémios Nobel e nomes como António Damásio e Jorge Sampaio. A questão, partilhada por vários cientistas, não é se devemos abandonar o nosso planeta Terra e procurar outra “casa”, mas sim quando o devemos fazer. Robert Horvitz (prémio Nobel da Medicina em 2002) acredita que dentro de 100 anos a cura para o cancro vai ser uma realidade e que todos os mistérios do cérebro vão ser desvendados. Para estes cientistas, o futuro não está daqui a 100 anos mas sim naquilo que construímos agora.

O QUE HÁ DE NOVO 6 • cronos


educação não-formal

ressonância • 7


educação não-formal

APRENDER COM OS M PLATAFORMAS IDEAIS AUTORA

Pilar Burillo Simões

F

oram lançados pela primeira vez em 2008 mas contam já com milhões de participantes em todo o mundo, ganhando um peso indiscutível na formação de hoje. Em resposta a este fenómeno, fez-se um levantamento das melhores plataformas virtuais que difundem educação e conhecimento pelos quatro cantos do mundo. Mas o que são os MOOCs (Massive Open Online Courses)? São cursos disponibilizados online para serem frequentados por um número ilimitado de participantes. O ensino é muito semelhante ao que se poderia encontrar numa universidade, com cursos que duram entre 4 e 10 semanas e que incluem aulas gravadas, bibliografia recomendada e avaliação através de trabalho escrito ou exame. Mas a partir deste ponto a oferta é quase infinita. É possível aprender virtualmente sobre todas as áreas do conhecimento em cursos oferecidos por universidades de prestígio ou desenhados por utilizadores individuais com experiência no tema. Enquanto a grande maioria dos cursos de formação em áreas especializadas ocorre em datas específicas e exige o cumprimento de prazos, uma fracção menor opta por uma metodologia self-paced: em qualquer altura do ano e seguindo o ritmo do próprio estudante. No que diz respeito a custos, a grande maioria das plataformas disponíveis oferece múltiplas oportunidades de formação gratuitamente, exigindo apenas o pagamento de uma taxa para proceder a uma certificação verificada. Muitos oferecem declarações de participação a custo zero, depois de serem aceites os termos de um código de honra que compromete os estudantes a rejeitarem qualquer tipo de fraude.

8 • EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL

EdX Criado em 2012, através de uma parceria entre a Universidade de Harvard e o MIT, o EdX pretende melhorar o acesso à educação de elevada qualidade a nível global, oferecendo cursos ministrados por algumas das melhores universidades do mundo, como o Instituto Karolinska ou a Universidade de Toronto. De desenvolvimento sustentável à gestão de projectos, passando pela programação, os cursos encontram-se organizados por universidades, áreas do conhecimento e datas de realização, tal como acontece na maioria das plataformas. No que diz respeito à Medicina, as hipóteses não são menos interessantes: entre os cursos que já foram ministrados encontra-se o Genomic Medicine Gets Personal, organizado pela Universidade de Georgetown ou o Improving Global Health: Focusing on Quality and Safety, da Universidade de Harvard, ministrado pelo Diretor do Harvard Global Health Institute, e que contou com a colaboração de órgãos de governo de países como o México e o Ruanda e organizações como a OCDE e o World Bank. Cursos a acontecer brevemente: An Introduction to Global Health (31 de Março), promovido pelo Instituto Karolisnka e ministrado por docentes de Saúde Internacional, oferece uma visão

alargada sobre as disparidades entre cuidados de saúde dos vários países. Coursera Muito provavelmente a maior fornecedora de MOOCs com fins lucrativos. Criada em 2012 por dois professores da Universidade de Stanford, iniciou a sua actividade com a colaboração das Universidades de Princeton, Michigan e Pensilvânia, contando hoje com muitas outras como Brown e Yale. Sofreu uma reestruturação recentemente, da qual resultou que muitos dos cursos previamente gratuitos passaram a ser pagos. Apresenta no entanto algumas opções mais interessantes que outras plataformas: certificados de especialização para os alunos que completem uma série integrada de cursos sobre determinado tema, creditação na universidade organizadora do curso, para um número crescente de cursos, e até um iMBA (Masters in Business Administration) totalmente creditado, resultado de uma parceria entre a plataforma e a Universidade de Illinois. Aqui também se aprende de tudo, do desenvolvimento pessoal à computação. Em Medicina a variedade é enorme e inclui cursos em modalidade self-paced: estão disponíveis, por exemplo, o Fixing Healthcare Delivery da Universidade de Florida sobre a qualidade dos serviços de saúde ou o Healthcare for


MELHORES SEM SAIR DE CASA: AS PARA DESCOBRIR OS MOOC’s all through primary healthcare, da Universidade John Hopkins, que explora a importância dos cuidados de saúde primários. Quanto aos cursos que apenas podem ser realizados em datas específicas, é possível efectuar uma subscrição das suas páginas e receber notificações quando uma nova edição começar: terminadas recentemente estão as últimas edições dos cursos Teaching and Assessing Clinical Skills da Universidade do Michigan e Understanding Research da Universidade da Califórnia. Cursos a acontecer brevemente: Global Health and Humanitarianism (15 de Fevereiro), da Universidade de Manchester, voltado para o voluntariado na área da Saúde Global e Medicina Humanitária. Institute for Healthcare Improvement Open School O Institute for Healthcare Improvement (IHI) é uma organização sem fins lucrativos cujo principal objectivo é melhorar a qualidade dos cuidados de saúde a nível global, sendo a formação uma das suas principais vertentes. É neste sentido que surge a IHI Open School, uma plataforma de acesso gratuito para estudantes e profissionais de saúde que aspira a formar a próxima geração de improvers através de cursos sobre segurança dos pacientes, capacitação para a mudança ou liderança, sendo que cada formação é individualmente certificada, existindo um Basic Certificate in Quality and Safety para quem completar os cursos para tal pré-definidos. Actualmente, esta plataforma, que foge aos MOOCs tradicionais por funcionar através de pequenos módulos constituídos por aulas de curta duração, soma já

mais de 265 000 alunos. Academic Earth A Academic Earth é outra plataforma que recolhe os melhores cursos disponibilizados por Universidades como Harvard, Oxford, Yale ou MIT. Fundada em 2008, mantém uma filosofia de conteúdos gratuitos por defender o acesso às melhores ferramentas de aprendizagem. Basta escolher uma área de interesse para ter acesso a cursos que vão desde as Engenharias às Humanidades. Destaca-se uma selecção muito interessante dentro do campo Medicine and Healthcare, um conjunto de vários cur-

«BASTA ESCOLHER UMA ÁREA DE INTERESSE PARA TER ACESSO A CURSOS QUE VÃO DESDE AS ENGENHARIAS ÀS HUMANIDADES.» sos sobre Administração Hospitalar que oferecem formação sobre políticas de saúde, finanças corporativas para administradores hospitalares e saúde global. Mais do que Medicina… Para quem quiser ir para além da Medicina existem várias plataformas especializadas em formação em muitas outras áreas. Fruto do trabalho de professores da Universidade de Stanford, a Udacity começou em 2008 apenas como um

projecto experimental com o curso Introduction to Artificial Intelligence. Rapidamente recebeu mais de 160 000 inscrições em mais de 190 países levando à constituição formal da plataforma que aspira a “fazer uma ponte entre as capacidades de trabalho no mundo real, a educação relevante e a empregabilidade”, oferecendo formações sobre informática, programação e engenharia de software desenhadas por parceiros como a Google ou o Facebook. Dentro do desenvolvimento profissional, a Skilled Up oferece “soluções de formação” para indivíduos e empresas no campo das working skills, em quatro áreas específicas Creative, Technology, General Education e Business. Esta plataforma em concreto tem o objectivo de complementar a formação clássica dos estudantes, de forma a torná-los aptos para o mercado de trabalho e para a construção de uma carreira. Com um espectro de interesses bastante mais centrado no desenvolvimento pessoal, a Udemy apresenta-se como um “mercado de aprendizagem” online, uma designação apropriada considerando que todas as suas formações são pagas. Conta já com 35 000 cursos e 9 milhões de estudantes que aprendem sobre yoga, fotografia ou animação 3D. As opções são muitas e estão em crescimento. Graças ao desenvolvimento das novas tecnologias, o ensino e a aprendizagem estão acessíveis a qualquer pessoa e há quem já fale dos MOOC’s como o futuro da formação, quer para quem procura actualizar e complementar a sua formação académica especializada, quer para quem pretenda apenas aprender sempre mais.

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Mudar de país AUTOR

Miguel Esperança Martins

O

COSMOPOLITISMO enquanto marca indelével do ambiente cultural em que crescemos forjou-nos enquanto geração. Há clichés que marcam momentos e crónicas que caricaturam tendências. Um desses clichés, verdadeiro por sinal, consiste na constatação de que crescemos numa aldeia global. Começámos a ouvi-lo imediatamente após a eclosão da expressão de forma a conferir-lhe um enquadramento simultaneamente dinâmico e prático (como se a expressão por si só não fosse carregada de dinamismo e aplicabilidade real). Foi sendo composto no que à sua significância diz respeito e rodeado de noções e expressões laterais, embora sempre claramente relacionadas com a dimensão transmitida pela expressão original. De facto crescemos, mas não nascemos numa aldeia global plenamente estabelecida enquanto tal. O desenvolvimento das diversas sociedades neste sentido, potenciado por inúmeros factores de diversas naturezas, foi simultâneo com o nosso desenvolvimento enquanto indivíduos em termos biológicos, intelectuais e culturais. E foi neste paralelismo de desenvolvimento, embora a ritmos diferentes em períodos distintos, que foi esboçado um dos traços mais característicos da formação humana e profissional de excelência de toda uma geração. Actualmente, na esmagadora maioria das áreas profissionais (independentemente do quadrante a que pertencem), a experiência internacional é tida como marco capital e necessário no que à superior qualidade de um currículo diz respeito. A variedade de técnicas e de metodologias existentes em diferentes centros espalhados por todo o globo reflectem as diferenças no que à abordagem pedagógica, meios económicos, traços culturais e mesmo idiossincrasias con-

10 • EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL

cerne. É no contacto com a pluralidade de modos de pensar a realidade e de procurar soluções para problemas, específicos e distintos, mais ou menos concretos que reside, teoricamente, a importância de uma experiência internacional. É igualmente na possibilidade de convivência com diferentes culturas, e de integração em diferentes sociedades, associada ao convívio com colegas provenientes dos mais diversos locais e realidades, que vive a essência do enriquecimento pessoal numa experiência profissional fora de portas. Na ciência médica, embora exista ampla variedade de métodos de rastreio, actuação clínica e desenho de estudos, os métodos analíticos e expositivos são cada vez mais homogéneos e lineares por força dos critérios optimizados definidos por sociedades europeias e internacionais das especialidades e por revistas e publicações médicas de excelência (enquanto difusores de

sentadas pelos doentes no quotidiano hospitalar e no contacto privilegiado inter-pares com colegas com formação académica e substrato cultural muito próprios e distintos. Portugal cumpre, com brio e brilhantismo, na sua tarefa de produzir profissionais de saúde muitíssimo bem preparados na vertente teórica do conhecimento, na capacidade explicativa, perante doentes e alunos, e expositiva, essencialmente perante colegas, e na conjugação entre excelência científica e humanidade na prestação de cuidados de saúde. Testemunhei, nos diferentes estágios que realizei, na Europa e na América do Sul, a excelente bagagem teórica que temos, comparativamente aos colegas locais, e a nossa superior capacidade de adaptação em termos de actuação, discurso e exposição de ideias face a diferentes doentes, integrados em diferentes culturas e sociedades. Peca-se, no nosso país, essencial-

«Testemunhei, nos diferentes estágios que realizei, na Europa e na América do Sul, a excelente bagagem teórica que temos, comparativamente aos colegas locais, e a nossa superior capacidade de adaptação em termos de actuação, discurso e exposição de ideias face a diferentes doentes, integrados em diferentes culturas e sociedades.» informação fidedigna e de qualidade). A variável está não só nas distintas estratégias de actuação clínica e de planificação e modo de desenvolvimento de estudos, mas também na maior ou menor heterogeneidade de patologias, em vários estados de gravidade, apre-

mente na vertente prática da formação, nomeadamente no conhecimento aprofundado e direccionado de temas de aplicação prática quotidiana nos serviços de urgência e nas enfermarias (como as noções básicas de fluidoterapia, anestesiologia, entre outras), e no


treino e realização de actos diagnósticos ou terapêuticos, quer sejam manobras integrantes do exame objectivo, quer sejam gestos clínicos (como transporte de vários tipos de doentes, punções, suturas simples, noções básicas de ecografia, entre outras). Em certa medida, o segundo ponto é justificado pela inexistência de modelos/simuladores enquanto produto de uma falta de meios financeiros que assola o ensino superior globalmente e que, por sua vez, é resultado do estado da economia nacional. No entanto, relativamente a este ponto, nem tudo pode ser justificado por esta realidade e, também e principalmente no que diz respeito ao primeiro ponto, urge uma restruturação dos objectivos programáticos das unidades curriculares e, quiçá, da organização global curricular. É inegável que nos são oferecidas condições para sermos excelentes portadores do saber médico e magníficos aplicadores desse mesmo saber, muito embora exista ainda ampla margem para optimizar a formação prática pré e pós-graduada e persista a necessidade de um esforço suplementar, pessoal e próprio de cada um, para se atingir um patamar satisfatório na execução da maior fatia das tarefas quotidianas a que somos chamados (como complemento aos aspectos básicos cujo cumprimento é preconizado pelo plano de estudos actual). Baseado nos pressupostos que foram elencados, é minha firme convicção que os estágios extra-curriculares ou curriculares no estrangeiro durante o curso são fonte inesgotável de enriquecimento do saber médico através da observação de novos métodos e estratégias e de proximidade, em contexto clínico, com múltiplas patologias com diferentes prevalências nos locais de estágio, de fomento de cultura médica, de aperfeiçoamento da dimensão prática da arte médica, de aquisição de experiência diversa no contacto com colegas formados noutros sistemas e educados noutras culturas e de crescimento pessoal marcante. A qualidade da formação pós-graduada assenta na continuidade, em

«É INEGÁVEL QUE NOS SÃO OFERECIDAS CONDIÇÕES PARA SERMOS EXCELENTES PORTADORES DO SABER MÉDICO, E MAGNÍFICOS APLICADORES DESSE MESMO SABER [...]» termos qualitativos, de uma formação pré-graduada de excelência a todos os níveis, na aquisição constante e permanente de sensibilidade clínica, na optimização de toda a capacidade prática através da repetição de gestos e procedimentos em doentes, e na evolução da capacidade compreensiva, dialética e comunicativa, em sentido lato, com o doente. A formação pós-graduada e a prática profissional fora da nossa pátria tem um patamar qualitativo variável consoante o local considerado, mas permite, num bom número de destinos, ter como bónus a tal pluralidade de modos de pensar a realidade e de procurar soluções, de convivência com outro tipo de patologias e a possibilidade de coexistência com diferentes culturas, e de integração em diferentes sociedades com

potencial ampliação da rede de contactos profissional. Acresce ainda a existência, em alguns locais, de períodos do horário laboral reservados para investigação clínica, e a recompensa monetária que é, efectivamente, em muitos casos atraente face às condições oferecidas no nosso país. Por mais que se teorizem os aspectos acima expostos, a decisão, nesta fase formativa e no futuro profissional, fará sempre, e apenas, sentido de acordo com os objectivos, aspirações e rumo de cada um. Dependerá sempre da escolha da especialidade e opção por uma experiência nos centros de referência, da aposta, num determinado grau, numa vertente de investigação, do desejo em procurar experienciar o contacto próximo com uma cultura particular ou com uma multiplicidade de culturas em simultâneo, da procura de estabelecimento de relações profissionais com colegas como porta de abertura para colaborações futuras em diferentes pontos geográficos e em diferentes órgãos, do desejo em exercer a nível clínico ou institucional em centros clínicos e organizações internacionais. Face à questão que serviu de mote, “Mudar de país ou mudar o país?”, a resposta permanece e permanecerá em aberto. Cabe a cada um responder à questão e completar os espaços em branco.

ou Mudar o país?

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PORTUGAL E A

LITERACIA EM SAÚDE AUTOR Vasco Ricoca Peixoto

H

á algum tempo que a literacia em saúde tem vindo a ganhar importância na nossa sociedade e já não era sem tempo. Existe cada vez mais investigação a ser publicada sobre este tema e uma crescente preocupação social com a prevenção em saúde e em intervenções em áreas como a educação, os cuidados de saúde e as políticas públicas. Afinal, o que é a literacia em saúde? Segundo o CDC (Centers for Disease Control and Prevention), a Literacia em Saúde é “a capacidade de obter, ler, compreender e usar informação sobre saúde para fazer decisões de saúde apropriadas e seguir instruções de tratamento”. A WHO vem acrescentar que a literacia em saúde “é o conjunto de capacidades cognitivas e sociais que determina a motivação e a capacidade dos indivíduos para aceder, compreender e usar informação de forma a promover e manter uma boa saúde. É mais do que ler panfletos e marcar consultas. Ao aumentar o acesso à informação sobre saúde e a capacidade das pessoas para a usar de forma eficaz, a literacia em saúde é fundamental para a capacitação da sociedade e de cada indivíduo.” A literacia em saúde é mais que informação. É conhecimento e consciência real dos riscos e da motivação para tomar decisões certas em termos de saúde. Tem

12 12••EDUCAÇÃO RESSONÂNCIA NÃO-FORMAL

impacto em diversas áreas das nossas vidas: desde os comportamentos de risco em termos de consumos e hábitos de alimentação e actividade física, até à forma como se vive e compreende a sexualidade e o planeamento familiar; desde a forma como se compreende os problemas de saúde mental, à incapacidade de assimilar informação médica simples sobre risco, como fazer um tratamento ou como melhor gerir a sua doença, a sua utilização dos serviços de saúde e até o seu tratamento. O impacto a nível social e económico é enorme. As consequências da literacia em saúde são, em primeiro lugar, respostas que influenciam escolhas do dia-a-dia de cada um: Quais são os riscos de consumir determinada substância ou de ter determinados comportamentos para a minha saúde, desenvolvimento e relacionamentos? Porque é que certos hábitos são maus e outros são bons? Será que devo confiar nesta informação? Onde posso procurar informação de qualidade? Que riscos existem? Como posso encontrar motivação para fazer as escolhas certas e defender-me de pressões que influenciam negativamente as minhas escolhas e a minha vida? Como posso identificar um potencial problema de saúde e proteger-me? Como é que as mudanças sociais e políticas à minha volta podem afectar a minha saúde, a minha felicida-

de e o meu futuro? A literacia em saúde é uma peça fundamental numa sociedade verdadeiramente democrática e uma peça fundamental para a capacitação das pessoas, para protegerem a sua qualidade de vida e daqueles à sua volta. Mas o que é que nos garante que a literacia em saúde muda comportamentos? Provavelmente já ouvimos alguém dizer que as pessoas podem ter conhecimento e continuar a fazer os mesmos erros em termos de decisões de saúde numa sociedade complexa, com problemas socioeconómicos, e repleta de marketing para vidas pouco saudáveis. Sem dúvida que todos estes factores têm influência nas decisões individuais de saúde mas, entre muita investigação que tem sido feita em literacia em saúde, há um estudo que se destaca a nível Europeu: o Health Literacy Survey Europe (HLS-EU). Este inquérito, com perguntas de todas as áreas da literacia em saúde, feito em 9 países, com cerca de 9000 participantes da União Europeia incluindo Portugal (apenas posteriormente, com financiamento da Gulbenkian Inovação em Saúde) define, de acordo com um sistema de pontuação de respostas, vários níveis de literacia. Os resultados, para além de mostrarem que aproximadamente metade da população tem literacia problemática ou insuficiente, indicam que Portugal é um dos países


com pior literacia em saúde e que existe uma forte relação positiva entre os níveis de escolaridade e socioeconómico e o nível de literacia em saúde. As pessoas com níveis de literacia mais elevados têm uma percepção da sua própria saúde como sendo melhor do que aqueles com literacia mais baixa, fumam menos, têm menor percentagem de ex-

o local privilegiado. Em comunidades e famílias com maior literacia em saúde os jovens têm tendência a ter melhores resultados escolares e a ser mais produtivos e saudáveis mais tarde na vida. Em comparação, nos meios mais desfavorecidos a literacia em saúde é muito inferior, podendo o seu aumento ser uma ferramenta para a mudança e para

ceber orientações e instrumentos de suporte às escolas no âmbito da implementação de educação para a saúde. A DGS, em colaboração com a DGE, lançou em 2015 o Programa Nacional de Saúde Escolar, que apresenta orientações gerais e uma estrutura de apoio na implementação e avaliação de projectos. Este programa deixa, no

«EXISTEM IDADES FUNDAMENTAIS PARA CRIAR LITERACIA EM SAÚDE, PRINCIPALMENTE AQUELA RELACIONADA COM A PREVENÇÃO PRIMÁRIA E A PROMOÇÃO DE SAÚDE. NESTE CASO, SÃO OS MAIS JOVENS QUE MAIS VÃO BENEFICIAR DAS INTERVENÇÕES E A ESCOLA É O LOCAL PRIVILEGIADO.» cesso de peso e obesidade, fazem mais vezes exercício por semana e utilizam menos os serviços hospitalares, para além de outros indicadores importantes. Existem idades fundamentais para criar literacia em saúde, principalmente aquela relacionada com a prevenção primária e a promoção de saúde. Neste caso, são os mais jovens que mais vão beneficiar das intervenções e a escola é

a saída de um ciclo vicioso de pobreza e saúde precária. Em 2007, foi criado em Portugal o Grupo de Trabalho para a Educação Sexual / para a Saúde que culminou em 2009 com a publicação de uma lei e portaria que prevê a educação sexual nas escolas e estabelece que cada escola ou agrupamento deve ter uma equipa de educação para a saúde. Em 2012, a Direcção de Apoios Socioeducativos ficou encarregue de con-

entanto, a iniciativa para fazer algo em concreto nas mãos das escolas e dos professores (muitas vezes desmotivados perante várias dificuldades práticas de implementação e tempo) e dos parceiros da saúde, não referindo qual a situação actual de Portugal em termos de alunos abrangidos pela saúde escolar e que tipo de intervenções já estão ou estiveram em funcionamento. A Fundação Calouste Gulbenkian,

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«AS PESSOAS COM NÍVEIS DE LITERACIA MAIS ELEVADOS TÊM UMA PERCEPÇÃO DA SUA PRÓPRIA SAÚDE COMO SENDO MELHOR DO QUE AQUELES COM LITERACIA MAIS BAIXA, FUMAM MENOS, TÊM MENOR PERCENTAGEM DE EXCESSO DE PESO E OBESIDADE, FAZEM MAIS VEZES EXERCÍCIO POR SEMANA E UTILIZAM MENOS OS SERVIÇOS HOSPITALARES [...]»

no âmbito do Programa Inovação em Saúde dirigido pelo Professor Jorge Soares, organizou recentemente uma Conferência Internacional de Literacia em Saúde onde foram apresentados os resultados do HLS-EU em Portugal e produziu o relatório “Um Futuro para a Saúde”, com autoria de alguns dos maiores especialistas em áreas médicas e políticas de saúde a nível europeu, incluindo vários professores da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Este relatório, que incide sobre várias áreas da saúde, apresenta evidência a favor de intervenções de promoção de literacia em saúde e faz recomendações para um programa de grande visibilidade. O Plano Nacional de Saúde também prevê “estratégias para a capacitação do cidadão e incremento da literacia em saúde”. No entanto, apesar destas recomendações e do ganho de visibilidade da literacia em saúde, a Educação para Saúde nas escolas ainda é algo que está longe de ser uma realidade abrangente e de qualidade em Portugal. A maioria das escolas não tem projectos estabelecidos, não há sistematização, não há avaliação de impacto, existem poucas estratégias e ferramentas concretas e de qualidade prontas a aplicar para envolver os jovens na gestão da sua saúde e do seu futuro. Curiosamente (ou talvez não) uma boa parte da promoção de literacia em saúde em escolas é feita por organizações voluntárias, várias de estudantes de medicina, com projectos de intervenção em escolas baseadas em sessões temáticas interactivas com jogos e outros tipos de dinâmicas. Existem outros projectos pelo país fora, focados em

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diferentes áreas da literacia em saúde e há ACES de algumas localidades que já envolvem profissionais de saúde na promoção activa de literacia em saúde nas escolas. Infelizmente, e por muito bons resultados que sejam observados, todas estas abordagens deixam de fora um número demasiado grande de jovens, especialmente em áreas onde a literacia em saúde é mais urgente e dificilmente permite uma aplicabilidade abrangente e de qualidade e uma avaliação de impacto sólida. Temos diagnóstico. Está na altura de a comunidade médica intervir mais activamente para definir, implementar e avaliar as melhores intervenções. Já passou o tempo de ficar só a falar, de dizer que se apoia, que se estipula, que está previsto, que existem orientações e recomendações. Está na altura de fazer acontecer, como os estudantes de medicina têm feito de forma voluntária e motivada. No contexto socioeconómico actual, a medicina do futuro, para ser abrangente, inclusiva e justa, terá que ser muito mais que novas tecnologias com baixo custo-benefício. Terá de ser uma medicina que protege a saúde das pessoas antes de chegar ao hospital, que lhes garante competência e motivação para decidir proteger a sua saúde e capacidade para conseguir fazê-lo, terá de ser uma medicina que evita uma grande parte das visitas ao hospital, dos internamentos e dos anos perdidos de qualidade de vida (DALYs) devido a problemas de saúde potencialmente evitáveis.


medicina humanitária

ressonância • 15


medicina humanitária

Valerá a pena o risco? AUTOR João Ramalhão

N

ão foi há mais de dois meses mas há notícias que se repetem infinitamente e outras que, ou por serem desinteressantes, ou por serem provenientes de realidades aparentemente longínquas, pouco são faladas e rapidamente são esquecidas. Mas merecem ser relembradas, não só por respeito a quem deu a vida enquanto salvava a de outros mas também para apontar os responsáveis. Comecemos pela parte mais chocante: na madrugada de 3 de Outubro de 2015, entre as 2 e as 3 da manhã, ocorreu o bombardeamento do centro hospitalar de Kunduz, a capital da província homónima, no norte do Afeganistão. Sendo um território chave em termos geográficos, têm existido, nas últimas décadas, conflitos entre as

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forças Talibãs e Afegãs, estas últimas apoiadas pelo governo dos Estados Unidos da América. O bombardeamento de dia 3 de Outubro provocou a morte de 22 profissionais de saúde da Médicos Sem Fronteiras (MSF) e de 7 doentes desse mesmo hospital. Seis desses voluntários eram médicos internacionais em missão e os outros eram médicos

naturais do Afeganistão. Mortos numa noite que, aparentemente calma, estava a ser aproveitada para tratar os doentes que sobrelotavam o hospital. No final do passado mês de Setembro ocorreu uma ofensiva Talibã que visava a conquista da cidade de Kunduz. Começaram então confrontos entre as forças militares afegãs e a organização funda-


mentalista, sendo que ambos reconheceram que respeitariam os profissionais de saúde e os feridos que pudessem resultar do conflito. Assim, no centro hospitalar de Kunduz, foram recebidos feridos afiliados aos dois lados do embate, sem qualquer discriminação, tal como as leis humanitárias internacionais exigem1. Houve, por esses dias, um aumento exagerado do influxo de doentes e a capacidade normal do hospital foi excedida. A MSF teve o cuidado de disponibilizar as coordenadas GPS do hospital aos grupos militares organizados envolvidos para que não fosse posto em perigo o seu perímetro. No entanto, na madrugada de dia 3 de Outubro, os Estados Unidos, previamente avisados da localização do centro hospitalar, bombardearam exactamente a porção central deste, causando as fatalidades já descritas. Destruíram um hospital. Infelizmente, este é apenas um caso no meio de centenas nos países onde existe trabalho médico voluntário. Trata-se de um paradoxo cruel presente nestas missões: o profissional de saúde desloca-se voluntariamente para salvar vidas onde, sem ele, estas seriam perdidas e acaba perdendo a sua. Em Kunduz, ainda estão por apurar as razões que levaram a esta atitude desumana. Uma das possibilidades levantadas foi a de que a simples presença de soldados talibãs foi razão para o ataque, outra garante que os médicos do centro hospitalar estavam a ser tomados como presos por essas mesmas forças. No entanto, a MSF garantiu que esta última possibilidade era falsa.

«Trata-se de um paradoxo cruel presente nestas missões: o profissional de saúde desloca-se voluntariamente para salvar vidas onde, sem ele, estas seriam perdidas e acaba perdendo a sua.» São diversas as formas de violência contra a medicina humanitária. E isso deve-se a duas principais razões: as características culturais e religiosas das

populações e a presença de um conflito bélico. De facto, a organização social e a religião das populações constituem critérios que se podem tornar obstáculos à acção médica. O próprio perfil individual do voluntário influencia a

rantir normas a cumprir durante tempos de conflito, de forma a proteger os feridos e doentes da guerra, bem como distinguir a classe médica dos restantes intervenientes, salvaguardando-a, para que esta seja capaz de cumprir o seu

«O dever de garantir a saúde de quem a tem comprometida é superior a qualquer afiliação que o doente possa ter.

E esse dever tem que ser superior a qualquer outro princípio do prestador de cuidados.» forma como vai ser recebido pelas populações. O simples facto de ser do género masculino ou feminino pode levar a uma reacção diferente em termos de hostilidade das populações locais sendo que, estatisticamente, os homens voluntários estão mais sujeitos a agressões do que as mulheres voluntárias. As próprias pressões sociais, étnicas ou religiosas exercidas nos doentes para que não adiram aos tratamentos oferecidos, podendo estar sujeitos a possíveis castigos, podem ser consideradas como agressões à medicina humanitária. No entanto, o problema mais grave na segurança dos voluntários é, sem dúvida, a deslocação a zonas de conflitos armados. O que pode ecoar mais nestas zonas, quando se fala em tipos de violência, é a violência contra os médicos e os hospitais. Mas não é só isso. Os ataques aos meios de transporte, desde ambulância a helicópteros, com o corte do fluxo de recursos médicos, como medicamentos ou equipamento, pode ser considerado neste leque de violência contra os cuidados médicos, tal como os ataques contra os próprios doentes. Mas também existem leis que protegem os profissionais de saúde e os feridos e doentes, sejam eles Afegãos, Talibãs, Boko-Harans ou Sírios. O dever de garantir a saúde de quem a tem comprometida é superior a qualquer afiliação que o doente possa ter. E esse dever tem que ser superior a qualquer outro princípio do prestador de cuidados. Essas leis, que foram estabelecidas numa série de Convenções, em Genebra, estão aprovadas por 194 Estados e visam ga-

dever de prestar assistência sem colocar a sua vida em risco. Delas constam princípios de protecção tanto a quem já esteve envolvido no conflito e já não está, como a quem nunca esteve, como civis, proibindo qualquer tipo de tortura ou humilhação, tomada de reféns ou execução de sentenças sem julgamento imparcial prévio por qualquer um dos lados do confronto. Por fim, garante o dever de ambos os lados do conflito resgatarem qualquer ferido e assegurarem condições para que este se trate, independentemente de ser amigo ou inimigo. No entanto, muitas das regras das Convenções de Genebra aplicavam-se, inicialmente, apenas a conflitos internacionais e entre Estados. Posteriormente, surgiu uma remodelação de forma a incluir as mesmas leis para conflitos não-internacionais entre forças militares organizadas. No entanto, estas convenções são algo limitadas. Não são aplicáveis em conflitos em que as forças militares não sejam reconhecidas, hierarquizadas, o que sucede com alguns grupos armados, como o próprio Daesh, ou em guerras civis, revoltas e eventos esporádicos de violência, o que acontece em muitos dos países onde há um comprometimento da intervenção médica. Nestes casos, existe uma dificuldade de intervenção por parte das instituições internacionais, sendo que a que regula todas estas situações é a Cruz Vermelha. Ainda assim, é notória a falta de respeito por estas leis que é expressa pelo Mundo. E, por vezes, a agressão directa não é o pior que pode suceder. Um

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dos grandes problemas actuais é que, para além do mal inerente à violência em relação aos cuidados de saúde, esta acontece, por norma, em países cujos cuidados são mal organizados e muito frágeis. Portanto, qualquer destabilização pode fazer colapsar todo o sistema, deixando expostas milhões de pessoas. Por exemplo, no passado mês de Novembro, ainda se verificava uma impossibilidade de fornecer recursos médicos a Taiz, uma cidade com o centro hospitalar Al-Thawra, que é apoiado pela Cruz Vermelha, devido à guerra civil que se vive no Iémen2. Peter Maurer, presidente do CICV3, afirmou que “o Iémen em cinco meses chegou ao mesmo estado que a Síria em cinco anos”. Quase 13 milhões de pessoas estão em risco de fome, dado que o Iémen importa 90% dos alimentos que distribui e, de momento, essa distribuição não é passível de se fazer. Em termos de saúde, estima-se que 15 milhões de pessoas não tenham acesso a cuidados primários. Também esse é um dos direitos explícitos nas leis humanitárias internacionais. E é mais um que está a ser transgredido. Mas, mesmo que houvesse esse acesso por parte das pessoas, de pouco serviria uma vez que não há recursos nos hospitais. Os ata-

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ques de ambos os lados deste conflito foram capazes de destruir instalações de saúde nacionais e bloquear a chegada de medicamentos e equipamentos. Assim, existem 21 000 de pessoas com necessidade de assistência médica, de momento, no Iémen. Não por falta de solidariedade internacional mas por incapacidade de essa solidariedade ser aplicada. A hostilidade que se vive nestes países estende-se, para além do seu principal alvo, para qualquer obstáculo que se interponha no raio de acção, sendo estes obstáculos hospitais, recursos ou até mesmo médicos. De um ponto de vista geral, quais poderão ser as principais consequências destas atrocidades? Em primeiro lugar, estamos perante ataques que levam à morte de milhares. Para além disso, e por haver destruição das instalações ou recursos que apoiam populações inteiras, eleva-se assustadoramente o risco de incapacidade de assistência médica para os milhões de pessoas que, em países nestas situações, dela possam necessitar. E, por último, é importante sublinhar que os próprios voluntários, muitas vezes os únicos dotados da sabedoria necessária para tratar, possam acabar por ser cada vez menos perante uma situação que põe em cheque as

«E, por vezes, a agressão directa não é o pior que pode suceder. Um dos grandes problemas actuais é que, para além do mal inerente à violência em relação aos cuidados de saúde, esta acontece, por norma, em países cujos cuidados são mal organizados e muito frágeis.» suas próprias vidas. E não podem ser criticados por isso: apenas de Janeiro de 2012 até Dezembro de 2014, registaram-se 2 398 casos de ataques contra pessoal médico, instalações ou meios de transporte. Mais de dois ataques por dia, todos os dias. Valerá a pena o risco? 1 Conjunto de normas que visam proteger grupos neutros aos conflitos. Enunciam que, em qualquer conflito, devem ser procurados e curados os feridos o mais rápido possível. Os profissionais de saúde devem ser respeitados e as instalações, viaturas e equipamentos igualmente. 2 No Iémen, desde Março de 2015 até agora foram registadas 4 500 mortes e 23 000 feridos, devido ao confronto entre as forças leais ao presidente exilado Abdrabbuh Mansour Hadi e as forças rebeldes Houti’s. 3 CICV: Comité Internacional da Cruz Vermelha.


a União Europeia [...] tem revelado nos últimos anos uma impotência decisória que parece marca maior da sua política externa

grande

entrevista

jorge sampaio Com a tragédia de Paris ainda presente e os números de refugiados a aumentarem, é cada vez mais premente reflectirmos sobre as dinâmicas mundiais, nomeadamente nas áreas dos direitos humanos, saúde pública e educação. É nesse sentido que a Grande Entrevista da XXII edição da Ressonância foi feita ao Dr. Jorge Sampaio, antigo Presidente da República galardoado em Julho deste ano com o Prémio Nelson Mandela. Partilha experiências do passado, apresenta os factos de uma forma clara e expõe as lacunas de uma Europa mais egoísta, que ameaça atropelar os direitos humanos na forma como desenha as suas políticas externas.

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Entrevistado por Sebastião Martins Sérgio Bronze RESSONÂNCIA: Em 2006 foi nomeado Enviado Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para a Luta contra a Tuberculose. Que caminho pensa que ainda há a percorrer nesta luta? Encontrou muitos obstáculos neste cargo? Acredita que os objectivos propostos foram cumpridos? Doutor Jorge Sampaio: Como é sabido, a luta contra a tuberculose, para além de ser uma questão muito importante de saúde pública e, a esse título, fazer parte do caderno de encargos da Organização Mundial de Saúde, a partir de 2000 foi também incluída na chamada “agenda dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio” (ODM), que continha as oito prioridades máximas da comunidade internacional. Ao abrigo deste compromisso mundial, que perdurou durante os últimos 15 anos, registaram-se avanços notáveis em domínios concretos como o da luta contra a pobreza, a fome, o analfabetismo e os grandes problemas de saúde pública global (ie mortalidade infantil, grandes pandemias). Relativamente à tuberculose, os progressos alcançados foram muito significativos: a taxa mortalidade resultante da TB recuou em cerca de 47% (quando comparada com os valores de 1990). O diagnóstico atempado e o tratamento da TB terá salvo 43 milhões de pessoas. Globalmente, o objectivo de estancar a progressão da TB e reverter a incidência foi conseguido em todas as regiões, bem como em 16 dos 22 países mais atingidos pela TB, os quais em conjunto são responsáveis por 80% dos casos de TB. Desde 2000, a incidência da TB tem caído a um ritmo de 1.5% por ano, tendo regredido em 18% . Agora a questão é que, apesar destes avanços notáveis e apesar de a tuberculose ser uma doença curável, esta continua a ser uma das maiores ameaças à saúde pública, tendo em 2014 vitimado em 1.5 milhões de pessoas. Por isso, a tuberculose continua a fazer parte da nova Agenda do Desen-

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volvimento Sustentável que vigorará até 2030. Para este período, continua a ser prioritário promover o diagnóstico e tratamento da TB (prosseguindo a investigação de novos medicamentos, vacinas e meios de diagnóstico); o combate à co-infecção HIV/SIDA-TB; e o combate às multiresistências. R: Agora que se estabeleceram novos objectivos que se sucederam aos objectivos do milénio, o que pensa que podemos retirar e aprender dos últimos 15 anos? JS: Para mim a lição é clara: com uma estratégia clara e objectivos precisos, uma metodologia de execução rigorosa, meios disponíveis, coordenação de esforços e muita determinação política, o progresso é possível. A Nova Agenda dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável, embora mais ambiciosa do que a anterior - com 17 objectivos a alcançar e 169 metas -, apresenta uma significativa continuidade em relação aos ODMs e, a meu ver, este é um factor positivo, encorajante e reforçador da capacidade de mudança. De facto, parece-me que num contexto de grande precariedade e de recursos limitados, a estratégia ganhadora é a que não desperdiça nem realizações nem meios existentes, mas antes procura aperfeiçoar o que já foi al-

Sustentável enunciados e as suas 169 metas nos próximos 15 anos que, no fundo, visam a construção de sociedades prósperas, socialmente inclusivas e sustentáveis do ponto de vista ambiental, exigirá uma enorme disciplina, firmeza de propósitos e uma vontade política colectiva inabalável. Aliás, o desafio é tanto maior quanto entre os objectivos a alcançar se joga agora também, de forma muito mais explícita, a questão da boa governação, como uma espécie de quarto pilar do desenvolvimento sustentável. Seremos capazes? Estaremos à altura? É tudo menos adquirido, mas estou certo igualmente de que, apesar de a via ser estreita, podemos, pelo menos, fazer progressos consideráveis nas várias frentes, mas é preciso começar a trabalhar já e a trabalhar melhor! R: Durante 6 anos ocupou o cargo de Alto Representante para a Aliança das Civilizações da ONU. Nesses 6 anos visitou inúmeros países em situações complicadas. Houve algum caso ou visita que o marcasse especialmente? JS: Não posso mencionar apenas uma visita, até porque, para além do sítio visitado, o importante era também o que estava em causa, os objectivos prosseguidos com a referida missão. Mas recordo sim, com especial emoção

«Para mim a lição é clara: com uma estratégia clara com objectivos precisos, uma metodologia de execução rigorosa, meios disponíveis, coordenação de esforços e muita determinação política, o progresso é possível.» cançado, potencia os resultados alcançados e corrige o que não deu certo ou redundou em fracasso. Num momento em que o mundo atravessa grandes desafios geo-políticos, com uma economia volátil, políticas titubeantes e lideranças pouco afirmativas, importa seguir uma estratégia de pequenos passos, mas seguros, acordando em objectivos realizáveis com meios disponíveis. No entanto, não nos iludamos: realizar os 17 Objectivos de Desenvolvimento

algumas missões, como por exemplo Sarajevo, onde teve lugar a primeira reunião regional da Aliança das Civilizações para a Europa do Sudeste e onde foi aprovada uma Estratégia para o diálogo e a cooperação intercultural para aquela parte do mundo ainda com tantas feridas abertas pela guerra. Recordo também uma visita a Gaza onde tive um encontro com o Arcebispo Desmond Tutu junto ao Mediterrâneo. Mas também nunca poderei esquecer as mis-


sões a África no âmbito da luta contra a tuberculose – Etiópia, Malawi, África do Sul … R: Como é que avalia a acção da União Europeia e das Nações Unidas na resposta que têm dado à situação exasperante dos refugiados da Síria? JS: Neste mundo preocupado por um realinhamento de hierarquias de poder e da emergência de novas inseguranças, percebemos com desalento que mesmo a União Europeia – onde antes íamos buscar conforto, por ser depositária de muitas das nossas esperanças de progresso e de equilíbrios estratégicos - tem revelado nos últimos anos uma impotência decisória que parece marca maior da sua política externa. Ao mesmo tempo, vem revelando no seu seio – o que será mais grave para o futuro do projecto europeu – uma divisão e uma evidente quebra de confiança entre os seus membros, em que os antigos valores de solidariedade e de respeito mútuo surgem trocados pelo arremesso público de anátemas, humilhações, e pela imagem notória de fracturantes egoísmos nacionais. Difícil, por tudo isto, ser optimista, quando a realidade nos interpela, revelando um tempo de conflito e de persistentes violações dos direitos humanos; de intoleráveis assimetrias na

riqueza e no acesso aos bens públicos, que depois se projectam no desenho de uma penosa geografia mundial de doenças, epidemias e exclusões; ou na insistente existência de massacres sectários - do Iraque à Síria, à Líbia, ao Iémen e a tantos outros lugares. Não vale pena iludirmo-nos: assistimos hoje a perversas destruições de memórias históricas que constituíam até agora acervo intocável do património da humanidade; presenciamos o alastrar de perigosos fundamentalismos, que julgávamos já sepultados pelo progresso comum; e, neste milénio gerador de tantas expectativas, convivemos com a vergonhosa tragédia dos refugiados e migrantes que procuram na Europa uma alternativa à morte, à perseguição, à violência ou à fome, e encontram o Mediterrâneo como sepultura dos seus magros sonhos, reféns de redes de traficantes que parecem operar com escandalosa impunidade. Perante este quadro sombrio, importará todavia lembrar que, da História, e da sua lenta e pouco linear passada de anos e séculos, nos chega igualmente um sólido acervo de realizações que justificam que continuemos a acreditar num futuro melhor e na evolução positiva da sociedade em que vivemos, no plano nacional ou internacional. O sistema internacional e, em especial, a família das Nações Unidas foram e são produtoras de boa parte deste acervo e,

mesmo apesar de todas as suas imperfeições, bloqueios e fracassos, deverão continuar a ser a instância suprema de regulação da vida internacional até porque a alternativa é um mundo sem regras, a desordem ou o caos onde imperam a lei da selva e a barbárie. Neste caso particular, há que prosseguir com as reformas necessárias, designadamente dos mecanismos de tomada de decisão, como sejam o Conselho de Segurança, bem como ponderar a criação de novos canais de mediação e da resolução pacífica de conflitos. Ou seja, por mim, não tenho dúvidas e quero, uma vez mais, afirmá-lo com toda a força: a globalização requer regulação e esta exige o reforço do chamado multilateralismo. Mas é preciso que a emergência de uma ordem mundial legítima e eficaz se traduza outrossim na realidade e que o mundo à escala planetária conheça menos violência, menos afrontamentos e mais justiça. R: Pensa que falta um diálogo concreto e uma acção concertada da Europa na actual crise de refugiados? Como pode esse diálogo ser agilizado? JS: Deixem-me antes de mais dar-lhes uma noção da realidade de que estamos a falar quando falamos dos refugiados. Tentar. E para nos darmos conta da dimensão actual deste fenómeno, é bom

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lembrar aqui alguns números, a saber: há 37 focos de conflito acesso em curso (ECHO); duração média de uma guerra civil: 8 a 10 anos; em 2015, registaram-se 78,9 milhões de refugiados e deslocados; duração média de permanência num campo de refugiados ou em situação de deslocado: 17 a 20 anos. O que quero ao destacar estes números? Quero apenas sublinhar que este fenómeno não vai abrandar, tem uma dimensão global e abrange proporções inauditas. Ora, assim sendo, as respostas não podem ser de natureza puramente imediatista nem revestir-se de um carácter provisório. Inicialmente construíram-se campos de refugiados porque se assumia que era uma solução provisória e temporária. Mas passar-se 17 a 20 anos num campo não tem nada de provisório. Por outro lado, uma coisa é dar resposta às necessidades imediatas de protecção dos refugiados – alimentação, tecto e uma parte da saúde – outra coisa, é dar resposta às necessidades de mais longo prazo, como sejam parte da saúde e a educação, as quais encerram uma componente de desenvolvimento, ou ainda assegurar o empoderamento e a capacitação das famílias. Ou seja, o ACNUR criado em 1950 com a missão de dar apoio e assegurar a protecção dos refugiados, confronta-se hoje com a necessidade de adaptar a sua missão a um contexto que mudou substancialmente. Há assim, porventura, urgência em redefinir a sua missão, dotá-lo de meios apropriados e adaptar o leque de

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respostas necessárias. Não sei se isto implica a adopção de novos instrumentos de direito internacional, se há que rever a Convenção de 1951 ou completá-la, mas entendo que o debate se deveria abrir e que, para além da agenda humanitária, para além da agenda do desenvolvimento sustentável, apontada para 2030, haveria que reflectir de um ponto de vista pragmático e avançar com mecanismos de resposta inovadores que permitam evitar sofrimentos adicionais dispensáveis, desmistificar medos e preconceitos e sobretudo mobilizar todos os actores disponíveis, capazes de dar respostas concretas a problemas concretos num prazo de tempo razoável. Agora, no que respeita à chamada crise síria no plano europeu, e, digamos o contrário, o que a mim me impressionou mais e muito favoravelmente foi a capacidade demonstrada pelos países vizinhos – Líbano, Jordânia, Iraque/Curdistão e Turquia – em manter as portas abertas e acolher 4 milhões de sírios desde o início do conflito. Este, sim, é um facto notável, atendendo a que estamos a falar de países com níveis de prosperidade muito inferiores ao da Europa e com equilíbrios internos muitas vezes precários. Dito isto, o efeito nestes países de acolhimento de um número tão elevado de refugiados sírios, aliado à duração do conflito, que vai para o quinto ano, tem-se tornado cada vez mais visível, com um claro aumento de tensões entre comunidades, o empobrecimento

gradual dos refugiados sírios e o avolumar dos problemas locais, a que não é alheia uma ajuda internacional incipiente e sem visão estratégica. Paralelamente, a incapacidade política dos líderes europeus em pôr em prática uma política atempada de acolhimento de refugiados explica, pelo menos em parte, que se tenha chegado à situação actual, absolutamente inimaginável se pensarmos que a União Europeia é, antes de mais, uma comunidade de valores, assente no Estado de Direito, no respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. A falta de liderança política desta crise – como noutras, de resto – tornou-se gritante no plano europeu, bem como a incapacidade de a Europa agir e reagir a uma só voz. A meu ver, o problema na Europa é apenas de falta de visão e vontade política. Não se trata nem de falta de meios, nem de instrumentos de acção. E, não tendo sido possível uma resposta rápida, porque não se accionou o mecanismo das cooperações reforçadas, previstas nos Tratados? O problema é político, de falta de visão e de vontade concertada. R: É possível estabelecer diálogo entre duas sociedades de costas voltadas? Ao longo do seu mandato conseguiu sempre estabelecer e promover o diálogo? JS: Esta é uma questão muito vasta e que encheria um livro inteiro! A questão do diálogo no seio das sociedades requer um leque amplo de políticas


públicas de inclusão. Ou seja, o que importa é construir sociedades pluralistas e inclusivas, nas quais a diversidade é vista e tratada como um factor positivo para a vitalidade social, como uma força de inovação e, em geral, uma oportunidade e não um fardo. R: Como acha que Portugal se encontra a nível de cumprimento dos direitos humanos? Pensa que poderia haver mais influência do governo português nas comunidades PALOP, com quem tem importantes relações institucionais, a este respeito? JS: Desde o 25 de Abril, Portugal tem feito uma caminhada segura na realização dos direitos humanos e estes progressos são reconhecidos no plano internacional nos vários estudos e avaliações que se fazem. Agora trata-se de um domínio em que, não só regressões ou mesmo estagnações são sempre possíveis, mas em que o objectivo do aperfeiçoamento nunca deve ser secundarizado. Pode-se sempre fazer mais e melhor, sobretudo no plano dos direitos económicos, sociais e culturais e, neste âmbito, há de facto um longo caminho a percorrer, até porque a questão das desigualdades constitui um desafio cada vez mais premente para Portugal, que mina todo o acervo que possa existir em matéria de Estado de Direito e de Direitos Humanos. Quanto às relações com a comunidade da CPLP, penso que a diplomacia e o diálogo político poderiam, por vezes, ser mais activos para o benefício de todos. R: Em 2013 fundou a plataforma de apoio académico a estudantes sírios que lhes permitia continuar os seus estudos superiores em Portugal. Que balanço faz desta iniciativa? JS: Como alguns saberão, a Plataforma que referem constitui um programa internacional de bolsas de estudo de emergência para estudantes sírios do ensino superior. De momento temos cerca de 150 bolseiros em 10 países, dos quais uma centena em Portugal. Esta

iniciativa baseia-se num vasto conjunto de parcerias – antes de mais, com Universidades, Politécnicos e Escolas Superiores que constituem o “Consórcio Académico”, para além da chamada “Rede de parceiros”, que engloba organizações internacionais e nacionais várias, fundações, empresas e pessoas individuais e, no que respeita à implementação do programa no plano nacional, tem contado com o apoio do Governo português. Por mim, considero que se trata de um exemplo de boas práticas, replicável virtualmente em todos os países do mundo. Por isso, o balanço que faço é bastante positivo, de tal forma que pensamos ir mesmo um pouco mais

«a educação é fundamental a todos os títulos. a equidade do acesso é essencial em todos os planos, incluindo em termos de

“género”.» longe. Assim, reflectindo com os nossos parceiros internacionais, chegámos à conclusão que muito se poderia e deveria fazer, de forma sustentada, na área da Educação Superior nas situações de emergência, as quais, nos termos das resoluções da Nações Unidas sobre o “Direito à Educação em Emergências”, abrangem quer os desastres naturais, quer os conflitos e as guerras. Desta forma, numa reunião em Julho passado na Universidade de York, da qual resultou o chamado “York Accord”, consagrou-se a necessidade de criar um “Rapid Response Mechanism for Higher Education in Emergencies” e isto por duas razões: por um lado, porque emergências estão infelizmente sempre a acontecer e temos vários exemplos – do Nepal, ao Haiti, passando pela Síria, Iraque,

Iémen, Afeganistão, Líbia, Eritreia, Sudão do Sul, etc; por outro lado, porque a educação superior goza de uma autonomia e de especificidades próprias que por si justificam que seja tratada à parte, envolvendo desde a primeira hora a própria comunidade académica. Se pensarmos no caso da Síria e no facto de o conflito se arrastar vai para cinco anos, se existisse um mecanismo de resposta rápida que tivesse permitido aos estudantes afectados pelo conflito beneficiarem de apoio para continuar os seus estudos, hoje já poderíamos ter uma geração de diplomados durante a guerra! Ora, a verdade é que é durante este doloroso compasso de espera que importa investir na preparação e formação da geração dos futuros líderes, tornando-os aptos a reconstruir o seu país e apetrechados para edificar uma nova sociedade. R: De que forma olha hoje para a educação no mundo? Contesta-se muito ainda o acesso da mulher à escolaridade. Pelo que conhece de países por todo o mundo, como vê esta questão tão essencial na equidade de acesso à educação? JS: A educação é fundamental a todos os títulos. A equidade do acesso é essencial em todos os planos, incluindo em termos de “género”. A importância desta questão está, penso, bem espelhada na nova Agenda do Desenvolvimento Sustentável, a qual dá uma relevância reforçada à realização de um conjunto novo de objectivos ambiciosos em matéria de educação no plano mundial. R: Como é que a sua condição de agente político em Portugal e a experiência que daí colheu pelos cargos que ocupou o ajudam nas decisões que hoje toma e na forma como analisa o mundo? JS: Uma pessoa é um todo e, a cada instante, incorpora no presente a sua experiência passada e os conhecimentos que vai adquirindo ao longo da vida. E, como dizia António Machado, “o caminho faz-se caminhando...”.

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Atrás das grades AUTORA

Patrícia Pires

O

exemplo mais mediático que corre pelas bocas do mundo sobre as condições das prisões e crimes humanitários é certamente a Prisão de Guantánamo. Reza a história que em 1903 os Estados Unidos da América assinaram um contrato de arrendamento perpétuo de uma porção de terra em Cuba. Ou seja, os EUA apropriaram-se de uma quota de terra fora do território americano, que lhes pudesse, eventualmente, ser útil no futuro. Com efeito, encontraram um préstimo para esse território logo após o 11 de Setembro de 2001: a prisão de Guantánamo foi aberta em Janeiro de 2002. Duas semanas antes de o primeiro detido chegar a Guantánamo, o Departamento de Justiça dos EUA assegurou ao Pentágono que reter os inimigos em solo cubano aumentaria a probabilidade de os afastar dos tribunais federais americanos. Isto porque se os autores das detenções fossem apanhados, estes estariam a violar o Convénio Internacional dos Direitos Civis e Políticos ratificado, em 1992, pelos EUA. Em 2002, Guantánamo foi nomeada por um oficial sénior do exército americano como America’s Battle Lab (traduzido para “laboratório de batalha da América”), recebendo também a designação de “centro de detenção extrajudicial dos EUA em Cuba”. E foi dessa forma que a portuguesa Isabel Santos, à frente da Comissão de Direitos Humanos da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), se referiu a Guantánamo, aquando da sua visita em Fevereiro do presente ano, como sendo “uma experiência à qual não se fica indiferente (…) Ninguém consegue passar por aquele local e não sair dali... abalado”. Compreende-se que assim seja, tendo em conta os testemunhos de alguns dos detidos, ou de pelo menos um em particular. Mohamedou Ould Slahi está detido na prisão de Guantánamo desde 2002, sob suspeita de ser um dos mentores do 11 de Setembro. Slahi documentou no Diário de Guantánamo os

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seus primeiros anos na prisão, fazendo o registo sem precedentes dos processos de captura, interrogatório, brutalização e tortura perpetrados pelas autoridades americanas, ao abrigo da chamada War on Terror. O grande problema desta dita “guerra ao terror”, para além do óbvio, é que gerou um ciclo de mais terror, convidando à adopção de valores humanos contrários aos da civilização ocidental moderna. A estratégia do “olho por olho, den-

«[...] TUDO SE AGRAVOU APÓS O FATÍDICO 11 DE SETEMBRO E OS MEMORANDOS DO DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA APROVARAM AS TÉCNICAS, PELO QUE A COERÇÃO E A TORTURA SE TORNARAM RELATIVAS E IRRELEVANTES AOS OLHOS DE MUITOS.» te por dente” tem ganho uma expressão crescente, tendo-se difundido ao longo do tempo, especialmente após atentados como aquele testemunhado em Paris no passado dia 13 de Novembro. Também o facto de se saber que, nos primeiros anos após a abertura da prisão, houve um regresso a actividades dentro de grupos extremistas por parte de cerca de 30% dos ex-detidos, apesar de neste momento a taxa de incidência

ser inferior (cerca de 6%), constitui um argumento a favor dessa ideia. O contra-senso está no facto de Guantánamo não ser um dissuasor mas, pelo contrário, agir em prol da violência. Já Isabel Santos adiantava, a este propósito, que as duas únicas “utilidades” de Guantánamo são, por um lado, o recrutamento de mais radicais e, por outro, a possibilidade de uso da prisão como bode expiatório dos estados autoritários quando estes são confrontados com as suas práticas. No dia 14 de Setembro de 2001, o Congresso Americano aprovou uma resolução para a Autorização do Uso de Força Militar por 518 votos, com apenas 1 voto contra. Esta resolução autorizava o Presidente a decidir quem estaria alegadamente ligado aos ataques do 11 de Setembro, quem poderia estar implicado em futuros ataques e a que nível se poderia usar a força1 contra eles. Dos anos 60 aos anos 80, os manuais de treino da CIA descreviam as técnicas coercivas como técnicas avançadas de interrogação usadas no âmbito de um programa secreto autorizado pelo Presidente Bush. Como seria de esperar, tudo se agravou após o fatídico 11 de Setembro e os memorandos do Departamento de Justiça aprovaram as técnicas, pelo que a coerção e a tortura se tornaram relativas e irrelevantes aos olhos de muitos.


em

Guantánamo

Já os anteriores candidatos à Presidência dos EUA, Mitt Romney e Rick Perry, defendiam que o uso de “técnicas avançadas de interrogação” como o pré-afogamento, não são, por definição, tortura. Para eliminar qualquer dúvida razoável, o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas defende que o Convénio ratificado pelos EUA se aplica a todos os indivíduos que estejam sob a custódia americana, mesmo que fora do território dos EUA. De entre várias outras coisas, o Convénio proíbe a tortura ou qualquer outro tratamento ou castigo desumano, degradante e cruel, detenções arbitrárias, julgamentos injustos e discriminação na aplicação dos direitos humanos. Nas 500 páginas que discorrem sobre as memórias do ex-Presidente George W. Bush, num livro chamado Os momentos decisivos, é possível ler a confirmação de que os actos de tortura ocorreram. O ex-presidente alega que “sem dúvida, o procedimento foi duro, mas os especialistas médicos asseguraram à CIA que não houve danos permanentes”. Depois disto, em 22 de Janeiro de 2009, Obama disse que os americanos não iriam torturar, e o seu assistente contra o terrorismo, John Brennan, atesta a mesma premissa afirmando: So, as Americans, we stand for

desde 2008, os detidos têm acesso à revisão dos pedidos de habeas corpus, uma vez que o tribunal Supremo dos EUA rejeitou a administração Bush que estipulava que os prisioneiros não deveriam ter direito a uma defesa em tribunal federal. Em contraponto, Slahi ainda não tem acusação formal de nenhum crime, após 13 anos de cativeiro, não existindo, aparentemente, motivo legal para a sua detenção. Um juiz federal ordenou a sua libertação em Março de 2010, mas o governo dos EUA lutou contra essa decisão, impedindo que fosse cumprida. Independentemente disso, o Presidente Bush fez alguns esforços no sentido de encerrar a prisão mas a verdade é que no final do seu mandato, em 2009, ainda existiam 245 reclusos no local. Dois dias depois, o Presidente Obama, em plenas funções, pediu à sua administração o encerramento de Guantánamo até, o mais tardar, dia 22 de Janeiro de 2010, afirmando que Guantánamo se tinha tornado um símbolo para os terroristas da al-Qaeda e numa ajuda inadvertida à causa extremista, pelo que seria imperativo o seu encerramento. Ora, se demorou apenas 7 semanas até a prisão de Guantánamo estar em pleno funcionamento, contam-se agora 12 anos desde que as autoridades americanas pensaram em encerrá-la em

«O EX-PRESIDENTE ALEGA QUE “SEM

DÚVIDA, O PROCEDIMENTO FOI DURO, MAS OS ESPECIALISTAS MÉDICOS ASSEGURARAM À CIA QUE NÃO HOUVE DANOS PERMANENTES”.» human rights. Em 24 de Junho de 2011, o Presidente Obama proferiu também que as várias gerações de americanos compreenderam que a tortura é inconsistente com os seus valores. Embora tenham ocorrido algumas violações do Convénio, sabe-se que,

definitivo ou 6 anos desde que Obama anunciou essa intenção. Até hoje isso não se concretizou mas já esteve mais longe de acontecer. Porém, pelo facto de o encerramento da prisão ser um objectivo assumido tanto de democratas como de republicanos, questiona-se o

motivo de ainda permanecer aberta. Pelas palavras do Presidente Barack Obama, enunciadas em Maio de 2009: “Eu sabia que quanto ordenei que Guantá-

«[...] SLAHI AINDA NÃO TEM ACUSAÇÃO FORMAL DE NENHUM CRIME, APÓS 13 ANOS DE CATIVEIRO, NÃO EXISTINDO, APARENTEMENTE, MOTIVO LEGAL PARA A SUA DETENÇÃO.» namo fosse encerrada iria ser difícil e complexo. Estamos a limpar algo que é simplesmente uma trapalhada, uma experiência mal conduzida”. Guantánamo teve a sua última transferência em 2008, apesar de ainda continuar a ser um local de encarceramento e de reunião ocasional de comissões militares, sem o móbil da recolha de dados (intelligence-gathering). Actualmente, restam 122 homens detidos na baía cubana, 54 deles já foram identificados para serem transferidos para países de acolhimento e 58 têm processos que vão ser revistos dentro em breve, podendo reunir as condições necessárias para se juntarem ao primeiro grupo. Apenas 3 dos 122 foram condenados com base em provas de envolvimento em actividades terroristas e, presume-se que 7 aguardem julgamento. Para resolver o contratempo da logística, Isabel Santos aposta na sensibilização dos países da OSCE para terem maior abertura e disponibilidade

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no acolhimento aos detidos (entre 57 estados da OSCE, 14 já acolheram). Desta forma, a Amnistia Internacional critica a anterior relutância dos EUA em aplicar os direitos humanos internacionais que costuma exigir dos outros países e adianta que o “aponta e escolhe” das leis a cumprir começou anteriormente aos eventos decorridos a 11 de Setembro. Segundo a Amnistia, o problema já existia e os atentados vieram reforçar as suas políticas prepotentes, sugerindo que a solução possa passar pelo afastamento de toda a beligerância à volta da situação, para que assumamos como objectivo o encerramento de Guantánamo. O tempo urge e se não se actuar num futuro próximo, Guantánamo poderá não fechar tão cedo, pois há um grupo de senadores americanos que pretende fazer uma prorrogação de 2 anos para os processos de transferência. Também a pressão de Raúl Castro a exigir a devolução da base de Guantánamo tem sido infrutífera e não têm havido progressos relevantes. Em suma, a criação do conceito de

“guerra global” era, idealmente, um meio de contra-terrorismo, mas o preço a pagar foi a violação dos direitos humanos, sendo que este paradigma americano acabou por ser unilateral e por quebrar os fundamentos do Estado de Direito Internacional, esbatendo cada vez mais a linha ténue que separa a segurança da liberdade.

“Sabemos que és um criminoso.” “O que foi que eu fiz?” “Diz-me tu, e reduzimos-te a pena para 30 anos. Caso contrário, não voltas a ver a luz. Se não colaborares, vamos pôr-te num buraco e limpar o teu nome da nossa base de dados de detidos.”

Excertos do livro Diário de Guantánamo:

“Quando não lhe dei a resposta que ele queria ouvir, mandou-me ficar de pé, com as costas curvadas porque tinha as mãos amarradas aos pés e cintura, preso ao chão. [?????] virou o controlo da temperatura todo para baixo e garantiu que os guardas me mantinham naquela situação até que decidisse o contrário.

«Fiquei sem os meus objectos de conforto, à excepção de uma esteira de espuma fininha e um pequeno cobertor gasto. Fiquei sem os meus livros, que eram meus. Fiquei sem o meu Corão. Fiquei sem o meu sabonete. Fiquei sem a minha pasta de dentes. Fiquei sem o rolo de papel higiénico que tinha. A cela - ou melhor, a caixa estava gelada e por isso eu tremia o tempo todo. Não me lembro de ter dormido calmamente uma única noite; nos 70 dias que se seguiram não conheci a doçura do sono. Interrogatórios durante 24 horas, três e às vezes quatro turnos por dia.”

“Não quero saber para onde me levas, leva e acabou-se.”

“O facto de não me deixarem ver luz fez-me tirar “prazer” da viagem entre a cela insuportavelmente gelada e a sala de interrogatórios. Era simplesmente uma bênção quando o sol quente de GTM1 me atingia. Sentia a vida regressar a cada centímetro quadrado do meu corpo. Tinha sempre esta falsa felicidade, ainda que por curto tempo.»

Páginas do “Diário de Guantánamo, com barras pretas por cima do texto censurado pelo governo dos EUA

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Medicina Humanitária Falhada AUTOR Nuno Vouga

A

quantidade de médicos de países de altos rendimentos que procura integrar missões humanitárias em países com baixos a médios rendimentos tem aumentado de ano para ano. Não se trata necessariamente de missões vocacionadas para amenizar as consequências de catástrofes, humanas ou naturais, mas principalmente daquelas que têm uma duração relativamente curta (na ordem dos meses) e que acontecem em “clima de paz”. Infelizmente, muito pouca literatura científica existe acerca destas missões. Os primeiros artigos de revisão têm poucos anos e apontam mais questões do que respostas. O primeiro congresso internacional sobre missões humanitárias deste tipo realizou-se apenas no ano passado, depois de décadas de campanhas assistenciais. Admite-se largamente que o grande motor destas missões é um forte sentimento de altruísmo por parte dos médicos voluntários. Sublinha-se, estamos a falar de voluntários, os quais muitas vezes financiam as próprias campanhas onde embarcam. No entanto, a ausência de um corpo de conhecimentos profissionalizado acerca destas actividades coloca dúvidas acerca da legitimidade e, sobretudo, da efectividade que elas terão em quem mais interessa, que são as comunidades desfavorecidas. No geral, estas missões humanitárias são dominadas por especialidades cirúrgicas, constituídas por equipas de vários tipos (desde multidisciplinares até a unipessoais, com um único especialista), e os países emissores privilegiam ajudar

países com os quais têm uma relação política mais bem estabelecida. Para além disto, pouco mais se sabe que esteja divulgado pelos meios científicos, nomeadamente acerca dos custos, do planeamento e da logística envolvida. Simplesmente, parece que não está bem estabelecido o costume de se racionalizar e documentar os procedimentos que estas campanhas envolvem. Na sua maioria, os artigos científicos acerca de missões humanitárias são mais narrativos e subjectivos do que… científicos. Isto pode significar que as missões deverão ter muitas vezes pro-

«[...] a Medicina Humanitária não pode ser uma simples entrega de boa vontade e de competências médicas.» blemas que decorrem desta ausência de pensamento estruturado. A pouca literatura que existe faz menção a estes problemas, que deveriam suscitar uma maior reflexão: a influência destas missões é de curto-prazo e limitada; não se estabelecem relações duradouras com os sistemas de saúde locais nem se garante que têm condições para cumprir follow-ups muitas vezes fundamentais (ainda para mais quando muitas destas missões são protagonizadas por equipas cirúrgicas); os médicos podem estar pouco familiarizados com a cultura local ou não ter um interesse verdadeiramente humanitário; os médicos são muitas vezes confrontados com situações para as quais não têm

competências ou ainda, tratando-se por vezes de médicos mais novos, trabalham sem supervisão. É claro que se poderá argumentar que são estes os benefícios possíveis em países que, tantas vezes, pouco têm. Mas não seria mais simples e eficaz alocar os recursos necessários à mobilidade e instalação destas equipas, e da sua logística, directamente para os sistemas de saúde dos países ajudados? Ou então, porque não se faz medicina preventiva e comunitária, investindo estes fundos na melhoria de condições de vida da população, especialmente naquelas que são muito desfavorecidas? A situação onde estas questões ganham uma forma mais gritante tem que ver como o exemplo do chamado “turismo da fístula”: equipas de cirurgiões deslocam-se periodicamente para alguns países em desenvolvimento para tratarem a grande prevalência de fístulas vesico-vaginais (causadas principalmente por trabalhos de parto prolongados). Solidariedade à parte, o facto é que um cuidado assim tão específico acaba por beneficiar mais os profissionais de saúde que o praticam (porque ganham experiência) do que a comunidade assistida, por muitas fístulas que se consigam curar, porque não há uma abordagem holística aos problemas daquelas pessoas. Não parece nem eficaz, nem ético. Em suma, a Medicina Humanitária não pode ser uma simples entrega de boa vontade e de competências médicas. Tem de ser um método eficaz de gerar saúde e bem-estar naqueles que dispõem de meios insuficientes para o fazer por si.

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1º lugar do concurso Je suis Journaliste

Democratizar porque sim AUTOR

Pedro de Vasconcelos Monteiro

O

mindset ocidental hoje em dia é que todo o território independente, vulgo país, deve e tem de ser democrático. As ditaduras são para derrubar e o povo libertado das amarras da opressão. Ora, vários países do mundo árabe passaram por este processo recentemente, a chamada Primavera Árabe, termo usado em referência à Primavera de Praga da antiga Checoslováquia. Na teoria seriam libertadas as correntes do regime e o povo tornar-se-ia livre de escolher um representante e, idilicamente, uma idealogia política que seria partilhada pela maioria, instalando-se a democracia. Contudo, esta transição é um processo moroso, muito mais complexo e menos fluido do que o mundo ocidental quer acreditar que seja. Fora o ditador, que entre a democracia. A vírgula da frase transacta representa no entanto um colossal bypass. Um país que vive num regime totalitarista durante anos e cuja cultura é enraizadamente conservadora não está preparado nem sabe o que é a democracia. Não existem os alicerces práticos necessários para a democratização, entre eles a existência de um povo que, por razões que lhe são alheias, não está familiarizado com o conceito de liberdade de expressão, incapaz de transitar com fluidez para um paradigma tão diametralmente oposto ao póstumo. De resto, é facto que não existe, em qualquer parte do mundo, um manual ou alguém que explique passo a passo como operar esta transição. Note-se ainda que alguns destes países foram ajudados no processo pela sempre “preciosa e altruísta” mão americana. Contudo, foi notória a ingenuidade (termo em que pretendo acreditar colocando de parte teorias da conspiração) do auxílio externo por parte dos EUA e aliados. As forças anti-regime foram equipadas e treinadas militarmente pelo Ocidente com o intuito primordial de acabar com

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a ditadura e livrar o povo da opressão. O sentido de equipar rebeldes, cujo adversário é um regime que conta com o apoio militar, é perceptível. Contudo o resultado não foi, de todo, o esperado. Nestes estados politicamente entrópicos e incertos, perdidos numa empoeirada anarquia pós-regime, começaram a fervilhar guerras quase tribais e movimentos extremistas. Quem tomou conta destes países não foi a juventude instruída, hábil no uso da Internet e redes sociais, organizadora de eventos anti-regime - a fatia mais à vanguarde, mais ocidentalizada da população. A dita transição foi abrupta em demasia e o darwinismo intrometeu-se nesta sociedade pseudo-politizada. O mais forte prevaleceu, e neste caso, as milícias extremistas, sem a mão forte do ditador, insurgiram-se. O ISIS, o auto-proclamado califado inicialmente associado à al-Qaeda e actualmente autónomo no seu modus operandi terrorista, é quiçá o mais mediático preparo desta cozinha infernal. Abertamente contra o regime, e aproveitando o equipamento e apoio ocidental, este grupo extremista ganhou influência e poder, inicialmente no Iraque e mais tarde na Síria. É curioso pensar se teria sido capaz de proliferar o ISIS , na altura ISI, em território iraquiano se Sadam Hussein estivesse vivo e a governar. É inquestionável que a mão de ferro de um ditador oprime o povo. Contudo, é precisamente ela que inibe por completo qualquer insurgência de milícias extremistas que não partilhem sua visão. O auxílio externo culminou, por isso, num volte-face estupendo. Na tentativa de auxiliar a queda de regimes, EUA e amigos acabaram por armar e criar condições favoráveis ao crescimento do maior movimento terrorista do mundo actual. Onde anda a al-Qaeda nos dias que correm? Ao que parece, até este grupo terrorista teve as suas discordâncias e no momento opõe-se abertamente ao ISIS...

No mundo árabe tem sido este o desenlace, particularmente no caso Sírio. A ditadura cai por terra, mas não é a democracia que se ergue. Ao que parece, o que tem nascido das cinzas é, pelo menos a curto prazo, o desmembramento daquilo que eram territórios organizados sob a forma de um país. Acabar com um regime com o máximo de celeridade e depois esperar que a democracia ocorra por geração espontânea é uma ilusão. Esta ausência gritante de antevisão por parte da comunidade internacional revela irresponsabilidade e uma óbvia incapacidade de encarar o problema das ditaduras no mundo muçulmano de uma forma holística. Não foram tidas em conta a quantidade de minorias e divergências étnicas e filosóficas, por assim dizer, dentro dos mesmos territórios. Nesta parte do mundo este método não resultou e o outcome foi totalmente inesperado. Faltaram as bases fulcrais para a democratização e a ajuda no processo de transição por parte das entidades internacionais competentes revelou-se um apoio indirecto à proliferação de extremistas. A situação que se vive actualmente poderá ser, de facto, transitória e de transição, mas apenas se o auxílio for providenciado. Não basta reportar atrocidades nos media, há que existir movimento e esforço real por parte nas entidades capazes. O mundo ocidental acordou apenas há uns minutos, precisamente quando colheu os frutos da sua ingénua irresponsabilidade quase no alpendre de sua casa. Na melhor das hipóteses, o alarme não tocou depois da hora e o auxílio ainda pode ser prestado. Acima de tudo, há que ter em conta que não importa apenas o fim, mas também o longo caminho a percorrer. Que o diga o povo destes países, que, com a pressa da mudança e indicações exteriores para atalhos no seu caminho de regime para democracia, passou de organizadamente oprimido a... caoticamente oprimido.


objetivos do milénio

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objetivos do milénio

AUTORES

Afonso Braz Hugo Alves José Rodrigues Nuno Fernandes

2015, o ano que ficará para sempre na história como um ano negro para a

Europa e para o Mundo. Ataques terroristas, atentados à liberdade, o possível fim do espaço Schengen. O Mundo está a dividir-se cada vez mais, numa altura em que se devia estar a unir, o que traz consequências devastadoras para todos. Os 8 objetivos primários No ano 2000, os líderes mundiais reuniram-se na sede da ONU em Nova Iorque para definir o futuro. A mudança de século foi interpretada como o momento propício para criar uma parceria entre todos os países, quer desenvolvidos quer em desenvolvimento, para melhorar as condições da humanidade. Assim, a Declaração do Milénio foi ratificada por 189 Estados Membros, que se comprometeram a atingir 8 “simples” metas até 2015. O alarmante estado de pobreza extrema de alguns países subdesenvolvidos, bem como a pandemia de fome e subnutrição que assolava a África Subsariana e a elevada taxa de mortes em idade infantil em todo o mundo, quer por malnutrição, quer por falta de cuidados médicos, incitaram o mundo a agir. A fome, a dignidade,

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o ensino e a saúde foram tomados como pontos fundamentais de melhoramento para a criação de uma sociedade global mais segura, mais justa e, em todos os significados da palavra, mais humana. Contudo, como muitas outras declarações assinadas internacionalmente, nomeadamente o Protocolo de Quioto, a Declaração do Milénio foi interpretada pelos países ratificantes como um conjunto de intenções irrealistas e inexequíveis que se preconizava mais como uma linha de pensamento do que como uma linha de ação. Ou por motivos financeiros, ou por falta de interesse, os ODM não foram considerados prioritários pelos líderes mundiais, acabando os progressos por ficar aquém do previsto. Alguns países conseguiram moderado sucesso no combate da pobreza extrema

e da fome e na melhoria da escolarização. Os progressos mais significativos foram, sem dúvida, na área da saúde: assistiu-se à redução da mortalidade infantil e ao avanço no tratamento de doenças endémicas. Mas os progressos nas outras áreas têm sido escassos e desiguais, estando os países mais vulneráveis ainda mais desfavorecidos do que em 2000: a fome continua a aumentar na África Subsariana; a igualdade de géneros no acesso à escolaridade, às oportunidades de emprego, aos direitos sexuais, ao direito ao sufrágio e à cidadania continua a esbarrar em entraves culturais e religiosos em alguns países do mundo; a meta do pleno emprego e trabalho digno para todos continua por atingir e a sustentabilidade ambiental é cada vez mais uma miragem distante, sendo frequentes as notícias de completo desres-


peito pelos acordos internacionais. Ao nível de Portugal, grandes esforços têm sido feitos, nomeadamente em termos de saúde, educação e igualdade entre géneros. Contudo, à semelhança do resto do mundo, mais poderia e deveria ter sido feito. Saúde: como evoluiu? Como não poderia deixar de ser, alguns destes objetivos do milénio centram-se numa das maiores determinantes da qualidade de vida – a saúde. O primeiro objetivo – erradicar a fome e a pobreza extremas – tinha como uma das metas reduzir para metade, entre 1990 e 2015, a percentagem de população faminta até à data. Atualmente, 795 milhões de pessoas passam fome no mundo. Há 25 anos, em 1990, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) definiu precocemente como um dos objetivos de desenvolvimento do milénio a diminuição do número de pessoas que passam fome para metade, este número era de 991 milhões. No entanto, ao termos em conta o crescimento da população mundial vemos que, enquanto em 1990 mais do que uma em cada cinco pessoas (23,3%) passava fome, em 2015 este número desceu para perto de uma em cada nove (12,9%). Mesmo tendo em conta este ajustamento, a redução de pessoas com fome continua a ficar aquém da metade pretendida pela ONU. Pensa-se que tal se deva ao facto de este objetivo depender muito de fatores externos, como, por exemplo, a economia global. A diminuição de pessoas subnutridas foi constante ao longo dos 25 anos que se passaram desde a criação desta meta, exceto em dois períodos de estagnação. O primeiro corresponde à crise que ocorreu no início deste milénio e o segundo começou com a crise de 2008, mantendo-se

até hoje. Mesmo não tendo sido cumprido em termos globais, o relatório da ONU apresenta um bom número de regiões que conseguiram cumprir este objetivo – grande parte da Ásia e América Latina – sendo que todas as outras regiões

ção suficiente. Em relação ao quarto objetivo, centrado na diminuição da mortalidade infantil, se o objetivo se focava em reduzir em dois terços a taxa de mortalidade, os resultados obtidos não ficam muito aquém. Apesar de não chegar aos 66%

«A crise económica global e a instabilidade política com governos pouco dispostos na concretização destes objetivos, conjugados com um aumento do número de

crianças devido ao acelerado crescimento populacional,

fizeram com que o número de crianças com crescimento afetado tenha subido cerca de um terço.»

apresentam razões fora do controlo das ONG para o incumprimento. Como exceção à regra surge a África Central, onde, apesar de uma diminuição do número total de pessoas com fome, se formou uma tempestade perfeita para o aumento de crianças com problemas de crescimento causada por subnutrição crónica. A crise económica global e a instabilidade política com governos pouco dispostos na concretização destes objetivos, conjugados com um aumento do número de crianças devido ao acelerado crescimento populacional, fizeram com que o número de crianças com crescimento afetado tenha subido cerca de um terço. Também afetada pela guerra e instabilidade política, surge apenas uma região na qual o número de pessoas subnutridas aumentou – o Médio Oriente. Apesar de não ser dos mais afetados pela fome, guerras como as do Kuwait, Iraque, Líbano, Síria e, atualmente, a instalação do Estado Islâmico, provocaram mal-estar social e económico e deram origem um número elevado de refugiados, levando a um aumento de 32% de pessoas sem acesso a alimenta-

inicialmente previstos, a redução de 53% obtida deve ser encarada como um enorme progresso, representando uma descida de 90 crianças, por cada 1000, a morrer nos primeiros cinco anos de vida para 43. Mesmo com um progresso significativo, continuam a morrer cerca de 16 000 crianças por dia, sendo que a maioria destas mortes ocorre na África Central. Apesar de apresentar a maior diminuição no número de mortes infantis, metade dos óbitos com menos de cinco anos continua a ocorrer na parte subsaariana do continente africano. A evolução desta região ditará muito possivelmente a tendência de subida ou descida dos números da mortalidade infantil, pois com uma das maiores taxas de crescimento populacional, se não forem feitos esforços adicionais, o número de mortes infantis voltará a aumentar. A única esperança surge ao verificar que a maioria destas mortes é de causa evitável – pneumonias, diarreias e malária são os maiores culpados. Grande parte da diminuição do número de mortes ocorreu no período de 1 a 60 meses de idade, onde um avanço sig-

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nificativo dos programas de vacinação fez com que a vacina contra o sarampo imunizasse 85% das crianças no mundo, um aumento de 10% em relação a 1990, ajudando a salvar a vida a 15,6 milhões de crianças. Contrariando esta estatística, surge o aumento da percentagem de mortes neonatais (nos primeiros 28 dias de vida), apesar da diminuição do total de óbitos. Muitas destas mortes fazem também parte de um falhanço no próximo objetivo do milénio – melhoria da saúde materna – sendo as maiores causas de morte neonatal preveníveis – complicações durante o parto (24%) e sépsis causada por más condições de higiene (15%). Neste âmbito, o quinto objetivo ambicionava melhorar as condições da saúde materna. Se a ONU propunha cortar a percentagem de mortes de mães por cada 100 000 partos de 380 para 125, os resultados obtidos deixam muito a desejar. A redução nem chega a metade, ficando-se pelas 210 mortes.

32 • OBJETIVOS DO MILÉNIO

A maior diferença continua a ser entre regiões desenvolvidas e em desenvolvimento, sendo 14 vezes mais provável que uma mãe morra em regiões com menor acesso a cuidados de saúde de qualidade. Tal deve-se à falta de pessoal médico qualificado que assista aos partos. Mesmo com o aumento de partos assistidos de 59% para 71%, uma em cada 4 mulheres continua a não ter assistência durante e após o parto. Esta falta de acompanhamento reflete-se também no incumprimento das quatro consultas pré-natais recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) por cerca de 48% das mulheres em países em desenvolvimento. Verifica-se ainda, que, sem grande surpresa, as regiões que possuem maior mortalidade materna são as mesmas que têm menor taxa de uso de contracetivos e maior número de mães adolescentes. Com a menor taxa de uso de contracetivos, e apesar de um aumento de 13 para 28%, a África subsariana tem também 116 mães adolescentes

por cada 1000 partos. É neste campo que deve ser feito um maior investimento, não só devido às complicações de saúde que uma gravidez adolescente pode trazer ao bebé e à mãe, mas também porque em 25 anos apenas se verificou uma descida de 59 para 51 mães adolescentes por cada 1000 partos. O sexto objetivo do milénio é manifestamente endémico. Teve como finalidade o combate a patologias infecciosas, destacando-se o VIH/SIDA, relevando a malária para um destacável segundo plano, não esquecendo outras doenças como a tuberculose. O ex-libris desta meta global seria reverter a taxa positiva de disseminação do VIH. Em relação a este ponto, foi alcançada uma relevante redução nos novos casos, ficando pelos 40%, quando são comparados os valores de 2013 com os do primeiro ano do segundo milénio. É preciso dar valor a esta descida tão acentuada, que acaba por representar menos 2,1 milhões recém-afetados em todo o planeta. Porém, é necessário no-


tar e saber não desvalorizar certas referências estatísticas: 35 milhões vivem ainda infetados, sendo que três em cada quatro encontram-se nos 15 países com maior taxa de prevalência. O segundo ponto do sexto objetivo, ambicioso de génese, pretendia um acesso universal ao tratamento anti-retroviral. Neste âmbito foi também alcançada uma notória vitória. 13,6 milhões receberam tratamento, sendo que sensivelmente 90% destes eram oriundos de países em desenvolvimento. Tendo em conta que no ano de 2003 a contagem de indivíduos alcançados não chegava ao primeiro milhão, os esforços realizados são de louvar. Todavia, há dados que nos remetem à sensação de missão incompleta. O objetivo em si não foi alcançado, a plenitude é portanto ainda meta por alcançar. Finalmente, o terceiro ponto reporta os progressos alcançados na diminuição da incidência da malária e tuberculose, essencialmente. No que toca à malária, a incidência foi efetivamente

reduzida em 37%. Contudo, a descida na mortalidade global ganha importância, com a vertente infantil em destaque. No período vigente destes Objetivos do Milénio, a taxa de mortalidade desceu em 58%, algo extraordinário, derivado da maior atenção internacional que levou a um acréscimo nas medidas de prevenção (como uma maior utilização de redes mosquiteiras generalizadas). A panóplia de medidas interventivas no diagnóstico e tratamento da tuberculose é também devidamente enfatizada, como não poderia deixar de ser quando se obtêm valores na medida dos 37 milhões, relativos às vidas salvas na totalidade. Todos estes dados estatísticos fazem-nos cair numa ambiguidade de julgamento. Num lado da moeda deparamo-nos com resultados notórios na área da Saúde Pública, culminando com milhões de vidas salvas desde o advento destes Objetivos do Milénio. Ainda assim, a segunda face mostra-nos um mundo enfraquecido que exige de si

mesmo um aumento de extensibilidade nas medidas atualmente usadas e o aparecimento de novas com o fim de colmatar falhas existentes previamente. Em relação ao sétimo objetivo, garantir a sustentabilidade ambiental, é-nos conveniente estar atentos ao seu terceiro ponto: reduzir para metade, de 2000 a 2015, a proporção da população sem acesso sustentável à água potável e ao saneamento básico. Enquadra-se inevitavelmente nas temáticas médicas na medida em que múltiplas patologias, como febre tifóide, cólera ou disenteria, derivam de um saneamento impróprio e água impura. Foi de facto possível alcançar a meta no que toca à água potável, cinco anos antes do previsto, contrastando com a incapacidade de redução em 50% na população sem saneamento básico. Porém, esta última secção também obteve resultados satisfatórios. Desde o início da década de noventa que 2,1 mil milhões ganharam acesso a instalações

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sanitárias próprias representando um grande passo num caminho ainda grande por percorrer, cujas curvas são delineadas por 2,4 mil milhões de pessoas que é imperativo socorrer. O oitavo e último objetivo milenar pede também a nossa capacidade de estudo. Um dos seus pontos tinha como vago intuito a atenuação económica na aquisição de fármacos nos países em desenvolvimento. Infelizmente, o conteúdo estatístico é escasso nesta avaliação. O relatório mostra valores mais elevados na disponibilidade medicamentosa nos serviços privados que nos públicos, não sendo a priori um valor digno de ser enaltecido. O mesmo relatório faz realce à firme exiguidade de monitorização deste segmento, sendo por isso urgente uma mudança de paradigma na forma como se encara a disponibilidade farmacológica nos vários países mais desfavorecidos.

todo, atingidos. Este falhanço deveu-se à incapacidade de atingir as populações mais vulneráveis, potenciada pelo aumento das desigualdades entre países. Contudo, existe também um problema de reconhecimento da dignidade da vida

E agora? Os objetivos do Milénio têm como data limite de concretização o ano de 2015. Como tal, é essencial realizar um balanço em relação a cada um dos objetivos propostos. No que à Medicina diz respeito, houve, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), progressos evidentes na redução da mortalidade infantil e maternal. Verificaram-se, também, avanços no acesso a cuidados de saúde pré-natais e no combate a doenças como a SIDA ou a malária, entre outras. Contudo, e ainda segundo a ONU, há um longo caminho a percorrer e estatísticas que urgem ser revertidas. Para além disso, há certos países, maioritariamente no sudeste asiático, África Subsariana e regiões atingidas por conflitos, em que os objetivos não serão, de

tação deve estar

34 • OBJETIVOS DO MILÉNIO

«[...]foram definidos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável, fixados numa cimeira da ONU, em Nova Iorque, e cuja implemenconcluída até

2030.» humana, pois certos países acreditam, por exemplo, que uma diminuição da mortalidade provocada pela malária ou pelo vírus da SIDA não é sustentável. Assim, foram definidos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, fixados numa cimeira da ONU, em Nova Iorque, e cuja implementação deve estar concluída até 2030. Nestas novas metas, os temas relacionados com a Saúde foram aglutinados num só objetivo, genericamente intitulado de “Saúde e Bem-Estar”. No entanto, e numa sequência lógica de implementação, os

objetivos definidos são muito concretos, a fim de facilitar a sua aplicação. Destes, destacam-se a redução da taxa de mortalidade materna e a diminuição da taxa de mortalidade dos recém-nascidos. Noutro âmbito, pretende-se acabar com epidemias como a SIDA e a tuberculose, bem como combater a hepatite e doenças transmitidas através da água. Mais, há uma preocupação em promover a saúde mental e o bem-estar, prevenir o abuso de substâncias nocivas (drogas e álcool) e reduzir as vítimas de sinistralidade rodoviária. Finalmente, é defendido que todos os cidadãos devem ter acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva. No fundo, a finalidade primordial deste projeto é atingir a cobertura universal de Saúde, o que passa necessariamente pela proteção do risco financeiro, o acesso a medicamentos e terapias acessíveis. Como tal, é também de máxima importância apoiar a pesquisa de vacinas e medicamentos inovadores, com a garantia de serem lançados no mercado a preços justos. É também fundamental aumentar o número de profissionais de Saúde, principalmente em países em desenvolvimento. Por fim, no documento que servirá de base para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio 20+), os Objetivos do Milénio e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável relativos à Medicina são também referidos como meio para potenciar a coesão social, a sustentabilidade humana e o desenvolvimento económico. Isto é, na era pós-2015 é reforçada a visão da saúde como um pilar essencial de desenvolvimento. Como devia ter sido sempre.


investigação


investigação

IMM - Maria Mota Lab AUTORA Joana Cabrita

N

o Instituto de Medicina Molecular estuda-se malária. Atualmente existem dois laboratórios que se dedicam a este tema: o laboratório dirigido pela doutora Maria Mota e o do doutor Miguel Prudêncio. Em específico, o Maria Mota Lab estuda o Plasmodium e suas necessidades e as interações parasita-hospedeiro, numa tentativa de encontrar pontos que funcionem como alvos terapêuticos no futuro. A teia de interações entre o micro-organismo e os seus hospedeiros tem vários níveis de complexidade, entre os quais a ativação da imunidade inata durante a fase hepática da infeção, o estado nutricional do hospedeiro e uma relação antagonista entre as duas fases da infeção. Este ano, o Nobel da Medicina e Fisiologia foi atribuído a William Campbell, Satoshi Omura e Youyou Tu. Por detrás deste prémio residem importantes avanços no que respeita ao combate às infeções parasitárias, problema major da população mundial. William Campbell e Satoshi Omura viram reconhecidos os seus trabalhos relativamente a “um tratamento inédito contra as infecções causadas por parasitas nemátodes”, enquanto a outra metade do galardão incidiu nas “descobertas acerca de um tratamento inédito contra a malária” levadas a cabo por Youyou Tu, da Academia de Medicina Tradicio-

36 • INVESTIGAÇÃO

nal da China. Em entrevista à doutora Maria Mota, trocámos algumas impressões relativamente a este assunto. RESSONÂNCIA – Relativamente ao Nobel da Medicina deste ano o que podemos destacar? M.M. - Assistimos a uma mudança de paradigma na atribuição deste prémio. Existiu uma capacidade de premiar descobertas diferentes, as quais foram capazes de afetar positivamente a vida de milhões de pessoas, e sobretudo em comunidades que não as ocidentais. Abordando especificamente os avanços no combate à malária, tradicionalmente esta patologia era tratada com cloroquina ou quinino, mas sem o sucesso pretendido. Nos anos 60, Youyou Tu conseguiu, a partir de extratos da planta Artemisia annua, direcionar novas terapêuticas na área. Assim, a investigadora foi pioneira a demonstrar que o componente extraído, a artemisinina, era de facto efetivo no combate ao parasita da malária, tanto em seres humanos como em animais infetados. Surgiu então uma nova classe de anti-maláricos, que rapidamente eliminavam o parasita em estadios precoces do seu desenvolvimento, o que explica a sua eficácia. Várias décadas passaram desde esta altura, a altura a que efetiva-

mente se refere a descoberta que o Nobel deste ano visa galardoar. Atualmente a artemisinina ainda é utilizada um pouco por todo o globo, sendo a terapia combinada a opção que parece ter mais sucesso na redução da mortalidade causada pela doença, até porque já surgiram casos de resistência a este fármaco. Em 2013, a investigadora e agora diretora executiva do IMM recebeu o prémio Pessoa, no valor de 60 mil euros, tornando-se a personalidade mais jovem a vencer o galardão. Questionámo-la acerca das hipóteses de futuro no combate à doença: M.M. - Teríamos que ter uma terapia combinada nova, forte ou eventualmente conseguir produzir uma vacina eficaz, algo que ainda não surgiu mas para o qual se continuam a mover esforços. As perspetivas são incertas no que concerne a novas ferramentas contra a malária. Porém, essa incerteza não deve limitar a procura de alternativas para o problema, essencialmente pelas proporções que reconhecemos que o mesmo alcança a nível global. Agradecimento: Doutora Maria Mota, pela informação concedida na entrevista


2º Cérebro Intestinal AUTORA

Inês de Sousa Miranda

A

ctualmente sabemos que existe um cérebro no intestino, por mais inapropriado que esse conceito possa parecer. O não muito aprazível intestino é mais intelectual do que o coração e poderá ter uma maior capacidade de “sentir”. Michael Gerson in The Second Brain Existe uma conexão primária entre o nosso cérebro e o nosso intestino. Muitas vezes referimo-nos a “borboletas no estômago” quando vamos encontrar alguém pela primeira vez ou que temos um “nó no estômago” antes de uma avaliação oral. Esta conexão mente-intestino não é apenas metafórica. O nosso cérebro e intestino estão ligados por uma extensa rede de neurónios e por uma autêntica “auto-estrada” de neurotransmissores e hormonas que respondem constantemente ao quão esfomeados estamos, se estamos a confrontar uma situação de stress ou se acabámos de ingerir uma toxina. Esta “auto-estrada” de informação designa-se por sistema nervoso entérico e fornece updates constantes sobre o estado dos dois extremos: o cérebro e o intestino. Aquele “nó no estômago” antes de entrar na sala de exames é um exemplo empírico da sua conexão. Estamos stressados e o intestino sabe-o de forma imediata. O sistema nervoso entérico funciona como um terceiro centro inconsciente do nosso corpo (os outros dois fazem parte do sistema nervoso autónomo). Os cientistas têm designado este sistema de “segundo cérebro” porque enquanto comunica com o cérebro propriamente dito, tem também a capacidade de funcionar como uma entidade independente e de influenciar o comportamento de um indivíduo. Estima-se que existam mais de 100 milhões de células nervosas no intestino delgado humano, um número sensivelmente semelhante ao número de células nervosas na medula-espinhal. Adicionando as células nervosas do esófago, estômago e cólon deparamo-nos com um número muito superior ao da medula-espinhal. Temos, efectivamente, mais células nervosas no nosso intestino do que na totalidade do

nosso sistema nervoso periférico. Para além disto, este sistema é constituído por uma vasta rede de múltiplos neurotransmissores que se convertem na linguagem utilizada pelas células nervosas entéricas para comunicarem entre si e com outras células. Esta linguagem é rica e complexa, tanto quanto a linguagem utilizada pelo nosso cérebro. Neste ambiente rico vive uma complexa comunidade de bactérias. Esta comunidade designa-se por microbiota e é considerada um factor-chave no organismo em colaboração com a nossa fisiologia, especialmente com a nossa neurologia. Juntas chegam a pesar cerca de 3-4 kg, o mesmo peso que o nosso cérebro propriamente dito. Estas bactérias são tão vitais quanto o coração, os pulmões, o fígado e o cérebro. Estudos recentes dizem-nos que a flora comensal que reside nas delicadas pregas das nossas paredes intestinais assume funções como: digestão e absorção de nutrientes; barreira protectora contra agentes patogénicos; resposta imunitária; produção de neurotransmissores; gestão do stress (sistema neuro-hormonal); e ciclo circadiano; controlo da inflamação. Claramente as bactérias boas num intestino saudável não se resumem a desfrutar de comida e de estadia. Influenciam o risco não só para o surgimento de doenças mentais, como também de cancro, asma, alergias, condições metabólicas (diabetes e obesidade) e doenças auto-imunes. Elas controlam a nossa saúde, funcionando como um autêntico órgão virtual. Não temos consciência do nosso pensamento intestinal, mas este sistema produz 95% da serotonina e 50% da dopamina encontradas no nosso organismo.

Assim sendo, é plausível pensar que este grande eixo microbiota-intestino-cérebro terá uma relevância substancial na emoção e no comportamento. Estudos observacionais recentes têm documentado associações entre a qualidade de uma dieta habitual e a prevalência de risco para a depressão. Estas associações têm sido consistentes em adultos, adolescentes e crianças em diversos países e culturas. Uma revisão sistemática recente e diversas meta-análises incluíram resultados de 13 estudos observacionais e concluíram que uma dieta saudável está significativamente correlacionada com um menor odds ratio para a depressão. Similarmente, meta-análises de 22 estudos que investigaram os efeitos protectores da dieta Mediterrânica em doenças mentais demonstraram que estava associada a um menor risco relativo para a depressão, bem como para o declínio cognitivo. O consumo exagerado de açúcar e comidas ricas em gordura está relacionado com um aumento do risco de sintomatologia psicológica em crianças e adolescentes. A evidência de que a microbiota intestinal influencia o cérebro propriamente dito e o comportamento encontra-se neste momento em rápida expansão. Tal é suportado por larga evidência pré-clínica de que a microbiota pode influenciar comportamentos relacionados com a ansiedade e que a sua manipulação com próbióticos ou antibióticos específicos pode influenciar comportamentos depressivos. O que alimenta o nosso estômago, alimenta a nossa mente. A célebre frase “somos aquilo que comemos” começa a ganhar cada vez mais bases sustentáveis. O futuro da psiquiatria e de outras ciências poderá estar no nosso intestino. É uma questão de usarmos os nossos cérebros, mutuamente.

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CRÓNICA Sabemos aquilo que nos realiza? Justificamos as nossas crenças? O que nos leva a tomar certas atitudes e não outras? Li, há uns tempos atrás, que as pessoas não conseguem nem são fiáveis quando justificam os motivos dos seus comportamentos, opiniões ou preferências. Justificamos as nossas escolhas com base em motivos superficiais que acreditamos ser os verdadeiros, sem consistentes razões lógicas por detrás. Ou seja, não dominamos tanto quanto pensamos o nosso cérebro. Podemos partir da premissa de que o ser humano pode ser aperfeiçoado através do exercício da razão, mas, se não conseguirmos revelar as causas das nossas crenças, comportamentos e preferências, então a ideia de os humanos poderem ser aperfeiçoados fica diminuída nessa proporção. Somos seres imperfeitos - um conjunto de células nervosas e moléculas que lhe estão associadas: como é que isto não pode ser perfeito? Tentamos compensar as nossas imperfeições causando o bem. Nós, futuros médicos, somos movidos mais que ninguém por motivos altruístas, queremos deixar a nossa marca, compensar as nossas falhas pessoais através de valores maiores – desejamos indubitavelmente uma ligação a algo maior, imortal, a necessidade de elucidação do “eu” que motiva os religiosos a acreditarem numa inteligência mais elevada. Surge deus. Deus, não como uma ideia, mas deus como uma maneira de pensar. No futuro, no decorrer da nossa vida profissional vamos

confrontá-lo ou tentar silenciá-lo mas, na verdade, deus vai conseguir banir-nos da luz das ideias humanistas.

Somos imperfeitos, não conseguimos mudar o mundo (acreditava que sim mesmo depois de ter aprendido a querer) mas conseguimos não nos deixar mudar pelo mundo – sermos justos com as nossas convicções, dar mais de nós, pedir menos em troca, não esperar demasiado mas deixarmo-nos surpreender.

Vemos guerras, vemos pobreza, vemos a malvadez humana. Não vejo heróis (heróis precisam-se). Ficamos

HUMANITAS AUTOR | Francisco Barbosa 38 • CRÓNICA

perturbados com o terrorismo atual e sentimo-nos impotentes mas solidários – onde está deus nisto? Somos imperfeitos – vemos o mundo apenas e só através dos nossos olhos, do nosso prisma, somos atores principais e tudo se desenrola à nossa volta, sem guião.

Uma das possíveis e mais nobres saídas profissionais de um médico é enveredar pela medicina humanitária. Aqui, são escassos os recursos, os meios auxiliares de diagnóstico e as incertezas correm lado a lado com a premência do tempo. Aqui, o médico veste o papel de deus, de curandeiro e feiticeiro. Não deposita falsas esperanças porque nele só cabem os medos, não o de errar um diagnóstico, mas o de deixar mal as pessoas que nada temem porque nada têm. Na medicina humanitária, não sabemos o porque de acreditarmos nas crenças que nos movem e temos consciência das nossas imperfeições e limitações. Pode não ser possível seremos aperfeiçoados, nem dominarmos as nossas razões mas sentimo-nos realizados e em paz. E isso, a ciência não consegue refutar, é real.


«Our liberty depends on the freedom of the press, and that cannot be limited without being lost.» Thomas Jefferson

Envia os teus artigos para ressonancia@aefml.pt. Estamos sempre à procura de novos colaboradores! Edição XXII • 39


40 • cronos


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