ressonância • 1
edição XXI | maio 2015 | distribuição gratuita
mensagem
ficha técnica coordenação geral Ana Brochado José Durão Manuel Morais redação Ana Estalagem Ana Mira Beatriz Leal Carolina Alves Catarina Costa Catarina Paias Gouveia Inês Miranda Inês Pereira Joana Cabrita José Durão Miguel Esperança Martins Patrícia Pires Rita Matias Sebastião Martins Sérgio Bronze design gráfico e capa António Silva Manuel Morais ilustrações Catarina Paias Gouveia
É com grande prazer que a Direção da AEFML 14/15 te apresenta a nova edição da revista Ressonância. O conceito de uma revista de alunos para alunos não é novo, mas este ano decidimos fazer ainda melhor! Uma revista com caráter informativo, científico, lúdico e cultural, que prima pela exigência da equipa editorial e pela enorme motivação e criatividade dos autores convidados. A sociedade de informação que hoje vivemos inunda-nos constantemente com artigos de opinião escritos em cima do joelho, notícias de sites pouco fidedignos, publicidade e milhares de comentários que dificultam o acesso à informação que verdadeiramente interessa. A televisão preocupa-se com o sensacionalismo, as estações de rádio passam sempre as mesmas músicas e o jornal diário mais lido em Portugal trata exclusivamente de futebol. Em Medicina ouvimos desde cedo que somos diferentes, dotados de um intelecto e astúcia superiores. As notas que nos permitiram entrar foram, certamente, superiores à maioria. Contudo, a história não lembra os mais graduados, mas sim os grandes pensadores, os corajosos e insatisfeitos. Os espíritos críticos. É para eles que esta revista se direciona – para os espíritos críticos. Procurámos colaboradores interessados e capazes. Entrevistámos protagonistas dos avanços da ciência, investigámos e resumimos. Por fim, criámos uma nova imagem. Uma nova Ressonância! Este é o desafio que te propomos: Não sejas comodista. Interessa-te pelo que os teus colegas pensam e pelo que a sociedade te oferece. Depois questiona-te sobre qual será o teu contributo e, por fim, junta-te à Ressonância. Contamos contigo para a próxima edição! Com os meus melhores cumprimentos, Tomás Neto da Silva Presidente da Direção da AEFML 2014-2015
impressão e propriedade
Secção Editorial da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa editorial@aefml.pt Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa Avenida Professor Egas Moniz, Hospital Santa Maria - Piso 01, 1649-035 Lisboa 217 818 890 | ressonancia@aefml.pt www.aefml.pt facebook.com/ressonanciaaefml Depósito Legal: 178455/02 Tiragem: 300 exemplares
índice das origens
4 | Two is a company, three is a crowd 6 | The Da Venter Code 8 | Qual o preço da imortalidade?
a história repete-se
12 | And then there were 10 billion 16 | O quinto sinal vital 18 | Paleodiet 19 | Leite: o super alimento? 20 | Grande Entrevista 20 | Prof. Doutor João Gorjão Clara 26 | Global Aging
medicina legal
28 | Mais vida para além da morte 30 | Autópsia clínica e critérios de morte 32 | Sigilo médico - quando quebrar? 33 | Instituto de Medicina Molecular 36 | Aplicações médicas - o futuro do passado
crónicas
38 | Hoje às quatro 39 | O escape da mente
Nota: alguns autores escrevem sem o Novo Acordo Ortográfico.
“Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada que ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não tinha ouvido e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadiços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô.” in “As Intermitências da Morte” de José Saramago
das origens
two
is company,
three
is a crowd?
N
Ana Estalagem
um mundo em que tanta controvérsia recai sobre certas relações a dois, surge um conceito que certamente também motivará as mais contrastantes e polémicas opiniões. A fertilização in-vitro com três dadores foi aprovada em Fevereiro no Reino Unido e está em processo de aprovação nos Estados Unidos. 4 • cronos
A fertilização in-vitro (FIV) foi originalmente desenhada para permitir o encontro de um espermatozóide com um óvulo em laboratório, o que requer a existência de dois dadores. Após a fusão dos gâmetas, o zigoto adquirido é implantado no útero da dadora ou mesmo de outra mulher. É, sem dúvida, uma técnica de grande utilidade. Para além de constituir uma opção terapêutica para casais com dificuldades reprodutivas, os seus benefícios expandem-se para os testes genéticos pré-implantatórios, que permitem detectar determinadas doenças genéticas antes da implantação. É neste último ponto que agora nos focamos. Dentro das doenças genéticas e mutações conhecidas, há que ter em conta que o DNA de cada uma das nossas células não se confina ao núcleo. Existe DNA mitocondrial, que é consistentemente transmitido de mãe para filho, e que, se mutado, transportará muito provavelmente doenças mitocondriais, para as quais ainda não se conhece tratamento efectivo a longo prazo. O que um grupo de investigadores da Universidade de Newcastle fez, tendo em conta esta informação, foi explorar a hipótese de juntar um terceiro elemento à FIV convencional. Por que não repor a mitocôndria alterada e colocar no seu lugar uma saudável? Daqui emerge a noção de doação mitocondrial e um terceiro dador do sexo feminino. A doação mitocondrial permite que mulheres em risco de transmitir doen-
ças mitocondriais possam receber mitocôndrias do oócito de outra mulher. Assim, embriões gerados desta forma herdarão apenas as mitocôndrias da dadora. Se forem do sexo feminino, transmiti-las-ão à sua descendência. O processo de combinação do óvulo, espermatozóide e desta mitocôndria suplementar pode ocorrer de duas formas. A primeira consiste na transferência do núcleo materno, com os cromossomas em fase de fuso acromático, para o óvulo anucleado da terceira dadora, que terá mitocôndrias saudáveis. Este óvulo pode, posteriormente, ser normalmente fecundado. O segundo método é o da transferência de pró-núcleo. O óvulo materno é fecundado normalmente in-vitro e é o pró-núcleo originado desta fusão que é transferido para o óvulo da dadora. Qualquer que seja o procedimento utilizado, as vantagens estão à vista. O mesmo grupo de investigação estimou que seria possível prevenir cerca de 150 casos de doenças mitocondriais no Reino Unido por ano, pelo que a técnica já está aprovada para ser utilizada em clínicas de fertilização neste país. Mutações de origem mitocondrial dão origem a um leque de patologias, entre as quais se incluem miopatias, perdas de audição, neuropatias e morte súbita. Está claro que uma intervenção a este nível seria potencialmente proveitosa. Levantam-se, contudo, algumas questões relevantes. O aspecto que ressalta de imediato prende-se com a segurança e viabilidade do processo. Será seguro combinar os componentes genéticos nucleares com DNA mitocondrial estranho? Até ao momento, já foram feitas várias análises pelo Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA) e nenhuma delas evidencia risco de complicações para o embrião ou para as gerações que a ele se seguirão. De destacar que isto foi comprovado maioritariamente em modelos animais, embora existam também estudos em células estaminais humanas. No entanto, apesar de o DNA mitocondrial representar apenas 0,2% do DNA total, sabe-se que as suas funções não se prendem apenas com
a produção energética, normalmente associada à mitocôndria. Assim sendo, não se sabe se, a longo prazo, a transferência mitocondrial não virá a revelar interferências importantes entre o DNA mitocondrial e o nuclear. Obviamente, isto leva a que sejam levantadas questões do foro ético. Um indivíduo pode sofrer repercussões inesperadas desta experiência, sobre a qual não teve poder de decisão ou consentimento. Isto põe em causa o livre arbítrio e poder de escolha que é, à partida, inerente a cada cidadão. Para além disso, é debatido se a aprovação deste processo não será o primeiro passo para a liberalização das manipulações genéticas pré-natais generalizadas. Estas acarretam, como se sabe, um peso ético e moral volumoso, temendo-se os chamados designer babies, feitos para corresponder às características desejadas pelos seus progenitores. Por último, e não com menor relevância, existe uma oposição religiosa ao método da transferência do pró-núcleo, uma vez que envolve a destruição propositada de pelo menos um óvulo viável. As dúvidas acerca deste tema continuam e continuarão decerto a surgir. Que impacto terá o conhecimento do processo para um indivíduo assim gerado? Terá ele o direito de saber de quem herdou as mitocôndrias que o sustentam? Os direitos de parentalidade nestas circunstâncias ainda não estão bem delineados. Enquanto por um lado se defende o anonimato do terceiro dador e a ignorância do indivíduo acerca da sua situação genética, é também claro que para existir um acompanhamento efectivo da evolução do processo, estes dados têm que ser revelados aos intervenientes. Ainda no âmbito legal, imagine-se que existe uma relação homossexual entre duas mulheres e ambas querem participar neste processo. Qual delas será a mãe da criança perante a lei? Perante a ausência de respostas, elevam-se inevitáveis debates. Envolve-se Ciência, Ética e Lei, também eles uma tríade de respeito. Esperemos que dos três nasça a melhor via comum.
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Miguel Esperança Martins
C
raig Venter, uma verdadeira estrela científica, é dono de um reconhecido estatuto alicerçado nas extraordinárias descobertas para que contribuiu, de entre as quais se destacam particularmente a sequenciação do genoma humano e, mais recentemente, a criação da primeira forma de vida sintética. Venter e os seus colaboradores conseguiram desenvolver utilizando DNA sintetizado artificialmente (a partir do código genético de Mycoplasma micoides), em Maio de 2010, uma bactéria (Mycoplasma laboratorium) cujas células apresentam capacidade replicativa. Para isso, foram fundamentais a aplicação dos métodos de sequenciação completa do genoma da bactéria utilizada (Mycoplasma micoides) e de transplantação do genoma destas para bactérias de uma espécie semelhante (proporcionando a assunção por parte destas últimas das características da espécie de que o DNA fora previamente removido) desenvolvido também por Venter e a sua equipa em 2007.
the
Da Venter
code
A descodificação do software celular, o DNA, e a consequente completa compreensão do seu hardware, as proteínas, permite não só manipular o funcionamento desses, modificando-o selectivamente, como consequentemente, melhorá-lo e optimizá-lo. O design genómico apresenta-se como a aplicação de destaque que deriva da descoberta de Venter e colaboradores, possibilitando a impressão a quatro dimensões e utilizando os elementos biológicos fundamentais para a vida, isto é, criar sistemas biológicos com actividade e controlo próprios. Em termos práticos a utilidade é vastíssima, proporcionando a aprimoração e a criação de novos procedimentos nos mais díspares campos do mundo médico, bem como o desenvolvimento de diferentes aplicações a nível da protecção ambiental e até do refinamento bélico. A biologia sintética torna reais aspectos pertencentes a um imaginário de ficção científica como a realização de transfusões sem risco de infecção, o armazenamento e transporte de sangue desidratado para locais tão distantes como o espaço sideral, o transporte selectivo de fármacos pelos eritrócitos ou a recriação de vírus ou bactérias com um potencial pandémico catastrófico, para posterior pesquisa da melhor estratégia para o seu combate. Existe paralela e potencialmente um importante contributo para a esfera da cosmética, da medicina reprodutiva, da medicina desportiva e da infecciologia, englobado numa perspectiva de human enhancement com todo o peso ético de que se reveste a questão. Há uma mudança de paradigma com a concretização de uma medicina de precisão, extraordi-
nariamente personalizada. No capítulo da protecção ambiental, existe actualmente um enorme interesse na criação de um método de síntese biológica de bactérias com especiais propriedades de absorção de gases, como o CO2 e outros gases atmosféricos com papel preponderante no efeito de estufa, tendo como objectivo último a mitigação das causas e efeitos das alterações climáticas. Também a produção combustível poderá beneficiar da biologia sintética através da criação de algas produtoras de petróleo, bem como através da produção de combustíveis como butano, propano e hidrogénio, a partir de moléculas orgânicas comuns, tais como os açúcares. Abrem-se igualmente novas perspectivas no que à guerra química, guerra biológica e à indústria nuclear diz respeito. O futuro adivinha-se promissor com a tentativa de Venter, em parceria com a NASA, de converter códigos genéticos em sinais digitais passíveis de ser transmitidos, descarregados e lidos numa estação receptora a longa distância. Daqui decorre, por exemplo, a capacidade de mais rapidamente promover a distribuição de vacinas num caso de pandemia de H. influenza ou de, numa dimensão mais exótica, enviar fármacos personalizados a astronautas em missões espaciais. Muitas têm sido as críticas relativas ao trabalho levado a cabo por Venter e seus colaboradores. Às frequentes acusações de terem embarcado numa missão em que assumem abertamente o papel de Deus, juntam-se as referências relativas a um novo domínio de investigação de uso dual (que corresponde à potencial utilização dos resultados da investigação ou
para promover o benefício da comunidade ou para promover o terror), todas as questões éticas tradicionalmente associadas ao enhancement (de humanos e de outros seres vivos) e vários aspectos relativos à justiça equitativa e distributiva aplicada à Medicina personalizada, cujo advento parece cada vez mais próximo. Certo é que, tomando como mote as palavras de Richard Feynman (que inclusivamente gravaram no genoma que artificialmente sintetizaram utilizando pedaços de adenina, citosina, guanina e timina), Venter e a sua equipa continuam incessantemente a tentar aprimorar e refinar os métodos de síntese biológica e de transmissão de informação genética, porque “o que não se pode criar, não se pode compreender”. Assistimos, no tempo presente, ao avanço no sentido de uma época pós-darwinista de selecção e evolução dirigida pelo homem. As portas para um novo capítulo da evolução do mundo vivo estão abertas de par em par, desafiando os protagonistas da história a através delas caminhar.
qual o preço da
imortalidade? Carolina Alves
D
esde o início dos tempos, dos povos, da cultura, da espiritualidade, que o Homem procura uma forma de prolongar a vida. Aumentar a quota de momentos a que tem direito, muitas vezes sem olhar a qualidade, mas meramente a quantidade. Desde a Antiguidade, a “Fonte da Juventude”, a alquimia, as transfusões de sangue de crianças para os mais idosos da tribo, que são atribuídos super – poderes a determinadas substâncias que prometeriam a vida eterna, a juventude, a saúde. Há animais que conseguiram, de facto, conquistar a passagem do tempo, usando mecanismos que, quase literalmente, o fazem andar para trás, dando um novo significa-
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do ao conceito de Renascimento. A “medusa Benjamin Button”, Turritopsis Dohrnii, tem a capacidade de se reconverter completamente a um estado sexualmente imaturo, um pólipo, mesmo após ter atingido a maturidade sexual. Teoricamente, a medusa pode repetir este processo quantas vezes for necessário, definindo assim uma transdiferenciação, um processo biológico raro caracterizado pela passagem de uma célula não estaminal a uma qualquer outra célula diferenciada. O grande desafio no estudo do envelhecimento tem sido a falta de modelos animais apropriados. Enquanto que dentro dos vertebrados temos, por exemplo, os ratinhos, que vivem durante demasiado tempo, os invertebrados - com um ciclo de vida mais pequeno e, portanto, mais facilmente estudado - carecem de características
intrínsecas que nos possibilitem transpor os estudos para humanos. Uma investigadora do Paul F. Glenn Center for the Biology of Aging, da Universidade de Stanford, Dra. Anne Brunet, professora de Genética na Faculdade de Medicina de Stanford, foca a sua investigação nos killifish turquesa africanos, peixes que vivem em lagos temporários no Zimbabwe e em Moçambique, que desaparecem com o surgir da estação seca. Ao contrário dos restantes vertebrados, estes peixes vivem por curtos períodos de tempo - quatro a seis meses - o que os torna excelentes candidatos para o estudo do envelhecimento. O seu principal objectivo é sequenciar o genoma dos peixes, compreendendo a forma como os genes interagem e, eventualmente, ser capaz de os manipular e mutar. Alguns killi-
fish mutantes já deram provas de progresso nos estudos do envelhecimento e doenças associadas. “Um dos nossos killifish mutantes replica, de uma forma mais rápida, uma doença humana chamada disqueratose congénita, que se deve ao défice de um complexo envolvido na manutenção da porção final dos cromossomas, os telómeros”, diz o Dr. Itamar Harel, co-autor da investigação, também especializado na área de Genética. “Estes killifish mutantes, como os seus pares humanos, têm defeitos sanguíneos, intestinais e apresentam problemas de infertilidade.” A partir de agora, estes peixes podem ser usados como um organismo-modelo, no screening de genes e fármacos que possam abrandar ou mesmo reverter o envelhecimento e as doenças relacionadas com a idade. Outra característica interessante desta espécie é o facto de existirem outras variantes que completam o seu ciclo de vida em nove meses, e não em quatro ou seis. Também aqui está uma oportunidade de tentar descobrir quais os genes específicos que regulam o tempo de vida destes vertebrados, e porque é que algumas variantes vivem mais do que outras. É inegável que compreender como é que as nossas células e os nossos tecidos se modificam ao longo do tempo, comparando essas mudanças com as das outras espécies, é um passo essencial para, um dia, identificar
é a idade. Desde a diabetes ao cancro, passando pelas doenças cardiovasculares, o avançar dos anos é o factor não modificável (até agora) com maior peso e importância. O envelhecimento é incontestável e inerentemente interessante, uma vez que acontece em todos os indivíduos, com pequenas variações, e é a fase da vida da qual menos se sabe. Quando afirmamos que alguém morreu “de causas naturais”, na verdade não sabemos muito bem o que aconteceu. O que significam essas causas naturais, que causas são essas, o que é que se passou, a nível celular e molecular, para a vida dessa pessoa acabar? As consequências, no entanto, são óbvias: o aparecimento das rugas; a diminuição da capacidade cognitiva; o abrandamento do metabolismo, que favorece a deposição de gordura, ao invés de massa muscular; a perda de massa óssea, devido a um desequilíbrio entre a sua reabsorção e a sua deposição ou a diminuição da mobilidade das articulações. Na verdade, é uma lista praticamente infindável, com repercussões em todos os órgãos e tecidos, e evoluções patológicas importantes, que ameaçam seriamente a vida. A nível celular as mudanças também são claras. Mutações no DNA começam a acumular-se, as “fábricas de energia” das nossas células entram em falência, com uma diminuição acentuada da produção de proteínas viáveis. Há uma degradação proteica exagerada, com falência de
moldar o tempo a nosso bel-prazer, esta plasticidade do ciclo de vida humano que queremos alcançar. No entanto, cientificamente, já se comprovaram várias teorias que, de facto, permitem aumentar o número de anos que vivemos com qualidade. A restrição calórica é uma delas, como revela um estudo publicado em Abril de 2014 na revista Nature, que provou que esta melhorou significativamente a sobrevivência de primatas - especificamente, o macaco rhesus -, diminuindo a incidência de doenças relacionadas com a idade e mesmo de quaisquer outras doenças. Sendo esta espécie organicamente muito semelhante à nossa, é fácil compreender a importância de tais conclusões. Investigadores identificaram também regiões geográficas que albergam uma grande percentagem dos humanos centenários, às quais chamaram de “zonas azuis”. Exemplos são a ilha italiana de Sardinia, a região Okinawa, no Japão, e Loma Linda, na Califórnia, onde identificaram um grupo de Adventistas do Sétimo Dia que representam o pináculo da longevidade nos EUA. (ver próxima página, figura) Apesar de todo o potencial deste tipo de estudos e investigações, e do esforço que continua a ser feito para encontrar uma causa específica para o envelhecimento, a noção de que este é um processo multifactorial continua a prevalecer. Não parece haver um
“Não há dúvida que o maior factor de risco para o desenvolvimento das doenças crónicas, a epidemia do século XXI, é a idade” genes ou vias específicas que possam ser modificadas para expandir o tempo que vivemos. Não há dúvida que o maior factor de risco para o desenvolvimento das doenças crónicas, a epidemia do século XXI,
todas as vias celulares que asseguram a manutenção do equilíbrio, levando a um destino do qual não podemos escapar: a morte. Pode parecer utópica e até ridícula, esta noção de que um dia poderemos
trigger celular individual que leve a este declínio funcional que a nossa espécie experiencia, a partir dos trinta a quarenta anos. Os cromossomas humanos individuais são constituídos por cadeias
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SARDINIANS
Honrar a família Beber vinho tinto Comer cereais integrais Deixar as mulheres gerir a casa Manter-se activo
TODOS
ADVENTISTS
Não fumar Manter-se activo fisicamente e socialmente Respeitar a família Dieta baseada em plantas
Ter fé Respeitar o Sábado Beber leite de soja Comer nozes e legumes
de DNA, formadas, por sua vez, por dezenas a centenas de milhares de nucleótidos. No final de cada uma das cadeias há uma pequena sequência protectora, o telómero, que nos humanos é constituído apenas por cerca de 8000 nucleótidos. Sempre que uma célula se divide, perde uma quantidade mínima de DNA dos telómeros dos seus cromossomas. A perda destes nucleótidos parece actuar como um relógio celular, restringindo a célula a um determinado número de divisões. Quando os telómeros se tornam demasiado curtos, a célula deixa de se poder dividir. Os telómeros podem ser, assim, uma espécie de cronómetro interno. No entanto, estudos recentes mostram que o seu comprimento também pode ser afectado por factores externos, desde o consumo de bebidas açucaradas, à depressão em mulheres jovens, à percepção da discriminação por homens afro-americanos. De facto, o comprimento dos telómeros pode variar dramaticamente de indivíduo para indivíduo. Há pessoas com trinta anos que têm telómeros do mesmo tamanho que pessoas com cinquenta, sem quaisquer efeitos identificáveis na sua saúde. O mais interessante seria, talvez, investigar as repercussões da rapidez do encurtamento dos telómeros ao longo da
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OKINAWANS
Ter significado Evitar urgências Comer plantas Manter os amigos Manter-se gostável
zonas azuis - regiões geográficas que albergam uma grande percentagem dos humanos centenários e factores que identificam como contibutos para tal
vida de cada indivíduo, mais do que as variações do tamanho. Ainda mais interessante é que a Natureza sabe resolver o problema do encurtamento dos telómeros em células embrionárias estaminais e células espermáticas, através da telomerase. Esta enzima ajuda a reconstruir a porção do telómero que foi sacrificada, quando estes tipos celulares se dividem. No entanto, isto não acontece com os restantes tecidos e não sabemos porquê. Também aqui os killifish africanos podem ser uma valiosa fonte de informação, uma vez que estes possuem a capacidade de “parar o relógio” durante meses seguidos. Quando a estação seca chega, e os seus lagos desaparecem, estes entram num estado suspenso, de dormência, chamado diapausa, que os permite saltar para a geração seguinte, quando a chuva regressa. O crescimento celular abranda admiravelmente, sem comprometer o seu ciclo de vida após esta pausa. É impossível negar o fascínio por todas estas descobertas. Será que um dia seremos capazes de viver um número específico de anos, de acordo com a nossa vontade, com a simples toma de um fármaco? E quais serão as implicações sociais e económicas dessas mudanças? Será que o acesso a estas tecnologias vai ser apenas restri-
to a alguns privilegiados que o possam pagar? Ou serão estes tratamentos considerados parte dos cuidados básicos de saúde das populações e gerações vindouras, alterando completamente o paradigma da saúde, no próximo século? São questões que envolvem a Bioética, que nos forçam a pensar se esta será a atitude mais correcta para o futuro da espécie humana, com todas as implicações que terá para as restantes espécies. Além disso, será que o simples aumento da esperança média de vida é válido, sem antes termos soluções para o aparecimento de doenças como o Alzheimer ou outras doenças neurodegenerativas? E, por outro lado, se os humanos começarem a viver para além do expectável, não levará isso ao aparecimento de novas doenças crónicas, tão violentas e intratáveis como as que temos agora? Independentemente de todas as questões que este assunto acarreta, é importante reconhecer que o estudo do envelhecimento está a avançar mais rapidamente do que nunca, com um elevadíssimo interesse económico para empresas privadas e pesadíssimas repercussões para a sociedade como hoje a conhecemos.
a história repete-se ressonância • 11
and then there were
10 billion
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José Durão
I
nferno é o título da última obra de Dan Brown. Nela, ele aplica a visão do inferno de Dante Alighieri ao mundo moderno, alertando para o excesso de população no planeta e as suas cataclísmicas consequências. A solução apresentada no livro passa pela drástica redução da população através de métodos certamente questionáveis e numa zona moral seguramente cinzenta. É incontestável que a Humanidade é cada vez mais capaz de adiar a morte. A Medicina moderna, os avanços tecnológicos quase diários e as melhorias consideráveis das condições sanitárias e de higiene da generalidade das populações, possibilitaram a população mundial com mais idosos de sempre. Centenários estão a tornar-se cada vez mais comuns. Desde a Peste Negra no século XIV, a população humana tem vindo a aumentar quase continuamente, estimando-se que atinja 9.2 biliões até 2050, apesar de outras estimativas admitirem até 10.5 biliões. A preocupação com o número de humanos na Terra é cada vez mais um dos assuntos da actualidade, com a razão a flutuar constantemente entre os que a negam e os que a defendem como o problema do século XXI. Em 1994, o InterAcademy Panel Statement on Population Growth afirmava que muitos problemas ambientais eram agravados pela expansão populacional, para além de uma procura cada vez maior de recursos, deplecção de combustíveis fósseis a um ritmo superior ao da sua formação e uma deterioração nas condições de vida em geral. Em 2005, as Nações Unidas alertaram para a necessidade de água no mundo, que triplicara desde os anos 50. A China e a Índia lideram o topo das maiores populações do globo, seguidas pelos EUA. Não fosse pela política do filho único (com todos os seus aspectos controversos) e a China poderia facilmente representar mais de 20% da população mundial. Neste momento, prevê-se até que a Índia venha a ultrapassar a
China nos próximos anos. A maioria dos países não tem políticas directas que visem a limitação das taxas de natalidade, mas, ainda assim, estas têm diminuído. Sabemos que em muitos países do continente africano há distribuição gratuita de preservativos, formações de planeamento familiar, mas quão exactos são os números? Vários estudos constataram que as elevadas taxas de fertilidade estão em geral confinadas à África Subsariana, em países como a Nigéria, a Somália e o Uganda. Na verdade, as taxas de natalidade nos chamados países do 3º Mundo têm caído vertiginosamente, estando algumas até abaixo do limite “saudável” de manutenção da população. O Chile, o Brasil e a Tailândia apresentam actualmente taxas de natalidade inferiores às de França, da Noruega e da Suécia. É óbvio que taxas de 6.6 (Chade) e 7.6 (Nigéria) não devem ser postas fora da equação e as reduções na fertilidade não são necessariamente permanentes. Recentemente, o desinteresse nos programas de planeamento familiar fez disparar as taxas de natalidade no Egipto, ameaçando a balança demográfica já gravemente desequilibrada do país. O ritmo de crescimento das populações não parece, afinal, ser grave ao ponto de uma hecatombe demográfica estar já ao virar da esquina. Continuamos a adicionar humanos à população mundial, mas a uma velocidade cada vez menor. No entanto, deparamo-nos diariamente com pequenos sinais que parecem contrariar essa ideia: multidões que se espremem no metropolitano, hospitais absolutamente lotados, quilómetros de estradas preenchidos com automóveis, metrópoles que aproveitam todos os centímetros para albergarem os seus habitantes. Todos nós aprendemos a matemática simples do crescimento de populações: estas não devem ultrapassar um limite de equilíbrio com o seu ambiente ou arriscam perecer. E essa noção foi precisamente o catalisador para as primeiras preocupações sérias com o número crescente de pessoas
no planeta.
As primeiras ideias… Cerca de 60 anos antes de Charles Darwin publicar as suas ideias sobre selecção natural, é publicado em 1798 um dos trabalhos que mais repercussões viria a ter nas teorias desenvolvidas por académicos como Darwin e Alfred Russel Wallace: o livro An Essay on the Principle of Population, do britânico Thomas Robert Malthus. Nele, Malthus alertava para o crescimento geométrico ou exponencial da população, por oposição ao crescimento aritmético ou linear da produção de alimentos, culpando as baixas taxas de mortalidade e defendendo o controlo da população através de métodos polémicos: “All the children born, beyond what would be required to keep up the population to this level, must necessarily perish, unless room be made for them by the deaths of grown persons [...] Instead of recommending cleanliness to the poor, we should encourage contrary habits. In our towns we should make the streets narrower, crowd more people into the houses, and court the return of the plague. In the country, we should build our villages near stagnant pools, and particularly encourage settlements in all marshy and unwholesome situations.” Ao longo do seu manuscrito, Malthus, um cristão devoto, condena repetidamente a falta de contenção moral, encorajando a redução da população através de 2 tipos de limitações: as positivas, que incluíam a fome, a doença e a guerra, e as preventivas, que passavam pelo adiamento do casamento, o celibato até esse momento, o aborto, o controlo da natalidade e até a prostituição. As ideias de Malthus tiveram um impacto tal que o parlamento da Grã-Breta-
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nha aprovou em 1801 o primeiro censo sério a abranger Inglaterra, Escócia e País de Gales, o Census Act 1800 ou Population Act 1800, que tem sido executado a cada dez anos desde então. Tão controversas como influentes, as afirmações de Malthus têm sido extensivamente debatidas desde então. Estratégias de controlo populacional existem em França sob a designação politique malthusienne. Em 1952, a Índia foi a primeira a introduzir políticas do género. Apesar de duras críticas por parte de grupos defensores dos direitos humanos, feministas, Marxistas, etc., a ideologia de Malthus perdurou e deu origem ao movimento hoje conhecido por Neo-Malthusianismo, que ganhou fôlego redobrado nos anos 50, 60 e 70, numa altura em que a população mundial teve um crescimento acelerado e grupos ambientalistas manifestaram a sua preocupação em relação às consequências do crescimento descontrolado da população. Estes protestos culminaram em 1968 com a publicação de The Population Bomb, de Paul R. Ehrlich, que adoptou e propagou as teorias de Malthus. Rotulado de alarmista e impreciso, The Population Bomb afirmava que um período de fome global estava na calha para a Humanidade, resultado da reprodução excessiva, e que milhões iriam morrer até ao final dos anos 70: “The battle to feed all of humanity is
premente e potencialmente cataclísmico será afinal o número de humanos no planeta?
O planeta é pequeno demais? Será que a raiz do problema é a falta de espaço na Terra? Analisemos os números. Neste momento existem aproximadamente 7,308,566,000 humanos. Admitindo que cada pessoa ocupasse cerca de 95 m2, o suficiente para uma moradia familiar com jardim, a população mundial caberia em cerca de 695 661,56 km2. Por outras palavras, poderíamos alinhar facilmente toda a Humanidade no estado do Texas. Isto excluindo a típica família de 4 pessoas, que partilharia o mesmo espaço. É certo que é necessário retirar da equação territórios impróprios para a vida humana, como a Antárctida, o Deserto do Sahara, e os mais de 2/3 do planeta cobertos de água, mas ainda assim teríamos, por exemplo, a Bacia do Mediterrâneo, a Nova Zelândia e toda uma variedade de climas ao longo dos EUA completamente desabitados. Obviamente que tal situação acarretaria obstáculos significativos de sustentabilidade e gestão de recursos e desperdícios. Contudo, conseguimos ter uma visão clara de um planeta com uma vastidão vazia de humanos.
Earth provides enough to satisfy every man’s need, but not every man’s greed. - Mahatma Ghandi over. In the 1970s the world will undergo famines–hundreds of millions of people will starve to death in spite of any crash programs embarked upon now.” Compreensivelmente, após a publicação do manuscrito de Ehrlich, doações consideráveis foram feitas ao UNPFA – Fundo de População das Nações Unidas – fundado em 1969 e que opera na base de uma crise populacional anunciada há mais de 200 anos. O que nos leva a questionar: quão
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A escassez de alimentos é um mito. O planeta tem os recursos e a capacidade para suprir as necessidades de todos. Todavia, todos os anos 220 milhões de toneladas de comida são desperdiçados por países desenvolvidos. Tanto a FAO (Food and Agriculture Organization) das Nações Unidas, como o WFP (World Food Programme), autoridades mundiais no tópico da distribuição alimentar, têm insistido que o estado actual de produção de
alimentos no mundo é de abundância, não escassez. O grão produzido em todo o mundo é o suficiente para fornecer 3500 calorias/dia a cada pessoa, mais 1500 do que o recomendado pela FDA (Food and Drug Administration). Menos de ¼ da comida desperdiçada na Europa, Reino Unido e EUA seria o bastante para alimentar 1 bilião de pessoas mal–nutridas no mundo. Será seguro afirmar que o rápido crescimento demográfico está directamente relacionado com a fome? É um facto bem estabelecido que as populações mais mal–nutridas se encontram em África, na Ásia e na América Latina, onde os números populacionais têm tido um crescimento mais acentuado nas últimas décadas, o que sugere um elo entre os dois fenómenos. Mas será que o aumento da população causa a fome, ou ocorrem simultaneamente porque são ambos consequências de uma realidade social mais abrangente? Em 1989, os sociologistas Frederick Buttel e Laura Reynolds publicaram um estudo detalhado acerca do crescimento populacional, consumo de alimentos e outras variáveis em 93 países em desenvolvimento. Estatisticamente, não encontraram nenhuma correlação entre o rápido crescimento da população e a fome nesses países, mas verificaram que as populações dos países mais pobres tinham menos alimentos. Por outras palavras, a pobreza e a desigualdade são as bases para a escassez de alimentos. A inexistência de uma relação causa-efeito entre a densidade populacional e a fome nos países referidos é facilmente verificável quando comparamos várias regiões do globo. Se, por um lado, temos o Bangladesh, um país densamente povoado e extremamente faminto, verificamos, por outro lado, que a Nigéria, o Brasil ou a Bolívia, onde abundam os recursos alimentares, apresentam populações em que a fome é uma realidade diária. Para além disso, encontramos países como a Holanda, com um rácio área geográfica/população incrivelmente baixo, e que, contudo, não só teve a capacidade de eliminar a fome na sua população,
como constitui a segunda maior força de exportação de produtos alimentares e agrícolas, ultrapassada apenas pelos EUA.
Não há terra arável suficiente? Face a estas constatações, urge perguntar: Porque é que não há, nesses países, uma exploração planeada de recursos agrícolas? Porque é que países com um elevado potencial de terra cultivável continuam a apresentar números absurdos de populações famintas? A desigualdade de propriedade dos terrenos férteis é um dos aspectos do problema. Enormes corporações de produção em massa reservam para si os melhores campos e recursos, exportando tudo o que podem e arrasando com os produtores locais. Muitos dos países mais atingidos pela fome são precisamente aqueles que exportam muito mais produtos agrícolas do que os que importam. Acresce o facto de o potencial para produzir alimentos em África ser teoricamente entre 25 a 35% superior ao potencial na Europa ou na América do Norte. Simplesmente não existe o investimento nem o interesse para o explorar. Em países como o Sudão, a Somália ou o Mali, por exemplo, o total de área cultivável excede em larga escala aquela que é efectivamente usada para tal. No Chade, apenas 10% dos terrenos férteis e economicamente viáveis são cultivados. A ser invertida esta situação, é
evidente que tem de o ser inteligentemente. Uma exploração massiva destas regiões seria tudo menos sustentável. Existem alternativas, já implementadas hoje em dia. Por volta de 1990/91, após a dissolução da USRR, Cuba perdeu 80% das suas exportações e viu-se repentinamente mergulhada numa crise alimentar. Através de práticas agrícolas auto–suficientes que passaram pelo uso controlado de pesticidas, rotação de culturas, compostagem e conservação do solo, os organiponicos (hortas urbanas orgânicas) ocuparam facilmente o seu lugar no quotidiano da população e resolveram a fome que se instalara. A permacultura, ou Eco–Agricultura, está lenta mas eficazmente a tornar-se uma das mais sustentáveis formas de vida, muito aclamada pelo facto de ser aplicável até numa pequena horta doméstica, e com resultados de sucesso em regiões como a Etiópia, o Ruanda ou a Palestina. Uma outra abordagem é a construção de habitações sustentáveis e um cuidadoso planeamento das idades, um conjunto de medidas que não só minimizariam o impacto dos seres humanos no planeta, como facilmente resolveriam a fome a uma escala global. As Earthships, casas alimentadas principalmente por energia solar e construídas à base de uma mistura de materiais naturais e reciclados, são uma realidade crescente e promissora, totalmente funcionais e independentes de combustíveis fósseis. Existem projectos de eco-cidades completamente
capazes de suprimir todas as necessidades das suas populações de forma sustentável.
Que futuro? Seria irresponsável e ignorante negar os efeitos de um número cada vez maior de humanos na Terra. Ao usar exaustivamente os recursos do planeta, poderemos estar a pôr em cheque o futuro dos nossos filhos. Tal como bactérias numa placa de Petri, arriscamos estar a chegar ao limite do nosso ambiente. É ainda incerto se os actuais 7.2 biliões de pessoas são sustentáveis mas é seguro afirmar que temos ao nosso alcance meios para o planeta suportar facilmente toda a Humanidade, sem prejuízo da saúde do mesmo. Com as presentes tecnologias industriais, a FAO estima que os mais de 9 biliões esperados para 2050 são exequíveis, desde que haja o investimento necessário em infraestruturas e políticas de ordenamento do território e de gestão de alimentos e recursos. Não há razão para existirem, neste momento, pessoas com fome no mundo. Não há necessidade de explorar até à exaustão todos os centímetros quadrados de terra no planeta. Há sim que utilizar de forma inteligente e sustentável os recursos de que já dispomos. O limite é meramente a capacidade de desenvolver e aperfeiçoar os nossos sistemas tecnológicos e sociais. A nossa história é a de uma das espécies de maior sucesso na Terra. Não somos, de todo, bactérias numa placa de Petri.
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o quinto
sinal vital Sérgio Bronze “A vontade de me levantar escapa-se, as lágrimas caminham em direção ao chão e tu já não me ouves. Sim, tu, a esperança que isto pare. Que sabes tu sobre essa dor a que chamas crónica?”
S
egundo a International Association for the Study of Pain define-se dor como uma experiência sensorial e emocional desagradável, que se associa a lesão tecidular concreta ou potencial. Note-se que a dor nem sempre é verbalizada, sendo o caso mais elucidativo o dos bebés que se expressam com os mecanismos que dispõem, nomeadamente o choro, e está revestida por um caráter subjetivo, sendo que cada um encara a dor de acordo com a integração das suas experiências passadas. É certo que todos nós, num momento ou outro da nossa vida, já sentimos dor, independentemente da sua intensidade, mas falar de dor crónica - dor que subsiste por período superior a 3
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meses - é falar de um tema acoplado a estatísticas francamente assustadoras: estima-se que um em cada cinco europeus sofra de dor crónica. Num panorama nacional os números são ainda mais negros: 36% dos portugueses sofre desta valência da dor. A prevalência em Portugal diminui junto ao litoral, exceto ao longo do litoral alentejano e parece ter maior incidência no sexo feminino. O tempo que dista das queixas destes doentes ao diagnóstico e prescrição de terapêutica é fraturante e moroso, pela dificuldade do estabelecimento concreto de causa e pela integração das múltiplas especialidades médicas exigida - existem atualmente Unidades da Dor, que se dedicam por inteiro a doentes em sofrimento. É premente a adequada formação para combate da dor, um sintoma multifatorial que merece valorização por parte dos clínicos. As causas mais comuns descritas na literatura são a patologia osteoarticular, os traumatismos, as neoplasias malignas metastizadas, as cefaleias, a
zona (Herpes zoster), a angina de peito e a artrite reumatóide. Esta forma de dor não é uma consequência inevitável do envelhecimento, visto que quando se envelhece assiste-se a uma dessensibilização à dor (de cabeça, abdominal e facial), pelo que a dor mais prevalente nos idosos deriva de processos fisiológicos, como a diminuição da densidade óssea e perda concomitante de massa muscular, que conduzem a compressões ósseas e estado de maior fragilidade. A dor classifica-se primariamente em aguda ou crónica, sendo que a esta se associa um declínio da qualidade de vida dos doentes, afirmando-se nos dias da medicina moderna como um problema de Saúde Pública. É o quinto sinal vital e a análise de que é alvo é cada vez mais fina, o que se reflete na classificação usada. Tendo por base a causa e local de origem, a dor pode ser Nocicetiva (provocada por lesão tecidular e cujos estímulos são transmitidos ao SNC) dentro da qual se apreciam a Somática e a Visceral;
Neuropática (lesão ou perturbação da integridade de um nervo, dor descrita como cortante, em choque ou queimadura, típica de diabéticos; Psicossomática (não é baseada em causas orgânicas); e Mista, que envolve mais de uma classe supracitada. Alguns doentes com dor neuropática referem ainda sensação dolorosa associada a estímulos que habitualmente não são causadores de dor, as alodinias. Posto o diagnóstico, e atualmente preconiza-se que este curse no seio de uma equipa multidisciplinar, decide-se a terapêutica. Quando as endorfinas, os neurotransmissores que participam no alívio da dor a nível fisiológico, já não conseguem colmatar a dor, é então que surge a intervenção farmacológica. Existem diferentes classes medicamentosas, que escalam na sua potência. Os fármacos não-opióides são os usados para dores ligeiras e como exemplo temos o paracetamol e os anti-inflamatórios não esteróides (AINE’s). Para casos de dores mais intensas, surgem os agonistas opióides, que têm como protótipo a morfina, conhecida pela capacidade de alívio eficaz da dor. Pela primeira vez, em 1803 na Alemanha, isola-se morfina - cujo nome é homenagem ao deus grego dos sonhos, Morfeu - a partir do ópio retirado das papoilas. Surgem os Opióides Minor, como o tramadol e a codeína, usados para dores moderadas; aquando de dores intensas e fortes surgem os Opióides Major, como a morfina, o fentanilo e a hidromorfina. Como última classe terapêutica aparece o Tapentadol, um agonista dos recetores µ e inibidor da recaptação de norepinefrina, cuja ação é bastante efetiva como última linha de tratamento. Vale a pena notar que a escolha dos fármacos é baseada na evidência clínica, no diagnóstico e ainda noutros fatores não menos relevantes, como o nível de hidratação do doente e respetivo IMC. Para a dor neuropática - uma das mais complexas de tratar - usam-se, ainda, anti-depressivos e anti-epilépticos, como a gabapentina. Surgem outras terapias adjuvantes, com destaque para a acupunctura, que tem cada vez
mais adeptos, a par de outras formas de medicina alternativa. Nas consultas da dor, os especialistas usam técnicas como bloqueio de nervos periféricos, abordagens epidurais, radiofrequência, implantação de bombas infusoras; implantação de neuroestimuladores e outras terapias neurocirúrgicas, alvo de intensa investigação. Estes tratamentos, assim descrito, sugerem alguma linearidade e simplicidade, mas a verdade é que surgem vários efeitos adversos, complicações nos doseamentos dos fármacos e ainda elevados custos. Nos Estados Unidos gastam-se cerca de 70 mil milhões de dólares com a dor crónica. Em Portugal os dados não são ainda esclarecedores, mas existe atualmente o Plano Estratégico Nacional para a Prevenção e Controlo da Dor, que tem como premissas a valorização da dor como sinal de alarme vital para a integridade do indivíduo - sendo fundamental no diagnóstico-, e ainda que todo o indivíduo tem direito ao adequado controlo
da dor, independentemente da causa, evitando o sofrimento desnecessário e diminuindo a morbilidade associada. Em todos os casos em que as armas nos escapam, numa diluição que lembra a efemeridade da existência, devemos ter a humildade para reconhecer os limites da nossa prática, que se exige altamente humanizante. Abre-se o Dicionário da Língua Portuguesa, 7ª edição, da Porto Editora, e dor surge como “sensação penosa ou desagradável; sofrimento; pesar; condolência; mágoa; dó; arrependimento (…)”. Sugiro que tenhamos esta definição profusamente em mente para que o esforço em combater a realidade da dor crónica - dor incapacitante, penosa para a família e com caminho pérfido até ao seu diagnóstico e implementação de terapêutica - nunca caia na insipidez do desinteresse ou conformismo. O epílogo fica a cargo de Sebastião da Gama:
“Os que vinham da Dor tinham nos olhos estampadas verdades crudelíssimas. Tudo que era difícil era fácil aos que vinham da Dor directamente. A flor só era bela na raíz, o Mar só era belo nos naufrágios, as mãos só eram belas se enrugadas, aos olhos sabedores e vividos dos que vinham da Dor directamente.”
Excerto do poema “Os que vinham da dor” do poeta Sebastião da Gama, poeta da Arrábida, que aos 14 anos lhe foi diagnosticado tuberculose óssea. Na sua obra existem alguns retratos da dor que sofreu até falecer, aos 27 anos, vítima de meningite.
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Paleodiet Inês Pereira
N
ascida nos anos 70 pelas mãos do gastroenterologista Walter L. Voegtlin, e esquecida algures no tempo, a paleodieta tem sido um dos planos alimentares mais discutidos (e o mais pesquisado em 2013, segundo a Google) e que está a ganhar popularidade a olhos vistos. Sim, é precisamente o que estão a pensar. Uma dieta paleo é exatamente aquilo que o seu nome sugere: um plano alimentar baseado em alimentos semelhantes àqueles que deverão ter sido consumidos durante a era Paleolítica, ou seja, entre 2.5 milhões e 10.000 anos atrás. Contempla a inclusão de carnes magras, peixe, fruta, vegetais, frutos secos e sementes na dieta quotidiana - alimentos que no passado seriam obtidos através da caça e recoleção. Além disso, limita alimentos que se supostamente se tornaram comuns quando a agricultura começou a desenvolver-se, assim como provenientes da pecuária - produtos láteos, legumes e leguminosas. Também todos os alimentos processados estão excluídos da vida de quem segue esta dieta. A lógica por trás da dieta paleo é o facto de partir do princípio de que o corpo humano está mais adaptado a ela do que à “dieta moderna”. A agricultura terá alterado dramaticamente aquilo que os nossos antepassados comiam e estabeleceu os laticínios, grãos e legumes como parte adicional da dieta humana. O argumento principal dos defensores da paleodieta será o de que os nossos antepassados paleolíticos estariam geneticamente adaptados especificamente aos alimentos prontamente disponíveis no seu ambiente local. Logo, a fisiologia e o metabolismo de humanos modernos não terá mudado muito desde os tempos dos seus
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ancestrais paleolíticos - as mudanças inerentes à revolução industrial, mais precisamente manipulação de culturas, criação animal e processamento alimentar ocorreram há menos de dois séculos, o que não daria tempo para adaptação genética. Esta rápida mudança e a incapacidade de adaptação por parte do ser humano será um fator que contribui para a prevalência elevada de obesidade, diabetes e doença cardíaca - doenças que muitas vezes associamos ao estilo de vida. No entanto, existe uma série de contra-argumentos a esta abordagem. Estudos de vários tipos de populações mostram que é possível ter uma vida saudável com várias dietas diferentes. Logo, não podemos descartar que o ser humano tenha evoluído como criatura flexível, até nos hábitos de alimentação. Além disso, se o objetivo da paleodieta é promover uma alimentação como a dos nossos antepassados, nunca seremos capazes de o fazer, já que as espécies de plantas e animais evoluíram no sentido da adaptação às necessidades dietéticas de uma população muito maior, muitas delas sendo manipuladas geneticamente e criadas em espaços fechados. Na tentativa de simular a dieta ideal, é preciso ter em conta que a informação acerca das proporções relativas de alimentos de origem animal ou vegetal nas dietas de humanos paleolíticos é incompleta e circunstancial - não existem dados suficientes para identificar a composição de uma dieta ótima geneticamente determinada. Será também necessário fazer mais pesquisa de modo a concluir se houve alguma desvantagem do ponto de vista
de saúde em termos de inserção de grãos, comida processada e laticínios na dieta moderna. De forma semelhante, existe pouca pesquisa clínica acerca do benefício da dieta paleo, o que significa que não há estudos a longo prazo que atestem os potenciais benefícios e riscos desta dieta. Possivelmente, consegue obter-se os mesmos benefícios para a saúde ao fazer exercício regularmente e tendo uma dieta equilibrada rica em vegetais. De lembrar que este foi considerado um dos piores planos alimentares este ano pela British Dietetic Association (BDA), que a considerou entre as piores 5 dietas de 2015, dizendo que era “desequilibrada, consome tempo e isola socialmente”. Ainda segundo a BDA, não existe justificação para eliminar grupos alimentares numa dieta saudável e equilibrada, sendo que a dieta paleo possivelmente trará consequências derivadas de défices nutricionais. Bibliografia: Nestle, Marion (March 2000). “Paleolithic diets: a skeptical view”. Nutrition Bulletin. 25 (1): 43-7 • https://www.bda.uk.com/news/ view?id=39 • http://www.mayoclinic.org/healthy-living/nutrition-and-healthy-eating/in-depth/paleo-diet/art-20111182?pg=2
Leite:
o super alimento? Inês Pereira
E
m 2011, Harvard publicou um relatório em que o leite e seus derivados já não eram considerados alimentos essenciais a uma dieta equilibrada, chamando a atenção para um tópico há muito discutido e sempre controverso na esfera nutricional. Food Pyramids and Plates: What Should You Really Eat? (assim é chamado o guia de alimentação saudável da universidade) foi lançado como crítica às então novas diretrizes nutricionais do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), MyPlate. Embora na cultura ocidental o leite seja visto como um alimento promotor do crescimento e saúde óssea, essencial a um estilo de vida saudável e equilibrado - como os spots publicitários não deixam de nos lembrar - sabemos atualmente que cerca de 70% da população mundial é intolerante à lactose. Nos continentes que apresentam um baixo consumo de lacticínios (para não dizer praticamente inexistente) - Ásia, África e América do Sul - a prevalência de osteoporose é baixa. Em meta-análises recentes sobre o tema, não foi encontrada qualquer relação entre o consumo de leite e prevenção de fraturas osteoporóticas; Harvard sugere que até poderá aumentar o risco de desenvolver doenças crónicas. Ao que parece, consumo regular de lacticínios não é tão vantajoso para a saúde como
se poderia imaginar. Começando pelas más notícias, consumo excessivo de lacticínios está associado a risco aumentado de desenvolver cancro. Níveis elevados de galactose, o açúcar/glícido libertado durante a digestão da lactose, podem ser prejudiciais e levar ao desenvolvimento de cancro do ovário. A produção industrial de leite, que é, de resto, o processo que leva este alimento às nossas casas, alterou a composição hormonal do leite, o que também tem relevância quando avaliamos os riscos de cancros hormonais/relacionados com hormonas. Uma dieta rica em cálcio também está implicada como um fator de risco para cancro da próstata: homens que bebiam dois ou mais copos de leite por dia têm o dobro da probabilidade de desenvolver cancro da próstata avançado comparativamente aos que não o bebiam de todo. Esta associação parece estar relacionada com o cálcio em si e não especificamente com produtos lácteos. Sempre nos habituámos a ter o leite como alimento de referência, mas na verdade há alimentos mais ricos em cálcio e de mais fácil absorção - crucíferos, leguminosas e bebidas vegetais e que, para além disso, têm uma taxa de absorção intestinal de cálcio superior à dos laticínios. É ainda de recordar que muitos produtos láteos são ricos em gorduras saturadas (e no caso do queijo, o sódio), fatores de risco importan-
tes para doença cardíaca. Dado estes factos não serem referidos no relatório MyPlate, Harvard sugere que o relatório da USDA reflete os interesses da indústria e não os de saúde. Relacionar a densidade mineral óssea com maior ingestão de leite (ou cálcio) é ter uma visão limitada de tudo o que envolve saúde óssea. O bem-estar deste sistema depende de muitos fatores diferentes: níveis hormonais e de vitamina D, exercício físico regular e consumo de vitamina K, proteína excessiva na dieta, cafeínas, refrigerantes, entre outros – é excessivo assumir que o cálcio é o elemento fundamental deste ciclo. Apesar de todas as hipóteses colocadas neste artigo, a verdade é que o leite também apresenta benefícios para a saúde: não só aparenta ter um papel benéfico no controlo da pressão arterial e redução do risco de cancro do cólon, como também poderá potenciar a perda de peso e de massa gorda em pessoas que estejam a tentar emagrecer, ao mesmo tempo que preserva a massa muscular. Todas estas vantagens são obtidas com ingestão de um a dois copos por dia, sendo que não há qualquer benefício em aumentar este consumo (vide acima, as más notícias) – diz Harvard. Bibliografia: http://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/calcium-full-story/ • http://www.hsph. harvard.edu/nutritionsource/what-should-you-eat/ calcium-and-milk/ • http://www.hsph.harvard.edu/ nutritionsource/pyramid-full-story/
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Prof. Doutor
João Gorjão Clara
Foto: Joana Jesus – JustNews 2015
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Grande Entrevista “Diz-se que temos um problema grave económico com o envelhecimento da população. Mas ninguém diz que é uma felicidade e uma conquista conseguirmos que as pessoas vivam mais anos.É importante termos noção disto, de que o envelhecimento não é um fardo, é uma vitória da medicina e da sociedade. “
P
ortugal está a envelhecer. Esta é uma realidade que não podemos negar. Os cabelos grisalhos e as rugas de quem muito já viveu pintam as paredes dos hospitais e não deixam dúvidas de que é crucial para um médico, nos dias de hoje, saber lidar com o doente idoso. No entanto, será que a Medicina acompanhou esta mudança demográfica? Será Portugal um país ideal para nele se envelhecer, dada a cada vez mais diminuída posição social do idoso na sociedade? O Prof. Dr. João Gorjão Clara, médico especialista em Cardiologia e Medicina Interna, actualmente Professor da cadeira de “Introdução às Doenças do Envelhecimento” na Faculdade Medicina da Universidade de Lisboa e membro da European Academy for Medicine of Ageing, da Section Board - Geriatric Medicine Section e da European Union Geriatric Medicine Society, esclarece-nos sobre a situação da Geriatria em Portugal e os seus obstáculos, desvendando também os principais mitos em relação ao envelhecimento.
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Entrevistado por Catarina Paias Gouveia Ressonância: Em primeiro lugar, gostaríamos que nos falasse um pouco sobre a situação da Geriatria em Portugal. Sabemos que o envelhecimento da população é real e não sabemos até que ponto a Medicina está preparada para essa mudança. Prof. Doutor João Gorjão Clara: Para falar um pouco sobre a Geriatria e a sua situação em Portugal, penso que a primeira coisa que vale a pena definir é o que é o Doente Geriátrico, devido à grande confusão e ignorância que existe em relação a esse conceito. A Geriatria foi fundada em Inglaterra há cerca de 70 anos atrás, quando a esperança média de vida ainda era inferior a 65 anos. Nessa altura, a Medicina dividia-se em Pediatria e em Medicina dos Adultos, pois reconhecia-se que as crianças tinham de ter uma abordagem muito particular, apresentando características fisiológicas próprias e problemas de saúde próprios. Segundo o mesmo raciocínio, concluiu-se que a população que ultrapassava os 65 anos também deveria ter uma abordagem particular, pois, da mesma forma que uma criança necessita de um pediatra, um doente idoso também precisa de um geriatra. Inventou-se então o Comprehensive Geriatric Assessment, que pretendia identificar os idosos nos quais valia a pena investir.
mente que os doentes geriátricos são doentes muito idosos, mas não são todos os doentes com mais de 65 anos! No que diz respeito ao doente geriátrico, podemos considerar 3 tipos de doentes: o Idoso em Forma, que é o indivíduo que tem saúde e que do ponto de vista clínico é igual a um adulto de 45 anos. Tem actividade física, social e intelectual semelhantes a um indivíduo mais novo. Este idoso, quando tem uma doença aguda, não é um doente geriátrico! Mas atenção, apesar de ser um indivíduo saudável com um quadro de doença aguda, tem de ser tratado de acordo com a sua idade. O facto de ser idoso deverá condicionar as atitudes terapêuticas! Ou seja, quem o vai tratar tem de ter conhecimentos de geriatria. Depois há outro idoso, que apresenta uma doença crónica ou duas. É, por exemplo, o doente hipertenso, que tem doença coronária e é diabético, mas que está equilibrado. Esse indivíduo continua a fazer uma vida razoável, tem uma normal vida de relação e continua bem integrado na sociedade. É o que designo por Idoso Estável. Quando tem uma doença aguda deve ser tratado, não necessariamente nas Unidades de Geriatria, mas é preciso ter em conta que apresenta alterações fisiológicas que obrigam a ter cuidado na sua abordagem. Mais uma vez, este é o doente que tem de ser tratado com conhecimentos geriátricos mas não é o doente geriátrico. Este é o doente idoso estável.
“Segundo a Organização Mundial de Saúde, nenhum estudante de medicina deveria acabar o curso sem formação em Geriatria.” Isto foi aceite em 1948 e a ideia de que um idoso precisa de cuidados especiais persistiu na cultura médica até aos nossos dias. Entretanto, o conceito de doente geriátrico evoluiu e agora já não é baseado na idade do doente. Natural-
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O terceiro grupo é o Doente Geriátrico. É o que habitualmente é muito idoso e que tem muitas patologias. Tem doença coronária, diabetes, é hipertenso, tem insuficiência cardíaca, tem glaucoma, tem refluxo gastro-esofágico com anemia, osteoartroses…
É portador de várias doenças crónicas e é por isso difícil de tratar. Este doente muito complexo, polimedicado, com história de internamentos repetidos muitas vezes com longos tempos de internamento, com fraco suporte social e familiar, com algum compromisso cognitivo, é o doente Idoso Geriátrico, que poderá ser internado na Unidade de Geriatria. E como distinguimos bem estes diferentes tipos de doente idoso? É o bom senso, é a experiência, é a discussão do caso entre o Internista e o Geriatra. Por exemplo, se se encontrar um doente com uma doença neurológica nas urgências, como uma polineuropatia, chama-se o Neurologista para dar o seu parecer e se decidir a melhor intervenção. E o mesmo se sucede para as outras patologias! Por isso mesmo existem Unidades de Geriatria em todo o mundo. No entanto, nos dias de hoje em Portugal, pensa-se que não vale a pena criar Unidades de Geriatria. Porquê? Porque para alguns de nós vigora a definição de há 70 anos: doente geriátrico é aquele que tem mais de 65 anos e, dado que a maior parte dos doentes internados tem mais do que 65 anos, todos os hospitais são “Hospitais Geriátricos”! Na comunidade Europeia, e em todos os Países civilizados do Mundo, multiplicaram-se as Unidades de Geriatria (em Espanha existem desde há 30 anos, nos EUA desde há 33 anos, no Brasil desde há 37 anos) com excepção da Grécia e Portugal! Eu tenho lutado para que nos aproximemos destes países e não tenho tido grande sucesso. Para além disto, no nosso caso as Unidades de Geriatria, além da assistência aos doentes idosos mais complexos, também serviriam para a formação dos médicos nesta área. Segundo a Organização Mundial de Saúde, nenhum estudante de medicina deveria acabar o curso sem formação em Geriatria. A Geriatria exige o ensino prático que não é possível realizar sem Unidades de Geriatria. R: Como é a formação de Geriatria no
país? É acessível a todos os alunos? GC: Infelizmente nem todos os alunos têm acesso ao ensino de Geriatria. Que eu saiba esta disciplina só existe como disciplina obrigatória em Lisboa, na Beira Interior e como cadeira facultativa em Coimbra. Aliás, a título de curiosidade, a disciplina de Introdução às Doenças do Envelhecimento leccionada na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa teve início recentemente, no ano lectivo de 20092010. R: Já que nem todos podem ter uma formação de Geriatria adequada, onde podemos saber mais? GC: A Unidade de Geriatria tem como objectivo a formação, destacando-se o ensino prático que, infelizmente, não é leccionado nas aulas de doenças do envelhecimento. Eu só vos ensino o teórico. Costumo até dizer nas aulas que, “ Se fosse possível, alugava dois aviões da TAP e levava-vos a Espanha, a qualquer um dos hospitais, onde existem Unidades de Geriatria e vocês poderiam aprender e viver a realidade da Geriatria que eu não vos posso ensinar”. O objectivo era que qualquer médico ou profissional de saúde que quisesse aprender Geriatria pudesse frequentar as Unidades de Geriatria. E, assim, a Unidade de Geriatria teria toda a vantagem para a formação dos alunos, dos enfermeiros e dos médicos. A Ordem dos Médicos criou as Competências em Geriatria. Onde é que se faz esta aprendizagem, onde se obtêm estas competências? Não temos Unidade de Geriatria. É um paradoxo. E é também por isso que eu defendo a sua criação. E porque é que a abertura da Unidade de Geriatria está tão atrasada? Não sei responder a essa questão. A decisão da abertura da Unidade estava dependente da aprovação do Director Clínico do CHLN que concordava com o projecto. No entanto, a sua demissão implicou que todo o processo voltasse à estaca zero. Como se não bastasse,
aconteceu exactamente o mesmo com o Director Clínico seguinte, o processo viu-se interrompido e agora teremos de recomeçar tudo de novo.
aula um quadro de um velho com uma bengala, numa igreja de pedra, a olhar o horizonte. Uma imagem triste, religiosa, em que a pessoa espera que a morte chegue. O velho fecha-se, deixa
“Se tivesse que dar um único conselho aos idosos (...), o que lhes diria? Eu diria que abolissem a expressão ‘eu já não tenho idade’.” R: O Professor encara o envelhecimento como um processo natural da vida que deverá estar repleto de experiências ricas e agradáveis. Esta ideia contrasta com a ideia popular em que o idoso se encontra em casa, inactivo e muitas vezes abandonado. O que é, para si, um envelhecimento activo? GC: Se tivesse que dar um único conselho aos idosos, ou às pessoas que estão a envelhecer, o que lhes diria? Eu diria que abolissem a expressão “eu já não tenho idade”. Essa é a frase que é preciso combater, porque é um preconceito social. O que nós aprendemos todos é que as pessoas, a partir de uma certa idade, deixam de ter idade para fazer certas coisas, como usar cores claras, calças, blusas de renda, pulseiras, colares, maquilhagem. Uma velha gaiteira! É um preconceito. E o preconceito não passa apenas pela roupa, passa também pela sexualidade. Diz-se que a sexualidade no idoso é uma promiscuidade, que é uma obscenidade, que é imprópria, um pecado. Para ilustrar esta questão, conto-vos agora a história de um doente meu que estava internado num lar. Nesse lar os homens e as mulheres estavam divididos por andares. O senhor costumava ir ter com uma senhora com quem tinha algum tipo de relacionamento e o filho foi chamado tendo-lhe sido dito que: ou o pai se comportava de acordo com a sua idade ou então punham o pai na rua. E como é que o idoso era encarado no século XIX? Eu mostrei-vos numa
de ser uma pessoa activa, comunicativa, divertida e extrovertida. Deixa de viver. Por isso, a primeira coisa a dizer a um idoso é “viva a sua vida livre de preconceitos”. Esqueça a expressão e o preconceito “eu já não tenho idade”. Tem idade para tudo o que lhe apetecer e a sua autonomia física permitir. Quando falo disto, penso na necessidade de mudança mental e social. Recordo-me de há uns anos atrás ter encontrado um senhor de oitenta e dois anos numa casa de fados, às duas da manhã, e lembro-me de o ter felicitado por lá estar, por fazer aquilo que eu aconselho, que é nunca deixar de se fazer o que nos apetece. Lembro-me que um dos seus poemas tinha a seguinte frase “Se eu não fizer assim, eu até terei de deitar luto por mim”. A frase diz exactamente isto! Se eu não sair, se eu não me divertir, então eu matei-me, eu suicidei-me, eu terei de deitar luto por mim. Citando uma frase do livro Saber Viver ao Entardecer: “Recuse o preconceito social de quem já não tem idade para fazer tudo o que lhe apetece e gosta. Só cada um pode decidir como aproveita cada dia que a vida lhe oferece.” Esse é um dos preconceitos mais horríveis que vinga na nossa sociedade e que, felizmente, se tem vindo a dissipar mas que ainda existe. Vocês quando forem velhos, espero eu, já não vão viver esse preconceito. Nós que estamos neste meio caminho, devemos ensinar isto aos idosos. R: Portugal é um bom país para se
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envelhecer? GC: O ideal era que todos os idosos tivessem o tempo ocupado com actividades lúdicas, e isso não consiste só em ouvir música e dançar! É também ler, aprender, passear e realizar todas as actividades que sejam enriquecedoras da mente e mantenham as faculdades mentais bem activas. Qual a faculdade mais importante que um idoso deve manter? A actividade intelectual! E não
tes para os idosos. Muitos idosos que já apresentavam défices cognitivos conseguiram ter uma recuperação bastante significativa. A estimulação intelectual é sempre útil em qualquer fase da vida, quer se seja jovem ou e idoso. Portanto, se nos deparássemos com um doente idoso que estivesse incapacitado, com um défice cognitivo, a primeira abordagem seria estimulá-lo a nível intelectual? Sim. Incentivar a participar em cen-
“Todos nós devíamos cultivar o respeito pelos mais velhos. Se recuperássemos o respeito pelos velhos, já não os segregávamos das famílias e reintegrávamo-los de novo.” a actividade física. Porquê? Porque não se pode ensinar a uma pessoa demente que deve andar a pé porque faz bem, por exemplo. O conselho mais importante para a manutenção da qualidade de vida é “use a cabeça e não deixe de ler, de se informar, de conviver porque, se deixar de o fazer, vai rapidamente perder as capacidades intelectuais e depois, consequentemente, as físicas também”. Portanto, a primeira coisa a fazer é acabar com o preconceito social de “já não tenho idade”. Depois é tornar como prioridade a estimulação intelectual. Veja-se o caso do cineasta Manoel de Oliveira, que trabalhou até ao fim da sua vida! R: Acha que esses conselhos são apenas úteis em termos de manutenção ou também para recuperação? GC: As duas coisas! A ginástica mental começou a ser utilizada em jovens que tinham sido vítimas de acidentes de viação violentos, com traumatismos cranianos graves e défices cognitivos severos também. Para além da fisioterapia, começaram a ser usados testes de recuperação e estimulação intelectual. Verificou-se que esses testes eram eficazes na recuperação cognitiva e transpuseram-se esses tes-
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tros de dia, Universidades da Terceira Idade, reuniões culturais, entre outros. Isso seria o ideal. R: Como podemos restituir a perda social, o valor? GC: Isso é uma questão cultural. Por exemplo, as crianças nos dias de hoje, não aprendem o respeito pelos idosos e pelos mais velhos. E é algo que me incomoda imenso. Esse valor foi destruído. Aliás, até o respeito pelos pais desapareceu consideravelmente. Os miúdos hoje tratam os pais como colegas de escola. É muito importante educar os mais novos para que eles compreendam que estão cá graças aos mais velhos, porque foram os mais velhos que se esforçaram, trabalharam e preocuparam para que eles cá estivessem. Todos nós devíamos cultivar o respeito pelos mais velhos. Se recuperássemos o respeito pelos velhos, já não os segregávamos das famílias e reintegrávamo-los de novo. Nas culturas mais antigas, os velhos são referências para a família e para os restantes, reconhece-se que eles têm conhecimento e muita experiência de vida. Nas culturas antigas era normal e tradicional que os mais velhos fossem
responsáveis pelas decisões de um povo. No entanto, agora, o idoso já não sabe informática e já não acompanha os avanços tecnológicos do momento. É desconsiderado também por isso. Para recuperar o valor do idoso, é necessário reconhecer que alguém com tantos anos de vida tem uma experiência e um conhecimento inigualáveis, algo que não pode ser estudado em livros ou pesquisado na internet. Uma coisa é erudição, outra é cultura. Erudição é o que se aprende a ler. Uma pessoa que lê muitos livros é erudita, conhece e emite muitas opiniões dos outros que leu, mas isso não quer dizer que seja culta. E, do mesmo modo, a pessoa culta não tem de ser erudita. Os velhos são cultos, mas não necessariamente eruditos. Têm uma cultura natural por experiência vivida. Diz-se que temos um problema grave económico com o envelhecimento da população. Mas ninguém diz que é uma felicidade e uma conquista conseguirmos que as pessoas vivam mais anos. É importante termos noção disto, de que o envelhecimento não é um fardo, é uma vitória da medicina e da sociedade. Não é uma derrota nem um prejuízo. É uma mais-valia e nós temos que nos adaptar a essa realidade. R: Será que os centros de dia estão igualmente distribuídos pelas zonas do país? Será que todos os idosos têm igual oportunidade de se envolverem em actividades culturais e intelectuais? GC: O grande problema de Portugal é um problema económico, porque ideias não faltam. É importante que se defenda a ideia nas Juntas de Freguesia e nas Autarquias de que são necessários centros de dia para os idosos. Devem existir instalações de convívio, aprendizagem e de manutenção das capacidades intelectuais e físicas do idoso. E depois, claro está, arranjar fundos para isso! Acredito, no entanto, que vão existir, cada vez mais e em todo o país, centros de ocupação para os idosos. R: Saiu recentemente um artigo no jornal “The Economist”, no qual são refe-
GC: Isto pode acontecer em Portugal também, mas a causa está mais relacionada com o isolamento e a depressão. O abuso do álcool, a droga ou outros comportamentos de risco resultam muitas vezes da depressão, do isolamento e da ausência de objectivos. Após a reforma, os idosos deixam de ser produtivos sob o ponto de vista profissional e sentem que perdem o seu valor. Estes comportamentos funcionam como um escape. Os idosos devem
ter a oportunidade de ter um envelhecimento activo, para que sintam que continuam a valer como pessoa e como membro da sociedade, evitando-se assim a ocorrência de muitos destes comportamentos de risco. R: Como é que nós podemos envelhecer com qualidade? Como é que podemos ser um Manoel de Oliveira? GC: Isso tem muito a ver com a cultura. Muitas pessoas vivem e trabalham à espera da idade da reforma. Muitas pessoas com cerca de 50 anos já se encontram reformadas... É isso não é bom! A reforma não pode ser vista como o desligar de um interruptor. Um indivíduo que tenha muitas tarefas e preocupações diárias e que, depois de se reformar, se desliga como um interruptor que corta todas as actividades, deixando de ter preocupações e estímulos, involui muito rapidamente.
Porquê? Porque deixou de ter o estímulo intelectual. Ter preocupações é bom, porque se estimula o raciocínio a encontrar uma solução. Viver sem preocupações é mau. A ideia de que a reforma é o tempo de nada se fazer, ver televisão até às 2h da manhã, ficar na cama sem se levantar...é péssima! Nunca nos devemos reformar. É esse o melhor conselho que se pode dar a alguém que queira prevenir a demência. O que quero dizer com não nos reformarmos? Não é nunca deixar de trabalhar. É não nos desligarmos das preocupações, dos nossos bons hábitos, do convívio com os amigos, da discussão dos temas que definem a nossa vida comunitária, da leitura, da marcha diária, do que nos dá prazer e aumenta a auto-estima, não nos isolarmos na nossa concha… Resumindo num lugar-comum: continuar a viver a vida!
Foto: Nuno Branco – JustNews 2015
ridos alguns casos de idosos, que, depois de se reformarem, retomaram (até mesmo intensificando) os seus maus hábitos, desde o tabaco, o álcool, o sexo desprotegido e as drogas. Como é a realidade em Portugal? Significa isto que, por um lado, os idosos sentem-se inibidos pelos estigmas da sociedade e que, por outro, por estarem sozinhos e isolados, têm uma maior tendência a criar ou retomar hábitos prejudiciais?
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Global
Aging
Ana Mira
S
omos uma geração de netos, futuros pais, filhos dos filhos dos nossos avós. Crescemos num mundo completamente diferente, mudado em relação àquele em que viveram as gerações passadas, mas perpetuamos o conhecimento, cultura e tradição deixados pelos nossos descendentes, e transmitimo-los às gerações futuras. Numa pequena viagem à volta do mundo venho-vos dar a conhecer a população idosa aos olhos dos jovens, o outro extremo da idade que é consciente da importância e influência dos mais velhos na sua comunidade. Cruzando fronteiras, línguas, dialectos e etnias, é consensual que a sabedoria e a experiência são algo transversal a todas as nações e comunidades. Cabe-nos a nós, jovens, trabalhar esta imagem da terceira idade que um dia também poderá ser a nossa. Agradecimentos: Amr Negm, Kimball Zhang, Nadav Harel, Bartolomeu Ramos, Jenna Briley
Qual o papel das pessoas de terceira idade na tua comunidade? [EGIPTO] They carry the community’s memory and experience, they are always there for an advice and help to the youth. Helping new parents with the children is a remarkable role they’re always pleased to play. [CHINA] In Chinese culture everyone treats elders with high respect. They’re seen as people with wisdom and knowledge. Grandparents often live at home with the family. Taking care of the house and the grandchildren if the parents aren’t home. In many Asian/South Asian cultures, it’s really common for the elders of the family to live with the rest of the family in the same house. [CANADA] Often they’re put into retirement homes, if not stay in their own home. Basically, the elderly aren’t really seen/portrayed as doing anything. They do their own thing. not necessarily contribute to the community. A good example of that would be like in Simpsons. and
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the grampa doesn’t really do anything but live in the retirement home. A large part of Canada’s population is made up of immigrants, not every person in the family migrates, so families are split up, like extended families are. [CABO VERDE] tem um papel fundamental, sobretudo na transmissão dos valores,hábitos e costumes da nossa cultura. [ESTADOS UNIDOS] Elderly people don’t really have a role, honestly. I know that sounds really bad! But they are respected and are role models to most people. Especially the Veterans and those who lived through the Great Depression. [AUSTRALIA] Pivotal role within the family structure as a beloved family member. Many of them are retired. Given their extensive life experience, they are able to provide advice on important relating to the progress of society.
De que maneira é diferente a tua relação e abordagem de pessoas idosas em
relação às restantes da tua comunidade? [EGIPTO] “Never remain seated if a man older than yourself is standing.” [CHINA] In general in China you treat all elders with respect. as if they were your own. For Chinese culture, every person you meet is essentially part of ‘the family’. the words we use to great each other are sometimes like. “uncle, aunty, big brother, etc.”even if they’re family friends. [CABO VERDE] com mais respeito, carinho, amor.....usando uma linguagem própria e adequada. [ESTADOS UNIDOS] I have a special respect for them because I know they have lived through a lot and are the wisest of us all. I always smile at them when I can and try to help them when I can. [AUSTRALIA] I believe that elderly people are becoming increasingly marginalized and on the periphery of society. For instance, many are not familiar
with the latest technologies and trends, and are therefore unable to contribute and function in society as much as they would like to. Further, their attempts to integrate are compounded by their physical limitations (ie inability to work) Given these difficulties, it is important to be extra patient, understanding, and compassionate to the elderly.
Como se ocupam essas pessoas no seu dia-a-dia? [EGIPTO] Well, after retirement people tend to get bored of staying home; especially after spending more than half of their lives working; most of them tend to start a small business of their own or participate with NGO’s & charity organisations to help the society. [CHINA] in Chinese culture, if the
grandparents lived with the family. They would often look after the house while everyone else is gone. Help raise the children/their grandkids. [CABO VERDE] Normalmente, na minha comunidade, as pessoas da terceira idade são bem cuidadas pelos familiares e estão muito bem integradas nas suas famílias, o seu dia a dia é normal. São úteis na família, fazem algum trabalho doméstico, saem para passear... [ESTADOS UNIDOS] I don’t think very many elderly people have occupations anymore. I know some of them volunteer at places such as schools, libraries, or political events.
O que associas ao conceito de Envelhecimento?
[EGIPTO] Apart from being more compromised to diseases & organ failures, I believe aging makes people more experienced & much wiser and, therefore, more responsible.. as those who’ve seen the past are the guidance to a better future. [CHINA] uhh. grey hair, wrinkles, not necessarily weakness but more fragility, experience, wisdom, maybe a cane/ walking stick, slower walking... [AUSTRALIA] Aging in itself is not a bad thing. We all age and with often with age comes wisdom and contentment. But severe aging, whereby a person is unable to function without assistance, and is cognitively impaired, is a sad state, and depressing to see somebody as a former shell of the person that they were.
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medicina legal Rita Matias
A
Medicina Legal é muito mais do que morte, muito mais do que tem sido preconizado durante anos e anos, no pequeno e grande ecrã. Esta é uma especialidade tanto médica como jurídica, onde os conhecimentos adquiridos ao longo do curso de Medicina são postos ao dispor da justiça. Assim, para muitos o primeiro contacto com a Medicina Legal apresenta algumas características surrealistas, entrando num mundo com uma linguagem diferente da utilizada até então e um pensamento direcionado para a investigação etiológica não de doenças, mas de acontecimentos. Em Portugal a justiça divide-se em diferentes direitos, existindo possível intervenção da Medicina Legal em todos eles. O Direito Penal encontra-se relacionado com as leis de um país, e consequentemente com as penas atribuídas àqueles que as desrespeitam, com a finalidade de preservar a sociedade, sendo diferente do Direito Civil que regula as relações entre os indivíduos, como por exemplo as situações de heranças ou contratuais. Por outro lado, na relação específica de empregador-trabalhador temos o Direito do Trabalho, e na relação estado-trabalhador o Direito Administrativo. O Instituto Nacional de Medicina Legal encarrega-se da execução dos diversos pedidos de exames periciais solicitados pela Justiça, mas também pelos próprios cidadãos a título individual. Os seus serviços estão divididos em 4 campos principais: clínica forense, patologia forense, genética e biologia forenses, e química e toxicologia forenses.
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Clínica Forense As perícias fornecidas por esta secção correlacionam-se com a execução de avaliações clínicas de dano corporal (direito penal, civil e do trabalho), exames sexuais e do estado de toxicodependência em casos de direito penal, avaliação de doenças profissionais no direito do trabalho, e avaliação do estado de saúde no direito administrativo.
Patologia Forense
Mais semelhante ao nosso imaginário, centra-se na realização de autópsias, exumações, embalsamentos, exames do hábito externo de cadáveres, estudos antropológicos ou exames histopatológicos.
Genética e Biologia Forense Com os recentes desenvolvimentos das últimas décadas na área da genómica, a necessidade de exames relacionados com esta área tornou-se cada vez mais premente, sendo realizados diversos tipos de exames de identificação genética de pessoas, cadáveres ou restos cadavéricos, exames de parentesco, e vestígios criminais.
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Química e Toxicologia Forense
Por último, este ramo da Medicina Legal interessa-se pela determinação sanguínea ou de outros fluídos corporais dos níveis de substâncias como álcool etílico, medicamentos, pesticidas, drogas de abuso, monóxido de carbono, metais, entre outros, auxiliando em casos tão diversos como a determinação de homicídio ou a acidentalidade de determinado acontecimento. A determinação da causa de morte através da Autópsia não é obrigatória, sendo aplicada em situações onde haja suspeita de crime ou que seja impossível afastar tal suspeita face à informação disponível.
Óbito
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Esta é uma situação que envolve diversas componentes da Medicina Legal, desde a Traumatologia Forense onde
se estudam as lesões e suas causas à Vitimologia e Psicologia Forense em casos comprovados de crime.
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Agressões sexuais
Sendo a Medicina Legal por si só uma especialidade ligada a questões muito sensíveis do nosso quotidiano, aqui desempenha um papel crucial na busca da verdade e justiça, nem sempre conseguida. Esta situação muitas vezes é considerada uma Urgência Médico-Legal se a agressão tiver ocorrido até ao máximo de72h (idealmente 48h) antes do contacto com os profissionais de saúde. Após este período, dada a deterioração das possíveis provas da agressão, o exame pericial pode ser protelado para o momento mais oportuno para a vítima. Além do exame pericial, que inclui a entrevista clínica, o exame físico e a colheita de amostras biológicas e análises sanguíneas, deve ser posta ao dispor da vítima contracepção de emergência, vacinação e prevenção disponível para as DST’s e encaminhamento para uma consulta externa de seguimento.
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Acidentes de Trabalho
Para além da própria Medicina do Trabalho, também a Medicina Legal apresenta uma estreita relação com as situações de acidentes e doenças profissionais. A esta última compete, quando solicitado, a atribuição de incapacidade aos trabalhadores lesados consoante tabela própria para o efeito. O mesmo acontece em sede de direito civil no caso de incapacidades atribuídas a outras causas. Esta não é uma competência exclusiva da Medicina Legal, sendo apenas recurso quando existe discordância ou solicitação judicial.
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Identificação de imigrantes Situações como a vivida por milhares de
imigrantes ilegais no Mar Mediterrâneo muitas vezes terminam em tragédia não só pelas mortes, como pela extradição e repatriação. Em muitos países a ausência de documentos identificativos nestes indivíduos e a existência de uma legislação diferente para menores e maiores de idade torna crucial a determinação da idade real de uma pessoa, recorrendo-se tanto ao exame objectivo cuidado, incluindo os caracteres sexuais secundários, como a métodos imagiológicos, entre outros.
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Violência Doméstica
Tal como nas agressões sexuais, realiza-se um exame pericial exaustivo. No entanto, este é um crime público, ou seja, caso algum profissional de saúde ou de segurança pública tome conhecimento de uma situação destas, tem por obrigação a sua notificação, independentemente da vontade dos interessados. A vítima é assim obrigada à realização da perícia. Importa não esquecer que apesar de ser a maioria,
a violência doméstica não se centra apenas na violência física, sendo muitas vezes necessário o apoio psicológico às vítimas.
Parentesco O número crescente de divórcios, em muitos casos litigiosos, leva muitas vezes a questões de parentesco. O mesmo acontece noutras situações como heranças e casos de crianças desaparecidas reencontradas anos depois. A genética forense veio revolucionar e simplificar todos estes problemas, podendo os cidadãos usufruir deste serviço do Instituto Nacional de Medicina Legal (http://www.inml.mj.pt).
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Desastres Catástrofes naturais, como o recente sismo no Nepal, ou acidentes, como a derrocada de edifícios repletos de pessoas, sem contar com os próprios feridos de guerra, criam
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muitas vezes a necessidade de se realizar uma identificação rápida e sistematizada dos envolvidos. Cabe em múltiplas situações a coordenação desta identificação a Equipas Médico-Legais, que envolvem várias técnicos e especialistas, sendo recolhidos de cada cadáver/indivíduo amostras, descrições detalhadas, fotos e objectos pessoais visando possibilitar uma futura identificação após o correcto acondicionamento dos corpos.
ressonância • 29
autópsia clínica
e critérios de
morte
Patrícia Pires
M
orte. É um assunto sobre o qual poucos falam, mas no qual todos pensam. Algumas profissões exigem mais ou menos “contacto” com ela, sendo impreterivelmente incontornável no campo da Medicina. Onde se fala de vida, infelizmente, também se fala de morte de uma maneira ou de outra. A noção de morte para a maioria das pessoas é talvez um “evento irreversível, único e definitivo”. É um facto que não há nenhuma poção mágica para a ressuscitação, mas já todos ouvimos falar das pessoas que estiveram clinicamente mortas durante 1 ou 2 minutos e “voltaram à superfície”. Sabe-se que este conceito varia consideravelmente de acordo com perspetivas religiosas, filosóficas e biológicas, mas não é menos verdade que os critérios de morte são indicadores biológicos e que a morte a nível celular é um processo e não um acontecimento. Isto é, as células não morrem todas ao mesmo tempo, por isso é que as unhas e o cabelo continuam a crescer após a morte do indivíduo e a pele pode ser usada para transplantação até 24 horas após a paragem cardíaca. Em rigor, o momento em que a situação se tornou irreversível é o momento da morte.
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Ao longo do tempo, a definição e os critérios de morte divergiram largamente. Dizer que alguém está “clinicamente morto” não é suficiente, pois esse status pode diferir consoante o sistema de órgãos a que nos estivermos a referir. Isto é, no séc. XX, era a respiração que determinava se o indivíduo estava morto ou não. Depois, com a invenção do estetoscópio, convencionou-se que o critério seria a existência ou não de batimentos cardíacos. Posteriormente, com o aparecimento da reanimação cardio-pulmonar, ventilação mecânica e transplante de órgãos, a morte passou a ser definida pela perda das funções cerebrais totais ou do tronco cerebral (“morte cerebral global”). Em 1950, Mollaret e Goulon designaram de “coma ultrapassado” (dépassé) ao estado de perda das funções cerebrais, incluindo as vegetativas. Em 1968, a Comissão Ad Hoc da Universidade de Harvard propôs a declaração da morte nos indivíduos em coma irreversível, antes de se desligarem os meios de suporte. O “coma irreversível” pressupunha um estado de não reatividade, sem movimento, respiração nem reflexos, com eletroencefalograma plano. Os critérios para a morte cerebral evoluíram desde então, de forma a evitar-se o erro crasso de se diagnosticar uma morte cerebral em
estados de consciência reversíveis. Por exemplo, no estado vegetativo persistente (EVP), há lesão cerebral com perda das funções cerebrais superiores que controlam a consciência, a cognição e as emoções, mas as funções do tronco cerebral que permitem manter funções corporais (como a respiração e ciclos sono-vigília) estão mantidas. Este estado pode ser reversível, mas ao fim de algum tempo, dependendo da causa e da idade do doente, a recuperação torna-se improvável. Mas uma vez que há ainda funções cerebrais (nomeadamente do tronco cerebral), estes doentes não estão incluídos na definição de morte cerebral global. Há quem defenda, assim, o conceito de “morte cerebral superior”, alegando que o indivíduo deixa de “ser pessoa”, quando perde a consciência e a capacidade de tomar decisões. A determinação de morte segundo este conceito torna-se mais complexa, tendo sido detetados diagnósticos errados de EVP, visto que existem ainda falhas que dão demasiada margem para a subjetividade: por exemplo, quanta consciência é necessária para se considerar que uma pessoa esteja viva? Isto é particularmente importante nas demências em que há perda gradual da função cognitiva. Por outro lado, a Medicina não é preto sobre branco, mas antes um indelével
cinzento construído sobre nuances particulares e situações inesperadas. Nesses casos de dúvida, a resposta pode estar na autópsia clínica. Etimologicamente, autópsia significa “ver por si mesmo”, (do grego “autos” (de si próprio) + “opsis” (vista)). Em termos práticos, consiste nas observações e intervenções efetuadas no cadáver com o objetivo de esclarecer a causa de morte. Pode subdividir-se em vários tipos: 1-a clínica ou anátomo-patológica ou não judicial; 2- forense ou médico-legal ou judicial; 3- a psicológica; 4- a alternativa ou análise póstuma. Nas linhas que se seguem cingir-me-ei às duas primeiras. A autópsica clínica é realizada por um médico anatomopatologista e tem como principal finalidade estudar as alterações morfológicas dos órgãos e tecidos a fim de obter informações sobre a natureza, a extensão, as complicações da patologia e suas consequências. Constitui também a maior fonte de ensino em Patologia, contribuindo para um eficaz controlo de qualidade de diagnóstico e de tratamento, ao apontar possíveis erros e corrigi-los. Pode ainda contribuir para a elaboração de estatísticas precisas quanto às mortes e patologias associadas; reconhecer quadros de novas doenças e padrões de lesão; revelar a eficácia do tratamento; esclarecer os casos sem diagnóstico clínico confirmado ou nos quais a morte Clínica pedida por feita por onde quando
Médico Anatomopatologista Hospital Nas mortes com interesse médico
como
Estudo do cadáver
objectivo
Obter informação sobre a causa de morte e patologia
transcendência
Científica
do doente tenha sido inesperada. A autópsia médico-legal é um componente primordial da investigação criminal. Esta é realizada pelo médico legista, que se concentra em determinar a causa, quando e como ocorreu e as circunstâncias que precederam e circundaram a morte com base na inspeção e colheita de provas no local onde o cadáver foi encontrado. Neste aspeto é importante salientar-se a questão da acessibilidade e futilidade nos pedidos. A legislação ainda é bastante frágil e incompleta mas, independentemente disso, o Parecer n.º 58 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre a realização de autópsias ou outros exames post mortem a requerimento de particulares, defende o dever ético de proteção e salvaguarda do respeito pelos mortos e que deveriam ser vedadas quaisquer intervenções sobre o cadáver puramente fúteis, desnecessárias, ou, pelo menos, deveriam ser condicionadas as intervenções post mortem não suficientemente justificadas pela prossecução de outros interesses eticamente relevantes. O mesmo parecer declara também que «No entender do CNECV, não há, por princípio, objeções eticamente sustentáveis a que o INML (Instituto Nacional de Medicina Legal) realize autópsias, colheitas e outros exames post mortem a pedido de particulares sem que haja suspeita de crime Médico-legal ou a sua invocação. Há, todavia, princíMinistério Público pios que devem ser Médico legista estritamente observados e respeitados, que Instituto Nacional de Medicina Legal só em circunstâncias excecionais e com funEm todas as mortes damento em razões violentas ou suspeitas de criminalidade ponderosas podem sofrer compressão Estudo do cadáver e meio circundante ou cedência.» Isto também é aplicável Determinar a causa de morte, etiologia no campo médico. médico-legal e Sob o ponto de circunstâncias que vista médico-legal, levaram à morte “morte súbita” é Judicial uma morte ines-
perada que ocorre em indivíduos saudáveis ou tidos como tal e, pela forma como ocorre, levanta suspeitas de poder tratar-se de uma morte violenta. Na maioria dos casos conclui-se que essas mortes têm causa natural, por patologias mais ou menos insidiosas que nunca levaram a vítima a referenciar queixas objetivas ou subjetivas ao médico, familiares e amigos. Infelizmente, alguns médicos (uns por desconhecimento da situação clínica já que, muitas vezes, o médico que passa o certificado não acompanhou nem conheceu o doente, outros por medo atávico inexplicável de atribuir a causa de morte mais provável face aos elementos clínicos e circunstâncias disponíveis, outros que procuram simplificar o processo), acabam por escrever no certificado de óbito “morte súbita de causa indeterminada” ou “sinais, sintomas e afeções mal definidas”. Os serviços médico-legais são, por vezes, confrontados com casos de “morte súbita de causa indeterminada” (representam cerca de 40 % de todas as autópsias realizadas) na sequência de mortes de indivíduos com antecedentes patológicos relevantes, de doenças crónicas com agudizações potencialmente letais, de doenças neoplásicas em fases terminais, de doenças infecto-contagiosas em fase terminal, no decurso de internamentos hospitalares de dias ou semanas por doença de causa natural. Ou seja, epidemiologicamente o número de autópsias realizadas por “morte de causa indeterminada” excede o número real de mortes súbitas. Mas acaba por haver um certo paradoxo, pois o maior número de mortes por “causa indeterminada” e pedidos de autópsia associados a estas podem significar apenas que alguns médicos e instituições são mais exigentes na obtenção de conclusões seguras do que outros. Finalmente, se eliminarmos todos os fatores externos, como o erro humano ou técnico, e mesmo que todos queiramos acreditar que não existe tal coisa, uma pequena percentagem das mortes fica registada como causa desconhecida.
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quando quebrar? Sebastião Martins “O que, no exercício ou fora do exercício ou no comércio da vida, eu vir ou ouvir, que não seja necessário revelar, conservarei como segredo”.
A
ssim dita o Juramento de Hipócrates que todos os médicos fazem quando acabam o curso. Mas até que ponto é que o sigilo médico-doente deve ser absoluto e intransigente? Será que é mesmo cumprido nos conformes da lei e do código deontológico? O sigilo médico-doente é uma condição absolutamente essencial para que se estabeleça uma relação de confiança entre clínico e doente e para que ele se sinta confortável em transmitir ao médico todas as suas preocupações e angústias, certo de que estas ficarão só entre paredes do consultório. Mas coloca-se então uma questão: Até que ponto vai este sigilo? Deve ser absoluto ou deve apresentar excepções? Em 2013, surgiu um caso de uma rapariga infetada com HIV e que tinha relações sexuais desprotegidas com o parceiro sem o ter informado da sua condição de saúde. Depois de tentar esclarecer a doente e tentar persuadi-la a contar ao parceiro, o médico viu-se perante um dilema ético: Cumprir à
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risca o sigilo médico-doente ou contar ao parceiro a situação da namorada, de modo a evitar que este ficasse infetado com o vírus. Nesta situação cabe ao médico decidir o que fazer, sendo que muitas vezes ele opta por falar com o parceiro. Outras situações também complicadas de gerir são os testes genéticos. Por exemplo, um doente faz um teste e descobre que tem o gene do cancro da mama mutado e, por essa razão, tem elevada probabilidade de desenvolver um cancro. Perante esta situação, o doente decide não contar nada à sua família mais próxima. O desejo do doente deve ser respeitado e o médico deve manter o sigilo. No entanto, coloca-se outra questão: Se o doente morre pela patologia que lhe foi rastreada no teste genético, deve um médico referir à família que o teste foi realizado? Idealmente a condição clínica de um paciente mantém-se em segredo mesmo depois da sua morte, mas tratando-se de uma doença genética que apresenta sérios riscos para a família, deve o médico quebrar o sigilo? Sobre esta problemática ainda não há consenso. Coloca-se então uma outra questão: Quando a protecção do segredo médico pode comprometer a saúde de terceiros e aquando da sua “quebra” podem resultar benefícios em termos de saúde
pública, qual deve ser a postura do profissional de saúde? Em primeiro lugar, tal como já foi referido, deve haver um esforço ativo para que o doente altere o seu comportamento face à doença e aos estilos de vida. Se esta tentativa for infrutífera, o médico poderá revelar a situação de saúde a terceiros, depois de informar devidamente o doente de que o vai fazer. É consensual que as doenças infecciosas como o HIV, Tuberculose e Sífilis, devem estar sujeitas a este método de ação por parte do médico. Outras situações em que o médico pode revelar a situação clínica do doente são o seu consentimento ou o depoimento num julgamento em tribunal. No entanto, sempre que o clínico se vir perante um dilema ético em que não sabe se deve ou não quebrar o sigilo, deve expor a situação à Ordem dos Médicos e ao Conselho Nacional de Ética. Estando a ciência em constante mudança e sendo a inovação e a atualização uma condição inerente à prática médica, não faria sentido que o código deontológico, mais especificamente, o sigilo médico fosse um ponto absoluto sem discussão. Deste modo, é compreensível que as legislações tendam a admitir algumas quebras ao sigilo médico, desde que estas possam ser devidamente justificadas pelo mesmo.
Joana Cabrita e Inês Miranda
C
riado em Dezembro de 2001, o Instituto de Medicina Molecular é um Laboratório Associado do Ministério da Educação e Ciência e resulta da cooperação de cinco centros de investigação da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e de um centro do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil. Contudo, apenas em 2004, data de inauguração do Edifício Egas Moniz, começou a sua actividade de instituição de investigação conjunta. Financiado essencialmente por fundos públicos governamentais, da União Europeia e de fundações privadas, o IMM tem conseguido várias colaborações a nível internacional, atraindo investigadores um pouco de todos os países. Constituem objectivos do Instituto promover a investigação biomédica básica, clínica e de translação, bem como a inovação nestas áreas, na promoção de um melhor conhecimento dos mecanismos das doenças e seu diagnóstico/ terapêutica, apoiar a formação científica pós-graduada de jovens licenciados,
médicos e outros profissionais da área da Saúde e colaborar na divulgação científica e prestação de serviços ao exterior relacionada com a Saúde. Em termos concretos de investigação, divide-se em 39 laboratórios, cada um deles com projectos em desenvolvimento, no âmbito das suas áreas de acção. Eis alguns exemplos do que é objecto de estudo por aqui:
Ana Sebastião Lab O grupo liderado pela Professora Ana Sebastião explora cinco grandes áreas de interesse: neuroprotecção e modulação da plasticidade sináptica, disfunção do neurónio motor, factores neurotróficos no envelhecimento e na doença, expressão de sinapses glicinérgicas ao nível do encéfalo e o sistema sensorial - a adaptação olfactiva.
João Barata Lab Com o auxílio de uma equipa coordenada pelo Professor João Barata, as grandes áreas de investigação desta unidade, são a biologia do cancro, a transdução de sinal e a biologia celular e molecular, procurando mais especificamente compreender de que modo o microambiente celular e vários processos moleculares estão implicados na vantagem selectiva de células tumorais face às células normais do hospedeiro.
Maria Carmo-Fonseca Lab Liderado pela Professora Carmo-Fonseca, este laboratório tem como pontos-chave nas suas pesquisas compreender de que forma erros na génese de RNA mensageiro, no processo de splicing e em muitos outros mecanismos da biologia celular e molecular originam patologia.
39 laboratórios, cada um deles com projectos em desenvolvimento, no âmbito das suas áreas de acção ressonância • 33
Constituindo um dos casos mais notáveis de sucesso em Portugal no domínio da investigação, o IMM é hoje uma das principais instituições de investigação biomédica nacional e com amplo reconhecimento internacional. Conta com o trabalho de inúmeros investigadores que actuam com um objectivo em comum: a obtenção de resultados promissores. Os projectos concluídos, as bolsas obtidas, os prémios ganhos e os artigos publicados reflectem o cumprimento desse mesmo objectivo ao longo dos últimos anos. 2015 não ficará, decerto, atrás. E, como prova empírica disso, marcámos a sua entrada com o pé direito que promete não desiludir. Aqui ficam os sucessos mais recentes do IMM.
Janeiro 2015: IMM lidera ensaio clínico sobre tratamento da Dactilite em doentes com Artrite Psoriática O ensaio clínico GO-DACT trata-se de um projecto multicêntrico iniciado em 2014 que avaliará a eficácia do tratamento com golimumab (um bloqueador do factor de necrose tumoral) em associação com metotrexato, comparativamente ao metotrexato em monoterapia em doentes com artrite psoriática com dactilidade activa, uma doença inflamatória das articulações que surge em doentes com psoríase. Trata-se de um marco histórico para o IMM, pois é a primeira vez que investigadores deste instituto lideram um ensaio clínico, tendo como promotor o próprio IMM. Resulta da integração do instituto, do Hospital de Santa Maria e da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, contando, assim, com duas componentes fundamentais: a clínica e a investigação. Conta também com a participação de 8 centros de Reumatologia a nível nacional, bem como o apoio da bolsa de investigação da Merk-Sharpe and Dohme. Esperam-se resultados brevemente.
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És aluno, gostas de investigação mas não sabes por onde começar? Quais as opções existentes? O GAPIC (Gabinete de Apoio à Investigação Científica, Tecnológica e Inovação) promove actividades de investigação científica e inovação tecnológica junto dos alunos da FMUL, tendo sido criado o Programa “Educação pela Ciência” - Projectos de Investigação para alunos, que permite a participação directa dos mesmos no delineamento e execução de projectos de investigação laboratorial ou clínica, integrados numa equipa de investigação, sob a orientação de um tutor. Podem candidatar-se a este programa os alunos do curso de MIM a partir do 2º ano, tendo o concurso abertura anual, em Outubro. Para além disso, existe uma actividade semestral do tronco opcional do nosso curso - a opção “Projecto de Investigação” - cujo objectivo geral é a familiarização com a prática de investigação científica, podendo também estes alunos candidatar-se para financiamento do seu projecto (creditação: 2 créditos). A inscrição nesta opção deve ser feita na altura em que os alunos se candidatam a estágios para o ano seguinte, como os estágios de iniciação pedagógica - ou seja, no fim do ano lectivo. Todos os anos, os alunos podem apresentar os resultados dos seus projectos no workshop “Educação pela Ciência”, no âmbito do Dia da Investigação. Ficaste interessado? Podes sempre encontrar mais informações em www.medicina.ulisboa.pt/Educacao_Ciencia. É possível contactares o GAPIC através do endereço gapicmail@medicina.ulisboa.pt ou aceder ao piso 3 – Serviços Técnico-Administrativos, no Edifício Central do HSM. Para além disso, podes visitar o laboratório que te despertou interesse e descobrir mais acerca do trabalho que é desenvolvido nessa unidade. Expõe as tuas motivações e percebe que hipóteses existem de te envolveres futuramente numa actividade desta natureza.
Janeiro 2015: IMM financiado com 6 milhões de euros para coordenar o Projecto TREGeneration A equipa de João Forjaz de Lacerda obteve financiamento do European Comisson – Horizon 2020 program, o maior programa de investigação e inovação da União Europeia, para coordenar um projecto de investigação clínica que incide no tratamento da doença enxerto vs hospedeiro – um enorme problema na transplantação de medula, onde as células do sistema
imunitário do dador “atacam” tecidos e órgãos doentes que foram transplantados. O projecto TREGeneration tem a duração de cinco anos e é liderado pela equipa do IMM em colaboração com o Hospital Santa Maria e a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Conta com a colaboração de mais quatro países: Alemanha, Bélgica, Itália e Reino Unido. O financiamento para este projecto é de 6 milhões de euros no total, dos quais 1,6 milhões são para estudos realizados em Portugal. TREGeneration
tem como objectivo testar uma estratégia terapêutica mais específica e com menos efeitos adversos em doentes que não responderam ao tratamento inicial, que serão tratados com células da medula óssea do dador respectivo com função imunossupressora (células T reguladoras – TREG).
Fevereiro 2015: IMM financiado com 6 Milhões de Euros pelo Conselho Europeu de Investigação (European Research Council, ERC) Os cientistas em Portugal estão cada vez mais competitivos e em 2014 registaram o maior valor de financiamento conquistado em concursos do ERC, com um valor de cerca de 21 milhões de euros. IMM entra com o pé direito em 2015: É do conhecimento geral que três investigadores do IMM: Bruno Silva-Santos, Henrique Veiga Fernandes e João T. Barata foram premiados com bolsas Consolidator (Consolidator
Grant) do ERC. O prémio? Bolsas no valor de 2 milhões de euros cada um durante cinco anos. E para quê? Cada um tem o seu objectivo, mas no fim tudo se resume a dar continuidade aos seus projectos de investigação. Bruno Silva-Santos, Investigador Principal do IMM na área da Imunologia, pretende com este financiamento compreender o mecanismo de produção de citocinas, substâncias inflamatórias que desempenham, por um lado, um papel fundamental na resposta eficaz a infecções e tumores e, por outro, na patogénese de doenças inflamatórias crónicas e autoimunes. Pretende, desta forma, incentivar novas formas de vacinação ou mesmo de tratamento para doenças autoimunes. Não é a primeira bolsa ERC que recebe. Recebeu uma bolsa starting do ERC na fase inicial da sua carreira independente em 2010. Henrique Veiga Fernandes, Investigador Principal do IMM na área de Imunologia e Infecção, pretende com este prémio estudar a regulação infla-
matória do intestino. O seu objectivo e o da sua equipa é revelar novos processos e alvos terapêuticos em doenças inflamatórias, infecciosas e tumorais no intestino. Também não é a primeira bolsa ERC que recebe. Em 2008 recebeu uma Starting, sendo premiado em 2013 com um ERC Proof of Concept, um financiamento adicional para projectos já financiados pelo ERC. João T. Barata, Investigador Principal do IMM na área de fisiologia e endocrinologia, pretende usar este financiamento para a compreensão dos mecanismos que estão na base do impacto que a molécula IL-7 e o seu receptor têm em transformar células normais em células malignas. Procura, desta forma, clarificar o papel que a molécula tem no desenvolvimento da leucemia e outros cancros. O esquema de bolsas ERC Consolidator existe desde 2013 e foi criado com o fim de suportar investigadores que estão a consolidar a sua carreira científica independente e merecedores desse mesmo apoio.
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Miguel Esperança Martins
A
relação entre a prática médica, nos seus mais diversos cambiantes, e a tecnologia é uma realidade evidente desde há várias décadas. Uma relação histórica e marcadamente profícua com claros benefícios para a qualidade e abrangência dos cuidados de saúde prestados ao doente. Com o advento da era dos smartphones e do desenvolvimento de aplicações digitais especificamente dirigidas para certos contextos e realidades profissionais, a tecnologia ganhou uma preponderância ainda maior no que ao quotidiano clínico de um profissional de saúde diz respeito. O caso paradigmático da expansão do fenómeno às enfermarias europeias, americanas e asiáticas é a aplicação Figure 1, uma espécie de Instagram para profissionais de saúde. O intuito desta aplicação é a partilha de fotografias ou de exames complementares de diagnóstico, estando optimizada para o carregamento e visualização dos mesmos, relativos a doentes observados pelos utilizadores desta rede (cuja identidade é sempre protegida). O Figure 1 funciona como um espaço de actualização ao minuto e em
parte dos médicos aos muitos estudantes que proliferam activamente pela rede do Figure 1. Na categoria das aplicações com uma vertente marcadamente pedagógica há a destacar dois exemplos cujo princípio base é relativamente idêntico. A ideia é, mobilizando conceitos teóricos e práticos, identificar patologias e subsequentes aspectos epidemiológicos, fisiopatológicos e terapêuticos, com base em imagens apresentadas ao bom estilo americano e britânico do Spot Diagnosis. O JAMA Network Medical Image Challenge e o NEJM Image Challenge possuem um banco de questões relativamente amplo sendo ferramentas interessantes para o desenvolvimento da capacidade diagnóstica imediata, fomentando, simultaneamente, a consolidação de conhecimentos teóricos fundamentais para a compreensão completa de cada patologia. A cada questão corresponde uma pequena explicação teórica fornecida após a resposta ser dada, permitindo assim enriquecer a cultura médica do utilizador face à temática abordada. Existem igualmente aplicações que concentram em si um saber enciclopédico, permanentemente actualizado de acordo com os dados mais recentes,
“[as aplicações] fomentam uma comunicação inter-pares e médico-doente mais rápida e eficaz.” tempo real de dados relativos a casos clínicos ocorridos em qualquer parte do mundo, de Miami a Hong Kong. Paralelamente à apresentação dos ficheiros relativos ao caso em questão, existe um espaço para comentários em cada publicação, habitualmente utilizado para uma discussão diagnóstica em que professores, médicos e até alunos esgrimem argumentos quanto às hipóteses aventadas. É neste plano que a aplicação assume o seu carácter pedagógico através do esclarecimento de questões relativas à fisiopatologia, diagnóstico e plano terapêutico por
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rápida e facilmente acessível. Dentro deste espectro de aplicações destaca-se, pela sua impressionante base de dados de fármacos, patologias, procedimentos, calculadoras e ferramentas de identificação de interacção farmacológica, o Medscape. A aplicação encontra-se largamente disseminada por toda a comunidade médica ocidental, apresentando-se como a principal fonte de auxílio mnésico a médicos e estudantes que procuram informação fidedigna, completa e qualitativamente apropriada no contexto da sua prática diária nas enfermarias e blocos opera-
tórios. Acrescem a estas características e à intuitiva navegação as secções de notícias e de artigos pedagógicos focados nas mais distintas especialidades e níveis de cuidados de saúde. Enfoque ainda, neste grupo de aplicações, para o Epocrates, aplicação que, para além de permitir analisar rapidamente interacções medicamentosas, possui uma extensa base de dados de guidelines por patologia e múltiplas referências a aspectos das medicinas alternativas. A aplicação Docphin apresenta-se como uma solução para o excesso de informação com que os estudantes de medicina e os médicos assinantes de revistas médicas são diariamente bombardeados. O utilizador escolhe qual a sua área de interesse/especialidade e o Docphin filtra os artigos e notícias provenientes de revistas médicas, previamente seleccionadas na própria aplicação como sendo fontes de interesse, tweets e sites de jornais ou agências noticiosas, organizando-os por relevância e apresentando-os ao utilizador. É também permitida a criação de uma livraria de PDF’s com os artigos seleccionados pelo utilizador de entre todos os recebidos. Também a simulação cirúrgica tem espaço neste domínio, nomeadamente através da aplicação Touch Surgery, que permite a simulação de procedimentos pertencentes a uma vasta gama de especialidades no smartphone, desde cirurgias de reconstrução mamária a endarterectomias carotídeas. O papel desempenhado pelas aplicações expandiu-se ao diagnóstico, de tal modo que a FDA aprovou, pela primeira vez em toda a história, a MobiSante como aplicação médica auxiliar de diagnóstico, nomeadamente no que à ecocardiografia portátil diz respeito. Simultaneamente, outras aplicações têm-se posicionado enquanto potenciais instrumentos auxiliares como a iStethoscope. A Apple prepara-se para revolucionar o mundo da investigação médica através do lançamento da ferramenta ResearchKit que funcionará em associação à plataforma HealthKit já existente. Tirando partido dos sen-
sores incorporados em cada iPhone pretende-se, através de testes simples (cliques em pontos luminosos que surgem no ecrã, expressões vocais segundo determinadas indicações dadas pela ferramenta e captação das mesmas utilizando as capacidades do microfone, bem como outras provas multitasking), integrar cada utilizador, de acordo com a patologia de que padece, em estudos dirigidos a aspectos relacionados com essa mesma patologia. Na prática, determinados utilizadores que sofrem de determinada patologia, poderão optar por participar em diversos estudos através do preenchimento de inquéritos (de periodicidade semanal, mensal, semestral) ou de realização de provas simples no próprio iPhone, cujos resultados serão analisados pela equipa de investigação. A iniciativa foi recebida com notável entusiasmo na comunidade científica internacional e reúne já parcerias oficiais com universidades como Oxford, Stanford e Penn Medicine. Também Portugal é sede de notáveis avanços nesta área em particular, destacando-se o CI2 (Centro de Investigação e Criatividade em Informática) que desenvolve, no presente momento, diversas aplicações médicas particularmente interessantes das quais se destacam três. Uma, PatientNow, focada na vertente de monitorização completa de qualquer paciente internado no serviço a que o médico pertence, sendo a aplicação e os dados do paciente nela registados (permanentemente actualizados), acessíveis por qualquer dispositivo móvel que a suporte em qualquer momento e em qualquer local. A segunda, NefroLab, que se constitui como a materialização de um modelo preditivo de ocorrência de Lesão Renal Aguda utilizando biomarcadores e dados clínicos. A terceira, House, voltada para a filtragem inteligente de informação actualizada, obtida a partir da literatura médica em tempo real, acerca da patologia de que o doente padece. A observação do padrão evolutivo relativamente a este tipo de tecnologia aponta no sentido de um exponencial e
contínuo desenvolvimento, não só no aperfeiçoamento dos conteúdos e optimização dos modelos já existentes, como na criação de aplicações com um potencial diagnóstico progressivamente superior e com um papel decisivo na modificação do método de investigação médica. É expectável o refinamento dos mecanismos da partilha de imagens e exames complementares de diagnóstico a partir de dispositivos móveis e software hospitalar, a expansão em termos de quantidade e qualidade das bases de dados, o melhoramento de modelos
de selecção integrada, inteligente e rápida de informação e o florescimento de aplicações que promovam o acompanhamento em tempo real do estado clínico dos doentes em qualquer ponto geográfico. Pretende-se que estas permitam, através de modelos preditivos, potenciar uma dinâmica preventiva face a patologias prevalentes, e, acima de tudo, que fomentem uma comunicação inter-pares e médico-doente mais rápida e eficaz. O futuro do passado chegou. Chegou, e está mesmo aí, ao virar da esquina.
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hoje às quatro Beatriz Leal O pai que devia estar morto morreu de vez. A tal doença nos intestinos que tantos mata voltou por altura do Natal, e ele lá ficou enterrado numa cama desde aí até sempre. O senhor doutor avisou-me logo, dona Maria, olhe que é melhor ir-se preparando a si e aos seus filhos que desta é que é, a barriga já só aguenta até Março. Mas não quero que ninguém se preocupe comigo, parem de querer saber de mim, que eu já estou à espera disto há demasiado tempo. O meu pai já diz para não contarmos com ele para o próximo Natal há tantos anos que os meus dedos não acham ginástica para somá-los. Só tenho medo pelos meus filhos, ainda são pequeninos e o avô ainda servia para cuidar deles nas tardes em que a minha patroa precisava mais de mim. Eles habituam-se, dona Maria, cuide é bem deles, que nós cá cuidamos do velhote. Deixei-lhe lá a camisola cosida pela minha mãe que Deus tem, a lâmina de barbear e umas folhas brancas e canetas que tanto me pediu para passar o tempo. Ainda me custou atravessar a porta da rua, deixá-lo para trás, sozinho, pela primeira vez, em mãos certamente menos carinhosas que as minhas. Algum de vocês por acaso sabe que o meu pai precisa de se levantar a meio da noite, que só dorme se não tiver meias e que os óculos durante muito tempo lhe fazem doer o nariz? Prometem que não se esquecem? Ó Maria, deixa-te desses pensamentos, achavas bem ter aqui o velho doente, sem se mexer, tu a teres de tratar de tudo, dar-lhe
banho, dar-lhe de comer à frente dos miúdos… Deixa-o lá ir ter com a tua mãezinha! Tens razão, marido, tens razão, mas eu já rezei uma Avé-Maria e um Pai-Nosso e mesmo assim não prego olho, porquê?, dorme Maria, dorme. As minhas colegas da carreira, é assim que lhes chamo, perguntaram-me, credo, a camioneta passou-te por cima?, e eu lá contei que o meu paizinho tinha tido outra vez aqueles males na barriga, mas pronto, já é velhinho, só quero é que não vá em sofrimento. Cada uma delas deu umas moedas e ofereceram um vinho para o pai doente, aqui está a garrafinha das melhoras. Só que o paizinho não pode beber, o senhor doutor não deixa, mas não lhes conto, não vale a pena, foram tão atenciosas… E por acaso até veio a calhar, que ficou para o meu marido beber metade ao jantar, ó Maria, que ricas amigas tens tu! A Cristina, uma das da carreira, chamou-me no outro dia e tive medo que fosse para perguntar se a garrafinha tinha surtido efeito. O meu marido, gorgolejando, sim, sim, o médico disse que depois do vinho ele ainda se aguenta cá pelo menos mais um mês! Mas afinal ela queria saber que doença é que o papá realmente tinha para contar a história inteira à filha que trabalhava numa farmácia, mas que males na barriga ela não sabia o que eram. Eu cá não sei, o médico disse um nome lá daqueles complicados, mas eu quando for lá pergunto e aponto num papel. Obrigada Mariazinha, mas não te esqueças, que ela de males na barriga nunca ouviu falar. E o paizinho que agora Deus tem morreu ontem e nem uma pessoa me tinha preparado. Depois de dois enfartes e o primeiro azar nos intestinos, à terceira não é de vez, depois da décima terceira despedida do Natal, há-de vir sempre mais um ano, depois de sobreviver à morte da minha mãe, tem de haver outra força para viver, tanto que depois de Março, chega sempre Abril. Nas minhas contas de cabeça, ainda ia eu antes dele. O que é estar preparada para o enterrar hoje às quatro? Expliquem-me, que não se me esboça uma única leve ideia, só sei que não quero, não consigo, é o meu pai que eu tenho. E desenganem-se, os pais não ficam, vão-se. Já não me lembro da exacta cor dos seus olhos nem do timbre da sua voz. Dele, só sobrou uma moldura com pessoas que não conheço e esta necessidade de conversar com folhas brancas, que serve para quê?
o escape da mente Catarina Costa Não era um dia como os outros, e não era pelo anormal calor de um dia primaveril. Era dia de se sentar do outro lado daquela grande muralha da China que é a secretária do médico e dar contas da vida. Ela lambeu os lábios, as gretas ríspidas a saber ainda ao travo adocicado do pão e ao pesado sal do chouriço. O cabelo caía-lhe sobre o rosto cansado, farripas grisalhas, salpicadas do negro de uma juventude de outros tempos, as mãos velhas mas firmes, quase agressivas. Pediu-me para repetir a pergunta, pronúncia do norte, e depois respondeu, encolhendo os ombros. - Casei com ele porque era parecido com o Elvis. Mas um dia enganou-se a tomar os medicamentos. Só lhe tinha perguntado como estava a tensão. Olhou-me como se tivesse percebido que a minha realidade era diferente da dela e sorriu. - A minha tensão sempre foi boa, menina. Manteve-se convicta, no limite do orgulho, apesar dos três anti-hipertensores que a filha tinha colocado na superfície que nos separava delas. Eu sabia que só lhe restavam estas pequenas certezas, tão erradas, num mundo que é o mesmo mas que ela descobre todos os dias. Um mundo que a confunde porque há pessoas em casa que só lhe são vagamente familiares, como o vulto de um vizinho de infância que está sentado num qualquer limbo da memória. Perguntámos como tinha estado, a filha virou para nós os olhos cansados de noite em branco. - Na mesma. Não dorme nem deixa ninguém dormir. Está velha. Não foi o meu primeiro encontro com a demência nos cuidados de saúde primários. Não foi o último. Foi, no entanto, a catarse de ver alguém que sabe quem é, mas não sabe quem é agora. O terror de ver alguém desaprender a ser angustia, porque o desintegrar das coisas imateriais que constituem o Eu culmina no desintegrar do físico. O concreto rasga-se ao meio. Tudo o que sabemos, somos e fazemos fragmenta-se, porque memória é tudo, gestos, palavras, significados. Nesse momento, ela considerou-me lentamente, esgar confuso de quem tenta perceber algo em fuga. Aquilo não era velhice. A velhice encontra-nos, não nos perde. A nossa responsabilidade é saber que envelhecer e adoecer não são sinónimos, valorizar o idoso como unidade complexa e particular que requer uma atitude ímpar de integração. Esta doente não era definida apenas pela sua demência, mas também por quem a rodeia. Uma filha que não percebe o flagelo
que atinge a sua família, igualmente perdida, marcada pela responsabilidade de ser cuidadora da pessoa de quem mais dependeu – uma mãe com uma vulnerabilidade infantil. Uma inversão de papéis. Os idosos que se multiplicam nas camas das enfermarias são os mesmos também na primeira linha de combate que é o gabinete do médico de família. Sentam-se nas mesmas cadeiras que esta doente e a filha, muitas vezes ainda no início da degradação cognitiva. Como explicar que alterações orgânicas em algo tão tangível como o sistema nervoso central alterem tão profundamente o funcionamento de algo tão nobre e intocável como o Eu? Como aceitar que o esfumar da memória é apenas o primeiro passo no caminho estreito da demência? Desligam-se as luzes, instala-se a escuridão. Silêncio. - Casei com ele porque era parecido com o Elvis – repetiu. Soltou uma gargalhada rica, rugosa. A filha pôs-lhe a mão em redor do punho e apertou, como se implorasse um regresso ao passado. Ou ao futuro.
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