edição XXIII | maio 2016 | distribuição gratuita
Ressonância os juros de H ipócrates AEFML
Quo Vadis?
O Estudante de Medicina
Grande Entrevista
4 factores-chave do sucesso
Os media como educador médico
Uma jornada de motivações e abalos
Dr. Pedro Pita ressonância • 1 Barros
Ficha Técnica editores Ana Raquel Estalagem Catarina Paias Gouveia José Durão Sebastião Martins redação Afonso Delgado Gonçalves Afonso Schönenberger Braz Artur Nixon Martins Joana Cabrita João Ramalhão José Rodrigues Nuno Fernandes Nuno Ribeiro Patrícia Pires Pilar Burillo Simões Sérgio Bronze design gráfico José Durão ilustrações Catarina Paias Gouveia impressão e propriedade
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 300 exemplares
Índice CRÓNICA 04 | Feminismo
AEFML
05 | Os 4 fatores-chave de sucesso da AEFML
O QUE HÁ DE NOVO QUO VADIS?
10 | One small step for Man, One giant leap for Medkind 12 | Os media como educador médico 14 | A realidade dos médicos telepresentes
ECONOMIA DA SAÚDE
18 | Por dentro da indústria farmacêutica 20 | Grande Entrevista: Dr. Pedro Pita Barros 23 | Quanto custa uma perna?
O ESTUDANTE DE MEDICINA
27 | Uma jornada de motivações e abalos
JOGOS OLÍMPICOS
32 | Para lá dos limites humanos
CRÓNICA
35 | Cruzar a linha Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.
MENSAGEM INICIAL
“Índia!” Presumo que Cristóvão Colombo deva ter exclamado algo semelhante ao desembarcar no Novo Mundo, após meses a navegar em busca do único destino que parecia importar numa época distante. Só o próprio saberá o que sofreu ao ter partido para aquela missão bem definida e concluído outra tão diferente e inesperada, desconhecendo, no entanto, que o seu nome seria indissociável da História como a conhecemos. Se nos diz Miguel Torga, na sua “Viagem”, que “o que importa é partir, não é chegar”, vemos que estaria tão atual para o século XV como para os dias de hoje, pois todos os anos partem centenas de jovens rumo à sua Índia desejada, numa viagem que passa inevitavelmente pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Não carregam astrolábios, bússolas ou compassos, mas conseguem traçar o trajeto com maestria e precisão, com o desembarque já no horizonte, onde aguardam o estetoscópio e a bata branca. Todos nós seguimos essa Estrela Polar e esse caminho vincado por expedições anteriores. Hoje em dia, as marés no curso de Medicina regem-se por regras distintas e os ventos nem
sempre estão a nosso favor. Mais do que nunca é hoje preciso aparelhar bem o barco antes de levantar âncora, e ter presente que podemos vir a navegar por mares nunca dantes navegados, nos quais perder-se também é caminho. E há tanto por onde se perder… Investigação, arte, cultura, experiências internacionais, intervenção social e civil, associativismo, espiritualidade, desporto, política - incontáveis arquipélagos onde é tanta a curiosidade quanto o medo de atracar. Mas é em toda e cada oportunidade que devemos duvidar e acreditar que há sempre mais para além do nosso destino: pois nem só da Índia se fizeram os Descobrimentos, e nem só de Colombo se fez o Novo Mundo. Seis anos passados na Faculdade de Medicina não são apenas uma nau para o objetivo comum a todos nós: estes anos são um mapa de oportunidades ao nosso dispor, onde inúmeros percursos estão ainda por cartografar. Qual o que seguimos ou que reinventamos? Essa sim, é a decisão que define cada um. José Almeida Correia Presidente da Direção da AEFML 15/16 Edição XXII ressonância • 3• 3
Feminismo
AUTOR | Sérgio Bronze
“Some people ask: “Why the word feminist? Why not just say you are a believer in human rights, or something like that?” Because that would be dishonest. Feminism is, of course, part of human rights in general - but to choose to use the vague expression human rights is to deny the specific and particular problem of gender. It would be a way of pretending that it was not women who have, for centuries, been excluded. It would be a way of denying that the problem of gender targets women. (..) Feminist: the person who believes in the social, political and economic equality of the sexes.” Muitos conhecem este excerto da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, perfundido até numa música orelhuda que por aí andou desde o final de 2013. E a verdade é que, nas últimas décadas, a música e a literatura têm estado ao serviço deste tema mal dissecado, que é o feminismo. Repare-se que não se trata de privilegiar as mulheres em relação aos homens, trata-se apenas de igualdade de circunstâncias. Não basta apregoar, é preciso saber-se estar. Este é um desabafo visceral em que temos passado grande parte do tempo a falar de um problema a partir do simples enunciar que este existe. Andamos num círculo a tentar perceber se vale a pena refletir. E vale mesmo. Encontramo-nos numa sociedade progressista, emancipada, justa, questionadora, adulta e livre, mas para que seja tudo isto é necessário que às mulheres seja oferecido tudo aquilo que é aos homens. Atentando numa das funções mais importantes da linguagem, o simbolismo, notamos que o mas-
cronos 44• •CRÓNICA
culino é regra mesmo quando nos referimos ao feminino, este como que se subordina ao primeiro. É certo que colocar isto em causa seria colocar toda a linguagem em causa, mas não precisamos de o fazer quando é fácil não pôr metade da humanidade na invisibilidade com um simples escolher adequado das palavras. O hábito é talvez uma das nossas mais estranhas características e aqui revela mais uma vez a sua força. Dados portugueses de 2012 indicam que as mulheres auferem 81,5% da remuneração média mensal de base dos homens, refletindo em parte o facto de muitos dos altos cargos serem ocupados por homens. Estes desempenham as suas funções de forma eficaz, exemplar e correta, mas o que quero sublinhar é: será que as mulheres não os fariam igualmente bem? O acesso da mulher ao voto e a outros direitos em Portugal levou inúmeros anos para que acontecesse. Carolina Beatriz Ângelo, médica portuguesa, foi a primeira mulher a votar em Portugal, tendo aproveitado uma lacuna na legislação portuguesa para o fazer. No primeiro ato eleitoral da Primeira República, em 1911, era permitido o voto a todos os “chefes de família” que soubessem ler. Como não era referido o género, Carolina Ângelo, viúva, e por tal, chefe de família, aproveitou este argumento e votou nesse mesmo ano, tendo sido a única a fazê-lo. No ato eleitoral de 1913 as mulheres já não puderam votar, pois tinha sido aprovada uma lei que especificava que apenas os homens o podiam fazer. A relação da igreja com o papel da mulher tem também sido alvo
CRÓNICA de grande reflexão, nomeadamente pela socióloga marroquina Fatema Mernissi, que morreu no final do ano passado. Para Mernissi, o Islão, enquanto instituição histórica, não é sexista por natureza e o ideal da mulher passiva e obediente é uma construção posterior, destinada a proteger os interesses da elite masculina no poder. Se o Corão recomenda modéstia às mulheres, Mernissi argumentava que Maomé nunca teria pretendido que o uso do véu resultasse numa exclusão das mulheres da vida pública e religiosa. Meditando sobre as contradições que encontramos na boca do mundo, sabemos que as raparigas são irremediavelmente tidas como promíscuas, e quando uma rapariga de 14 anos engravida é somente dela que se fala, da sua inconsciência, ficando esquecido que esta inconsciência é mutuamente partilhada com o rapaz, e são também as suas costas que carregam as consequências. Posso dizer, no extremo da questão, que hoje se luta por tudo menos pelas mulheres e vemos, tristemente, as suas necessidades fora da linha da frente. Olhamos para as nossas mães e avós com grande estima, com fascínio pela sua multiplicidade de papéis, pela forma heróica como se dividem entre o trabalho, o sucesso profissional e a vida dos filhos, mesmo que isso implique a sua anulação enquanto mulheres. E é precisamente por este afeto que o feminismo exige a nossa permeabilidade a uma mudança que traz a justa redenção no advento da igualdade dos sexos. Espero que um dia falemos apenas em humanismo.
4 fatores-chave de sucesso da AEFML os
AUTOR |Artur Nixon Martins
Para que não restem dúvidas, a AEFML cresceu. Em 2010 não existia a Corrida Saúde + Solidária, o Sarau Cultural teria graciosamente um quarto dos artistas, o número de lugares de estudo não chegaria a metade dos que hoje existem. Como se explica o sucesso da AEFML? Como é possível uma organização estudantil conseguir agir em áreas tão diferentes como a cultura, a ciência, o desporto, a pedagogia, a saúde pública e em todas elas acrescentar algo mais, todos os anos? Como é que um organismo, com tanto poder e que movimenta tanto dinheiro não tem níveis superiores de corrupção? A resposta pode residir numa condição essencial e três fatores interdependentes: Darwinismo, limitação de poder e contexto profissional. Começando pela condição
essencial: nós, os estudantes da casa! Todos os que aqui estamos conseguimo-lo através de um processo de entrada difícil, árduo, exigente, mas acima de tudo, meritocrático, o que confere, à partida, qualidade a todos os colaboradores e membros da Direção da AEFML. Por outro lado, o facto de sermos uma Faculdade com um curso único cria um ambiente propício à existência de um espírito de união e identidade única, o que facilita não só a entrega de todos os alunos à AEFML, mas também que a AEFML saiba ir ao encontro dos interesses dos alunos. Imagine-se a possível entropia criada pela eventual necessidade de representar 20 cursos, com ambições e necessidades diferentes! A AEFML reinventa-se e evolui todos os anos. Isto é só possível através da sua dinâmica Darwiniana,
que respeita rigorosamente a teoria evolucionista das espécies. As experiências evolutivas do passado, não aberrantes e com bons resultados mantêm-se nos mandatos seguintes, sendo elas os projetos e elementos da equipa. É fundamental que haja uma manutenção parcial da Direção da AEFML, para que o saber de trabalho feito seja transmitido, para que se mantenha o bom património genético. À semelhança de um organismo vivo, cada mandato é como um ser acabado de nascer, nele são feitas e testadas um conjunto de alterações à AEFML. Novas caras, novos projetos e até novas ideias para projetos já existentes. Nem todas funcionarão e portanto não se perpetuarão em mandatos seguintes. Todavia, à semelhança das espécies, é este processo que permite a evolução da AEFML.
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É este processo que permite que haja Corrida Saúde + Solidária. É este processo que justifica que não se realizem Olimpíadas de Inverno nem nenhuma Direção da AEFML tente de novo realizá-las. Daqui podemos retirar uma ilação: independentemente das pessoas que estão na AEFML, as atividades e os projetos continuarão a realizarse, portanto, nada nem ninguém é insubstituível, nenhum indivíduo é, nem nunca será, essencial ou indispensável à AEFML. Para um ser vivo é preferível que as células mais velhas entrem em apoptose do que sofrerem dege- neração maligna. De forma paralela, a progressão natural do curso impede a manutenção dos dirigentes associativos na AEFML indefinidamente. Chegamos ao segundo fator de sucesso da AEFML: a limitação de poder. A
cronos 6 • AEFML
manutenção das mesmas pessoas em cargos de poder não é benéfica para nenhuma estrutura, por dois motivos. Em primeiro lugar, o poder é confortável e leva à inércia, à estagnação. Para que a evolução se mantenha pujante é fundamental, é necessário, é mandatório que a liderança mude, que traga consigo novas ideias, nova energia. Olhemos para os exemplos das duas maiores potências mundiais, cujas lideranças não se perpetuam: a) os EUA, que em mais de 200 anos de história, apenas um presidente foi eleito em mais de dois mandatos – Franklin D. Roosevelt – e logo na presidência seguinte foi aprovada a XXII Emenda à Constituição dos EUA, limitando os próximos presidentes a dois mandatos; b) a própria China, embora possamos considerá-la uma ditadura, tem evoluído para um modelo de
democracia intrapartidária, com elevada renovação de lugares até no Comité Central. Portanto qualquer tentativa de ligação de antigos membros ou alunos à AEFML após a graduação deve ser vista com algum cuidado e ressalva, sempre com as intenções e contrapartidas, para ambas as partes, bem estabelecidas e de forma transparente. Em segundo lugar, o poder corrompe e a permanência em cargos de poder propicia a utilização indevida de meios comuns. Definamos corrupção e analisemos a segunda questão inicial. Segundo a ONG Transparency Global: a corrupção consiste no abuso do poder confiado a alguém numa posição de autoridade para proveito próprio em detrimento dos que dependem da sua integridade. A AEFML, e os estudantes, tem um enorme poder político dentro da faculdade, para
além de que movimenta imenso dinheiro, portanto: como se justifica que não se observem atos de corrupção? Obviamente que parte da resposta reside no edifício ético e moral dos estudantes, contudo não é suficiente. Chegamos ao terceiro fator de sucesso da AEFML: o contexto profissional. O futuro profissional dos dirigentes associativos depende quase exclusivamente de uma prova cega e meritocrática, a PNS, e portanto é muito difícil que através de atos de corrupção consigam ver o seu futuro beneficiado. Há duas situações que devem ser salientadas, por fugirem ao crivo da PNS: dirigentes interessados em carreiras em Saúde Pública e em carreiras académicas. Os primeiros porque o seu sucesso profissional está muito ligado a nomeações políticas e possivelmente a jogos de poder. Os segundos, porque podem ser diretamente convidados para lugares de docência, dispensando
concursos públicos. Estes dois grupos são muito mais propensos a cometerem atos de corrupção, através de trocas de favores e tráfico de influências. Assim, quanto mais poder tiverem os estudantes, e quanto mais importantes forem, por exemplo, as votações em que estão envolvidos, maior é o risco. Contudo não quero defender de forma alguma que os alunos não deveriam ter votos em decisões importantes, muito antes pelo contrário! Os votos estudantis serão, à partida, tendencialmente mais puros do que os dos restantes intervenientes: 1) o seu futuro profissional está dependente da formação que recebem na faculdade, e portanto votarão de acordo com o que será melhor para a sua academia; 2) como não pertencem a nenhum corpo profissional da faculdade, não votaram de acordo com interesses sectários, mas sim de acordo com o ponto 1). Outra situação que predispõe a atos corruptos, neste
caso financeiros, são situações que requerem grandes investimentos. Em ambos os contextos, urge uma atenção redobrada por parte de todos os estudantes sobre as estruturas que os representam, sob pena de verem os seus interesses comuns prejudicados para o benefício de poucos. É esta a fórmula do sucesso da AEFML: uma base estudantil sólida e única que garante a sua qualidade; um funcionamento por princípios evolutivos Darwinistas, que é responsável pela dinâmica e progresso; a existência de mecanismos de apoptose para limitação da manutenção de poder e um ambiente pouco aliciante à corrupção (com exceções). Qualquer alteração à conjuntura atual, como por exemplo a nova PNS e a média de curso corresponder a 20% da nota de entrada na especialidade, poderão levar à alteração do orga nismo AEFML como hoje o conhecemos.
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O QUE HÁ DE NOVO AUTORES Joana Cabrita Nuno Fernandes
Felicidade em fim de vida
Atacando o cancro metastizado
Em alerta fora de casa
Um estudo recente, publicado no NEJM, testou se a suplementação com testosterona melhorava a qualidade de vida de homens com mais de 65 anos com níveis baixos desta hormona. Segundo os autores, o resultado mais notável foi a melhoria da função sexual, havendo um aumento da libido e melhorias na função erétil e na condição física, bem como “um pequeno mas significativo benefício em relação ao estado de espírito e aos sintomas depressivos”. É necessária mais investigação em termos de efeitos adversos a longo prazo, mas, tendo em conta o envelhecimento crescente da população, o uso de testosterona poderá contribuir para um aumento da qualidade de vida de muitos homens em idade geriátrica.
Os tratamentos oncológicos têm um efeito limitado, porque apenas uma pequena porção dos fármacos se consegue acumular nos tumores, afetando, assim, também as células saudáveis, o que origina graves efeitos secundários. Uma equipa de investigadores do Houston Methodist Research Institute desenvolveu, em ratos, um método para direcionar os tratamentos quase exclusivamente para as células cancerígenas, através da utilização de nanopartículas de silicone. As nanopartículas ligam-se ao fármaco e praticamente só o libertam nas células cancerígenas, sendo eficazes mesmo em metástases e diminuindo os efeitos secundários. Ainda está longe de ser utilizado na prática clínica, mas é mais um avanço importante na luta contra o cancro, especialmente em cancros de fase avançada. Os estudos em humanos vão começar em 2017 e, se correr tão bem como correu em ratos, a sobrevida em casos de cancro metastizado pode aumentar até 24 anos.
De acordo com um artigo publicado no jornal Current Biology no passado mês de abril, um grupo de investigadores percebeu que, em ambientes não familiares, parte do hemisfério cerebral esquerdo permanece vígil enquanto o restante cérebro se encontra em sono profundo. Tais resultados ajudam a explicar o facto de, para muitos, a primeira noite num ambiente diferente não ser reparadora em termos de sono. Alguns mamíferos e pássaros têm o que se denomina por sono unihemisférico, ou seja, com um hemisfério de cada vez. Contudo, nunca houve evidência científica de que algo semelhante ocorresse com o ser humano. Um estudo desenvolvido por Yuka Sasaki e colaboradores, da Brown University em Providence, R.I, procurou sinais de assimetria na primeira noite em que indivíduos jovens e saudáveis dormiam num local diferente. Resultados mostraram que o hemisfério cerebral esquerdo é “lighter sleeper” (tem um sono mais leve), ou seja, que os hemisférios não apresentam um sono igualmente profundo. Esta discrepância desaparece quando transitamos para a segunda noite de sono no mesmo local. Apesar das evidências obtidas, são necessários mais estudos para se perceber de forma aprofundada a veracidade destas diferenças.
O QUE HÁ DE NOVO 8 • cronos
Quo vadis?
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quo vadis?
“One small step for M AUTOR
Afonso Schonënberger Braz
É
inegável que o terceiro milénio se apresente repleto de inovação, no sentido mais lato possível. Todos os campos de estudo sofreram fortes e marcadas evoluções, levando-nos a ser incapazes de presumir um limite à capacidade empreendedora da raça humana. A medicina não é excepção. Muitos medicamentos, conhecimentos e procedimentos foram obtidos a partir de extensa investigação e trabalho árduo, tornando a nossa existência mais segura e prolongada. Diversas foram as vertentes e áreas que contribuíram para tal, mas há uma que, literalmente, ultrapassa as barreiras estratosféricas: a medicina espacial. Esta modalidade médica apresenta-se crucial para a sobrevivência de homens e mulheres, astrónomos e engenheiros, que todos os anos arriscam a sua sanidade pela busca do puro saber cósmico de inerente interesse mundial. É aqui que a conjugação ciência-tecnologia apresenta o seu molde mais per-
teriore no espaço como é também sua função facilitar a readaptação do organismo ao meio terrestre, após qualquer missão. Estando os hospitais mais próximos a consideráveis distâncias de todas as missões, as equipas interdisciplinares das agências aeroespaciais todos os anos desenvolvem tecnologias que consigam dar a volta às problemáticas médicas que, na presença de equipas médicas, seriam notoriamente de mais fácil resolução. A física que o cosmos oferece é uma barreira de difícil ultrapassagem. Muitos são os factores prejudiciais a qualquer astronauta. Como mãe dos problemas temos
«Curiosamente, uma apreciável porção deste progresso passou a ser Os spinoffs, como são referidos pela NASA, apresentam-se como tecnologias e inovações criadas no
partilhada à restante sociedade civil.
âmbito da complexa exploração espacial que acabaram por reverter à comercialização.
Desde 1976, já foram registados mais de 230 2000.»
spinoffs médicos de entre um total de sensivelmente
feito. A medicina espacial não só pretende impedir que o corpo de-
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a alteração gravítica. A ausência desta leva a atrofia da massa
muscular e a uma perda considerável de osso. Para combater estas debilidades locomotoras, tem-se investido na execução de exercício físico. Através de diversas máquinas e programas, os ocupantes das diferentes naves todos os dias exercitam de maneira a reduzir as malácias pela ausência de peso. Hoje em dia está-se a considerar a criação de veículos espaciais com a potencialidade de criar gravidade. Todavia, a G-zero não é o único inconveniente espacial. A radiação cósmica consegue também ser danificadora. Os seus principais efeitos são não só o óbvio risco de carcinogénese aumentado, como também a perda de acuidade visual, entre outros efeitos do foro visual. O leque de alterações não fina aqui: a depressão imunológica, a grande dificuldade em adormecer em plena missão, perda de balanço, alterações cardiovasculares, também preenchem esta lista. Muitos foram os avanços mé-
Man, one giant leap for Medkind” dicos resultantes destes empecilhos orgânicos. Curiosamente, uma apreciável porção deste progresso passou a ser partilhada à restante sociedade civil. Os spinoffs, como são referidos pela NASA, apresentam-se como tecnologias e inovações criadas no âmbito da complexa exploração espacial que acabaram por reverter à comercialização. Desde 1976, já foram registados mais de 230 spinoffs médicos de entre um total de sensivelmente 2000.
ra. A tecnologia com radiação infravermelha utilizada para medir temperatura estrelar foi também traduzida para meios médicos; os termómetros IV para ouvido existentes permitiram uma rápida medição e livre de contacto microbiano.
Na área da nutrição, o DHA, pertencente à família ómega-3, começou a ser comercializado em suplementos nutricionais, depois de uma exploração realizada em algas, com o objectivo de arranjar alimentos de longa validade. Em termos imagiológicos, muitos dos métodos utilizados foram melhorados devido à investigação espacial. Como exemplo temos a aplicação de Dispositivos de Carga Acoplada, usados no Microscópio Hubble, em mamografias digitais, permitindo uma visualização tecidual mais clara e eficiente.
«Em termos imagiológicos, muitos dos métodos utilizados foram melhorados devido à investigação espacial. Como exemplo temos a aplicação de Dispositivos de Carga Acoplada, usados no Microscópio Hubble, em mamografias digitais, permitindo uma visualiza-
No que toca aos primeiros-socorros pode-se referir a manta isotérmica. Fabricada na década de 60, apresenta hoje em dia os mesmos usos desde a sua criação: proteger de radiação nociva e impedir grandes amplitudes de temperatu-
Outro termómetro, mas em forma de comprimido, foi criado para avaliar a temperatura corporal dos astronautas durante os percursos aeroespaciais realiza-
ção tecidual mais clara e eficiente.
dos. No nosso planeta é frequentemente usado por diversos profissionais de desporto de maneira a conseguir evitar o aparecimento de condições relacionadas com sobre ou sub-aquecimento.
Na área da cardiologia surgiu o VAD – aparelho de assistência ventricular – que permite o bombeamento de sangue para todo o corpo, por má função cardíaca, enquanto um dador não é encontrado. Podia-se ainda referir toda a evolução levada a cabo na secção locomotora, mais concretamente no melhoramento de próteses. Contemporaneamente, as missões apresentam-se muito bem preparadas em termos médicos, não só no material transportado como nos procedimentos previamente implantados e treinados. Ainda assim, há alguma dependência das bases terrestres, principalmente quando a tele-cirurgia tem de ser executada. Todos os dias, no meio da nossa interacção com livros e doentes, lidamos com inúmeras tecnologias que nos ajudam a conseguir decifrar os mais complexos labirintos sintomatológicos. Muitos dos diagnósticos por nós realizados provavelmente não teriam sido possíveis alcançar caso a medicina espacial não existisse. Contudo, o indecifrável é ainda uma realidade. Há portanto um espaço de ideias por onde o Homem pode continuar a sua busca por conhecimento e a área médica apresenta-se como uma jóia com muito ainda por lapidar.
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Os Media como E AUTORA
Joana Cabrita
A
ssistimos ao papel crescente dos meios de comunicação na sociedade em geral, sobretudo no que toca a conteúdo de rápida apreensão, como o que é veiculado através da internet. Contudo, para além do mundo online, também o tradicional “pequeno ecrã”, a rádio, as revistas e os jornais são responsáveis por muito daquele que é o nosso conhecimento em determinadas matérias. A saúde não é excepção. Se, no passado, grande parte do que os utentes dos serviços de saúde conheciam acerca das doenças e seus tratamentos era fornecido pelo contacto com profissionais da área, nomeadamente médicos e enfermeiros, actualmente o panorama mudou. A medicina paternalista deu lugar à medicina partilhada. Cada vez mais o profissional de saúde é confrontado com informação previamente pesquisada de forma autónoma pelo doente. E aqui surgem diversas questões: Qual a veracidade do conteúdo que o utente encontra? Que impacto pode ter na relação médico-doente essa informação, quando não corresponde à prática médica mais correcta e efectiva no contexto actual? Ainda que o tema que aqui abordamos seja bastante pertinente
12 • QUO VADIS?
à luz do que é o doente do século XXI, não existem muitos estudos que aprofundem estas questões. Em 2007 foi publicado na Acta Médica Portuguesa um artigo (da autoria de Silvina Santana e A. Sousa Pereira, do Departamento de Economia, Gestão e Engenharia Industrial da Universidade de Aveiro) que procurava analisar a forma como os cidadãos
uma amostra populacional, os investigadores perceberam que, em vários dos utilizadores da internet por questões de saúde, a informação encontrada os levou a colocar perguntas ao profissional de saúde. Ainda que tenham passado vários anos, e que esta realidade possa ter sofrido alterações face ao crescimento brutal da utilização de tecnologia, já nessa altura o
«[...] o artigo concluía que “apesar de não contestar a importância do profissional de saúde enquanto fonte de informação, a Internet
começa a tornar-se uma importante fonte de informação nesta área para os
portugueses utilizavam a internet para questões de saúde ou doença, as características dos utilizadores e os efeitos reportados pela sua utilização no relacionamento com os profissionais de saúde. Através da aplicação de questionários a
Portugueses [...]»
artigo concluía que “apesar de não contestar a importância do profissional de saúde enquanto fonte de informação, a Internet começa a tornar-se uma importante fonte de informação nesta área para os Portugueses, sendo de
Educador Médico prever um aumento na procura de serviços de saúde disponíveis na Internet, o que provavelmente terá implicações na relação médicodoente”. Para além disso, deixava em aberto o seguinte: de que modo se poderá saber como cidadãos com diferentes capacidades e experiências educacionais utilizam a informação obtida na Internet? Uma tese de Mestrado desenvolvida em 2006 (por Lídia Ferreira, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa do ISCTE-IUL) fez um levantamento de percepções dos médicos portugueses face a esta temática. Debruçando-se sobre a influência da internet no utente, a autora enumera os vários factores que levam à necessidade de informação pelo mesmo, nomeadamente: - o reconhecimento de um problema; - o interesse na procura de uma solução; - a avaliação das soluções possíveis; - a experiência relativa a uma das soluções; - a adopção de uma solução. Já nesta altura se compreendia que o utente exige cada vez mais informação sobre o seu estado de saúde, bem como a sua participação na decisão do processo de
tratamento. Este estudo concluiu que a troca de informação entre médico e utente parece ter-se tornado mais ampla, uma vez que o conhecimento do utente é mais abrangente, o que parece originar uma aproximação informal na relação de ambos. O médico deixou de ser considerado um “Deus”, noção muito típica da Medicina de
«[...] o utente deveria ser reeducado, de forma a compreender que a informação na
Internet pode ajudar a contextualizar ou a ter uma noção da sua patologia, mas nunca deverá este meio ser utilizado para o tratamento de uma doença.»
há algumas décadas. Esta alteração pode ter consequências ao nível da relação de confiança, uma vez que pode parecer que o utente está a confrontar a autoridade do médico. De acordo com os resultados deste estudo, o utente deveria ser reeducado, de forma a compreender que a informação na Internet pode ajudar a contextualizar ou a ter uma noção da sua patologia, mas nunca deverá este meio ser
utilizado para o tratamento de uma doença. O auto-diagnóstico e a auto-medicação resultantes da interpretação da informação seriam dois riscos a eliminar com esta reeducação. Num artigo publicado em 2015 no Expresso (“Doutor mas a net diz que…”) precisamente em relação a esta temática, é ainda relembrado o fundamental no meio de tantos porquês: a importância de saber pesquisar, ou seja, a literacia em saúde. Está provado que doentes bem informados têm melhores resultados clínicos e menos complicações. Contudo, se olharmos para resultados de inquéritos de literacia em saúde recentes, facilmente se percebe que grande parte daqueles que procuram informação não o faz da forma mais correcta. Apesar dos benefícios inerentes à utilização dos media pelos cidadãos, importa relembrar que os riscos são reais e incluem a propagação de informação errada, desactualizada e que constitui motivo de alarme para o utente. Porém, existe algo que é indiscutível – o médico da actualidade tem de ser capaz de lidar com os vários aspectos relacionados com a propagação de informação sobre saúde pelos media, quer sejam positivos ou não.
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A Realidade dos Médicos Telepresentes AUTORA
Patrícia Pires
N
a etimologia da palavra Telecirurgia - “tele” (à distância) + “cheirourgia” (trabalhar à mão), - encontra-se uma dicotomia entre dois conceitos não mutuamente exclusivos mas dificilmente aplicáveis na mesma frase. Será possível realizar-se um trabalho manual estando fisicamente longe? Desde 7 de Setembro de 2001 que a resposta a esta questão é afirmativa. Neste dia teve lugar a Operação Lindbergh, avaliada em mais de 1 milhão de dólares, que culminou na primeira cirurgia transatlântica remota completa a um doente humano, tendo sido realizada a uma distância superior a 14000 km. Apesar da distância, o atraso médio foi de 155 milissegundos (alguns estudos parecem demonstrar que um atraso superior a 150-200 milissegundos equivale a um certo risco, pelo que a ligação a satélite está absolutamente fora de questão porque implica um atraso de 600 milissegundos). A doente tinha 68 anos e o sistema cirúrgico localizava-se no bloco operatório do Hospital Universitário de Estrasburgo, enquanto que o cirurgião e a consola estavam situados num prédio da baixa de Nova Iorque. Uma equipa de cirurgiões estava ao lado da doente para o caso de haver necessidade de intervirem, mas a colecistectomia laparoscópica decorreu normalmente e a doente recebeu alta em 48 horas. Esta operação serviu de plataforma a novas aplicações da tecnologia, sendo que a 28 de Fevereiro de 2003 ocorreu, em Ontario, a primeira cirurgia (uma fundoaplicação de Nissen) telerroboticamente assistida de hospital para hospital.
14••QUO RESSONÂNCIA cronos 14 VADIS?
Contudo, os primórdios da Telemedicina remontam há pelo menos 137 anos atrás, onde o artigo “Practice by Telephone” da edição de 29 de Novembro de 1879 da Revista Lancet faz menção ao uso do telefone em consultas médicas. Os primeiros passos foram dados nos EUA e no Canadá, pois a insuficiência na resposta médica a certas populações locais gerou a necessidade de se fazer Medicina à distância. Isto foi também potenciado pela necessidade de acompanhamento dos profissionais da Marinha (chegou a usar-se código Morse e comunicação por rádio), pelas iniciativas espaciais com vista à monitorização dos sinais vitais dos astronautas, e pelos conflitos armados. De facto, importa salientar que nem sempre a dificuldade de acesso a cuidados de saúde tem a ver com o aspecto financeiro, apesar de ser o motivo principal. Em certas situações a causa pode ser meramente física, logística ou conflitual, como nos campos de guerra. A Telemedicina baseia-se na simbiose entre as telecomunicações e os sistemas computacionais, pelo que o seu princípio está em fazer circular a informação em vez das pessoas, tendo em conta o desgaste, custo e inconveniência que isso acarreta. Nesta prática, há pelo menos duas modalidades que devem ser distinguidas: a Teleconsulta e o Telediagnóstico. A Teleconsulta é um serviço síncrono, suportado por um serviço telefónico ou de videoconferência e envolve no mínimo três intervenientes: 1-de um lado da comunicação está o médico especialista e 2-do outro lado o doente e 3-um clínico geral e/ou um enfermeiro e/ou um técnico de saúde conforme as dispo-
nibilidades locais. Por vezes, ainda será necessário ter por perto os especialistas das tecnologias de comunicação para apoio ao uso da tecnologia. Este conceito surgiu, em 2003, quando Louis Kavoussi contribuiu para a estreia, no Hospital Johns Hopkins, do robot Companion munido de um monitor com uma câmara e altifalante, permitindo o atendimento médico em tempo real. A este propósito alguns doentes não vêem o sistema Kavoussi com bons olhos, interpretando as consultas como “falta de consideração” pelo facto de estarem a ser feitas pela “televisão”. Já Antoine de Saint-Exupéry dizia que: «Não é a distância que mede o afastamento». Isto é, podemos ser empáticos, preocupados e investidos numa causa mesmo que estejamos longe, não é o aspecto do distanciamento físico que dita o emocional. Noutra vertente, o Telediagnóstico é um serviço assíncrono no qual um médico especialista que está distante recebe os resultados (exames de imagem, análises ou sinais fisiológicos), analisa os exames e elabora o respectivo relatório, reenviando-o à origem. Na sequência das altas precoces, isto é, devido à redução do tempo de permanência dos doentes nos hospitais após uma intervenção cirúrgica, surgiram outros dois ramos: a Teleassistência, que providencia à distância, cuidados de saúde e bem-estar aos doentes que estejam no seu domicílio e a Telemonitorização através de dispositivos de medição, equipamentos e redes que permitem manter em contacto o doente, os familiares, o enfermeiro e o médico,
conforme o que tiver sido planeado. No domínio da Telemedicina, consideram-se duas aplicações de grande valor para os profissionais de saúde: a obtenção de uma segunda opinião sobre um determinado resultado não conclusivo para o profissional de saúde que a solicita (é a chamada consultoria médica) e a possibilidade de aprendizagem continuada – educação médica à distância – para os profissionais de saúde que tenham sido
duas realidades com forte impacto no quotidiano das organizações e das pessoas: as doenças crónicas e o aumento da esperança de vida. E a verdade é que, neste momento, os diferentes modelos de gestão de saúde não estão preparados para responder eficazmente a estas realidades, quer do ponto de vista logístico, quer do ponto de vista financeiro. Ou seja, em regiões onde a oferta dos serviços clínicos se verifica não há gran-
uma variável com muito significado. Na maioria dos países europeus foi definida uma estratégia e um plano integrado de desenvolvimento da Telemedicina no território, pensando desde logo em soluções sustentáveis a longo prazo. Em Portugal isso não ocorreu e, como tal, as soluções foram desenvolvidas localmente, por impulsos, com recursos financeiros solicitados periodicamente a programas de desenvolvimento na-
«Ou seja, em regiões onde a oferta dos serviços clínicos se verifica não há grande necessidade de recorrer à Telemedicina, excepto em serviços de 2ª opinião sobre imagens médicas entre os próprios especialistas.» deslocados para ambientes mais afastados dos centros das especialidades clínicas e das formações presenciais. Outras possíveis aplicações incluem também: o treino de cirurgiões de países em desenvolvimento; o tratamento de soldados feridos na proximidade ou dentro do campo de batalha; realização de intervenções cirúrgicas no espaço; colaboração, durante a cirurgia, entre cirurgiões de todo o mundo. É importante ter em mente que, em termos de contexto social, existem
de necessidade de recorrer à Telemedicina, excepto em serviços de 2ª opinião sobre imagens médicas entre os próprios especialistas. Daí que na área de Lisboa e Vale do Tejo, por exemplo, não tenha havido uma incidência generalizada de experiências e serviços de Telemedicina. Em contrapartida, nas outras regiões do país sempre houve mais intensidade destas experiências, dada a escassez de médicos especialistas ao longo dos territórios. Se compararmos as práticas nacionais com as internacionais, o financiamento é claramente
cional ou transfronteiriço. Um exemplo bem sucedido disso está na Cardiologia Pediátrica do Hospital de Coimbra, mas o objectivo do Governo de 2013 em alargar esta rede a todo o território nacional ainda está longe de ser cumprido. Quanto à Telecirurgia, é muito pragmático existir um profissional de saúde capaz de operar vários doentes, sob diferentes contextos, a partir de uma consola. Em teoria, é fácil, não é barato, mas futuramente poderia ajudar a poupar recursos. Já os mais cépticos argu-
Edição XXIII • 15 ressonância
«[...] como não há bela sem senão, é crucial a reflexão sobre a privacidade e confidencialidade que poderão vir a estar em risco com a globalização dos
Telemedicina, na medida em que algumas intervenções médicas serão transmitidas ao vivo e alguns dados enviados informaticamente por Internet.»
sistemas de
mentam que uma desvantagem está, obviamente, na presença inevitável de uma 2ª equipa no bloco operatório caso o sistema de comunicações falhe ou o equipamento avarie. Curiosamente, para os doentes isto constitui um aspecto positivo do procedimento, pois os pares extra de mãos e olhos fá-los sentir maior confiança e segurança num bom resultado. Os apoiantes da telecirurgia, que a vêem como uma consequência positiva da globalização, acreditam que haverá uma adesão progressiva à área porque há um grupo nada desprezível de cirurgias feitas por via laparoscópica, cujo número tenderá a crescer. Mas, como não há bela sem senão, é crucial a reflexão sobre a privacidade e confidencialidade que poderão vir a estar em risco com a globalização dos sistemas de Telemedicina, na medida em que algumas intervenções médicas serão transmitidas ao vivo e alguns dados enviados informaticamente por Internet. Este fenómeno requererá um reforço da legislação de protecção de dados e segurança nas instituições.
360º (um desses braços tem uma câmara acoplada que emite as imagens em alta definição e 3D, com uma ampliação até 600x; os outros três braços manipulam os instrumentos cirúrgicos, que reproduzem os movimentos das mãos do cirurgião); 2- a consola, que foi inspirada nos simuladores de voo, onde o cirurgião coloca as mãos em manípulos robóticos semelhantes a joysticks; 3- a consola externa com monitor, onde os restantes elementos da equipa, posicionados junto do doente e dos quatro braços robóticos do sistema, observam a cirurgia. Seria irreal pensarmos que a evolução desta tecnologia estagnou. Na verdade, o seu aperfeiçoamento ocorre literalmente a cada dia, por exemplo, à conta da VRASP (Virtual Reality Assisted Surgery Program), que trará ao bloco operatório a capacidade de planeamento pré-cirúrgico e informação de ensaio/treino, de modo a optimizar a eficácia do procedimento, minimizar a morbilidade e reduzir os custos. Certamente não ficará por aqui mas, mais do que acompanhar o estado da arte, é indispensável a abordagem das implicações éticas da tecnologia em termos de consentimento, sigilo e não só.
Como seria de esperar, houve uma evolução de equipamentos que começaram por ser mono-braços (Puma 560, RoboDoc, Aesop, Neuromate) e que depois passaram para sistemas multi-tarefas (Zeus, Socrates e Da Vinci). O sistema cirúrgico robótico mais actual, o da Vinci Si HD, é bastante seguro, pois suprime movimentos bruscos ou tremor das mãos do cirurgião e tem uma precisão incomparável que permite reduzir os tempos de recuperação e internamento, dimensão das cicatrizes, dor e desconforto pós-operatório. É composto por três unidades: 1-o robot, composto por um corpo com quatro braços articulados, com flexibilidade de
Permanece também ainda muita incerteza sobre a questão da responsabilidade. Esta foi uma questão jurídica bastante delicada nos EUA, sendo que, por exemplo, a FDA só deu o aval à Operação Lindbergh sob a condição de esta ser conduzida exclusivamente por cirurgiões franceses e num doente de nacionalidade francesa. Para além disso, existe o facto incontornável de que a Teleconsulta carece de Exame Objectivo. Debate-se, assim, quais serão os padrões medicamente aceitáveis de um tratamento ou marcha diagnóstica obtidos na ausência do exame físico, considerado um dos pilares basilares da clínica, a par da anamnese.
16 • QUO VADIS?
economia da saĂşde
economia da saúde
por dentro da
Indústria Farmacêutica AUTOR João Ramalhão
P
odemos começar com uma pergunta: o que é que poderá ter a ver a dívida portuguesa, avaliada em aproximadamente 130% do PIB nacional, com o tema que dá o título a este artigo? Absolutamente nada, tirando o facto de os cerca de 0.292x1012€ que o Estado deve serem menos de um terço dos 1.04x1012€ que a indústria farmacêutica mundial lucra anualmente (dados da Thomson Reuters no 2015 CMR Pharmaceutical R&D Factbook, referentes a 2014). Basta pensar nos números de células malignas num cancro para perceber que números desta grandeza só se encontram em doença metastática de mau prognóstico. Analogias à parte, e apenas para aguçar a curiosidade dos mais interessados, acrescento ainda que esta mesma agência tem a gentileza de nos mostrar as suas previsões de vendas para 2020 de fármacos lançados este ano. No primeiro lugar, repousa o ácido obeticólico, um promissor medicamento contra doenças hepáticas crónicas que, segundo as previsões, fará entrar nos cofres das duas empresas que o produzem cerca de 2.62x109€, um montante considerável. Para terminar esta curta comparação
18• •ECONOMIA cronos 18 DA SAÚDE
com a dívida pública portuguesa, resta não desvalorizar uma outra relação existente entre os dois tipos de dados que estamos a analisar: se o lucro da indústria farmacêutica não fosse tão exagerado, talvez também a dívida do estado diminuísse um pouco, até porque andar por aí a comprar medicamentos a preços mais elevados que os do ouro e a vendê-los mais baratos acaba por não ser muito bom para a despesa pública. A indústria farmacêutica é um exemplo de uma mistura entre o capitalismo e a saúde. No fundo, e podendo passar por ser cruel ao escrever estas palavras, é uma empresa que lucra por melhorar a saúde das populações. Rege-se pelas leis da oferta e da procura. E, sendo controlada por homens,
muitas vezes olha apenas aos fins, perdendo o cuidado em garantir os melhores meios para os atingir. Olhar para a saúde como um negócio e não como um objectivo em si impele quem assim a olha a analisá-la não pelos lapsos sociais que tem mas pelos lapsos de mercado que possam haver. Caímos no risco de só investir naquilo em que teremos retorno. Que vantagem terei em investir em medicamentos que tenham por intuito melhorar a saúde de quem não tem como os comprar? O que será melhor: investir em melhores medicamentos, mais baratos, para doenças de terceiro mundo, como a malária, para vender a países africanos e asiáticos, ou investir em novas terapêuticas anti-tumorais, caríssimas, que são principalmente utilizadas em países europeus e americanos?
Sendo empresário, a resposta é lógica. Mas, enquanto no primeiro caso seríamos capazes de diminuir em milhões as mortes por paludismo, na segunda situação estaríamos a abrir caminho para uma relapse free survival de mais 4 meses. Será que se tem isto em conta? Será que, realmente, é preciso olhar para o problema desta forma? Como um dilema moral sem solução, em que deixamos sempre uma parte sem cura? Ou será que, com o lucro de aproximadamente 1x1012€, não seríamos capazes de resolver pelo menos estes dois problemas? O Ministro da Saúde de Angola, quase sem capacidade de resposta às actuais epidemias de malária, certamente agradeceria que houvesse essa possibilidade, até porque esta doença é a principal causa de morte neste país. Esclarecendo melhor as regras do jogo: comercializando num mercado livre, não existe uma empresa de medicamentos, mas sim várias. E estas várias empresas concorrem entre elas. Cada qual procura atrair investidores para cobrirem os custos cada vez que se pretende desenvolver um novo medicamento, sendo que estes investimentos são de um risco e custos tremendos. Quando digo tremendos, refiro-me a um custo de 0.005x1012€ por fármaco bem sucedido, segundo uma análise de 2013 para a revista Forbes. Comparado com os números anteriores parece pouco, mas a verdade é que o investimento para dois fármacos serem lançados no mercado equivale ao investimento feito para o Mundial de 2014, no Brasil. Acrescentando a isto, o overall sucess de novos fármacos que já se encontram no estadio de procurar aprovação em clinical trials fase I, tomando por exemplo os anti-tumorais e os fármacos cardiovasculares, fixa-se nos 4,7% e nos 5,7%, respectivamente. De facto, há muitos riscos em investir em novos fármacos. Este processo de inovação é como uma travessia do deserto que dura, em média, 12 anos.
«[...] a verdade é que o investimento para dois fármacos serem lançados no mercado equivale ao investimento feito para o Mundial de 2014, no Brasil.» E, afinal, como é que depois têm tanto lucro? Segundo o sistema de patentes dos
Estados Unidos, um fabricante que coloque no mercado um fármaco novo tem o direito de exclusividade da venda desse fármaco durante os 11 anos e meio seguintes. Esta medida visa equilibrar dois princípios fundamentais: um é o direito do investidor em recuperar o investimento que é feito, sendo
Portanto, é muito fácil dizer que se investe muito quando o retorno, apesar de tudo, é quase garantido. E os quase 12 anos de patente são um paraíso para tal. Para além disso, se esse orgulho das empresas da PhRMA em gastar tanto em R&D é as-
«De facto, as empresas farmacêuticas que são membros da PhRMA (que são as maiores de mundo), em publicações elaboradas pela própria, gabam-se de gastar 20% do seu lucro líquido em R&D. Estas percentagens de investimento em investigação, comparadas com as percentagens de empresas como a Microsoft (12%) ou a Apple (3%), são magnânimas.» o outro a necessidade de haver medicamentos acessíveis para a população (o que é facilitado pela concorrência). O estipulado foi que o período de tempo descrito era o justo para ambos os lados. Após esse período, qualquer outra empresa farmacêutica pode comercializar estes fármacos e assim nascem os genéricos, que custam menos por as empresas que os fabricam não terem que recuperar um investimento inicial. Apenas têm de cobrir o custo de produção. E, aumentando a oferta, o preço diminui. Em média, um genérico custa 12% do medicamento original e, actualmente, correspondem a 86% das vendas. No entanto, dando como exemplo a Merck, em 2013, o seu investimento em novas terapêuticas, apesar de significativo, é muito inferior ao seu lucro, correspondendo a 17% deste. Apesar de todos estes custos, as receitas geradas por estas grandes empresas conseguem ser muito maiores. De facto, as empresas farmacêuticas que são membros da PhRMA (que são as maiores de mundo), em publicações elaboradas pela própria, gabam-se de gastar 20% do seu lucro líquido em R&D. Estas percentagens de investimento em investigação, comparadas com as percentagens de empresas como a Microsoft (12%) ou a Apple (3%), são magnânimas. Isto mostra, de facto, o poder deste mercado. Mas estima-se que o retorno destes investimentos seja o dobro do inicial. Podemos orgulhar-nos, como europeus, de dizer que as firmas farmacêuticas europeias, ao contrário das americanas, gastam uma maior fracção das suas receitas em investigação. Também podemos estar satisfeitos pelo facto de, na Europa, os preços dos medicamentos serem 60% dos preços nos EUA.
sim tão grande agora, não o era em 1999, em que preferiam gastar mais no marketing dos seus produtos (1999 é a data dos últimos dados divulgados sobre este aspecto). Isto mostra bem o quão importante é, para além de encontrar um fármaco viável, criar nas pessoas a necessidade de o usar. Até que ponto será isto ético? O que falta para dissecar sobre este tema é quase tanto quanto o lucro que enunciei no início. Desde a dicotomia entre a quantidade de estudos clínicos que são feitos e a quantidade deles que são de facto escolhidos e registados, passando pelas relações internacionais no que toca a pressões para que os governos adquiram um ou outro produto ou pela enorme divulgação e publicidade enganadora que é feita em relação a certos medicamentos. Nem tudo é mau: a esperança média de vida, nos EUA, graças aos avanços da indústria farmacêutica, aumentou 0.75% a 1% por ano (entre 1970 e 1991). Óptimas terapêuticas, com as mais diversas das funções, estão neste momento a ser pesquisadas ou até testadas. Mas a que preço é que estas vantagens surgem? “Dai, e ser-vos-á dado”, assim se lê no evangelho segundo S. Lucas. Pena, até agora, o “dai” ter sido sinónimo de investir e o “ser-vos-á dado” o de lucrar duas vezes mais. E só dar a quem sabemos que nos dará de volta chama-se interesse. E interesse e saúde não podem andar de mãos dadas. Resta-nos esperar (ou agir…) para que chegue o dia em que a palavra “dai” tenha mais do que uma residual preocupação para com aqueles que realmente dela precisam.
ressonância Edição XXIII •• 19 19
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A formação e educação da população não é medida, na minha visão, pela capacidade do Estado empregar quem é formado. Não há essa discussão em qualquer outra área de ensino e não deveria haver na medicina.
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grande
entrevista
Pedro Pita Barros Pedro Pita Barros é professor na NOVA School of Business and Economics, onde leciona nas áreas da organização industrial e economia da Saúde. Em relação a este último tópico, intuito primeiro da nossa entrevista, tem trabalho publicado na temática dos determinantes dos gastos em saúde, das listas de espera e políticas de competitividade em Portugal e na União Europeia. Para além disso, integra a Comissão para a reforma da ADSE, a pedido do Governo. É, portanto, um profundo conhecedor do Sistema de Saúde português, com pensamento estruturado e uma visão clara para a Saúde.
20 • ECONOMIA DA SAÚDE
Entrevistado por Afonso Delgado Gonçalves José Rodrigues RESSONÂNCIA: Houve alguma mudança significativa de estratégia ao nível do SNS com a mudança de governo? Doutor Pedro Pita Barros: Não houve mudança fundamental, pois os elementos centrais de desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde têm cruzado linhas ideológicas. Tem-se ao longo do tempo assegurado uma continuidade de políticas. Como é natural em qualquer mudança de Governo, houve um esforço de dar um novo impulso às áreas que a equipa que entrou em funções vê como mais importantes. R: Qual acha que deve ser a área dentro da saúde em que devia ser investido mais capital? PPB: A primeira clarificação é a noção de capital. Podemos falar de capital financeiro (onde deve colocar mais dinheiro). E podemos falar de capital político (onde deve investir mais tempo para fazer acontecer mudanças). Os dois capitais não andam sempre juntos. Em termos de investimento financeiro e de investimento político, a finalização da reforma dos cuidados de saúde primários, com a expansão das Unidades de Saúde Familiar, conseguir levar a que todos os residentes em Portugal tenham um médico de família atribuído, e evitar “desertos médicos”, áreas desprotegidas em termos de acesso a cuidados de saúde, será a minha primeira preferência. Mas a pressão para atribuir financiamento a inovação, nomeadamente na área dos medicamentos, vai ser grande. Será aqui necessário investimento político para que o processo de introdução da inovação não venha provocar desinvestimento financeiro de outras áreas de uma forma não programada. A construção de uma nova visão para o sistema de saúde português não obriga necessariamente a muito mais recursos financeiros, mas exige um grande investimento de esforço político. Por exemplo, fazer bem à primeira
vez é reconhecido como uma forma de obter melhores resultados gastando menos, mas obriga frequentemente a mudanças culturais na forma de funcionamento das instituições que prestam cuidados de saúde e nas próprias profissões de saúde. R: Sendo a sua base académica a Economia, por que razão decidiu enveredar pelos assuntos relacionados com a Saúde? PPB: A resposta é simples, porque o funcionamento do sector da saúde tem muitos problemas de escolha sobre a utilização dos mais diversos recursos, e onde a aplicação da análise económica, da forma de analisar problemas de uma perspectiva económica, pode trazer contribuições que melhoram essas escolhas. Os problemas conceptuais e de avaliação empírica são muitos, interessantes e importantes. Trato os assuntos relacionados com a saúde com os olhos de economista. R: No seu blog, escreve no artigo sobre a dívida dos hospitais que “o ritmo de crescimento estimado da dívida é de 20 milhões por mês.” Num ano, isto dá a soma de 240 milhões. Até que ponto isto é sustentável ou, no mínimo, possível de manter?
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e a evolução que regista, pode ser vista como sinal de mau funcionamento dos hospitais, e em particular da sua gestão. É preciso verificar se esse crescimento da dívida é resultado de financiamento adequado (situação em que mesmo hospitais que funcionassem eficientemente não teriam capacidade de não ter dívida e simultaneamente cumprir com a função assistencial que lhes é atribuída) ou resultado de gestão menos eficiente (situação em que será necessário trabalhar na organização e funcionamento internos). Acresce que a existência de dívida crescente, sem qualquer consequência para a entidade que gera, desincentiva a que haja esforço para uma boa gestão em todos os hospitais. De uma forma simplificada, se menos esforço significa mais fundos no futuro, não é difícil adivinhar o resultado na sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde. R: De um ponto de vista económico e de gestão, considera que são formados médicos a mais, ou que estes estão apenas mal distribuídos? PPB: Não vejo a formação de médicos como uma produção para abastecer o Serviço Nacional de Saúde (ou o sistema de saúde, numa perspectiva mais geral). A formação e educação da po-
ter dinheiro para cobrir essa descapacidade
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sustentabilidade
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acumulada dos hospitais, depende também de opções políticas.»
PPB: Em termos do Estado ter dinheiro para cobrir essa despesa, há naturalmente capacidade se for reduzida outra despesa pública. Basta acordar no que se deixa de fazer. E portanto a sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde, onde se insere este problema da dívida acumulada dos hospitais, depende também de opções políticas. Porém a existência desta dívida,
pulação não é medida, na minha visão, pela capacidade do Estado empregar quem é formado. Não há essa discussão em qualquer outra área de ensino e não deveria haver na medicina. Vejo o ensino superior e o acesso a essa formação como parte de um dever da sociedade para com as sucessivas gerações, devendo promover essa formação de acordo com os desejos e as escolhas que sejam feitas pelos jovens. Essas esco-
Edição XXIII • 21
lhas têm que ser feitas com informação suficiente, incluindo informação sobre empregos futuros prováveis. Diferente é a questão se estão mal distribuídos, e aqui a resposta é menos filosófica e mais simples. Estão mal distribuídos em termos de especialidades e em termos geográficos. Só que essa distribuição, nomeadamente a geográfica, não é passível de ser feita por planeamento central. Em termos de especialidades há alguma capacidade de intervenção por delimitação da formação oferecida, mas não é perfeita (como se tem observado ao longo dos anos). R: Num workshop dado recentemente, relativo ao 7th AIMS Meeting, na Faculdade de Medicina de Lisboa, explorou a questão dos QALYS (Quality-adjusted life years) e a forma como estes podem influenciar escolhas na Saúde. Podia explicar de forma sumária o que são e, se possível, apontar algumas conclusões dos inquéritos que acompanhavam esta questão? PPB: O conceito de ganhos em saúde tem ganho crescente espaço na discussão sobre os efeitos de políticas de saúde e de avaliação do desempenho de unidades que prestam cuidados de saúde. Contudo, a operacionalização
• cronos DA SAÚDE 2222 • ECONOMIA
deste conceito não é fácil. Mas tem-se reconhecido cada vez mais que a longevidade, os anos de vida, não são o único critério relevante de avaliação dos efeitos de intervenções em saúde. Anos de vida, longevidade, não traduzem adequadamente alterações de morbilidade na população. Não surpreende então que surjam propostas de medir os resultados dessas intervenções. E dentro dessas propostas surge a necessidade de ter alguma forma de medir a qualidade de vida como elemento complementar à longevidade. O indicador QALY é uma forma simples de combinar essas duas dimensões, ponderando cada ano de vida pela sua qualidade. Essa simplicidade tem também alguns custos de flexibilidade e envolve hipóteses que podem ser, e são por vezes, fortemente discutidas. Não deixam de ser um instrumento útil (pelo menos, até ao desenvolvimento de melhores alternativas). Além da importância que possa ter na avaliação dos efeitos de intervenções concretas, possui um significado metodológico muito relevante: mostra que é possível medir diferentes dimensões das intervenções em saúde e combiná-las num processo de escolha. E essa capacidade virá a ser relevante quando se defrontarem escolhas entre alternativas que têm contributos
diferentes em cada uma dessas dimensões. Permite conhecer as preferências da sociedade sobre essas dimensões e com esse conhecimento ajudar no processo de decisão sobre as terapêuticas mais adequadas (sem prejuízo da avaliação individual de cada caso clínico). No questionário usado na preparação da sessão foi usada uma formulação que colocava em confronto (de escolha numa situação hipotética) uma opção que tinha melhor resultado em termos de qualidade de vida com outra opção que tinha melhor resultado avaliada por longevidade. Algumas das questões destinavam-se a confirmar que o processo de respostas era coerente (ser preferível uma opção que tivesse melhores resultados em termos de melhoria de qualidade de vida e de aumento do tempo de vida, por exemplo). A principal conclusão da aplicação desse questionário a vários grupos tem revelado de uma forma consistente que a qualidade de vida é um elemento importante, e que quem respondeu ao questionário revelou disponibilidade a sacrificar tempo de vida a favor de maior qualidade de vida. Sugere que os processos de escolha entre alternativas terapêuticas deverão ser definidos também à luz destas preferências da sociedade, do que é valorizado pelos cidadãos.
Edição XXII • 22
Quanto custa
?
uma perna AUTORA
Pilar Burillo Simões
U
ltrapassando a sordidez excessivamente crua da pergunta, este é um tema que é visto com relativa naturalidade junto da opinião pública. São amplamente noticiados os seguros avultados que, desde a década de 50, são efectuados por artistas e figuras de relevo a fim de protegerem regiões específicas do corpo. Fred Astaire foi um dos primeiros a segurar, curiosamente, as pernas. Apesar da estranheza, a grande maioria dos cidadãos comuns encontra-se protegido, de alguma forma, por instrumentos semelhantes. Exemplos disso são os seguros automóveis, seguros obrigatórios de responsabilidade civil que conferem às vítimas de um acidente o direito a serem indemnizadas de acordo com os danos que sofreram. Mas como são avaliados esses danos? Quem avalia o grau de perda a nível físico, psicológico e laboral? Quanto pode o lesado receber? E acima de tudo, qual é o papel do médico em todo o processo? Apesar da premência destas questões, as respostas foram clarificadas há relativamente pouco tempo: apenas em 2007 entraram em vigor os dois documentos orientadores fundamentais na Avaliação e Indemnização do Dano Corporal em Direito Civil. Anteriormente, a definição da compensação a ser atribuída por danos na saúde estava dependente da Tabela de Acidentes de Trabalho (tendo em conta apenas as perdas a nível laboral), sendo que desta ausência de critérios específicos resultava que a definição de incapacidade era variável consoante o perito, levando a grandes disparidades entre os diferentes processos.
Para corrigir estas falhas foram criados a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil (TIC) e os Valores Orientadores de Proposta Razoável para Indemnização do Dano Corporal Resultante de Acidente Automóvel que há quase 10 anos regulam os processos indemnizatórios.
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Avaliação do Dano Corporal: o exercício da Peritagem Médica O objectivo de uma avaliação médica
pericial em direito civil é sempre a reparação integral do dano, isto é, proceder à recolocação da vítima (a expensas do responsável pelo acidente) na situação em que se encontraria se as lesões não se tivessem produzido. Este é um propósito que é amplamente reconhecido como utópico, tanto pela comunidade médica como pela jurídica. É manifestamente impossível recuperar totalmente uma vítima a quem tenha sido amputado, por exemplo, o membro superior. No entanto, a existência deste princípio determina que o perito médico deva avaliar tanto os danos patrimoniais - tais como a necessidade de colocação de uma prótese ou os dias de incapacidade total para o trabalho - como os danos não-patrimoniais, de que são exemplo a dor sofrida pelo doente ou o dano estético (o que não acontece, por exemplo, em Direito do Trabalho, no qual é apenas avaliado o prejuízo a nível laboral, razão pela qual a utilização da tabela correspondente para estes casos era alvo de tanta contestação). Assim sendo, cabe ao médico fazer uma avaliação de vários aspectos relevantes para além do “simples” estado do paciente pós-trauma: o nexo de causalidade entre o acidente e os danos, a data da cura (caso os danos sejam ape-
ressonância Edição XXIII• 23 • 23
nas temporários e o lesado reverta para uma situação semelhante àquela pré-trauma) ou da consolidação (no caso da existência de danos temporários e permanentes separados pela data de estabilização das lesões traumáticas). Após esta abordagem são avaliadas as incapacidades temporárias e permanentes. As primeiras são avaliadas quanto à componente geral e profissional e de acordo com a duração em dias, podendo a incapacidade ser considerada total ou parcial. No caso dos estudantes são tidos em conta períodos de ausência tanto de actividades lectivas como de actividades de lazer. Não é atribuída uma percentagem de incapacidade porque, naturalmente, esta vai diminuindo com o tempo, sendo difícil de objectivar. Já a avaliação de uma incapacidade permanente (na qual é utilizada a Tabela Médica já referida) segue-se a tradição do Direito do Trabalho de atribuir uma percentagem de incapacidade. Torna-se particularmente importante a classificação de incapacidade compatível ou impeditiva com o exercício da profissão anterior ou outras profissões na sua área de formação. Pode ainda ser necessária a avaliação dos danos estéticos e quantum doloris ou seja, o sofrimento moral provocado na sequência do acidente. Ambos são habitualmente avaliados com recurso a uma escala (1 a 7 pontos), sendo os únicos aspectos nos quais é permitida alguma subjectividade. O perito precisa de considerar o sofrimento como uma
tância de quantificação de danos económicos se a profissão do lesado requerer um elevado estatuto estético. Especificidades do Médico Perito Dada a natureza do acto pericial, o médico precisa de apresentar especial profissionalismo durante todo o processo. Há particular ênfase neste ponto porque a habitual relação de confiança e colaboração, que deve caracterizar qualquer acto médico tende a ser substituída por uma postura desconfiada e defensiva de ambas as partes: do doente porque existe a tendência, ainda que inconsciente, de ocultar elementos que acredita serem prejudiciais na determinação da indemnização; e do médico porque tende a cair no erro de acreditar que todos os sinistrados ocultam informação. Além das capacidades de comunicação e relação interpessoal necessárias a um acto pericial adequado, o médico deve estar dotado ainda da adequada preparação jurídica que enquadre a avaliação e garanta a justiça da mesma: peritos diferentes perante situações semelhantes devem chegar a avaliações de danos sobreponíveis. À responsabilidade ética e moral lógica inerente à avaliação dos danos de um lesado (da qual depende a atribuição de uma justa indemnização) acresce a potencial responsabilidade civil e criminal que pode advir de irregularidades ou incorreções na avaliação, com as repercussões imagináveis na vida do lesado.
«[...] o médico deve estar dotado ainda da adequada preparação jurídica que enquadre a avaliação e garanta a justiça da mesma: peritos diferentes perante situações semelhantes devem chegar a avaliações de danos sobreponíveis.» experiência absolutamente individual, bem como o contexto de produção dos danos. Em particular, o dano estético poderá ser alvo de valorizações em ins-
24 • ECONOMIA DA SAÚDE
Avaliação da Incapacidade Permanente: uma tabela médica A actual Tabela Médica foi inspirada na Guide-barème européen d’évalua-
tion médicale des atteintes à l’intégrité physique et psychique e elaborada com a colaboração do Instituto Nacional de Medicina Legal. Está organizada por sistemas orgânicos e atribui pontos percentuais às diversas incapacidades, prevendo igualmente danos que limitem as Actividades de Vida Diária e danos que confiram incapacidades de forma sinérgica.
«Mas, logicamente, é muito difícil falar de justiça na atribuição destes valores, independentemente da sua dimensão.
Mais do
que isso, estes valores definem o grau de riqueza e bem-estar de cada país, que por sua
vez se traduz na forma como cada sociedade indemniza as suas vítimas.» A classificação das lesões tem em conta a sua gravidade com o pormenor possível: as parésias têm classificações distintas de acordo com o grau de força muscular (parésia do membro inferior com força muscular de grau 4 corresponde, no máximo, a 20 pontos enquanto que o grau 1 ou 2 correspondem, no mínimo, a 31 pontos), as sequelas nos membros podem ser classificadas consoante os movimentos que ficaram impossibilitados (a limitação por rigidez da flexão do membro superior a 130o corresponde, no máximo a 5 pontos, enquanto que a 60o corresponde no mínimo a 13 pontos) e até as epilepsias recebem valorizações diferentes consoante a distinção entre controlada, dificilmente controlável e refractária. No fundo, esta tabela veio anular
toda e qualquer subjectividade na avaliação das lesões causadoras de incapacidade resultantes do acidente, tornando pelo menos esta parcela da avaliação médica bastante mais simples e justa. Apesar destes esforços, a utilização de uma percentagem é um procedimento actualmente considerado como redutor, sendo que a tendência é seguir os países onde a avaliação se faz pela descrição pericial exaustiva dos danos físicos, psicológicos, da qualidade de vida e do compromisso das actividades da vida diária, formativas, profissional, familiar e afectiva. Valores Orientadores: uma proposta razoável? Em relação às compensações monetárias propriamente ditas, o debate é sempre abundante. Quem pode afinal definir qual deve ser o valor da indemnização pela perda de um órgão interno ou pela paralisia de um membro? Os valores em vigor na tabela portuguesa foram estipulados na linha dos
que já vinham sendo atribuídos, de forma mais arbitrária, pelos tribunais nos vários processos. Mas, logicamente, é muito difícil falar de justiça na atribuição destes valores, independentemente da sua dimensão. Mais do que isso, estes valores definem o grau de riqueza e bem-estar de cada país, que por sua vez se traduz na forma como cada sociedade indemniza as suas vítimas. Assim sendo, a Portaria prevê uma tripla avaliação e compensação a ter em conta para cada acidente. Em primeiro lugar, têm-se os danos não-patrimoniais ou danos morais complementares (Anexo I da Portaria) que compreendem os danos estéticos, o quantum doloris e a repercussão na vida laboral, isto é, uma compensação pelos esforços acrescidos na manutenção do rendimento. Esta categoria inclui uma cláusula especial: em caso de incapacidade permanente absoluta (IPA) de um jovem que não iniciou vida laboral é apontado o valor inde mnizatório máximo de 150 000 euros. Seguem-se os danos patrimoniais futuros (Anexo III)
que traduzem a perda efectiva dos rendimentos provenientes do trabalho, em caso de incapacidade para exercer a profissão. Finalmente, acresce a compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica, o chamado dano biológico (Anexo IV). Da portaria constam ainda os danos morais por morte (Anexo II) e os danos por despesas incorridas e rendimentos perdidos por incapacidade temporária (Anexo V). A título de curiosidade, a amputação da perna (com preservação da coxa) é valorizada pela TIC em 30 pontos o que corresponde, em termos de compensação devida pela violação do direito à integridade física e psíquica – dano biológico – a um valor entre 1590 e 1610 euros para um indivíduo com idade igual ou inferior a 20 anos, e de 1525 a 1580 euros para um indivíduo com idade entre os 21 e os 25. A este valor acresceria naturalmente os danos morais complementares (dano estético, quantum doloris e repercussão na vida laboral) e danos patrimoniais futuros.
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o estudante de medicina
uma jornada de Motivaçþes e Abalos
o estudante de medicina
AUTORES
Nuno Vouga Sérgio Bronze
C
omo todos nós sabemos, é Medicina o curso mais falado por altura das candidaturas ao ensino superior. As altíssimas médias de entrada simbolizam a excelência e a entrada num futuro que se acredita brilhante. Muitos ficam de fora, e apesar disso voltam a tentar entrar nos anos seguintes. Muitos pais vão acalentando nos filhos, desde bastante cedo, a ideia desse futuro. Para além da excelência, outros tantos vêem na Medicina uma tábua de salvação, como emprego ainda facilmente garantido num país de incerteza. Quando ouvimos falar da profissão, surgem também ideias de “nobreza”, “humanismo”, “exigência” e “arte”. No entanto, os critérios de entrada no curso consistem apenas numa média ponderada entre as classificações obtidas no ensino secundário e as notas de alguns exames nacionais. Afinal, um bom médico selecciona-se primeiro, ou vai-se fazendo? “Sendo a última Profissão Romântica, a Medicina será sempre de melhor qualidade quando praticada por homens de cultura.” - João Cid dos Santos Foi assim, no meio de tantas ideias que giram em torno deste curso, que quisemos perceber porque está cá quem cá está. A nossa abordagem foi muito simples: a partir de listas de alunos obtidas junto de várias comissões de curso seleccionámos aleatoriamente vários colegas do 1º, 3º e 6º ano. Quisemos obter testemunhos
que não tivessem sido escolhidos por nós, preferindo antes uma pequena amostra representativa daquilo que somos. Após esta selecção contactámos esses colegas e marcámos com cada um deles (5 de cada um destes anos) uma entrevista presencial. Em cada uma dessas entrevistas fizemos as mesmas perguntas-base: 1) Quais as tuas razões/motivações para teres ingressado no curso de Medicina?; 2) Uma vez no curso, o que contribuiu para que continuasses nele?; 3) Como mudou a tua ideia da profissão médica, desde a candi-
datura até à actualidade?; 4) O que esperas receber, de bom e de mau, da profissão médica ao longo da tua vida?. Ao longo da entrevista fomos aprofundando os motivos de cada resposta, movidos pela nossa curiosidade. Quanto à história íntima da decisão por Medicina encontrámos dois padrões dentro do percurso académico típico: há o “desde pequenino…” e o “no Secundário comecei a pensar nessa hipótese”. Quanto ao percurso “atípico” (estudantes de
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outros cursos, licenciados ou trabalhadores que ingressaram em Medicina) a história é um pouco diferente. Será analisada mais adiante. A justificação mais textualmente evocada pelos entrevistados quanto à escolha por Medicina foi o “gosto em ajudar os outros”. Trata-se de uma justificação moral, louvável e em linha com os desejos da sociedade em relação à profissão médica. A um nível mais profundo, a raiz da justificação oscilou entre o sentido de dever e o “puro” gosto pela solidariedade. Quem pôde localizar as suas motivações nalgum ponto mais ou menos longínquo da sua infância não o fez exactamente do mesmo modo. Houve quem identificasse contactos fortes com a Medicina (situações graves de saúde pessoal ou, indirectamente, com pessoas próximas) cujo sentimento de vulnerabilidade associada lhes sugeriu uma “vocação”, e houve quem atribuísse esse desejo a uma ideia infantil, agora “irrelevante”, do que significa ser médico. Ainda assim, o “gosto em ajudar os outros” não pareceu muito diferente do referido à ideia “infantil” da Medicina. As experiências mais impactantes não geraram necessariamente visões mais decididas e apaixonadas da Medicina, ainda que tenham sido referidas como importantes nessa decisão. Talvez tenham adquirido importância maior a
2828 • O• cronos ESTUDANTE DE MEDICINA
título retrospectivo. Em todo o caso, a verdadeira diversidade de respostas a esta questão só foi minimamente captada a partir de colegas do 3º ano (ou de outros anos desde que vindos de diferentes experiências
dição quanto à transmissão geracional da profissão), nem ter procurado aconselhar-se mais do que muito superficialmente na sua decisão de ingressar no curso com alguém da área. Houve até quem disse ter ficado surpreendido com o número médio de anos necessá-
«Houve quem identificasse contactos fortes com a Medicina [...] cujo sentimento de vulnerabilidade associada lhes sugeriu uma “vocação”, e houve quem atribuísse esse desejo a uma ideia infantil [...] do que significa ser médico. Ainda assim, o “gosto em ajudar os outros” não pareceu muito diferente do referido à ideia “infantil” da Medicina.» universitárias). O “estado basal” era o “ajudar os outros”, mas bastante indefinido. Numa outra vertente, o “gosto pela aquisição de conhecimentos” foi também bastante referido, alimentado pela sua intrínseca funcionalidade e, curiosamente, também pela sua vastidão quase intangível, mas sempre tida como dinâmica. No fundo, como se se tratasse de um horizonte longínquo o suficiente para não ser esgotado numa vida. Todos referiram não ter quaisquer parentes na área da Saúde (o que foi algo surpreendente dada alguma tra-
rio para completar uma especialidade. Todos negaram ter entrado por pressões parentais (isto sem contar com o “orgulho” que estes demonstraram pela escolha dos filhos). Os “experimentados” (termo que usaremos para designar os colegas que já tinham frequentado o ensino superior ou até que trocaram profissões na área da saúde para ingressarem no curso) mostraram mover-se por razões bastante diferentes: algo entre a procura por um conhecimento mais vasto e preciso e a necessidade de dominar a sua utilidade, para melhor poder ajudar o doente.
Será que motivos de ordem financeira tiveram muito peso na escolha de Medicina? Não notámos isso, por duas razões: a maioria dos entrevistados admite que haveria outros empregos bastante mais rentáveis (e possivelmente menos exigentes) e mostra-se até algo surpreendida com os vencimentos dos médicos (pensavam que eram mais altos aquando da candidatura). Ainda que esta não seja uma das principais motivações, o que será bom, não deixa de ser interessante que seja tão pouco equacionada. Será que a ligação estreita com a família exime os estudantes de terem preocupações monetárias, embora elas venham a ser muito importantes na sua vida? Ou será que a perspectiva de um salário razoavelmente bom é suficientemente confortável? Pode ser que sim. Isto revela-se especialmente nos colegas que referiram o desejo de constituir família e de poder dar boas condições de vida aos seus futuros filhos. O curso é referido como sendo longo e, mais importante ainda, surpreendentemente duro. Na grande maioria dos casos, deixa-se a casa que nos dá conforto, passa-se sem o jantar da mãe, enfrenta-se a luz de uma nova cidade, cosem-se rotinas a um horário pesado e somam-se responsabilidades que até então não eram conhecidas. As mudanças são mais que muitas e a capacidade de adaptação é posta à prova. É também
nesta fase de mudanças que surgem as muitas dúvidas relativas às opções tomadas. A justificação baseada na componente empática, associada ao auxílio daquele que está em sofrimento pode ser alvo de interessantes escrutínios, isto porque nem sempre verificamos uma correlação linear entre aquilo que são as intenções e as acções, ou seja, nem sempre as condutas reflectem aquilo que é apregoado. Conseguimos, no entanto, detectar alguma coerência nessa vontade, com exemplos provados de voluntariado, disponibilidade em ingressar em ONG’s ou outras associações. É interessante pensar que o padrão menos coerente pode prenunciar uma atitude mais desapegada da profissão, que será precisamente aquela que é mais socialmente criticada. Há então um confronto entre o dever e o gosto em ajudar, numa dicotomia legitimada talvez pela insipidez que os colegas revelam ainda quanto ao conhecimento da profissão médica. No entanto, será que o mesmo não acontece em todos os outros cursos? Os estágios, o “oásis” do curso, são trazidos à tona múltiplas vezes pela verdadeira dose de motivação que representam, dando alguma clareza a uma realidade ainda incerta, mas para a qual todos diariamente investem es-
forços, através do estudo. No caso dos colegas dos anos de licenciatura, a falta de experiências pessoais e laborais é aqui moldada de forma a que desde cedo se interiorize a importância de um caminho unidireccional feito em conjunto com o doente para que se perceba a nobreza que isso confere à profissão. Quem já tem uma vida construída e um curso nas costas revela outra maturidade na forma como encara o contacto com os doentes, sem no entanto ter perdido o encanto, antes pelo contrário. A principal razão para se continuar no curso é, pelo que percebemos implicitamente, o hábito. O curso é visto como uma sucessão de desafios e ocupações, que nos vão puxando através deles mesmos. Neste sentido, não parece ser muito diferente da forma como se vivia o ensino regular. Ainda assim, o momento de transição faz-se sentir: rapidamente a ideia que se vende de que “o difícil foi entrar” se torna num “difícil será sair”. Logo no primeiro ano, vêem-se alguns colegas ir embora, ou porque o curso nunca fora o desejado, o que somado à elevada carga de estudo não os motiva a ficar, ou porque haviam sido obrigados pela família, ou terceiros, a ingressar em Medicina. Porém, não entrevistámos nenhuma dessas pessoas. Confessam-nos alguns dos entrevistados que os momentos de insegurança vão existindo, mas que se
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agarram às perspectivas futuras, aos planos que desenham - romanceados ou não -, à vontade de ver “isto terminado” para que mais energia se produza quando faltam estudar “aquelas 20 páginas” (como se soubessem que o curso não é um espelho fiável da vida que este permite alcançar). Encontrámos uma expectativa relativa à profissão que é distorcida (quando, por exemplo, perguntamos se sabem o vencimento e as horas de trabalho de um médico interno e assistente), e é curiosamente essa expectativa um dos motivos de ingresso no curso. Inquietante no mínimo. Apesar da motivação ter tendência para aumentar com o passar dos semestres, alguns revelam como a falta de organização no curso pode ser frustrante ou até um factor desmotivante. Existe um discurso, predominantemente nos alunos até ao 3º ano, de que “quando chegar à clínica é que vou ver”, revelando este encanto face à componente prática do curso - fonte inesgotável de espanto e de interrogação -, à relação médico-doente e uma ansiedade para aprender a criar um equilíbrio entre a proximidade e distanciamento com o doente. Salta também a preocupação com a descaracterização e despersonalização social de que a profissão tem sido alvo nos últimos tempos. À parte de tudo isto estão as amizades conquistadas, geralmente referidas como pilares mais seguros do que qualquer convicção relacionada com a vivência académica do curso. Num plano mais vasto, são elas que constituem a base da integração, valor que age em cada um como uma mão discreta que o leva adiante, como se, afinal, nos decidíssemos em conjunto. Tudo isto talvez porque um curso é sempre uma impessoalidade, que tem de ser complementada. Porque não temos um único gosto, nem somos regidos apenas por uma realidade. Somos na verdade uma amálgama de fascínios e interesses, e são também esses interesses que ali-
• cronos 3030• O ESTUDANTE DE MEDICINA
mentam a curiosidade em manter esta base que a Medicina para muitos é. É essencial saber lidar com o facto de que mesmo com muito esforço a esmagadora maioria deixa de ser “o melhor aluno da turma”, tentando não o encarar como uma desilusão. A oral de anatomia foi referida por muitos como o primeiro momento de grandes dúvidas, certamente pelo stress que implica. Saber descentralizar a Medicina na vida de cada é no mínimo saudável, tal como é importante não fazer das avaliações
«A oral de anatomia foi referida por muitos como o primeiro momento de grandes dúvidas, certamente pelo stress que implica.
Saber descentralizar a Medicina na vida de cada um é no mínimo saudável, tal como é importante não fazer das avaliações eventos definidores.» eventos definidores. Os entrevistados perspectivam diferentes futuros académicos, pesando sempre na balança as ambições pessoais e as profissionais. E neste ponto há grande variabilidade de pontos de vista, havendo quem defenda acerrimamente que a sua ambição pessoal se sobrepõe à ambição profissional e o inverso também se verifica. Perguntamos no fim o porquê de todo este caminho, qual o primum movens nesta jornada que um dia culminará em ser-se médico. A resposta é consensual: encontrar a felicidade. E é então que a ideia inicial do romantismo em torno
da profissão surge redentoramente, porque no final o que mais interessa é que se encontre realização naquilo que se faz. Afinal, o curso é um meio de acesso a uma profissão ou um caminho de maturação interior? Pelo que apurámos, a resposta depende muito da experiência prévia no ensino superior, ou de outras experiências profissionais. Apesar do peso da escolha ser teoricamente o mesmo para todos, há uma clara gradação, por fase do curso, quanto à solidez das motivações: os verdadeiros caloiros são geralmente mais contraditórios e indefinidos, com tendência para romancear a sua escolha; os colegas do 3º ano sentem-se mais confortáveis no curso, esperando ainda - talvez demasiado - que a prática clínica seja aquilo que, “finalmente”, vai ao encontro das suas vontades iniciais; os “experimentados” (em 15 entrevistas, 5 eram deste grupo), incluindo os colegas do 6º ano, frisam mais a importância do conhecimento técnico e das capacidades humanas na Medicina, bem como do sentido de dever. Como país, dificilmente saberemos se, de início, estamos a recrutar os melhores candidatos para a profissão, e não tanto para o curso. Quem entra no ensino superior aos 18 anos é imaturo por condição, o que pode ser um problema se acabarmos por considerar que este é um curso que “prende” mais do que os outros, por ser tão evidente a força de ideias secundárias em relação à genuína vocação. Por outro lado, não pudemos deixar de notar que nunca deixa de pairar, entre os colegas ”não-experimentados”, a insuperável questão: “E se eu chegar ao fim e não gostar disto?”. Na verdade, quase todos vivem como se só o tempo pudesse dar a isso um esboço de resposta, o que não tem de ser verdade, mas talvez acabe por ser mesmo a verdade. Como disse um dos colegas, “gosto que sejam os gostos a escolher-me”. E assim vamos em frente ao mesmo tempo que, no fundo, o nosso chão continua a ser o do risco.
jogos olímpicos
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jogos olímpicos
para além dos Limites Humanos AUTOR Nuno Fernandes
F
az parte da natureza humana querer ser o melhor. A competição leva-nos a ir mais longe, a tornarmo-nos mais fortes ou mais rápidos, e, como em tudo na natureza, uns emergem vitoriosos e outros sucumbem na derrota. O desporto de competição apenas seleciona os mais bem preparados para um tipo específico de atividade física. Contudo, a vontade de ganhar a todo o custo e a pressão dos treinadores, patrocínios ou até da própria sociedade, pode, por vezes, levar os atletas a utilizar “métodos alternativos” de melhoramento da sua condição física.
O doping, quando utilizado fora do ambiente desportivo, não é necessariamente reprovável. Quem nunca bebeu café para ficar mais desperto? Ou quem é que, tendo DPOC, não toma agonistas beta 2 para respirar melhor? O problema ético emerge quando os atletas utilizam estes métodos que o comum dos mortais usa para melhorar o seu dia-a-dia, para adquirirem uma vantagem antinatural numa competição. Para além dos problemas de saúde que advêm de estar a intervir desnecessariamente em processos fisiológicos humanos (como é o caso dos esteróides anabolizantes que provocam hipogonadismo), a razão pela qual o doping é proibido em termos desportivos é ética: é injusto e desleal, indivíduos farmacologicamente melhorados competirem com indivíduos não dopados. O despor-
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to deve, idealmente, promover a saúde, a equidade e a pureza da atividade física, os fenómenos fisiológicos levados à perfeição, pelo que intervir farmacologicamente naquilo que deve ser uma competição justa, vai contra o “espírito e a essência do desporto”. Os desportos mais suscetíveis à tentação sedutora do doping são os de caráter individual em que há uma correlação direta entre a aptidão física e a performance desportiva, como o atletismo ou o ciclismo. Se um ciclista conseguir aumentar a sua capacidade cardiovascular, consegue sem dúvida ter um melhor resultado na competição, o que, por exemplo, não acontece necessariamente com desportos como o basquetebol ou o badminton. Ultimamente, têm sido cada vez mais descobertos casos de doping. O vencedor de 7 Tours
de France, Lance Armstrong, admitiu em 2013 ter tomado eritropoietina, uma hormona que aumenta a produção de eritrócitos por parte da medula óssea. Mais recentemente, a tenista Maria Sharapova foi acusada de doping. O seu teste antidoping acusou a presença de Meldonium, um fármaco apenas vendido na Rússia e nos países bálticos, que melhora a circulação e perfusão tanto do miocárdio como dos tecidos periféricos e que, por isso, melhora a performance física. A tenista utilizava este medicamento, alegadamente por motivos médicos, desde 2006, mas como entretanto se descobriu que o medicamento melhorava a capacidade desportiva e estava a ser utilizado por vários atletas como doping, entrou na lista de fármacos proibidos no início deste ano. Segundo as entidades competentes, o
uso deste medicamento origina “uma pático, bem como uma concomitante tal como uma pessoa com uma subida melhoria da resistência dos desportis- maior produção de ATP. Desse modo, os discreta de T3 ou T4 terá uma maior tas, ajuda na recuperação após fazerem atletas experienciam melhorias em ter- capacidade desportiva. E continua a ser exercício, protege do stress e melhora a mos de concentração, sistema cardior- tudo fisiológico: há pessoas com maior ativação do sistema nervoso central”. respiratório e em termos musculares, capacidade atlética e há pessoas com Em situações semelhantes estão 98 ou- aumentando a resistência, endurance e menor capacidade desportiva. É esta tros atletas, que obtiveram testes po- força e diminuindo e acelerando a re- predisposição genética/fisiológica que, sitivosctualmente para o mesmo medicamento, o existe cuperação da cérebro fadiga. A cafeína, apesar aliada a dedicação e treino, através sabemos que um no intestino, por mais inapropriado quedeesse que levanta a questão: quantos atletas de ser um estimulante, tem um efeito um processo darwiniano, seleciona os conceito O não muito aprazível intestino intelectual do por queoutras o coração tomaram ou estãopossa a tomarparecer. medicamenmuito menor, e, como tal, ainda não éé mais atletas olímpicos. Dito pala- e poderá ter umaa maior capacidade de “sentir”. Michael Second Brain tos que melhoram performance des- considerado doping, mas estáGerson na listain de Thevras, o Bolt treina bastante, mas o que o portiva, mas que ainda não são consi- substâncias a monitorizar, e, se se de- diferencia de milhares de outros atletas derados doping? tetar que os atletas estão a utilizar ca- que também se esforçam nos treinos de É considerado doping, toda e qual- feína para melhorar a sua performance, sprint é a sua vantagem genética – uma quer substância ou método artificial de pode vir a fazer parte da lista de subs- tempestade perfeita de polimorfismos/ melhoramento da performance física e tâncias proibidas. Para além destas 3 mutações genéticas, a maior parte deles desportiva, proibido pelas federações e subclasses, também se podem realçar ainda não identificados ou estudados, entidades reguladores internacionais. os betabloqueantes, como o propano- que faz com que tenha uma maior preHá substâncias que só são proibidas in- lol, para diminuir o stress e aumentar a disposição para ter um maior desenvol-competition, sendo permitidas quando precisão dos movimentos, e os analgési- vimento de fibras musculares brancas, o atleta não está em competição e há cos, como a morfina ou a codeína, para capacidade de síntese de fosfocreatina; substâncias que são proibidas in- and diminuir a dor. de utilização de glicose e glicogénio out-of-competition, o que significa que Mais desleal do que o presente, será anaerobiamente, etc. o atleta nunca as pode consumir, quer o futuro. Tal como o capital não tem Já houve inúmeros casos em que os seja numa competição ou nos treinos. pátria, a tecnologia não tem vontade vencedores de medalhas olímpicas têm Contudo, relativamente à lista de fár- própria: o que umas pessoas utilizam vantagens genéticas. Um dos primeiros macos e métodos proibidos, podem ser, para tratar doenças, outras podem uti- casos mediáticos foi o de Eero Mänpor vezes, abertas exceções por razões lizar para melhoramento estético ou tyranta, um esquiador olímpico, com de saúde que o justifiquem, após uma desportivo, e outras até podem utilizar policitémia congénita devido a uma avaliação do caso clínico por parte da para fins bélicos. No futuro, o apareci- mutação no recetor de eritropoietina, agência anti-doping mundial. mento de terapias genéticas certamen- que ganhou 3 medalhas de ouro. Essa Apesar de haverem mais categorias, te irá curar inúmeras doenças, mas essa mutação fez com que a medula óssea pode-se subdividir fundamentalmente mesma tecnologia também poderá ser produzisse mais eritrócitos e conseem 3 subtipos: melhoramento da ca- utilizada para fazer pequenos ajustes quentemente com que o sangue tivesse pacidade aeróbia, aumento da massa desnecessários e supérfluos ao nosso uma maior capacidade de transportar muscular e aumento do metabolismo DNA. Será uma nova forma de medi- oxigénio. Desde então têm havido váenergético. Para o melhoramento da ca- cina estética, que, quando aplicada ao rios casos semelhantes, uns confirpacidade aeróbia, os métodos dopantes nosso dia-a-dia poderá trazer muitos mados, outros meramente suspeitas, têm como objetivo aumentar o número benefícios (tal como a cirurgia estéti- como o caso do Michael Phelps, em que de eritrócitos e/ou a oxigenação dos te- ca trouxe). Contudo, o melhoramento se suspeitou que ele tivesse Marfan’s. cidos, utilizando, para esse fim, trans- genético para fins desportivos poderá O resultado do teste foi negativo, mas, fusões, suplementação com eritropoe- levar ao aparecimento de atletas geneti- não sendo Marfan’s, certamente terá tina, etc… Para o aumento da massa camente modificados, alterando a pró- outros polimorfismos/mutações que, muscular, normalmente, são utilizados pria essência do desporto. juntamente com os treinos e regime esteróides anabolizantes, que no caso Como estudantes de medicina, esta- alimentar adotado, fizeram com que ele do homem, por feedback negativo, pro- mos habituados a lidar com intervalos tivesse uma estatura superior à média vocam uma diminuição da FSH e da LH, de normalidade. Uma pessoa pode ter e um sobre-desenvolvimento dos seus podendo provocar hipogonadismo e um pouco mais hemoglobina do que membros superiores. infertilidade e, nas mulheres, ao serem outra, mas desde que esteja entre os O efeito da variabilidade genética hormonas semelhantes a androgénios, valores considerados padrão, para nós, ou fisiológica no desporto já é conhepodem originar, o aparecimento de futuros médicos, é uma diferença sem cido há algum tempo, levantando duas caracteres sexuais secundários mascu- importância. Contudo, nós, muitas ve- grandes questões: Em que aspeto é que linos, para além de infertilidade. Por zes, esquecemo-nos que as pequenas vantagem genética é diferente do dofim, o aumento do metabolismo ener- diferenças podem ter um grande signi- ping? E em como é que se distingue um gético é feito à base de estimulantes, ficado. Uma pessoa com 17 de Hb, terá indivíduo geneticamente ultracompecomo as anfetaminas, o que origina maior capacidade aeróbica do que uma tente para a atividade física de um indiuma ativação do sistema nervoso sim- pessoa com uma hemoglobina de 14; víduo dopado?
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Edição EdiçãoXXIII XXII • 33
Relativamente à primeira questão, perdem – é algo tautológico, inegável e de 18, pode ser indicativo ou de suplede natureza claramente ético-moral, darwiniano. Quer gostemos quer não, a mentação com EPO ou de transfusão de não há respostas simples, mas o con- seleção natural é um facto da vida. eritrócitos. Este método, apesar de já senso geral é que vantagem genética Relativamente à segunda questão, ter sido introduzido nalgumas modanão é doping. O desporto de competi- os testes de doping, até agora têm sido, lidades como o ciclismo, o futebol e o ção premeia os melhores: há pessoas quase exclusivamente, deteção de fár- atletismo, ainda não é utilizado em larque naturalmente correm mais rápido e macos dopantes no sangue ou na urina. ga escala, mas sem dúvida que a persooutrasctualmente que correm maissabemos lentamente; o existe Uma pequena porção dos passa nalização dos inapropriado valores de referência seráesse que um cérebro notestes intestino, por mais que atletismo apenas toma a posição darwi- pela deteção de substâncias que nor- o futuro do controlo antidoping. parecer. O não muitoexistem aprazível intestino é maisAintelectual do quee odacoração niana conceito de celebrarpossa os indivíduos mais malmente no sangue, mas veevolução da medicina farma- e poderá ter os uma maior capacidade de “sentir”. Michael Gerson Secondnão Brain competentes: que têm a melhor com- rificar se são de origem humana ou in se Thecologia pode ser encarada apenas binação fenotípica de genes-treino-de- estão dentro dos valores normais, para como progresso, mas sim como desafio dicação. O próprio objetivo do desporto garantir que não houve suplementação de garantir que é utilizada no melhor de competição é selecionar os natural- dessas substâncias. Contudo, tendo em sentido. Curar e tratar doenças, bem mente melhores: os que geneticamente conta que podem haver indivíduos com como melhorar a qualidade de vida e e fisiologicamente são mais aptos para polimorfismos que fazem com que pro- diminuir ou acabar com o sofrimento aquela modalidade. Por esse motivo, o duzam naturalmente e de forma fisio- devem ser as diretrizes éticas do desenargumento de que se quando doparmos lógica, por exemplo, mais hemoglobina volvimento científico-tecnológico. O um indivíduo menos predisposto para a do que o normal, os testes antidoping enhancement estético ou até fisiológico, atividade física e o pusermos a competir podem positivar, acusando excesso de quando não põe em risco a saúde dos com um indivíduo naturalmente dota- Hb, e o comité olímpico pode interpre- indivíduos e quando é usado com bom do, apenas estamos a nivelar o terreno, tar esses resultados como doping san- senso e dentro dos limites da razoabiliacaba por ser falacioso, porque despro- guíneo. A solução para este problema, dade, algo que, no Mundo de hoje, está ve a competição do seu caráter compe- é a criação de passaportes biológicos em vias de extinção, até pode ser benétitivo, uma vez que deixar-se-ia de pre- de cada atleta, numa primeira fase fe- fico, pois melhora a autoestima, a aumiar os melhores. A ideia de que todas notípicos e numa fase mais avançada toimagem e pode até melhorar alguns as pessoas têm o mesmo potencial em genotípicos (para detetar terapias gené- processos fisiológicos, contribuindo todas as áreas e que basta esforço e de- ticas dopantes). A premissa é simples: para a condição física, para o bem-esdicação para ter sucesso é irrealista. O fazem-se múltiplas análises ao sangue tar físico, psicológico e social e para a esforço e a dedicação são de extrema ao longo do tempo para saber quais são saúde. Contudo, competir com base em importância, mas a predisposição fisio- as concentrações normais das várias melhoramentos artificiais, apesar de lógica também é um fator a considerar. substâncias no sangue em cada indiví- tentador, torna-se desleal. ParafraseanEu adoraria ganhar os 100 metros nos duo. Se uma pessoa normalmente tiver do um slogan de alguns grupos de atiJogos Olímpicos, mas, geneticamente Hb de 18, então, ter Hb de 18 no dia da vistas, daqui a alguns anos, estaremos falando, só pode existir um Bolt. Umas competição é normal, ao passo que uma a dizer “Diga não aos Atletas Geneticapessoas são melhores numas áreas e pessoa que normalmente tem Hb de mente Modificados”. outras são piores; uns ganham e outros 14, mas no dia da competição tem Hb
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34 • JOGOS OLÍMPICOS
CRÓNICA
Cruzar a linha
Olhou para o infinito... Ou melhor, não sabia para onde olhar, uma crise existencial angustiava-o. A contemplação de suicídio era um assunto que o colocava num estado meditativo. Queria atingir o seu nirvana, um estado de paz em que estivesse tranquilo com a decisão que tivesse tomado. Algo um pouco inatingível. A morte não é um assunto simples de se pensar, muito menos quando o sofrimento é algo que nos acompanha. Há 25 anos que vivia deprimido, cansado de viver, cansado de lutar por um resquício de felicidade que nunca chegava. Tinha-se isolado por causa disso. Tornou tudo tão pior. Solidão. Não há como regressar para o mundo dos vivos se se vive realmente sozinho. Infelizmente ou felizmente, dependendo da perspetiva, a felicidade é uma viagem acompanhada. Tudo começara nos seus 22 anos, quando desistiu do curso de Medicina que andava a tirar. Sempre quisera ajudar as pessoas, a empatia era talvez uma das suas melhores qualidades, e por isso ser médico sempre tinha sido a sua vocação. Mas depois, algo de muito mau aconteceu... Tinham-lhe morrido os pais e o irmão num desastre de automóvel e com isto tinha morrido também a sua vontade de viver. Era a única família que tinha. Tornara-se órfão. Ser-se órfão é uma realidade pesada, é injusto sê-lo em toda e qualquer circunstância. É completamente anti-natural, uma autêntica aberração de um mundo aberrante. Ele não merecera aquilo que lhe tinha acontecido, a sua vida, manchada de infortúnios, como se de uma história de terror se tratasse, levou-o a por tudo em causa, até mesmo a sua própria existência. Nunca recuperara, apesar de ter tentado.
35 • CRÓNICA
A crise paradoxal que vivia, de um humano com um desejo intrínseco de sobrevivência , mas que via na morte a sua única escapatória. Só queria dormir e de preferência para a eternidade. Será que a vida é um direito? Ou é um dever? É irrelevante, porque é uma tentativa vã de racionalizar algo que não é teorizável. A dor, a miséria, a tristeza não são conceitos objetivos. Bastava uma dose de morfina mal medida, um comprimido, um tiro na cabeça ou um corte nos pulsos e a sua permanente sensação de mau estar acabava. A única coisa que o fazia ficar por cá era de facto a nostalgia dos tempos de infância, isso pelo menos não lhe podiam roubar. Valerá a pena viver preso no passado ? Esta era a sua questão fundamental. Por cada vez que se relembrava dos seus momentos felizes , a felicidade momentânea que sentia era cada vez menor. Já nem era felicidade, era apenas uma mínima melhoria do seu estado depressivo. Como que a droga a que recorrera para se manter à tona já não tivesse o mesmo efeito.
AUTOR | Afonso Delgado Gonçalves
dira viver. Ele não queria desculpas para se matar, pelo contrário, queria motivos para viver. Todos os dias tentava encontrá-los, mas não conseguia. Os seus anos de medicina tinham dado frutos, não era médico, mas sabia como acabar com a sua dura realidade. Bastava uma dose de insulina mais alta, e morria numa espécie de adormecimento hipoglicémico, e o seu desejo de um sono perpétuo realizar-se-ia. Encheu-se de coragem e injetou-se. Pegou numa fotografia da família e deitou-se calmamente na cama, queria que eles fossem a sua última imagem. A cama passaria de um refúgio, a que ele tanto recorrera ao longo dos anos, a um santuário onde finalmente terminaria a sua miserável existência. A ansiedade do pós injeção deu origem a um estado de calma letárgico. Finalmente adormeceu, e desta vez para nunca mais acordar.
Tentara de tudo, correra psiquiatras pelo país fora e já tinha tomado todo o antidepressivo que havia para tomar. Só tinha uma solução. Pensou no que aconteceria se vivesse num país onde a eutanásia fosse legal, a decisão era muito mais fácil. Não teria que ser ele a puxar o gatilho, podia deixar a morte nas mãos dos médicos, além de depressivo seria cobarde. Cobarde, porque o seu sofrimento apesar de insuportável, não se podia comparar, na ótica dele, ao sofrimento de alguém com cancro terminal . Lembrou-se do caso da rapariga belga, Emily, que depois de aprovada a sua eutanásia deci-
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