Edição XXIV - akademia

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Ressonância Saúde nas Escolas Uma questão de algoritmos

edição XXIV | dezembro 2016 | distribuição gratuita

Ensino Superior O abandono escolar

Educação Médica Educar para publicar e publicar para educar

Grande Entrevista

Prof. Doutor António Sampaio da Nóvoa

akademia

ressonância • 1


8 AIMS MEETING th

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MENSAGEM INICIAL

E

ducação. Do latim, educatio, tem por definição “Conjunto de normas pedagógicas tendentes ao desenvolvimento geral do corpo e do espírito.”. Vivemos hoje num mundo em evolução, num mundo em mudança, num mundo em que é condição para o sucesso que se queira sempre mais, que se ambicione sempre mais, que se sonhe sempre e cada vez mais alto. Vivemos hoje num mundo em que se prima pela exigência e pela competitividade, num mundo em que as oportunidades são escassas e, tantas vezes, encaradas como definitivas. Vivemos hoje, inevitavelmente, num mundo de desgaste, de pressão e de correria. Num mundo em que é fundamental que se dê resposta às expectativas, às expectativas pessoais, familiares, sociais e culturais. No Bairro dos Pescadores da Costa do Sol em Moçambique há uma escolinha solidária. Esta escolinha solidária alberga crianças dos 3 aos 15 anos e tem como propósito ocupar os dias destas mesmas crianças. Isso mesmo, ocupar os seus dias. Por vezes há aulas de português, de leitura e de escrita, noutros dias há aulas de números, noutros, com mais sorte, há quem ensine a fazer coisas diferentes, como lavar os dentes ou até pescar! Mas, na maioria dos dias, a única coisa que esta escolinha faz é tirar as crianças da rua. É dar-lhes um espaço onde elas possam

estar seguras e ter a oportunidade de brincar e interagir umas com as outras. No fundo, o que esta escolinha faz é tentar desviar estas crianças do caminho da delinquência, da criminalidade, do desgosto e do sofrimento. Dentro do nosso mundo há muitos mundos diferentes. Dentro do nosso mundo há muitos mundos de desafios. Há um Ensino Superior e há uma Escolinha Solidária. Há exames cada vez mais exigentes e há a exigência de pôr comida sobre a mesa. Há um mercado de trabalho desafiante e há o desafio de resistir aos desvios no caminho. Num mundo cada vez mais em mudança e que cada vez mais se apelida de mundo global, não nos esqueçamos que há muito para além da nossa janela e do nosso âmbito de atuação. Num mundo cada vez mais desafiante, não nos esqueçamos que há desafios de diferentes dimensões. Neste nosso mundo, não nos esqueçamos que o importante não é sermos o melhor do mundo, mas sermos o melhor que podemos ser. O destino até pode nem mudar, mas vamos acreditando que podemos mudar o caminho. Rafael Inácio

Presidente da Direção da AEFML 16/17

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Ficha Técnica direção editorial Ana Brochado Ana Raquel Estalagem Catarina Paias Gouveia Joana Cabrita José Durão José Rodrigues Sérgio Bronze redação Afonso Delgado Gonçalves Ana Lúcia Fernandes Ana Sofia Mota Bárbara Saraiva Cláudia Silva Inês de Sousa Miranda João Bastos Pedro Câmara Pestana Pilar Burillo Simões Sérgio Bronze Tiago Grohmann Tomás d’Elvas Leitão design gráfico e capa Ana Dagge José Rodrigues ilustrações Catarina Paias Gouveia impressão e propriedade

Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 www.aefml.pt | ressonancia@aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml

Índice CRÓNICA 5 | A Retórica Médica

O QUE HÁ DE NOVO 6 | Curtas 7 | O Segredo do Nobel

CRÓNICA

8 | Quarto Minguante

EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE 10 | Uma questão de algoritmos

CONCURSO DEBAIXO DE FOGO 12 | Um olhar incoveniente sobre a Europa

ENSINO SUPERIOR

16 | Abandono escolar 18 | Grande Entrevista Prof. Doutor António Sampaio da Nóvoa 25 | O novo associativismo 28 | Medicina em números

EDUCAÇÃO MÉDICA

32 | A ciência de ensinar os médicos a sê-lo 33 | Educar para publicar e publicar para educar 36 | III Dia da Pedagogia e Educação Médica

MEDICINA INTENSIVA 38 | Dum spiro spero

CRÓNICA

42 | O não-lugar

Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 300 exemplares

Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.


Editorial

CRÓNICA

“There’s a difference between symptoms and causes. There are many symptoms of the current malaise in education, and they won’t be relieved unless we understand the deeper problems that underlie them. One is the industrial character of public education. The issue in a nutshell is this: most of the developed countries did not have mass systems of public education much before the middle of the nineteenth century. These systems were developed in large part to meet the labor needs of the Industrial Revolution and they are organized on the principles of mass production. The standards movement is allegedly focused on making these systems more efficient and accountable. The problem is that these systems are inherently unsuited to the wholly different circumstances of the twenty-first century. In the last forty years, the population of the world has doubled from less than three billion to more than seven billion. We are the largest population of human beings ever to be on Earth at the same time, and the numbers are rising precipitously. At the same time, digital technologies are transforming how we all work, play, think, feel, and relate to each other. That revolution has barely begun. The old systems of education were not designed with this world in mind. Improving them by raising conventional standards will not meet the challenges we now face.”

A Retórica Médica

in Creative Schools: The Grassroots Revolution That’s Changing Education de Ken Robinson e Lou Aronica

AUTOR

Afonso Delgado Gonçalves O paternalismo médico choca com um princípio básico do doente: a autonomia. A facilidade com que se procura informação de cariz médico aumentou imenso nos últimos anos. Entre outras coisas, a era da informação tornou o papel do clínico de mais difícil execução, fazendo com que o uso do direito da autonomia por parte do doente o tornasse mais propenso a tomar como certos alguns factos errados. Aqui entra o paternalismo. Um médico tem de respeitar a autonomia do doente, mas tendo este uma “opinião” não factual acerca da doença que possa ou não ter, o que deverá um médico fazer? Platão, na sua obra “Górgias”, dá um exemplo que hoje em dia bem podia ser real noutros termos. “É assim que a cozinha toma a forma da medicina, fingindo conhecer os alimentos que são melhores para o corpo, de tal maneira que, se coubesse a crianças, ou a homens tão pouco razoáveis como as crianças, decidir qual dos dois, médico ou cozinheiro, conhece melhor a qualidade boa ou má dos alimentos, o médico acabaria por morrer de fome.” As pessoas ouvem aquilo que querem ouvir. Assim, caso encontrem alguma página na internet ou alguém não formado que lhes dê garantias de um determinado diagnóstico, ainda que diferente do do médico, podem vir a tomá-lo como certo. Isto não quer dizer que os médicos não errem, porque, de facto, isto acontece. Apenas significa que para contornarem este mar de informação erróneo, confuso para os doentes, têm de cultivar uma habilidade específica: a retórica. A retórica é a arte de bem falar, de mostrar eloquência diante de um público autónomo, de maneira a dominar a causa que defendem. Um médico tem de ser capaz de convencer o seu doente de que é apto para o curar, de maneira a que haja adesão ao plano terapêutico. A retórica é uma ferramenta muito poderosa e perigosa, portanto não pode ser usada sozinha. O conhecimento científico é importantíssimo. O método científico é o responsável por ter tornado a medicina ocidental tão eficaz na arte da cura . No entanto, ultimamente, devido à sua desumanização, os doentes têm-se virado para medicinas alternativas, como a homeopatia, que carecem de base factual ou científica estáveis. Os escândalos protagonizados por farmacêuticas também se aliam à descredibilização da medicina. Basta observar a realidade em Portugal, em que facções políticas pró-terapêuticas não convencionais pretendem tornar um homeopata ou osteopata equiparáveis a um profissional de saúde. Assim, perante esta desvalorização do papel do médico, a capacidade de persuasão torna-se inestimável. Consome um clínico ver um doente fazer uma decisão não informada, a ser enganado por pura propaganda, por xamãs dos dias modernos que prometem curas baseadas em efeitos placebo. Compete ao médico ver nestas adulações, por parte dos “cozinheiros” dos dias de hoje, um cenário errado, que tem de ser combatido. Na prática, o que quer isto dizer? Os profissionais de saúde tem de ser flexíveis, não naquilo que dizem, mas na maneira como o dizem. Esta adaptabilidade confere uma forte persuasão, quando alienada ao sentimento, por parte do doente, de que está a ser ouvido. Ao tornar a medicina mais humana, mais próxima do doente, combate-se este recente obstáculo à prática médica. Ser médico por si só já não chega, é preciso mais.

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O QUE HÁ DE NOVO AUTOR

Tiago Grohmann

Fibromialgia “Não é da sua cabeça!”

O Presidente da Integrated Tissue Dynamics em Nova York, Dr. Frank L. Rice, anunciou a possível descoberta da causa da Fibromialgia. Identificou um número excessivo de terminações nervosas ao longo de junções arteriovenosas que aparentam condicionar o fluxo de sangue, levando a isquemia e a níveis superiores de ácido lático, bem como maior sensibilidade à dor. A ser provado em estudos de larga escala, a comunidade médica passará a dispor de dados patológicos concretos para diagnosticar e tratar.

Bio X Tech

Na Suíça, os neurocirurgiões Jocelyne Bloch e Grégoire Courtine contornaram recentemente lesões medulares simples por meio de tradução neuronal e transmissão do estímulo a jusante da lesão. Poucas semanas depois, investigadores da Universidade de Duke concluem que a proteína CTGF é responsável pela regeneração completa de lesões medulares dos peixe zebra e ainda presente na genética humana. O futuro da medicina promete uma amplificação do nosso potencial biológico e da nossa simbiose actual com a tecnologia.

Picado com Prazer

Bart Knols, o cientista mais dedicado à erradicação da Malária, apresentou no iMED 8.0 como tornar o nosso sangue neurotóxico apenas para os insectos, usando a droga veterinária Nitenpyram. Knols, agora, quando é picado, sabe que o mosquito não voa mais. Reconhece-se que, juntamente com medidas de prevenção, possuímos hoje uma hipótese real de acabar com o massacre humano infligido por vectores de malária, zika e dengue.

O QUE HÁ DE NOVO 6 • cronos


O SEGREDO DO NOBEL A Vida, a Lição e os Conselhos AUTOR

Tiago Grohmann A Vida

Dia 3 de Outubro Dr. Yoshinori Ohsumi recebe um telefonema. “Moshi Moshi Yoshinori speaking.”, responde, e nos minutos seguintes recebe a notícia da sua nomeação com uma gigante humildade. Tudo começa há 71 anos atrás. Nasce na prefeitura de Fukuoka, Japão. Sem grande interesse pelo desporto ou pelas artes, sabe em criança o que gostaria de ser: cientista! Aos 22 anos conclui a Licenciatura de Biologia Celular e 7 anos mais tarde o Doutoramento de Biologia Molecular na Universidade de Tóquio. Durante os 3 anos seguintes passa um dos períodos mais duros na sua vida na Universidade de Rockefeller em Nova York. Na entrevista dada à publicação de Cell Biology em 2012 e citada recentemente no The Straits Times, o Professor explica como lhe é atribuída a tarefa de estabelecer um protocolo de fertilização in vitro em roedores - um tema sobre o qual detinha pouco conhecimento e para o qual dispunha de escassos recursos laboratoriais. Passado pouco tempo torna-se parte da equipa encarregue de estudar a duplicação de DNA em culturas de levedura. É aqui que toma contato mais próximo com o Saccharomyces Cerevisiae, o modelo eucariótico hoje amplamente utilizado e que se tornou central na sua descoberta. De regresso a Tóquio, assume um laboratório simples, que gere sozinho, e prossegue o estudo dos erros de duplicação de DNA. Está agora com 43 anos, ano de 1988. Passaram-se 11 desde que regressou a Tóquio e é nesta altura que publica a descoberta da maquinaria responsável pela reciclagem celular. À medida que se torna um dos principais autores na área repara que quando este sistema autofágico desregula duas

situações ocorrem: 1) empurrado para um extremo, fica excessivamente ativo e promove uma transformação cancerígena; ou para o outro 2) torna-se insuficiente e acumula detritos que promovem o envelhecimento celular antecipado. “Persisti quando não havia interesse.”, dizia. Na altura, a ponte entre este sistema e a sua importância na sobrevivência celular não estava ainda estabelecida. O Professor, desde cedo motivado pela descoberta do novo, preferiu embrenhar-se em áreas pouco concorridas, insistiu neste ramo da ciência pouco atraente da altura, ao abrigo do seu pequeno laboratório.

A Lição

A autofagia é um mecanismo de defesa que se acciona especialmente quando um organismo está sob stress, por exemplo, quando jejua 12 a 36 horas. Neste caso, a célula produz energia consumindo os seus recursos internos, isto é, nesta primeira fase, “lixo celular”, incluindo bactérias patogênicas. A descoberta confirma a suspeita milenar de que manter jejuns por períodos limitados e devidamente hidratados é de facto saudável. Segundo os colegas do Professor, a autofagia protege os organismos da senilidade prematura. Este processo, provavelmente, rejuvenesce os organismos, estimulando o desenvolvimento de novas células, removendo proteínas defeituosas e mantendo o ambiente intracelular em boas condições. Numa sociedade consumista como aquela em que vivemos, estas podem não ser as melhores notícias, mas prometem tornar o nosso futuro mais extenso e funcional.

Os Conselhos

Preocupado com a evolução de uma

ciência guiada por Impact Points e por demandas comerciais, o Professor teme a extinção da ciência fundamental, da investigação focada somente no desconhecido que há por desbravar. Adverte que existem demasiados profissionais a apostar em áreas populares porque inferem maior facilidade em ver os seus ensaios publicados. Este desvio de recursos e de cérebros, magnetizados pela fama, carreira e resultados, comprometem no final o avanço criativo e disruptivo que é próprio da ciência e fundamental para a nossa evolução. O Professor espera que a ciência seja considerada importante por si mesma e não interpretada como uma ferramenta com fins práticos apenas. O próprio considera que a sua investigação está longe do fim: “sou um biologista celular básico e ainda tenho que compreender todo este mecanismo na sua totalidade. Ainda há muito para descobrir nesta área.” - afirma. Conclui ainda na conferência de imprensa dada à rede Japonesa - “nem todos os jovens serão bem sucedidos na ciência, mas é necessário fazer frente ao desafio!”. Hoje o seu trabalho pode levar a avanços revolucionários no tratamento de doenças degenerativas como o Parkinson, Alzheimer e Cancro.

O Derradeiro Valor

Maior que qualquer reconhecimento académico, o último e real valor traduzir-se-á no impacto evolutivo da espécie. A descoberta em si é moralmente neutra. Que o uso dado daqui em diante contemple a bondade entre os homens e para com o Planeta. Dia 10 de Dezembro recebe o prémio. Obrigado pelo bom exemplo Professor.

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crónica

Quarto Minguante AUTORA

Inês de Sousa Miranda

N

oites que me atormentam o espírito. Quando decide surgir por entre as criaturas banais que me envolvem o corpo. Muda aparentemente a sua porção visível iluminada, variando a sua posição desejada relativamente ao meu campo visual. Surge em quarto minguante invertido a 90 graus, delicada e flutuante, achando que passa despercebida entre as estrelas, esquecendo-se que é o seu brilho que me fascina e não o delas. Anestesia-se com fragrâncias numa tentativa de encher o vazio de distrações, onde o silêncio segura recalcadas emoções disfarçando a essência de que é feita. Autoconvence-se de que os olhos que a observam são cegos e confia que as bocas que lhe segredam a apreciação dos detalhes da sua complexa magnificência são falaciosos ecos. Nenhuma outra boca apreciará tanto quanto a minha o delicioso paladar daquela meticulosa degustação. Passeia o seu corpo de bailarina, esculpido com suavidade, ostentando, inconscientemente atrevida, cada ângulo perfeitamente delineado no espaço que espreita sob novidade e se esconde por entre as sombras da noite. Dança sem se aperceber sobre o chão de madeira que afortunadamente a

8 • CRÓNICA

suporta sem esforço, segurando-a pelas aponevroses plantares, elevando-a no ar de uma atmosfera suplicando folgo, enfeitiçada com tamanhas belas artes.

tes que nos envolvem as mentes, olhando para os corpos dormentes que balanceiam por nós sem realmente serem conscientes. Finjo-me indiferente à encantadora presença que tenho a meu Dizem que dá força às metáforas, lado porque pressinto a indifealegando o seu gosto implícito rença ao quadrado que a minha pelo duplo sentido das frases. Se irrisória presença tem ao seu. existisse um recurso expressivo detentor de múltiplos sentidos Respiro fundo, contida, suspiseria esse forçado por si. Múlti- ro ideias mirabolantes entre as plos sentidos, alguns deles pa- circunvoluções do meu cérebro, radoxais, outros ocultos, outros suspiro moléculas de admiração mascarados que me confundem entre as paredes do meu pericáros raciocínios. Passando de ló- dio. Suspiro apenas porque quangicos a desorientados. É a deso- do os meus suspiros lhe falam, os rientação que me orienta para seus profundos globos oculares uma embriaguez daquela essên- abalam, desviando para Sul e os cia. Aquela essência que me afo- pés entrelaçam em desconforto e ga numa obsessiva timidez, que se calam. Suspiro para o ar numa me torna a retina midriática, o tentativa de libertar a toxicidade pulso taquicárdico e galopante, da sua essência, inspirando-a de o pensamento iludido. Ideali- forma sucessiva em abstinência. zando uma ínfima oportunidade Anseio uma fase lunar que me de senti-la quando está perto. eleja como seu perfeito alinhaQuando estamos lado a lado, mento. Até lá sufoco o pensatocamos determinadas partes mento vagueando o espírito em da epiderme invariavelmente, noites de tormento. calando os poros, escutando o silêncio ou vozes inconvenien-


educação para a saúde

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uma questão AUTORA Ana Sofia Mota

E

ducação e Saúde são, certamente, duas das mais importantes exigências do ser humano. Sendo a saúde uma necessidade básica essencial não só à sobrevivência e bem-estar individuais, mas também para a evolução da espécie, a aquisição fácil, correcta e eficaz de conhecimentos e práticas em saúde por toda a população deve constituir uma prioridade, de modo a dotar cada um de capacidade de decisão e acção informada. A Organização Mundial de Saúde (OMS, 1998) define Educação para a Saúde como “qualquer combinação de experiências de aprendizagem que tenham por objetivo ajudar os indivíduos e as comunidades a melhorar a sua saúde, através do aumento dos conhecimentos ou influenciando as suas atitudes”. Esta definição visa contribuir para a operacionalização do conceito de Promoção da Saúde definido na Carta de Ottawa (1986), como “o processo que visa aumentar a capacidade dos indivíduos e das comunidades para controlarem a sua saúde, no sentido de a melhorar”. Nesta perspetiva, a criação de políticas que visem educação para saúde é do mais alto valor e louvor, especialmente em Portugal. De acordo com o Inquérito Europeu à Literacia em Saúde (HLS-EU — European Health Literacy Survey), realizado em 2011, Portugal, em comparação com os 8 países do projeto HLS-EU, ocupa uma posição intermédia no índice Geral de Literacia em Saúde, com valores ligeiramente mais baixos do que a média dos países participantes. Outra

• EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL 1010 • EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE

conclusão relevante é a de que quanto mais jovem o inquirido e quanto maior o nível de escolaridade, maior o nível de literacia em saúde. A literacia em Saúde, não obstante a sua especificidade, não pode ser dissociada de literacia em geral, existindo uma correlação positiva entre literacia em saúde e práticas diárias de literacia, nomeadamente leitura a partir de vários materiais ou uso de tecnologias de informação e comunicação. Estas últimas emergem como uma forte alternativa para disseminar informação em saúde e para promover e desenvolver ações de saúde e de promoção de literacia em saúde, sobretudo para os mais jovens e os mais escolarizados, sem esquecer que existem categorias sociais particularmente vulneráveis que devem ser consideradas em termos das políticas públicas de saúde. Assim sendo, é urgente quer diversificar as estratégias, modos de comunicação e de informação, reconhe-

na sociedade portuguesa, sendo que essas iniciativas devem, concretamente, ser incluídas nos currículos escolares, tal como afirma o Programa “Inovar em Saúde” da Fundação Calouste Gulbenkian. A Direção-Geral da Educação criou o Programa de Apoio à Promoção e Educação para a Saúde (PAPES), que foi homologado a 3 de setembro de 2014, com enfoque nas seguintes áreas: Saúde Mental e Prevenção da Violência, Educação Alimentar e Atividade Física, Comportamentos Aditivos e Dependências e Afetos e Educação para a Sexualidade. Os objectivos do Programa são os seguintes: promover a literacia em saúde; promover atitudes e valores que suportem comportamentos saudáveis; valorizar comportamentos que conduzam a estilos de vida saudáveis; criar condições ambientais para uma Escola Promotora de Saúde; universalizar o acesso à educação para a saúde

«A DIREÇÃO-GERAL DA EDUCAÇÃO CRIOU O PROGRAMA DE APOIO À PROMOÇÃO E EDUCAÇÃO PARA A SAÚDE (PAPES), QUE FOI HOMOLOGADO A 3 DE SETEMBRO DE 2014, COM ENFOQUE NAS SEGUINTES ÁREAS: SAÚDE MENTAL E PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO ALIMENTAR E ATIVIDADE FÍSICA, COMPORTAMENTOS ADITIVOS E DEPENDÊNCIAS E AFETOS E EDUCAÇÃO PARA A SEXUALIDADE.» cendo a diversidade de perfis sociais e de níveis de competências em literacia em saúde que atravessam a sociedade portuguesa, quer apoiar iniciativas que melhorem esta literacia, em particular dirigidas aos grupos mais vulneráveis

em meio escolar; qualificar a oferta da educação para a saúde em meio escolar e consolidar o apoio aos projetos em meio escolar. A Escola Promotora da Saúde (EPS) é “uma escola que fortalece sistematicamente a sua capa-


cidade de criar um ambiente saudável para a aprendizagem. A EPS é, assim, um espaço em que todos os membros da comunidade escolar trabalham, em conjunto, para proporcionar aos alunos, professores e funcionários, experiências e estruturas integradas e positivas que promovam e protejam a saúde”. Neste momento está a ser efetuado um ponto de situação deste projeto. No entanto, no relatório 2012/2013, identificaram-se pontos fracos tais como: baixa participação da família e da comunidade nas várias atividades realizadas para abordar os diferentes temas da Promoção e Educação para a Saúde, baixo envolvimento dos professores, dificuldade de elaboração de projetos com objetivos e metas mensuráveis e escassez de formação contínua sobre metodologias de prevenção de comportamentos de risco. Embora este programa esteja longe de ser uma solução perfeita permanente para a escassez de educação em saúde de qualidade no nosso país, constitui um primeiro passo no caminho para uma sociedade com melhores níveis de literacia e, por conseguinte, mais saudável. Reconhecendo a nossa responsabilidade enquanto estudantes de Medicina e futuros médicos, a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) tem investido em programas, de que é exemplo o "Educação para Todos", que visam a formação e a capacitação de monitores para intervenções de educação em saúde na comunidade, incluindo escolas. No entanto, apesar da importância inegável destes projetos, estes, muitas vezes não possuem o impacto esperado, ao não abranger um número suficientemente grande de público-alvo

«A Educação é crítica para o desenvolvimento sócio, económico e cultural, possuindo um enorme impacto na saúde populacional.» por restrições geográficas ou falta abertura e acessibilidade das instituições de ensino, nem motivar mudanças de pensamento ou atitude a longo prazo pelo seu caráter pontual e não obrigatório. Assim sendo, é essencial continuar a alertar e a pressionar as entidades superiores, nomeadamente o Governo, para que sejam criadas propostas de lei para discussão em Assembleia da República, propondo a criação de programas curriculares para as escolas, desde o ensino pré-escolar ao superior, que abordem as diversas temáticas da Saúde. É necessário adaptar os assuntos abordados à idade, etapa de desenvolvimento e ambiente sociocultural de cada aluno, incluindo, para além de atitudes saudáveis e medidas de higiene, o ensino de simples atos médicos que podem fazer a diferença, tais como primeiros socorros e suporte básico de vida. Por outro lado, seria ainda benéfico apostar em medidas defensoras de estilos de vida saudáveis, como garantir que as refeições ser-

vidas são nutricionalmente adequadas, eliminar alimentos ricos em açúcares e gorduras nos bares e máquinas de venda e investir na prática de exercício físico, suportando as iniciativas de desporto escolar, assim como delinear projetos de actividades que abordem temas de saúde mental, drogas e toxicodependência e sexualidade, de modo a que escola seja um espaço saudável exemplar. A Educação é crítica para o desenvolvimento social, económico e cultural, possuindo um enorme impacto na saúde populacional. A visão de que Crianças e Jovens constroem projetos de vida e sociedades saudáveis é algo que nos compete proteger e em que devemos, sobretudo, acreditar. A escola é, na maioria dos casos, o primeiro contacto em que a criança, e posteriormente, o jovem, tem as rotinas e regras de uma determinada comunidade, e que o acompanha enquanto este desenvolve a sua personalidade e mentalidade. Assim sendo, quer as vivências que aí são experienciadas, quer os conhecimentos adquiridos, acabam por moldar e influenciar grandemente o indivíduo, o que confere às instituições de ensino um papel fundamental na construção de membros da sociedade. Logo, as abordagens adoptadas pelo sistema de educação devem reflectir a consciência deste impacto, pelo que uma escola e ensino dirigidos também para educação em saúde criam a oportunidade de formar jovens capazes de decisões informadas. Esperançosamente, estes jovens virão um dia a ser cidadãos ativos de sociedades saudáveis. Afinal, porque é que o Algoritmo de Euclides é mais útil que o de SBV?

DE ALGORITMOS ressonância Edição EdiçãoXXII XXIV• 11 • 11


1º lugar do concurso Debaixo de Fogo

Um olhar inconveniente sobre a Europa

AUTOR

João Bastos

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conomicamente de rastos pelos efeitos da guerra e pelas imposições do Tratado de Versalhes, a economia Alemã colapsa após o culminar do capitalismo Americano frenético dos anos 20. É no seio do desespero da população, que Adolf Hitler, ignorado pelos media e pelas elites políticas da altura, sobe ao poder redirecionando o medo, o pânico e a raiva das pessoas para bodes expiatórios convenientes. Hoje, por toda a Europa, movimentos populistas ganham força, uma vez mais. Em França, Marine Le Pen da Frente Nacional apresenta-se como uma candidata séria na corrida à presidência; Na Alemanha, o partido conservador, eurocético e xenófobo Alternativa para a Alemanha (AfD) sobe nas sondagens com percentagens de intenção de voto de dois dígitos para as eleições de 2017; No Reino Unido, o resultado favorável ao Brexit foi acompanhado com um aumento em mais de 50% dos crimes de ódio; Na Suécia, o nacionalismo do Partido dos Democratas Suecos constitui, atualmente, a terceira força política mais importante; Na Hungria, num só dia foram expulsos 600 refugiados ao abrigo de uma nova lei, implementada pelo primeiro-ministro de extrema direita, Víktor Órban. Depois das atrocidades do séc. XX, como podemos explicar o crescimento deste tipo de movimentos? E mais importante ainda, o que podemos fazer para o contrariar? A (re)ascensão de movimentos populistas na Europa é hoje diagnosticada por muitos como uma reação visceral a duas realidades distintas: primeiramente, a desilusão face ao Sonho Europeu e segundo, e talvez mais importante, o fracasso do

12 • CONCURSO DEBAIXO DE FOGO cronos

projeto neoliberal. Se a isto juntarmos a chegada de milhares de refugiados e o aumento do terrorismo no território Europeu, temos então o motor capaz de impulsionar o velho continente de regresso a 1933. Mas comecemos então por explorar o cenário de fundo, muitas vezes convenientemente esquecido pela maioria: o falhanço retumbante do neoliberalismo económico. Introduzido nos anos 80 em ambos os lados do atlântico por nomes sonantes como Margaret Thatcher e Ronald Reagan, podemos definir o neoliberalismo, em traços gerais, como um conjunto de ideias políticas e económicas que defende a mínima participação do Estado na Economia, a livre circulação de capitais e a autorregulação dos mercados. Apregoado como uma solução para a maior parte dos problemas económicos mundiais, as políticas neoliberais prometiam combater a pobreza e a desigualdade e acelerar o crescimento económico mundial. Hoje, um crescente coro de vozes intelectuais onde se destacam nomes como Joseph Stiglitz, nobel da economia em 2001, e Paul Krugman, um dos economistas mais influentes do nosso tempo, alertam para o fracasso desta ideologia. O crescimento exponencial da desigualdade constitui, de longe, o aspeto mais desastroso do projeto neoliberal. Apesar de maioritariamente ignorada de forma conveniente pelos media e pela classe política, a desigualdade e a insatisfação consequente constituem a base dos movimentos populistas que hoje vemos disseminados por toda a Europa. A agenda neoliberal está, pois, a ser atacada em duas frentes: primeiro, pela sua ineficácia em cumprir aquele que deveria

ser o seu principal trunfo: um crescimento económico significativo, em oposição ao crescimento anémico a que assistimos atualmente. Segundo, aqueles que mais perderam nas últimas décadas já não se conformam com o seu destino e, hoje, direcionam a sua revolta para os mais diversos movimentos. Não podemos simplesmente dissociar o fracasso económico neoliberal da ascensão de Le Pen, Órban ou, mesmo, Trump nos EUA. Só com uma compreensão plena da insatisfação hoje canalizada para estes movimentos podemos fazer algo com significado. Com a chegada da pior crise económica desde 1929, as falhas do projeto neoliberal foram, uma vez mais, postas a nu por alguns e ignoradas por tantos mais. Pedia-se então, face à crise de 2008, e posteriormente à crise das dívidas soberanas, uma resposta Europeia firme que assentasse nos princípios fundadores da UE: cooperação, igualdade e solidariedade. No entanto, uma nova palavra adormeceu os valores outrora Europeus e passou a dominar o nosso dia-a-dia: Austeridade. Uma palavra que tem tanto de sonante como vago conquistou-nos a todos tornando-se, então, mote para a gestão da crise que atormentou (e atormenta ainda) a Europa desde 2008. Não se engane talvez o leitor em confundir esta palavra com “rigor”, pois a Austeridade consegue dar um gigantesco passo além, pavimentando o caminho para uma agenda política específica. E neste jogo pouco importa que o próprio FMI, que tanto a Austeridade alardeou, hoje defenda a extinção desta política face às desastrosas consequências sociais e económicas. Afinal, o importante é a ordem e o rigor, essas qualidades que


os povos da Europa central tão orgulhosamente exibem, em oposição aos preguiçosos, diletantes povos do sul. Mas vejamos, então, o mais recente exemplo: A regra Europeia do défice abaixo dos 3% do PIB possibilita a aplicação de sanções aos Países incumpridores. Este ano vimos essa mesma situação quase tornar-se real no caso de Portugal e Espanha. De facto, o caso Português é preocupante, sendo Portugal um dos países com mais infrações (10) das 114 registadas. O número português só é ultrapassado pela França com 11 infrações. Quando refletimos acerca da igualdade entre os países europeus vale a pena ler a resposta do Presidente Juncker quando questionado sobre o facto de a França nunca ter enfrentado a ameaça de sanções: “A França é a França”. Mais, se acreditarmos que as regras europeias se aplicam mais ou menos da mesma forma a todos, a Comissão Europeia vai ter de guardar algumas munições também para Berlim. É que com um excedente comercial externo recorde em 2015 de 252 mil milhões de euros, a Alemanha desrespeita as regras europeias apresentando-se como um problema a nível macroeconómico, não para si própria claro está, mas para os restantes Estados-membros da zona euro. Em relação à cooperação e solidariedade europeias, uma palavra importa ainda dizer no que toca à crise dos refugiados. Com a chegada de centenas de milhares de pessoas desesperadas aos portões Europeus, eis que uma nova divisão se apresenta no velho Continente. Dividida desta vez num bloco Ocidental, constituído principalmente pelo eixo Franco-Alemão e pelos países que constituíram a porta de entrada para estes migrantes, e por um bloco Oriental, constituído pela

Eslováquia, Polónia, República Checa e Hungria, a Europa, uma vez mais, falhou. Não conseguindo implementar um sistema de quotas por oposição do bloco Oriental, assistimos ao nascimento de uma nova Europa já nossa conhecida, separada por muros e arames farpados. Uma crise humanitária sem precedentes assim se instalou. O próprio ministro do interior grego, em visita a Idomeni, um dos campos de refugiados, afirmou “Não hesito em dizer que isto é um Dachau dos tempos modernos”. Mas mesmo que ignoremos o argumento humanitário para o acolhimento dos milhares de refugiados (situação meramente hipotética, espero eu, na cabeça do leitor) vale a pena relembrar a responsabilidade Ocidental não só na criação do caos a que hoje chamamos Médio-Oriente, como também na criação dos problemas que hoje mesmo tentamos combater: a crise dos refugiados e o terrorismo radical. Pois hoje no médio Oriente assistimos à existência de um estado profundamente bárbaro: mata e apedreja pessoas, destrói património da Humanidade e despreza a Arqueologia, as mulheres e todos aqueles que não se identificam com as suas crenças. Acima de tudo, assenta numa aliança com o clero local que produz, legitima e dissemina por toda a região uma vertente radical do Islão. Kamel Daoud, um jornalista do New York Times, apelidou-a de White Daesh. Nós conhecemo-la como Arábia Saudita. A diferença entre esta e o Black Daesh (Estado Islâmico)? Para além de melhor vestida, apenas uma: o facto de o Ocidente lhe acenar alegremente. A negação persistente das democracias Ocidentais face à realidade da Arábia Saudita é alarmante: prezam em saudar

a teocracia como aliada, fingindo que não reparam que esta é, na verdade, uma das principais disseminadoras e patrocinadoras da cultura Islâmica radical. Ora, se o estado Islâmico tem uma mãe: a Arábia Saudita, o seu pai será, sem margem para dúvidas, a invasão do Iraque. Os próprios serviços secretos britânicos hoje admitem que a invasão de 2003 aumentou a ameaça terrorista Europeia ajudando a criar o ambiente ideal no Médio-Oriente para a proliferação de grupos extremistas como o Estado Islâmico. Mais, o relatório de Chilcot veio pôr a limpo que as alegadas motivações para a intervenção no Iraque não estavam na realidade fundamentadas e que a guerra de 2003 onde morreram entre cem mil a seiscentas mil pessoas foi desnecessária. A crise das dívidas soberanas dividiu-nos em Norte/Sul e pobres/ricos. A chegada dos refugiados dividiu-nos em Ocidente/ Leste. Dividimo-nos, hoje, em membros fundadores/membros novos. Longe de nos aproximarmos do superestado tão temido pelos eurocéticos, hoje a Europa é um continente profundamente fragmentado. Abdicámos dos valores que outrora orgulhosamente apelidávamos de europeus em prol de um pragmatismo desumano e egoísta. Cedemos ao medo e hoje impulsionados pelo desastre económico neoliberal direcionamos a nossa raiva para movimentos extremistas, como já no passado o fizemos. Só com a imagem completa destes acontecimentos e dos motores que os alimentam poderemos criar alternativas credíveis, com significado e, quiçá, não repetir os erros do século passado.

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Acta Medica Portuguesa - Student (AMP-Student) aims to be a national and international platform for science communication among students and junior doctors, thus having as main objectives the promotion of high-quality science, the dissemination of scientific knowledge among students and the communication of the latest scientific advances in the biomedical field. Find out more in http://www.actamedicaportuguesa.com/student/

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ensino superior

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ensino superior

ABANDONO ESCOLAR

NO ENSINO SUPERIOR AUTORA Ana Lúcia Fernandes

P

or onde andavam os estudantes universitários um ano após o início da sua licenciatura? Foi o estudo que o governo português decidiu fazer, porque um investimento numa democratização do ensino superior não poderia ser desvalorizado de tal modo. O aumento de vagas e a criação de novos cursos não foi idealizada para, repentinamente, caprichos e desistências surgirem devido a um “afinal, o que queria mesmo era ser artista”. Não há mesmo mais pretextos! Existem cursos superiores para tudo o que quiseres ser no futuro, criança. 10% destes estudantes, 4 322 exatamente, decidiram interromper os seus estudos superiores, após um ano de licenciatura (dados de matrículas ano letivo 2013/14). Porquê? Afinal, o ingresso no ensino superior é totalmente intencional, uma benesse aos olhos das criaturas mais céticas à ignorância, uma excelente oportunidade de edificação e progressão de espírito, segundo os mais românticos. Embora um abandono de

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cerca de 10% não assuma valores percentuais aparentemente consternadores, é essencial perspetivar estes números como referentes a uma desistência de um compromisso de arrecadamento de um grau superior, ou seja, de um processo que, à partida, tem fitada uma conclusão. Aparentemente, os fatores económicos e o insucesso escolar são os principais responsáveis por estes celerados atos a Minerva.

Relativamente aos fatores económicos, já todos sabemos. Propinas, habitação, deslocações, material de estudo, toda uma amálgama de encargos financeiros que, por vezes, custa cobrir. As ajudas existem, todos os alunos se podem candidatar até a mais de uma bolsa, não é só o governo que vai oferecendo apoio. No último ano letivo, segundo dados da DGES, cerca de 77% dos pedidos para bolsa de estudo foram


deferidos. O problema desenvolverse-á com a qualidade de vida a que alguns destes estudantes se terão de vergar, qualidade que pode estar na origem do segundo ponto apontado anteriormente, insucesso escolar.

do pobre filhote. Estes fatores permitem-nos inferir a importância que umas semanas iniciais de integração ao novo estudante podem tomar. Profilaxia sobre os três anteriores pontos pode ser tomada

“PARA ALÉM DO APOIO FINANCEIRO, O VULTO DO APOIO FAMILIAR É IMPORTANTE. A FALTA DE VONTADE FAMILIAR NA INSTRUÇÃO SUPERIOR DE INDIVÍDUOS PODE, POR VEZES, SER BEM MAIS COERCIVA QUE AS DIFICULDADES ECONÓMICAS.“ Para além do apoio financeiro, o vulto do apoio familiar é importante. A falta de vontade familiar na instrução superior de indivíduos pode, por vezes, ser bem mais coerciva que as dificuldades económicas. Um poço de infortúnios escava-se bem mais depressa a partir de um lago de união embaciado, e as gatas borralheiras imaginadas uma vez, repetem-se uma e outra vez. Focando-nos no modelo de Tinto (1975), “Student Model Integration”, a saída do estabelecimento de ensino superior centrar-se-á em 3 fatores: no fraco desempenho académico formal, no insucesso nas interações sociais com o pessoal docente e não docente do meio académico em questão e, por fim, na incapacidade de envolvimento nas oportunidades extracurriculares oferecidas pela universidade. O sucesso académico formal prende-se às qualificações quantitativas obtidas pelo aluno, relacionando-se com a suscetibilidade cognitiva, tempo de trabalho e dedicação de cada indivíduo. Já o segundo ponto incide sobre todo o tipo de relação social que poderá surgir, adquirindo a criação e manutenção de amizades um gordo peso sobre o estado psicológico do estudante. Não irei dissertar sobre a amizade e a luz que ela encaminha sobre a nossa lúgubre solidão, já sabemos o quão deleitoso é derramar as nossas angústias sobre o prato amigo. Por último, o envolvimento em projetos paralelos aos 60 ECTs anuais tem um papel de figura materna, ajudando na autoestima

ao permitir um contato precoce dos recém-chegados com a instituição e com os indivíduos que a compõem. É o sentimento de abraço quente sobre a alma inquieta e desamparada, com as novidades, que deve ser fomentado. A boa vinda acaba, muitas vezes, por ser o arquiteto do baluarte que vamos construindo ao longo do nosso percurso académico, esse, que nos vai impedindo de chorar esporadicamente à frente dos professores. Até algo tão aparentemente simples como uma muralha precisa de um esboço inicial, não? Retomar, foi então, o nome atribuído pelo governo português ao programa afunilado ao aumento do sucesso escolar e à diminuição do abandono escolar no ensino superior. Centra-se num apoio ao retorno a uma educação anteriormente interrompida, acompanhado de uma bolsa anual de 1200€, a jovens desempregados com menos de 30 anos de idade. O acesso ao ensino superior, após o caducar das qualificações obtidas nos exames nacionais realizados no ensino secundário, implicaria a repetição destas provas. A asfixia deste tipo de burocracias, por exemplo, torna o processo, precedente a um regresso, mais simples e imediato. É ainda oferecida a recompensa de 300€ por estudante “retomado” à instituição de ensino superior. E relativamente à Faculdade de Medicina de Lisboa? Com tanta gente a querer entrar ninguém deverá querer mesmo

sair. De facto, os números são bastante baixos, apenas 0,9% dos estudantes desistiram do ensino superior, após 1 ano de licenciatura (dados das matrículas 2012/13 e 2013/14). Corretamente, 6. Talvez um desses reformados estudantis tome conhecimento do projeto Retomar e regresse. Para concluir, friso que o abandono escolar no ensino superior, por si só, não é um revés. É expectada de um jovem em idade adulta a aquisição de capacidade de discernimento e de escolha pessoal e independente. A frequência de um curso superior poderá não passar de um mero percalço noutro tipo de objetivo. A educação superior pode ser uma não hipótese, viremna para escolaridade obrigatória se a querem instigar. A adversidade vem sim com a incapacidade de oferta de progressão de estudos aos alunos que querem estudar. Quer seja porque não têm estofo económico ou porque uma má adaptação os levou a um estado melancólico. A educação deverá, então, ser adubada para quem deseja e prevê um futuro com um grau superior.

«A adversidade vem sim com a incapacidade de oferta de progressão de estudos aos alunos que querem estudar.» Agora, como seres sensatos que nos dizemos crer, observemos esse corredor atolado de madrastas vicissitudes que encaminham para o abandono escolar. Escolham o avatar que mais vos agrada e comecem. Sentem-se discriminados?

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grande entrevista

antónio sampaio da nóvoa

Ter uma formação superior é ter uma educação superior e ser capaz de se cultivar nas diversas áreas do saber e conhecimento e é isso que depois nos abre muitas oportunidades, pois permite-nos ler e interpretar coisas que de outra maneira teríamos ficado cegos e incapazes de as ver.

António Sampaio da Nóvoa, vulto ímpar da Sociedade Portuguesa, fundador de tradições pedagógicas, interveniente ativo no processo de fusão da Universidade de Lisboa (UL) e homem dedicado ao conhecimento. É com o antigo Reitor da UL que a RESSONÂNCIA tem o prazer de conversar sobre assuntos tão variados como a Educação, a construção da personalidade de um indivíduo e as presidenciais norte americanas. O mundo cresce, a informação triplica-se, a tecnologia e a conectividade ganham terreno e surgem os problemas da consciência e da ética. Com o futuro sempre em vista, o Professor Sampaio da Nóvoa convida-nos a conhecer novas perspetivas e apresenta os problemas da consciência e da liberdade como talvez nunca pensámos neles.

1818 • GRANDE • cronos ENTREVISTA


Sérgio Bronze Ana Dagge RESSONÂNCIA (R): Professor, desde já, um enorme obrigado pela amabilidade de se encontrar connosco hoje, para a Grande Entrevista da RESSONÂNCIA. Comecemos, então, pelo princípio. Nasceu em Valença, certo? Teve uma infância feliz? PROF. ANTÓNIO SAMPAIO DA NÓVOA (ASN): A minha infância foi passada no Minho até aos meus 9/10 anos, uma família grande, de 5 irmãos e, portanto, uma infância familiar afetivamente muito forte e com uma raiz minhota muito forte. R: A segunda pergunta, acaba por ter um encadeamento direto com a precedente. Pergunto-lhe, onde começa a educação? ASN: A nossa educação começa, na verdade, antes de nascermos. Há coisas da nossa educação de que só nos apercebemos muito tarde e que são muito fortes. Para dar um exemplo concreto, e que é uma marca da minha forma de ser, temos a independência, e que vem claramente do meu pai. Sou incapaz, enquanto professor ou reitor, de avaliar, julgar ou dar uma opinião sobre matérias em que estou envolvido, seja pela negativa ou positiva. A marca da independência, não só no sentido de tentarmos ter, como dizia João Lobo Antunes, um “juízo independente sobre o mérito” é um traço central da minha vida e que vem do berço. Eu acho que o processo de educação é muito como é que em determinados momentos da nossa vida pegamos naquilo que fomos e vivemos e fazemos um clique e temos um momento de viragem ou transição, e nesse momento fazemos qualquer coisa com esse património, projetando-se a fase seguinte. R: Tinha 4 irmãos e cerca de 40 primos. Como recorda esses momentos da juventude? ASN: A minha infância foi manifesta-

mente muito feliz. Os meus pais não eram ricos, a minha mãe não trabalhava, o meu pai era juiz, éramos 5 irmãos e nunca vivemos com facilidades. Nunca fomos de consumir coisas, mas também não passámos dificuldades. Há uma coisa muito minha, que é nunca ter programado a vida, nunca fiz planos. Não era minha intenção ser professor universitário, não era minha intenção vir parar à área da educação e da história, ser reitor ou ser candidato à Presidência da República. Nunca planeei nada, as coisas foram acontecendo e em cada momento procurei estar à altura do cargo, no fundo, não defraudar as pessoas, sempre com a consciência de que nós podemos o que podemos. Em cada lugar em que estive tentei ir o mais longe possível. É assim que vivo a vida. Não gostaria de em momento algum dizer que “eu podia ter feito isto e não fiz”, mas posso dizer “eu tentei, mas não consegui”, porque com isso vivo bem. Não conseguimos tudo. Ficar com a ideia “eu podia ter tentado e não tentei” não é concebível, e é em parte por isso que me candidatei à Presidência da República. R: Num mundo que se quer mais humanista e feminista, qual foi o cunho das mulheres da sua vida? ASN: Vivi sempre essa relação tanto do plano familiar, mais tarde do plano afetivo e até sexual, com grande

marca muito grande. Na nossa família há algo dramático que é o facto das duas mulheres da família terem morrido, de momento ficaram os 4 irmãos e o meu pai, que é até contra todas as estatísticas.Para além das questões familiares, comecei a despertar para as questões da vida em 1967/ 1968 com 13/14 anos, e estávamos em plena exposição da emancipação da mulher, dos hippies. Acho que somos todos feministas, baseando-me na igualdade entre as pessoas. Hoje o debate vai além disso, porque há muitas formas de estar, de ser e de exercer a sexualidade, e as nossas opções, e tenho a sensação de que a sociedade portuguesa, que apesar de ser uma sociedade católica e tendencialmente conservadora, nesse aspeto evolui bem. É certo que há ainda muito por fazer, mas quando comparo com outras sociedades em que vivi, a situação é muito mais complicada por exemplo no Brasil, pelas distinções e barreiras muito marcadas. Em Portugal, com todas as dificuldades, sinto que é dos países que evoluiu mais e melhor até em realidades legais. São debates que nunca estão concluídos. Vi isso durante o processo de campanha, em que tivemos muitos debates, com grupos de mulheres, associações LGBT, e mesmo estando todos de acordo com as premissas de base, há coisas que não são claras, como, por exemplo, a utilização de uma linguagem sexista. Um debate a que

«Nunca planeei nada, as coisas foram acontecendo e em cada momento procurei estar à altura do cargo, no fundo, não defraudar as pessoas, sempre com a consciência de que nós podemos o que podemos.» serenidade. A minha mãe era uma mulher muito forte, com um papel muito importante. A relação com a minha irmã, mais nova que eu, era muito forte e a morte dela foi talvez o momento mais dramático da minha vida, bem como a da minha mãe, as duas mulheres mais presentes na minha família. Vivi sempre rodeado de mulheres muito fortes e isso é uma

sou muito sensível, porque linguagem não descreve apenas a realidade, a linguagem constrói a realidade, e falar de determinada maneira é construir uma realidade. Havia pessoas que consideravam a existência de mais de dois géneros, e que de repente podia ser discriminatório falar apenas no masculino e no feminino, que existiam outras formas de falar. Debates sempre

Edição XXIV••19 19 ressonância


abertos na sociedade. R: Até que ponto a derrota de Hillary Clinton pode assentar no facto dela ser uma mulher? Que outros erros cometeu? ASN: Tendo acompanhado atentamente as eleições, creio que não, mas pode ter contribuído. Não foi o fator determinante, tive sempre a noção de que ela estava encostada aos mesmos interesses de sempre. Ela, como muitos políticos na Europa, não estão a compreender a necessidade que existe em reconstruir o mundo que não pode passar por lógicas de decisão que nos escapam nem por poderes económicos que não sabemos onde estão. Alguém como Trump, que na sua demagogia, procurou responder a esse anseio de saber onde está o poder, “não queremos cá esses tratados internacionais, essa globalização que não controlamos”, alguém que deu corpo a isso da pior maneira conseguiu vencer. Há, ainda, um erro crasso que foi intervenção excessiva do casal Obama, porque de repente a eleição parecia ser entre o Obama e o Trump. Deu um ar de fraqueza à Hillary, que fica em segundo plano. A única coisa boa que poderia resultar desta eleição seria um certo choque nas estruturas partidárias

2020• GRANDE • cronos ENTREVISTA

tradicionais, que se deve refletir na sua reestruturação. Porque é que esta gente aparece e ganha eleições? R: E o efeito de contaminação na extrema direita europeia? ASN: Eu não acredito que haja essa contaminação, mas o perigo existe. Estou convencido do contrário, estou convencido que a vitória de Trump reduziu as possibilidades de Marie Le Pen e acho que contrariamente ao que se diz, a Europa tem nos seus fundamentos uma capacidade de reação que os EUA não têm. A vitória de Trump pode ser problemática nas alianças que se podem criar, e será péssimo para América do Sul e Latina, a Venezuela e outros países que se encontram caóticos vão sentir isso de uma forma muito forte. Na Europa acredito que menos, até porque já é um continente dominado por políticos de direita. R: Qual o papel da cultura e da liberdade na construção da personalidade do indivíduo? ASN: Estamos num tempo de mudança impressionante, e acho que esta revolução do digital ou da conectividade, como Zuckerberg lhe chamou, não vai deixar as sociedades iguais. A educação

vai mudar, e tem de mudar, porque a educação já não cabe hoje no espaço das salas de aula. A Harvard Medical School, grande referência, criou um currículo há uns dois anos que se chama “Pathways”, em que não há aulas ou disciplinas, os alunos quando precisam de ver uma aula vão vê-la, mas gastam o tempo a trabalhar em grupos de trabalho, a discutir temas, a tirar dúvidas e a fazer investigação. Os alunos aprendem mais uns com os outros, e o importante é criar condições para isso. Estou a ler uma obra, aconselhada por Bill Gates, de Yuval Harari chamada “Homo Deus”, que faz um argumento muito interessante dizendo que nos dias de hoje temos capacidade para construir learning machines através de determinados algoritmos que serão mais inteligentes que os humanos, com capacidade de resolver problemas, até de aprendizagem. Pela primeira vez na historia da humanidade está a haver uma dissociação entre a inteligência e a consciência. Até agora a inteligência e consciência tinham de estar juntas, nos humanos, e a partir de agora quem tem a inteligência não tem a consciência. O problema da consciência será o grande problema do futuro, tendo aí também o grande debate dos valores do ser humano. O problema já não é tanto o conseguir o conhecimento, mas sim o


que fazemos com o conhecimento que temos. No plano de saúde isto é um mundo infinito, porque todos os dias aparecem novidades. Vamos ter um debate futuro muito interessante, e para ir direto à sua pergunta, precisamos de uma grande liberdade e de muita cultura. E a cultura é algo que demora muito tempo a construir nas pessoas e nas

«A educação vai mudar, e tem de mudar, porque a educação já não cabe hoje no espaço das salas de aula.» sociedades, porque estas têm memória, e há uma sedimentação que nos falta. E o problema da liberdade é de uma dimensão enorme, e começamos logo por a não conseguimos definir. No outro dia li uma noticia, que aparentemente nos deixa feliz, em que a Google e o Facebook, que até agora sempre foram umas plataformas que não tinham uma direção, decidiram combater o Estado Islâmico. Primeiro que tudo, quem é que decidiu? Quem é que é a Google ou o Facebook? Introduziram um algoritmo que através de milhares de milhões de interações, que quando surgem determinadas palavras chave, fazem surgir automaticamente nesse computador, de forma subliminar, certas leituras ou certos artigos, que vão fazendo uma espécie de "lavagem cerebral" para que a pessoa não adira ou seja recrutada. Ora, olhamos para isto e dizemos “fantástico”, mas como será no dia em que decidirem que são eles a escolher um presidente dos Estados Unidos ou de um país europeu? Ou se decidirem começar a influenciar, como já o fazem, os nossos gostos e até a nossa liberdade de decidir sem que tenhamos consciência disso? Harari diz que até agora nenhum regime ditatorial teve

um milésimo da informação que está na Google ou no Facebook. Mas o que é que se faz com esse conhecimento? E qual é a nossa liberdade e até que ponto é que a nossa escolha não é condicionada? A grande fronteira da liberdade vai passar em parte sobre a capacidade de decidir verdadeiramente sobre as nossas vidas e como é que o vamos fazer, e isso é algo que me assusta. Nem temos bem a noção do que é possível hoje fazer. Estive a assistir na Califórnia a uma conferência na Singularity University, ao que eles chamam de Revolução NBIC (N de Nano, B de Bio, I de Info e C de Cognitivo) e do que eles acham que vai acontecer nos próximos 15 a 20 anos, e é impressionante. “E a privacidade?” perguntou alguém no público, ao que o conferencista responde “pode repetir a pergunta? Não entendi. Ah, a privacidade? Isso já não existe há muito tempo!”. R: Onde enquadra a riqueza do ser humano? Será naquilo que sabe ou naquilo que sente? ASN: O discurso pedagógico é um discurso muito dicotómico. O que é importante é a pessoa saber muito de matemática ou é a pedagogia ou as didáticas? O que é importante são os conteúdos ou são os métodos? É instruir ou educar? Sempre que vos coloquem perante uma dicotomia não respondam porque a dicotomia não tem resposta, encontrem uma terceira resposta. Escrevi um texto chamado “Pedagogia: a terceira margem do rio”, porque a terceira margem é o lugar do rio, da viagem e do movimento. E eu também não sou capaz de responder a isso, porque são as duas coisas. Porque desligar o conhecimento do sentimento é o pior serviço que poderíamos fazer ao conhecimento. “É tão bela a Vénus de Milo como o Teorema de Pitágoras” e portanto colocar a beleza ou o sentimento ou o afeto de um lado e o conhecimento e o saber de outro é impedir o conhecimento que passa

obrigatoriamente por coisas afetivas. O que nos faz humanos é a junção das duas coisas. Tomemos de exemplo a palavra disciplina, que é usada para nos referimos a disciplinas como Matemática, mas a mesma palavra é usada para os comportamentos. E é justo que seja a mesma palavra, porque quando ensinamos Matemática não estamos verdadeiramente a ensinar Matemática, nós estamos a formar alguém através da Matemática, estamos no domínio do conhecimento e do sentimento. E a humanidade tem de ter estas coisas juntas, e quando não as tem, dão-se as grandes tragédias da humanidade. Um exemplo, que é um pesadelo, é a célebre intervenção de George Steiner, judeu expulso no tempo dos Nazis, a quem demos aqui o Honoris Causa, em que ele faz esta interrogação relativa aos altos cargos do regime Nazi: “Como é que era possível aqueles tipos bárbaros serem tão cultos e eruditos? E como é que é possível que alguns deles ouvissem Debussy enquanto olhavam para os indivíduos a irem para os campos de morte?” E logo Debussy! Estamos no coração da sensibilidade. Isto é possível porque de algum modo houve uma dissociação entre uma erudição, uma cultura e um conhecimento e aquilo que é o sentimento humano, que é a ideia da humanidade. A solução também não é ter um discurso, que em Portugal também se tem, que o que importa é aquilo que somos, e que o conhecimento não é tão importante, o importante é termos todos valores, como se fosse possível ter isso tudo sem ter conhecimento. A solução nunca está no dissociar, é a ligação dessas dimensões que nos dá a capacidade de pensar humanamente. R: Doutorou-se em Educação em Genebra e em História pela Sorbonne. Como surgiram estas oportunidades? ASN: Como surgiu tudo na minha vida, surgiu por acaso. Pasteur dizia que a boa ciência se fazia por acaso, e nessa sequência, dizia que o acaso favorece

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a mente preparada. Fui agarrando as possibilidades que me apareceram pela frente. Quando surgiu a oportunidade de Genebra agarrei-me, ainda muito novo, sendo que representa o momento fundador da minha tradição universitária. Estava sozinho, dormia 3 horas por dia e devorava livros. Como o meu percurso foi pela história da educação, que tem as duas matrizes, a história e a educação, eu achei que faltava a parte da História. E procurei sempre encon-trar as melhores universidades nessas áreas. Acho que ainda farei um terceiro doutoramento, na área da Filosofia. Não sei se tenho coragem ou tempo, mas sei precisamente aquilo que gostaria de fazer. R: É isso que falta à sua carreira académica? ASN: Não sei. Direi isto como uma característica pessoal minha, eu descanso a trabalhar, eu não descanso no lazer. E não digo isto como uma qualidade, porque as pessoas têm direito ao lazer e devem ter lazer. O descanso para mim é mudar de atividade, é investir noutra coisa. O lazer é muito importante, mas o meu lazer é este. R: Qual o livro que tem hoje à sua cabeceira? ASN: Tenho sempre vários. Estou a ler o “Homo Deus” de Harari, como já referi. E tenho vários livros de poesia, porque não consigo passar um dia da minha vida sem ler meia hora a uma hora de poesia. É uma forma de respirar. Estou a revisitar um autor que para mim é muito importante, que é o Teixeira de Pascoaes. R: Qual o estado do ensino universitário em Portugal? ASN: A Universidade Portuguesa é hoje igual às melhores Universidades Europeias ou Norte Americanas. Há 30 anos atrás era miserável, tínhamos meras escolas de ensino, não havia

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investigação, muito fechada ao exterior. Já trabalhei contratado em Genebra, Paris, Columbia, Brasília, Oxford, Rio de Janeiro e acho que não ficamos nem atrás nem à frente. Temos alguns estrangulamentos vindos do passado que dificultam algumas coisas, sendo o maior deles a carreira docente. Um estatuto absurdo que dificulta a vida na Universidade, dificulta reconhecer o método e o movimento dentro da Universidade. De um modo geral, as nossas faculdades são abertas, integram bem os alunos estrangeiros. Isto dito, a Universidade em geral está num tempo de viragem absolutamente brutal. A

«A fusão teve um segundo aspeto importante (...) ter construído esta ideia de que é uma universidade virada para o mundo, e isto passou internacionalmente, foi um grande salto.» Universidade como temos aqui, ou em Londres ou em Nova Iorque, não sobreviverá aos próximos 20 anos. Vamos ter mudanças absolutamente centrais. Hoje não faz sentido a ideia da aula tradicional, a ideia das disciplinas e de uma estrutura disciplinar tal como ela existe, como uma espécie de escolas secundárias melhoradas, nada disto faz sentido. Este mundo acabou. Existe agora uma Universidade 42, cujo nome vem de um filme de Ficção Científica, em que não há nem aulas nem professores, os alunos vão para lá trabalhar. As faculdades estão com grande dificuldade em adaptar-se. Os rankings não me interessam, porque são algo muito pobre, há para todos os gostos e tem que ver com quem os encomenda.

Não sinto que os nossos estudantes sejam piores, mas há um problema com uma estrutura curricular excessiva, há pouca diferença, as faculdades são todas iguais, há aulas a mais. Quando estava nos Estados Unidos, a lecionar na Universidade Columbia, os alunos tinham 10 horas de aulas por semana, 12 já era algo absurdo. A aula é um tempo de discussão e debate, esclarecimento de assuntos, não é para despejar matéria. Esta alteração das Universidades é algo a que eu gostaria de me dedicar, não sei se vai acontecer ou não, depende do que surgir e do acaso. R: O que faz o Professor atualmente? ASN: Depois da campanha fui para o Brasil, precisei de me afastar. Descansei e fiz algumas conferências e pensei que ia tomar uma decisão num futuro próximo, mas ainda não decidi nada em concreto. A partir de 1 de janeiro estarei a fazer alguma coisa. Mas o volume de compromissos é gigantesco, o país todo quer que nós falemos. R: O que é que a fusão trouxe à UL? De bom e de menos bom? ASN: A fusão era, a meu ver, uma coisa inevitável. Estas coisas inevitáveis por vezes demoram 50 anos a fazerem-se. Foi preciso alguém chamar a atenção de que isto era inevitável, porque nunca devia ter havido a separação, que só ocorreu pelas piores coisas. A separação aconteceu porque na altura o IST estava ligado ao Ministério do Reino e ganhavam uns adicionais que não se ganhavam na Universidade. Não há nenhuma universidade generalista, e a UL queria ser generalista, que não tenha Engenharia, que nós não tínhamos, e não há nenhuma que não tenha Medicina, que o IST não tinha, e podíamos continuar. Coimbra e Porto mantiveram todas as áreas do saber, em Lisboa essa separação foi brutal, e já não tinha sentido. Era preciso historicamente perceber que a razão que levou à separação era a pior


das razões, e que do ponto de vista do futuro, nenhuma destas Universidades duas teria futuro se não estivessem em conjunto. João Lobo Antunes, uma vez veio muito incomodado do Porto por dizerem que a fusão era um problema, e estava preocupado pela forma como falavam dessa fusão. Eu disse-lhe “a nossa responsabilidade é reconhecer os problemas e ultrapassá-los”, e ele percebeu o ponto de vista. Na verdade temos do ponto de vista de financiamentos, do ponto de vista de internacionalização e de fundos de investigação, 3 grandes áreas de investimento para o futuro, que são a Medicina, as Engenharias e a Tecnologia e, ainda, a Economia. Estes são os 3 grandes motores de financiamento, prestígio e atração de alunos. A UL era um máquina a trabalhar com um motor apenas. A fusão teve um segundo aspeto importante, ter capacidade de construir um discurso público e político, no sentido mais forte do termo, e ter construído esta ideia de que é uma universidade virada para o mundo, e isto passou internacionalmente, foi um grande salto. O principal problema hoje é que a estrutura universitária mudou pouco, isto é, ficou muito fechada nas Faculdades, ainda não foi possível entrar nestas. O grande desafio é conceber-se

como uma Universidade do Século XXI que não cabe nesta estrutura muito rígida de cursos, faculdades, muito monolítica, com muito pouca mobilidade e com pouca diferenciação. Resolvemos também problemas de património importantíssimos, temos o exemplo do Estado Universitário que agora é nosso. Quem vier daqui a 30 anos terá possibilidades imensas de desenvolvimento com este património. Há 3 anos estávamos numa espécie de estrangulamento, engolidos pelo ISCTE, pela Universidade Nova e de repente virámos o jogo ao contrário. R: Quais os temas mais relevantes a serem discutidos pelos alunos neste âmbito da Universidade? ASN: Há pelo menos dois ou três planos, no âmbito da Universidade, tudo o que tenha a ver com processos de mobilidade, com a criação de dinâmicas de ligação com os estudantes internacionais, obrigar a cursos entre faculdades, a coisas que saiam das caixinhas habituais. Por exemplo, quando se criou a Licenciatura em Estudos Gerais gerou-se um complicador horrível, mas que é bom, porque se tivermos sempre os mesmos padrões não chegaremos a lado algum. Acho que forçar a mobilidade e cursos entre as faculdades é essencial. Do ponto de vista pedagógico tem de haver um debate imenso sobre uma outra

forma de organizar as aulas, organizar os currículos e tempos de trabalho, e que vocês são os melhores a fazê-lo. Há uma carreira na área da ciência, as melhores pessoas jovens são empurradas para a área da ciência, mas deviam ser empurradas para área da Universidade e aí fazer ciência. R: Proferiu, em tempos, o seguinte “Eu penso nos outros, logo existo.”, no contexto da pobreza que assolou, e assola, o nosso país. Qual é o impacto das restrições económicas na vida dos alunos? Será que os apoios existentes são eficazes? ASN: O que se faz em Portugal nesse domínio é muito limitado. Somos dos países com propinas mais elevadas no espaço europeu, não são só os mil e tal euros, mas tudo aquilo que também tem de ser suportado, seja habitação, alimentação ou livros. Há uma coisa que nunca se conseguiu passar para a opinião pública ou para a mente dos governantes, que obviamente a pessoa ter um diploma do ensino universitário é uma vantagem do ponto de vista pessoal, mas também é uma riqueza para o país, ficamos só na primeira parte. Há uma vantagem pessoal na vossa formação, mas há um ganho para o país, mas isto nunca se conseguiu passar, as pessoas acham que se alguém quer ter um diploma tem que se desenrascar.

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Os estudantes devem exigir que os serviços da Universidade funcionem bem, que haja boas residências, que haja bons lugares de estudo e boas cantinas. Podem exigir que o que há funcione bem, e a UL nisso não é má. Os espaços de um modo geral são bons. Bolonha introduziu uma diferenciação negativa entre os mestrados integrados e os outros, quem tinha MI pagava 1000€ de propinas até ao final do curso, quem não tinha no mestrado pagava muito mais. Fizemos uma finta à lei, dizendo que sempre que houvesse mestrado integrado ou mestrado que fosse necessário ao exercício de uma profissão a propina se fixava em 1000€, resolvendo assim vários problemas. Há outro assunto, que se pensarmos bem é absurdo, que é a maneira como foram concessionadas às Associações de Estudantes as explorações dos bares, isto não tem lógica nenhuma. As refeições dentro da Universidade deviam ser uma coisa dos Serviços Sociais, não devia haver bares concessionados, porque a partir do momento que passa para Associações de Estudantes há aqui uma lógica de lucro inevitável e que dificulta depois ter cantinas abertas com determinada qualidade porque depois as pessoas não se querem deslocar à cantina. R: E relativamente ao abandono escolar no seu todo, como é que podemos lutar contra esta situação dilemática? ASN: O abandono escolar tem de ser zero, não é concebível que exista. Não há nenhuma razão que leve a que possamos tolerar o abandono, e temos de criar condições para que não exista.

saltar em cima deles desde início. Olho para um menino de 13 ou 14 anos que co-eça a faltar às aulas, a escola devia mobilizar-se de imediato para tentar perceber o que se está a passar e solucionar, mas faz “vista grossa”. Há muita tolerância, e devíamos ser muito mais exigentes. Há dois anos, quando preparava a minha candidatura, estive num congresso na área da educação e tinha preparado uma apresentação toda certinha e bonitinha, e na véspera decidi mudar o discurso, tendo feito um discurso crítico que na altura chamei “O meu terrível triplo E: empregabilidade, empreendedorismo e Nuno Vouga excelência”, e é evidente que estes são conceitos que não podemos ser contra. O problema não são as palavras em si, é o que está por trás disso. Porque quando se fala em excelência, está-se a dizer que uns são excelentes e outros são para abandonar, estamos a fazer um discurso do mérito, que é bom que seja feito, mas depreciativo, deixando uns tantos de fora. E esse é um dos problemas da escola e da universidade, nós não conseguimos diferenciar os dois. Quando eu dizia que tem de haver sucesso para todos, diziam que era um conceito romântico, mas só o seria se o sucesso para todos significasse o mesmo para todos. Mas se significar coisas diferentes, não é um discurso romântico. Precisamos é de diferenciar e entender que a Universidade não representa o mesmo para todos. Para isto precisamos que as escolas percebam a diferença dos discursos, não no sentido de separar, mas no sentido de diferenciar, do entender que as coisas podem ter significados diferentes e ca-da um encontrar o seu lugar dentro

AUTOR

que certamente tem raízes económicas, mas tem também raízes culturais, e é aí que os problemas da pedagogia e organização vêm de novo. R: Quais os conselhos que dá aos alunos que lerão esta entrevista? ASN: Primeiro que tudo, perceber que hoje o conhecimento já não está nos lugares habituais, e aquela formação de especialistas que só sabem de uma coisa já não cabe nos dias de hoje, tem de existir a mínima formação nas artes, ou formação na literatura ou filosofia. Ter uma formação superior é ter uma educação superior e ser capaz de se cultivar nas diversas áreas do saber e conhecimento e é isso que depois nos abre muitas oportunidades, pois permite-nos ler e interpretar coisas que de outra maneira teríamos ficado cegas e incapazes de as ver. Um segundo ponto, é a pessoa estar aberta a pensar novas realidades, não se fechar em relação a isso e não acreditar que tem respostas e verdades para tudo. É importante estar aberto às coisas de fronteira, ao que está surgir de novas áreas, abordagens e temáticas, sendo capaz de se lançar nessas diversas aventuras. Às vezes quando fechamos as portas da faculdade, fechamo-nos dentro de uma profissão, de uma rotina e de uma lógica, e o mundo está num processo de mudança que obriga a essa abertura ao novo. A curiosidade é essencial, quando se perde a curiosidade perde-se tudo, seja como aluno, professor ou profissional. O cultivar uma curiosidade permanente em relação às coisas é central. R: Professor, mais uma vez, um muito obrigado.

«Não há nenhuma razão que leve a que possamos tolerar o abandono, e temos de criar condições para que não exista.» Acontece por uma espécie de tolerância excessiva a fenómenos que devía-mos

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disso. Se não conseguirmos resolver isto não resolvemos o abandono escolar,

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DESENHAR O AMANHÃ: O NOVO ASSOCIATIVISMO AUTORA

Pilar Burillo Simões

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LHEIRAS, CANSAÇO CRÓNICO, agendas impossíveis, quantidades desproporcionadas de café. “Hoje não posso.”, “Vou ter reunião agora.” “Não vou conseguir ir a casa este fim de semana.” Não é muito difícil reconhecer o estereótipo de quem está ligado ao associativismo. E os estereotipados não só o assumem como se orgulham disso, muitas vezes incapazes de fornecer mais explicações que justifiquem tamanha dedicação. Tal como as gerações que o vão construindo, o conceito tem evoluído, experimentando agora desafios próprios do tempo que atravessa, sem perder a fidelidade professada à sua visão original: permitir aos jovens que tenham um papel activo na construção do seu próprio futuro. “Nothing about us without us”. A velha máxima, popularizada nos anos 90 no contexto reivindicativo dos portadores de deficiência, foi-se estendendo gradualmente a outros movimentos, acabando por esculpir igualmente a missão eterna e primária do associativismo juvenil. A partir daqui o léxico utilizado multiplicou-se exponencialmente. Os primeiros movimentos estudantis dos anos 70 estão associados à chamada Youth Participation, definida latamente como o envolvimento dos jovens nas decisões que os afetam individual e socialmente (Ca-

nadian Mental Health Association, 1995), estando este assente em três pilares fundamentais: a partilha do poder de decisão através da participação - Empowerment, a abordagem de assuntos relevantes e com impacto real nos associados - Purposeful Engagement, que por sua vez, são todos encorajados a participar - Inclusiveness. Já o Modelo de Hans e Becker define o Triângulo da Participação Juvenil com recurso a três conceitos: um desafio a cumprir, a capacidade de fazer a diferença e a cooperação com o outro. COOPERAÇÃO INSTITUCIONAL: FAZER OUVIR A VOZ DOS JOVENS

É neste último ponto que o associativismo tem encontrado um dos seus maiores desafios: a colaboração com stakeholders e decisores institucionais. A concretização plena da participação juvenil almeja uma intervenção plena no processo de decisão. Mas este é apenas o último de um espectro que contempla oito níveis de participação (Hart, 1992), traduzindo o progresso do trabalho desenvolvido pelos jovens para serem ouvidos, desde uma fase em que existe uma falsa inclusão dos mesmos no desenrolar dos projectos (1. Manipulation), passando por níveis em que os jovens assumem um papel consultivo (5. Consulted and informed), até à participação plena (8.

Youth-initiated share decisions with adults). Esta brecha entre a participação que as associações aspiram desenvolver e o seu papel efectivo é percepcionado também pelas instituições decisoras (Vromen et al, 2010), que reconhecem que o problema reside, em grande parte, na sua natureza inflexível e burocrática. A resistência à mudança é um obstáculo determinante à participação juvenil. Pode suceder que os jovens cheguem a intervir e gerar ideias em processos adequadamente estruturados pelas instituições mas cujo output não é capitalizado devido à inexistência das ferramentas adequadas para que tal se verifique. Para este cenário contribui ainda a visão tradicional dos jovens como um segmento menos importante da sociedade em que o diferencial de poder face às instituições é erradamente interpretado como inaptidão para fazer uma contribuição positiva. DA PARTICIPAÇÃO JUVENIL AO ATIVISMO JOVEM

A interacção entre estes dois grupos é um fenómeno crescentemente estudado nos últimos anos, acompanhando as próprias flutuações sociais. Um argumento muito utilizado afirma que os jovens não se interessam por estas temáticas, não estando suficientemente informados para poderem ser incluídos no debate (Furlong et al,

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2007). De facto, a tendência dominante nos dias de hoje é a diminuição da participação juvenil, que é justificada na literatura pelo contexto socioeconómico de instabilidade que impele os jovens a priorizarem os estudos e a actividade profissional (Andres et al, 2010). A este cenário acresce um sentimento de descrença generalizado face às instituições

aos direitos humanos, à solidariedade e ao ambiente. A mudança social generalizada é hoje um sonho indissociável do movimento jovem e a relação com stakeholders começa a flexibilizar-se e a dar lugar a parcerias mais profícuas para ambas as entidades. A youth participation deu lugar ao youth activism, o envolvimento dos jovens na própria

zam os jovens que se dedicam ao associativismo. É hoje conhecido que o envolvimento jovem se correlaciona positivamente com valores como a abertura à mudança, a autodeterminação, a solidariedade e o optimismo. Ligações familiares sólidas, a existência de bons mentores e uma consciência cívica e política também servem de suporte ao

«DE FACTO, A TENDÊNCIA DOMINANTE NOS DIAS DE HOJE É A DIMINUIÇÃO DA PARTICIPAÇÃO JUVENIL, QUE É JUSTIFICADA NA LITERATURA PELO CONTEXTO SOCIOECONÓMICO DE INSTABILIDADE QUE IMPELE OS JOVENS A PRIORIZAREM OS ESTUDOS E A ACTIVIDADE PROFISSIONAL.» e à sua capacidade de representarem as suas preocupações (Harris, 2006). Paradoxalmente, o mesmo contexto de desagregação gerou um movimento contrário e uma mudança para um sistema de valores pós-materialistas, no qual os jovens preferem estar mais distanciados das instituições e construírem eles próprios a participação social que pretendem desenvolver. Os associativistas são hoje “everyday makers” (Bang, 2014) que já não colocam o foco do seu trabalho numa entidade externa, construindo eles próprios os projectos que melhor traduzam os valores que querem ver no seu mundo. Os direitos individuais ou da classe deram lugar

2626 • ENSINO • cronosSUPERIOR

mudança social, que parte da sua vontade de querer fazer a diferença (Valenzuela, 2013) e contribui para o seu próprio desenvolvimento pessoal e social. O Positive Youth Development (Vinner, 2005) contraria a tendência de “corrigir o que está errado” nos jovens, tradicionalmente associada à participação juvenil mais dependente de decisores externos e centra-se em potenciar todas as competências e mais-valias que o envolvimento jovem pode trazer para a sociedade, traduzindo-se em mudança social concreta. VALORES HUMANISTAS: AS MOTIVAÇÕES DO ASSOCIATIVISMO

Valores muito semelhantes caracteri-

movimento, que está negativamente correlacionado com noções como o conformismo e a passividade (Michaelson et al, 2001). Este sistema de valores é o suporte mesmo de todos os esforços no sentido da causa comum. O estereótipo abordado no início oculta muitas vezes quadros de cansaço profundo, desmotivação e até burnout. As competências pessoais de gestão e liderança assumem um papel fundamental, assim como a própria natureza do projeto cuja razão de existência deve ir ao encontro aos valores dos seus organizadores. A obra de um associativista deve espelhar sempre o tipo de sociedade que deseja

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«AS DIRECÇÕES ASSOCIATIVAS ENFRENTAM ASSIM O AVASSALADOR DESAFIO DE CAPTAREM AS PREOCUPAÇÕES E VONTADES DOS SEUS ASSOCIADOS INDO AO SEU ENCONTRO ATRAVÉS DE MEIOS PREFERENCIALMENTE MAIS FLEXÍVEIS E INFORMAIS.»

para o futuro (Farthing, 2012). REPRESENTAR… QUEM?

Que sucede então com os jovens que não estão directamente ligados ao associativismo? Entre os dirigentes associativos, os jovens que não se interessam por estas matérias e as instituições decisoras está a massa constituinte da grande maioria dos jovens que os primeiros aspiram a representar. Apesar de não participarem activamente na representação juvenil, este segmento da população permanece bem informado acerca do desenrolar dos processos associativos e institucionais (Carpini, 2000). É no entanto um grupo descrente das instituições e da representação jovem (Vromen et al, 2010), que apesar de cultivar opiniões e interesses fundamentados não se considera adequadamente representado pelos órgãos com essas funções, nem está sequer caracterizado em profundidade na literatura. As direcções associativas enfrentam assim o avassalador desafio de captarem as preocupações e vontades dos seus associados indo ao seu encontro através de meios preferencialmente mais flexíveis e informais e de as transmitirem e defenderem perante as instituições competentes com a sobriedade e credibilidade adequadas a tal contexto. Estas duas valências são fundamentais dado o papel intermediário que se espera destes órgãos: uma associação que não capta adequadamente a voz dos que representa deixa de receber inputs sobre os quais trabalhar e pode inclusivamente passar a reger-se por uma agenda própria ou não representativa; enquanto que uma associação incapaz de defender as posições que assume deixa de gerar outputs positivos e o seu efeito na sociedade

que aspira transformar torna-se desprezável. UM OLHAR PARA O FUTURO

O associativismo é definitivamente uma missão que tende para o infinito, que se vai transformando como se transforma a sociedade em que idealizamos viver. É também uma missão que ninguém pode enfrentar sozinho e o conjunto das associações de jovens das várias áreas têm muito a beneficiar com a partilha de recursos e knowhow. Em Portugal, desde 1985 que o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) congrega em si a representação da juventude em áreas como o ambiente, a cultura ou o próprio associativismo. Plataforma por excelência da representação juvenil, mantém o Registo Nacional de Associações Juvenis e assegura projectos como o Roteiro do Associativismo, plataforma que facilita o networking entre associações, ou o Projecto Formar, destinado a capacitar os dirigentes. Em definitivo, é reunindo as competências e maisvalias de cada um que se podem alcançar os melhores resultados. É preciso saber reunir todo este potencial e estar atento às novas formas de participação activa na sociedade com destaque para as redes sociais. A própria representação juvenil deve saber adaptar-se à realidade dos seus representados na tentativa de ir concretizando a sua função mais nobre: que a sociedade nunca pare de se dirigir para a frente, para a solidariedade, para a igualdade, para o humanismo. Valores de que os jovens são, por tradição, dos melhores representantes.

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AUTORA

MEDICINA EM NÚMEROS

Inês de Sousa Miranda

P

rovavelmente o curso mais longo de todos os cursos, com mais horas “extraordinárias” de estudo, trabalho e dedicação, com grande investimento financeiro, mental e físico. Tudo somado: 562’842’976429’76’29624’98426842’8542’8’286’286842’8 6’28’28554+∞. Este valor repercute-se em tratar, resolver e salvar vidas. Valeu a pena? Vale sempre a pena. No entanto a realidade tem mudado e cada vez mais o “todo-poderoso médico” é também ele humano, comum mortal e com o livre-arbítrio de escolher a vida que quer levar nos anos que lhe restam. A procura de uma melhor qualidade de vida representada pela exponencial emigração de muitos médicos recémformados alerta-nos para isso. Será que lá fora vemos o nosso trabalho melhor reconhecido? “Deseufemizando”: melhor remunerado, com melhores condições e, fundamentalmente, com uma especialidade?

5º – REINO UNIDO Aqui adquire-se formação médica de elevada qualidade e exigência. Ao mesmo tempo são quem mais suporta financeiramente os seus estudantes médicos. Ser médico no Reino Unido é sinónimo de ser “escravo da profissão”. Horas extraordinárias não são novidade. No entanto não são escravos no sentido literal da palavra, antes pelo contrário, são muito bem pagos pelo extra-trabalho que exercem. Médicos especialistas ganham aproximadamente 138.000€ e médicos tarefeiros 108.500€ por ano. A recente decisão de saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) poderá trazer mudanças e dificuldades na entrada de estudantes de outros países da UE

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(maiores taxas e restrições de visto), mas aguardemos dois anos pelo início formal do processo do Brexit. João Pedro Nóbrega, actual aluno do 5º ano da FMUL, 23 anos, realizou um Intercâmbio Clínico este ano em Londres. Refere que “ter a oportunidade de realizar um estágio clínico em Londres é sempre uma oportunidade aliciante por tudo aquilo que é inerente à cidade em si e ao famoso NHS (National Health

"A DECISÃO DE SAÍDA DO REINO UNIDO DA UNIÃO EUROPEIA PODERÁ TRAZER MUDANÇAS E DIFICULDADES NA ENTRADA DE ESTUDANTES DE OUTROS PAÍSES DA UE" Service)”. Considera que da experiência de se lançar para o estrangeiro resultam dois veredictos e lições paradoxais. Em primeiro lugar, a contemplação de um cenário de desenvolvimento tecnológico, infra-estruturas e de um

panorama organizacional incrível faz reflectir acerca de como o SNS (Serviço Nacional de Saúde) tem muito espaço para melhorar. O segundo e principal, acerca do valor que devemos dar a Portugal. Isto é aplicável tanto ao SNS, como à qualidade do aluno de medicina, que teve oportunidade de estabelecer contacto com outros estudantes vindos de outros pontos do mundo e nunca sentiu que a preparação oferecida por Portugal fosse inferior à sua. Antes pelo contrário, existe um realce da qualidade do ensino médico português. O referido aluno foi colocado no Serviço de Cirurgia do Royal London Hospital, um hospital novo e com condições de trabalho excepcionais. O rácio tutor:aluno de 1:1 melhorou exponencialmente a experiência, permitindo-lhe ser primeiro ajudante na maioria das cirurgias. Reforça o contraste que sentiu com a conjuntura actual portuguesa na grande disponibilidade da equipa londrina em recebê-lo, conjugada com uma enorme vontade em ensinar. Um dos principais marcos que recolheu da sua experiência foi o respeito que sentiu que havia pelos doentes. Colaborou dentro de um meio onde são colocados em pé de igualdade a privacidade, os valores culturais e religiosos, o diagnóstico e o tratamento. “Outro ponto que gostaria de realçar é a produção científica aliada à clínica. Existe de facto uma grande cultura de investigação, transversal a


todos os elementos hospitalares que alia uma boa estrutura organizacional entre faculdade e hospital a um grande investimento, permitindo que estejam na vanguarda da inovação e da ciência”. Conclui que todos os aspectos que referiu, em conjunto com a grande metrópole que é Londres, tornam a ideia de uma eventual especialização neste meio muito atractiva e que equaciona para o seu futuro. No entanto, ressalva que “apesar de Portugal não ser uma meritocracia e por vezes pecar pela organização e inércia geral que alimenta o meio escolar e hospitalar, é importante salvaguardar novamente o nosso valor científico e médico que é reconhecido lá fora”. Com tudo isto autoquestiona-se, e bem, “e se tivéssemos dinheiro?”.

4º – CANADÁ Com o resultado das novas eleições presidenciais americanas a realidade aqui irá provavelmente sofrer alterações. Os médicos especialistas ganham em média 148.000€ por ano e os médicos tarefeiros 98.400€. O Canadá lida com a saída de muitos dos seus médicos recém-formados para os Estados Unidos da América em busca de melhores salários, o que resulta em escassez de profissionais. Isto reflecte-se em demasiados doentes para tão poucos médicos. Um quadro um pouco semelhante a Portugal, no entanto aqui o salário é bem diferente e a qualidade de vida também. Carolina Alves, actual aluna do 4º ano da FMUL, 24 anos, realizou no Canadá um Intercâmbio Científico durante o mês de Agosto de 2015, no centro de investigação no hospital infantil de Quebec em parceria com outro hospital da cidade. No seu testemunho referiu que o laboratório onde estava era especializado em inibidores da PARP (Poly ADP-ribose polymerase), estando vários projectos a ser desenvolvidos nesta temática. O seu tutor era um estudante de medicina que se encontrava a realizar o seu mestrado e que lhe ensinou diversas técnicas laboratoriais. Quanto ao sistema de saúde, nos quartos dos

hospitais existiam apenas dois doentes por quarto. Ainda acerca das condições do hospital, “Lembro-me de no quinto piso ter visto piscinas para grávidas darem à luz de forma natural, em simultâneo com assistência médica”. O Canadá fornece um grande apoio à Investigação. Lá os médicos ganham by act, sendo que os radiologistas estão no topo a nível de melhor salário. “Foi uma experiência muito gratificante. Seria um sonho trabalhar no Canadá, por um lado porque o sistema de saúde é invejável e por outro porque fazem tratamentos que ainda não vi cá. Além disso, é um país fantástico, cheio de oportunidades e paisagens lindíssimas”.

3º – EUA A inaugurar o pódio com lugar imperativo nesta lista estão os Estados Unidos da América. Ainda assim a medalha de bronze surpreende muitos dos que têm a ideia de que aqui os médicos são os que ganham melhor. Wrong. Um médico especialista ganha em média 211.509€/ano, enquanto um médico tarefeiro ganha 148.000 €/ano. A expectativa nos próximos 15 anos é de diminuição do número de médicos devido ao aumento dos impostos e a taxas de reembolso de seguro mais baixas. Aqui os médicos também se preocupam em ser processados por negligência, sendo que não há salário que pague o preço da má prática. Com a eleição do seu novo presidente e o consequente “crash” do site de imigração do Canadá poderemos assistir futuramente a uma nobre permuta de lugares destes dois candidatos. David Berhanu, 23 anos, actual aluno do 6º ano da FMUL, realizou durante o mês de Julho de 2015 um Intercâmbio Científico na Upstate Medical University of New York. O intercâmbio teve lugar numa unidade de Neuroimagem da Universidade à qual os americanos chamam de dry lab - laboratório onde o trabalho consiste quase exclusivamente em análise informática e não existe material de laboratório ou experiências a serem conduzidas. Teve a oportunidade de ter um projecto de investigação inteiramente a seu cargo,

tendo como outcome um artigo científico para eventual publicação. David refere que foi integrado totalmente na equipa de trabalho e era tratado como mais um dos investigadores a trabalhar no seu próprio projecto. Aprendeu análise estatística de dados, tendo sempre o apoio de orientadores e chefes de laboratório. Considera que foi uma experiência extremamente educativa e que lhe permitiu vivenciar a 100% a rotina de um investigador. “Foi extremamente gratificante ver o trabalho realizado dar origem a algo produtivo. Os Estados Unidos têm alguns dos melhores estágios de investigação e oportunidade de formação, que apesar de exigentes e consumidores de tempo, permitem obter um enorme crescimento pessoal e atingir metas concretas”. Conclui que os Estados Unidos são um excelente

«[NOS EUA] OS MÉDICOS TAMBÉM SE PREOCUPAM EM SER PROCESSADOS POR NEGLIGÊNCIA, SENDO QUE NÃO HÁ SALÁRIO QUE PAGUE O PREÇO DA MÁ PRÁTICA.» país para desenvolver uma vida profissional enquanto médico ou investigador, possuindo as melhores condições tecnológicas e de trabalho que alguma vez viu.

2º – AUSTRÁLIA “Escondida no seu canto”, a Austrália recebe a medalha de prata. E bem merecida. Em média um médico especialista ganha 227.100 €/ano e um médico tarefeiro 83.700€/ano. Muitos médicos britânicos recém-formados aterram aqui pelas melhores condições de trabalho hospitalar (contrárias à

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“escravatura” a que estão submetidos no seu país de origem) e a melhores sistemas de suporte. Aqui as “horasextra” são focadas no ensino e na formação.

1º – HOLANDA And the winner is… The Netherlands! Os holandeses lideram a lista não só pelos elevados salários, como também pelas excelentes condições de trabalho, poucas horas laborais e muitas férias. Isto é o sonho de qualquer pessoa e médico. O sistema de saúde funciona muito bem, garantindo que toda a população usufrua de médico de família e que filas de espera não existam. Um médico especialista ganha em média 232.700€/ ano e médicos tarefeiros 107.600€/ano. Vítor Veríssimo, 24 anos, justamente após realizar a Prova Nacional de Seriação (vulgo Harrison), em 2016, teve a oportunidade de viajar para a Holanda em Intercâmbio Científico. Ficou em Leiden onde colaborou num projecto científico-clínico que estuda os tipos de intervenções com maior repercussão na qualidade de vida após colapso vertebral. Fez avaliação pré e pós-operatória e serviu como segundo assistente no bloco. Equiparando o sistema de saúde holandês com o nosso, Vítor considera que ambos estão sujeitos aos processos

«And the winner is… The Netherlands! Os holandeses lideram a lista não só pelos elevados salários, como também pelas excelentes condições de trabalho, poucas horas laborais e muitas férias.» burocráticos inerentes, no entanto na Holanda a atenção que é dada aos doentes é maior. A nível tecnológico, os hospitais holandeses estão equipados com as últimas tecnologias e para qualquer

30 30• •EDUCAÇÃO cronos MÉDICA

tipo de procedimento há sempre reunião multidisciplinar, mesmo que para procedimentos minor. Teve a sorte de viver numa fraternidade juntamente com 19 estudantes holandeses, o que possibilitou um contacto mais próximo

com “falta de médicos”. Portugal forma mais do que é necessário e consequentemente não possui capacidade de formação. Daqui resulta uma percentagem de estudantes que não tem vaga para se candidatar à especialidade.

«PORTUGAL É O 3º PAÍS DA OCDE COM MAIS MÉDICOS. TEM EXCESSO DE ESTUDANTES/ INTERNOS E FALTA DE MÉDICOS ESPECIALISTAS QUE SE REFUGIAM NO PRIVADO, DEIXANDO O SNS COM “FALTA DE MÉDICOS”.» com os estudantes locais. “Foram, inclusivamente, o alicerce para a minha boa adaptação à cidade”, refere. Conclui que existe sempre a possibilidade de no futuro realizar formações na Holanda. No entanto, e à semelhança do que acontece em Portugal actualmente, começa a haver um excedente entre alunos recém graduados/vagas da especialidade pelo que, para já, não abdicaria da formação em Portugal para partir para a Holanda.

E PORTUGAL? Em Portugal sabemos que a realidade está bastante longe da acima mencionada. Para termos uma ideia numérica mais clara: um médico tarefeiro ganha em média 18.000€/ano e um médico especialista ganha um máximo de 60.000€ anuais em topo de carreira. Estaremos certamente bem abaixo na lista. Calcula-se que em Portugal a cada ano sejam formados 1600 médicos. No ano passado 387 emigraram porque lá fora “pagam muito melhor, pode mudar-se facilmente de especialidade e fazer formação em locais distintos. Têm condições boas de trabalho e de futuro”. Portugal é o 3º país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com mais médicos. Tem excesso de estudantes/internos e falta de médicos especialistas que se refugiam no privado, deixando o SNS

Investimos horas incalculáveis em conhecimento e prática para sermos os melhores a tratar, resolver e salvar. Investimos grande parte das nossas vidas na Medicina. É um investimento que ocupará toda a nossa carreira médica. Para tal, precisamos de investimento em nós, na nossa formação, na nossa aprendizagem, no nosso crescimento. Hoje é necessário ser-se especialista para praticar uma Medicina de qualidade. Após a entrada no curso com uma média altíssima, 6 anos árduos e exigentes, estudar cerca de 365 dias, 2750 páginas, para o tão célebre e decisivo exame Harrison de acesso à especialidade, onde ficar sem alternativa coloca-se como hipótese… é aterrorizador.

562’842’976429’76’29624’98 426842’8542’8’286’286842’8 6’28’28554+∞ repercutir-se-ão em?


educação médica

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educação médica

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arecer-nos-á, com certeza, longínquo o ano de 1910 em que, nos EUA, e sob a égide da Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, era publicado um estudo que ficaria conhecido como Flexner Report e que pretendia dar resposta à ânsia reformista de um recém-criado Council on Medical Education. No âmbito deste projecto, Abraham Flexner visitou as 155 Escolas Médicas existentes em território norte-americano, tendo redigido um relatório dramático com recomendações cujos impactos são, ainda hoje, perceptíveis. O Flexner Report, onde já se pode ler que "an education in medicine involves both learning and learning how; the student cannot effectively know, unless he knows how", foi um dos primeiros passos na demanda, sempre actual, pelos melhores métodos para garantir a formação adequada de futuros médicos. Na verdade, é da consciência de que a formação de um médico abarca especificidades sem par por entre a grande maioria das restantes actividades profissionais que surge a Educação Médica, não só numa vertente técnica mas também, e de forma particularmente relevante, como área científica. A descrição do Mestrado em Educação Médica da Harvard Medical School (HMS) nota que avançar na Educação Médica significa promover a prática da melhor Medicina científica, aprimorar a prestação de cuidados, contribuir para o aperfeiçoamento do sistema de saúde e, no fim de contas, “servir o derradeiro objectivo” de uma Escola Médica: formar quem alivie o sofrimento humano. E se esta derradeira meta aturde pela responsabilidade que imprime ao ensino médico, não é de admirar que, como a HMS, as outras grandes Escolas Médicas venham apostando, ao longo dos anos, em departamentos e unidades de investigação especializados em Educação Médica,

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AUTOR

Tomás d'Elvas Leitão

A CIÊNCIA DE ENSINAR

OS MÉDICOS A SÊ-LO em formações várias de cariz pós-graduado na área e na promoção e aplicação da inovação como motor do verdadeiro desenvolvimento. A Educação Médica dedica-se a um sem número de assuntos, entre os quais os outcomes do ensino, o desenvolvimento/construção curricular, os métodos de ensino, a avaliação e, ainda, o papel dos docentes e a sua formação pedagógica. Todos estes aspectos quotidianos do ensino médico são objecto de estudo para garantir que o processo de formação funciona: que os outcomes do ensino (conhecimentos, competências e atitudes que os alunos devem adquirir) coincidem com as necessidades, em constante mutação, dos sistemas de saúde; que aquilo que se ensina corresponde àquilo que se pretende que os alunos aprendam; que a avaliação

ção de profissionais de saúde), é possível encontrar relatos de Escolas Médicas de referência que questionaram as suas práticas estabelecidas e fizeram mudanças drásticas nos seus currículos em prol da busca irrenunciável por uma formação de excelência. A FMUL tem retomado agora, passoa-passo, a sua aposta na Educação Médica como área de inquestionável interesse estratégico. O recém-recriado Departamento de Educação Médica (DEM) é a bandeira desta assumida posição e o seu papel na promoção da investigação, na divulgação científica e na formação de alunos e docentes será de enorme importância nos próximos anos. Afinal, num tempo em que se defende, acerrimamente, a Medicina Baseada na Evidência, para quando a corajosa

«A FMUL tem retomado agora, passo-a-passo, a sua aposta na Educação Médica como área de inquestionável interesse estratégico.» permite, de facto, asseverar que os alunos adquiriram determinado conhecimento, competência ou atitude; ou ainda que os métodos de avaliação são reprodutíveis, i.e. por exemplo, que dois alunos que respondem às mesmas perguntas da mesma forma, obtêm a mesma nota. Facilmente se compreende que as respostas a estas e outras questões têm implicações práticas na formação ministrada pelas Escolas e que podem ser verdadeiros marcadores da qualidade do ensino. Na literatura em Educação Médica, como nas conferências anuais da Association for Medical Education in Europe (AMEE; associação de carácter mundial, não obstante o nome, que procura promover a excelência na educa-

exigência de um ensino médico baseado na evidência?

REFERÊNCIAS 1. Flexner, Abraham. Medical Education in the United States and Canada: A Report to the Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching. Bulletin No. 4. New York City: Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, 1910. Web. 6 Dez. 2016. 2. "Harvard Medical School Master's in Medical Education Program." Harvard Medical School Master's in Medical Education Program. Harvard Medical School, 2016. Web. 5 Dez. 2016.


EDUCAR PARA PUBLICAR E PUBLICAR PARA EDUCAR AUTOR AUTORA

Pedro Câmara Pestana Ana Lúcia Fernandes

INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA E OS ESTUDANTES

A Investigação Científica é atualmente uma peça central na Medicina Contemporânea e a Publicação Científica é o veículo através do qual o conhecimento se universaliza e se submete à crítica. Hoje em dia, quando pensamos no Internato Médico e nos curricula das várias especialidades, sabemos que o conhecimento científico, designadamente, a capacidade de ler, interpretar, conduzir e desenvolver projetos científicos, é exigida aos Internos, praticamente de todas as especialidades, desde o primeiro dia. Mas será que a Escola Médica nos prepara suficientemente bem para a leitura, produção e comunicação de ciência? O papel dos estudantes de medicina é muitas vezes subestimado mas, ao contrário do que se imagina, a História da Medicina fez-se em redor de variados avanços científicos atingidos por estudantes de medicina. As descobertas da heparina, da insulina e do espermatozóide são apenas alguns exemplos simbólicos de uma lista maior de investigações importantes levadas a cabo por estudantes de medicina[1]. Se

não é esperado, nem exigível a todos os estudantes que consigam atingir este tipo de patamar, é esperado que pelo menos, pelas particularidades que tradicionalmente caracterizam o estudante de medicina, designadamente o seu interesse, criatividade e disponibilidade para aprender, as Escolas Médicas potenciem o desenvolvimento dessas competências através da disponibilização de ferramentas que permitam introduzir os seus estudantes às áreas da metodologia e pensamento científicos. QUE TIPO DE MÉDICOS QUER A ESCOLA MÉDICA FORMAR?

Antes de percebermos que Modelos de Introdução à Metodologia Científica podem as Escolas Médicas oferecer aos seus estudantes, devemos refletir acerca da importância, ou não, do seu ensino. Compreender que o método científico estimula o desenvolvimento do pensamento crítico e da análise lógica da informação e que isso se traduz na capacidade de criar novo conhecimento a partir da pesquisa, seleção e análise de informação existente é importante para

o desenvolvimento do médico-clínico, médico-investigador e, sobretudo, do médico-cidadão. Sabendo que a missão das Escolas Médicas passa por formar médicos e investigadores e não ignorando que tradicionalmente os estudantes optam pela via clínica, sobram-nos algumas perguntas: Que tipo de médicos quer a nossa Escola Médica formar? Será exigível que todos os estudantes durante o seu curso tenham algum tipo de contacto com a investigação? Que competências científicas mínimas devem ser exigidas a um médico recémformado? Médicos com boas bases de Investigação serão necessariamente melhores clínicos? MODELOS DE INTRODUÇÃO À METODOLOGIA E PRINCÍPIOS CIENTÍFICOS: PERSPETIVA CURRICULAR

Não existe um consenso acerca do modelo ideal de exposição dos estudantes aos princípios científicos e à metodologia científica. Pensando apenas em exemplos nacionais, para simplificar a reflexão, diria que as Escolas Médicas

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portuguesas optam por uma das seguintes abordagens – distribuição de áreas disciplinares desta temática de uma forma longitudinal ao longo do currículo; integração da metodologia nas próprias unidades curriculares convencionais; criação de módulos específicos pontuais obrigatórios; criação de módulos “optativos” para os estudantes especialmente motivados; agilização das vias de comunicação entre os estudantes e os laboratórios/institutos com programas pontuais mais ou menos estruturados. Não existindo, à semelhança de outras áreas da educação médica, modelos inequivocamente superiores, a decisão entre qualquer uma destas metodologias deverá ser política e necessariamente experimental, no seu contexto específico. Assim, caberá a cada Escola Médica definir que tipo de médicos quer formar. Por Escola Médica entende-se toda a sua Comunidade Académica, estudantes e professores e, felizmente, existem iniciativas que os estudantes poderão tomar, como explicarei mais à frente. A minha visão pessoal, e sendo este (nem mais nem menos do que) um artigo de opinião, é a de que a FMUL deve aspirar a formar médicos com sólidas bases científicas, preparados para o exercício da profissão na contemporaneidade e capazes de contribuir para o desenvolvimento do conhecimento médico. Deverá ter uma “oferta científica” diversificada, com currículo obrigatório longitudinal que dote os estudantes das capacidades e conceitos básicos para o desenvolvimento de um projeto científico original, com o objetivo de, via Trabalho Final de Mestrado, gerar material de relevância científica, publicável, independentemente da confirmação da hipótese testada/ dos resultados positivos ou negativos. Considero ainda que deverá ser dada a oportunidade aos estudantes especialmente vocacionados de utilizarem o seu Tronco Optativo para o aprofundamento científico. Se parece difícil conceptualizar Modelos de Educação nestas

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áreas, deixo, a título de exemplo, a Tabela seguinte, que relata as atividades extracurriculares de um curso opcional de 60 horas, de Introdução à Ciência, oferecido aos estudantes da Universidade de São Paulo pelo Departamento de Bioquímica, que apresenta exercícios simples de educação para a ciência com resultados promissores no desenvolvimento dos estudantes, conforme medido no estudo de onde retiro a tabela[2]. A Escola Médica só ganhará com o incentivo à produção científica dos seus estudantes. De uma perspetiva absolutamente pragmática, é hoje claro que o aumento da investigação por parte dos estudantes se traduz num significativo aumento do


«Cada um tem um papel a desempenhar. Se cabe à Escola Médica educar para publicar, depende do estudante, num segundo tempo, publicar para se educar.» volume de publicações da instituição a que pertencem[3]. Adicionalmente, na perspetiva do estudante, é igualmente vantajoso que a sua Escola Médica assuma uma política de incentivo à publicação científica, uma vez que está bem estabelecido que os estudantes que se envolvem em projetos de investigação potenciam, em comparação aos restantes, as suas capacidades de formulação de hipóteses, apreciação crítica e revisão da literatura[4], que no futuro lhes serão essenciais, por exemplo assim que iniciem o seu Internato Médico. INICIATIVAS DE ESTUDANTES PARA A CIÊNCIA

Também no campo dos estudantes e das associações de estudantes existem iniciativas relevantes. A título de exemplo, a UK Medical Students Association (UKMSA) fornece, no seu site, uma plataforma onde os estudantes com vontade de desenvolver um projeto de inves-

tigação se podem inscrever, registando a sua área de interesse, o que permite, entre outras possibilidades, que investigadores seniores e os laboratórios interessados consigam, por essa via, chegar a esses estudantes. Adicionalmente, a mesma UKMSA oferece aconselhamento aos estudantes no sentido de os ajudar a transformar projetos desenvolvidos durante o seu percurso na Escola Médica em material publicável. Quando necessário, os próprios estudantes individualmente devem assumir a iniciativa de se dirigir às equipas de investigação com sugestões de projetos científicos concretos, com esta abordagem a colher bastante recetividade pelas equipas de investigação[3]. Adicionalmente, está estabelecido que a maioria dos estudantes envolvidos em programas de investigação durante os períodos de pausa letiva se apresentam mais disponíveis depois para a publicação ou apresentação dos seus projetos

científicos[5]. Cada um tem um papel a desempenhar. Se cabe à Escola Médica educar para publicar, depende do estudante, num segundo tempo, publicar para se educar. No fim, bem no fim, é fácil. Ganhamos todos: a sociedade, os doentes, a Escola Médica e os estudantes.

REFERÊNCIAS 1. Stringer, M.D. and O. Ahmadi, Famous discoveries by medical students. ANZ J Surg, 2009. 79(12): p. 901-8. 2. De Avila, P., Jr. and B.B. Torres, Introducing undergraduate students to science. Biochem Mol Biol Educ, 2010. 38(2): p. 70-8. 3. Mabvuure, N.T., Twelve tips for introducing students to research and publishing: a medical student’s perspective. Med Teach, 2012. 34(9): p. 705-9. 4. Houlden, R.L., et al., Medical students’ perceptions of an undergraduate research elective. Med Teach, 2004. 26(7): p. 659-61. 5.Solomon, S.S., et al., Impact of medical student research in the development of physician-scientists. J Investig Med, 2003. 51(3): p. 149-56.

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AUTORA

Bárbara Saraiva

III Dia da Pedagogia e Educação Médica

N

o passado dia 23 de novembro, abriram-se novos horizontes em prol de uma cultura pedagógica, que vem a ser implementada, aos poucos, na nossa Escola. Na III Edição do Dia da Pedagogia e Educação Médica, vulgo Dia PEM, vi serem discutidos ativa e proficuamente temas atuais desta área, não só dentro de círculos de alunos ou de professores, como é habitual, mas também entre discentes e docentes em conjunto, em busca do melhor caminho para os anos vindouros da nossa Escola. Nos discursos iniciais, fizeram-se ouvir as principais preocupações dos estudantes tanto a nível nacional como as que dizem respeito à fase decisiva que a Faculdade atravessa, com o merecido destaque para a vívida necessidade de ser desenhado um plano para a tão aclamada Reforma do Ensino Clínico, que por agora nos leva a tomar uma atitude um tanto expectante. Para quê mudar? Mudar, para quê? Como mudar? Pelas palavras do Prof. Doutor Luís Castro, Vice-Presidente do Instituto Superior Técnico, deu-se início ao I painel “Promover a Mudança nas Escolas Médicas”. Abriram-se, assim, as portas para um renovado olhar sobre a Avaliação do Ensino e para o investimento institucional nesta área, tendo ficado clara a importância que é para uma Escola valorizar as críticas e sugestões construtivas dos estudantes. Afinal, o melhor médico não é, necessariamente, o melhor pedagogo, mas poderá indubitavelmente sê-lo se centralizar as suas preocupações nas inquietações dos que com ele procuram aprender. O estudante pode, de facto, ser ativo na construção da sua Escola e isso mesmo frisou o Dr. Pedro Diogo, atual Interno do Ano Comum no Hospital São João, acrescentando: “Não advoguemos ignorância”. Numa apresentação da qual pouco espaço para dúvidas restou, tentou consciencializar-nos para a imperativa “urgência na mudança” nas Escolas Médicas e procurou provar como os dé-

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fices na nossa educação têm um preocupante impacto nos cuidados oferecidos à população – no único estudo realizado em Portugal, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, com o objetivo de avaliar a eficácia do sistema educativo nacional, e no qual se obtiveram respostas de antigos estudantes de várias Faculdades, pode ler-se que os médicos recém-licenciados não estão completamente preparados para os desafios futuros da prática clínica. We expect too much of the student and we try to teach him too much. Give him good methods and a proper point of view and all other things will be added, as his experience grows. (W. Osler) Ao longo de vários momentos do dia foi também percetível a vastidão de métodos de ensino disponíveis em educação médica, ficando por explicar a razão pela qual os métodos baseados em sessão plenária tendem para a eternidade, mesmo quando a evidência atual o contradiz. Foi abordado, em particular, no II painel “Inovação em Pedagogia Médica”, o método de Flipped Classroom pelo Eng.º Pedro Fernandes, Investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência, e a Dr.ª Juliana Sá, docente no Departamento de Ciências Médicas da Universidade da Beira Interior, mostrou o quão enriquecedora poderá ser a Educação por pares. Ainda no seguimento desta temática, e pela primeira vez numa edição do Dia PEM, contámos com a presença de um orador estrangeiro, Professor Richard

Fuller, diretor do programa de Educação Médica na Universidade de Leeds, que começou por nos deixar um desafio inicial: “Begin challenging your own assumptions. Your assumptions are your windows on the world. Scrub them off every once in a while, or the light won’t come in.” (Alan Alda). E é aqui mesmo que se revela a importância de momentos como o dia PEM: parar para refletir. Não só na necessidade de procurar um ensino mais centrado no aluno e de o validar, mas também na urgência de avaliar a aprendizagem dos alunos com os melhores métodos de avaliação disponíveis, que sejam tão abrangentes quanto os de ensino. Fraude académica, consciencialização para problemas de ética médica, metas para o desenvolvimento pessoal de um aluno, como dar feedback e como trabalhar em equipa, foram ainda alguns dos temas que deram azo a discussão ao longo do restante dia. O que nos falta? O que queremos para a FMUL? Para onde caminhamos? São os desafios que este Dia PEM deixa à FMUL. Celebrou-se assim, em uníssono, a Arte de Ensinar e a Arte da Medicina, bem como a permanente mutabilidade de ambas que, numa Escola Médica, deverão andar de mãos dadas e jamais deixar-nos indiferentes. São dias como este que nos mostram o quanto esta Faculdade já alcançou, mas também novas metas a atingir na educação dos estudantes para que um dia formemos, numa Faculdade de Excelência, os melhores futuros jovens médicos do país.


medicina intensiva


CRÓNICA

medicina intensiva

Dum spiro spero AUTORA Cláudia Silva

É

OFICIAL. Foi precisamente no dia 22 de Abril de 2016 que foi publicada, em Diário da República, a Portaria 103/2016, onde se anunciou que a Medicina Intensiva deixou de ser apenas uma subespecialidade para se transformar numa verdadeira especialidade primária. Está então aberto um novo capítulo na história da Medicina Intensiva e concebido o Mapa Nacional de Vagas, que tornará viável a admissão de 26 internos de formação específica nesta área a partir de 2016/2017, consagrando a colaboração entre os vários especialistas e garantindo a formação de quadros, a sua creditação e distribuição por todo o país. Mas afinal, o que significa Medicina Intensiva? Definida como uma “área multidisciplinar e diferenciada das Ciências Médicas que aborda especificamente a prevenção, diagnóstico e tratamento de situações de doença aguda potencialmente reversíveis, em doentes que apresentam falência de uma ou mais funções vitais, eminente(s) ou estabelecida(s)”, a Medicina Intensiva funciona quase como um suporte avançado de vida, essencial para quaisquer doentes em estado crítico,

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intervindo de forma decisiva na sua possibilidade de sobrevivência. Nascida nos anos 50, numa sucessão de eventos que englobou a epidemia da poliomielite, o aparecimento da cirurgia cardíaca e a assistência especial a doentes cardíacos no pós-operatório de grandes cirurgias (com elevado risco de mortalidade), a Medicina Intensiva edificou-se um pouco por toda a parte e foi-se fortalecendo ao longo de décadas, até se tornar naquilo que é actualmente. Até há alguns anos atrás, em Portugal existia um sistema de formação de médicos Intensivistas que tinha como alicerce um programa de formação complementar de 2 a 5 anos em serviços de Medicina Intensiva, apenas após a realização prévia de uma “especialidade-base”. A subespecialidade de Medicina Intensiva sempre foi bastante procurada por especialistas de Medicina Interna, Cirurgia e Anestesiologia.

O primeiro caminho legislativo para um programa formativo de Medicina Intensiva resultou da publicação, em 1989, por parte do Ministério da Saúde, de normas capazes de regulamentar o Ciclo de Estudos em Cuidados Intensivos (Despacho N.º 276/89 de 28 de Julho). Entretanto, a Ordem dos Médicos aprovou, em Maio de 2003, o “Documento Orientador da Formação em Medicina Intensiva: Critérios de Idoneidade e de Formação em Medicina Intensiva”, revisto posteriormente em 2007 (e determinando um Exame Nacional Obrigatório). Anos mais tarde, em Março de 2014, o Conselho Nacional Executivo procurou rever os critérios de admissão na subespecialidade, com o intuito de a estender a todas as especialidades. Neste contexto, foi elaborado um programa de formação específica pela Direcção do Colégio de Medicina Intensiva com a duração de 60 meses e que estabele-


ceu objectivos globais de cada área e estágio, bem como os métodos de avaliação adequados. Foi com grande satisfação que a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos (SPCI) recebeu esta notícia e, citando o Presidente da SPCI, Dr. Antero Fernandes: “trata-se de 15 anos de luta dura, muitas vezes pouco bonita, mas EFICAZ.” Anexa-se agora um excerto da informação mais relevante que foi publicada em Diário da República – In Portaria 103/2016: “A formação específica no Internato Médico de Medicina Intensiva tem a duração de 60 meses e é antecedida por uma formação genérica, partilhada por todas as especialidades, designada por Ano Comum: A. Ano Comum: 1) Duração: 12 meses. 2) Blocos formativos e sua duração: a) Medicina Interna – 3 meses b) Formação em estágio da Área Médica – 1 mês c) Pediatria geral/Área pediátrica – 2 meses d) Formação em estágio opcional – 1 mês e) Cirurgia geral/Área cirúrgica – 2 meses f) Cuidados de saúde primários – 3 meses 3) Precedência: A frequência, com aproveitamento de todos os blocos formativos do Ano Comum, é condição obrigatória para que o médico Interno inicie a formação específica. B. Formação Específica: 1) Duração total da formação específica:

60 meses. 2)Estágios: 2.1. Primeiro ano: Estágio em Medicina Interna – 12 meses. Aprendizagem centrada na prestação de cuidados assistenciais em enfermaria de Medicina Interna e Urgência de Medicina. 2.2. Segundo ano – 12 meses. 2.2.1. Estágio em Anestesiologia – 6 meses (primeiro semestre). Aprendizagem centrada nos cuidados pré, intra e pós-operatórios com especial enfoque no manuseamento da via aérea, monitorização, abordagem/tratamento da dor aguda ou agudizada, técnicas de anestesia. 2.2.2. Estágio em Medicina Intensiva – 6 meses (segundo semestre). Aquisição de competências conducentes à autonomia progressiva para o exercício de medicina intensiva tutelada. 2.2.3. Sequência. Embora seja admissível uma reorganização temporal dos estágios previstos em 2.1. e 2.2. de acordo com a logística local, é obrigatório que o interno tenha completado os estágios de Medicina Interna e de Anestesiologia nos primeiros 18 meses do internato de formação específica. 2.3. Terceiro e quarto ano – 24 meses. 2.3.1. Estágio em Medicina Intensiva – 12 meses. 2.3.2. Estágio em Ecocardiografia – 3 meses. 2.3.3. Estágio em Unidade Neurocrítica – 3 meses. 2.3.4. Estágio em Broncofibroscopia – 2

meses. 2.3.5. Estágio em Sala de Emergência – 1 mês. 2.3.6. Estágio Opcional – 3 meses. 2.3.7. Competências complementares: Até ao final do 4.º ano, deve ser adquirida competência em “Focused Assessment with Sonography for Trauma” (FAST), idealmente Extended FAST. 2.3.8. Sequência dos estágios: A sequência dos estágios a realizar durante o 3.º e 4.º ano do internato pode ser diferente da expressa, de acordo com a logística disponível nos diversos locais de formação. Preconiza-se que o Estágio em Medicina Intensiva em serviço com idoneidade total seja o mais continuado possível, idealmente durante 12 meses ininterruptos. 2.4. Quinto ano: Estágio em Medicina Intensiva – 12 meses.” Durante os estágios de Medicina Intensiva, os Internos de Especialidade devem ter formação em áreas variadas, tais como: a abordagem do doente agudo, a reanimação cardio-pulmonar e os cuidados a prestar após a reanimação, a priorização de intervenções, bem como o reconhecimento e o tratamento de inúmeras disfunções (hepática aguda, pulmonar aguda, SIRS, sépsis, choque, entre outras). Alguns dos procedimentos práticos mais importantes são: administração de oxigénio, abordagem da via aérea em situação emergente, entubação endotraqueal, traqueostomia, toracocentese e colocação de dreno

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pleural, cateterização (venosa e arterial), ventilação mecânica, punção lombar e colocação de sonda nasogástrica. É preciso saber lidar com problemas colossais, desde falências respiratórias, instabilidade hemodinâmica e agressão neurológica severa até à insuficiência renal aguda e distúrbios endócrinos ou metabólicos que possam ameaçar a vida do doente. Deve aprender-se, inclusivamente, práticas de prevenção e controlo de infecções graves, overdoses e envenenamentos. Será mais vantajoso uma Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) coordenada por médicos de cuidados primários ou coordenada por médicos intensivistas? Em primeiro lugar, a abordagem por médicos de cuidados primários tem vários inconvenientes, destacando-se a pouca experiência para lidar com doentes em estado crítico, além de não poderem dedicar grande quantidade de tempo à monitorização e manutenção dos doentes das UCIs, pois têm muitos mais doentes para ver ao longo do dia, seja no seu consultório ou no hospital. Por conseguinte, correm o risco de prestar cuidados fragmentados e pobremente coordenados. Por outro lado, os Intensivistas estão sempre presentes nas UCIs, evitando complicações que surgem rapidamente e foram treinados para lidar, permita-se o pleonasmo, com as intricadas patologias dos “doentes mais doentes”. Estudos após estudos comprovam a superioridade das UCIs lideradas por médicos Intensivistas e indicam também que uma das maiores vantagens das UCIs é, efectivamente, o bom ambiente de equipa que se estabelece, calmo e organizado, onde os profissionais se entreajudam. Em Portugal, mais de 150 Serviços Hospitalares apresentam Unidades de Cuidados Intensivos (UCIs). No caso do Hospital Lusíadas, em Lisboa, a UCI associa-se com um Bloco Operatório extremamente

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diferenciado para concretizar cirurgias complexas, interligando-se ainda com um Serviço de Urgência que está disponível 24 horas por dia (com as vertentes médica e cirúrgica), onde há doentes com quadros clínicos indubitavelmente críticos. Esta UCI tem 12 camas, bem como um equipamento de monitorização e suporte das funções vitais. Não obstante, no nosso país, as assimetrias geográficas permanecem evidentes (há regiões claramente carenciadas de médicos Intensivistas, sendo os doentes os principais prejudicados, na medida em que não há equidade no acesso aos cuidados de saúde). Isto porque, até à data, se tem registado uma escassa quantidade de médicos Intensivistas, o que foi mais um ponto a favor da criação da especialidade de Medicina Intensiva tão cedo quanto possível. Dito isto, qual será o preço de manter um doente vivo? Hoje em dia, estima-se que as UCIs constituam cerca de 13,4% dos custos hospitalares totais, tendo aumentado o número de doentes críticos, com necessidade de internamento. Na Europa, em média, são ventilados entre 990.000 a 1.500.000 doentes por ano, por doença crítica, nas UCIs. A senescência crescente na população e a tendência para doenças como a diabetes mellitus e a hipertensão arterial aumentaram, exponencialmente, a necessidade de uma Medicina Intensiva e cada vez mais personalizada. Os Cuidados Intensivos destinam-se, maioritariamente, a doentes cujo estado geral tenha potencial de ser revertido e que tenham uma probabilidade, mesmo que ínfima, de sobreviver. Porém, estando tantos doentes perto de se cruzar com a morte, é praticamente impossível prever o resultado desta equação e as mortes nas UCIs são um fenómeno frequente. Assim sendo, a principal finalidade de um tratamento nos Cuidados Intensivos é, muitas vezes, ter mais tempo para resolver a situação aguda do doente, como

se estivéssemos numa prova contrarelógio, num local onde “o pessimismo é uma profecia que se cumpre”, uma citação do Professor Doutor João Lobo Antunes que parece mais do que adequada nestas circunstâncias. Num ensaio sublime de Fernando Gil intitulado: “Mors certa, Hora incerta”, aborda-se precisamente o facto de a morte ser inexorável, num mundo onde o tempo não tem a mesma velocidade para todos os seres humanos. Mas e então, até que ponto os estudantes de Medicina estão interessados nesta especialidade? A verdade é que várias investigações demonstraram que alguns receiam a panóplia de factores de stress a que os médicos estão sujeitos nas UCIs e que podem até aumentar, de certo modo, a predisposição para surgir um síndrome de burnout. Adicionalmente, outro factor considerado pertinente são as eventuais horas excessivas de trabalho. Existe uma simbiose incontestável entre a Medicina Intensiva de adultos e a pediátrica, porém estas são distintas uma da outra, uma vez que a especialidade de Medicina Intensiva não contempla a Pediatria. Assim, os Cuidados Intensivos Pediátricos são uma subespecialidade da Pediatria, que forma os médicos para terem treino e experiência avançados no tratamento de crianças com patologias associadas a quadros clínicos críticos, fornecendo-lhes todos os cuidados especiais de que precisam. E quais são os critérios de admissão na subespecialidade de Cuidados Intensivos Pediátricos? Antes de mais, é necessária uma “apresentação curricular que demonstre o exercício profissional efectivo e contínuo por mais de 3 anos, disponibilizando pelo menos 75% do horário semanal numa Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos polivalente”. É também, fulcral, “ter actividade de formação médica de actualização ou aperfeiçoamento de competências, em diferentes áreas dos cuidados intensivos


pediátricos, nomeadamente em cursos de suporte avançado de vida pediátrico, trauma, diálise, ventilação mecânica, ou outros relevantes para a subespecialidade, ministradas por organismo certificado ou acreditado.” De modo a esclarecer múltiplas interrogações relativas aos Cuidados Intensivos Pediátricos, colocaram-se algumas questões ao Dr. Francisco Abecasis (Especialista em Pediatria e Subespecialista em Cuidados Intensivos Pediátricos, no Centro Hospitalar Lisboa Norte): Consegue dar exemplos de situações em que o Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos tenha contribuído de forma decisiva para a vida dos doentes? Na nossa unidade, são internadas cerca de 450 crianças por ano. Cerca de metade são pós-operatórios, que exigem um recobro mais complexo e a outra metade são doentes agudos não programados. São estes os doentes que representam um desafio maior e onde os cuidados intensivos podem fazer a diferença. Lembro-me de vários casos em que os cuidados intensivos foram determinantes para a sobrevivência das crianças. Talvez os casos mais marcantes sejam aqueles em que as crianças têm uma insuficiência respiratória ou cardíaca refractárias à terapêutica convencional e, quando já não há mais nada a oferecer, colocamos num sistema de circulação extra-corporal (Extra Corporeal Membrane Oxygenation – ECMO), que permite salvar a vida da criança. Mal se liga a criança ao sistema de ECMO parece que estamos a injectar-lhe vida através dos vasos sanguíneos e, em poucos minutos, um corpo moribundo ganha outra cor e vitalidade. Tratámos 38 crianças e recém-nascidos com este sistema nos últimos anos. Como funciona a Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos, de um modo geral? A unidade tem 8 camas de cuidados intensivos, sendo que uma é de isolamento. A equipa é constituída por 5 pediatras a tempo inteiro e há mais 3

pediatras com outras subespecialidades que fazem urgências na unidade. Em relação aos enfermeiros, há um rácio mínimo de 1:2 e nos doentes em ECMO 1:1. Em regra geral, quais as patologias com que se depara mais frequentemente nos Cuidados Intensivos Pediátricos? E quais os procedimentos ou intervenções mais comuns? As patologias mais frequentes são do foro respiratório, como pneumonia, bronquiolite ou tosse convulsa, do foro neurológico como convulsões ou infecções do SNC, sépsis e traumatismos crânio-encefálicos. As intervenções mais comuns são: ventilação assistida invasiva e não invasiva, colocação de cateteres venosos centrais, linhas arteriais, drenos torácicos, ecocardiograma, Doppler transcraniano, hemodiafiltração veno-venosa contínua e ECMO. Qual é a sua rotina diária de trabalho, em contexto de Cuidados Intensivos Pediátricos? Após a reunião do Departamento de Pediatria às 8:30, vou para a UCIPed, onde recebemos o banco entre as 9 e as 10h. Habitualmente, ficam dois assistentes responsáveis pelos doentes em cada dia. Ao longo do dia, posso desempenhar diferentes funções consoante a organização da unidade, como cuidados aos doentes, orientação dos internos da especialidade, dar sessões de formação aos internos, assegurar o transporte inter-hospitalar de doentes críticos (é um sistema de transporte sediado no Hospital de Santa Maria e que entre as 8 e as 16h é assegurado por um dos assistentes da UCIPed), participar nas sessões clínicas do Departamento, entre outras actividades. Às 15h, é feita a passagem dos doentes para a equipa que entra de banco e que é constituída por um assistente e um interno da especialidade. Independentemente de estarmos a falar de Cuidados Intensivos em contexto de adultos ou crianças, es-

tes culminam sempre num trabalho de equipa formada por vários profissionais (enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais, fisioterapeutas e médicos), em completa harmonia. Existem componentes-chave para poder desempenhar bem a profissão de médico Intensivista: é preciso ter presença, experiência, aptidão técnica, treino, conhecimento, partilha e capacidade de trabalhar em equipa e ouvir os outros, além de se ouvir a si mesmo. Os médicos Intensivistas conseguem assimilar e integrar grandes quantidades de dados complexos (colhidos no exame objectivo e anamnese), traçar planos de acção rápidos e decisivos face a várias incertezas, o que é fundamental porque uma abordagem precoce pode mudar absolutamente o rumo da história. Além disso, comportam-se, frequentemente, como “multitaskers”, executando imensas acções em simultâneo, quando pressionados em termos de tempo e intensidade do trabalho, aceitando a imprevisibilidade inerente à Medicina Intensiva. É fácil reconhecer o quão difícil é tomar uma decisão que envolva a vida humana, e a evolução tecnológica aliada à Medicina Intensiva, com a utilização de inúmeros monitores, abarca o risco de poder vir a “desumanizar” a prestação de cuidados aos doentes. É precisamente aqui que emerge um problema quase paradoxal: a tecnologia que tem por alvo a melhoria do estado do doente pode originar obstáculos ao bem-estar do mesmo. Como dizia o Professor Jean-Louis Vincent: “there are far too many monitors around the patient’s bed that don’t talk to each other.” É imperativo potenciar a humanização dos cuidados intensivos, em todas as suas vertentes, e pensar na pessoa antes de se pensar na doença. “Enquanto respirar, haverá esperança” é o título deste artigo e é também um lema compatível com a Medicina Intensiva, uma especialidade com um futuro mais que promissor e onde o património mais precioso são as vidas que se salvam todos os dias.

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crónica

O não-lugar AUTORA

Pilar Burillo Simões

A

ENTREVISTA FOI EXCRUCIANTE. Modificações mínimas na expressão facial. Monossílabos. Frases curtas e silêncios longos entrecortados apenas pelo som das unhas compridas e sujas por entre a barba desalinhada. Embotamento emocional. Em traços gerais, o perfeito modelo estereotipado de um doente psiquiátrico. Tal como esperávamos, ouvimos mais palavras do assistente que do paciente, desenhando um quadro que, aparentemente, é bastante típico: o estigma face aos doentes com patologia psiquiátrica moderada a grave acaba em última instância por cortar os fios que os ligam à sociedade. Nas zonas urbanas estas pessoas deslocam-se para locais movimentados como o Aeroporto de Lisboa. Nas zonas rurais têm tendência para serem encontrados em grutas ou florestas. Em ambas as situações procuram o anonimato, a indiferença. Até a indiferença sobre si próprios, sobre o que sentem. Como se ganhassem um refúgio ao perderem tudo. Chamam-lhe o não-lugar. As palavras ecoaram de forma estranha em mim. Um bocadinho como quando uma criança aprende a nomear um brinquedo que lhe é familiar. E fazia sentido que assim fosse. Em última instância, quantos de nós não nos teremos sentido, alguma vez, atraídos por este conceito? Quantos de nós não chegámos a persegui-lo de forma consciente? Por incrível que me pudesse parecer de início, eu e aquele homem já tínhamos tido brinquedos em comum. Ainda tínhamos de vez em quando. E , com toda a probabilidade, eu não era a única. A barreira entre nós acabava de se esbater irremediavelmente, irreversivel-

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mente. Sem que eu o pudesse impedir, várias imagens assaltaram-me o espírito. Noites de Inverno em que a estrada está deserta, em que o pé pesa mais do que o normal sobre o acelerador e as janelas estão abertas, apesar do termómetro dizer que estão quatro graus. Fins de tarde em que se corre um bocadinho mais depressa do que é costume e a música nos nossos ouvidos não parece estar alta o suficiente. Madrugadas em que se escreve para expulsar da cabeça os monstros que não querem sair. Estabelecemos preconceitos sobre os outros, exigências sobre nós próprios. Passamos grande parte do nosso tempo a construir pressões, prisões. E mais do que uma vez sofremos o impulso incontrolável de nos libertarmos de tudo, até de nós próprios. Felizmente, na maioria de nós esta atração pelo vazio, pelo “ser nada”, é uma sensação temporária. A sociedade dá-lhe outros nomes e considera-a não só aceitável, como a promove. A capacidade de “desligar” é ,aliás, sobejamente valorizada nos dias de hoje. Não obstante, há uma questão que se impõe quando olhamos para estas pessoas: que tipo de sociedade é aquela que consegue forçar alguns dos seus membros

(porque às vezes nos esquecemos que os doentes psiquiátricos o são) a quererem “tornar-se nada” de forma permanente? Até que ponto somos nós mesmos a causa da fragmentação do tecido que nos une? Talvez tenhamos privado estes doentes de todos os outros brinquedos, todos os outros aspectos do suporte social a que acedemos tão facilmente. Talvez a chave não seja muito diferente do que fizemos naquela entrevista. Sorrir, ouvir, conversar. Partilhar os outros brinquedos que temos e esperar que os monstros deles se vão embora. Os que me incomodavam acabaram de sair. Espero que não haja demasiados dentro das cabeças dos que esta noite vagueiam, perdidos pelo Aeroporto.


«Journalism largely consists of saying 'Lord Jones is Dead' to people who never knew that Lord Jones was alive.» Gilbert K. Chesterton

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