A MÁQUINA
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FICHA TÉCNICA
EDITORIAL
COORDENAÇÃO GERAL
Com o intuito de celebrar a vigésima edição da Ressonância, a Equipa Editorial decidiu aprimorar o conceito, apostando na imagem e na qualidade da revista, tornando-a mais apelativa à leitura e mantendo a pertinência e atualidade dos conteúdos científicos abordados .
Ana Brochado José Durão Manuel Morais
REDAÇÃO
Ana Rita Medeiros Ana Rita Mira Beatriz Leal Carolina Alves Catarina Paias Gouveia Eduardo Bento Inês de Sousa Miranda Inês Pereira Joana Cabrita João Gramaça José Durão Miguel Esperança Martins Patrícia Pires Rita Matias Sebastião Martins Sérgio Bronze Vasco Peixoto
DESIGN GRÁFICO Manuel Morais
Agora que a Ressonância deu um passo rumo a um futuro diferente, expandindo-se para o mundo online através do site da AEFML e da sua página do Facebook, trazemos-te uma revista completamente reformulada de raiz, de forma a poder ir ao encontro dos teus interesses. Somos uma revista elaborada por estudantes, com a missão de te alertar para os assuntos daquele que vai ser o nosso quotidiano enquanto futuros médicos. Queremos ser um ponto de referência, uma plataforma de informação útil e fidedigna, onde poderás esclarecer as tuas dúvidas e até descobrir algumas curiosidades, nas mais diversas temáticas. Twenty years from now you will be more disappointed by the things you didn’t do than by the the ones you did do. So throw off the bowlines. Sail away from the safe harbor. Catch the trade winds in your sails. Explore. Dream. Discover. (Mark Twain)
CAPA
Manuel Morais
ILUSTRAÇÕES
Catarina Paias Gouveia
UMA INICIATIVA DE
IMPRESSÃO
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt
PROPRIEDADE
Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 200 exemplares
2 - RESSONÂNCIA
COM O APOIO DE
ÍNDICE
MENSAGEM DA AEFML Caro Colega,
4 CRÓNICA
A Migração da Coruja Devia estar morto
6 2014 ANO EUROPEU DO CÉREBRO
António Egas Moniz - Um Nobel Controverso Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina 2014 O Estranho Mundo de Oliver Sacks Musicoterapia nas Doenças Mentais Wall of Fame Human Brain Project
18 TECNOLOGIA
Interface Cérebro-Máquina Nanotecnologia em Neurociências
20 O VÍRUS ÉBOLA
História do Vírus Estatísticas Comparativas Os Media e o Impacto PolíticoSocial
26 GRANDE ENTREVISTA
A Ricardo Mexia
34 CRÓNICA Arquivo
Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.
É com muito gosto que te apresentamos a nova edição da Revista Ressonância! Como sabes, esta é fruto da dedicação e trabalho de vários colegas teus. Este semestre debruçamo-nos com particular atenção sobre um dos campos mais estimulantes da medicina da atualidade - a Neurociência! É frequente na comunidade médica o gosto pela arte e cultura, e em particular pela escrita. Os teus colegas não são exceção! É assim através de uma escrita independente, informativa e bem-humorada, que ficarás a saber mais sobre o único prémio Nobel da medicina portuguesa, o Prof. Doutor Egas Moniz, sobre o trabalho desenvolvido recentemente pela Fundação Champalimaud na Neurologia e até sobre os detalhes mais curiosos da vida de Oliver Sacks, neurologista e autor do famoso livro The man who mistook his wife for a hat. O ano de 2014 foi considerado o Ano Europeu do Cérebro, o que explica a temática escolhida. Contudo não ficámos indiferentes aos acontecimentos recentes que têm testado os limites da medicina a uma escala global. O presente ano ficará marcado pelo surto do vírus do Ébola que tem afetado com particular importância os países da África Ocidental. Neste contexto, e porque cabe aos médicos o dever de informar corretamente a população, dedicamos parte da revista a explorar esta temática, para além das suas características mais referidas. Como está este vírus a influenciar tomadas de posição e decisões políticas? É desejável o efeito mediático que se tem gerado à volta deste vírus? O que pensa o especialista Dr. Ricardo Mexia sobre tudo isto? Diz Fernando Pessoa: Sou do tamanho do que vejo. Queremos com esta edição inquietar-te, mostrar-te novas perspetivas, informar-te estimulando o teu espírito crítico. Porque ver mais longe é uma escolha. Sê interessado, torna-te interessante! Contamos contigo para a próxima edição da Ressonância! Com os meus melhores cumprimentos, Tomás Neto da Silva Presidente da Direção da AEFML 2014-2015
A MÁQUINA
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CRÓNICA
A MIGRAÇÃO DA CORUJA José Durão Lembro-me muito de Nampula, sabe?, exclamou a velha de repente,
o meu sobrinho veio cá com a mulher e eu não sabia quem ela era.
subitamente perdida em polaroids de negros e de marfins, de ardósia
Imagine, uma mulher que eu conheço há mais de vinte anos. E
e giz, de noite e dia, se é que ainda os consegue distinguir. Soube-os a
uma mulher com quase oitenta e seis que não se lembra, que não
todos, em tempos, todas as noites e todos os dias, na ponta da língua,
sabe, que já foi nau portentosa e sagaz, riquexó e locomotiva, avio-
nem um escapava, continuou ela. De Nampula e do resto. Lá do alto,
neta e submarino, elefante indiano e balão de ar quente, foi o que
via as estepes em xadrez, cortadas por trilhos e estradas de distâncias
quis ser e como quis ser, foi daqui à Lua e nunca se esqueceu do
que ninguém conseguia medir, se feitas por homem ou por besta, pou-
caminho, regressando de cada vez que abria um piano, os de-
co importa para o caso, nesta idade já são uma e a mesma coisa. Via
dos cumprindo hábil e inconscientemente o seu fado, e que agora
as argilas e os ritos, os pós e as ervas, as chamas e as macumbas,
nem as claves destrinça nas pautas, nem ela sabe onde as guar-
os espíritos e as luas, os tempos e os sóis. Mas lembro-me muito de
dou ou à chave do piano, nem nada disso interessaria de qualquer
Nampula, sabe? A velha interrompeu-se, as mãos a ameaçar um tre-
forma porque nem a mão direita sabe onde deixou a esquerda.
mor e o olhar a deslizar para o limbo. E o que fazia mais na altura?,
Eu podia apenas ouvir transfigurado. E pior que tudo isso, con-
perguntei na ânsia de que se mantivesse comigo, e que pareceu resul-
tinuou ela, o espelho está de mal comigo. Não me conhece,
tar visto que ela acordou com um estremecimento: Contava as gotas
não me apanha, não me concebe. Portanto, esqueci-me tam-
do Amazonas, quase sempre em lamacentas fileiras com séculos de
bém de mim. Sinto-me e a estes tubos, estas barras e estes len-
andamento, excepto quando um colossal arapaima se decidia a projec-
çóis, sei que estou aqui. Mas não me sei para além do que me
tar-se das turbulentas profundidades, como um sinal de que passára-
lembro. Esta e aquela viagem sim, mas não o todo, não a jornada
mos a fronteira de um reino que não é o nosso. Lembro-me é muito de
da partida à meta, se da meta me aperceber quando a cruzar.
Nampula, sabe?, e ficou mais uma vez perdida em reminiscências, os mapas e as cidades a pender esfarrapados dos lábios finos, a mente certamente preenchida por imagens da escola, do posto dos correios e do colega Inácio. Lembra-se de mais alguma coisa?, experimentei eu, já sem esperança de resposta, mas olha, um arrepio e lá voltou a falar: O frio também, assegurou-me sem se virar para mim, As torres espira-
«Sinto-me e a estes tubos, estas barras e estes lençóis, sei que estou aqui. Mas não me sei para além do que me lembro. Esta e aquela viagem sim, mas não o todo, não a jornada da partida à meta, se da meta me aperceber quando a cruzar»
ladas do Kremlin, como caudas torcidas de dragões chineses, as renas infatigáveis da Lapónia, que por esta altura já nem se devem lembrar
Parou por um momento e fixou-se em mim. Vi as pálpebras afasta-
se puxam o Natal, se os sonhos, se os contos ou se simplesmente o
rem-se e uma imensidão de tudo encheu o quarto, o espaço infini-
mundo, e o arbeit macht frei marcado a ferro e fogo, que é somente
to diante de mim, as demandas de uma vida cristalizadas em relu-
do mais gelidamente cruel que eu vi na vida. Fez uma pausa. Mas
zentes diamantes, brilhando intensamente no límpido azul-escuro
lembro-me muito de Nampula, sabe? E calou-se por longos momentos.
daqueles olhos que já não podiam fazer mais que reflectir, dois vas-
Sem coragem para insistir, levantei-me em silêncio para deixar a velha
tíssimos e profundos lagos espelhando o mastodôntico céu de Áfri-
descansar. Ia já a passar a porta do quarto, quando a ouvi de novo: Não
ca, preparando-se para serenar com o cair da noite, embalados
me lembro de fazer anos, sabe? Virei-me para ela e dei conta de que
pelos ternos roncos das manadas e o bafo morno da savana. A ve-
estava a falar directamente para mim. Lembro-me de fazer os 80, lem-
lha ganhou fôlego e sussurrou de uma assentada: Mas lembro-me
bro-me dos 81, não me lembro de mais nenhuns a partir daí. Há pouco
muito de Nampula. Recostou-se e seguiu no dorso do elefante.
4 - RESSONÂNCIA
CRÓNICA
DEVIA ESTAR MORTO Beatriz Leal Já devia estar morto. À minha volta todos mortos e eu tranquilamente a respirar pelo nariz. Lembro-me bem dos funerais dos meus pais, dois dias de sol quase repetidos, a mãe primeiro, o pai depois, os dois postos na mesma cova. E é isto. Deles, nem uma recordação. Desenganem-se. Os pais não ficam, vão-se. O único rasto que tenho deles é este retrato, já velhotes, comidos pelo sol, numa moldura azul na minha secretária. Se falam em pais penso em caras ictéricas com um retângulo azul à volta. São só alguéns que conheci há muitos anos, demasiados anos, porque já devia estar morto. Avós, tios, primos, muito salário em coroas condolentes. Os meus irmãos marcharam um a um, cancro do pulmão, um enfarte e uns males no rim, por esta ordem, se a memória não se enrola e emaranha, para nunca mais se lhe saber a ponta. A minha mulher foi-se logo a seguir, uma operação a uma anca partida que correu mal. Dei cabo daquele escadote à machadada. Ela não voltou. E assim, entre mortos, vivo. E humildemente vos peço o favor de me explicarem porquê. Depois de dois enfartes como o meu irmão e um cancro nos intestinos dos maus, os médicos adiantaram-se com uma justificação: um milagre. Mas a mim não me convencem, parece mais um engano. Queriam-me a mim, mas a morada estava errada e levaram o Sr. António do andar de baixo. No meu tempo, eram os bichos quem ditava a hora da sentença, assim que tivessem saciado a fome. Neste meu tempo que não devia ser meu, são estas pílulas amarelas e brancas, uma ao pequeno-almoço, duas ao almoço e outra antes do deitar, que dizem que, sim senhor, acorde amanhã, ou então, em caso de esquecimento, não tem outro remédio, literalmente ironizando, senão cair para o lado. Eu, quero dizer, o Ribatejo, o Nabão, a tropa, a fábrica, os livros, os filhos, só ainda não é tudo pó por causa deste boiãozinho. Há uma perversão absurda em acabar a vida sendo um monte de comprimidos que se compram na farmácia, com comparticipação do Estado. Assim sendo, posso afirmar com toda a certeza que já devia estar morto. Os médicos disseram o senhor devia estar morto, mas graças a Deus, não está, e não estou. Vivo em casa da minha filha, com o marido
«As pernas não aguentam mais, as mãos vacilam, os ouvidos não prestam e a cabeça já não sabe ou não quer saber. Preciso de todos e já não sou preciso por ninguém.»
e os filhos ainda pequeninos. De manhã vou ao café, de resto vivo em jeito de lapa apregoado a este sofá (escolham um, ou sou comprimidos ou moluscos). As pernas não aguentam mais, as mãos vacilam, os ou-
Mas não era preciso tanta provação, deixem-na lá seguir com a vida,
vidos não prestam e a cabeça já não sabe ou não quer saber. Preciso
que já podia levar uns anos de avanço, já devia estar morto. Devia
de todos e já não sou preciso por ninguém. Pelo contrário, precisam
mas não quero. Não quero morrer. Tenho medo de morrer. É verdade
urgentemente de se livrar de mim. A única coisa que me faz não pôr os
que me doem estas rugas e este bigode branco quase tanto quan-
comprimidos ao bolso para serem encontrados pelo médico dos mortos
to este joelho que há muito não tem solução. Que me dilacera esta
(esse não diz é um milagre), é saber que sirvo para me servirem. Para
sem-função, escapar-se o passado, mais que tudo a solidão. Mas o
a minha filha me dar ordens, o paizinho coma mais, o paizinho olhe es-
escuro assusta-me, e o esquecimento apavora-me (não se esqueçam
sas costas, o paizinho não ponha sal, e assim um dia poder dizer que foi
de mim). E, enquanto este joelho não rebenta e as costas suportam,
uma boa filha, até ao fim do paizinho que Deus tem, fui uma boa filha.
ainda vai sabendo bem a bica de manhãzinha no café da Lurdes.
A MÁQUINA
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Cnosgeues ler etsa pirimera fasre? Qeuers sbear puqroê? É tduo uma qseuãto de ctonxteo. Btsaa que a pirimera e úmlita latres de cdaa plarava se mnateahnm praa que o teu cébrero ronechçea as plaravas. O European Brain Council promoveu, em 2014, o ano europeu do cérebro. Contou com a colaboração intensiva de 200 organizações representadas por doentes, profissionais de saúde,comunidades científicas e indústrias especializadas em todas as perturbações mentais, bem como o apoio do Parlamento Europeu e Estados Membros. O Ano Europeu do Cérebro surgiu com 3 objectivos chave: 1. Prevenção primária: educar a sociedade acerca de como estimar e proteger o cérebro e prevenir a doença mental; 2. Promover o acesso aos cuidados de saúde por parte dos doentes com perturbação mental; 3. Aumentar o investimento em doenças mentais para o benefício das futuras gerações.
PORQUÊ O CÉREBRO? A máquina mais complexa do Universo encontra-se dentro de ti, entre as 8 paredes que compõem a caixa que a suporta: o cérebro humano. Anatomicamente bem definido sinapsa dúvidas e questões às quais o próprio tenta responder. E quanto mais responde, mais dúvidas lhe surgem. É um ciclo de feedback positivo que impulsiona novos ensaios, novos tratamentos, novos riscos e novos dilemas. Um cérebro doente é muito mais do que qualquer outro órgão doente. A sua patologia percorre nichos que muitas vezes não são visíveis, palpáveis, identificáveis a olho nu, descritíveis sob a análise de um exame objectivo. A “dor da mente” é quantificável numa escala muito mais abstracta quando comparada à dor física. Afinal, o que é a mente? Qual a sua anatomia? Qual a sua fisiopatologia? Qual a etiologia da nossa personalidade? É este enigma que aguça a fome de descobrir mais acerca desta estrutura enrugada a que chamamos cérebro.
EPIDEMIOLOGIA Os dados epidemiológicos apontam que problemas associados ao cérebro, abrangendo desde traumas a doenças mentais e perturbações cognitivas, têm um enorme impacto na sociedade e colocam uma maior pressão nos sistemas de saúde, principalmente devido ao envelhecimento da população. Na Europa, cerca de mais de 27% da população (127 milhões) sofre de uma perturbação mental, o que equivale a um custo total de 798 biliões de euros.
6 - RESSONÂNCIA
2014
ANO EUROPEU
DO CÉREBRO A MÁQUINA
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ARTIGO PRINCIPAL MAIORES DESAFIOS SAÚDE MENTAL
DA
Somos todos testemunhas do aspecto da migração em toda a Europa; o tempo de consulta com um médico são apenas 12 minutos; somos confrontados com as diferenças de acesso aos cuidados de saúde entre estados europeus. Com estes e outros problemas, há que lançar um alerta à sociedade e não apenas aos médicos, enfermeiros e políticos, mas sim, essencialmente, às famílias de toda a Europa. Qual o seu papel na manutenção das suas doenças à medida que envelhecem e como é que conseguem obter a melhor qualidade de vida?
«A sua patologia percorre nichos que muitas vezes não são visíveis, palpáveis, identificáveis a olho nu, descritíveis sob a análise de um exame objectivo.» Existem é ção
áreas
de
potencialmente de
bons
actuação viável
resultados,
a
onde obten-
como
a
prevenção do acidente vascular cerebral (AVC), com o educar das populações não só relativamente à tensão arterial ou ao colesterol, mas a outros factores de risco associados ao AVC. O que podemos fazer relativamente às doenças psicológicas e psiquiátricas como a depressão, a esquizofrenia, a perturbação bipolar, cada vez mais emergentes e que retiram qualidade de vida aos doentes? A depressão será, segundo a OMS, a doença mais prevalente em 2030, afectando mais pessoas do que qualquer outro problema de saúde, incluindo cancro e doenças cardiovasculares. Como podemos ajudar as famílias a educarem as crianças e adolescentes relativamente a comportamentos de risco como o consumo excessivo de álcool? O álcool e o
8 - RESSONÂNCIA
tabaco são drogas legais e, como tal, são desafios maiores quando comparados a outras drogas ilegais.
exemplos. Não só se exigiu melhor ciência, como também se incutiu algum valor de entretenimento.
CONFERÊNCIAS REALIZADAS
RECOMENDO
Durante este ano europeu do Cérebro foram realizadas pequenas conferências por toda a Europa com o objectivo de alertar para estes maiores desafios da saúde mental. O European Brain Council juntou intervenientes europeus de todas as especialidades associadas às doenças cerebrais: neurologia, psiquiatria, neurociências, neurocirurgia, neurofarmacologia e grupos de doentes com perturbação mental e neurológica. Em Portugal realizaram-se inúmeras conferências, por exemplo:
Exposição: LOUCAMENTE. Uma exposição sobre o bem-estar da mente a decorrer no Pavilhão do Conhecimento até Setembro de 2015. Procura combater o estigma e incentivar os visitantes a cuidar do seu bem-estar mental. Livro: “Como tornar-se doente mental” de José Luís Pio Abreu. Trata-se de um “manual de instruções” que explica passo a passo como adquirir uma doença psiquiátrica. O autor inverte o prisma de forma a tentar desesperadamente contribuir para a saúde mental das pessoas. O leitor encontra aqui muitos critérios de diagnóstico (segundo o DSM IV), bem como explicações experientes do próprio autor de muitas doenças mentais. Acaba até por se cruzar em muitas delas, porque ser doente é coisa fácil, difícil é o tratamento e mais difícil ainda é manter-se saudável no meio desta civilização.
Dia Aberto no Instituto de Farmacologia e Neurociências, Instituto de Medicina Molecular (IMM) Universidade de Lisboa – Como ter um Cérebro saudável? Apresentação do livro “Dormir é bom, Dormir faz bem”, Teresa Paiva e Helena Rebelo Pinto, 14 de Março, Pavilhão do Conhecimento – Ciência Viva. OS NEUROCIENTISTAS VÃO ÀS ESCOLAS - Sessões em escolas dos vários níveis de ensino, asseguradas por investigadores da Sociedade Portuguesa de Neurociências. Twerk Your Brain - Promover envelhecimento activo da população através de workshops e acções de formação em universidades sénior. Organização: Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM) com o apoio do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS) da Escola de Ciências da Saúde (ECS) da Universidade do Minho. Dia 10 de Outubro celebrou-se o Dia Mundial da Saúde Mental. Para além de tratar doenças, exploraram-se as conquistas realizadas pelo cérebro para a humanidade: a cultura, a poesia, o teatro e a música são
«Na Europa, cerca de mais de 27% da população (127 milhões) sofre de uma perturbação mental, o que equivale a um custo total de 798 biliões de euros.»
CONCLUSÕES De uma forma mais pessoal termino a apelar à destruição do estigma associado à doença mental, à desmistificação de muitos mitos e à valorização e estimulação desta relíquia que cada um transporta dentro de si. Ainda existem muitos axónios a percorrer e muitas sinapses a descodificar e só existe uma forma para o fazer: pôr a máquina a trabalhar. Votos de um Feliz Final de Ano Europeu do Cérebro! Inês Miranda
ARTIGO PRINCIPAL Já em 1949 é atribuído a António Egas Moniz o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina, único português penhor do galardão. Mais tarde, o sensacionalismo norte-americano começa uma onda bem audível de controvérsia em torno da Lobotomia, já considerada caducada, para a qual contribuiu a massificação conduzida por Freeman e os baixos níveis de sucesso da técnica, na ordem dos 10%. A par da glória com que fora coroado, outras correntes argumentativas menos lisonjeiras surgiram, com familiares de doentes lesados a protelar, no decorrer do século passado, protestos no
ANTÓNIO EGAS MONIZ UM NOBEL CONTROVERSO
sentido da revogação do Nobel, pedido prontamente negado pela fundação sueca. Christine Johnson, uma jovem bibliotecária, cuja avó saíra vegetativa da leucotomia de que fora alvo, criou até um site onde adjetivava a técnica como “bárbara”, criando uma militância de
António Egas Moniz, reconhecido neurologis-
das técnicas de imagiologia cerebral, ganhan-
familiares das vítimas, como dizia, no sentido
ta português, cuja estátua se ergue à entrada
do o Prémio Oslo em 1945.
da Faculdade de Medicina de Lisboa, nasce
Com a ousadia intrínseca a um grande cien-
de desnobelizar Egas. Também alguns mé-
em Estarreja, no ano de 1874. Desde cedo
tista, começa a delinear as primeiras relações
mostra interesse pela cognição e, no seio de
entre o cérebro e o comportamento, ou seja, a
algumas dificuldades financeiras, ingressa em
doença mental começa a ter como contributo
Medicina.
etiológico a estrutura cerebral. Numa altura
Num percurso auspicioso, é em 1902 convi-
em que os psicofármacos ainda não eram
dado para ser Professor Auxiliar na Faculdade
conhecidos, muitos doentes psiquiátricos, es-
de Medicina de Coimbra e, anos mais tarde,
pecialmente esquizofrénicos, acumulavam-se
em 1911, transfere-se para a FML. É também
sem tratamento. Egas surge com uma inter-
em Lisboa que desenvolve todas as dimen-
venção em 1936, a Leucotomia Pré-frontal,
sões intelectuais que lhe são reconhecidas,
que tinha por base o corte de determinadas
como a vertente política. Chega a ser Ministro
fibras de feixes nervosos que ligam o lobo
dos Negócios Estrangeiros de Sidónio Pais e
frontal a outros territórios cerebrais.
cria um partido político, fiel aos seus ideais de
Com baixos índices de sucesso da terapêu-
liberdade de expressão, coadunando-se com
tica, os doentes no pós-operatório revela-
a criatividade que imprimiu nas suas obras
vam-se apáticos, tomados pela soturnida-
científicas. Também a literatura era uma pai-
de e de caráter abúlico, o que leva Moniz a
testamento, deixou ao mundo o prémio, Alfred
xão, deixando-nos um espólio que conta com
publicar “A Leucotomia em causa”. Com o
Nobel, também ele sairia incomodado com a
mais de trezentas publicações.
aprimoramento da técnica, a cirurgia con-
sua invenção, a dinamite. A ciência viva é uma
Apura nos primeiros tempos como artífice
tinua a fazer-se até aos anos 50, vendo o
espada de dois gumes e sempre motivado
médico as suas perícias e passados largos
seu fim quando surgem os psicofármacos.
pelos melhores princípios subjacentes à boa
anos de investigação descobre, em 1927,
No outro lado do Atlântico, um médico es-
prática clínica, Egas, à luz do conhecimento
uma substância opaca aos raios-x, que
tadunidense, Walter Freeman, populariza e
da altura, agia crendo fazer o melhor pelos
quando injetada intra-vascularmente, permite
massi-fica a Leucotomia, celebrando-a como
seus doentes. Guardamos e comungamos do
obter uma angiografia, técnica amplamente
Lobotomia. Neste processo industrializador
espírito audaz e genial com que conduziu até
deferida pelo seu inexorável contributo para o
são feitas mais de 50.000 cirurgias, e até Ro-
1955 a sua vida. Uma marca verdadeiramente
diagnóstico. O prestígio internacional começa
semary Kennedy (irmã de John F. Kennedy) é
indelével no panorama médico mundial.
a impor-se e é reconhecido como o percursor
submetida à cirurgia.
Sérgio Bronze
dicos, como Sobral Cid, discorreram sobre o tema, com opiniões francamente divergentes, dadas as diferentes escolas médicas de formação. Hoje olhamos para os avanços de Egas Moniz como verdadeiros desenvolvimentos científicos e nem tanto como práticas clínicas a adotar, injeções de pujança no conhecimento da relação das áreas cerebrais e comportamento da espécie humana. Pelas primeiras vezes se assumiu o quebrar da velha dicotomia corpo/alma. E se a ciência pelos séculos sempre esteve revestida de controvérsia e falta de consenso, mais uma vez isso aconteceu. Pensando na história de quem, por
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PRÉMIO NOBEL DA FIS
O PRIMEIRO OLHAR SOBR Em outubro de 2014, o aclamado Nobel da Fisiologia ou Medicina foi
podem ter funções de memória, levando a um processo que designou
entregue a três neurocientistas pela sua descoberta das células que
de remapping – um substrato celular onde a memória de um lugar pode
constituem um sistema de posicionamento no cérebro. John O’Keefe,
ser armazenada através de combinações específicas de células place.
do University College de Londres, com 75 anos, e o casal de investigadores da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia de Trondheim, May-Britt-Moser, 51 anos, e Edvard Moser, 52 anos, receberam a notícia de que as suas, ao todo, quatro décadas de investigação na área das Neurociências e, mais especificamente, da deteção de células nervosas no cérebro que são responsáveis pelo nosso sentido de “lugar” e geoposição, fizeram deles os mais recentes laureados com o prémio mais cobiçado pela comunidade científica médica.
À direita, está um esquema do rato. O hipocampo, onde as estão as células place, está destacado. O quadrado cinzento representa um esquema do espaço onde o rato se movimentou.
ensão de uma das mais complexas funções corticais: a capacidade
DO HIPOCAMPO PARA AS CÉLULAS GRID NO CÓRTEX ENTORRINAL
de navegação e orientação espacial. Logicamente, será necessá-
Já nos anos 90, May-Britt Moser e Edvard Moser, que se encontravam
rio uma espécie de mapa interno do ambiente que nos rodeia para
a estudar o hipocampo num laboratório em Oslo, questionaram a ori-
reconhecer os sítios que nos são inequivocamente familiares e
gem da atividade das células place. Será que esta era gerada não no
Estas descobertas tornam cada vez mais possível a plena compre-
aqueles que nunca antes explorámos. Além disso, é fundamental a percepção da posição do nosso corpo no ambiente e, consequentemente, em relação aos objetos à nossa volta. Dependemos intrinsecamente destas capacidades, interligadas com o sentido de distância e a integração e coordenação dos nossos movimentos para delinear um rumo concreto, evitando um loop infinito de vagueação.
RUMO À DESCOBERTA DAS CÉLULAS PLACE Foi já no final dos anos 60 que John O’Keefe, com um passado que incluía a psicologia fisiológica e investigação acerca da dor, se começou a interessar pelo comportamento animal. Foi então que descobriu as células place, quando registou a atividade neuronal de uma porção do hipocampo dorsal, designada área CA1, em ratos que se moviam livremente num espaço limitado. O padrão de neuroatividade destas células revelou-se completamente inesperado. Cada célula place só ficava ativa quando o animal estava num lugar específico do ambiente. Ao mudar sistematicamente o espaço ocupado pelos ratos, O’Keefe mostrou que diferentes células estavam ativas em diferentes lugares e que a combinação desta atividade em ambientes diferentes criava um mapa neuronal interno para a navegação dos animais. Concluiu, assim, que o hipocampo pode conter um conjunto de mapas representados por combinações de atividade em diferentes células place que estavam ativas em diferentes períodos de tempo e em diferentes ambientes. Em experiências subsequentes, O’Keefe mostrou que estas células
10 - RESSONÂNCIA
ARTIGO PRINCIPAL
SIOLOGIA OU MEDICINA 2014
RE O GPS INTERNO DO CÉREBRO hipocampo, mas fora deste? A maioria do input de informação para o
ratos, e juntas formavam nódulos de uma extensa grelha hexagonal,
hipocampo vem de uma estrutura na margem dorsal do cérebro dos
muito semelhante ao que observamos numa colmeia de abelhas. Cé-
ratos, o córtex entorrinal. Grande parte do output desta porção cortical
lulas grid na mesma área do córtex entorrinal interno, ativavam-se ao
projeta-se depois para o corpo tufado (no hipocampo), seguindo para
mesmo ritmo e orientação da grelha, em diferentes fases no tempo.
uma outra região do hipocampo chamada CA3, atingindo posterior-
Juntas, cobriam todos os pontos no ambiente explorado pelo animal.
mente a área CA1 do hipocampo dorsal, onde O’Keefe descobriu as
Este padrão de disparo celular nunca havia sido observado em qual-
células place. Em 2002, este casal descobriu que a destruição da via
quer outro tipo de célula do nosso corpo. Os Moser concluíram que as
neuronal que liga o córtex entorrinal, através de CA3, à área CA1, não
células grid fazem parte de um sistema abstrato de coordenadas espa-
abole a atividade observada nesta última região. Sabendo que o córtex
ciais, que providencia uma solução para a medição de distâncias e adi-
entorrinal interno está direta e reciprocamente ligado à região CA1, os
ciona uma métrica aos “mapas espaciais” do hipocampo. Mostraram
investigadores começaram a admitir que este tivesse alguma influên-
também que as células grid, as células head direction – que controlam
cia na atividade das células place. Estas dúvidas estimularam-nos a
o movimento da cabeça do animal – e as células border – informam o
desenvolver várias experiências que culminaram na descoberta de um
rato da existência de uma barreira – enviavam depois informações para
novo tipo de célula, a célula grid, que tinha propriedades pouco usuais.
as células place, presentes no hipocampo. Assim, a sobreposição da
As células grid mostraram um padrão de ativação deslumbrante. Es-
informação registada por ambos os tipos celulares permite ao animal
tavam ativas em múltiplos sítios, ao longo do espaço percorrido pelos
saber onde estão os marcos de referência relevantes à sua volta, navegar entre eles e integrá-los na sua memória para futura utilização, lê-se no artigo publicado na revista Nature pelos cientistas noruegueses. O córtex entorrinal está salientado a azul. Cada célula grid dispara quando o animal alcança um determinado ponto no espaço. Esses pontos estão arranjados segundo um padrão hexagonal.
QUAL A RELEVÂNCIA PARA OS HUMANOS E PARA A MEDICINA? As doenças do foro cerebral são a maior causa de debilidade do ser humano e apesar do seu enorme impacto na qualidade de vida do doente, muito poucas são as formas de as prevenir ou tratar. Sabemos que o hipotálamo está intimamente relacionado com a memória episódica, a mais afetada em patologias como a demência ou o doença de Alzheimer. A melhor compreensão dos mecanismos neuronais que levam à consolidação da memória espacial e à criação do nosso sentido de navegação representa um salto gigante no avanço desta odisseia. Ainda não existem correlações clínicas diretas passíveis de aplicar na atualidade, mas o trabalho destes três corajosos neurocientistas veio revolucionar a forma como vemos e interpretamos a comunicação intercelular, abrindo portas para novas formas de tratamento e, quem sabe até um dia, cura.
Carolina Alves
A MÁQUINA
- 11
O ESTRANHO MUNDO DE
OLIVER SACKS Oliver Sacks é um conceituado neurologista e escritor de ori-
Mistook His Wife for a Hat, um livro que se baseia na exposição
gem britânica que actualmente vive e ensina nos EUA, conhe-
de um conjunto de histórias intrigantes e reflexões profundas. Tal
cido pelas suas narrativas de casos clínicos insólitos e cuja
como na história de As Mil e Uma Noites, deambulamos na lei-
obra, pelo seu carácter enriquecedor, é uma excelente aqui-
tura de diversos casos, casos desafiantes, diferentes e por isso
sição para a biblioteca pessoal dos estudantes de Medicina.
mesmo muito interessantes, que não podemos ignorar – quer seja
Tendo desenvolvido um fascínio pelo invulgar e uma perspicá-
pela escrita cativante do autor como pelo tema insólito da questão.
cia excepcional, temperada com uma sensibilidade e eloquência
A narrativa é um meio, segundo o autor, de preservar a persona-
que rapidamente nos deixam agarrados ao papel, Oliver Sacks
lidade e identidade do doente aquando da descrição da sua do-
considera-se simultaneamente um romântico e um cientista, um
ença. Assim sendo, não nos remetemos apenas à descrição do
médico interessado nos seus doentes e respectivas doenças
caso clínico ou da patofisiologia da doença. É uma história. Isto
mas também no drama, na subjectividade e filosofia adjacen-
toma uma relevância excepcional no caso da Neurologia, onde
tes. Nos seus livros, a ciência e a escrita conjugam-se numa
a doença e a personalidade estão intimamente relacionadas.
harmonia descomplicada mas não por isso menos complexa.
Oliver Sacks é um neurologista que possui um conhecimento
To talk of diseases is a sort of Arabian Nights entertainment - Eis
vasto e um talento excepcional para a escrita. Demonstrando
uma frase que descreve a impressão que os livros de Oliver Sacks
uma sensibilidade delicada, os seus livros e as suas histórias
nos deixam – podemos encontrá-la no epígrafo de The Man Who
possuem um carácter humano e marcam-nos profundamente.
No livro The Man Who Mistook His Wife For a Hat, Oliver Sacks mostra o estudo que realiza dos seus pacientes. Nesta perspetiva, não estuda apenas a Medicina da doença, estuda sobretudo a filosofia das perturbações da mente. Consideraremos até que Sacks vê a base da condição humana, avaliando a mente, as suas falhas, excessos e modificações com uma visão quase poética da Vida. A nossa leitura é transportada para histórias, quase em jeito de fábula, que nos detalham as nuances da mente humana, olhando não para a doença mas para a pessoa. Serão estas duas componentes indissociáveis mas por vezes separadas na clínica que tornam este relato de Sacks quase uma leitura romântica da paixão de um homem pela mente. Apresentamos então 3 exemplos dos casos de Sacks.
THE LOST MARINER Quando é que se perde o “Eu”? Esta é a questão principal de Sacks
Sacks estabelece então contacto com Jimmie, principalmente por jo-
neste caso que nos conduz pela história de um doente, Jimmie, com
gos, e nota que este procura um propósito nestes jogos. Procurava fa-
Síndrome de Korsakoff, que não se recorda de nada após 1945. Per-
zer, ser, sentir, queria senso na sua vivência, ou seja “Work and Love”.
deu o futuro e o passado, vive no presente que ocorreu há alguns
Foi na missa que Oliver Sacks identificou a essência de Jimmie, o seu
anos, sendo esta a sua atualidade. Vive neste presente não profun-
espírito, a sua pessoa. Não viu a doença, não viu a perda de memória.
damente, com pensamentos e novas conceções mas sim com uma
Compreendeu que na presença de actividades espirituais, Jimmy, o
superficialidade da vivência. Sacks inicia este estudo com uma cita-
verdadeiro Jimmy, voltava, ainda que não completamente, a ser um
ção de Luis Buñuel “You have to begin to lose your memory, if only
pouco mais a pessoa que era. Será então pertinente questionarmos
in bits and pieces, to realise that memory is what makes our lives.”
o que Sacks reflecte ao longo do caso, quando um homem perde um
Esta passagem leva-nos a uma reflexão da vivência humana e da sua
membro reconhece esta perda, mas quando se perde a si mesmo,
validade. De facto, quando questionado se se sente vivo, Jimmie res-
quem é que lá fica para reconhecer esta ausência? A perda orgânica
ponde: “Feel alive? Not really. I haven’t felt alive for a very long time.”
traduz-se nesta consequência catastrófica da memória. No entanto, a
12 - RESSONÂNCIA
música, a arte, o espírito de comunhão, reavivam e tornam visível o espírito humano.
YES, FATHER-SISTER
A PASSAGE TO INDIA Podemos viajar para lugares distantes dentro da nossa mente. É esta a ideia inicial de Sacks quando apresenta esta história pequena, de Bhagawhandi. Foi-lhe diagnosticado um astrocitoma que, após cirur-
A Srª B. sem alma. Sacks questiona a paciente, sendo que esta ora
gia, voltou mais agressivo que nunca e começou uma sequência de
lhe responde “Sim, Pai”, “Sim, irmã” ou “Sim, doutor”. Após suposições
alucinações que se iam tornando cada vez mais vivas.
como a hipomania, foi descoberto um carcinoma que envolvia a porção
Bhagawhandi tinha um olhar “sonhador” durante as alucinações, eram
orbito-frontal dos lobos frontais.
como que reminiscências de lugares passados que estavam presentes
Os amigos diziam que se tinha tornado “superficial”, como se não se
ainda na sua mente e que revivia a cada alucinação. Tinha experiên-
importasse com ninguém. Tal era verdade. De facto, a Srª B tornava
cias vívidas de pessoas, lugares, paisagens, até mesmo discursos e
equivalentes um Pai, uma irmã e um médico, tornava equivalente a
canções da sua Índia natal. Todas as vivências mentais que as aluci-
direita e a esquerda. Via diferença, de facto sabia que ela existia, mas
nações lhe proporcionavam causavam um sorriso misterioso após o
tal não tinha significado para ela, não se importava: “I know the diffe-
transe em que se encontrava quase dias inteiros.
rence, but it means nothing to me. Father, sister, doctor – what’s the
Rejeitou a mudança da medicação pois gostava de voltar a casa, fazer
big deal?”.
pequenas viagens a nichos passados escondidos na mente. Chegou
Não estava presente, parecia ter perdido a alma. Esta indiferença é a
então o momento da maior viagem, a de retorno a casa, para sempre.
chamada “joking disease”, traduzindo-se numa dissolução nervosa. A
Durante 3 dias não respondia a estímulos externos, fez a viagem men-
anarquia apodera-se da mente da paciente e esta equaliza tudo, nada
tal, de olhos fechados e apoiada pela equipa médica.
mais importa e o caos instala-se.
No primeiro dia, antes da partida, Sacks perguntou: “Bhagawhandi,
Sabendo então a busca incessante da alma por anatomistas durante
what is happening?” e ele respondeu: “I am going home. I am going
muitos anos, será então que a equalização, ou seja, a perda do que
back where I came from – you might call it my return.”
torna o importante em algo a ser valorizado, a pista para encontrar a
Despediu-se e entregou-se ao passado na Índia, abandonando o pre-
alma?
sente assim que chegou.
Ana Rita Medeiros e Catarina Gouveia
A MÁQUINA
- 13
ARTIGO PRINCIPAL
MUSICOTERAPIA
NAS DOENÇAS MENTAIS
Todos nós ouvimos música todos os dias. Provavelmente, muitos de nós adoramos música, ouvimo-la no carro, durante o estudo ou até no banho. Mas a música tem também uma relação muito próxima com a Medicina. Talvez pouca gente saiba, mas o canto, a perceção ou apenas a audição, têm sido usados em várias terapias para as mais diversas doenças. O uso da música na recuperação dos doentes é cada vez mais frequente e a musicoterapia é uma prática que tem vindo a ganhar milhares de apoiantes e com resultados clínicos muito positivos, principalmente na área das doenças mentais.
14 - RESSONÂNCIA
ARTIGO PRINCIPAL «O resultado é incrível: O poema foi recitado do início ao fim, sem hesitação. Este é um excelente exemplo da musicoterapia usada em problemas de fala. [...] Graças à sua capacidade da ativar diversas áreas cerebrais e pelo facto de ser das atividades humanas que mais estimula o cérebro, a música é atualmente uma terapêutica farmacológica em crescimento.»
MAS AFINAL O QUE É A MUSICOTERAPIA? A musicoterapia consiste no uso de intervenções musicais em contexto clínico para melhorar alguns aspetos físicos, emocionais, cognitivos e sociais do indivíduo. Esses aspetos podem ser o alívio da dor, a melhoria no discurso, coordenação motora em doentes com Parkinson, a prevenção da ansiedade e ataques de pânico em doentes mentais e tantos outros. Há evidências clínicas e científicas de que a música tem de facto efeito na melhoria de diversas doenças. E quando falamos em música não é a apenas a sua audição mas também a composição, o o canto ou a dança. As primeiras associações que defendiam a legalização e reconhecimento desta prática surgiram nos anos 50 nos Estados Unidos da América e desde aí diversos países têm já associações nacionais e cursos superiores de musicoterapia. Muitos de nós conhecemos a musicoterapia e até já a vimos em ação mas não a reconhecemos como tal: No filme o “Discurso do Rei” (2010) temos uma cena em que o rei, que tem problemas de gaguez, recita um poema de Shakespeare, ao mesmo tempo que ouve música muito alta através de uns auscultadores, de forma a que não consiga ouvir o que está a dizer. O resultado é incrível: O poema foi recitado do início ao fim, sem hesitação. Este é um excelente exemplo da musicoterapia usada em problemas de fala. No entanto, uma das áreas onde a utilização da música é cada vez mais
aprendido quando eram crianças. Os mais recentes estudos provam que alguns doentes com Alzheimer se lembram muito bem de algumas melodias e a introdução de uma nova letra nessas melodias é facilmente retida pelo doente. Ou seja, imaginem cantar o nome dos familiares com a melodia do “Hey Jude” ou algumas memórias ao som de uma sinfonia de Mozart. O potencial terapêutico destas abordagens é imenso para o desenvolvimento da memória e talvez daqui a uns anos possa ser usado com mais frequência. Outra doença neurológica que recorre à musicoterapia é a Doença de Parkinson. Os tremores que tanto incomodam estes doentes quase que desaparecem enquanto ouvem música. Tem igualmente demonstrado resultados promissores na recuperação motora de doentes vítimas de AVC ou paralisia cerebral. Doentes neurológicos que mal conseguem falar ou mexer-se, conseguem cantar e, de vez em quando, dançar ao som de algumas músicas. Vários estudos têm sido feitos sobre a influência da música na depressão e os resultados têm sido positivos. A musicoterapia, associado ao uso de anti-depressivos, demonstrou ser eficaz no tratamento da depressão. Pensa-se que estas melhorias possam estar relacionadas com a libertação de dopamina. Em doentes esquizofrénicos, a música pode ajudar a melhorar o estado geral dos doentes, a sua atitude e as suas capacidades de socialização. Uma das faixas etárias em que a Musicoterapia tem sido mais testada é a adolescência. Um estudo recente demonstrou que a audição de Mozart antes de dormir, em adolescentes com epilepsia, diminui bastante os ataques epilépticos. Muitas outras áreas se têm testado com esta terapêutica, como a Esclerose múltipla, o desenvolvimento de bebés que nascem prematuros, a resposta à música no coma, o efeito analgésico da música, entre tantas outras. A musicoterapia é uma área em constante renovação. Há falta de algumas evidências científicas e de estudos que comprovem mudanças fisiológicas e/ou bioquímicas que a música possa provocar no nosso
frequente é a saúde mental. E os resul-
organismo. No entanto, os efeitos clínicos da música são inquestioná-
tados têm sido positivos e até intrigantes.
veis em algumas doenças, principalmente do foro mental e psicológico.
Graças à sua capacidade da ativar diversas áre-
Poderá chegar o dia em que iremos prescrever duas horas de Pink
as cerebrais e pelo facto de ser das atividades
Floyd por dia, ou uma hora de piano à noite. Por estranho que pareça,
humanas que mais estimula o cérebro, a música
esse dia pode estar mais perto do que imaginamos.
Sebastião Martins
é atualmente uma terapêutica farmacológica em crescimento. O seu uso tem sido largamente estudado e aplicado em doentes com
«Um estudo recente demonstrou que a audição de Mozart antes
Alzheimer. Há registo de casos de doentes em estado avançado de
de dormir, em adolescentes com epilepsia, diminui bastante os
demência que já não conseguiam reconhecer a família mas que ainda
ataques epilépticos.»
eram capazes de se sentar ao piano e tocar uma melodia que tinham
A MÁQUINA
- 15
ARTIGO PRINCIPAL
WALL OF FAME 1
4
THOMAS WILLIS (1621-1675)
5 1
Médico inglês, foi considerado um dos melhores neuroanatomistas de todos os tempos. O seu nome está associado ao “Círculo de Willis” (rede arterial anastomótica na base do cérebro).
6 2 3
2 PAUL BROCA (1824-1880) Neuroanatomista e antropólogo francês que
3 ANTÓNIO EGAS MONIZ (1847-1955) Neurocirurgião português, cujas descobertas mais importantes passaram pela angiografia cerebral, (feita pela primeira vez no homem em 1927), e a
realizou a autópsia de um doente que não conseguia falar e cujo nome ficou conhecido pela única palavra que conseguia dizer: “Tan”. Broca verificou que a porção frontal esquerda do cérebro de Tan estava gravemente lesionada (área de Broca).
leucotomia pré-frontal, (comummente conhecida por lobomia frontal) concretizada em 1935 e premiada com o Prémio
4
Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949.
DMITRI MENDELEEV (1834-1907) Químico russo que criou a Tabela Periódica. O seu cérebro foi descrito como tendo 1570 g e com forte desenvolvimento dos lobos frontal e parietal
5
em comparação com o resto do cérebro.
SEGEY KORSAKOV (1854-1900) Psiquiatra russo que estudou os efeitos do álcool no sistema nervoso e descreveu a polineurite alcoólica com sintomas mentais distintos que, mais tarde, ficou conhecida por “Síndrome de Korsakov”. Na dis-
6
seção, o seu cérebro pesava 1603 g e todas as medidas indicaram superioridade do hemisfério esquerdo.
ALBERT EINSTEIN (1879-1955) Físico alemão que desenvolveu a teoria da relatividade. Talvez o mais famoso dos cérebros, foi preservado após a sua morte em 1955. As porções posteriores dos lobos parietais estavam muito desenvolvidas.
SABIAS QUE... ... o cérebro humano contém cerca de 100 biliões de células nervosas? ... durante o sono, o cérebro consolida as memórias adquiridas durante o dia? ... a área do cérebro humano associada à força de vontade, situada no córtex frontal, teve o seu desenvolvimento ao longo dos últimos 200 mil anos? ... o cérebro de um recém-nascido aumenta 3 vezes de tamanho durante o primeiro ano de vida? ... a falta de sono afecta a capacidade de criar novas memórias?
16 - RESSONÂNCIA
HUMAN BRAIN PROJECT Fundado em outubro de 2010, com o objetivo de “Criar e desenvolver
Recorrendo a tarefas cognitivas já parcialmente estudadas (motiva-
(…) um ambiente propício ao desenvolvimento de programas avança-
ção, decisão e recompensa, aprendizagem e memória, entre outras),
dos de investigação biomédica e à prestação interdisciplinar de cui-
o trabalho desenvolvido pelas equipas portuguesas irá contribuir para
dados clínicos, (…) que resultem em descobertas pioneiras na área
a aplicação de protocolos standard de estimulação e análise da asso-
da saúde com um reflexo direto na qualidade de vida das pessoas”, o
ciação de determinados padrões cerebrais de ativação com a dinâmica
Centro Champalimaud para o Desconhecido (CCD) demarca-se hoje
de resposta. Será assim possível identificar não só as regiões cere-
da realidade científica portuguesa como pólo de investigação em neu-
brais envolvidas, como também os circuitos neuronais e os princípios
rociências e cancro de importância crescente.
de processamento de informação dentro e entre elas. Mais tarde, os
O Programa de Neurociências Champalimaud integra 17 equipas com-
resultados obtidos serão utilizados pelas equipas envolvidas nos ou-
postas por elementos de várias nacionalidades com múltiplos objetivos
tros subprojectos, nomeadamente no desenvolvimento dos modelos
no desenvolvimento e exploração daquilo que sabemos ser, potencial-
cerebrais.
mente, a melhor máquina do planeta – o cérebro humano. O principal propósito por trás da formação deste programa científico foi o aprofundamento do conhecimento sobre uma das áreas mais misteriosas e inacessíveis da ciência. Sendo um dos centros de investigação na Europa que utiliza os mais avançados recursos tecnológicos, foram recentemente selecionados
«O principal propósito por trás da formação deste programa científico foi o aprofundamento do conhecimento sobre uma das áreas mais misteriosas e inacessíveis da ciência.»
dois dos seus investigadores principais, que estão agora integrados naquele que é, possivelmente, um dos mais ambiciosos projetos cientí-
Infelizmente, é difícil afirmar que o atual estado da ciência no nosso
ficos de sempre – o Human Brain Project (HBP). Iniciado o ano passa-
país seja dos melhores. Até que ponto conseguimos competir com ou-
do com o apoio da Comissão Europeia, o objetivo do HBP é consolidar
tros centros de investigação? Com os recentes cortes nas bolsas de
todo o conhecimento neurológico disponível e reconstruir o cérebro
doutoramento e pós-doutoramento, muitos cientistas portugueses vê-
humano com recurso à construção de modelos e simulações em su-
em-se obrigados a emigrar ou a desistir da investigação, instrumento
percomputadores. O projeto tem a participação de 135 instituições eu-
fundamental para o desenvolvimento de qualquer área científica e, cer-
ropeias e internacionais em 26 países e terá uma duração de 10 anos.
tamente, do país. A participação portuguesa no Human Brain Project,
Zachary Mainen e Rui Costa estão entre os cerca de mais de 200
ainda que modesta, mostra que é possível fazer ciência em Portugal
investigadores incluídos. Envolvidos na coordenação das equipas de
com qualidade. O fato de dois investigadores de uma organização por-
Sistemas de Neurociência e Neurobiologia da Ação do CCD, fazem
tuguesa terem sido escolhidos entre tantos para participar num projeto
agora parte do terceiro dos 13 subprojetos do HBP - Arquiteturas
de tal dimensão é prova disso mesmo. Poderá ser este um ponto de
Cognitivas. Este setor de investigação é coordenado por Stanislas
partida para a evolução das neurociências em Portugal?
Dehaene, do Collège de France.
Esperemos que sim.
Inês Pereira
... o primeiro sentido a desenvolver-se durante a vida intra-uterina é o tacto? Os lábios e região geniana experimentam a sensação táctil às 8 semanas. ... crianças que aprendem duas línguas antes dos 5 anos de idade têm um maior desenvolvimento da substância cinzenta? ... durante o sono, se um indivíduo ressona, não está a sonhar? ... não há recetores sensitivos no cérebro? ... a leitura em voz alta promove o desenvolvimento do cérebro infantil?
Ana Rita Mira e Patrícia Pires
A MÁQUINA
- 17
TECNOLOGIA
INTERFACE CÉREBRO-MÁQUINA Na era tecnológica em que vivemos, próteses valvulares e dos mem-
reformular as estratégias marketing, de um modo mais personalizado,
bros, pacemakers e transplantes (p.e. transplantes faciais com pele
baseado nos interesses do indivíduo e não tanto o marketing pouco
obtida por impressão a 3D) são uma realidade e, para além de tudo
dirigido que hoje se verifica.
isto, pessoas completamente paralisadas podem manusear próteses
Um dos problemas que se verifica nas pessoas com uma lesão na me-
emitindo apenas sinais do lobo frontal, sem que estas passem pela
dula espinhal é que não conseguem, por exemplo, controlar ou sentir a
medula espinhal (ou seja, sem a dependência de nervos periféricos).
bexiga. A colocação de um sensor que ajude a decifrar quando é que
Sabendo tudo isto, será que ainda há a possibilidade de jogarmos no
a bexiga está cheia e quando é que começa a contrair poderá ser uma
computador apenas com o poder do pensamento, via wireless e de
solução eficaz para o mesmo, enviando essa informação para o cére-
forma não invasiva?
bro do paciente (mais uma vez wireless), avisando-o da necessidade
A interface cérebro-máquina consiste na ligação que se pode fazer en-
de urinar e acaba por concretizar, através do envio de uma mensagem
tre o cérebro e um dispositivo externo. O que acontece é que são co-
pelo mesmo sistema, para algum dispositivo que esteja na bexiga e
locados eléctrodos de electroencefalograma (EEG) na cabeça e esses
que a esvazie. Com diferentes sensores, poderá haver a possibilidade
eléctrodos detectam os sinais emitidos pelo cérebro, transmitindo-os
de restabelecer sensações e movimento, em pacientes com danos na
para um dispositivo, seja este uma prótese, um iPhone, um compu-
medula espinhal.
tador, um brinquedo, o que quer que queiramos utilizar para modular
No entanto, a interface cérebro-máquina ainda está em fases muito ex-
a actividade. Portanto, uma das grandes aplicabilidades clínicas que
perimentais quer em humanos (sendo apenas eticamente aceitável os
esta interface poderá ter será a aquisição de mobilidade total em pa-
que tenham algum tipo de paralisia, epilepsia, esclerose múltipla amio-
cientes cuja utilização de próteses convencionais não é possível, para
trófica e outras doenças debilitantes), quer em animais, além de que
além de poder ser utilizada para lazer, o que pode aumentar a atenção
a utilização de EEG e do facto de todo este processo ser não invasivo
e até auxiliar no tratamento de transtorno do défice de atenção com
ainda está longe de ser concretizável. Ainda é necessário um melhor
hiperactividade.
conhecimento do cérebro, com recurso ao uso de uma ECoG (ele-
Para além disso, esta interface ainda pode ter outras funcionalidades:
trocorticografia), por exemplo, que se baseia num método muito mais
pode permitir uma melhor investigação do comportamento do cérebro
invasivo, colocando-se um sensor em contacto directo com o cérebro,
enquanto o indivíduo utiliza esta inovação (portanto, é emitida radiação
implicando, desta forma, cirurgia. Porém, é sempre bom pensar nas
do EEG para um computador que traduz em imagem o que realmente
potenciais aplicabilidades que esta tecnologia poderá ter e pensar que
está a acontecer em termos dos diferentes lobos) e assim, os sinais
um dia, por exemplo, um mudo ou um doente com esclerose múltipla
emitidos pelo cérebro podem ser usados para análise, por exemplo,
amiotrófica, já em fases mais avançadas, poderia falar outra vez ou até
em neuromarketing. Basicamente, no neuromarketing verifica-se o
ser possível jogar apenas com os nossos pensamentos ou controlar
que capta mais a atenção do indivíduo em termos de produtos ou o
certas coisas, como a luz da casa ou um carro de brincar com esta tec-
que o faz ter mais afinidade emocional e, deste modo, passar-se-á a
nologia (estes últimos já de uma forma não invasiva).
18 - RESSONÂNCIA
Eduardo Bento
TECNOLOGIA
NANOTECNOLOGIA EM NEUROCIÊNCIAS
Polímeros, nanopartículas, nanotubos de carbono, biomateriais,
uma das áreas com maior investigação da utilização destes compostos
terapêutica celular… O novo mundo criado pela Nanotecnologia
para fins médicos. A título de exemplo, na Doença de Alzheimer encon-
começa agora a surgir no quotidiano mas não deixa de ser futuris-
tra-se em estudo a utilização de nanopartículas péptidas revestidas
ta. A sua utilização abrange uma multiplicidade de áreas, desde a
com citrato que transportam iões de ouro até às placas de β-amilóide,
indústria à farmacologia, sendo uma fonte de possibilidades e espe-
cuja interacção provoca a destruição destas. No que toca à Doença de
ranças para muitos. Na área da saúde, o estudo da sua aplicação
Parkinson, as terapêuticas visam a prevenção da destruição de células
destaca-se nalgumas áreas, nomeadamente no desenvolvimento
dopaminérgicas através de terapêutica genética com plasmídeos de
de sistemas de entrega de fármacos mais eficazes, seguros e es-
DNA ou, por outro lado, à implementação de células estaminais levan-
pecíficos. Assim, a par do desenvolvimento medicamentoso, impor-
do a posterior diferenciação celular adequada. Também se procura,
ta também assegurar uma correcta entrega do fármaco ao tecido
noutras situações, técnicas semelhantes, mais concretamente após
alvo, a manutenção mais fácil de níveis terapêuticos e a diminuição
ruptura neural por trauma, onde a regeneração tecidual poderia permi-
de efeitos adversos causados pelos dados em células saudáveis.
tir grandes alterações na qualidade de vida das populações afectadas.
Em Medicina, uma das mais promissoras áreas de desenvolvimento destas tecnologias foca-se nos tratamentos que necessitam de ultrapassar uma das barreiras mais complexas do corpo humano – a barreira hemato-encefálica. Actualmente é necessário desenvolver moléculas com efeito terapêutico e também propriedades que permitam alcançar o sistema nervoso central após libertação na corrente sanguínea. Com a criação de um “invólucro” especializado, a libertação farmacológica pretende-se mais localizada e controlada, permitindo igualmente a utilização de diferentes terapêuticas, quer iónicas, quer terapêutica ge-
«São conhecidas as principais dificuldades apresentadas no tratamento destas doenças: o diagnóstico tardio e muitas vezes de exclusão; a formulação de terapêuticas adequadas ao tecido neural e às características celulares dos neurónios, não existindo replicação celular para colmatar a degradação da doença.»
nética, quer utilização de células estaminais para regeneração celular. Nada disto se faz sem antes existir um correcto diagnóstico e aqui
«Actualmente é necessário desenvolver moléculas com efeito terapêutico e também propriedades que permitam alcançar o sistema nervoso central após libertação na corrente sanguínea.»
também entram as nanopartículas. O cérebro, como órgão essencial a vida, apresenta extraordinárias defesas, como a barreira hematoencefálica já mencionada anteriormente. Para além disso, a sua localização na cavidade craniana dificultou o diagnóstico imagiológico durante anos. Actualmente o grau de conhecimento anatómico é extremamente elevado, mas o conhecimento funcional ainda não é completo. A
Com o envelhecimento populacional, as doenças neurodegenera-
utilização de técnicas de contraste com o auxílio de nanomateriais per-
tivas necessitam de uma atenção cada vez maior, o que levou à
mitiria, em teoria, uma maior discriminação imagiológica, tal como o
criação dos inúmeros centros de investigação dedicados a estas
diagnóstico de depósitos de β-amilóide na doença de Alzheimer, entre
doenças. São conhecidas as principais dificuldades apresentadas
outras.
no tratamento destas doenças: o diagnóstico tardio e muitas ve-
As possibilidades são incontáveis mas a realidade ainda escassa.
zes de exclusão; a formulação de terapêuticas adequadas ao te-
Serão necessários anos até à franca utilização de nanopartículas na
cido neural e às características celulares dos neurónios, não exis-
prática clínica, no entanto os dados são promissores. A segurança e
tindo replicação celular para colmatar a degradação da doença.
fiabilidade destas técnicas terão ainda de ser colocadas à prova, mas
A extraordinária capacidade de transporte das nanopartículas torna-
a promessa que trazem deixa esperança no futuro das Neurociências.
-as um alvo perfeito para a atenção dos neurocientistas, sendo esta
Rita Matias
A MÁQUINA
- 19
O Ebol avi r u s é u m v í r u s d a f a mília F ilo v irid a e e c o n s t it u i o géner o E bol avi r u s , n o q u a l s e e n q u a d ra m 5 e s t irp e s , n o me a d a s con soa nte o l o c a l o n d e f o r a m id e n t if ic a d a s p e la p rime ira v e z: Zaire ebo l avi r us, S u d a n e b o l a v i ru s , Ta i F o re s t e b o la v iru s ( Co s ta do Mar fi m ), Bu n d i b u g y o e b o l av iru s ( Ug a n d a ) e Re s t o n e b o lavirus (Uganda).
LETA LIDADE: cerca d e 50% Á R EA S AFEC TADAS : Guin é -Co n a c ri, L ib é ria e Se rr a Leoa TR ANSM ISSÃO: co n tacto d ire cto co m f lu í d o s o u s e c reções cor pora is (sa n g u e , vó mitos , f e z e s , s a l i v a ou sém en) d e pessoas in fectadas , mo rt a s o u v i v as ( quando apre senta m sin toma s ), e d e a n i m a i s por tador es d a doença ou p e la in g e s t ã o d a s u a car ne; contacto directo co m su p e rf í c ie s , o b j e c t os ou r oup as co n taminadas; cont a c t o s e x u a l n ã o pr otegido até trê s me ses a p ó s re c u p e ra ç ã o d a doença. I D ENTIFICAÇÃO DE CAS O S US P E I TO - in í c io d o s sintom as 2 a 21 d ias após a e x p o s iç ã o a o v í rus: FEB R E E UM OU MAIS DOS S E G UI NT E S SINTO M A S/S INAIS : Náuse a s, vómit o s , d ia r r ei a, anor exia, d o r abdominal; Mia lg ia s , a s t e ni a, cãibr as, odin o fagia ; Cefa leia , c o n f u s ã o , pr ostr ação; Conju n tivite, fa rin g e hip e re mia d a ; Exantem a ma culo p a p u lar, pre d o min a n t e me n te no tr onco; Tosse, dor torá cica, d if ic u ld a d e r espir atór i a e o u dispneia ; Hemo rra g ia s . E m estádios m a is ava n çados pode o c o rre r in s u f i ciência r enal e h e p á tica, d istúrb ios d a c o a g u lação e evoluçã o p a ra fa lência m u lt io rg â n ic a . ESTADIA (viagem o u residência ) e m á re a afectada até 21 d ias ante s d o in í c io d o s s in tom as ou CONTACTO P RÓX IMO c o m d o e n t e infectado por vírus É b o la ou outra s s it u a ç õ e s de possível tra n smissão. R i ta Mati as 20 - RESSONÂNCIA
O VÍRUS
ÉBOLA
A MÁQUINA
- 21
ÉBOLA mentalmente O
presente
no
continente
panorama,
que
africano. afecta
Por fim, falamos do prognóstico. Há que sa-
o
lientar que a mortalidade inerente à infecção
Este Africano, e cujos casos iniciais re-
por este vírus depende de vários factores
portam a Março deste ano, constitui o
– não sendo os menos importantes as con-
maior e mais complexo registo de infec-
dições sanitárias dos locais onde os surtos
ção pelo vírus desde a sua descoberta.
surgem e os meios médicos disponíveis para
ESTATÍSTICAS COMPARATIVAS
providenciarem os cuidados necessários. Na linha temporal abaixo apresentada podemos verificar as diferenças entre as taxas de mor-
HISTÓRIA DO VÍRUS
Do ponto de vista epidemiológico, a esmaga-
talidade das estirpes virais. Destaca-se um
dora maioria dos surtos foi da responsabili-
dado em particular no que se refere à estirpe
dade das estirpes Zaire Ebolavirus e Sudan
responsável pelo surto actual – o Zaire Ebo-
Ebolavirus, tendo ocorrido essencialmente
lavirus. Este vírus é responsável pela maior
em 4 países antes do surto actual: República
taxa de mortalidade registada, contudo, ao
Dominicana do Congo (RDC), Gabão, Sudão
considerar todos os doentes infectados em
e Uganda - e com o número de casos identifi-
todos os surtos registados até à data, verifi-
cados a oscilar entre relatos de doentes isola-
ca-se que a mortalidade global é de 53.7%.
Em 1976 surgiram 284 casos de febre he-
dos e surtos com 300 a 400 doentes. Contu-
morrágica aguda viral em Nzara, no Sudão,
do, o surto actual demonstrou uma tendência
O prognóstico nos doentes infectados é muito
e também 318 casos da mesma patologia
díspar em relação ao que havia sucedido
reservado, face à falência multiorgânica que
no Zaire (actual República Democrática do
previamente, com cerca de 10.000 infectados
rapidamente se instala perante a agressivi-
Congo), a maioria num raio de 70 Km de
até à data e com uma dispersão geográfica
dade da febre hemorrágica viral. Contudo,
Yambuku. Embora tenham surgido em dois
superior ao que vinha sendo hábito, tendo o
existem dois dados que se verificam perante
locais diferentes, tais casos viriam a cons-
seu início na Guiné-Equatorial e espalhando-
a experiência adquirida ao sermos confronta-
tituir o primeiro registo de infecção do ser
-se pela Libéria, Serra Leoa, Nigéria, Sene-
dos com o maior surto de Ébola de sempre: os
humano pelo vírus, com percentagens ele-
gal e Mali. Não são aqui incluídos os casos
sobreviventes às 2 primeiras semanas conse-
vadas de mortalidade entre os afectados.
de exposição secundária – isto é, infecção
guem lentamente recuperar; os infectados
Em virtude da proximidade entre Yambuku,
adquirida pelo contacto com doentes infec-
após exposição secundária têm, regra geral,
um dos focos originais da doença, e o rio
tados, em contraposição aos de exposição
uma taxa de sobrevivência muito superior, o
Ébola, o vírus causador fora baptizado com
primária, definida pela infecção num país no
que pode ser explicado por uma menor carga
o nome que todos hoje conhecemos. Esta
qual o vírus seja endémico -, nos quais se in-
viral ou um menor tempo de exposição, por
estirpe, o Zaire Ebolavirus, é a mesma res-
cluem os doentes infectados nos EUA ou em
exemplo, ou então pelo facto de estes casos
ponsável pelo surto que se iniciou este ano.
Espanha. Os últimos dados oficiais do CDC
geralmente ocorrerem em locais com melho-
(Center for Disease Contol and Prevention)
res infra-estruturas médicas capazes de ofe-
Desde o ano de identificação até à ac-
davam conta de 8997 casos relatados até 17
recer cuidados de suporte diferenciados, ou
tualidade tados
de
são
vários
infecção
22 - RESSONÂNCIA
os por
casos
repor-
de Outubro, com 4493 mortes confirmadas,
ainda por uma conjunção de vários factores,
Ébola,
funda
ou seja, uma taxa de mortalidade de 50%.
entre os quais estes.
ÉBOLA
DEMOGRAFIA ETÁRIA E DO GÉNERO
O ESTRANHO CASO DO RESTON EBOLAVIRUS
As crianças parecem ter uma menor probabilidade de serem infectadas. Num surto bastante estudado, no RDC
Esta estirpe foi identificada pela primeira vez em 1989,
em 1995, apenas 8.6% (27 em 315 casos) dos doentes
em macacos oriundos das Filipinas, e entre esse ano e
tinham 17 ou menos anos. O que é curioso, uma vez que
2008 foram identificados 13 casos de evidência seroló-
a população neste país é composta em 50 % por crianças
gica de infecção em humanos nas Filipinas e nos EUA,
com menos de 16 anos. Noutros surtos parece verificar-se
todos eles em tratadores de animais a trabalhar em
a mesma tendência. Embora não exista evidência epide-
instalações a albergar primatas. No entanto, apesar de
miológica de uma razão para este fenómeno, os dados
este vírus ser um Ebolavirus, não tem qualquer efeito
sugerem que as crianças têm menot probabilidade de en-
patogénico no ser humano, não existindo qualquer tipo
trar em contacto directo com doentes do que os adultos.
de doença associada à infecção com esta estirpe.
Já quanto ao género, não existe qualquer tipo de diferen-
Joana Cabrita e João Gramaça
ça no risco de contágio.
A MÁQUINA
- 23
ÉBOLA
OS MEDIA E O IMPACTO POLÍTICO-SOCIAL O outbreak do vírus Ébola é um bom exem-
Deixa-se andar. Alguém, algum canal ou
pelas quais a situação se tornou facilmente
plo da importância da informação e da gran-
jornal há-de fazer um artigo como deve ser.
grave em África: condições básicas e de hi-
de necessidade de aumentar a qualidade da
Aquilo que de errado for dito por outros não
giene muito precárias, cuidados de saúde pra-
mesma. É fácil de perceber que, pelo mundo
vai ter consequências graves. Mas tem. Nos
ticamente ausentes e medidas de contenção
fora, os media tiveram dificuldade em informar
EUA e pelo mundo não faltam exemplos de
quase nulas. Esqueceu-se também de utilizar
correctamente e em manter a opinião pública
atitudes irracionais e discriminatórias toma-
esta situação para relembrar a importância da
dentro do razoável.
das por parte da população e de alguns po-
acção humanitária de prevenção e criação de
Foi dado espaço à especulação e tempo de
líticos e governantes por ignorância e medo
infra-estruturas de suporte à saúde e à econo-
antena a imagens e discursos pouco escla-
desproporcional. Em alguns locais nos EUA, a
mia em regiões em desenvolvimento, já que a
recedores e a avisos de cenários apocalípti-
opinião pública demonstrou situações de pâ-
sede, a fome, a falta de cuidados de saúde e
cos pouco prováveis (como o anúncio na Fox
nico em que quase se pretendeu isolar África
tantas doenças infecciosas são um problema
News de que o vírus passaria a ter transmis-
do resto do mundo e cancelar ajuda humani-
de saúde pública em África e contribuem de
são aérea, nunca demonstrado e bastante im-
tária (ideias apoiadas por alguns congressis-
forma muito importante para as proporções
provável segundo o CDC). Os riscos são reais
tas), em que se quis fechar escolas e empre-
que tomam estas epidemias.
mas são pequenos para a Europa e para os
sas e isolar pessoas que estiveram no lado
países com medidas de controlo adequadas,
oposto de África. Um congressista especulou
segundo o European Center for Disease Con-
que terroristas do Hamas tentariam trazer o
trol e outras entidades.
ébola para os EUA. Relatos de situações que,
A informação com qualidade foi aparecendo
sendo tristes, chegam quase a ser cómicas.
mas nem sempre foi transmitida eficientemen-
Foram postas no palco do mundo imagens
te à população. Os mass media continuaram
assustadoras e foco em casos pontuais (que
a “vender” o tema e percebeu-se em várias
acabaram por não ter transmissão) nos paí-
situações a desinformação e irresponsabilida-
ses desenvolvidos, que em pouco ou nada
de do jornalismo. Muito provavelmente faltou,
contribuíram para uma visão correcta da do-
e falta, em muitas situações relacionadas com
ença, levando apenas ao medo irracional de
a saúde, uma maior e mais precoce proximi-
contágio nesses países e para o desvio da
Os casos de contágios fora dos países afec-
dade da comunidade médica e científica com
atenção do local de origem do problema e
tados (p.e. nos EUA e em Espanha) e as
a população e com os media. É preciso uma
onde ele é realmente grave. A ajuda em África
possíveis tomadas de acção atrasadas de
comunicação honesta e abrangente, que in-
é essencial para parar a epidemia. Afastou-se
organizações de saúde nacionais e sistemas
clui informar sobre aquilo que não se sabe ou
a opinião pública da ideia de que é controlan-
devem ser analisados e transmitidos mas com
que se sabe com um grau menor de certeza.
do a doença em África que a controlamos no
precaução e sem especulações desproposita-
Parece que informar a pessoa comum correc-
mundo e de que o risco de enviar ajuda com
das.
tamente e de forma acessível não é relevante.
condições de segurança máxima é muitíssimo
Nos EUA assiste-se a um género de guerrilha
menor do que não enviar e esperar a disse-
política em que o governo e as organizações
minação da doença, tentando fechar frontei-
de saúde (CDC) são acusados por políticos
ras. Já para não falar no dever das nações
da oposição, sem fundamentos científicos, de
do mundo de prestar apoio humanitário numa
não fazer o suficiente para proteger o país,
situação como esta, que pode potencialmente
chegando a ser sugerido o cancelamento
trazer uma grande destruição de vidas, socie-
de todos os voos para países afectados, in-
dades e países.
cluindo o envio de militares e profissionais
Os media esqueceram-se quase sempre
de saúde para ajuda humanitária com um ris-
de relembrar algumas das circunstâncias
co perto de zero e esta é uma questão que
«Muito provavelmente faltou, e falta, em muitas situações relacionadas com a saúde, uma maior e mais precoce proximidade da comunidade médica e científica com a população e com os media.»
24 - RESSONÂNCIA
«Talvez seja importante dar pouca relevância à opinião política interna nestes assuntos, embora as relações diplomáticas entre países sejam essenciais para promover uma ajuda humanitária de escala global.»
ÉBOLA pode pôr em causa a confiança da população
dos riscos conhecidos e na gestão da opi-
público, honesta, abrangente e baseada na
nas organizações de saúde, levantando vá-
nião pública, evitando estados de ansiedade
evidência por parte da comunidade médica
rios problemas, contribuindo para o pânico e
exagerada, instaurando todas as medidas
e de organizações médicas reconhecidas. E
atrasando o envio de ajuda e a contenção do
necessárias à prevenção e informando a po-
aqueles que não forem convencidos devem
surto. Para além disso assiste-se a um debate
pulação das mesmas e da sua eficácia, colo-
ser combatidos, especialmente se tiverem
em relação à necessidade real de quarentena
cando sempre a evidência científica à frente
peso na opinião pública.
e ao seu tipo entre organizações médicas hu-
do resto.
Relembrando: o risco de transmissão em pa-
manitárias e as autoridades governamentais,
íses desenvolvidos é baixo, a taxa de sobre-
“A TV e os media alimentam a estupidez colectiva e o medo”
vivência com cuidados adequados é bastante
in ”Yes Ebola Is Scary. But the System Is Working.” by Harold Pollack
a pessoa infectada começa a mostrar sinto-
seja importante dar pouca relevância à opi-
Mas não tem que ser assim. Se uma má co-
com medidas de higiene e protecção simples
nião política interna nestes assuntos, embora
bertura dos media pode levar a um clima de
adequadas. A ajuda em África tem um impac-
as relações diplomáticas entre países sejam
ansiedade e desinformação, uma cobertura
to definitivo e o risco de contágio a partir de
essenciais para promover uma ajuda humani-
correcta poderia levar a uma melhor resposta
voluntários infectados na população dos seus
tária de escala global.
do público.
países de origem é considerado perto de zero.
Parece importante que os media e a popu-
E não é só no caso do ébola que assim é.
O importante é que o mundo mobilize forças e
lação dêem relevo e importância às informa-
Desde crenças como “a vacinação causa au-
recursos para parar o surto em África em vez
ções produzidas por organizações de saúde
tismo”, “o aquecimento global não existe”, “a
de alimentar fobias, dificultar a ação humani-
antes de outras fontes e que não usem estes
adição de fluor à água é má para a saúde”,
tária e tentar fechar fronteiras.
temas para criar notícias sensacionalistas que
“as medicinas homeopáticas funcionam ga-
ficam gravadas na imaginação e fomentam o
rantidamente”, às notícias mal construídas
medo nas pessoas durante muito tempo, im-
e enganadoras sobre novos possíveis tra-
pedindo-as de ser racionais.
tamentos e curas e à publicidade enganosa
Por todos estes motivos deve existir uma
que usa ciência apresentada de uma forma
maior responsabilidade e proactividade da
incompleta e manipulada para influenciar um
parte da comunidade médica e das organiza-
consumo baseado em crenças erradas, é im-
ções de saúde na comunicação à população
portante existir uma comunicação próxima do
já que a doença só se transmite depois do início dos sintomas e os profissionais de saúde voluntários estarão supostamente mais atentos do que qualquer um a alterações. Talvez
mais alta e o vírus só se transmite quando mas, havendo uma redução da transmissão
Vasco Peixoto
“O ébola é um adversário difícil, encontrou fraquezas no nosso organismo mas pior que isso explora as fraquezas na fábrica da nossa cultura.” in ”Quality of Fear - What the Ebola Crisis Reveals About Culture” by David Brooks
A MÁQUINA
- 25
26 - RESSONÂNCIA
GRANDE ENTREVISTA DR. RICARDO MEXIA entrevistado por Miguel Esperança Martins
É um dos temas mais vibrantes da actualidade. Marcou, transversalmente, o ano que agora termina e colocou, de modo particularmente evidente, a área da Saúde nas luzes da ribalta. Despertou apreensão e preocupação um pouco por toda a geografia terrestre, fez soar os alarmes de toda a sociedade ocidental, ocupou capas dos mais prestigiados jornais e revistas internacionais, preencheu semanas de telejornais, ressuscitou, nos mais cépticos, o fantasma do aparato montado em torno da gripe aviária, redirecionou o olhar da sociedade e dos profissionais de saúde para a importância actual e futura das doenças infecciosas na aldeia global em que vivemos, testou o timing e a eficácia da resposta de organizações nacionais e internacionais a uma situação súbita e complexa, estabeleceu novos recordes epidemiológicos, e fomentou o avanço terapêutico e vacinal para uma patologia em particular. A causa desta tamanha plêiade de situações e realidades é o surto do vírus Ébola.
O Dr. Ricardo Mexia, médico especialista em Saúde Pública e um dos elementos responsáveis pela elaboração do mais recente relatório sobre o simulacro nacional para avaliação da resposta de diversas infraestruturas, em casos de suspeita de infecção por vírus Ébola, esclarece-nos relativamente a questões sobejamente analisadas pelos media mas que nem sempre reflectiram a verdade e exactidão científicas que um tema destes exige.
A MÁQUINA
- 27
GRANDE ENTREVISTA AS FONTES E OS REFLEXOS EPIDEMIOLÓGICOS Quais os factores que poderão estar na origem deste surto de Ébola em África, o mais grave já registado, no que respeita quer ao número de casos, quer ao número de vítimas letais? Desde 1976, já existiram vários surtos de Ébola com maior ou menor número de casos, no entanto este assumiu uma dimensão incomparável relativamente aos anteriores. Quanto àquilo que foi diferente neste caso em particular, eu diria que, fruto de um conjunto de vicissitudes no início da situação, nomeadamente a deslocação das pessoas provenientes dos países afectados (um padrão de grande mobilidade, sublimado pelo enorme alarme social associado à doença em questão, o que levou a que estas mesmas populações procurassem afastar-se dos locais onde o surto teve origem e procurassem cuidados médicos noutros pontos geográficos), o que levou a que não existisse nenhum link epidemiológico que pudesse ser seguido, associada à fragilidade dos sistemas de saúde, com graves défices de recursos humanos e infra– estruturas, dos três países (Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa) inicialmente envolvidos, houve uma detecção tardia da doença e da situação. Quando a situação foi efectivamente reconhecida e “diagnosticada”, existia já uma disseminação quer geográfica quer em termos de número de casos muito significativa, o que acabou por resultar num efeito “bola de neve” incontrolável. Face à dimensão do surto e em virtude da tal incapacidade de uma resposta adequada por parte dos sistemas
de saúde dos países inicialmente afectados,
de vista do comportamento em humanos, o
também essa resposta acabou por ser tardia.
vírus tem-se mantido relativamente estável e
A partir do momento em que o surto atingiu
não tem, felizmente, adquirido outras vias de
certa magnitude tornou-se particularmente
transmissão como, por exemplo, a via aeros-
complicado implementar medidas que permi-
sol.
tissem resolver o surto numa área geograficamente limitada.
Passados 12 meses após o início do surto, como foi possível não controlar a situ-
Como se explica o aparecimento de duas
ação? Quais as medidas que consideraria
situações de surto não relacionadas, uma
adequadas terem sido tomadas para con-
na África Ocidental (Guiné, Libéria, Serra
trolar o surto e que não o foram atempa-
Leoa, Senegal, Mali, Nigéria) e outra no
damente? Por exemplo, qual a sua opinião
Congo?
relativamente às medidas preventivas tomadas para viajantes?
Na sequência do que referi previamente, desde há 38 anos atrás que têm existido vários
Pegando naquilo que explanei na questão
surtos, muitos deles com uma dimensão e
que começou por colocar-me, opto por não
uma extensão relativamente limitadas. O de-
me repetir quanto à justificação para a magni-
nominador comum a todos os surtos docu-
tude do surto. Retrospectivamente falando, e
mentados está precisamente na passagem da
agora é fácil falar, se a detecção tivesse sido
barreira da espécie pelo vírus, isto é, existe
feita mais atempadamente e se o isolamento
um conjunto de animais selvagens, nomeada-
de todas as pessoas que contactaram com os
mente morcegos, antílopes e macacos que,
primeiros casos tivesse sido feito, provavel-
estando infectados pelo vírus, são caçados,
mente hoje não estaríamos perante um fenó-
manipulados e consumidos, acabando por
meno desta dimensão.
transmitir a doença aos humanos. A partir do momento em que temos um caso índice é relativamente normal que exista uma dispersão e multiplicação dos casos, inicialmente dentro de uma família, posteriormente dentro de uma aldeia e, por fim, numa área geográfica mais alargada. Não é surpreendente a existência
«(...) é relativamente normal que exista uma dispersão e multiplicação dos casos, inicialmente dentro de uma família, (...) por fim, numa área geográfica mais alargada»
de dois surtos concomitantes em áreas geográficas distintas e distantes em função do que expliquei.
Tendo em conta que esta situação teve origem numa pequena aldeia na Guiné-Conacri,
Tendo sido feito o sequenciamento gené-
é, no entanto, óbvio que não é comportável
tico do vírus em Agosto de 2014, conside-
termos um centro de saúde ou um posto de
rando que foi sequenciado 99% do genoma
atendimento médico a cada cinco quilómetros
do vírus Ébola, como se justifica a identi-
quadrados. Quanto à questão dos viajantes,
ficação de 395 mutações genéticas que di-
só há, actualmente, três países que apresen-
ferenciam o genoma do vírus de Ébola do
tam uma transmissão disseminada. Felizmen-
«Quando a situação foi efectivamen-
surto de 2014 do genoma do vírus de Ébola
te Portugal, no caso concreto, não tem voos
te reconhecida e “diagnosticada”, existia já uma disseminação quer geográfica quer em termos de número de casos muito significativa, o que acabou por resultar num efeito “bola de neve” incontrolável.»
de surtos anteriores?
directos para e de qualquer um desses paí-
28 - RESSONÂNCIA
ses, sem prejuízo, claro, de haver alguns voos Estes surtos esporádicos de que lhe tenho
com escalas em que os passageiros originá-
vindo a falar têm ocorrido numa área geográ-
rios dessas áreas transitem para voos com
fica relativamente alargada, logo a potenciali-
destino a Portugal.
dade de mutação do vírus em função desse
O que está preconizado, com muito limitada
factor é muito elevada. No entanto, do ponto
evidência científica, é o exit screening, isto
GRANDE ENTREVISTA é, a monitorização de todos os passageiros
jante relativamente ao seu percurso. Foi o úni-
tivesse existido uma resposta mais “muscula-
provenientes de áreas afectadas, fazendo-se
co caso de que resultaram também infecções
da”, eventualmente a situação poderia ter sido
também a identificação dos passageiros com
secundárias, não directamente relacionadas
diferente. No entanto, não devemos retirar a
factores de risco para o desenvolvimento da
com o facto de ter viajado, mas relacionadas
questão do seu contexto. Num passado rela-
doença para que sejam acompanhados du-
com a própria etapa do tratamento. Os outros
tivamente recente tivemos o exemplo de uma
rante o período de incubação de cerca de 21
casos que conhecemos ocorreram na sequ-
situação que, fruto de circunstâncias várias,
dias. Os conselhos para os viajantes portu-
ência de evacuações médicas, não podendo
levou a um grande alarme social e à imple-
gueses têm ido no sentido de evitar a desloca-
ser considerados como casos associados a
mentação de um conjunto de medidas com
ção para essas zonas. Têm sido distribuídos
viajantes, como em Espanha, nos Estados
grande impacto, tendo-se enfrentado, na se-
folhetos sobre essa matéria nos voos para
Unidos, na Noruega e na Suíça. No geral, não
quência da implementação dessas medidas,
esses locais, existindo informação afixada
têm ocorrido falhas.
um grande criticismo face à forma como as
nos aeroportos e portos. Os indivíduos que
coisas foram feitas e tendo sido aventada e
cumprirem os três requisitos, nomeadamen-
Qual a sua visão relativamente ao modo
defendida a teoria da existência de uma res-
te ter estado na área afectada, ter estado em
de actuação da Organização Mundial de
posta excessiva face à ameaça em causa.
contacto com alguém com suspeita ou infec-
Saúde, entidades internacionais e, especi-
Esta circunstância condicionou uma resposta
ção confirmada por Ébola e que apresentem
ficamente, da Direcção-Geral de Saúde em
particularmente cautelosa das organizações.
sintomas iniciais associados à doença, devem
todo este processo? Qual a sua visão re-
Sem prejuízo disso, eu penso que a resposta
contactar a linha de saúde 24 (808 24 24 24)
lativamente ao papel desempenhado pelos
tem sido aquela que tem sido possível, mes-
e, mediante validação ou não do seu caso,
Media, nacional e internacionalmente, nos
mo com a existência de algumas dificuldades
serão encaminhados para um hospital de re-
últimos meses face a todo o circo mediáti-
em enviar staff para o terreno. No entanto,
ferência pelo INEM. Em retrospectiva, houve
co montado em torno do assunto?
quer através de organizações não governa-
um único caso em que, eventualmente, existi-
mentais, quer através das estruturas gover-
ram problemas com um viajante. Ocorreu nos
Relativamente ao modo como as autoridades
namentais, a resposta tem sido levada ao
Estados Unidos, decorrendo essa situação da
internacionais e a própria OMS têm lidado
terreno. Por outro lado, existe já um esforço
falta de informação por parte do próprio via-
com a questão eu diria que se inicialmente
marcado no desenvolvimento quer de vacinas
A MÁQUINA
- 29
GRANDE ENTREVISTA quer de terapêutica. A resposta internacional,
As orientações técnicas da DGS são muito
os profissionais de saúde se movimentavam.
do ponto de vista técnico e do ponto de vista
claras neste aspecto.
Foram infectados como cidadãos que convi-
comunitário, tem sido positiva.
Primeiro que tudo tem de existir um link epi-
veram com outros cidadãos e não como pro-
demiológico, isto é, ou a pessoa esteve num
fissionais de saúde. Por outro lado, não é ile-
país afectado pelo Ébola, ou esteve com do-
gítimo pensar no que aconteceu nos Estados
entes com Ébola, ou ambas.
Unidos e em Espanha. De facto, os casos de
Quanto à componente clínica, que em fases
transmissão secundária ocorreram em profis-
precoces é altamente inespecífica, temos a
sionais de saúde.
febre, o mal-estar, e a dor abdominal inicial-
Existe já ampla literatura nas orientações
mente, e numa fase já muito avançada, a tal
técnicas sobre o que fazer e como fazer. As
sintomatologia hemorrágica que acaba por
orientações têm-se pautado por limitar ao
condicionar o grande alarme social.
máximo a interacção entre os profissionais
O diagnóstico diferencial numa fase inicial é
de saúde e os doentes e, nos casos em que
muito complexo, ainda para mais consideran-
isso é estritamente necessário, existem pes-
É-me particularmente difícil responder a essa
do o tipo de doenças de que estamos a falar
soas que treinam de forma rotineira a colo-
questão a nível nacional, tendo em conta que
neste contexto geográfico, como a malária, o
cação e remoção dos EPI’s e a abordagem
estou envolvido na plataforma de resposta à
dengue, entre outras, que inicialmente podem
dos doentes. Isto para dizer que a técnica de
doença por vírus Ébola. Existiu, também em
ser facilmente confundidas com o Ébola. Em
colocação e, principalmente, de remoção dos
Portugal, algum alarme social promovido e ali-
Portugal essa realidade fica muito limitada
EPI’s é bastante complexa, implicando que,
mentado pela comunicação social, com todos
pelo link epidemiológico. A título de exemplo,
enquanto um dos elementos está a colocar ou
os seus interesses comerciais insuflados de
digo-lhe que desde o início do problema exis-
a remover o equipamento, o outro está a ob-
igual modo pela propaganda da exuberância
tiram em Portugal cerca de uma dezena de
servá-lo e a preencher a checklist que elenca
do quadro sintomático e letalidade da doença,
casos validados, isto é, casos a quem foram
todos os passos da técnica a ser cumpridos
o que fez com que se criasse alguma ansie-
feitos os testes laboratoriais. Foi fácil do pon-
para que esta seja cumprida de forma ade-
dade quer na população, quer nos próprios
to de vista técnico diferenciar pessoas com
quada. Háportanto, um conjunto de equipas
profissionais de saúde. É importante dizer que
sintomatologia compatível com a do Ébola
responsáveis quer pelo transporte de doen-
o risco de termos um caso é extremamente
mas que poderiam ter muitas outras doenças
tes quer por idas ao terreno para abordar um
baixo, mas, apesar disso, é muito importan-
com sintomatologia semelhante, relativamen-
doente, que têm treino regular. Os restantes
te tranquilizar as pessoas no sentido de que
te àqueles que tinham risco efectivo de estar
profissionais devem também treinar a técnica
estas percebam que existe um plano, orienta-
infectados com Ébola.
de abordagem inicial, que passa muitas vezes
«Os indivíduos que cumprirem os três requisitos, ter estado na área afectada, ter estado em contacto com alguém com suspeita ou infecção confirmada por Ébola e que apresentem sintomas iniciais, devem contactar a linha de saúde 24»
ções técnicas, profissionais treinados e estru-
por um distanciamento. Não é necessário uti-
turas direccionadas, que permitem responder
Sendo os profissionais de saúde um dos
lizar um fato protector, como muitas vezes é
a qualquer porta de entrada ou possibilidade.
principais grupos de risco, que desafios
visualmente veiculado pela comunicação so-
A campanha que levámos a cabo foi muito
enfrentam face a esta situação, nomeada-
cial, para abordar um doente estável. Basta,
útil para esclarecer a população e os próprios
mente no que se refere a formação para a
por vezes, uma distância de dois metros. Em
profissionais de saúde e contribuiu para pro-
utilização de equipamentos de protecção
caso de suspeita basta colocá-lo numa sala,
porcionar alguma serenidade face aos proce-
individual e manuseamento de produtos
isolado, enquanto se aguarda pelo transporte
dimentos a adoptar e às perspectivas relativa-
biológicos?
secundário ou pela não validação do caso.
mente a esta realidade.
A CLÍNICA DA PROBLEMÁTICA
Paralelamente a isso as ARS estão a promoComeço por desmistificar um dado associado
ver a formação e a realização de exercícios
à sua questão. Inicialmente considerou-se,
que permitam treinar esses procedimentos.
nos primeiros casos ocorridos no surto na África Ocidental, a existência de uma taxa de
Focando-nos numa vertente clínica, quais
incidência e, consequentemente, de letalida-
as principais causas e factores de risco,
de muito elevadas no grupo dos profissionais
actualmente, a ser investigados na anam-
de saúde. Segundo os dados mais recentes
nese de um doente suspeito, quais os
da OMS, o aspecto estatístico prende-se com
principais sintomas numa fase precoce e
infecção ocorrida não no contexto de presta-
com que diagnósticos diferenciais temos
ção de cuidados de saúde, mas sim, maiori-
de jogar?
tariamente, no contexto geográfico em que
30 - RESSONÂNCIA
«Não é necessário utilizar um fato protector, como muitas vezes é visualmente veiculado pela comunicação social, para abordar um doente estável. Basta, por vezes, uma distância de dois metros.»
Qual a sua opinião quanto à realização de Sessões Clínicas sobre a doença nos hospitais universitários? Considera ser um bom método de preparação para médicos e estudantes de Medicina ? Que outrasmedidas propõe nesse âmbito?
OS HORIZONTES TERAPÊUTICOS Qual a sua opinião relativamente às terapêuticas experimentais, sejam elas farmacológicas, sejam elas soro de dadores convalescentes? Existe expertise suficien-
A nível da formação pré-graduada faz senti-
te relativamente à sua utilização e resulta-
do que a patologia seja abordada no contexto
dos que atestem a sua eficácia?
Subitamente, a situação mudou. Estamos perante uma maior apetência para desenvolver investigação nessa área, o que só pode ser salutar. A breve trecho acredito que seja possível haver quer vacinas quer terapêutica. Quanto ao soro convalescente, é uma técnica de imunização passiva já previamente utilizada noutras áreas. Tem apresentado taxas de sucesso relativamente interessantes.
da disciplina de Doenças Infecciosas, como é abordada a Tuberculose, por exemplo, com
Não existe evidência seguramente quanto às
a devida ressalva de que o Ébola tem uma
terapêuticas farmacológicas experimentais.
taxa de incidência francamente baixa. Não me
Os estudos que existem na área são muito
parece que o Ébola careça de uma formação
preliminares. A ciência está a evoluir rapida-
ultra-especial ou diferenciada. Pode e deve
mente nesse campo, mas não existe eficácia,
ser abordada até para aumentar o grau de
tanto quanto sei, comprovada. É preciso per-
confiança do futuro profissional de saúde na
ceber que estamos perante uma doença com
abordagem de um eventual doente com Ébo-
uma taxa de incidência baixíssima, logo temos
la, mas sem grande espalhafato ou alarmismo
poucos doentes para estudar, e que estamos
Não existindo doentes e não havendo da-
na abordagem. No entanto, é um assunto com
perante uma doença que anteriormente se
dores convalescentes em Portugal, terá
grande actualidade e projecção mediática e a
caracterizou por surtos relativamente contro-
Portugal acesso a esta possibilidade tera-
realização desse tipo de sessões contribui
lados e com um número de casos baixo e as-
pêutica em caso de necessidade?
para aumentar o grau de informação e prepa-
sim, lamentavelmente, pouco estímulo existe
-ração da comunidade médica. A informação
para se investir em recursos muito alargados
Isso está perfeitamente protocolado a nível
é poder, pelo que acaba por aumentar a ca-
no desenvolvimento de soluções terapêuticas
internacional. Basta pensarmos que antes
pacitação dos profissionais de saúde face a
ou vacinais para esta doença.
de terem existido casos também ainda não
esta realidade.
«É preciso perceber que estamos perante uma doença com uma taxa de incidência baixíssima, logo temos poucos doentes para estudar (...). Subitamente a situação mudou.»
havia nenhum doente, pelo que os poucos
A MÁQUINA
- 31
sítios onde existe esse tipo de soro estão plenamente disponíveis para colaborar em caso de necessidade, como aconteceu nos casos de Espanha, Noruega e Suécia, onde ainda não tinham existido casos previamente. Existe uma rede internacional pronta a ser activa-
for, em tempo útil. Qual a sua opinião face ao envolvimento e motivações da indústria farmacêutica relativamente a esta situação?
da nessa circunstância.
Segundo o que me é dado a conhecer pela
Qual é o ponto de situação actual e quais
-rios têm vindo a desenvolver e a testar algu-
as nuances de que se revestem os parece-
mas soluções terapêuticas, mas não possuo
res das Comissões de Ética e os modelos
nenhuma informação privilegiada quanto a
de consentimento informado dos doentes
essa temática. Eu percebo o que as pessoas
relativamente a estas terapêuticas experi-
acham que está em causa, ou o que pode es-
mentais?
tar em causa, ainda por cima na sequência do
comunicação social sei que alguns laborató-
exemplo recente de que já falámos. Mas re-
é de existir sempre transparência, razoabilidade e as coisas devem processar-se da forma mais clara possível. No entanto, uma vida é uma vida, conseguir encontrar soluções terapêuticas que ajudem a preservar uma vida é sempre uma mais valia e é aí que reside a responsabilidade social que a indústria farmacêutica tem face a esta realidade e que tem de cumprir.
O PARADIGMA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS EMERGENTES E REEMERGENTES
Eu diria que tem de haver um equilíbrio en-
forço algo que já referi, o universo de doentes
tre a forma como é obtido o consentimento
de que estamos a falar, mesmo pensando nos
informado, que obviamente tem de existir,
15000 que tiveram a doença, é relativamente
Que doenças infecciosas emergentes e
dependendo dos doentes estarem ou não
diminuto do ponto de vista do interesse da in-
reemergentes considera serem de maior
em condições de o fornecer de forma explí-
dústria. Hoje em dia o pipeline para desenvol-
relevância para a Saúde Pública no futuro
cita. Os casos podem estar num estádio mais
ver um medicamento para o que quer que seja
próximo?
crítico ou mais ligeiro. Quanto às Comissões
envolve custos perfeitamente astronómicos,
de Ética penso que têm experiência em situa-
pelo que a decisão de investigar determinada
Há várias estruturas a nível europeu que
ções mais “normais”. Terão de adaptar não a
área com tão poucos doentes não é tomada
acompanham essa realidade e que divulgam
forma de avaliar, mas a celeridade com que o
de ânimo leve. Existe certamente interesse da
quais são as maiores ameaças desse ponto
fazem. Considero que estão e estarão à altura
indústria farmacêutica em encontrar situações
de vista. Fala-se muito, actualmente, no cam-
da situação, avaliando aquilo que faz ou não
terapêuticas para o Ébola, como existe relati-
po das doenças emergentes, da variante do
sentido, tomando uma decisão, seja ela qual
vamente a centenas de outras doenças. Tem
Médio Oriente do Coronavírus, do Enterovírus
32 - RESSONÂNCIA
GRANDE ENTREVISTA «o universo de doentes de que estamos a falar, mesmo pensando nos 15000 que tiveram a doença, é relativamente diminuto do ponto de vista do interesse da indústria»
relativamente recente. O SINAVE é uma fer-
isso que deve nortear o desenvolvimento de
ramenta relativamente recente. A partir de 1
qualquer sistema, a melhoria contínua e a
de Janeiro a notificação através do SINAVE
avaliação constante do que está a ser posto
passa a ser obrigatória e isso vai permitir me-
em prática. Tenho dificuldade em responder
lhorar um problema há muito diagnosticado,
especificamente quanto à nossa capacidade
a sub-notificação das doenças de declaração
de resposta, mas diria que sim.
obrigatória. Vamos entrar num período em que vai subir o número de casos de doença,
D68, do Dengue, do Chikungunya, do West-
não por estarmos mais doentes, mas por um
-Nile Virus, da gripe e, claro, do Ébola. A tóni-
marcado aumento da notificação. Como su-
ca está na cultura global que envolve o rápi-
«Temos sempre espaço para melhorar.»
gestão, deixo algo que já esteve para aconte-
Observando o tipo de instituições e de profis-
cer e que espero que se venha a concretizar,
sionais de que dispomos e o modo como os
nomeadamente a notificação de base labora-
profissionais se articulam, existe todo o poten-
torial. Muitas das doenças de declaração obri-
cial para que as coisas corram bem. Temos
gatória são de diagnóstico laboratorial. Não
tido alguns testes práticos como o Dengue, a
há razão nenhuma para que não exista notifi-
Legionella, e o próprio Ébola, que têm coloca-
cação laboratorial. Obviamente que é neces-
do o sistema sob stress e, até ver, a situação
sário obter a informação complementar junto
tem sido sempre resolvida. A questão que se
resistências à antibioterapia, como por exem-
de quem segue o doente, mas logicamente
coloca é: será que o sistema poderia ter de-
plo os microorganismos MRSA e a própria tu-
que se a notificação for laboratorial reduzimo-
tectado ou identificado o problema mais pre-
berculose multi-resistente.
sa taxa de sub-notificação a zero.
cocemente e, consequentemente, permitido
Quais os mecanismos de vigilância exis-
Considera que Portugal está preparado
tentes, e de que modo podem ser aprimo-
para responder eficazmente a esta reali-
rados e adaptados?
dade?
Temos um sistema de vigilância renovado
Temos sempre espaço para melhorar, e é
do fluxo de pessoas à volta do mundo, o que propicia que as doenças se disseminem, nas alterações climáticas que proporcionam alterações da localização dos vectores e na entrada em novos ecossistemas e consequente exposição a outras doenças a que anteriormente não nos expúnhamos. Quanto às doenças reemergentes, destaco as
intervir mais cedo, evitando que o problema assumisse a dimensão que assumiu? Eventualmente sim. No capítulo da vigilância sindrómica considero que temos ainda muito para melhorar.
A MÁQUINA
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CRÓNICA
ARQUIVO Sérgio Bronze Os dias vão ficando dispneicos, talvez numa concorrência contigo, e
do naquela igreja cosida a ouro se desvaneceu, também as aliadas da
eu cristalizado neste banco, vou visitando aqueles capítulos que es-
gravidade se desvanecem. Já nem tu choras!
crevia quando ainda éramos felizes. As memórias, oníricas, fazem a prosa saber-me a poesia e ouso traçar um sorriso. Não me vês, bem
O ar lascivo da adolescência foi tomado pela pele encortiçada que se
sei, mas nesse estado agudizado a nostalgia torna-se sistémica e sinto
cola aos ossos e esperamos que um mês sofra o milagre da multipli-
correr nestas veias todos os desvarios e naufrágios que salpicaram a
cação, tornando-se em anos. O ócio toma conta do teu tempo e o teu
nossa história.
estado de latência do meu, simplesmente para que uns índices gritem valores mais altos, sem que tu possas desfrutar da beleza até no can-
Os meus traços barrocos de sempre, remontam à frescura dos teus
tar do pardal que nos acorda. E neste mundo ávido de percentagens,
olhos, castanhos como tantos milhões, mas que numa perfeita trajetó-
taxas, gráficos e linearidades, o obscurantismo não toma conta apenas
ria retilínea se cruzaram com os meus. Naqueles dias áridos, enfastia-
de quem nos conduz, mas também se vai apoderando de nós, na eter-
do pela soturnidade de quem sobrevive, conhecer-te foi desaprender a
na idiossincrasia humana.
ser infeliz. Os dias que esbanjei, fizeram-me querer tornar mais memória os rascunhos que a nossa virtuosidade nos fazia rabiscar.
A noite fecha-se e ao longe um cão dá sinais da lua cheia, que contrasta com o coração esvaziado de quem escreve. Se a vida tem propósito,
Sentir-te tomada pela doença, faz a minha órbita de interesses morrer e, tal como o profetismo da eternidade que nos foi prometi
34 - RESSONÂNCIA
creio que está cumprido.
A MÁQUINA
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