Ressonância Edição XXVII - Maio 2018 Editores
Afonso Schönenberger Braz Ana Raquel Estalagem João Bastos José Rodrigues Mariana Lourenço Sérgio Bronze Sofia Pessoa Jorge
Colaboradores Afonso Morais Carolina Moreira Catarina Nunes Daniel Alves Eva Borges Guilherme Vilhais Inês Miranda José Durão Júlia Ribeiro Leonor Gonçalves Mafalda Jorge Miguel Antunes Rafael Pereira Inácio Sérgio Bronze Sofia Prada
Design gráfico Afonso Morais Humberto Freire Mariana Lourenço Sofia Pessoa Jorge
Capa
“O Parto da Viola“ de Amadeo Souza-Cardoso, 1916 Edição gráfica por Afonso Morais
Indíce EDITORIAL 3 CRÓNICA INSÓNIA 4
Lusomedicina ENTREVISTA PROFESSOR DOUTOR ALEXANDRE QUINTANILHA 8 SEM GAZES NEM SORO SE FEZ AQUILO QUE PARECEU O FIM DO MUNDO 13 PORTUGAL: UM CASO DE SUCESSO NO COMBATE ÀS DROGAS 15 A INVESTIGAÇÃO BIOMÉDICA EM PORTUGAL 17
Neurociências A ALEGORIA DO PAVÃO 22 O PAPEL DA FLORA INTESTINAL NA DOENÇA DE PARKINSON 24 NÃO VIGIL. NÃO CONSCIENTE. NÃO DESPERTÁVEL. 26 AFIVASC 28
Ilustrações
Eduarda Costa Sofia Pessoa Jorge Renata Martinho
Impressão e Propriedade
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt | facebook.com/ressonanciaaefml Depósito legal: 178455/02 Tiragem: 300 cópias Distribuição Gratuita
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Cultura APARIÇÃO 30 WAR 33 LUSOFONIA 36 CRÓNICA QUANDO A MEDICINA NÃO SE FAZ DE CIÊNCIA 38
EDITORIAL
N
um mundo que se quer cada vez mais globalizado, a XXVII edição da revista RESSONÂNCIA navega por correntes incomuns. Face a um tempo tão invulgar para o mundo Ocidental como o que cruzamos atualmente, cremos que Portugal, com todas as suas vicissitudes, deve ser refletido, repensado e valorizado. Não nos deixando enlevar por fantasias messiânicas (essa característica lusitana tão bem cristalizada no Quinto Império Pessoano) ou por complexos de inferioridade face aos nossos pares europeus (como se a mimetização destes tivesse de representar forçosamente o caminho do progresso), pretendemos construir uma edição que abordasse esta nação sui generis, pensando de forma clara o lugar que a ciência, a medicina e a cultura portuguesas ocupam atualmente no mundo do séc. XXI. Não esquecendo de igual forma o papel basilar da investigação científica para a formação médica atual, arriscámos abordar uma área do conhecimento médico onde a ciência e a filosofia se imiscuem de um modo ímpar: as neurociências. A edição que o leitor tem em mãos atreve-se, desta forma, a combinar uma das áreas mais enigmáticas da medicina atual com um reflexão centrada na ciência médica e cultura portuguesas, na esperança (ingénua, porventura) de realçar o húmus que a todos nos é comum.
Aqui nesta praia onde Não há nenhum vestígio de impureza, Aqui onde há somente Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade, Aqui o tempo apaixonadamente Encontra a própria liberdade. Sophia de Mello Breyner Andersen
Aos leitores, um tremendo e sincero Obrigado.
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CRÓNICA
INSÓNIA
por Rafael Pereira Inácio
O
ar estava frio, húmido e pesado.
O que seria pouco típico para uma noite de primavera tornava-se dolorosamente real naquele quarto bafiento e com uma escuridão de breu cujo único propósito, diriam as más-línguas, seria o de deixar o imaginário de qualquer pobre de espírito voar para bem longe dali. De olhos bem fechados mas de mente bem aberta não havia meio daquele rapaz adormecer. Perdido nas horas, que há demasiadas horas eram iguais, perdia-se no tempo que, ali, deixava de estar confinado à finitude de um cubículo. Nada parecia real. O respirar não era o seu. Aquele mundo não era o seu. Abriu os olhos e as costas doíam. O sol quente feria a vista imberbe e precisou de algum tempo para que os sentidos deixassem a penumbra do quarto. Ergueu-se do chão empedrado e contemplou um mar azul e imenso. As pernas tremiam e ele não sabia porquê. De súbito, sentiu-se angustiado, uma angústia tão forte que o deitou ao chão, uma angústia tão que forte que, naquele momento, desejou voltar ao cubículo sujo e bafiento. Fechou os olhos com toda a força que conseguiu e deixou que o espírito se elevasse até que, finalmente, conseguiu contemplar. Via, mas não sabia o que via. Junto à água estava uma criança pequena, com três, quatro anos. Chorava de goelas bem abertas. Um choro que ecoava até aos limites do que alcançava a vista humana. Um choro desesperado e aflito que ansiava por ajuda e por segurança. Do nada, o choro parou e a criança era embalada nos braços de uma mãe calma e ternurenta, a criança era embalada nos braços de um porto seguro que chegou e que, naquele preciso instante, gravou naquele pequeno coração a certeza de um conforto eterno, um eterno conforto de mãe. Sentiu a cabeça bater com estrondo na almofada. Estava de novo no quarto escuro e bafiento. Acalmou a respiração e tentou perceber o que acabara de acontecer, mas era completamente inútil. O pensamento voou de novo, o coração voou de novo. Talvez fosse amor o que sentia, talvez felicidade. Não o podia garantir porque não sabia se sabia amar, não o podia garantir porque não sabia se sabia o que era ser feliz. Julgava que sim, queria poder acreditar que sim. Julgava que amar e ser feliz era sentir-se vivo e errar para o provar, que era ser dono da sua virtude, que era ser seu para sempre. Sentia, mas não sabia o que sentia. Finalmente fez-se silêncio. O rapaz não amou, não sentiu, não viu, não voou e não chorou. O alarme tocou e era hora de acordar. Hora de ser feliz mais um dia, hora de amar mais um dia, hora de viver mais um dia e de esperar a noite que acabaria por chegar para poder voltar a sonhar. Sonhar na eternidade, na inocência e na beleza de não mais pensar. •
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Ilustração por Eduarda Costa
LUSO
Luso Medicina Retrato de Médico, Amadeo de Souza-Cardoso, 1917
LUSOMEDICINA
ENTREVISTA
PROFESSOR DOUTOR ALEXANDRE QUINTANILHA por Eva Borges e Sérgio Bronze
A
lexandre Quintanilha, doutorado em Física e atual presidente da Comissão de Educação e Ciência é o convidado da Entrevista da XXVII edição da Ressonância. Professor jubilado, homem da ciência e da cultura, eleito nas últimas legislativas pelo PS do círculo eleitoral do Porto para constituição da atual Assembleia da República. Com uma visão que ultrapassa as fronteiras portuguesas, com passagens pela África do Sul, França e Estados Unidos conta-nos como olha os problemas do passado, do presente e discorre sobre algumas questões do conhecimento no futuro. R: A sua história conta, desde o nascimento, com muitas influências de países estrangeiros. Com mãe alemã, formação em Joanesburgo, mais tarde nos Estados Unidos, onde também encontrou o amor da sua vida, como é que tantas culturas e estadias longe o tornam naquilo que é hoje? AQ: O que eu sou hoje é fruto de dois pais cujo desejo para mim era apenas que eu me sentisse realizado, e nunca fizeram pressão para eu fazer isto ou aquilo ou para mudar de direção. Sempre me encorajaram a ir até onde eu quisesse, e tive muita sorte nisso. Aquilo que eu sou hoje é um produto de uma educação e de um meio em que cresci rodeado de pessoas que permitiram que eu explorasse aquilo que eu quisesse explorar. Outra grande influência é o Richard, estamos há 40 anos juntos. O meu pai era português, nasceu em Angra do Heroísmo, e a minha mãe alemã, de Berlim. Nem um sítio nem outro são muito típicos, Berlim é uma ilha no meio da Alemanhã e Angra do Heroísmo não era muito parecida com Portugal. O que é curioso, é que a minha mãe que era alemã tinha um temperamento muito latino, muito calorosa como são os portugueses. O meu pai era mais distante, mais germânico
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que a minha mãe. Tinha duas irmãs de outro casamento do meu pai, e já estavam casadas em Portugal e, portanto, cresci em África sozinho. Os meus pais casaram em 1930 em Berlim, e muito pouco tempo depois começou a subida do Nazismo. Vieram para Portugal trabalhar e em 1935 o meu pai foi despedido da faculdade pelo Salazar. Resolveram ir para Paris, e os meus pais só acharam que valia a pena trazer uma criança ao mundo quando a II Guerra acabou. Já nasci em Lourenço Marques. Vim fazer um ano ao Liceu Pedro Nunes, que odiei, achei a cidade fria. Vinha de um lugar onde andava de calções e chinelos, e aqui andava encasacado. Nos meus anos todos em Moçambique estive num liceu fabuloso, onde ser branco era um privilégio. A minha ida para a universidade em Joanesburgo não foi muito difícil porque desde pequeno que os meus pais insistiram muito para que aprendesse línguas estrangeiras, e passávamos férias em casas de amigos na África do Sul, e os miúdos vinham passar férias a nossa casa em Moçambique. A ida para os EUA foi difícil, porque tinha-me acabado de doutorar e ia começar tudo de novo, a fazer Biologia. Não tinha emprego, quando cheguei era um Físico Teórico e deram-me para sobreviver um salário de técnico de laboratório, aprendia a matar ratinhos e a produzir mitocôndrias e cloroplastos. Depois os meus pais e amigos estavam nas antípodas, entre a Califórnia e Moçambique eram 12 horas de diferença horária. Fiquei lá quase 20 anos e depois vim para o Porto. R: E porquê para o Porto? AQ: Em 1972 fui para Berkeley e em 1975 o Professor Carvalho Guerra, reitor da Católica do Porto, organizou um workshop em Espinho sobre membranas biológicas, e ele
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| Professor Doutor Alexandre Quintanilha sabia que eu trabalhava nessa área e convidou-me para falar. Quando cheguei a Espinho, conheci o Professor Corino de Andrade, o homem que descobriu a doença dos pézinhos, que falou comigo sobre o projeto do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar e perguntou-me se não queria vir para as Biomédicas. Disse-lhe que naquele momento não tinha nada para ensinar, mas que não me importava de vir dar umas aulas, mas vir para cá era impensável. E foi o que aconteceu, vinha todos os anos umas semanas ao Porto e comecei a dar aulas a Medicina e Bioquímica. R: Nos anos 80 soou o alarme de início da pandemia causada pelo HIV. Como foi viver nesses tempos controversos? Controversos pelo desconhecimento e pelo preconceito fácil. AQ: Nos anos 80 o HIV chega à baía de São Francisco, e no início da década quase ninguém falava, mas a partir de 85 ou 86 era impossível ir almoçar com alguém que não conhecesse ou que não tivesse uma pessoa da família infetada. O final dos anos 80 começaram a ser muito pesados, porque a imagem de São Francisco cheia de luz e das flower children dos anos 60 e 70 estava a desmoronarse. Em 1978 conheci o Richard, e às vezes digo que tive
muita sorte, porque foi antes do flagelo, e salvou-nos. Em 1988 dois jovens brilhantes, uma australiana e um jovem de Boston que contratei para o centro que criei, o Centro de Estudos Ambientais, vieram na mesma semana dizer-me que estavam infetados com HIV, e ver estes dois jovens de 28 anos com a vida pela frente assim foi muito pesado. Pouco tempo depois o irmão do Richard foi infetado, falecendo a 1990. Em meados de 89 decidimos que tínhamos de ir para um sítio onde a doença não estivesse tão presente no dia a dia. R: Havia medo entre os seus amigos? AQ: Não sei se era tanto medo, havia um sentimento de raiva, de revolta, porque depois começou a surgir a reação da sociedade de que esta gente que está a ser infetada ou são drogados ou são homossexuais e se calhar merecem, houve quem dissesse que era castigo pelo comportamento. E depois sabia-se muito pouco da doença, e estas pessoas eram completamente postas de lado. Na verdade eu não vivi muito a comunidade gay. Eu gostava muito de dançar e todas as semanas vinha de Berkeley para São Francisco dançar nas discotecas, foi até aí que conheci
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a Whoopi Goldberg, e uma coisa maravilhosa é que as discotecas não eram separadas, e tinham uma vantagem enorme que abriam às 21h. Não era como em Lisboa que é preciso estar à espera da uma da madrugada, hora a que já estou no terceiro sono. O Richard estava a viver em Castro, onde vivia Harvey Milk, até o conheceu porque o Harvey tinha uma loja de fotografias. Não vivi esse mundo porque durante o dia estava a fazer experiências em Berkeley e à noite ia dançar e ia para casa, às vezes sozinho, outras acompanhado. Quando conheci o Richard, em 78, deixámos de ir tanto à discoteca e nenhum de nós fazia bem parte do gay world. Não nos escondíamos, simplesmente gostávamos das pessoas que gostávamos. Há um livro muito interessante do Burroughs chamado Cities of the red night escrito nos anos 50, e ele não é um grande escritor, mas é icónico, que descreve uma doença que só afeta quem faz sexo e tem prazer, quem não tem prazer não fica com a doença, como um castigo. E isto foi escrito muito antes do surgimento do HIV, e é uma ideia um pouco medieval e cristã, remontando ao pecado. O próprio Santo Agostinho dizia que o pecado maior era a curiosidade. Havia um sentimento de revolta, aliás foi por isso que apareceram tantos movimentos, o próprio Reagen não pronunciava a palavra gay, e só o fez quando o ator seu amigo, Rock Hudson, morreu de SIDA em 85. R: É possível que o amor nos transforme? AQ: Ficamos patetas quando nos apaixonamos, tudo o que a outra pessoa quer nós fazemos. O amor é das experiências mais transformadoras que temos, porque não temos só de nos apaixonar por uma pessoa, podemo-nos apaixonar por um trabalho, por uma ideia, que também nos cega, o que pode ser bom porque estar sempre totalmente consciente deve ser uma chatice enorme. Tenho 3 ou 4 livros que são para mim uma espécie de bíblia, um deles nunca mais acaba, são 7 volumes do Marcel Proust “À procura do tempo perdido”, sendo que o primeiro volume é uma chatice e quase não li o resto pelo primeiro. Resto que é de tal maneira magnífico que eu não queria acabar, lia cada vez mais devagar, e isto é claramente uma paixão.
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As paixões têm a grande vantagem de nós ficarmos, por escolha, um bocadinho patetas. R: Qual o papel de Portugal na investigação científica mundial? Tem capacidade para competir com os seus pares europeus? AQ: A imagem de Portugal mudou muito e particularmente agora acho que estamos a ser observados por muita gente e por muitas razões. A primeira é que Portugal em termos dos campos mais tecnológicos na Universidade como as ciências, as tecnologias, as engenharias e as matemáticas está em primeiro lugar de todos os países da OCDE no que diz respeito à percentagem de mulheres nestas áreas. Em segundo lugar, porque a nossa emigração passou a ser altamente qualificada, ao passo que antigamente eram as bonne. Terceira porque as pessoas vêm a Portugal e há atualmente uma sensação quase de euforia. A gente está bem, mas não estamos assim tão bem. Ainda há muita gente com salários muito baixos, muita gente com incertezas sobre o que vai fazer com a sua vida, não é que não seja o mesmo que noutros sítios, mas cá causa ainda problemas. Houve uma alteração significativa sobre a visão do futuro, não temos certezas absolutas, mas há a noção clara que estamos num caminho ascendente. Não há ninguém em Portugal, por muito extremista que seja, que não acredite que o futuro de qualquer país está no conhecimento. É resultado de 30 anos de aposta nesta área, na qual Mariano Gago foi uma pessoa de muito prestígio, mas não trabalhou sozinho e houve muitas pessoas que acharam sempre que Portugal precisava de dar mais educação e qualificação a toda a gente sem discriminação. Assistimos a tantas coisas deprimentes nos outros países, que por comparação parecemos um oásis. R: De que forma perceciona a saída sistemática dos cientistas portugueses para o estrangeiro? Como podemos alterar este paradigma? AQ: Eu prefiro falar de conhecimento mais do que de ciência porque acho que a ciência é parte do conhecimento. Ainda temos muitas pessoas que estão a encontrar oportunidades lá fora e eu não acho nada mal. A minha experiência de estar lá fora foi imensamente enriquecedora, sinto-me muito mais
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realizado e muito mais disponível para vir para o Parlamento por ter tido essa experiência. O que eu acho que nos está a faltar, e isso é um trabalho que está a começar a acontecer, é ter aquilo a que eu chamo de circulação de cérebros. Eu acho que é muito bom nós irmos lá para fora, que alguns nunca voltem e que outros voltem e que outros venham, eu não voltei, eu vim, mas que haja também muitos estrangeiros que venham trabalhar para aqui, que isso é que faz sentido e já começou a acontecer. Para mim a ideia de cérebros que saem acho que é uma vantagem, o problema é ser mais numa direção do que noutra. R: Culturalmente e do ponto de vista da cidadania, Portugal também avança. Hoje casais do mesmo sexo podem casar e adotar crianças. Este caminho tem sido moroso e difícil. Como é assistir a estas transformações tão simbólicas? AQ: A visão que as pessoas tinham de Portugal no passado era uma visão muito quadrada e não era uma visão incorreta. Não nos podemos esquecer que tivemos trezentos anos de inquisição e cinquenta anos de ditadura. Portugal dada essa história, avançou imenso. A primeira grande reforma que Portugal fez foi dar o direito de voto a todas as mulheres, com a revolução de 74. Lembremo-nos que em França, o país da liberté, egalité e fraternité, isso sucedeu-se em 1945, o ano em que eu nasci. Estamos, portanto, a falar de conquistas que se deram há menos de um século. Depois o outro grande avanço foi a descriminalização do consumo de drogas, uma resolução de tal forma revolucionária que a grande maioria dos países do mundo vem hoje a Portugal ver como o fizemos porque querem mimetizar o nosso modelo. E aí estive muito envolvido uma vez que presidia à comissão que preparou a recomendação ao governo para descriminalizar o consumo de drogas individuais. Essa foi, sem dúvida, uma grande conquista. Depois ainda alcançámos mais recentemente o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Portanto, Portugal avançou imenso e creio que em grande parte as mulheres desempenharam um papel muito importante porque ao conquistarem todas as liberdades na revolução de Abril (ao contrário dos homens que apenas conquistaram a liberdade política) fizeram uso dela para construir algo novo. Mas olhemos por exemplo
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para Berlim dos anos 20, cientificamente e culturalmente a capital do mundo de então. Era o sítio mais avançado do planeta e passado pouco tempo, em 33, Hitler chega ao poder. Ou seja, quando falamos nestes avanços temos de ter em atenção que tudo isto é ainda muito frágil. Achamos que basta conquistar determinados direitos num determinado momento mas a história não é isso que nos mostra. A história mostra que muitas das conquistas voltaram depois para trás. R: Atualmente vivemos uma era de desinteresse político por parte da grande maioria dos jovens, concorda? AQ: Hoje existe uma descrença constante não só dos jovens sobre o papel da política mas da população em geral que considera os políticos todos iguais. Eu creio que o desinteresse na política também tem muito que ver com uma grande iliteracia política. Existem muitas pessoas que não prestam atenção à necessidade de existir educação política dos jovens. O direito ao trabalho, o direito a ter uma educação, o direito a ter um serviço de saúde socialmente apoiado, o direito a ter dezenas de coisas que hoje temos constituíram avanços políticos absolutamente inimagináveis e a grande maioria não tem esta noção. Portanto, a ideia de ter uma educação para a cidadania é algo fundamental porque a maioria da população não possui essa consciência e obviamente fica assustada porque hoje percebe que não tem poder nenhum. Quem manda não são os governos, são os grandes grupos económicos e é preciso combater isso. Para tal, temos de estudar história. Mas quando falamos de história, falamos em datas e campanhas, nos países beligerantes, em rainhas e reis e não se passa muito tempo a discutir os ganhos civilizacionais que aconteceram na Europa nos últimos 700 anos. Para além disto, existe também uma certa obsessão com o aprender coisas que garantam emprego. •
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SEM GAZES NEM SORO SE FEZ AQUILO QUE PARECEU O FIM DO MUNDO por Leonor Gonçalves e Sofia Prada
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de junho e 15 de outubro de 2017. Datas que ficarão na memória de todos os portugueses, em especial daqueles que sentiram a sua vida em risco pelo calor e dimensão das chamas. Atingem-se novos recordes de área florestal ardida e de mortes causados por incêndios. A 17 de junho deflagra o incêndio de Pedrógão Grande, que apenas é extinto uma semana depois. Uma semana de horror, da qual resultam 64 mortos diretos e mais de 250 feridos. Quatro meses depois, a 15 de Outubro, as chamas atingem 27 concelhos da região Centro, entre os quais Oliveira do Hospital, Tábua, Seia e Sertã. Este dia é, então, classificado como o dia com maior número de fogos, que mataram 45 pessoas e feriram 70. 2017 foi, assim, um ano marcado por incêndios de grandes dimensões que no total causaram 109 mortos e mais de 320 feridos. É difícil encontrar palavras para descrever a azáfama e medo que predominaram ao longo dos dias em que as chamas se mantiveram ativas, mas sabemos que foram dias de labaredas indomáveis, de sonhos e projetos dizimados, de vidas ceifadas. Inúmeros hectares de floresta ardidos, um número elevado de mortes e uma população vulnerável que se mostrou mais forte do que a própria força humana. Paira um pensamento reflexivo sobre as entidades intervenientes e a sua resposta face aos incêndios referidos. Como estudantes de Medicina, quisemos, então, descobrir qual o nível de adequação da resposta médica. Será que houve um número suficiente de médicos a apoiar a população e os bombeiros? Será que os hospitais estavam preparados para uma catástrofe assim? Será que este número elevado de mortos se deveu a falta de recursos médicos? No entanto, como em tudo, existem várias visões sobre o mesmo problema, as duas tão famosas versões que há sempre numa história. Portanto, vimo-nos “obrigados” (no
bom sentido, claro) a contactar, ou tentar, por um lado, as entidades médicas oficiais, como a Ordem dos Médicos, a Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro e a Agência de Trauma; por outro, os próprios profissionais de saúde; e por fim (realce-se que não menos importante), a população. É costume do povo português queixar-se e culpar o vizinho. É humanamente mais fácil apontar o dedo do que percorrer o longo caminho de ver onde se errou. Já se dizia que a culpa morre sozinha. Talvez desta vez ninguém tenha culpa e apenas tenha sido uma catástrofe da Mãe Natureza. Ou talvez ninguém tenha a coragem para descobrir o que poderia ter sido feito de forma diferente para evitar tantas mortes. Ou talvez nos atrevamos a dizer que a isto nunca saberemos responder... Em resposta às perguntas enviadas pela RESSONÂNCIA, a Ordem dos Médicos da região centro enviou um relatório sobre a ação dos médicos no dia 18 de junho. Em resposta ao apelo realizado pelo presidente da Secção Regional do Centro, Carlos Cortes, mais de 200 médicos se voluntariaram para se deslocarem aos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos para ajudar. Vindos de todos os pontos do país para prestar auxílio, foram “incansáveis na ajuda, inexcedíveis na sua solidariedade”. Não só de civis se faz a ajuda, uma vez que médicos militares se juntaram também à causa, tendo estes a vantagem de terem preparação específica neste tipo de cenários. O presidente do Conselho Regional do Centro enfatizou a falta de médicos nos centros de saúde do Interior, que se fez notar mais nesta catástrofe, afirmando que esta lacuna só não se nota quando tudo corre bem. Falta de médicos e falta de recursos mínimos, era o que se encontrava pelos concelhos atingidos, pelo que toda a ajuda vinda do restante país foi bem-vinda.
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Rui Rosinha, bombeiro voluntário que atuou nos incêndios de Castanheira de Pêra, foi um dos bombeiros que seguia no camião que teve um acidente na estrada N236-1. Demorou 10h a ser transportado para a Unidade de Queimados, esteve internado com queimaduras de segundo grau profundo e terceiro numa área corporal de cerca de 20%, durante 5 meses. Em conversa com a RESSONÂNCIA, afirma, relativamente à resposta médica durante o incêndio que “o Estado falhou redondamente, pois chegaram médicos e enfermeiros para nos auxiliarem e não havia recursos medicamentosos ou outros; inclusive uma enfermeira falou recentemente comigo, confidenciando-me que se sentiu impotente, porque não havia nada para nos ajudarem.”. Quando questionado sobre os eventuais benefícios de existirem mais médicos com formação em Medicina de Emergência, respondeu que “seria, sem dúvida nenhuma, benéfico porque a Medicina de Emergência, sendo uma área em que se trabalha sob pressão, muitas vezes sem recursos e sem condições, exige uma formação direcionada e vocacionada para situações de tragédias e catástrofes”. Residente na Barraca da Boavista, uma aldeia a 50m da estrada N236-1, Maria Inês Fonseca (21 anos) perdeu alguns familiares e amigos nesta catástrofe, revelando à RESSONÂNCIA que “parecia o fim do mundo” quando viu a aldeia rodeada de chamas e fumo, na noite em que deflagrou o incêndio. Afirma ainda que, na mesma noite, no Centro de Saúde, “estava um médico residente neste concelho a fazer curativos e tudo aquilo que estava ao seu alcance para as pessoas que chegavam até ele. No entanto, o centro de saúde não tinha disponíveis materiais básicos, como soro e gazes, que são necessários nos primeiros socorros”. Acrescenta ainda que, nessa mesma noite, se notava uma grande descoordenação por parte das equipas de resposta, porque existiam cadáveres em vários pontos das aldeias, mas sem médicos nem bombeiros a auxiliarem a população. Porém, refere que “durante a semana seguinte, foram montados hospitais de campanha, em cada concelho afetado, que foram uma mais valia ao auxiliarem os centros de saúde, de forma a que os hospitais de Coimbra não
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ficassem “entupidos” com pessoas dos incêndios”. Residentes das aldeias de Santa Ovaia (concelho de Oliveira do Hospital) e de Sabugueiro (concelho de Seia) afirmam que as suas aldeias estavam isoladas, sem médicos nem enfermeiros presentes para ajudar a população e sem forma de pedir ajuda, até porque a rede telefónica estava desligada e as estradas estavam cortadas. Acrescentam ainda que as pessoas sofreram apenas queimaduras leves, mas que se tivesse acontecido alguma coisa grave, não havia forma de sair dali. E porque não devemos falar apenas daquilo que correu mal, é preciso olhar, mesmo que custe, para estas situações como um motivo para sermos melhores da próxima vez. A 23 de outubro de 2017, o Diário da República publicou o Despacho 9496/2017, assinado pelo Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Manuel Ferreira Araújo, que visa a “existência de valências médicas e cirúrgicas específicas”. Pretende-se melhorar as Unidades de Queimados, de Medicina Intensiva e de Cuidados Intensivos, garantindo um número adequado de camas e criando um plano de resposta a situações de emergência na área dos queimados. Existe intenção de tornar mais capaz e eficiente o transporte do doente queimado em estado grave. É referido também que “o modelo organizativo deve ser flexível de forma a ser capaz de se adaptar e alargar a sua resposta em situações de emergência na área dos queimados”. Rui Rosinha comenta com a RESSONÂNCIA que tem as melhores expectativas acerca destas alterações, “pois algumas das ações e atitudes lá relatadas, parecem até, que vêm ao encontro dos problemas que eu próprio tive, portanto sem dúvida, é um bom começo”. O despacho traz uma lufada de esperança, coloca o planeamento de uma resposta célere, eficiente e eficaz do Serviço Nacional de Saúde (SNS) como uma das prioridades do XXI Governo Constitucional no seu programa para a saúde. Todos temos as melhores expectativas, esperemos que não saiam defraudadas. •
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PORTUGAL: UM CASO DE SUCESSO NO COMBATE ÀS DROGAS por Afonso Morais
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de Abril de 1974, dia da Revolução dos Cravos, marca o fim do Estado Novo. Vigente desde 1933, este regime ditatorial escudou o país de influências estrangeiras. Deste modo, não houve contacto dos portugueses com o fenómeno de emergência e experimentação de drogas, crescente à escala mundial. Aliado a esse isolamento, a ignorância acerca das mesmas e dos perigos associados levou a que a “abertura” do país a este nível fosse catastrófica.
local, as Comissões para a Dissuasão da Toxicodependência (CDT). As CDT são equipas multidisciplinares (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, advogados) que avaliam o consumo dos indiciados, bem como o risco de dependência e informam acerca de tratamentos, redução de danos e serviços de apoio disponíveis. Disto pode resultar o encaminhamento para serviços de apoio diferenciado, trabalho comunitário, pagamento de coima, entre outros de acordo com a gravidade/recorrência da infração.
No espaço de alguns anos, o consumo de estupefacientes em solo nacional tornou-se uma epidemia. Estima-se que, na década de 80, um em cada cem portugueses tinham algum tipo de dependência de heroína. Aumentaram exponencialmente os casos de HIV, sendo que, entre 1993 e 2000, mais de 50% dos novos casos reportados eram atribuídos à toxicodependência e Portugal figurava no topo da lista dos países da União Europeia com maior rácio de casos de infeção por HIV. O panorama era assustador.
Estima-se que, na década de 80, um em cada cem portugueses tinham algum tipo de dependência de heroína.
Com uma política criminalizadora até então, o dia 29 de Novembro de 2001 marca o ponto de viragem na abordagem portuguesa à problemática das drogas. Isto porque entra em vigor a Lei nº30/2000, responsável pela descriminalização da aquisição, posse e consumo destas substâncias. Ressalve-se que a descriminalização se refere apenas a quantidades inferiores à necessária para consumo médio individual durante um período de 10 dias e que esta não se associa à despenalização destes comportamentos. Assim, em vez de constituir um crime e os acusados detidos, estes actos são encarados como uma contraordenação social. Se as autoridades apanharem alguém com fornecimento pessoal, os indivíduos ficam sujeitos a uma advertência, coima ou a comparecer perante uma comissão
Esta legislação, pioneira no mundo, dividiu a opinião pública. Chegou mesmo a ser repreendida pelo Comité Internacional de Controlo de Narcóticos, uma estrutura da ONU. Havia o receio de que estas medidas fossem entendidas como um incentivo ao consumo, levando ao seu aumento e das consequências inerentes. Tal cenário, não se verificou. Na realidade, apesar do impacto inexistente nos padrões de consumo, assistiu-se a uma redução significativa do número de infecções por HIV em toxicodependentes em 1998 foram notificados 1767 casos de HIV associados à toxicodependência; valores que contrastam com os 30 casos notificados em 2016 – e do número de overdoses - em 1998 foram registadas 337 mortes por overdose, enquanto
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que em 2016 registaram-se “apenas” 27. Houve também uma redução da carga destes casos no sistema judicial, com um aumento das contraordenações e uma diminuição dos processos crime. Assim, quase 17 anos depois da introdução da Lei da descriminalização do consumo, é possível afirmar com segurança que esta foi benéfica no combate às drogas. O sucesso tornou-a numa referência mundial pelo seu carácter inovador e resultados positivos, pelo que já foi, em inúmeras ocasiões, citada como exemplo em vários artigos de órgãos de informação internacional. É, contudo, importante analisar cuidadosamente este caso de sucesso. Este deveu-se a uma mudança da mentalidade dos legisladores que reconheceram a dependência como um problema de saúde individual e pública, concluindo que a criminalização em nada contribuía para o tratamento dos indivíduos, nem diminuía os consumos. Há assim que distinguir duas componentes neste paradigma. A componente jurídica, responsável pela descriminalização - e não despenalização. E a componente social, que se caracterizou pela mudança de mentalidade que alterou a perceção acerca dos consumidores de drogas, uma vez que estes deixaram de ter o estigma de criminosos, passando a ser vistos como doentes com direito a ajuda e apoio especializado. É ainda de referir o investimento na prevenção e reinserção, bem como a criação de programas de substituição opiácea, de troca de seringas, gabinetes de apoio, centros de acolhimento e abrigo. Fruto da simbiose destes dois componentes reside o sucesso por detrás da estratégia portuguesa. É, por isso, negligente creditar os resultados positivos apenas com uma mudança na lei. Esta, por si só, é insuficiente e perigosa.
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QUAL O FUTURO DO COMBATE ÀS DROGAS? Podemos estar satisfeitos e orgulhosos com o trajecto português no combate às drogas, mas não podemos dar a batalha como vencida. É necessário melhorar. Com o mercado de drogas ilícitas a migrar para o meio digital é preciso arranjar estratégias eficazes para o deter. Existe também a necessidade de reforçar a aposta em medidas de redução de risco, tais como “salas de chuto”, tema que vem a ser debatido há já alguns anos. Por último, é importante referir que nos últimos anos se tem vindo a verificar um aumento do consumo de cannabis e o tema da legalização da marijuana começa a surgir com maior frequência. Foi publicado na Acta Médica Portuguesa, em Fevereiro deste ano, um artigo de revisão que conclui, “tendo por base uma perspectiva de saúde pública” que o debate sobre a “legalização responsável e segura do uso de cannabis em Portugal deve ser aberto e promovido”. Estará na altura de voltar a inovar? • Bibliografia
SICAD. Relatório Anual 2016 - Situação do país em matéria de drogas e toxicodependência. 2017. [consultado 2018 março 18]. Disponível em: http://sicad.pt | EMCDDA. Portugal – Country Drug Report. 2017 [consultado 2018 abril 13]. Disponível em: http://www. emcdda.europa.eu/publications/country-drug-reports/2017/portugal_en | Baptista-Leite, Ricardo e Ploeg, Lisa. (2018). O Caminho para a Legalização Responsável e Segura do Uso de Cannabis em Portugal. Acta Médica Portuguesa, 31(2): 115-125 [consultado 2018 março 18]. Disponível em: https://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/ view/10093/5321
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A INVESTIGAÇÃO BIOMÉDICA EM PORTUGAL: PASSADO, PRESENTE E FUTURO por Guilherme Vilhais
A
evolução da produção científica em Portugal nos últimos anos é indiscutível. O número de publicações aumentou, colocando-nos à porta do top 10 da União Europeia, se olharmos para o número de publicações científicas per capita. O número de citações a autores portugueses também subiu significativamente nos últimos anos. Sendo a ciência uma cadeia em que um investigador chega a um conjunto de resultados, partilha-os com a comunidade que, de acordo com a sua pertinência, os usa como ponto de partida para novas investigações, o reconhecimento pelos pares é a melhor medida da qualidade dos resultados que publicamos. O panorama atual é, de facto, positivo, mas o que é que está por detrás desta evolução?
Olhar para números normalizados quando falamos de resultados em ciência é estarmos a enganar-nos. Fiz esta pergunta ao Professor Bruno Silva-Santos, que acredita que termos incentivado os investigadores básicos a irem para fora fazer os seus doutoramentos, aprender com os melhores do mundo e depois voltarem a Portugal e por aqui montarem os seus laboratórios foi fundamental. Se vivermos sempre rodeados de pessoas com o nosso grau de conhecimento não vamos evoluir. Precisamos de aprender com quem sabe mais do que nós, para depois
podermos voltar e ensinar o que aprendemos. Pergunteilhe se acha que a forma como o mundo olha para a ciência portuguesa mudou nestes últimos anos. O Professor considera que com a criação de institutos como o IMM ou o i3S, a ciência de qualidade em Portugal deixou de passar apenas pelo Instituto Gulbenkian de Ciência. Os bons cientistas portugueses ficaram um bocadinho mais perto de ser a regra do que a exceção. Mas será que temos margem para ir mais longe? O que é que podemos fazer para estar ombro a ombro com os big guys da ciência mundial? Quando tentamos responder a esta pergunta há duas coisas às quais dificilmente podemos fugir: a nossa população e a nossa riqueza. Um país com 10 milhões de habitantes dificilmente consegue competir com um de 325 milhões, como os Estados Unidos. Um país com um PIB de 193.000 milhões de euros dificilmente consegue competir com um país com um PIB de 3 biliões, como a Alemanha. Olhar para números normalizados quando falamos de resultados em ciência é estarmos a enganarnos. A vida real não é normalizada, é competitiva. Eles são melhores que nós porque são maiores que nós e muito dificilmente conseguiremos estar ao nível deles. Podemos, à semelhança do que acontece no futebol, ter um ou outro grupo que conseguem estar entre os melhores do mundo, mas não há nenhuma área em que possamos dizer que somos, indiscutivelmente, uma potência mundial. A nossa luta é com países com população e riqueza semelhantes às nossas. E nesse ranking virtual, o professor acredita que estamos acima do esperado. Estamos melhor que outros com a nossa população e riqueza e aqui foram as decisões políticas que fizeram a diferença. Olhar para os números sem perceber as dificuldades é
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não entender, de todo, o que se passa no nosso país. A instabilidade de financiamento da ciência em Portugal é incontornável e aqui o professor deu o exemplo do IMM, em que, dos 34 grupos que o constituem, apenas 7 recebem financiamento europeu. Os restantes dependem da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Na altura da crise, os concursos da FCT tornaram-se irregulares, abriam quando havia dinheiro e isso teve implicações óbvias. Um grupo que acaba um trabalho e não obtém financiamento para continuar tem que ficar por ali, tem que desintegrarse. Os grupos que fazem parte de grandes institutos têm quem os suporte nestes períodos, mas e os que não têm? Enquanto dependermos de financiamento volátil, a nossa ciência vai continuar a ser precária. Se considerarmos o número de ensaios clínicos a decorrer em Portugal ficamos bem pior na fotografia. Tendo em conta que mais de 90% dos ensaios clínicos em Portugal (e
| Bruno Silva-Santos, Investigador do iMM e professor da FMUL
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no Mundo) são desenvolvidos pela Indústria Farmacêutica, com todas as contrapartidas associadas, temos que ser atrativos para a Indústria para que esta escolha realizar os seus ensaios cá. Temos potencial para ser atrativos se pensarmos, por exemplo, que sai mais barato à farmacêutica pagar salários em Portugal do que em França. No entanto, não podemos fugir à nossa realidade populacional: com uma população pequena é mais difícil recrutar doentes. Então o que é que podemos fazer para nos tornarmos numa opção viável? Podemos tentar colmatar as nossas desvantagens com uma estrutura organizada e com administrações hospitalares sensibilizadas para a importância dos ensaios clínicos. Foi isso que, por vezes, falhou. Enquanto países como a Holanda e a Bélgica montaram estruturas eficientes e se muniram de sistemas informáticos de ponta, Portugal olhava para os ensaios como secundários, não criámos entidades responsáveis nos principais Centros
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Hospitalares e fomos ficando para trás. Claro que as farmacêuticas tinham relutância em investir em Portugal. Se olharmos para o número de ensaios clínicos a decorrer em Portugal nos últimos 10 anos verificamos que sobressai uma sensação de estagnação. Só muito recentemente é que esta perspetiva começou a mudar, a reputação dos grandes hospitais começou a pesar e tomaram-se medidas. Iniciou-se a criação dos Centros Académicos e dos Centros de Investigação Clínica. Apesar de ainda ser cedo para perceber os efeitos a longo prazo destas medidas, continuamos, indubitavelmente, longe das nossas reais possibilidades. Perguntei ao Professor Joaquim Ferreira se acha que a burocracia envolvida ainda é um obstáculo à realização dos ensaios em Portugal. O Professor considera que o panorama não é muito diferente do resto da Europa, mas salienta que o principal bloqueio ao processo de aprovação se encontra nas chefias hospitalares.
Enquanto dependermos de financiamento volátil, a nossa ciência vai continuar a ser precária. A importância de termos ensaios a decorrer em Portugal prende-se, sobretudo, com a gestão das expetativas dos doentes a quem não temos terapêuticas eficazes para oferecer. Se queremos poder oferecer alternativas aos nossos doentes sem que estes tenham que se deslocar a França ou à Alemanha temos de ter ensaios cá. Depois sujeitamo-nos a situações irónicas em que doentes portugueses que queiram ter acesso a uma terapia inovadora cuja investigação básica foi desenvolvida em Portugal tenham de ir ao estrangeiro porque não tivemos capacidade para desenvolver o ensaio clínico cá.
básicos portugueses a publicar na Nature, Cell e Science do que investigadores clínicos a publicar no New England? A principal razão prende-se com o tempo despendido. Os investigadores básicos fazem-no, geralmente, a full-time, enquanto os investigadores clínicos em Portugal têm que conciliar a investigação com as suas responsabilidades clínicas, uma vez que não existe tempo protegido. Um trabalho feito a 100% é dificilmente comparável com um feito a 20%, por mais competente que se seja. Outra questão tem que ver com o trabalho administrativo associado aos ensaios clínicos, que acaba por impedir que o clínico se foque exclusivamente na vertente científica. A incapacidade de conciliar pós-graduações em países de referência no que toca à investigação clínica com o Internato Médico em Portugal revela-se também preponderante. As condições estruturais oferecidas a quem queira fazer investigação clínica em Portugal são também muito diferentes das que são oferecidas aos investigadores básicos. Por fim, surge a questão do financiamento. A investigação clínica de iniciativa académica não dispõe de financiamento específico por parte da FCT, ficando com uma pequena fatia do bolo, fatia essa muitas vezes insuficiente para os elevados custos associados a um projeto clínico elaborado e de qualidade. Em suma, diminuir a assimetria entre a ciência básica e clínica deve ser encarado como uma prioridade. Temos de ter visão e perceber que, apesar de não nos garantir os melhores resultados a curto prazo, apostar na investigação clínica é uma mais-valia para os doentes e para a ciência a médio-longo prazo. • Agradecimento
Professor Doutor Bruno Silva-Santos e Professor Doutor Joaquim Ferreira.
Posto isto, impõe-se uma questão: estamos, como país, melhor no que diz respeito à investigação básica do que à investigação clínica? Apesar de termos áreas em que ambas as vertentes se encontram mais ou menos equiparadas, do ponto de vista do impacto das publicações, parece claro que sim. Mas por que é que há mais investigadores
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NEURO
Neuro Ciências Weeping Women, Pablo Picasso,1937 © Tate, London [2018]
NEUROCIÊNCIAS
A ALEGORIA DO PAVÃO
por José Durão
E
m 2001, no seu livro The Mating Mind, Geoffrey Miller introduziu uma teoria inesperada: o intelecto humano assemelha-se às penas de um pavão, uma apresentação extravagante com o propósito de atrair um parceiro. Toda a cultura, arte, discurso, invenção e filosofia, das peças de Shakespeare ao Empire State Building, nada mais é do que um elaborado ritual de acasalamento. Os nossos ancestrais primitivos, com uma fracção dos nossos cérebros, adaptavam-se ao seu ambiente. Se a questão não era de sobrevivência, então porquê desenvolver um órgão que consome tanta energia? Se o pavão mal consegue voar, resignando-se a bicar insectos na lama e consolando-se com a sua extrema beleza, o que é que isso diz do nosso “intelecto superior”? Como é que sabemos que devemos afastar a mão de água a ferver ou que ouvimos o nosso nome algures no meio de uma festa barulhenta? Questões como estas sublinham um puzzle fundamental, classificado por alguns como the Hard Problem: o problema da consciência. Simplesmente: porque é que todos estes complexos processos cerebrais são sentidos como algo interno? Porque é que não somos máquinas brilhantes, que retêm informação e respondem a sons, a cheiros e a água a ferver, mas inteiramente ocas por dentro, sem uma vida interior a experienciar tudo isto? Como pode um rosado, húmido e mole conglomerado de células nervosas encerrado num crânio originar algo tão misterioso como a experiência de ser esse conglomerado rosado, húmido e mole, gerando, aparentemente de forma trivial, o caleidoscópio de sensações, pensamentos, memórias e emoções que preenchem cada momento da nossa existência? A Ciência tem procurado ignorar o problema da consciência desde que René Descartes reconheceu, no início do século XVII, que nada é mais óbvio e inquestionável do que o facto de sermos conscientes, por mais que tudo o
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resto que achamos conhecer seja apenas uma elaborada ilusão concebida para nos enganar. No entanto, Descartes também afirmou que o fenómeno da consciência não parece obedecer a nenhuma lei universal conhecida. Não parece ser algo físico. Não pode ser observado, excepto a partir de dentro, pelo indivíduo consciente. Na prática, nem sequer pode ser concretamente descrito. Assim, Descartes concluiu que a consciência humana tem de ser composta de algo especial, imaterial e intangível, que não opera segundo as leis da natureza. Por outras palavras, terá sido gerada em nós por Deus.
Como pode um rosado, húmido e mole conglomerado de células nervosas encerrado num crânio originar algo tão misterioso como a experiência de ser esse conglomerado rosado, húmido e mole. Esta visão tornou-se justificação e durante mais de duzentos anos não foi posta em causa. Apenas com o dealbar das neurociências é que esta noção espiritual da consciência começou a ser questionada, apesar de nenhuma explicação alternativa convincente ter surgido entretanto. Pouco a pouco, o tópico tornou-se tabu e alvo de chacota por cientistas e académicos. Logicamente que a grande maioria não duvidava de que cérebro e mente andavam
Ilustração por Sofia Pessoa Jorge
de mãos dadas mas o modo como estavam ligados (ou se, de algum modo, seriam uma e a mesma coisa), era tido como um mistério relegado para filósofos em bibliotecas empoeiradas. Inevitavelmente, com o passar do tempo, o debate em torno da consciência adquiriu características absurdas, no sentido em que lados opostos não tendem apenas a discordar mas a considerar as opiniões uns dos outros absolutamente idióticas. O senso comum pode dizer-nos que existe uma experiência interior subjectiva mas, em boa verdade, o senso comum disse-nos que o Sol orbitava a Terra e que esta era plana. Patricia Churchland, professora na Universidade da Califórnia e auto-proclamada “neurofilósofa”, rejeita a visão de algo especial a que se possa chamar de consciência. Para ela, a história está cheia de exemplos de fenómenos considerados únicos no universo, sem nenhum mecanismo capaz de os explicar: há uns séculos atrás, era impensável considerar a luz como algo físico, seria seguramente algo para lá deste mundo; a própria vida adoptava um carácter mágico, animada por um élan vital que distinguia os seres vivos das máquinas. Hoje sabemos que a luz é apenas radiação electromagnética e que a vida é uma etiqueta que colocamos em acontecimentos materiais que crescem e se reproduzem. No mesmo sentido, Churchland afirma que o Hard Problem será eventualmente denunciado como apenas estados cerebrais. Já António Damásio, neurocientista sediado nos EUA que estuda e escreve extensivamente sobre os processos cerebrais e a consciência, reconhece que o cérebro permite que muitos seres vivos possam aprender, memorizar, correlacionar e, se suficientemente desenvolvido, produzir uma série de imagens variáveis que se aproximam de emoções ou mesmo sentimentos. Mas para a chama da consciência se acender, é necessário que surja o self, o eu primordial e autobiográfico, capaz de analisar a sua
existência como um público observa uma peça em palco – “o nosso Teatro Cartesiano pessoal”, como Damásio coloca. Felizmente, o dilema da consciência passou de tabu a popular caça ao tesouro e a motivo de culto. Na série televisiva Westworld, que nos apresenta a sobreposição entre humanos e robôs (os hosts ou “anfitriões”) e a procura de respostas sobre as diferenças entre eles, uma das máquinas questiona o seu criador sobre o que os distingue, ao que um brilhante Anthony Hopkins responde “The answer always seemed obvious to me. There is no threshold that makes us greater than the sum of our parts, no inflection point at which we become fully alive. We can’t define consciousness because consciousness does not exist. Humans fancy that there’s something special about the way we perceive the world, and yet we live in loops as tight and as closed as the hosts do, seldom questioning our choices, content, for the most part, to be told what to do next. No, my friend, you’re not missing anything at all.” Seria poético, ainda que profundamente frustrante, que a única coisa que a mente humana nunca conseguisse compreender fosse a si própria. Nada nos garante que tenhamos a capacidade para levar a cabo tal jornada, ou mesmo que se por acaso tropeçarmos na solução, numa qualquer praia distante onde a neurociência e a filosofia se encontram, sejamos sequer capazes de a reconhecer. •
Bibliografia
www.telegraph.co.uk/news/science/evolution/10604747/ Human-brain-like-a-peacocks-tail-during-courtship.html | http://www. theguardian.com/books/2011/feb/12/self-comes-mind-damasio-review | www.theguardian.com/science/2015/jan/21/-sp-why-cant-worlds-greatestminds-solve-mystery-consciousness | www.newscientist.com/article/ mg21829171-600-consciousness-why-its-good-that-i-know-that-i-know/
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NEUROCIÊNCIAS
O PAPEL DA FLORA INTESTINAL NA DOENÇA DE PARKINSON por Catarina Nunes
E se a flora intestinal tivesse um papel preponderante na Doença de Parkinson?
A
Doença de Parkinson (DP) representa um problema de saúde de grande impacto numa população cada vez mais envelhecida, como é a portuguesa. Embora múltiplos fatores genéticos já tenham sido identificados na fisiopatologia da doença, a verdade é que os fatores de risco ambientais e as interações entre ambos serão muito provavelmente os responsáveis por uma boa parte dos casos de DP. É uma patologia neurodegenerativa que, mesmo sob medicação, avança inexoravelmente para um estado de grande incapacidade e morbilidade dos doentes. A doença pode ser designada como uma Alfa-sinucleinopatia, com deposição desta proteína no córtex cerebral e no aparelho gastrointestinal.
[...] a erradicação do H. pylori melhorava a absorção da levodopa [...] Há já algum tempo que é do conhecimento da comunidade científica que a flora intestinal tem influência no neurodesenvolvimento, na modulação do comportamento e contribui para a fisiopatologia de determinadas doenças neurológicas. Contudo, esta relação entre a flora intestinal e as doenças neurodegenerativas continua por se revelar, estando em curso várias investigações do seu impacto na DP. Em discussão está a relação entre a infeção por H. Pylori e o seu impacto no tratamento da doença. Especula-se inclusivamente que a DP possa começar na flora intestinal, embora esta área esteja grandemente inexplorada. A destacar que um dos primeiros sintomas e também dos mais frequentes que surge na Doença de Parkinson é a obstipação.
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Assim, considerando que a infeção por H. pylori é extraordinariamente frequente, que relação poderá ter com os doentes com Parkinson? Um estudo publicado em 2006 em Roma revelou que a erradicação do H. pylori melhorava a absorção da levodopa, o pilar farmacológico da doença, e que aumentava as horas em “on”, aquelas em que há alívio sintomático. É sabido que os doentes tratados com levodopa experienciam a longo prazo fases em que estão em “off”, ou seja, momentos do dia em que o fármaco perde algum do efeito, condicionando bloqueios, com incapacidade para realizar movimentos simples, como andar. Neste ensaio clínico, doentes tratados com levodopa foram medicados com antibioterapia para erradicação do H. pylori, enquanto que outros foram tratados com fármacos antioxidantes. Os resultados foram claros quanto à vantagem de tratar a infeção no que toca ao tratamento da DP. Outro estudo realizado em 2012 na Dinamarca revelou ainda que a erradicação da infeção e a utilização de inibidores das bombas de protões diminuíram em 45% e 23% o risco de desenvolver DP.
[...] o microbioma intestinal é necessário para a disfunção motora e gastrointestinal no modelo animal da Doença de Parkinson [...] Em novembro de 2016, foi publicado um estudo na revista Cell que veio dar ainda mais força a estes dados. Foram estudados ratinhos que sobreexpressavam alfa-sinucleína,
NEUROCIÊNCIAS
a proteína que se deposita no córtex cerebral e no sistema gastrointestinal dos indivíduos com DP. O estudo revelou que as bactérias pareciam ativar a microglia, células que representam a primeira defesa do sistema imunitário no sistema nervoso central, enquanto macrófagos residentes, e que esta ativação pela inflamação tem um papel provável na fisiopatologia da doença. Os ratinhos foram submetidos a antibioterapia, tendo sido registada melhoria sintomática da doença. Por último, ainda dentro do mesmo estudo, foram introduzidas amostras da flora intestinal de doentes com Parkinson nos ratos com sobre-expressão de alfasinucleína, tendo-se verificado que os sintomas motores agravavam substancialmente. Parte dos ratinhos foram submetidos a amostras de indivíduos saudáveis, não tendo sido registado qualquer agravamento sintomático. A conclusão deste estudo foi algo ousada: o microbioma intestinal é necessário para a disfunção motora e gastrointestinal no modelo animal da Doença de Parkinson, através de vias de sinalização intestino-cérebro com impacto na neuroinflamação e agregação de alfa-sinucleína. Numa altura em que múltiplos estudos surgem afirmando que a flora intestinal tem implicação em doenças como a depressão, a ansiedade e o autismo, os autores propõem
que certas patologias neurodegenerativas possam ter origem na flora intestinal. Há muito por descobrir na área das doenças neurodegenerativas, e atualmente centenas de estudos estão a ser conduzidos no sentido de compreender melhor a fisiopatologia destas doenças para que melhor as possamos tratar, considerando o grande impacto nos doentes e respetivas famílias, e a sua grande prevalência. Além disso, são patologias que não apresentam cura e cujos tratamentos, como é o caso flagrante da DP, apresentam múltiplos efeitos adversos, tanto a curto como a longo prazo. Olha-se para estes resultados sobre o microbioma intestinal com a esperança de que em breve novas terapêuticas surjam para o alívio destes doentes. •
Bibliografia
Pierantozzi M et al., Helicobacter pylori eradication and l-dopa absorption in patients with PD and motor fluctuations. Neurology. 2006 Jun 27;66(12):1824-9. | Nielsen HH et al., Treatment for Helicobacter pylori infection and risk of Parkinson’s disease in Denmark. Eur J Neurol. 2012 Jun;19(6):864-9. | Sampson TR et al., Gut Microbiota Regulate Motor Deficits and Neuroinflammation in a Model of Parkinson’s Disease, Cell 2016.
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NEUROCIÊNCIAS
NÃO VIGIL. NÃO CONSCIENTE. NÃO DESPERTÁVEL. por Miguel Antunes
O
doente em coma é, para todos os efeitos, uma verdadeira incógnita. Um quadro grave com um prognóstico desfavorável e uma mortalidade elevada, causado por um sem número de condições e que culmina na separação, temporária ou permanente, da consciência e do corpo do indivíduo. Dependendo da gravidade da condição do doente, diferenciam as definições mais atuais os estados de coma, de consciência mínima e o estado vegetativo, estados esses que estão no encadeamento uns dos outros e cujo estabelecimento depende de diversos parâmetros, exames e tantas mais escalas e padrões semiológicos que, embora não sendo o ponto fulcral desta reflexão, nos remetem para uma conclusão lógica: pouco sabemos do que estamos a tratar.
A Ciência básica abriu portas às terapêuticas personalizadas e a uma capacidade de resposta que é hoje em dia, mais do que eficaz, efetiva. Por norma na arte médica, tudo o que é definido por uma lista de características e não pelo que é em si, faz com que fiquemos céticos em relação à nossa real compreensão do que estamos a enfrentar. De facto, uma fratura do pé é uma fratura, e uma pneumonia é uma pneumonia, mas uma artrite reumatóide será a soma de 6 pontos nos critérios do
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American College of Rheumatology de 2012, e um estado vegetativo será essencialmente um doente em coma que, passando algumas semanas, permanece não consciente e não responsivo, mas adquire respiração espontânea e ciclos de vigília/sono. Palavras como coma, estado vegetativo, ou qualquer outro termo semelhante, são meramente nomes e rótulos que tentamos atribuir a entidades tão miscíveis e mutáveis que aos olhos da ciência atual dificilmente conseguem ser singulares e muito menos circunscritas. No entanto, a verdade é que as condições existem e que as pessoas as enfrentam, pelo que deveríamos talvez debruçar-nos sobre o porquê de existir tanta dificuldade na compreensão do cérebro e da consciência, e penso que este problema se divide em duas vertentes. Robert Horwitz, Prémio Nobel da Medicina de 2002, declarou numa conferência em Lisboa há um par de anos que o grande avanço para os próximos 100 anos no conhecimento científico terá necessariamente de passar pela Neurologia, pois esta área irá fazer o mesmo trabalho feito pela Oncologia. E que trabalho foi esse?
[...] uma conclusão lógica: pouco sabemos do que estamos a tratar. Ora, na oncologia até meados do século XX os resultados catastróficos acumulavam-se devido a uma abordagem terapêutica e médica eminentemente cega e agressiva, desde cirurgias altamente mutiladoras a regimes de
NEUROCIÊNCIAS quimioterapia que eram verdadeiramente veneno, e que causava mais dano que benefício aos doentes. Como tal, decidiu-se voltar à base e ir estudar a totalidade da célula e das vias intra e extracelulares. A ciência básica abriu portas às terapêuticas personalizadas e a uma capacidade de resposta que é, hoje em dia, mais do que eficaz, efetiva. Este é um trabalho que está por fazer na Neurologia e que representa o primeiro obstáculo. O segundo e talvez mais desafiante problema, é que a Neurologia é o estudo do Eu. Porque mais do que o estudo do fígado ou do coração, esta é a ciência que estuda o Eu consciente, o Eu que pensa e que escreve este texto, o Eu que busca um verdadeiro sentido para a sua vida e para tudo o que o rodeia, que tem sonhos e objetivos. Voltando à premissa inicial deste texto, como delimitar a altura em que esse Eu desvanece?
A Neurologia é a ciência que nos consegue estudar mais profundamente que a cirurgia mais exploradora possível [...] Pistas começam a surgir quando é relatado no Guardian um caso em que cientistas, recorrendo a técnicas de ressonância magnética funcional (fMRI), conseguiram contactar com um jovem de 26 anos que se encontrava num estado vegetativo há mais de 12. Este sabia o seu nome, quem o cuidava, e tinha noção do passar do tempo. Para todos os efeitos, este jovem estava para a comunidade médica somente a fazer figura de corpo presente, mas na realidade ele era muito mais que isso, tendo este relato tanto de relevante como de desconcertante. A Neurologia é a ciência que nos consegue estudar mais profundamente que a cirurgia mais exploradora possível e os limites da consciência são e serão os limites do nosso próprio ser. Eles englobam uma problemática que é tanto física, como filosófica, como inquietante. Resta-nos estudar e almejarmos ser inventivos ao ponto de resolver um problema que é, em suma, o do sentido da vida. •
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NEUROCIÊNCIAS
AFIVASC: IMPACTO DA ATIVIDADE FÍSICA NO DEFEITO COGNITIVO VASCULAR por Júlia Machado Ribeiro, em colaboração com a equipa AFIVASC
O
declínio das funções cognitivas é a característica determinante da demência e do defeito cognitivo ligeiro, distinguindo-se estes últimos pela manutenção de autonomia e da independência nas atividades de vida diárias, que se perdem na demência. O defeito cognitivo de causa vascular representa uma das maiores causas de defeito cognitivo e de demência associados ao envelhecimento. Nele englobam-se os défices resultantes de lesões vasculares agudas (acidente vascular cerebral ou transitório), ou ainda de lesões crónicas, que muitas vezes se associam a patologia degenerativa, como a doença de Alzheimer. O defeito cognitivo vascular tem um espectro de manifestações amplo, que se estende desde formas ligeiras até à demência vascular, a sua manifestação mais grave que representa, actualmente, a segunda causa mais frequente de demência.
Nos últimos anos têm surgido dados de estudos observacionais que sugerem que a atividade física pode prevenir a evolução do defeito cognitivo de causa vascular. Não existe atualmente terapêutica específica para o defeito cognitivo de causa vascular e os resultados dos estudos farmacológicos têm sido desanimadores. Nos últimos anos têm surgido dados de estudos observacionais que sugerem que a atividade física pode prevenir a evolução do defeito
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cognitivo de causa vascular. A atividade física e o exercício físico são recomendados na prevenção e tratamento do declínio cognitivo e da demência, tendo um efeito dose-dependente. Os mecanismos possivelmente envolvidos nesta ação benéfica são a diminuição da inflamação cerebral; a diminuição do dano cerebral causado por insuficiência vascular, neurotoxinas ou por stress oxidativo. De forma indirecta, o aumento da reserva cognitiva e o controlo dos fatores de risco cardiovasculares são igualmente potenciais mediadores de protecção conferida pela actividade física. Porém, não se sabe ainda qual o tipo, intensidade e frequência de atividade necessárias para que surja algum benefício nem durante quanto tempo este prevalece. O estudo AFIVASC (FCT-PTDC/DTP-ES/3706/2014), a decorrer no Instituto de Medicina Molecular/Faculdade de Medicina, é um estudo pioneiro que pretende obter a primeira evidência robusta do impacto da atividade física no
| Logótipo do estudo AFIVASC
defeito cognitivo de causa vascular (sem demência). Tratase de um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, com seis meses de intervenção e seis meses de follow-up. Os participantes incluídos cumprem critérios de defeito cognitivo ligeiro de causa vascular. A intervenção passa pela prática de atividade física moderada, tendo como ponto de partida a marcha. Estão incluídas sessões de actividade física regular supervisionadas. O impacto esperado consiste num declínio menor das funções cognitivas no grupo de intervenção, ou até uma melhoria. Este estudo tem como investigadora Principal a Professora Doutora Ana Verdelho que conta como uma equipa multidisciplinar de Médicos neurologistas, de Medicina Geral e Familiar, de Psiquiatria, de Neurorradiologia, Neuropsicólogos, e Fisiologistas do Exercício.
acompanhamento, de uma forma gratuita e supervisionada. A atividade deste estudo pode ser acompanhada pelo Facebook em https://www.facebook.com/afivasc/ • Bibliografia
Livingston G, Sommerlad A, Orgeta V, et al. Dementia prevention, intervention, and care. Lancet. 2017;390(10113):2673-2734. doi:10.1016/S0140-6736(17)31363-6. | Buckley JS, Salpeter SR. A RiskBenefit Assessment of Dementia Medications: Systematic Review of the Evidence. Drugs and Aging. 2015;32(6):453-467. doi:10.1007/s40266-0150266-9. | Hachinski V, Iadecola C, Petersen RC, et al. National Institute of Neurological Disorders and Stroke-Canadian Stroke Network vascular cognitive impairment harmonization standards. Stroke. 2006;37(9):22202241. doi:10.1161/01.STR.0000237236.88823.47. | Bowler J, Hachinski V. Vascular cognitive impairment – a new concept. Oxford Univ Press. 2003:321–337. | Guure CB, Ibrahim NA, Adam MB, Said S. Impact of Physical Activity on Cognitive Decline , Dementia , and Its Subtypes : Meta-Analysis of Prospective Studies. 2017;2017(1). doi:10.1155/2017/9016924.
Numa altura em que se fala bastante de prevenção e de estilos de vida saudáveis, este tipo de projetos possibilita uma mudança do estilo de vida dos doentes com
| Uma das atividades dinamizadas pelo estudo AFIVASC
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CULTURA CULTÚR //
CULTURĂ
// CULTURE // CULTUUR //
// KULTUR // KULTURA //
KULTTUURI // KULTUUR // KULTŪRA // KULTURO // KULTÚRA // KULTURY // KULTURË // KÜLTÜR // КУЛЬТУРА
//
КУЛТУРА
//
MƏDƏNIYYƏT
//
ΠΟΛΙΤΙΣΜΌ // DIWYLLIANT // MENNING // ةفاقث// 文化
//
문화
// BUDAYA //
VĂN
HÓA
//
CULTURA
APARIÇÃO por Carolina Moreira
“A
parição”, a ode do cinema português a Vergílio Ferreira por Carolina Cerqueira Moreira. O idioma de cada nação é parte da sua identidade e os grandes génios literários nacionais tecem parte da rede invisível que nos une na cultura colectiva de um povo. Cada língua tem o seu gigante, alguém que com palavras elevou todo um país. Portugal orgulha-se d“As armas e os Barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana” cantou Camões.Homero por entre as linhas dos seus épicos inaugurou a literatura europeia.Podia ainda referir Shakespeare, Cervantes ou até mesmo o autor que deu como fundador da cidade que clamava ser a eterna
vencedora, um derrotado de Tróia, mas o Vergílio a quem este texto se destina é outro. Este, o Ferreira, não suporta aos ombros o peso de uma nação, carrega “apenas” o peso de si próprio e da sua existência. A angústia de “Ser” e de estar vivo face à inevitabilidade da morte foi tema para a quase totalidade da sua obra e o seu romance “Aparição” vai beber a essa fonte temática, num esbater da fronteira entre a literatura e filosofia, não tão marcado como nos seus ensaios, mas com um ligeiro sabor a existencialismo nietzschiano. Num tom autobiográfico, acompanhamos o primeiro ano de Alberto (a quem também
| Victória Guerra e Jaime Freitas, os protagonistas em “Aparição”“
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| Victória Guerra e Jaime Freitas, os protagonistas em “Aparição”“ se podia chamar Vergílio) como professor de português e latim, colocado numa terra que lhe é estranha, a tremenda Évora, que se ergue como que uma personagem nesta obra. Por entre um profundo e contínuo monólogo sobre a própria aparição do “Eu”, da vida e da morte, acompanhamos Alberto nos amores e dissabores de um homem que olha a vida de um ponto mais alto e mais solitário, à sua própria imagem. Por entre a morte de seu pai, a colocação em Évora e consequente familiarização com a cidade, um caso amoroso que termina em tragédia, como só poderia ser esse o seu fim, e a terrível confrontação com a morte, Alberto torna-nos testemunhas da sua aparição. Fernando Vendrell assume a difícil e cruel tarefa de adaptar Vergílio Ferreira ao cinema, que, apesar de tudo, não é impossível como provou Lauro António em Manhã Submersa, um filme de 1980 inspirado no romance homónimo. Sei que a minha opinião do filme é algo deturpada por uma recém leitura do livro, não no sentido pejorativo, muito pelo contrário. A dificuldade de traduzir por imagens uma obra que é, na sua maioria, uma reflexão interna de um narrador
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simultaneamente autor e personagemé mais sentida por aqueles que por não conhecerem o texto :acabam por perder a tremenda profundidade que acompanha a história. Mas um filme não deve ser apenas para aqueles que leram a obra, deixemos que ele seja antes um convite a conhecer Vergílio Ferreira e a sua “Aparição”. Com um elenco à altura das suas personagens e uma Victória Guerra que se sente como uma força demolidora, acompanhados por uma Évora do fim dos anos 50 “vestida a rigor”, este filme, galardoado com o Prémio Cinema Português do Fantasporto 2018, pode ainda não ser o clássico que “Aparição” merece, mas que seja uma desculpa para retirar um dos nossos maiores escritores do século passado da penumbra em que o deixámos cair, e dizer, tal como na cena final: “Olá Vergílio!”.•
CULTURA
WAR
por Inês de Sousa Miranda
Relativo ao quadro WAR, de Paula Figueroa Rego
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m tempos de guerra permitam-me que pergunte: Como retratamos o sofrimento do outro à distância?
Como um conjunto de coelhos em caricatura feminina, com vestidos cor-de-rosa e bonitas fitas, envolvidos no seu próprio sangue? É esta a mórbida visão de Paula Rego. Paula Figueroa Rego, nascida a 26 de Janeiro de 1935 em Lisboa, formou-se na Slade School of Art. Conhecida pela técnica poderosa da qual resultaram grandes composições, onde o realismo se casa com o expressionismo e até mesmo com o surrealismo de cenas ásperas, tanto contemporâneas como medievais, a violência encoberta, o desejo, a carne degradando-se em vida, as encenações de situações angustiantes, as coisas soltas, o mundo, o destino humano entre maldades e a beleza infantil. Ao fundo, na paisagem ou entre janelas, a morte. Paula Rego não a representa, mas faz-nos pressentir a sua dimensão figurada ou ausente, descrevendo a sua mão como um sismógrafo que regista a turbulência que lhe percorre o cérebro. A artista dispensa apresentações, biografias à parte, mergulhemos no epicentro do seu sismo. Este seu quadro, War, pintado a cores de pastel em papel de alumínio, é dotado de um surrealismo que perturba e inquieta. Tomou como inspiração a fotografia de uma menina de vestido branco a fugir de uma explosão, no Iraque, com uma mulher e respectivo bebé perplexos atrás dela. Esta é uma imagem complexa da inocência tornada grotesca pelo horror da guerra. Enquanto uma fotografia como aquela do Iraque pode soar familiar para quem assiste a notícias diariamente, ao substituir as vítimas da guerra por coelhos, símbolo
da pureza e inocência, atribui ao trabalho um ângulo profundamente perturbador. E só Paula Rego, a amante do sinistro, para o fazer sem pudor. A imagem na guerra é inquietante. As figuras retratadas estão em escalas diferentes, com efeitos surreais e perturbadores. Rego, de uma maneira que faz lembrar a Guernica de Picasso, usa aqui máscaras e cabeças de animais em vez de rostos humanos para transmitir o sofrimento da guerra.
Talvez a projecção da própria artista ou a tentativa de incutir a auto-projecção do observador, invocandonos num dever militar de salvação do mundo ou de salvação de nós próprios. Quanto mais olhamos para a obra, mais esta nos agudiza a curiosidade. As figuras centrais remetem a uma tradição de arte religiosa, que forma uma escultura perversa, a Virgem Maria (envergando o vestido azul), a carregar o cadáver de Jesus Cristo nos seus braços. A imagem é dominada por estas duas porções cefálicas de coelho no cerne da obra: o maior transporta o mais pequeno, que se cobre por um vestido cor-de-rosa, com marcas de sangue a maquilharem as suas cavidades orbitárias e região peribucal, com braços e pernas que fazem lembrar um brinquedo de pano frágil. Rodando o foco para a esquerda, posteriormente às duas figuras centrais, há uma imagem em espécie de formiga
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CULTURA
que luta com um cão castanho, com um pelicano a abraçar uma mulher. A formiga com o seu minúsculo tamanho desproporcionado ao do seu enorme poder, ensina que a verdadeira força está dentro de nós. Combate com o cão, símbolo dos impérios subterrâneos, da morte e do inferno. O pelicano, representativo da Eucaristia, ave aquática que na carência de peixe para alimentar as suas crias, morde o seu próprio peito para lhes dar carne e sangue, tal como o sacrifício de Jesus, que derramou o próprio sangue para alimentar o povo. Em primeiro plano dispõe-se uma fileira de quatro figuras: uma cegonha com asas estendidas que tem uma garra dentro do vestido rosa de outra figura com cabeça de coelho, e uma criatura de vestido vermelho com fitas amarradas na cabeça olhando uma mulher microscópica, vestida de soldado. A cegonha, símbolo da fertilidade, ave adversária do mal e anti-satânica, em representação de Cristo, e apoiada numa só pata, evoca a contemplação e a concentração.
Mergulhados nesta obra, sentimo-nos a criança de vestido branco da fotografia no Iraque. Sentimo-nos as crianças vítimas da guerra. Projectamos em nós a criança com o seu mundo utópico destruído pela realidade fria que impera nos dias de hoje. Sentimos o abalo do sismo de Paula Rego numa escala de Richter inquantificável. Concentrando-nos, deparamo-nos com uma eventual criança morta ou brinquedos deitados no chão pelo par
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central e um gato dourado sentado no canto superior direito, aumentando, deste modo, a ambiguidade ameaçadora da cena. Falta-lhe apenas a elevação da pata no ar para ser considerado o gato da sorte. Podemos ainda ter folgo para nos questionar: quem será a microscópica dama em primeiro plano, vestida de soldado? Talvez a projecção da própria artista ou a tentativa de incutir a auto-projecção do observador, invocando-nos num dever militar de salvação do mundo ou de salvação de nós próprios. Rego faz analogia da guerra ao pesadelo de uma criança. Quando a visão da morte se interpela no seu mundo visual ingénuo e ideal, pervertendo-o. Sabemos bem que são as crianças que sofrem as consequências das guerras, e nesta obra Rego relembranos graficamente do quão traumatizante essa experiência pode ser. Mergulhados nesta obra, sentimo-nos a criança de vestido branco da fotografia no Iraque. Sentimo-nos as crianças vítimas da guerra. Projectamos em nós a criança com o seu mundo utópico destruído pela realidade fria que impera nos dias de hoje. Sentimos o abalo do sismo de Paula Rego numa escala de Richter inquantificável. Em tempos de guerra permitam-me que pergunte: Tal como os artistas podem descrever a dor dos outros, como devemos nós, espectadores, encarar a dor dos outros? •
CULTURA
| War, Paula Figueroa Rego, 2003
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CULTURA
Lusofonia por Mafalda Jorge
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efinida através do conceito estático de “conjunto político-cultural dos falantes de português”, a Lusofonia é bem mais do que esta mera definição política que desde sempre nos foi imposta. É bem mais do que a “divulgação da língua portuguesa no mundo”, uma ideia muito ultrapassada. Se alguma definição lhe tivermos de atribuir, que seja então “condição de Lusófono”. É aquela que me parece mais dinâmica, que vai ao encontro da beleza e da complexidade presente naquilo que é ser Lusófono. É aquela que não fica agarrada a um conceito estagnado, que não cria barreiras de tempo, que olha para o hoje e para o amanhã.
[...] este espaço Lusófono seria, idealmente, uma árvore que respeitasse a individualidade de cada ramo e que permitisse que os diferentes sonhos que florescessem fossem respeitados, não os rejeitando e ajudando-os a crescer em igualdade. Tal como o conceito de Lusofonia, também Portugal ficou estagnado, suspenso no tempo, preso a um passado glorioso a que já não retorna. É ainda hoje um país que se sente insignificante perante a imensidão daquilo que sabe que já foi. Disse Fernando Pessoa “Que inquietação do fundo nos soergue? O desejar poder querer.” Sim, o desejar
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poder querer. Ter novamente a vontade de querer, o desejo de concretizar Portugal. E o que é que nos resta, afinal? Nada, apenas nevoeiro. Um vazio, uma espera de algo que nunca vem se não houver vontade de voltar a querer. A verdade é que, hoje, “ninguém sabe que coisa quer, ninguém conhece que alma tem, nem o que é mal nem o que é bem (…) Tudo é incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada é inteiro. Ó Portugal, hoje és nevoeiro…”. Serão estas palavras de “A Mensagem” intemporais? Será que nunca seremos capazes de sentir orgulho daquilo que é nosso? Será que nunca seremos capazes de tirar partido daquilo que nos caracteriza enquanto Portugueses? Sinto, muitas vezes, que aquilo que Portugal sempre procurou fazer foi construir-se como um espelho do estrangeiro, seguindo as modas e imitando as tendências. O episódio da Corrida de Cavalos d’ “Os Maias” é uma verdadeira sátira ao desejo de imitar o que se faz no estrangeiro. Também já Fernando Pessoa tinha feito alusão a esta problemática: “Que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro. Nem as vamos buscar aos movimentos filosóficos profundos do estrangeiro; vamos buscá-las à superfície, ao jornalismo de ideias.” Não estou a dizer com isto que Portugal se deveria construir de forma isolada dos outros países, até porque tal seria impossível tendo em conta a globalidade do mundo em que vivemos e a história que une Portugal ao resto do Mundo. Portugal deve ser Portugal, mas sem nunca se esquecer que vive na complementaridade de dois espaços: o espaço Europeu e o espaço Lusófono. Como tal, agora que as feridas dos ressentimentos do passado estão a cicatrizar e que se começam a ultrapassar os fantasmas das guerras do passado, o paradigma de Portugal é um novo paradigma, um paradigma de futuro. Há que superar os paradigmas colonialistas e pós-colonialistas para conseguirmos criar um
verdadeiro espaço Lusófono, espaço esse que deve ser uma casa comum onde todos cooperem entre si, respeitando a liberdade individual de cada país. O diálogo e a cooperação entre os países Lusófonos farão crescer uma força política e cultural que irá conduzir a práticas mais humanas e compreensivas que não desvalorizem as tradições e sonhos de cada país. No fundo, este espaço Lusófono seria, idealmente, uma árvore que respeitasse a individualidade de cada ramo e que permitisse que os diferentes sonhos que florescessem fossem respeitados, não os rejeitando e ajudando-os a crescer em igualdade. A grande árvore da Lusofonia cresceria e, com ela, Portugal (e todos os outros países que dela fazem parte) também acompanharia o seu crescimento. Olhando agora novamente para o conceito de Lusofonia, podemos concluir, com toda a certeza, que esta é muito mais do que um “conjunto de falantes de Português”. É um conjunto que se une e intercepta, que se conjuga e mistura. É uma rede que liga povos e culturas, que cria outras formas de ser “Português”. É uma tela que pinta a língua Portuguesa de novas cores, que lhe acrescenta novas nuances e significados. A Lusofonia é, em síntese, marcado pelas tensões entre passados e futuros, entre “o que pensam de nós”, “o que pensamos dos outros” e “o que pensamos que pensam de nós”, num jogo de espelhos constante que abre espaço à sedimentação de estereótipos dos povos e das suas culturas. Apenas quando nos libertarmos desses estereótipos e formos capazes de compreender as nossas diferenças é que seremos capazes de viver plena e livremente a nossa “condição de Lusófono”. Como Lusófonos e como Portugueses, é importante que não nos esqueçamos que a cultura está em cada um de nós, está nos nossos hábitos, costumes e tradições. Tudo o que somos constitui uma identidade cultural. A Lusofonia nasce de cada um de nós. Qualquer que seja o Legado que desejarmos deixar no Mundo, a Lusofonia acompanhá-lo-á, sempre. E devemos orgulhar-nos desse Legado. É nosso. E se é nosso, então que nos liberte do “nevoeiro” e das cinzas do passado. Citando um dos Grandes Portugueses Lusitanos, “Ó Portugal, hoje és nevoeiro… É A HORA!” •
CRÓNICA
QUANDO A MEDICINA NÃO SE FAZ DE CIÊNCIA por Daniel Alves
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e que é feita a Medicina e a prática médica? Se a experiência for a primeira resposta, a ciência virá de seguida por ser o primeiro passo, a muleta que todos têm de carregar até andarem sozinhos. Nesse mundo, para se estar atualizado, é requerido um estudo constante, artigo após artigo, em busca de um pouco mais de “conhecimento”. Com base na sua valorização, até onde confiariam nos resultados de um estudo? As estatinas reduzem, efetivamente, os níveis de HDL. Contudo, os estudos parecem demonstrar que este impacto é menor do que o esperado e que podem causar mais efeitos secundários do que os referenciados, especialmente por estes serem muito vagos. É verdade que na prevenção primária, parece existir algum consenso - não obstante, este parece esgotar-se quando se fala na prevenção secundária. De facto, o único estudo não financiado por farmacêuticas, afirma que a pravastatina não tem, sequer, impacto na mortalidade global ou na prevenção primária da doença cardíaca. Os próprios resultados clínicos não tratados das farmacêuticas estão fechados a sete chaves e não podem ser escrutinados por outros investigadores. E não há nada que levante mais suspeitas do que a falta de transparência. Se é verdade que ninguém quer ver os seus doentes morrer, também é verdade que não lhes podemos prescrever medicamentos que, no máximo, resultam em efeitos adversos. Estas polémicas, que envolvem farmacêuticas e dinheiro, não se esgotam pelos artigos. Em Março deste ano, o ilustre Harrison foi acusado de não revelar conflitos de interesses de alguns autores, os quais não só receberam pagamentos das farmacêuticas no valor de 11 milhões de euros, como ainda tinham patentes de fármacos sobre os quais redigiram. Há mais notícias semelhantes para outros livros, como os de farmacologia. Será que alguns livros e bulas deviam ser assinados pelos seus patrocínios? Este género de questões alarga-se muito para outras áreas. Já consideraram o quão fácil será a realização de uma conferência médica para promover um exercício físico eficaz, quando existe um novo fármaco? E, por fim, temos o caso mais paradigmático: não sejam o médico que, com 8 crianças e um bolso cheio, não só tornou o autismo uma doença famosa, como ainda levou à fomentação dos movimentos anti-vacinação, que, ainda hoje, levam a mortes desnecessárias. Sabem onde afunilam todos estes obstáculos? Na saúde e na confiança do doente. As resistências e os interesses vão sempre surgir. E ao médico, o que resta fazer? Não só é preciso resistir ao dinheiro fácil, como também é preciso uma maior capacidade interpretativa e reflexiva, o mais consciente possível, e que não sejam apenas uma esponja que absorve e expele qualquer informação. Nunca se esqueçam: só com a confiança dos doentes é possível os melhores resultados terapêuticos. •
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CRÓNICA
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