EDIÇÃO XXVI
MEDICINA DO FUTURO MEDICINA E GUERRA SEXO
Ressonância Edição XXVI - Dezembro 2017 Editores
Afonso Schönenberger Braz Ana Raquel Estalagem João Bastos José Rodrigues Mariana Lourenço Sérgio Bronze Sofia Pessoa Jorge
Colaboradores
Afonso Delgado Gonçalves Beatriz Aranha Martins Catarina Paias Gouveias Cláudia Mourato Silva Diogo Cortes Lopes Eva Borges Daniel Alves Guilherme Vilhais Inês de Sousa Miranda Inês Ramadas João Pedro José Durão José Pedro Vinhal Júlia Machado Ribeiro Leonor Gonçalves Maria H. Viegas Rafael Pereira Inácio Sérgio Bronze Sofia Prada
Design gráfico Afonso Morais Humberto Freire Mariana Lourenço Sofia Pessoa Jorge
Fotografia de Capa Catarina Paias Gouveia João Vasco
Ilustrações
Catarina Paias Gouveia Eduarda Costa Ricardo Sá
Impressão e Propriedade
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt | facebook.com/ressonanciaaefml Depósito legal: 178455/02 Tiragem: 300 cópias Distribuição Grátis
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Índice EDITORIAL 3 CRÓNICA ENFERMARIA Nº 6 4
Medicina e Guerra
E SE TIVESSES DE ESCOLHER? 8 PRIMUN NON NOCERE 12
Sexo
JUSTIFY MY LOVE? 18 ENTREVISTA: ISABEL MOREIRA 22 AS POSIÇÕES QUE NÃO VÊM NO KAMASUTRA 24
Medicina do Futuro
QUID FUTURUM? 32 A QUEDA DOS GIGANTES 35 EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL: ATÉ QUE PONTO? 38 A ARTE NA MEDICINA 40
Cultura
BITTER 44 O ESTRANHO FRUTO DE NINA SIMONE 46 CRÓNICA RAÍZES 50
EDITORIAL
EDITORIAL
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erante a incerteza, importa repensar o passado e recomeçar o futuro. Após vinte e cinco suadas edições, deixámos para trás o conforto da escrita sobre a nossa casa e trocámo-la pela irreverência e pertinência dos temas que hoje trazemos. Apoiados no legado de gigantes, atrevemo-nos a repensar o design da revista, explorar novos horizontes e alargar o nosso público. Desnorteados pelo intervalo civilizacional em que hoje vivemos, levamos o debate, uma vez mais, a quem realmente importa: as pessoas. A XXVI edição pretende precisamente isso: Informar, refletir e, quiçá surpreender até. Aos leitores, um sincero e tremendo Obrigado. João Bastos e José Rodrigues Coordenadores-Gerais da Revista RESSONÂNCIA
Recomeça… Se puderes Sem angústia E sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. E, nunca saciado, Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças… Miguel Torga S. Martinho da Anta, 12 de agosto de 1907 – Coimbra, 17 de janeiro de 1995
ENCONTRE AS 7 DIFERENÇAS*
Cartoon por Ana Estalagem e Sofia Pessoa Jorge
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*Semelhanças Solução: Aluno 1, 2, 3, 4, 5, 6 e doente
CRÓNICA
ENFERMARIA Nº 6
por Afonso Delgado Gonçalves
D
ona Amélia, uma companheira de infortúnio que não vou esquecer. Não trocámos uma única palavra. Trocámos apenas uma noite de gritos loucos algures num hospital, o que admito que, no meu típico humor, me provocou um ataque de riso de madrugada. A sua fragilidade marcou-me, a única coisa que queria era sair dali com o seu filho. Com as senhoras enfermeiras tentando sempre em vão dizer-lhe que eventualmente o filho chegaria, mas a sua demência impaciente teimava em não entender. Quando finalmente chegou o filho para a ir buscar, em vez de tentar acelerar o processo da mãe, ao descobrir que estava por lá um colega seu, achou que a prioridade seria um café com o amigo. Não tive pena, pena é um dos sentimentos mais repugnantes que se pode ter por alguém. Senti uma compaixão demasiado grande por alguém que, preso a uma cama de hospital, sofria emocionalmente por negligência, alguém que via no seu maior orgulho um motivo para continuar agarrada a algo, e que este orgulho precisava, afinal de tudo, de um café. Senhor João, o cego mais delicado que alguma vez conheci (não é que tenha conhecido muitos... ). Só tive oportunidade de falar com ele melhor a momentos de ser transferido, quando me contou a história da vida dele. Como tinha sido maltratado, como ninguém o respeitara quando era novo e como parecia que toda a sua existência até agora tinha sido para mostrar o quão digno de respeito era. Falava da sua terra, ali para as zonas de Tomar, com um saudosismo de quem não quer voltar. A linda terra fora poluída por más
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memórias. Se calhar, mesmo agora, cego, se lá voltasse, uma mera inspiração traria uma inundação daquilo que se quer esquecer, mas que não conseguimos. Respeito-o muito. Odiava ser um incómodo e era de uma genuína bondade, algo de uma raridade enorme. Adorava conversar, infelizmente, numa altura, em que eu próprio que adoro conversar, não o queria. Não me volto a cruzar com ele, muito provavelmente, mas tenho pena, acho que poderia aprender umas quantas coisas. Não sei se há males que vêm por bem, mas sei que o mundo vive da constante dicotomia. Saúde e doença são faces reversas de se ser. Um médico, o lutador que carrega o bastião da saúde, pode não saber o que é estar doente. Como alguém só pode saber o que é a alegria quando conheceu a tristeza, o que é a luz quando viu as trevas ou quão boa é uma companhia quando se sentiu só, um médico só pode conhecer a saúde e ser o seu representante quando realmente conheceu a doença de perto. É um paradoxo engraçado, mas necessário na sua formação. Estar fechado numa enfermaria, por muito que as condições sejam as melhores, é uma porra. Obriga-nos a pensar sobre a nossa vida, a pensar sobre o que se está a passar ao nosso redor e, acima de tudo, o confronto com a nossa mortalidade numa mísera cama de hospital torna-nos humanos. O médico não é só o representante da saúde, porque conhecedor da doença na sua essência torna-se algo maior que isso: torna-se representante da humanidade nos seus períodos de maior angústia. •
Ilustração por Catarina Paias Gouveia
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MEDICINA E GUERRA
MEDICINA E GUERRA
E SE TIVESSES DE ESCOLHER?
Uma Perspetiva da microalocação de recursos médicos na época atual por Cláudia Mourato Silva e Diogo Cortes Lopes
A
tualmente, a alocação de recursos é uma temática bastante debatida na Medicina, nomeadamente nas unidades de cuidados intensivos. Muitas vezes, somos confrontados com cenários clínicos em que não temos à nossa disposição recursos para todos os doentes nessas unidades, desde ventiladores mecânicos a incubadoras. As questões-mor que se colocam neste palco de dúvidas são: Como definir quais os doentes prioritários ou, metaforicamente falando, atores principais? Devemos considerar os direitos dos doentes equivalentes? Ou selecionar os doentes com melhor prognóstico? É justo retirar a hipótese aos mais vulneráveis? E até que ponto um médico deve assumir a responsabilidade legal pela morte de doentes em estado crítico, por omissão de cuidados, quando na verdade não há recursos suficientes? A alocação de recursos envolve dois níveis: macro e micro. A macroalocação define-se como a distribuição dos cuidados de saúde a um nível social ou institucional, integrando decisões de larga escala, que não envolvem diretamente indivíduos e englobam os domínios do governo, companhias de seguros e entidades privadas. Por outro lado, a microalocação tem por base decisões de pequena escala e diárias, que afetam diretamente os indivíduos, desde definir “Quem fica na cama de cuidados intensivos disponível?” ou até “Que cirurgia poderia ser adiada para arranjar espaço para um doente de urgência com necessidade de tratamento imediato?”. Outro tópico que merece destaque são os intervenientes nesta decisão. De um modo geral, defende-se que a decisão deve envolver uma equipa multidisciplinar, incluindo médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde.
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O ideal nessa abordagem é estabelecer regras e normas oficiais que permitam a tomada de decisões no dia-a-dia hospitalar. Neste contexto e na área de Investigação Clínica, têm-se desenvolvido estudos de doentes críticos que possibilitaram criar e melhorar os protocolos de decisão, estratificando os riscos mais prováveis consoante o doente e que procuram beneficiar o maior número de pessoas. Mas será que o doente tem direito a dizer algo sobre o assunto? Se estiver em estado crítico ou fase de doença terminal, pode estar incapacitado para tal e, nesse caso, são usualmente os familiares mais próximos que podem dar a sua opinião. Contudo, nestes casos, seria utópico chegar a um consenso.
Como definir quais os doentes prioritários ou, metaforicamente falando, atores principais? É precisamente por isto que é fulcral a existência de uma panóplia de critérios homogéneos para a tomada de decisões. O objetivo futuro é então, de entre todas as opções certas, saber qual a opção mais certa. Num mundo em que os recursos são limitados e a procura pelos mesmos é gigante, a alocação estará sempre presente. Por isso, é preciso maximizar os ganhos em saúde e tentar que haja igualdade intergeracional, mas que seja também tida em consideração a gravidade de cada doente. Cogitando agora sobre os princípios éticos e eventuais soluções para resolver o problema, podemos considerar 3 modelos: o hipocrático, o utilitarista e o capitalista.
MEDICINA E GUERRA
O modelo hipocrático surge vinculado ao Juramento de Hipócrates, em que o médico jura solenemente que: “A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos”. Além disso, no Código Internacional de Ética Médica, consta a afirmação de que “um médico deve ter completa lealdade aos seus doentes e empregar todos os recursos da ciência a seu favor”. Isto implica que o médico não pode tratar problemas de alocação como problemas genuínos que envolvem competição, nem abordar a escassez de recursos para balancear os direitos de competição. Apesar de inicialmente parecer um modelo correto, não permite a resolução do problema de alocação, pois não nos permite priorizar um doente em vez de outro, já que cada doente é um membro da sociedade e, como tal, uma pessoa entre tantas outras.
"A vida que professar será para benefício dos doentes e para o meu próprio bem, nunca para prejuízo deles ou com malévolos propósitos".
para praticar Medicina e têm agora um serviço sofisticado e socialmente aprovado para venda. Há uma relação contratual e dependente da capacidade financeira do doente. Este modelo acaba por ser eticamente inaceitável, pois os doentes não devem ser privados de ter acesso aos tratamentos pela sua condição sócio económica. Além disso, é preciso pensar que, se ambos os doentes tiverem igual poder financeiro, é inviável dar prioridade a algum. Cada uma das 3 abordagens anteriores capta diferentes aspetos inerentes à profissão médica e coloca inúmeros dilemas, especialmente porque os médicos acabam por atuar como guardiões dos recursos disponíveis, numa Medicina que se transformou num autêntico monopólio de interesses. Não obstante, uma conclusão parece evidente: o grande dilema de como lidar com a alocação de recursos de saúde é colossalmente influenciado pela interpretação que há da Medicina atual, construída numa fundação histórica que é necessário entender e que é o principal motor do progresso médico- a guerra.
in Juramento de Hipócrates
Quanto ao modelo utilitarista, este espelha o oposto do modelo hipocrático e assenta no propósito de garantir o bem-estar para o maior número de pessoas. Aqui, só os doentes cuja condição possa ser tratada por uma intervenção com outcomes socialmente positivos têm direito legitimado aos cuidados de saúde. Enfatiza-se assim a igualdade entre doentes, mas também o que dá mais benefício à sociedade e este é o claro fator de desempate. Este modelo é o mais aceite na sociedade, embora obviamente tenha falhas, especialmente se refletirmos acerca do que define aquilo que será o “bem maior para todos”. No que concerne ao modelo capitalista, este quase retrata os médicos como empresários que receberam um regime de educação e treino necessário antes de terem a licença
| 1ª Guerra Mundial, Apoio Médico a um ferido As guerras, principalmente as que devastaram a Europa no século passado, são sinónimo de Morte e destruição. Os avanços científicos e tecnológicos que se sucederam na altura foram brutais. Por um lado, parece que o ser humano se focou em aperfeiçoar a arte de matar – desde as espadas até à bomba atómica, passado pela metralhadora automática, artilharia como bombas e foguetes, caças e submarinos, entre muitas outras inovações ao longo da
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História. O que moveu este progresso foi o desejo de magoar e provocar o maior dano possível ao inimigo. Por outro lado, à medida que as armas à nossa disposição aumentavam, crescia o leque de ferimentos que aterrorizavam até o soldado mais experiente. E assim, aumentava a necessidade de os médicos militares saberem como tratar estas novas lesões e como coordenar um grande influxo de doentes, companheiros de armas com demasiadas necessidades para tão poucos recursos disponíveis. A ambulância, a anestesia e os antissépticos – que tomamos por garantidos hoje em dia – surgiram como resposta aos milhares de soldados que morriam, não pelo ferimento de guerra em si, mas sim das complicações que daí advinham
no decurso da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Até 1915, os feridos eram transportados em cestos a cavalo ou em vagões de comboio para transporte de gado. Os vários antissépticos à época eram de tal forma ineficientes que 70% das amputações se realizavam devido a gangrena de uma lesão que, de outro modo, seria viável, amputação essa que era feita sem anestesia ou sob uma bastante ineficaz. Estes são alguns dos exemplos que demonstram um triste paradoxo – as guerras, que tantas vidas custaram, também salvaram milhões devido aos progressos na Medicina. Outra das grandes inovações que a necessidade bélica nos forneceu foi a triagem. Termo cunhado por Dominique Jean Larrey, um cirurgião francês do exército de Napoleão a
| 1ª Guerra Mundial, Ambulância Australiana, 1916
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EMERGÊNCIA
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MUITO URGENTE
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| Triagem de Manchester. Cores e respetivos tempos alvo previstos de atendimento partir do verbo francófono trier, que significa selecionar ou separar. A expressão consolidou-se no vocabulário médico ao ser usada por médicos franceses durante a 1.ª Guerra Mundial. Na altura, os feridos em batalha eram separados em 3 categorias nos postos médicos imediatamente atrás da linha da frente: os que provavelmente sobrevivem, independentemente dos cuidados que recebam; os que provavelmente não sobrevivem, independentemente dos cuidados e os que provavelmente beneficiaram de uma ação médica imediata. Estas categorias eram usadas para decidir a ordem da evacuação. Com o passar dos anos, os métodos de triagem alteraram-se, mas o conceito manteve-se. O objetivo é tratar os doentes de forma eficiente quando os recursos são insuficientes para tratar todos imediatamente o que, quem já esteve num hospital, sabe que é uma situação que se verifica quase permanentemente. Em Portugal, a maioria dos hospitais utiliza a Triagem de Manchester, desenvolvida pelo Manchester Triage Group, no Reino Unido. Este sistema divide os doentes em 5 categorias, representadas pelas cores nas famosas pulseiras utilizadas pelos doentes no Serviço de Urgência, como exemplificado na imagem acima. Este modelo pode ser classificado como utilitarista. No início, tinha como objetivo prolongar a vida do soldado e, desse modo, ter mais tropas disponíveis para combate. Hoje em dia, confere um benefício à sociedade, ao permitir uma gestão eficiente dos recursos de saúde com base na
gravidade de cada doente e no prolongamento da vida de cada indivíduo pois, numa sociedade utópica que a nossa tenta incansavelmente replicar, estes pontos conferem uma vantagem ao todo.
É preciso esboçar critérios cada vez mais lineares para que possamos construir um sistema que permita a microalocação de recursos mais correta! Durante longos anos, temos sido forçados a reconhecer que vivemos numa época em que a responsabilidade médica assume proporções complicadas. No lado esquerdo da balança, reside a nossa obrigação e dever de ajudar os doentes com todos os meios ao nosso alcance. Contudo, no lado direito da balança está vinculada a obrigação de racionalizar esses meios por motivos económicos e de acordo com o estado de gravidade do doente. O limite é um conceito inerente à condição humana e este problema requer uma solução global que possa ser consistentemente aplicada em todos os campos da saúde, que funcione em todas as áreas e não apenas em instâncias isoladas e fragmentadas. É preciso esboçar critérios cada vez mais lineares para que possamos construir um sistema que permita a microalocação de recursos mais correta! •
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PRIMUN NON NOCERE
por Guilherme Vilhais e Maria H. Viegas
"Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade." in Juramento de Hipócrates
CRIMES DE NUREMBERGA
A
té ao fim da II Guerra Mundial, a Medicina foi exercida autoritariamente num modelo paternalista que privava o doente da sua autonomia, não sendo necessário obter um consentimento informado dos indivíduos que participavam em experiências médicas. Esta realidade, aliada ao desrespeito pela vida humana, levaram a um capítulo negro e, por vezes oculto, do Regime Nazi, em que cidadãos judaicos, de etnia cigana, homossexuais e presos políticos foram forçados a residir em campos de concentração com condições deploráveis. Alguns “médicos” alemães ao serviço do regime viram nisto uma oportunidade para testar as suas ideias mais mirabolantes. Muitos prisioneiros viram-se forçados a participar em experiências científicas, que resultaram em trauma, desfiguramento, incapacidade permanente ou mesmo na morte. Estes licenciados em medicina do terceiro Reich aproveitaram-se dos seus conhecimentos para torturarem e levarem a cabo experiências perigosas, desrespeitando o princípio ético da Não Maleficência e o Juramento Hipocrático. Algumas delas foram realizadas para ajudar os militares alemães nas situações de combate, contribuindo para o desenvolvimento de novas armas ou ajudando a melhorar o tratamento dos militares feridos. Uma dessas experiências ocorreu em Dachau e ficou conhecida como The Freezing Experiment, conduzida pela Luftwaffe, em que os prisioneiros foram obrigados a
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permanecer nus, no exterior, com temperaturas negativas. Muitos não sobreviveram. O objetivo dos médicos alemães era descobrir como podiam os soldados alemães sobreviver às baixas temperaturas da frente leste. Das várias experiências realizadas, esta foi das poucas que obteve resultados aproveitáveis para medicina moderna.
| Campo de Concentração de Auschwitz Seguiram-se várias experiências noutros campos de concentração, como o de Auschwitz, onde Mengele realizou várias experiências com irmãos gémeos, incluindo crianças. Dos mais de 1500 gémeos manipulados, apenas cerca de 200 sobreviveram. Outro exemplo é a experiência de Ravensbrück, em que foram realizados transplantes de músculos, nervos e ossos, sem qualquer anestésico
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ou condições de assepsia, tendo resultado em dores excruciantes e infeções recorrentes nos prisioneiros sujeitos a esta experiência. Após o fim da guerra, todos estes crimes foram julgados no tribunal de Nuremberga, onde os médicos do regime tentaram justificar estas experiências com base nas necessidades militares. Com a recolha de todos os testemunhos horroríficos obtidos neste julgamento, nasceu, em 1947, o Código de Nuremberga, um conjunto de princípios éticos que regem a pesquisa em seres humanos e que veio exigir um consentimento informado e totalmente voluntário, o evitamento de todo o sofrimento desnecessário e o uso do princípio da beneficência. Toda a experimentação humana que prejudique o participante em nome do progresso científico jamais será justificável e deverá ser veementemente condenada. O uso dos dados obtidos durante estas experiências foi fortemente criticado. No entanto, apesar dos julgamentos de Nuremberga, a medicina Alemã nunca chegou a denunciar completamente este abismo moral. Ainda há pouco tempo foram descobertos espécimes anatómicos de vítimas do regime nazi que ainda são usados em instituições alemãs como o Instituto Max Planck. As ações dos médicos nazis e os julgamentos de Nuremberga continuam a ser de conhecimento obrigatório e são indicadores moralmente relevantes de como uma profissão tão nobre pode degenerar totalmente, quando não há respeito pela vida humana ou empatia para com o próximo. Estas experiências resumem tudo o que a Medicina não deve ser. Enquanto futuros médicos é nosso dever salvaguardar a vida dos nossos doentes e nunca, nem sob coação, utilizar os nossos conhecimentos para malefício do próximo.
CARRASCOS DE BATA BRANCA Portugal comemora, em 2017, o 150º aniversário da abolição da pena de morte. No entanto, esta continua a ser uma realidade em 31 dos 50 estados dos Estados Unidos da América. Ao abrigo da Oitava Emenda da Constituição
Americana, que oferece proteção contra castigos cruéis e invulgares, os métodos de execução utilizados evoluíram visivelmente nas últimas décadas. O enforcamento, a morte por pelotão de fuzilamento, as câmaras de gás e a eletrocussão têm vindo a dar lugar à injeção letal. Apesar disso, a execução por injeção letal tem enfrentado inúmeros obstáculos. A produção e a importação de alguns dos fármacos utilizados, como o tiopental de sódio, foram proibidas pela FDA. Várias execuções decorreram de forma ineficaz, tendo os condenados demorado mais de meia hora a morrer e transparecido claro sofrimento . Foi na sequência de um destes casos que, em 2006, um tribunal da Califórnia ordenou que estivesse um médico a supervisionar as execuções ou que as normas protocolares da injeção letal fossem alteradas. Os tribunais federais têm, desde então, exigido o auxílio de profissionais de saúde neste tipo de execuções.
Toda a experimentação humana que prejudique o participante em nome do progresso científico jamais será justificável e deverá ser veementemente condenada. A American Medical Association considera a participação de médicos nestas execuções como uma violação de ética médica fundamental, sendo que por participação se entende receitar ou administrar os fármacos, monitorizar os sinais vitais, prestar aconselhamento técnico, escolher os locais de injeção, iniciar ou supervisionar a colocação de cateteres endovenosos ou declarar o óbito. Apesar da clara violação do código de ética, há médicos que aceitam participar nas execuções. Porquê? A maioria começa por trabalhar na prisão, consultando os reclusos e só depois lhes é solicitado que participem nas execuções. Aceitam porque inicialmente são tarefas que lhes parecem inócuas, como monitorizar a frequência cardíaca ou declarar o óbito. Não lhes parece que tenham um papel ativo na execução. Mas e quando as coisas correm
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| Um dos Julgamentos de Nuremberga. Entre os dois guardas, o réu Karl Brandt
mal? Quando os guardas não conseguem encontrar uma veia apropriada quando é preciso colocar um cateter venoso central ou quando o condenado não morre com as doses administradas? É nestas situações que se dá o ponto de viragem, que se abre o precedente.
sociedade e a sociedade condena aquelas pessoas à morte, o seu papel é estar disponível para ajudar. Além disso, está previsto que, caso não seja possível recorrer à injeção letal por indisponibilidade ou dos fármacos ou de um médico, se deve recorrer a outro método, provavelmente mais desumano.
Apesar da clara violação do código de ética, há médicos que aceitam participar nas execuções. Porquê?
Por outro lado, até que ponto não estão estes médicos a utilizar, de forma abusiva, o seu poder sobre o corpo humano? Quais são as consequências deste uso da medicina na confiança que a sociedade deposita em nós? A quem serve este tipo de assistência médica? Ao recluso como paciente ou ao Governo, que tenta instrumentalizar a medicina para servir os seus interesses? Se encaramos o recluso como paciente, não devia o próprio ter direito a recusar a assistência? O que acontece aos princípios da Beneficência e da Não Maleficência?
Grande parte destes médicos não é a favor da pena de morte, mas o dilema com que se confrontam é muito mais complexo do que limitarem-se simplesmente a cumprir as suas decisões morais pessoais. Um dos argumentos utilizado por alguns destes médicos é sentirem que a sua presença garante que a injeção é administrada de forma competente, respeitando o prisioneiro como ser humano. Se tem que ser administrada, preferem que seja por eles do que por um guarda prisional inexperiente. Há quem vá mais longe e afirme que os médicos têm uma obrigação para com o prisioneiro. Que um condenado à morte não é assim tão diferente de um doente com uma doença terminal, na medida em que um médico tem a obrigação de garantir que nem um nem outro sofrem durante o processo. Outro ponto de vista é que se os médicos estão ao serviço da
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Trata-se, sem dúvida, de uma questão eticamente complexa. Estes médicos encontram-se numa encruzilhada: ao intervirem estão a ser cúmplices de uma execução, mas, do ponto de vista do condenado, a intervenção acaba por ser confortante. A solução? Se não for, de facto, possível garantir que as execuções decorrem sem dor e crueldade sem que uma classe profissional seja obrigada a violar o seu código deontológico, a ideia de que a pena de morte deve ser abolida sai claramente reforçada. •
MEDICINA E GUERRA
| Electric Chair, pelo artista americano Andy Warhol em 1964. Feita a partir de uma fotografia, de 1953, da cadeira elétrica da prisão de Sing em Ossining, New York, onde os espiões Julius e Ethel Rosenberg foram executados por passarem informações sobre a bomba atómica à Rússia durante a segunda guerra mundial. Electric Chair faz parte das séries Death and Disaster, em que Warhol retrata acidentes de carro e suicídios, tal como nas páginas de um jornal. O efeito de reproduzir estas imagens repetidamente pretendia testar a hipótese de que, tal como A. Warhol sugeriu em 1963, “quando se vê uma imagem horrível muitas vezes de seguida, ela deixa de ter realmente um efeito”.
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SEXO
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JUSTIFY MY LOVE
por Beatriz Aranha Martins e Sérgio Bronze
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stamos a dias de inaugurar 2018 e sentimos cada vez melhor o que é ser cidadão do século XXI, o século que fica marcado por alterações inéditas na forma como olhamos a sociedade e pelo contínuo combate à mente claustrofóbica, que ameaça pela sua boçalidade e letargia. Contudo, as mudanças por vezes não são tão vincadas quanto a realidade nos sugere e é por isso que devemos continuar a educar de forma maciça a população para que nos aceitemos mutuamente na nossa diferença. Hoje casais do mesmo sexo podem adotar crianças, o casamento entre esses casais também já é possível, debatemos a lei da gestação de substituição, fala-se do feminismo com mais naturalidade, mas parece que a sexualidade humana fica um pouco fora das agendas de todos. Vivemos num país em que uma percentagem significativa de pessoas se rege por valores católicos e tradicionalistas, onde o pudor inibe a expressão pessoal por inteiro e onde se evitam temas como fetiches, fantasias, preferências sexuais ou pornografia. A sexualidade humana é uma área interdisciplinar onde a Medicina, a Biologia, a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia se juntam para explicar os fenómenos. Na verdade, uma grande maioria dos temas encontram-se por explorar, e no que aos fetiches diz respeito, nenhuma teoria explica satisfatoriamente o porquê de determinadas áreas do corpo não relacionadas com a função sexual ou objetos atraia tanta atenção dos seres humanos. Freud atribuía um papel fundamental aos eventos passados na interpretação que fazia dos fetiches, tendo-os como a consequência adulta da castração vivida em idade infantil, em que o fetiche funcionaria como uma substituição do órgão sexual masculino (exemplo clássico disso é o fetiche com
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pés). Estudos mais recentes revelam alguma facilidade na instalação de preferências sexuais baseadas em estímulos geralmente adquiridos juntamente com outras pessoas e provam que mais de metade da população tem preferências sexuais ou fetiches.
Vivemos num país em que uma percentagem significativa de pessoas se rege por valores católicos e tradicionalistas, onde o pudor inibe a expressão pessoal por inteiro. Os seres humanos durante o ato sexual usam uma série de processos mentais como imagens e fantasias e a maioria reporta o uso de fantasias nas suas atividades sexuais, masturbação e até no daydreaming. As fantasias definemse como qualquer tipo de imagem mental que adquire um significado erótico ou sexual e que podem atuar como mediadores, motivadores e geradores de comportamentos sexuais específicos. A fantasia tem a função de alimentar o desejo sexual, tão importante para a relação como qualquer outra das suas componentes. A quem ama é pedido o mundo: pede-se o amor, pede-se a loucura, pede-se a entrega, mas também se pede o desejo. O site de pornografia Pornhub lança anualmente uma súmula estatística sobre os conteúdos mais procurados no ano que coloca em perspetiva e, só no ano de 2016, o site contabilizou mais de 23 mil milhões de visitas, o que objetiva uma média de 64 milhões de visitas por dia. Os países com maior número de visitas per capita são os EUA, a Islândia,
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o Reino Unido e o Canadá. Para uma ideia mais concreta, segundo o site, a média de filmes vistos em 2016 por pessoa é de 12,5. Sendo esta uma realidade com elevada incidência populacional porque motivo pouco ouvimos falar dela no dia-a-dia? É uma realidade que fica totalmente reservada ao recato das nossas quatro paredes, como se sobre o indivíduo caísse uma vergonha imensa mal este coloca os pés na rua. Curiosamente, surgem cada vez mais indivíduos de ambos os sexos que desenvolvem dependência de filmes pornográficos, o que lhes exige acompanhamento ativo. Nem assim, contudo, este tema se torna corrente, como se aqui a educação deixasse de ter um papel preventivo relevante. Até há bem pouco tempo, o mundo era entendido como uma realidade maniqueísta, numa dualidade entreposta entre o bom e o mau, que no campo da sexualidade se evidencia pela dualidade heterossexual-homossexual. Os estudos levados a cabo pela equipa de Alfred Kinsey quebram esta visão, e no ano de 1948 é divulgada a famosa “Escala de Kinsey”, com um espectro compreendido entre o 0 e o 7, representativa de uma distribuição contínua entre os extremos que são a heterossexualidade e a homossexualidade, na qual o indivíduo se insere. Esta visão assumiu-se como um importante veículo para a compreensão de fenómenos como a bissexualidade, bem como para a aceitação e compreensão dos que têm uma postura diferente da nossa, que não é, no entanto, mais ou menos natural.
| Escala de Kinsey, in “Sexual Behavior in the Human Male”
A memória tem um caráter polimórfico. Constrói-se de imagens, objetos, pressentimentos, palavras, sons, desejos, estados de espírito, e é por isso que o ato sexual é tão complexo: pela representatividade de valores e crenças que reflete. Mesmo nos que de nós os corpos são mais tensos ou que são assolados pela solidão, a sexualidade tem um papel vital, e não falamos no seu caráter meramente reprodutivo - sem que no entanto se queira que o leitor acredite numa perspetiva absolutamente hedonista.
Até há bem pouco tempo, o mundo era entendido como uma realidade maniqueísta, numa dualidade entreposta entre o bom e o mau, que no campo da sexualidade se evidencia pela dualidade heterossexualhomossexual. Se olharmos para a Legislação Portuguesa, encontramos no Livro II do Código Penal no “TÍTULO III - Dos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade” que se um indivíduo andar nu na rua poderá será punido com uma pena de prisão até 1 ano, e que, no caso de ter práticas de cariz sexual em espaço público, poderá ser punido com pena de prisão até 6 meses. Portanto, em Portugal, parece ser mais ofensivo andar nu do que fazer sexo na rua, o que nos induz pudor, um traço profundamente enraizado na população portuguesa, talvez ainda mais vincado em países islâmicos ou do leste europeu, que se traduz na vergonha ou timidez excessivas aquando de uma conversa sobre sexo ou, no nosso campo de atuação, num impasse na abordagem em consultório médico de problemas relacionados com a função sexual ou sistema uro-ginecológico. Olhando agora para cada um dos sexos com atenção, temos o homem como símbolo da força e da Guerra, forte como o Deus Marte, cuja seta e escudo originaram o bem divulgado ♂. O seu fenótipo tem vindo a dominar o mundo
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SEXO
| Pelvic Douche, um dos tratamentos utilizados para a histeria
e é visto como aquele que aguenta, que não tropeça, que não desiste, o invencível. É comum educar um rapaz na certeza de que um homem não chora ou de que um homem tem de permanecer firme, castrando cegamente o percurso intrínseco de expressão afetiva e emocional de cada um, como se chorar fosse hábito ou costume das meninas. Por outro lado, a mulher, aquela que vive sob a ditadura da beleza e da perfeição, imortalizada pela Deusa Vénus, símbolo da fertilidade, da concupiscência e da libido. Mesmo estando tão associada ao prazer com a sua conotação mais sexual, é a que mais se vê privada do mesmo. Se diminuirmos o prazer ao orgasmo, independentemente da orientação sexual, várias estatísticas evidenciam que a mulher o atinge com muito menos frequência que o homem, ao contrário do que Hollywood ou alguns filmes pornográficos nos fazem crer. Coloca-se a questão: será pela complexidade ou pelo desconhecimento do corpo feminino? Desde que Emma Watson divulgou ser membro da plataforma OMGYes que muitas mulheres puderam aprender, através das opiniões de semelhantes, os melhores métodos para atingir o orgasmo, através de conteúdos
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explícitos e educativos, desenvolvidos sem pudor, como se de uma conversa entre amigas se tratasse. Para que se veja o quão necessários estes conteúdos são, basta recordar que até ao século passado era possível anular o casamento em Portugal pela ausência de virgindade da mulher, dado o seu papel de máquina procriadora, para a qual o prazer sexual era um não assunto. Atualmente as mulheres são parte essencial da relação sexual e o seu bem estar é uma variável tão importante quanto o do homem.
Ignorar ou esquecer a importância da sexualidade é alienarmo-nos de uma importante parte de nós, que nos confere bem estar e prazer. Se contamos os detalhes da nossa última viagem, partilhamos as nossas maiores emoções em fotografias ou mensagens, sorrimos ao falar de quem amamos, porque não nos abrimos mais naturalmente sobre o prazer?
SEXO
Embora seja inegável que existe uma vontade insaciável de ver, escutar e ler coisas relacionadas com o sexo, a censura está demasiado presente, a par da falta de racionalidade. Vejamos o exemplo típico de um homem convicto de que a homossexualidade não tem justificação natural, mas que pesquisa avidamente filmes pornográficos lésbicos, sem ter qualquer discernimento sobre o quão ambígua a sua postura pode ser. Remontando à época Vitoriana, em Inglaterra, onde surgiam os primeiros vibradores, estes foram inicialmente utilizados como terapêutica psiquiátrica da histeria, e mais tarde foram adaptados de modo a proporcionar prazer tanto a mulheres como a homens, sendo hoje um gadget altamente adquirido (mais pelo sexo feminino) em todo o mundo. Também o sexo
pode, e deve, ser exposto nas maiores plataformas de arte mundiais e em 2013 e 2014 esteve em exposição no British Museum “Sex and Pleasure in Japanese Art”, uma exposição de fotografias e pinturas lascivas, numa representação do sexo aliada a uma boa dose humorística, permitindo com a leveza do humor tornar a atividade sexual um tema de mais simples e natural abordagem. Ignorar ou esquecer a importância da sexualidade é alienarmo-nos de uma importante parte de nós, que nos confere bem estar e prazer. O primeiro passo para isso é olhar com naturalidade para algo que satisfaz, seguindo-se o de não permitir julgamentos por parte do subconsciente e, por fim, o de deixar correr tudo com naturalidade. •
"Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos que amamos. Isso é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa." Fernando Pessoa, in “Livro do Desassossego”
What are you gonna do? Talk to me, tell me your dreams Am I in them? Tell me your fears Are you scared? Tell me your stories I'm not afraid of who you are We can fly Poor is the man Whose pleasures depend On the permission of another Love me, that's right, love me in “Justify my love” por Madonna
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ENTREVISTA: ISABEL MOREIRA
por Rafael Pereira Inácio e Sérgio Bronze
I
sabel Moreira, nascida no pós Revolução dos Cravos, é uma atual deputada independente pelo Partido Socialista na Assembleia da República, mulher independente e símbolo marcante do feminismo português do século XXI. Conhecida por colocar o dedo nas piores feridas e por não ficar indiferente aos que sofrem pela diferença, fala-nos de forma concreta e clara de alguns dos traços que a definem enquanto mulher e política. Sem medo da condescendência ou do tradicionalismo português, é no Parlamento que bate o pé e é nele que tenta ver as evoluções da sociedade refletirem-se diretamente na lei. Numa sociedade em que o sexo é ainda um não assunto e onde nem todos auferem da mesma forma do prazer ou dos seus direitos é de indubitável importância ouvir vozes que pensam fora da sua época e nos trazem uma lucidez muitas vezes encoberta pelos velhos do Restelo deste mundo. Qual foi o verdadeiro papel dos seus pais na construção da sua personalidade, para as coisas boas e para as coisas más? Os meus pais deram-me amor e ensinaram-me a amar. É o mais decisivo que posso dizer do papel dos meus pais na formação da minha personalidade.
A religião subalterniza a mulher e, quando aparentemente a eleva, está, na verdade, a retirar-lhe o sexo. É fácil amar? Pode-se morrer por amor? O meu maior amor é a amizade. É um amor que deve ser cuidado, cultivado. Amar, no sentido romântico, é sempre difícil, o que não é negativo. Amar envolve sempre dor, ou não seria amar. Claro que se pode morrer por amor. E de amor.
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Ainda sobre o amor, onde acha que o amor pelos povos e pela humanidade tem falhado ao longo da história e hoje em dia para chegarmos a situações de tensão como tivemos no passado e estamos na iminência de voltar a ter nos dias de hoje? Não coloco a questão em termos de amor pela humanidade, mas em termos de respeito. Deveria bastar o respeito. O que falha hoje é o que falha sempre: não temos necessariamente uma natureza boa, isto por um lado, e, por outro lado, a pobreza e a exclusão são terrenos férteis para a disseminação do ódio e do conflito.
O Parlamento é o reflexo da sociedade, logo reflete o sexismo que está na sociedade. Vivemos numa sociedade em que a mulher é hipersexualizada em prol dos interesses masculinos, mas ao mesmo tempo parece haver vergonha em abordar temas como o desejo e o prazer. Como explicamos esta dicotomia e este pudor excessivo? Será a religião um fator a ter em conta? Claro que a religião explica muita coisa. A religião subalterniza a mulher e, quando aparentemente a eleva, está, na verdade, a retirar-lhe o sexo. Fala-se pouco (e mal) de sexo. A coisificação da mulher é uma das vertentes do sexismo violentíssimo perfeitamente identificado na sociedade. Seria o mundo um local melhor sem religiões? Sim. Entre ideologia e afeto, o que escolhe? Tudo é ideológico, até o afeto. Quais eram os seus sonhos ainda em tenra idade? Alguma vez se imaginou no lugar de destaque que hoje ocupa? Eu queria ser ginasta e escritora. Só concretizei o segundo sonho.
É certo que o movimento LGBT esteve a soro daquilo que é a filosofia feminista, mas hoje ocupam os dois grandes destaques dos direitos de minorias. Como evoluem estes campos? O que se podia fazer de diferente? Não faria diferente do que, no meu caso, tenho feito. Luta-se pela igualdade: exigindo todos os direitos para todas e para todos. Consagra-se, com luta, essa igualdade na lei, e depois luta-se pelo fim da discriminação social. Para onde acha que tende a evoluir a problemática do HIV/SIDA em Portugal? Considera que as novas gerações de jovens estão a ser devidamente formadas (ao nível da saúde escolar, por exemplo) e munidas de ferramentas para enfrentar esta e outras problemáticas no contexto da sexualidade? Tenho muito medo que o facto de a doença se ter tornado crónica (o que é óptimo) relaxe os comportamentos. A educação sexual tem de entrar na escola. Com que olhos olha para colegas da Assembleia eleitas publicamente e que votam contra gravidez medicamente assistida para mulheres solteiras? As mulheres não são todas feministas. Longe disso.
A educação sexual tem de entrar na escola. Há momentos em que ficamos descrentes, não? Sim, sobretudo quando os direitos fundamentais são adiados à conta de guerras políticas e não de qualquer outra razão. Conhece a alegria? E a felicidade? A alegria é-me familiar. A felicidade aparece-me às vezes. Alguma mensagem aos jovens futuros médicos? Obrigada por terem escolhido uma profissão tão importante para todas e todos nós. •
Como é ser mulher no mundo da política? Sente algum tipo de condescendência ou de preconceito? É lutar diariamente para sermos avaliadas pelos mesmos padrões de exigência aplicados aos homens. Claro que há preconceito e condescendência. O Parlamento é o reflexo da sociedade, logo reflete o sexismo que está na sociedade.
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AS POSIÇÕES QUE NÃO VÊM NO KAMASUTRA
por Eva Borges, Leonor Gonçalves e Sofia Prada
N
ós, seres humanos, somos animais sexuais. Porém, ao contrário dos restantes animais, servimo-nos do sexo não apenas para procriar, mas como uma forma de prazer e diversão. Os nossos comportamentos sexuais não são estanques e não são totalmente livres, sendo influenciados e limitados pelas normas da cultura onde estamos inseridos, pela religião e pelos nossos pares.
mulheres do clitóris, da vulva e da vagina; •
Orgasmo: pico de prazer sexual acompanhado por contrações rítmicas dos genitais, mudanças cardiovasculares (aumento transitório da pressão arterial e da frequência cardíaca seguido por uma diminuição rápida da mesma) e respiratórias com libertação de tensão sexual.
Desde sempre que se representam corpos humanos nus. Icónicas obras de arte da Antiguidade Clássica, como alguns monocromáticos vasos gregos e embutidos mosaicos romanos.
Na última década começou a ser dedicada mais atenção ao estudo da função sexual por dois grandes motivos. Em primeiro, por serem conhecidos os efeitos negativos que os agentes farmacológicos direcionados aos comportamentos sexuais podem ter e, em segundo lugar, por reconhecermos o aumento das dificuldades reprodutivas em ambos os sexos.
Os nossos comportamentos sexuais não são estanques e não são totalmente livres. Por isso, é importante caracterizarmos a função sexual. Podemos dividi-la em 3 aspetos: •
•
Desejo sexual: interesse em objetos ou experiências sexuais e/ou pensamentos/fantasias e iniciativa em experiências sexuais. É influenciado por atitudes, oportunidades, saúde e modo de estar; Excitação sexual: componente fisiológico – vasocongestão genital - e subjetivo – sentir-se excitado, sendo que o componente fisiológico dos homens depende da hemodinâmica do pénis e o das
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Os três são influenciados por neurotransmissores e hormonas. Existem diferenças entre os homens e as mulheres a nível do desejo sexual, sendo que este, no sexo masculino, é caraterizado por aumento de testosterona, de estrogénio e de progesterona enquanto que, no sexo feminino, apresenta aumento de testosterona, de estrogénio, de adrenalina e de norepinefrina. Nos restantes, as substâncias químicas são iguais entre géneros: •
Excitação: aumento de oxitocina, aumento de adrenalina, aumento de norepinefrina;
•
Orgasmo: aumento de oxitocina, aumento de norepinefrina.
O sexo tornou-se banal na sociedade ocidental. Contrariamente ao início do século XX, as cenas com beijos
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já não são censuradas e, pelo contrário, os comportamentos carnais são interpretados de forma explícita e diária nas nossas telas digitais. A motivação sexual, como comportamento fundamental que é do ser humano, tornouse meio de entretenimento, matéria-prima passível de ser explorada.
esta é encarada pela sociedade, tem vindo a alterar-se. A Era digital levou a uma maturação e massificação da tecnologia, bem como ao livre e rápido acesso à Internet. O que até há pouco tempo só se consumia com a aquisição de material para adultos passou a ter não só a portabilidade como também a qualidade de alta definição, o que não deixa
Desde sempre que se representam corpos humanos nus.
azo a imaginação. Modificaram-se os comportamentos,
Icónicas obras de arte da Antiguidade Clássica, como
já não se justifica a existência de uma frustração aliada à
alguns monocromáticos vasos gregos e embutidos mosaicos
abstinência sexual. O acesso e o consumo de pornografia
romanos, eram puras obras eróticas. Ao longo dos tempos, a
massificaram-se, apareceram inúmeras plataformas online
representação da nudez humana, bem como a forma como
de fácil acesso por todos, independentemente de idade,
| Representação da Sexualidade na Arte Antiga. À esquerda, um vaso grego; à direita, um mosaico romano.
literacia e condição social. As estatísticas revelam que “Sexo” é, em larga margem, a procura mais frequente nos motores de busca. A indústria de Entretenimento Adulto tornou-se uma das que mais dinheiro movimenta. De forma gratuita, existem já séculos de imagem, fruto dos imensos minutos dos vídeos disponíveis. Sem sair do quarto é possível, através de uma janela virtual, escolher entrar em
O consumo de pornografia pode, por um lado, fomentar comportamentos sexuais de risco e estar associada a uma maior agressividade sexual.
quartos nos mais longínquos locais do planeta.
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O impacto social do consumo de pornografia é indiscutível, as performances observadas passam como que papel químico a servir de padrão nas relações reais. Estabelecemse expectativas tanto quanto ao corpo do parceiro sexual bem como quanto às práticas que devem passar a ser rotina. Muitos teóricos referem-se à pornografia como meio de representação e produção de desigualdade de género, realçando a degradação e violência contra a mulher a que está associada. Na maioria dos guiões, o enredo centra-se na urgência biológica insaciável do homem, o clímax da interpretação resume-se à ejaculação do homem, visível e com apogeu de destaque, ignorando-se a gratificação sexual da mulher. O comportamento feminino é também, por norma, expectável, marcado pela prontidão sexual, pela ausência de consentimento, onde a única resposta possível é “sim” e nunca “não”, muitas vezes associado a uma construção de uma figura infantilizada e frágil, através do recurso a uniformes escolares e ausência de pêlos púbicos. O consumo de pornografia pode, por um lado, fomentar comportamentos sexuais de risco e estar associada a uma maior agressividade sexual e, por outro, se o seu consumo for excessivo, levar ao desenvolvimento de comportamento sexual compulsivo. Este comportamento compulsivo, também conhecido como adição sexual ou hipersexualização, está associado a circuitos neurobiológicos de recompensa.
| A pornografia como meio de realçar a degradação e violência contra a mulher, associado a uma construção de uma figura infantilizada e frágil.
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É caracterizado por preocupações e pensamentos repetidos e intensos com fantasias sexuais, impulsos angustiantes que comprometem o bem-estar psicossocial do indivíduo. Este comportamento foi dividido em duas categorias: um primeiro comportamento parafílico, tipicamente considerado menos aceitável pela sociedade, que se opõe a um comportamento não-parafílico, caracterizado por comportamentos sexuais considerados mais típicos, como a adição a atos sexuais com vários parceiros, constante fixação por um parceiro que considera inacessível, masturbação e visualização de pornografia compulsiva e a dependência por sexo e atos sexuais com o parceiro numa relação. O consumo excessivo de pornografia, tal como qualquer uso em excesso, enquadra-se na definição de vício, que é considerado uma doença mental quando concretiza os seguintes critérios: preocupação, síndromes de ansiedade e irritabilidade, falta de controlo, tentativa de persuadir os outros, forma de escape a sentimentos negativos e desvalorização de oportunidades, nomeadamente educacionais ou de relações interpessoais. Este consumo está associado a uma predisposição individual, que faz com que o sujeito praticante encontre satisfação e gratificação na excitação sexual, que ocorre com elevada frequência.
No entanto, será que somos capazes de definir o que são interesses e comportamentos sexuais "normais"? E "anormais"? A pornografia como adição causa alterações neurobiológicas reais, que nos permitem desmistificar aquilo que é visto como um hábito degradante e perverso pela sociedade, capaz de segregar os sujeitos que a ele se subjugam. As vias neuronais relacionadas com addiction são aquelas onde existe uma hiperestimulação. Correspondem às ansas fronto-estriadas (cognitivas e límbicas) e às projeções dopaminérgicas das vias nigroestriadas, mesocorticais e mesolimbicas. Estes circuitos estão relacionados com várias áreas do córtex pré-frontal, nomeadamente:
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| Set de um Filme Pornográfico, a realidade
•
Dorsolateral, responsável por funções executivas, controlo cognitivo e poder de decisão em condições explícitas,
•
Orbitofrontal e ventromedial, responsáveis por processamento de emoção, poder de decisão em condições ambíguas e recompensa da expectativa
•
Dorsomedial e ainda o córtex cingulado anterior, responsáveis pela sensação de craving.
Para além disso, foram encontradas evidências de aumento da massa cinzenta na região do estriado esquerdo ventral e diminuição da mesma em regiões pré-frontais (dorsolateral, orbitofrontal) e no córtex cingulado anterior. Desta forma, corroborando a alteração neuronal referida em indivíduos que sofrem deste vício, encontram-se défices no poder de decisão, redução responsiva e menor flexibilidade mental e existe propensão a escolhas mais perigosas e perda de memória. Por outras palavras, apresentam um desequilíbrio em realizar e controlar funções executivas, o que confirma a perda de controlo e o uso excessivo da pornografia que encontramos nestes indivíduos. A adição em pornografia, como já vimos, é considerada um comportamento não-parafílico, ou seja, típico e “normal”. No entanto, será que somos capazes de definir o que são interesses e comportamentos sexuais “normais”? E “anormais”? Até há uns anos, a masturbação era mais
estigmatizada. Hoje sabe-se que 99% dos homens e 75% das mulheres já se masturbaram pelo menos uma vez na vida, sendo que as principais razões apontadas para este ato são a obtenção de prazer sexual em 82% dos casos, a libertação de tensão em 60%, a simples e pura diversão em 46% e a necessidade de praticar em 1%. A homossexualidade era considerada um pecado e hoje a lei permite o casamento das pessoas do mesmo sexo. As parafilias, segundo o DSM-V, incluem qualquer interesse sexual intenso e persistente que não aquele voltado para a estimulação genital ou para carícias preliminares com parceiros humanos que consentem e apresentam fenótipo normal e maturidade física. Será que podemos considerar que as parafilias são psicopatologias? Na verdade, a palavra parafilia tem origem grega e na sua tradução literal significa “fora do amor”, dando a entender que os gregos viam as parafilias simplesmente como interesses sexuais não relacionados com o sentimento amor. Isso torna-as erradas? Só pode existir interesse sexual quando existe amor? As perturbações parafílicas, que já são consideradas psicopatologias pelo DSM-V, implicam a existência de sofrimento ou prejuízo ao indivíduo, dano ou risco de dano pessoal a outros. Nestas podemos considerar a existência de fantasias sexuais parafílicas, dentro das quais as mais comuns são voyerismo (34,9%), fetichismo sexual (30%) e sadomasoquismo (21,8%).
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Pensemos no exemplo do fetichismo sexual. Este corresponde a uma excitação sexual recorrente e intensa manifestada por fantasias, desejos e comportamentos e resultante do uso de objetos inanimados ou de uma ou mais partes não genitais do corpo, durante mais de seis meses. Em boa verdade, todos temos fetiches sexuais, mas não somos todos doentes. Os fetiches apenas se tornam uma perturbação psiquiátrica quando causam sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. A maioria das pessoas tem fetiches com partes do corpo e com objetos inanimados relacionados com o corpo. Em termos de partes do corpo, os fetiches mais prevalentes são: pés em 47%, fluidos corporais (como sangue e urina) em 9% e tamanho corporal em 9%. Relativamente aos objetos, 33% das pessoas tem fetiches com roupa que cobre as pernas e as nádegas, 32% com calçado e 12% com roupa interior. Alguns autores defendem que estes fetiches, por mais bizarros que possam ser, são uma forma de tornar o indivíduo mais capaz no ato sexual, aumentando as suas hipóteses de reprodução. Porém, a sociedade ainda vê a admissão destes fetiches como uma confissão negativa por, de certa forma, objetivar a mulher, uma vez que no geral são mais prevalentes nos homens. Mas se as mulheres tiverem fetiches estarão a objetivar o homem como objeto sexual ou estarão apenas a experimentar um desejo natural?
O sexo já não se resume só às páginas do Kamasutra. Tem sido reinventado com o desenvolvimento civilizacional Sabe-se que apenas 1-8% das pessoas nega alguma vez ter tido uma fantasia. Verificou-se também que são mais comuns em idades mais jovens, em bissexuais e homossexuais e em indivíduos com elevados níveis educacionais. Está
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demonstrado que são mais prevalentes no sexo masculino, o que pode ser explicado pelo facto de os homens, no geral, pensarem mais vezes em sexo e darem mais importância ao prazer físico da relação sexual do que a mulher. Quais são então as verdadeiras diferenças entre géneros do que diz respeito às fantasias sexuais? A principal fantasia das mulheres, em 30-60%, é serem dominadas pelo parceiro sexual, apesar de a maioria afirmar que não quer que a fantasia se torne real, enquanto que a dos homens é assistirem a relações sexuais entre duas mulheres. O género feminino fantasia com o(a) seu(sua) parceiro(a) atual e sobre situações hipotéticas, que nunca experimentou, mas que gostava de experienciar. O género masculino tem fantasias mais vívidas e detalhadas, que deseja realmente que se realizem e que normalmente estão relacionadas com alguém que não a(o) parceira(o) atual. Clinicamente, podemos definir como fantasias sexuais patológicas e anormais aquelas que envolvem parceiros não consensuais, que causam dor, que são compulsivas, que correspondem à única forma de obtenção de satisfação sexual e que causam disfunção sexual. Mas, para além disto, o que se tem verificado é que a variedade de fantasias tanto de homens como de mulheres é tanta que é difícil considerar que alguma é anormal. O sexo é então a expressão de uma componente humana. Parte da sua importância prende-se com a obtenção de prazer do qual não é dissociável. Como tal, facilmente se atravessa a ténue barreira que define os limites do benéfico face ao excessivo. Por ativar sistemas neurobiológicos associados ao processo de adição, alguns comportamentos sexuais tornam-se compulsivos e até prejudiciais. A forma como cada um encara o sexo é subjetiva e individual. Não há termos de comparação nem padrões de normalidade. Cada pessoa tem o direito de se expressar livremente desde que o faça de uma forma saudável. O sexo já não se resume só às páginas do Kamasutra. Tem sido reinventado com o desenvolvimento civilizacional e já não é imperativo sequer existir uma cama. •
mais em e Sabe mais em www.aimsmeeting.org w.aimsmeeting.org
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MEDICINA DO FUTURO
MEDICINA DO FUTURO
QUID FUTURUM?
por Maria H. Viegas
Vencedora do Concurso Ressonância: Prognóstico Incerto
Q
uando o Sistema Nacional de Saúde (SNS) nasceu, tinha o nobre objetivo de reduzir as desigualdades no acesso à saúde. E embora sejam indubitáveis as melhorias que produziu, urge analisarmos o impacto que as práticas socioeconómicas recentes, que originaram cortes no financiamento, tiveram na degradação do SNS. De acordo com o site do SNS, a crise financeira que acometeu a União Europeia, e em particular o nosso país, resultou numa má gestão de recursos escassos e num agravamento dos problemas e da desigualdade no acesso aos serviços de saúde. Como em qualquer sistema de Saúde, para obtermos uma gestão eficiente e conseguirmos providenciar o melhor cuidado possível aos utentes, é necessário que haja uma gestão adequada dos recursos existentes, priorizando a sua alocação consoante as necessidades da população.
Só nos últimos 20 anos, assistimos a um aumento de 400% no número de estudantes de Medicina em Portugal. No entanto, as questões económicas não podem, de modo algum, sobrepor-se ao bem-estar dos utentes. Neste momento, existem listas de espera de 3 anos para consultas hospitalares, quando o limite máximo legislado é de 150 dias. Esta situação leva a um aumento das desigualdades no acesso, uma vez que, quem pode pagar irá poder aceder aos serviços no privado com maior rapidez. Entretanto, iremos assistir ao congestionamento dos serviços de urgência como recurso para os utentes desesperados por poderem ver os seus problemas de saúde reconhecidos e tratados.
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Toda esta situação cria a falsa noção, junto dos utentes, de que Portugal tem falta de médicos. No entanto, sabemos que Portugal tem um número de médicos formados superior à média da OCDE (4,3 por cada mil, contrastando com os 3,3 da média).
Não há dúvida que a emigração pode agir como um motor de enriquecimento científico através da aprendizagem e absorção de conhecimentos. Então, como é que é possível que as necessidades de saúde dos portugueses não estejam a ser satisfeitas? A resposta? Má gestão de recursos humanos. A falsa ilusão de escassez médica deve-se à falta de médicos nalgumas especialidades de certas regiões do país, nomeadamente nas mais isoladas. Isto deve-se claramente à falta de atratividade e capacidade de recrutamento do SNS, com ofertas desajustadas e incapazes de atrair os jovens médicos, questões que seriam resolvidas com maior facilidade com um investimento no aumento dos incentivos. Não será, deste modo, natural que as pessoas se demonstrem cépticas quando dizemos que é preciso reduzir o numerus clausus? Afinal, a realidade que transparece é a de escassez de profissionais de saúde. É um imperativo que haja uma redução do numerus clausus. Sabemo-lo nós, a ANEM e a Ordem dos Médicos, mas de alguma forma os utentes e o próprio Ministério da Ciência, Ensino Superior e Tecnologia continuam cegos face à realidade. Só nos últimos 20 anos, assistimos a um
MEDICINA DO FUTURO
aumento de 400% no número de estudantes de Medicina em Portugal. Um aumento que as escolas médicas não conseguiram acompanhar. Chegamos ao ponto de ter um rácio de 25 alunos por tutor, o que não só compromete a formação médica destes estudantes como põe em causa a dignidade do utente que, no seu momento de maior fragilidade, se vê deparado com um número elevado de
capacidade formativa do SNS. Muitos veem-se obrigados a emigrar. Afinal, quem perde com esta situação? Perde o Estado e perdem os contribuintes que investiram meio milhão de euros por estudante ao longo dos seus 6 anos de formação básica. Perdem os alunos que se veem forçados a abandonar o seu país ou aceitar trabalhos como tarefeiros. Perdem os utentes porque estes estudantes
estudantes à sua volta, num quarto onde mal cabem 10. Vale a pena prejudicar o bem-estar do doente em prol do aumento exacerbado do número de estudantes, só porque a medida de redução do numerus clausus é impopular? Nos últimos 3 anos, temos assistido a um cenário em que centenas de estudantes recém-licenciados são impedidos de prosseguir a sua formação médica devido à falta de
poderiam estar a integrar especialidades em que a carência no interior do país é notória. Em suma, perdemos todos. Mas então, quem ganha? Ganham os países que os empregam. Será este o futuro dos jovens estudantes de Medicina? Não há dúvida que a emigração pode agir como um motor de enriquecimento científico através da aprendizagem e absorção de conhecimentos que ainda não chegaram
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até nós. Conhecimentos que, caso o profissional consiga regressar ao país de origem, poderão contribuir em larga escala para o melhoramento do nosso sistema de saúde. No entanto, no que toca aos alunos que ficaram de fora, a emigração apenas contribui para retirar jovens médicos de locais quase desertificados em termos de serviços de saúde.
É inadmissível que, em pleno século XXI e com tanta evidência disponível, ainda se acredite que as vacinas causam autismo ou que o colesterol é um mito.
são facilmente desacreditadas com uma explicação simples e paciente. Se não agirmos iremos verificar, a curto prazo, um aumento da desinformação na população, bem como uma escassez de recursos humanos nas áreas mais distantes das metrópoles. No entanto, a longo prazo, não só a nossa credibilidade junto dos doentes será afetada por mitos infundamentados como iremos assistir a um aumento de médicos que levará a que haja mais oferta que procura, pois, chegaremos ao ponto de todos os utentes terem médico de família e acesso a hospitais, mas não haver vagas para todos os estudantes. Não podemos nunca exceder a lei da procura/oferta. Quando pensamos se faltam ou não médicos, se devemos ou não diminuir o numerus clausus, temos de pensar a longo prazo.
Falando de emigração, será útil considerar igualmente o crescente isolacionismo político atual nos países que são considerados pioneiros na investigação médica, nomeadamente os EUA e o Reino Unido. Após o Brexit, verificou-se um fenómeno apelidado de “brain escape”, em que os cientistas estrangeiros, com medo de serem deportados ou discriminados, regressaram aos países de origem ou emigraram para outros que estivessem dispostos a acolhê-los. Estas políticas atuais de imigração dificultam as relações internacionais e a normal progressão do conhecimento.
Urge que lutemos por um melhor ensino médico, um ensino de qualidade que nos prepare para servir da melhor forma os nossos utentes, que lutemos por um SNS que respeite o doente e a sua dignidade em todos os momentos.
Perder este elo com países tecnologicamente avançados poderá ter consequências negativas na saúde da população.
É hora de agir. É hora de embarcarmos na defesa da medicina, relembrando sempre ao intervir, quer seja em greves ou manifestações, que a saúde dos nossos utentes vem sempre primeiro e acima de tudo devemos contemplar o princípio mais básico da Medicina: “primum non nocere”. •
Uma população que, com o surgimento de teorias despropositadas cuja propagação é exponencialmente facilitada pela Internet, parece estar a ficar cada vez mais céptica face às evidências científicas. É inadmissível que, em pleno século XXI e com tanta evidência disponível, ainda se acredite que as vacinas causam autismo ou que o colesterol é um mito. Esta situação demonstra a falta de literacia para a saúde dos nossos utentes. Mas de quem é a culpa? Pois bem, não interessa de quem é a culpa. Enquanto futuros médicos é nosso dever ouvir, esclarecer e educar até à exaustão a população, sempre que nos depararmos com crenças que
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Quando pensamos se faltam ou não médicos, se devemos ou não diminuir o numerus clausus, temos de pensar a longo prazo.
MEDICINA DO FUTURO
A QUEDA DOS GIGANTES por Daniel Alves e Inês Ramadas
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ivemos hoje em Portugal o início do futuro. O que mudou entre a nossa geração e a dos nossos avós? Se no mundo tudo se alterou, nós por cá não ficámos atrás. As mudanças de regime, a alfabetização da população e a evolução tecnológica a todos os níveis tiveram um impacto enorme em quase todas as classes profissionais. Hoje somos tudo mais. Mais em quantidade, mais em acesso, mais em procura. A sociedade está em reestruturação e a classe médica não fica atrás. Mas será que todos estes mais se traduzem também em maior qualidade? Num mundo em que o médico já foi Deus, em que a varíola existia e a SIDA não era crónica, onde é que estamos agora? Como é que a sociedade nos vê, agora que já não fazemos magia e que andamos equipados com a ciência numa mão e a tecnologia na outra? Para responder a estas questões, perguntamos a 254 jovens entre os 18 e 19 anos a sua opinião sobre a classe médica actual e ficámos surpreendidos com os resultados!
INTRODUÇÃO Não há dúvida que a dor, o sofrimento e a doença são umas das principais fontes de fragilidade humana e que estas nos têm inevitavelmente acompanhado ao longo do tempo. O que nos permitiu progredir e equilibrar a balança contra a nossa própria natureza foi a capacidade de racionalizar estes conceitos e de os tentar superar. É desta forma que foram surgindo explicações mágicas, religiosas ou científicas para esclarecer não só os eventos de saúde como de tudo o que nos rodeia. O terapeuta surge em muitos papéis. Não nos vamos alongar sobre bruxas e curandeiros, mas ao longo do tempo, a profissão e o profissional da medicina foram ganhando as suas características específicas. A medicina, que começou por ser uma disciplina quase experimental, tornou-se sistemática, baseada na evidência e em princípios teóricos e práticos corroborados pelo tempo, pela ciência e pela tecnologia. Com a evolução do conceito de saúde também o profissional começou a ganhar mais responsabilidade e a firmar o seu papel na sociedade. Se a saúde passou a ser “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e
não somente ausência de afeções e enfermidades” (OMS), a obrigação do médico passou a ser não só tratar um paciente mas acompanhar a pessoa. O médico na sociedade é o “curandeiro” mas também o grande impulsionador de saúde e isso reflete-se na forma como exerce a profissão e na forma como vive. Se falarmos no médico neste contexto, como o pilar que assegura o bem-estar da comunidade, é fácil perceber que as pessoas querem o melhor dos melhores para as auxiliar nos momentos de aflição. Se confiamos as nossas vidas aos médicos, então eles têm de ser imortais, símbolos de virtude, altruísmo e conhecimento. Assim surge o médico de família na sua verdadeira aceção que não corresponde necessariamente à actual. O médico que acompanhava pais, filhos e netos ao longo de toda a vida. O médico que recebia presentes no Natal e era convidado para as celebrações, o médico que era um membro alargado da família e que conhecia todas as suas particularidades, dinâmicas e patologias. Ele era padre, psicólogo e companheiro e isso era o que o distanciava de todas as outras profissões, por não ser um trabalho mas sim um estilo de vida.
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MEDICINA DO FUTURO
Mas hoje vivemos uma nova era. Por um lado, a era do acesso infinito à informação, do Google, das milhares de aplicações sobre saúde e da prevenção que puseram nas mãos das pessoas a verdadeira responsabilidade de manter a sua saúde. Por outro, a era da tecnologia cada vez mais avançada, dos métodos complementares de diagnóstico que a pouco e pouco se vão sobrepondo à verdadeira arte
de exercer medicina. Quisemos saber o que os jovens pensam de nós e se o nosso destaque na sociedade continua seguro ou se vamos ter de descer à Terra e fornecer, juntamente com os comuns mortais, um serviço que começa no início da consulta e termina dezassete minutos depois como manda a Direcção Geral de Saúde.
RESULTADOS
| Figura 1: Resultados da questão “Considera a
| Figura 2: Resultados da questão “Pelo que ouviu ou
profissão de médico equivalente a qualquer outra (advogado, engenheiro, arquiteto, ...)
viveu, considera a classe médica actual tão dedicada quanto há 20 anos?”
DISCUSSÃO A nossa primeira questão seguiu essa linha e chegámos à conclusão que 62% dos jovens questionados consideram a profissão de médico equivalente a qualquer outra, como um advogado, engenheiro ou arquiteto. De facto, esta opinião também se refletiu nos 73% de jovens que afirma que o médico não deve estar sempre disponível, independentemente da hora. Apesar do actual acesso generalizado ao médico de família, apenas 56% dos questionados afirmaram ter um médico
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que os seguiu a vida toda. Dentro deste grupo, 50% considera o seu médico um amigo. Por outro lado, aqueles que não tiveram este seguimento, apenas 28% afirma ter essa proximidade. Esta diferença substancial mostra-nos a importância de estabelecer desde cedo, uma relação consistente e de confiança com o paciente. Outro aspecto que confirma a nossa suspeita de uma maior presença da medicina enquanto serviço é o tempo que as pessoas estão dispostas a esperar. Há zonas do país onde toda a aldeia acorda às seis da manhã para fazer fila e esperar pela sua consulta. Estas são zonas onde a população
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é maioritariamente idosa e refletem outros tempos e outro acesso, mas os nossos jovens, não. Na era do instagram, um instante vale ouro e para 36%, trinta minutos é demasiado; 44% está disposto a esperar uma hora e apenas 5% está disposto a esperar o tempo que for preciso por uma consulta. Isto é uma realidade que tem as suas vantagens e desvantagens, e se o cliente ganha, o paciente pode ficar a perder. Mas é aqui que os dados parecem começar a perder força. Por um lado, temos a vontade de uma medicina cada vez mais fria e desligada, por outro quando perguntámos se o médico deveria ter um estatuto social acrescido, devido à responsabilidade da profissão, 59% das respostas foram positivas. E no direito à greve, 57% dos jovens considera que este não se sobrepõe às vidas que podem estar em causa na ausência de médicos. Estes dados são mais do que compreensíveis, mas isso significa que apesar de as pessoas quererem considerar a medicina como apenas mais um serviço, não têm dificuldade em retirar o direito básico do cidadão à greve que é frequentemente utilizado por todos os outros funcionários públicos. E por fim, 31% das pessoas consideram a classe médica tão dedicada hoje como há vinte anos atrás, mas uns avassaladores 43% discordam e acham que é menos. Apenas 17% pensa que é mais dedicada que no passado. Esta informação constitui um enorme alerta para o deteriorar da perceção da sociedade relativamente à profissão.
CONCLUSÃO Esta ambiguidade na informação que obtivemos, em que por um lado está medicina como serviço, baseada em oferta e procura e em que, por outro, se atribui um estatuto social ao médico e existe à-vontade para lhe retirar direitos básicos de cidadão em detrimento do bem comum, reflectem a transição entre a medicina do passado e a do futuro. É de prever um cada vez maior desapego da sociedade relativamente à classe médica. Por tudo, porque
a esperança média de vida aumentou, porque as doenças são hoje mais crónicas que mortais, porque o acesso à saúde está de tal forma generalizado que se não gostarmos do primeiro médico procuramos o próximo. Porque há aplicações, há informação e muito mais prevenção. Já não vivemos uma saúde apocalíptica mas sim uma de manutenção da qualidade de vida. E por fim, outra explicação para o que se está a passar hoje e para onde a perspectiva social do médico parece tender, é elucidada por um conceito muito utilizado na gestão de serviços, o Service Recovery Paradox (SRP).
A medicina do futuro vai ter de se adaptar a partilhar o mérito O SRP é uma situação em que o cliente fica mais satisfeito com um serviço que correu mal mas foi rápida e eficazmente corrigido comparativamente a um serviço que nunca falhou. Transportemos este conceito para uma situação cirúrgica grave como, por exemplo, um aneurisma da aorta. Hoje, pacientes com esta patologia e que cumpram os critérios necessários, são operados por abordagem endovascular. Isto significa que o paciente chega no dia, com uma doença assintomática que põe em risco a sua vida, é intervencionado, e no dia seguinte tem alta e segue como se nada tivesse acontecido. Por outro lado, se a cirurgia tivesse sido aberta, se o aneurisma tivesse rompido, o paciente teria sentido a sua vida em risco, o que o levaria a valorizar muito mais o trabalho do médico. Esta é uma consequência inevitável da evolução tecnológica e ainda bem! Queremos o mínimo de SRP e o máximo de eficácia possível. Mas a medicina do futuro vai ter de se adaptar a partilhar o mérito e com a perda de prestígio vamos ter finalmente uma selecção natural daqueles que estão por vocação, por paixão pela arte de fazer medicina ou por pura loucura (espírito de sacrifício). Se vos dá algum conforto, nós sabemos e ficamos por cá convosco. •
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EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL: ATÉ QUE PONTO?
por José Pedro Vinhal
S
omos cientes na complexidade e fragilidade do assunto a que nos propusemos escrever e que, nos parágrafos que se seguirão, trataremos de
experimentação animal sem alternativas válidas teria graves consequências para a investigação biomédica (…)” (sic).
expor.
Neste sentido, não cair na avalanche da emoção e da desinformação torna-se fundamental.
Este é um terreno que, por si, nada denota de baldio ou insalubre que impeça que dele nasça bom fruto. Porém, parece que por razões de infeção parasitária ou mão ingénua e, quem sabe, sem arte, não se estarão a retirar as melhores colheitas que dita (des)venturosa terra tem para oferecer.
Vivemos numa era em que ao nosso alcance, por muito crianças que sejamos e por muito grandes que sejam os poros do filtro lá de cima, está a toda a hora e em qualquer espaço, toda a informação, todos os avisos, notícias e pareceres, sejam eles cunhados com selo de qualidade ou com a mácula da sua ausência.
Não cair na avalanche da emoção e da desinformação torna-se fundamental.
Reveste-se, portanto, de primordial importância saber separar o trigo do joio e não deixarmos afogar a nossa razão num mar de falácias, notícias sensacionalistas e supostas figuras de autoridade que, de um momento para o outro, se arvoram em sólidos especialistas do que for preciso e se cobrem de - e cobram por - de preocupações fotográficas. Assim, não há nadador-salvador que nos valha!
Poderíamos poupar o caríssimo leitor ao escrutínio da nossa opinião, mas devemos à nossa consciência emiti-la e à nossa racionalidade a sua fundamentação. Acreditamos que a experimentação animal, tanto na área da investigação como no ensino da Medicina, nomeadamente em campos onde todavia não existam melhores modelos experimentais e didáticos, financiamento que os sustentem e credibilidade que os protejam, são uma parte importante no avance da formação e conhecimento científicos. A tendência e objetivo é a sua substituição, a qual esperamos que prontamente esteja disponível. Até lá, não o fazer pode implicar uma estagnação do progresso nas áreas biomédicas. A própria Comissão Europeia alertou: “(…) eliminar a
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A utilização de animais, independentemente do seu fim, sempre foi motivo de controvérsia. No entanto, faz-se parecer que a investigação e o ensino são os mais cruéis e criminosos dos fins. Na maioria dos países europeus, tanto devido a um misto de desconfiança quanto à boa praxis laboratorial como ao desenvolvimento e financiamento de alternativas viáveis, a utilização dos animais em práticas de Medicina foi praticamente arredada de cena. Em Portugal, no ensino da Medicina, é praticamente inexistente, enquanto que noutros países, como Espanha, ainda se conserva o seu uso nalguns exercícios de técnicas cirúrgicas e anestesiológicas.
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| A Physiological Demonstration with the Vivisection of a Dog por Émile Édouard Mouchy, 1832
Porém, não se pense que o uso animal é feito à toa, desregrado ou guiado por pretensões de malquerença e intenções travessas; que se retira júbilo da sua inconsequente exploração; que se tratam de procedimentos frívolos, sem ponta de piedade ou moral, desligados de sentido de humanidade. Está devidamente regulado, legislado e deviações devem ser punidas. A diretiva 2010/63/UE do Parlamento Europeu e do Conselho veio substituir as normas prévias, tratando de reduzir as disparidades existentes entre os princípios prevalentes nos diferentes países ao criar um instrumento de regulação comum mais específica, visando uma maior proteção e bem-estar animais, direitos consagrados no artigo 13.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Contudo, a preocupação sobre o bem-estar animal não é um tema recente e já em 1958, dois cientistas ingleses enunciaram o que ficou conhecido pela “Política dos 3R”. “Replacement” (substituição), “Reduction” (redução) e “Refinement” (refinamento) são os três componentes desta estratégia, pensada com decoro e pertinência, que serviram de tronco às ramificações legislativas que foram brotando nesta área. Na sua raiz podemos ver a preocupação com o padecimento animal, a sua capacidade para manifestar dor e desconforto, com as condições de vida proporcionadas aos mesmos, entre outras. Estas questões sobressaíam-se numa época em que
não se dispunham dos mencionados mecanismos éticos, legislativos e jurídicos direcionados para a defesa dos animais de experimentação e ensino, sendo quase tudo permitido, velando-se o indiscritível com o manto do progresso. Não retire o leitor, do supra escrito, a ilação de que aquelas não devem constituir inquietações da comunidade científica atual, na qual nos inserimos e queremos ser parte ativa e consciente. Aliás, parece-nos que devem incorporar o espetro do bom senso de qualquer ser humano que usou – e bem, ousamos acrescentar - do seu tempo para o desenvolver com esforço e pundonor e não esperou que o bom senso alheio exercesse as fadigas do seu.
Está devidamente regulado, legislado e deviações devem ser punidas. Porém, não cai dentro desse mesmo espetro a necessidade de aliviar o sofrimento humano, de melhorar a qualidade de vida do mesmo e de procurar maneiras de promover a saúde? E, para atingir esse escopo, não estará justificada uma utilização racional, coerente e ética dos animais de investigação, atendendo igualmente à sua dignidade, quando alternativas não houverem? Talvez a utopia de bondade humana ainda vagueie os nossos corações, mas acreditamos que a procura de um, não entra em conflito com o outro. •
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A ARTE NA MEDICINA
por Catarina Paias Gouveia e Júlia Machado Ribeiro
A
tecnologia tem desempenhado um papel cada vez mais importante na Medicina. Existem novos meios progressivamente mais avançados, que permitem diagnósticos mais precoces, bem como tratamentos mais eficazes. Destacam-se, ainda, ferramentas como o Medscape e Pubmed, que permitem um armazenamento organizado de informação científica, de fácil acesso e pronta a ser utilizada por qualquer pessoa com acesso à Internet. É assim que nos dias de hoje a arte se destaca na medicina, representando um papel fundamental no que diz respeito à distinção de médico de um robot, de um computador, de uma simples sistematização de informação. De que forma é que a arte se manifesta na medicina? A palavra “Medicina” vem do latim, ars medicina, que significa “arte de curar”. No entanto, a Medicina também é considerada por alguns como uma técnica e, por outros, como uma ciência, destinada a diagnosticar, tratar e prevenir doenças.
O que é arte? Medicina é arte? A arte tem espaço na medicina? É consensual que não há uma definição concreta de arte. Muitas posições defendem a arte como a ruptura com o que já foi feito. Para Teixeira Coelho, da Universidade de São Paulo, “Arte é o que se opõe à cultura. É feita para tirar o tapete debaixo dos pés das pessoas, para desestabilizar, para criar a dúvida, para dar a liberdade de pensar”. Mário Andrade, poeta impulsionador do modernismo
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brasileiro no início do século XX, em “O Artista e o Artesão” diz que a construção de uma obra de arte assenta em três pilares: o artesanato, a virtuosidade e a solução pessoal do artista. Será possível fazer medicina como quem constrói uma obra de arte? “Artista que não seja ao mesmo tempo artesão (...) que não conheça perfeitamente os processos, as exigências, os segredos do material que vai mover, (...) não pode fazer obras de arte dignas deste nome. (...) E desde que se vá tornando verdadeiramente artista, é porque concomitantemente se está tornando artesão “. “O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar” e está relacionado com o domínio “dos processos, das exigências, dos segredos do material que se vai mover”. E se pensarmos no médico como um artesão? Durante o diagnóstico é imprescindível reconhecer a patologia em termos de epidemiologia, sintomas e, sobretudo, sinais. Para tal, são fundamentais conhecimentos - sobretudo práticos - no que toca à inspeção (reconhecimento de padrões), palpação, percussão, auscultação e mobilização. No que diz respeito ao tratamento, esta componente de conhecimento “artesanal” é inerente às áreas cirúrgicas - o cirurgião é um artesão por excelência. Porém, nas áreas médicas a utilização de terapêuticas não medicamentosas que utilizem o toque e a palavra também implicam conhecimentos que vão para lá da biologia. “A virtuosidade do artista criador (é) o conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte – (...) o conhecimento da técnica tradicional”. Na medicina esta virtuosidade manifesta-se pela variedade de soluções que o médico conhece para resolver um problema que tem pela frente, tanto a nível de diagnóstico como a nível de tratamento. Quanto maior contacto com pessoas, culturas
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Ilustração por Ricardo Sá
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e épocas históricas diferentes, maior leque de soluções terá o médico para abordar o seu paciente. Além disso, o médico reconhecerá que para o diagnóstico ou tratamento de uma patologia existem diversas opções entre as quais, muitas vezes, não sobressai nenhuma em termos de eficácia. A astúcia estará em encontrar a solução ideal para cada paciente. “A solução pessoal do artista no fazer a obra de arte (...) faz parte do “talento” de cada um, embora não seja todo ele”. Este é o ponto crítico em relação ao “ser ou não ser” na arte. Perante a pergunta “O que é a arte?” existem posições antagónicas: se para Camus a arte é um meio de “mover o maior número de homens”, para Tristan Tzara “A arte é algo privado, o artista fá-lo para si mesmo”. Por defeito, o médico deverá optar por uma posição mais altruísta na sua prática. O “talento” de cada um para aplicar o “artesanato e a virtuosidade” será provavelmente inato. Posto isto, será que o exercício da medicina quotidiana deve ser considerado uma arte per se? Existem demasiadas restrições à liberdade do médico durante a abordagem quotidiana do paciente para que o seu trabalho se enquadre dentro da arte, que deve ser uma manifestação de irreverência, de novidade. Seria irresponsável prejudicar a pessoa por um devaneio de criatividade que nunca tenha sido testado, correndo riscos desnecessários. No entanto, existe espaço para a arte na medicina.
A ARTE NA PRÁTICA MÉDICA O desenvolvimento tecnológico permite um armazenamento de informação com o qual o cérebro humano não pode competir. Assim sendo, o estudo baseado na memória poderá mover-se para segundo plano, abrindo-se mais espaço para a aprendizagem de conhecimentos práticos e soft skills. Stephen Klasko, Presidente e CEO da Thomas Jefferson University and Jefferson Health, defende mesmo que a aprendizagem da medicina se deverá cada vez mais focar no desenvolvimento da “inteligência emocional” - a parte da medicina que será mais dificilmente substituída por robots ou computadores1. Alunos desta universidade frequentam desde cedo aulas que os levam a museus e cujo objetivo é treinar a interpretação e compreensão de
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quadros, padrões, histórias, instalações. Na sua opinião, desta forma os alunos terão maior treino na percepção rápida das reais necessidades do doentes, apenas olhando para eles. Outro ponto de especial relevância é a forma como a arte pode influenciar a Medicina. Jill Sonke falou sobre “Why medicine needs art?” na TEDx UF, tendo mencionado o exemplo de uma rapariga com drepanocitose que conseguiu reduzir para metade o uso de analgésicos durante crises vaso-oclusivas, após ter começado a dançar. Este fenómeno pode ser explicado pelo facto de o ser humano ter uma capacidade limitada de concentração, não sendo possível focar a nossa atenção em muitas coisas ao mesmo tempo. Assim sendo, quando sentimos dor/ansiedade, podemos distrair o cérebro com outros estímulos, reduzindo esses sintomas. Por outro lado, a dança induz um estado de relaxamento e “êxtase”, com a consequente libertação de endorfinas e dopamina, que, por sua vez, resultam numa menor sensação de dor. O aumento da dopamina também poderá melhorias que ocorreram em doentes com Parkinson. Porque não integrar mais arte nos cuidados de saúde? Os artistas são profissionais em utilizar a criatividade para despertar certas sensações que nos permitem atribuir significado à vida, bem como alcançar a distracção e diversão. Podem ter um papel muito importantes no alívio sintomático. Também o médico necessita de algumas “qualidades artísticas”. O médico cientista necessita de romper com preconceitos e verdades adquiridas numa determinada época para fazer novas descobertas; o médico clínico de inventar soluções quando todos os diagnósticos foram excluídos e todas as propostas terapêuticas esgotadas. ”Porque (...) em arte, a regra deverá ser apenas uma norma e jamais uma lei. O artista que vive dentro de suas leis será sempre um satisfeito. E um medíocre.” M. Andrade. • 1
Esta afirmação não é uma verdade absoluta: vejam vídeos do
robot Sophia da Hanson Robotics.
CULTURA CULTÚR //
CULTURĂ
// CULTURE // CULTUUR //
// KULTUR // KULTURA //
KULTTUURI // KULTUUR // KULTŪRA // KULTURO // KULTÚRA // KULTURY // KULTURË // KÜLTÜR // КУЛЬТУРА
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КУЛТУРА
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MƏDƏNIYYƏT
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ΠΟΛΙΤΙΣΜΌ // DIWYLLIANT // MENNING // ةفاقث// 文化
//
문화
// BUDAYA //
VĂN
HÓA
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CULTURA
BITTER
por Inês de Sousa Miranda Nota: por vontade da autora, este texto não segue as regras do novo acordo ortográfico.
A
propósito de pudor, desenham-se aqui três beldades que se cobrem de chocolate. Para uns um cenário convidativo, para outros um cenário que choca. Na arte vale tudo. E para Carlos Barahona Possollo vale mesmo tudo. Artista contemporâneo português, nasceu em 1967 na cidade de Lisboa, mediático não só pelos seus quadros, como também, e principalmente, por ter sido eleito o autor do retrato do ex-presidente da República, Cavaco Silva. O seu traço é dotado de um realismo que transcende, movido pela mancha impressionista, que faz corar quem o observa. Formou-se na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, de onde surgiu a maior parte da sua aprendizagem e do que bem sabe fazer em pintura. Tomando este seu quadro, Bitter, como principal foco, deparamo-nos com um panorama que à primeira vista não intriga muito. Se aprofundarmos, contudo, o olhar no aparente banalismo híper-exposto, apercebemo-nos da intriga que dele pode ser masturbada. Olhemos para o padrão de fundo, um fundo decorativo, onde se deitam, esperneiam e se disponibilizam estas senhoras. Uma espécie de lençol, um tanto ou quanto foleiro, que objectifica a mulher ao consumo por parte do público perverso, mais perverso que o próprio artista. Três (3) mulheres, 3. Para os chineses é o número perfeito, a junção do céu e da terra, da qual resulta a humanidade. Para os cristãos, representa a Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Para os gregos e romanos, a manifestação divina decorre de uma trindade da qual fazem parte Júpiter e Neptuno, Plutão e Zeus, Poseídon e Hades. Desses deuses, relacionam-se simbolicamente com o número 3 o raio de Júpiter, o tridente de Neptuno e o cão de 3 cabeças
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de Plutão. Além destas evidências, temos os 3 reis magos, a ressurreição de Jesus Cristo ao 3º dia, a negação de Pedro a Jesus Cristo por 3 vezes. Três mulheres, todas elas caucasianas, magras e com uma idade cronológica juvenil, referencial de beleza ocidental, que confessemos já estar ultrapassado nos dias de hoje. Claro que o objectivo é notoriamente tornar apetecível a obra a quem a degusta com os olhos, mas o ideal de beleza aqui desenhado poderá tornar amargo o olhar de mulheres que não sejam caucasianas, magras e/ou jovens. O chocolate. O chocolate sobre corpos nús. O chocolate sobre estes corpos nús. Dos nossos cinco sentidos, o paladar é aquele que mais intimamente nos relaciona com o mundo. Percebemos o significado das coisas quando as introduzimos na boca, numa comunhão primordial. Aquilo que saboreamos, engolimos e digerimos, fará parte integrante de nós. Bitter é o nome deste quadro, remetendo para um dos sete sabores, o amargo, onde a nossa língua se afoga em saliva. Aqui o artista vinca a ligação sexual da boca, da língua, músculo vocacionado para o prazer. E com o número sete, vem a gula, primeiro pecado mortal, simbolismo do excesso, de absorver o que não se necessita. A loquacidade desvairada. A imundície espiritual. A desordem do pensamento e das emoções movida pelo descontrole da vontade. A expansividade debochada, causando tumulto e desordenação. O embotamento da inteligência com obstrução da razão pelo consumo desordenado. O comum mortal sabe que ninguém resiste a um bom chocolate. Muito menos mergulhado em corpos nús. Nestes corpos nús. •
CULTURA
| Bitter, por Carlos Barahona
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O ESTRANHO FRUTO DE NINA SIMONE
por José Durão
N
aquele longínquo dia de meados do século XVII, chegou à costa do estado da Virgínia uma embarcação diferente do habitual. Da barriga escura do navio ecoavam vozes que permanecem envoltas em mistério até aos dias de hoje. Foram os primeiros escravos vindos de terras africanas e a história da Música iniciou então uma profunda revolução, palpável ainda nos dias de hoje: nascia a música soul.
êxodo do Egipto preenchiam as mentes e as canções dos escravos, nelas espelhada a sua própria condição. O shout está efectivamente na base da moderna música gospel, juntamente com palmas, bater de pés, sopros, gemidos, rosnares, uivos e variações desordenadas de timbre. Tudo o que a voz conseguisse produzir era combinado para humanizar a música das igrejas negras. Shout (1959), dos The Isley Brothers, incorpora alguns destes aspectos.
Durante as semanas que durava a viagem transatlântica e a partir do momento em que pisavam solo americano, escravos provenientes de centenas de tribos africanas com dialectos distintos tinham de encontrar uma forma de se entenderem. Surgiu o humming, o entoar de sons sem palavras. De cascas de árvore e troncos ocos, de ossos, dos seus próprios corpos saíam as melodias que, com o tempo, evoluíram para os spiritual, cânticos que quebraram o silêncio em plantações de algodão durante dois séculos.
Nem versões negras de hinos brancos, nem transformações de canções africanas, os spiritual eram uma distinta resposta afro-americana, com letras de fortes tons religiosos e emotivos a enriquecê-las, à medida que o inglês se instalava nas populações de escravos, especialmente as do Sul. Muitas continham mensagens veladas: Follow the Drinking Gourd (1910s), Steal Away (1862) e Wade in the Water (1901) eram suspeitas de incitar à fuga para o Norte mais liberal; (Sometimes I Feel like) A Motherless Child (1870s) e I’m Troubled in Mind (1860s) transmitiam um sentimento de desespero; e algumas irrompiam como metáforas para um protesto contra a escravatura, como a letra de Go Down, Moses (1872): Go down, Moses / Way down to Egypt land / Tell ol’ Pharaoh / Let my people go. As origens destas canções são obscuras e muitas apenas puderam ser oficialmente publicadas décadas depois, em versões adaptadas. Go Down, Moses tornou-se famosa com o barítono Paul Robeson nos anos 30 e Louis Armstrong em 1958. Na versão original do filme The Lion King (1994), ouvimos Zazu a entoar Nobody Knows the Trouble I’ve Seen (1897) enquanto prisioneiro do vilão Scar.
Os spiritual enraizavam-se nos sons ancestrais de África e nos instrumentos que alguns escravos tinham conseguido trazer consigo ou produzido já na nova terra: o banja ou banshaw, conhecemo-lo hoje como banjo e em algumas regiões os slave fiddlers entretinham os seus senhores com instrumentos semelhantes ao moderno violino. No início do século XVIII, quando os proprietários descobriram que os seus trabalhadores usavam tambores para comunicar, todos os instrumentos foram proibidos na grande maioria das plantações. Por outro lado, os spiritual estavam intimamente ligados à conversão forçada ao Cristianismo. Os escravos reinterpretaram as tradições cristãs e começaram lentamente a imbuir as suas casas de oração com emoções e valores africanos, cânticos religiosos mais ritmados, gritados, “espiritualizados”, com refrões repetidos e versos reescritos. Imagens de Moisés, do povo judeu e do
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Com o término da Guerra Civil em 1865, a escravatura foi gradualmente abolida por toda a América e surgiram diversos grupos corais negros, começando com os Fisk Jubilee Singers em 1871. Proliferaram canções gospel,
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umas alegres e intensamente ritmadas, outras mais lentas e emotivas que traduziam muitas vezes a devoção a Deus. Estes dois estilos começavam a individualizar-se e seriam o substrato sobre o qual nasceria o soul: o gospel propriamente dito e o recém-chegado blues. Estávamos no final do século XIX e a música afro-americana ganhava terreno na mestria e talento que exibia. Negros contratados para trabalhos “exclusivamente brancos” eram um fenómeno crescente e, no início dos anos 1900s, o músico profissional
afro-americano tornara-se bastante comum no Norte e nas grandes áreas urbanas do Sul. Na primeira metade do século XIX, os músicos negros conquistaram o seu nicho na música clássica, sendo-lhes permitido frequentar conservatórios e, um pouco mais tarde, formar as suas próprias orquestras, principalmente em Nova Orleães, Chicago e Filadélfia. Surgiram maestros e compositores negros, apresentando novas óperas perante públicos mistos em palcos como o Carnegie Hall. Também
| Escravos em Plantação Americana
na Broadway apareciam cada vez mais artistas negros, tendo os primeiros sido gravados ainda no virar do século. O musical Show Boat incluía uma participação dos Fisk Jubilee Singers e um papel escrito especificamente para Paul Robeson, que incluía o lamento Ol’ Man River (1927). Enquanto nomes como Bessie Smith, B. B. King e Ike Turner transformavam o blues e outros como Louis Armstrong, Duke Ellington e Ella Fitzgerald faziam história com o jazz, a partir dos anos 50, o rhythm and blues, ou R&B,
solidificava-se. Ao retirar inspiração da música gospel, o R&B gerou um género que, dada a emoção crua e intensa que a caracterizava, começou a ser chamado de soul. De um modo simplista, o soul é o produto da união entre o gospel (o sagrado) e o blues (o profano), o primeiro primariamente orientado para a inspiração divina, o último um estilo que idolatra o desejo carnal. A metamorfose de canções gospel para canções seculares implicou reescrever muitos versos: Ray Charles adaptou
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CULTURA
a antiga I’ve got a Savior (Way Across Jordan) para a sua I’ve Got a Woman (Way Across Town) (1958). O músico fez uso de um mecanismo musical cada vez mais frequente no gospel, um call and response entre o vocalista e os back vocals, para trocar oohs e aahs mais sexy com as suas Raelettes em What’d I Say (1959). James Brown pegou na canção Please, Please, Please (1956) e o desejo pelo amor de Deus passou ao desejo pelo amor de uma mulher. Um Sam Cooke adolescente foi expulso do seu grupo gospel Soul Stirrers quando transformou Wonderful em Lovable (1957). A incontornável A Change is Gonna Come (1964) foi o seu maior sucesso, expressão máxima da esperança negra. Infelizmente, Sam foi assassinado em Los Angeles antes de a canção ser lançada, mas a sua vida inspirou inúmeras gerações de cantores de soul afro-americanos. Em 1959, é fundada a companhia Motown Records, a primeira a representar primariamente artistas afro-americanos. O peso da música soul aumentava a olhos vistos e, em meados dos anos 60, os músicos negros começaram a expressar publicamente as suas ideias e as suas emoções. Entrávamos na era dos Civil Rights e os artistas afro-americanos ajudaram a elevar a revolução, as suas canções transformadas em hinos de revolta e de ânimo. James Brown tornou-se um símbolo: Don’t Be a Drop-Out (1966) encorajava os jovens a permanecer na escola; Say it Loud, I’m Black and I’m Proud (1968) gritava à América um orgulho negro; Open Up the Door (1970) clamava oportunidades iguais para todos. Nos anos que se seguiram à fundação da Motown, a música soul transfigurou a realidade afro-americana e ajudou a moldar o movimento anti-racismo nos Estado Unidos. O soul do Norte, de Detroit e Chicago, começava a incorporar os primeiros tons pop nas suas canções, chegando até milhões de jovens americanos. Funk Brothers, Diana Ross e The Supremes introduziram vozes animadas e leves, por contraste com as habituais vozes melódicas emprestadas do blues, como Etta James utiliza em At Last (1960) e I’d Rather Go Blind (1967). Alguns dos singles mais conhecidos da Motown incluem You’ve Really Got a Hold on Me (1962) e The Tracks of My Tears (1965) dos The Miracles; Uptight (Everything’s Alright) (1966) de Stevie Wonder; e I Heard It Through the Grapevine (1966) de Marvin Gaye, cujo
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álbum What’s Goin’ On (1971) é considerado um dos maiores na história da música moderna. Um dos mais inesperados hits da Motown foi I’ll Be There (1970) dos The Jackson 5, com um Michael Jackson de onze anos como vocalista. Ao mesmo tempo, Curtis Mayfield desenvolvia em Chicago um soul distinto e envolvia-se constantemente no movimento dos direitos civis negros, com canções poderosas sobre a pobreza, o racismo e a injustiça que os afro-americanos enfrentavam, como Keep on Pushing (1964), We’re a Winner (1967) e o seu grande hit People Get Ready (1965), hoje considerada uma das mais brilhantes canções americanas.
Talvez o desígnio do soul seja a procura incessante pelo descanso da alma. Já o soul do Sul, em Memphis, baseava-se num estilo suave e trabalhado, bem identificado na voz forte de Otis Redding. Otis tornou-se uma estrela mundial com hits como I’ve Been Loving You Too Long (1965) e Respect (1965). O seu maior sucesso foi também o seu último: (Sittin’ On) The Dock of the Bay foi lançado em 1968, apenas três semanas depois de Otis morrer num desastre de avião. Em Memphis gerou-se algum do soul mais belo e poderoso da história: Al Green, com Let’s Stay Together (1972), Love and Happiness (1972), Call Me (1973) e Take Me To The River (1974), Percy Sledge (o single When a Man Loves a Woman (1966) tornouse um dos mais rentáveis da história do soul), e a artista que ficaria conhecida como Queen of Soul: Aretha Franklin revolucionou a música soul com a sua voz inconfundível e com temas extasiantes como Respect (1967), (You Make Me Feel like a) Natural Woman (1967), Think (1968) e Ain’t no Way (1968). Até aos dias de hoje, a música soul não mais parou de evoluir e de se diversificar em diferentes estilos: o funk desenvolveu-se quando James Brown e Stevie Wonder começaram a expandir o groove rítmico da sua música; o hiphop surgiu quando DJs no final dos anos 70 incorporaram o rap com o soul e o funk; e o R&B contemporâneo de Whitney Houston, Mariah Carey, Mary J. Blige, Macy Gray
CULTURA
pedaço da História de inimaginável mas demasiado comum escuridão na alma humana. Trinta anos depois, em plena Civil Rights era, outra cantora negra usava a sua música para evocar os direitos dos afroamericanos: a voz áspera e enevoada de contralto, as explosões de notas no piano e a emoção crua e genuína de Nina Simone colocam-na no âmago da segregação racial e do racismo sofridos pelos afro-americanos durante o século XX. Canções como Mississippi Goddamn (1964), que Nina diria mais tarde fora escrita num acesso de fúria, ódio e determinação, I Wish I Knew How It Would Feel to Be Free (1967), Why? (The King Of Love Is Dead) (1968), cantada alguns dias depois do assassinato de Martin Luther King Jr., e To Be Young, Gifted and Black (1970), pediam acções eficazes e imediatas.
| Nina Simone e Beyoncé, fenómenos mundiais, têm as suas raízes em cantores como Al Green e Aretha Franklin. Ainda assim, falta sublinhar dois nomes da música soul intimamente relacionados com a história afro-americana e com uma das canções mais dolorosas jamais escritas. Em 1937, um professor do Bronx escreveu um poema chamado Strange Fruit. Nele, denunciava o linchamento público de centenas de negros sem direito a julgamento ou defesa, pendurados em árvores, por vezes queimados, para satisfação e entretenimento das populações brancas. A este poema foi dada voz por uma mulher negra chamada Eleanora Fagan, que se tornaria uma lenda como Lady Day ou Billie Holiday. Strange Fruit (1939) é uma canção que nos provoca e nos incita a tentar lançar alguma luz num
Em 1965, Nina gravou a sua versão de Strange Fruit. A voz carrega uma dor de uma intensidade electrizante, visões do sangue de negros linchados a escorrer pelas árvore tal como o dos escravos escorria pelas costas. Alguns anos depois, quando entrevistada acerca da canção, Nina explicitou que esta lida com a América e com “o problema negro-branco”, provavelmente a canção mais feia que já ouvira, «feia no sentido em que é violenta e nos rasga as entranhas quando consideramos o que o povo branco tem feito ao meu povo neste país. [A canção] abre mesmo a ferida completamente a cru.» Nina Simone ficou para sempre registada na história da música americana como tendo quebrado o molde, por ter tido a coragem de usar a sua exposição para romper com as normas da indústria e direccionar comentários sociais na sua música durante a década de 60 e durante um dos períodos mais conturbados da moderna história americana. Talvez o desígnio do soul seja a procura incessante pelo descanso da alma, pela compreensão de um mundo que deixou de fazer sentido no momento em que o primeiro grilhão foi colocado num pé negro. E talvez as palavras finais de Nina Simone naquela entrevista soem a chicotadas em carne viva, o bastante para a Humanidade começar, por fim, a acordar de um sono demasiado longo: «When you think of a man hanging from a tree. And to call him… strange fruit.» •
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CRÓNICA
RAÍZES
por João Caroço Fernandes Pedro
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esde que uma semente arrastada pelo vento aterra no solo e desce entre sedimentos, começa a fixar as suas raízes. No momento em que a sua base gera força suficiente para se erguer contra a gravidade, atinge a superfície e emerge, como planta ou árvore. As suas raízes fixas determinam que nunca se irá mover em qualquer uma das direções assinaladas pela bússola e que os horizontes planos que a rodeiam são os únicos que vai conhecer. Nunca saberá o que existe para lá da curvatura que a Terra faz atrás do horizonte. Os seres humanos têm curiosidade em saber o que existe para lá do que conseguem ver, tanto macroscopicamente como microscopicamente. As pessoas, ao longo da sua vida, procuram outras pessoas e outros lugares, têm interesse em conhecer outras culturas e outros povos, permitindo alguma partilha de experiências entre eles. É uma pressão naturalmente exercida pela curiosidade em descobrir mais do que aquilo que podemos explicar. Ao longo dos séculos, vários foram os acontecimentos que permitiram esta ligação com o que nos é distante, desde os Descobrimentos até à Revolução Tecnológica e à liberalização de trocas comerciais e de ideias entre países. A nossa atual noção global e de Globalização assentou sobretudo após o fim da Guerra Fria, o último grande acontecimento que moldou a coesão entre nações e os pilares da democracia, cultura e liberdade mundiais. Todos estes foram fatores que construíram a nossa aldeia global. As nossas raízes estão assentes, mas à superfície conseguimos separarmo-nos delas, num mundo que o permite e o exige. Isto é possível em resultado de toda a evolução histórica anterior que resultou no encurtamento de distâncias anteriormente de proporções bíblicas. Com isto, o tempo tornou-se numa sucessão de imediatismos,
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que fazem com que a consciência do passado seja mais distante a cada segundo. São inegáveis as vantagens a nível de comunicação, partilha e até solidariedade que a globalização permite entre pessoas. Assim, potencia-se o conhecimento e a divulgação da inovação entre todos. Gerase uma noção de humanidade coletiva e não individualizada e repartida entre cantos terrestres. No futuro, pensa-se que cada vez mais se vai considerar o coletivo e não o singular. Atualmente pode ser difícil de observar esta tendência quando olhamos para o crescente isolacionismo dos EUA ou as pulsões Catalãs, mas isto resulta da competitividade inerente à tentativa de afirmação na ordem mundial. Acredito que tudo tem vantagens e desvantagens. Prós e contras. Certamente, que a globalização também falhou, porque acabou sempre por negligenciar alguns. Desenvolveu a noção de Metropolis e arrastou as megacidades para o litoral, concentrando aí a maioria das pessoas. Os problemas mantiveram-se, mas foram drenados para o mundo rural, interior. Aqui, preferiu-se o esquecimento e a consciência da inevitabilidade da degradação. Aqui falhou-se, falhámos. Até agora ainda não foram encontradas políticas ou subsídios que resolvessem o problema, porque nem sempre o problema é dinheiro.
“Because I know that time is always time And place is always and only place And what is actual is actual only for one time And only for one place” T.S.Eliot, “Ash-Wednesday”
As raízes que desenvolvemos fixam-se num local em concreto, individual. Assim, num mundo cada vez mais
CRÓNICA
coletivo, os países pequenos como Portugal constroem a sua importância em conjunto, enquanto União Europeia ou como unidade centralizadora da Comunidade dos países da Língua Portuguesa. Portugal constrói-se sabendo que nunca iremos pertencer ao G20 e muito menos ao G8, mas projetando uma imagem positiva do país, que protege as suas próprias pessoas, algo em que temos falhado nos últimos tempos. Constrói-se estimulando o desenvolvimento de empresas e empreendedorismo, sem esquecer de dar oportunidades aos nossos, permitindo o seu mérito e assegurando as necessidades básicas de todos, nas quais se inclui a Saúde. Constrói-se participando ativamente no que acontece à sua volta, organizando eventos como a Cimeira Mundial da Saúde 2018 em Coimbra. Na verdade, temos um país que tem de lutar arduamente pelo melhor para si, sabendo que é um local muito bom e até bastante invejável, mas que requer um desenvolvimento sustentável. Num planeta globalizado sabemos que não vamos a parte alguma sozinhos, e que, portanto, o melhor é mesmo irmos juntos. Ainda assim, há algo que nunca podemos esquecer. Todos temos uma nacionalidade e todos críamos raízes no local que nos é mais próximo, que nos criou e nos formou. Do qual dependemos e dependeremos. As nossas raízes estão em Portugal e, mesmo num mundo globalizado, elas alimentam-se do nosso lugar de origem. •
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