Revista RESSONÂNCIA - Edição XXVIII

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XXVIII

SAÚDE MENTAL

DEZ.2018

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ALÉM FRONTEIRAS

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CULTURA


A edição que o leitor tem em mãos tem como génese uma ideia simples: trazer até aos estudantes uma realidade que embora lhes seja demasiado próxima, se encontra, ao mesmo tempo, paradoxalmente distante. A Saúde Mental constitui, hoje, um dos maiores desafios para uma Medicina que tenta acompanhar o ritmo insaciável da sociedade moderna. Particularmente no que às gerações mais jovens diz respeito, esta realidade emerge de uma forma brutal. Imersos numa espécie de cacofonia cultural ensurdecedora, cabe às novas gerações (à geração do leitor, porventura) perspetivar o alcance do modelo em que vivemos, redesenhando os melhores meios para enfrentar os demónios que tantas vezes ameaçam saquear o melhor que existe em cada um. Por outro lado, por acreditarmos ser essencial (re)afirmar no panorama ideológico atual que a experiência humana não deve (nem pode) ser reduzida à realidade produtiva de cada indivíduo, a XXVIII Edição contempla o separador Cultural com o maior número de artigos desta índole, até à data. Finalmente, quisemos trazer ao leitor temas que lhe despertem e aticem a curiosidade na área médica, tanto fora como dentro das nossas fronteiras, tendo produzido pela segunda vez consecutiva um artigo de investigação original, agora sob a forma de uma rubrica nova. A XXVIII edição da RESSONÃNCIA emerge, deste modo, com uma multiplicidade de focos unidos, no entanto, por um único propósito: o de surpreender e interessar aos leitores, peça sem a qual nada disto faria sentido. A eles, um tremendo e sincero Obrigado. Humberto Freire e João Bastos, Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA


CRÓNICA A R O M A D E “ M E N T A L”

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SAÚDE MENTAL E N T R E V I S TA A DA N I E L S A M PA I O

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P D A H E M A D U LT O S : D A E S T I G M A T I Z A Ç Ã O AO SUBDIAGNÓS TICO

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TR AUMA DE OC A SIONALIDADE COM SEDUÇ ÃO MÚTUA

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I N V E S T I M E N T O DA S AÚ D E M E N TA L E M P O R T U G A L

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GRANDE REPORTAGEM COM O S E M ORRE E M P ORTU GAL?

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ALÉM FRONTEIRAS T U R I S M O D E / O U VO L U N TA R I A D O ? S E R Á Q U E A D I F E R E N Ç A I M P O R TA ?

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EMIGR AÇ ÃO, PORQUE NÃO?

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FUTEBOL AMERICANO: SEGURO?

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CULTURA VER, OUVIR, SENTIR

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2 0 º ANIVERSÁRIO DO NOBEL DE SAR AMAGO “ N ÃO N A S CI PA R A I S TO, M A S I S TO FO I - M E DA D O ”

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A I M P O R TÂ N C I A DA R E P R E S E N TA Ç ÃO DA D O E N Ç A M E N T A L E M Í C O N E S D A C U LT U R A P O P U L A R

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TERROR IMPETUM

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P L ATO N

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CRÓNICA ALMA MEIO CHEIA

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CRÓNICA

CATARINA MACHADO

Aroma de “Mental” ><Certo dia, alguém me perguntou “Estás doida?”, ao

><É incrível, porém, como há por aí um enorme culto

que eu respondi: “Talvez...”

de gente que não sabe estar calada! Admiro. Uns exultam política, alguns futebol e outros, ainda, a vida alheia. Recordo uma tarde em que, por entre gotículas invernais que adornavam a arquitetura da Baixa Pombalina, alguém se atreveu a criticar o mefistofélico mundo onde acordámos. Na voz carregava ânimo, balbuciando chorrilhos de palavras sem qualquer coesão frásica presente. Rematava, na conclusão entoada a juízo final, que “o Inferno seria o futuro código postal destinado aos pecadores”. Pensando nestes assuntos, a verdade é que não passaremos do chão e, aqui em baixo parece ter caído “o Carmo, a Trindade” e a maleficência! Olhares choveram, alguns acompanhados de risos, mas “a caravana passou”, ignorando aquele monólogo ao estilo de Gil Vicente. Eu olhei, mas também não ouvi. Foquei-me naqueles olhares de censura que acompanharam o meu “este não joga com o baralho todo”. Ao mesmo tempo, admirei a ousadia daquele cidadão que gritava o que lhe regurgitava na mente, não temendo o julgamento de soslaio.

><Reparo, com os olhos postos na vigorosa máquina de café, que não sei que dia é hoje. A rotina tornouse tão monótona que descartei todos os referenciais passíveis de me localizar neste conturbado tempo. Bem, o que interessa é que reforcei a volémia com um refrescante aroma cafeinado e, em breve, poderei voltar a bocejar, agora moderadamente, por entre questões da Arte de Hipócrates.

><Decido isolar-me no estudo, “ficar na minha”, não querendo lidar com a sociedade em redor. Reflito, neste momento, sobre esta minha solidão consentida. Não sei porque o faço, mas algo me impele a fazê-lo. Remoendo emoções, neste dilema já longo, racionalizo perante os sintomas apresentados, tentando alcançar um diagnóstico. No exame objetivo, encontro alguma melancolia, afeição pelo dogma existencial, sendo que a auscultação cardíaca revela taquicárdia ansiosa. Esta patologia é de incerta definição, sem razão encontrada para que se tenha despoletado. Deve ser a cabeça que não tem juízo… depois o corpo é que paga!

><Sinto então… o silêncio é incómodo. Entra em perfusão contínua e baila cá dentro angustiando, ainda mais, aquele sentimento amargo que corrói ideias e emoções. Vocês sabem… aquele estado onde tudo está mal e a esperança se desvanece. É tudo escuro e ninguém compreende! Oiçam! Eu quero gritar, só não sei como. O que dizer quando “só sei que nada sei”? Talvez seja medo… De quê? Do que os outros possam pensar ou dizer? E eu nem sei pôr em palavras o que é isto que sinto, como é que me ouvirão? Não compreendem… calo-me! É mais fácil…

><Depois percebi! Neste vício diário ruidoso, cada um carrega as suas depressões, burnouts, transtornos de personalidade e afins. É um barulho de fundo onde “se sente a loucura vestir de repente o corpo”, pulsando na mente com estrondo. Porém, olhando em meu redor, não oiço nada… Talvez eu é que esteja doida!

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SAÚD MEN 06


DE NTAL

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ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA ENTREVISTA Médico, escritor, pai e avô, Daniel Sampaio é uma

figura ímpar da Medicina e da Sociedade Portuguesa. Professor

catedrático

jubilado,

foi

igualmente

director do Serviço de Psiquiatria do HSM até 2016, altura em que decidiu dedicar-se em definitivo à sua outra paixão: a escrita.

É como escritor que já abordou, em diversas obras, a

temática da saúde mental, tema extraordinariamente atual tanto para nós, estudantes de Medicina, como

para o público em geral. Por altura das comemorações do Dia Internacional da Saúde Mental, acedeu

gentilmente a partilhar connosco as suas ideias e

opiniões sobre esta área, focando maioritariamente

três vertentes: os Adolescentes e as Famílias, área particularmente cara para o Professor; o Serviço

Nacional de Saúde e, como não poderia deixar de ser, a (“sua”) Faculdade de Medicina de Lisboa.


A A A A A A A A

SAÚDE MENTAL

CATARINA NUNES • MAURO PALHA • JOSÉ RODRIGUES

Entrevista a Daniel Sampaio ADOLESCENTES

E

FAMÍLIAS

O mundo digital é, actualmente, uma realidade fundamental do dia-a-dia da geração que agora atravessa a adolescência. Que diferenças e alterações provocou esta massificação do virtual nesta geração, em relação às anteriores? ><A alteração diz respeito às novas formas de comunicação que nos ligam agora: passámos a comunicar em rede e a todo o momento. Deixou de haver formas únicas de comunicação em casa e na escola, para passarmos a estar sempre conectados. Estudos indicam que, até aos 24 anos, 100% dos jovens estão ligados à internet​​ ​​ . Considera que o tempo consumido na ​internet ​e em rede, com um espaço muito próprio, bastante segmentado etariamente e quase inacessível aos restantes elementos do núcleo familiar, contribui para um ainda maior afastamento geracional do que o já visto em gerações passadas?

><Não. Para já, cada vez há mais portugueses de todas as idades ligados à internet.​​ Depois, a ​​internet proporciona novas formas de comunicação. O que se passa em algumas famílias é que as novas formas de comunicação vieram pôr a descoberto problemas de autoridade e de relacionamento interpessoal que estavam latentes.

Parece que a Educação Sexual tem vindo a perder fulgor nas Escolas. Porquê?

><Trata-se de um problema de prioridade política. A Educação Sexual em meio escolar é obrigatória desde 2009. A lei é pouco cumprida porque o Ministério e as direções das escolas desinvestiram. E é pena, porque a Educação Sexual é um problema de educação: no relacionamento, no respeito e no amor.

Costuma dizer-se, tradicionalmente, que os pais educam e os avós deseducam. Olhando a actualidade, parece-lhe que essa é uma realidade que se verifica ou, presentemente, inverteramse um pouco os papéis, considerando a cada vez maior ausência dos pais? ><Não se inverteram os papéis, porque a maioria das pessoas volta a ter relacionamentos afetivos, dando origem a famílias recompostas. Mas é verdade que os avós são agora mais importantes, porque vivem mais e divorciam-se menos, sendo, em muitos casos, garantes da estabilidade familiar.

Falando em avós, como é que o professor, sendo psiquiatra mas também avô de 7 netos, vê a recente polémica do ser “uma violência” dizer/obrigar as crianças a beijar os avós? ><Uma polémica ridícula. Quando os avós estão atentos e há regras de boa educação na família, o cumprimento dos avós é natural.

Poder-se-á dizer que as novas tecnologias têm vindo a contribuir para que as relações interpessoais sejam cada vez mais frias e impessoais. No seu entender, acredita que há alguma forma de as tornar nossas aliadas, para

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ENTR E VIS TA A DANIEL SA MPAIO

que tal não aconteça? ><Como espero ter demonstrado no meu recente livro “Do telemóvel para o mundo”, teremos de tornar a i​​ nternet​​um ponto de encontro e não de rutura.

SISTEMA

NACIONAL

DE

SAÚDE

o tratamento das perturbações mentais mais leves, como a ansiedade e a depressão.

Neste contexto de gestão da saúde e do SNS maioritariamente economicista, considera a psiquiatria o “parente pobre”, frequentemente deixada para 2º plano? ><Sem dúvida, digo-o muitas vezes.

Integra a Comissão de Acompanhamento do Apoio Psicológico às Vítimas dos incêndios. Qual o trabalho desenvolvido pelos profissionais de Saúde Mental numa catástrofe como esta, em que várias pessoas perderam tudo o que tinham, o trabalho de uma vida numa questão de horas?

Turnos de 12h, consultas cada vez mais exigentes e com menor tempo disponível e stress na urgência são alguns dos factores que levam ao b ​ urnout médico. O que acha que o SNS poderia fazer para reduzir este problema?

><Foi um notável trabalho de acompanhamento

><Melhorar as condições de trabalho a todos os

por parte das equipas que estavam no terreno. Realizaram-se cerca de 3000 consultas num ano e os inevitáveis danos psicológicos foram minorados.

Em relação ao Serviço Nacional de Saúde, e em específico à Saúde Mental no mesmo, considera que, entre os profissionais de Saúde, ainda existe estigma relativamente à doença mental? Ainda se olha de lado para os psiquiatras? ><Ainda existe muito estigma, a Saúde Mental é pouco falada e faltam equipas comunitárias.

Para além disso, considera que, nos hospitais portugueses, os doentes recebem o apoio necessário em termos de Saúde Mental? ><Apesar dos hospitais terem muitas deficiências (por exemplo, basta ver as péssimas condições do Serviço de Psiquiatria do HSM, que se gaba de ser o melhor do país...), o problema principal é a falta de estruturas na comunidade.

Noutro âmbito, foi referido numa entrevista dada pelo Bastonário da Ordem dos Psicólogos que se gastam 600 mil euros em psicofármacos e que aumentar o número de psicólogos permitiria reduzir este valor. Qual o papel de um psicólogo num hospital ou em unidades de Cuidados de Saúde Primários? ><São várias funções: destacaria a prevenção, o acompanhamento das situações de doença crónica e

níveis.

FAC U L DA DE

DE

MEDICINA

O Prof. Daniel Sampaio, enquanto diretor do Serviço de Psiquiatria do HSM e professor Catedrático de Psiquiatria e Saúde Mental na FMUL foi, com a AEFML, o grande impulsionador do espaço S. Vendo retrospectivamente, sentia que este espaço era essencial para a Faculdade? E que balanço faz do mesmo? ><Acho que foi uma boa ideia. Agora temos um psicólogo contratado pela FMUL que está a fazer um bom trabalho, mas será preciso que a FMUL disponibilize o pagamento de mais horas/semana.

A depressão é uma patologia com grande impacto entre os estudantes de medicina. Que estratégias sugeriria para a prevenir/evitar? ><A ansiedade é mais importante, mas a depressão também merece atenção. O mais importante é criar boas condições de ​​ acesso​aos gabinetes de apoio.

O que diria Daniel Sampaio ainda estudante de Medicina, como entre 1964 a 1970, a um estudante de Medicina nos tempos de hoje? ><Que estude bem, claro, mas que não deixe de conviver e que esteja sempre muito atento aos outros.


SAÚDE MENTAL

MARIA H. VIEGAS

PDAH em adultos: Da Estigmatização ao Subdiagnóstico

><A

Perturbação de Défice de Atenção e Hiperactividade (PDAH) é uma das patologias psiquiátricas mais comuns na infância. No entanto, ao contrário do que se possa pensar, a PDAH não é uma perturbação exclusiva das crianças, tendo uma prevalência de cerca de 4% na idade adulta. ><Caracteriza-se por uma dificuldade em manter a atenção e a concentração, impulsividade e hiperactividade. Na idade adulta, os sintomas de hiperactividade tendem a diminuir, sendo que alguns dos adultos diagnosticados na infância já não cumprem os critérios diagnósticos do DSM-V para a PDAH, ainda que a maioria retenha importantes perturbações funcionais. ><Na mais recente versão do DSM-V, ocorreram algumas alterações aos critérios de diagnóstico, facilitando o diagnóstico da PDAH nos individuos em idade adulta, passando a ser necessário que um indivíduo com mais de 17 anos apresente pelo menos 5 sintomas na categoria de Desatenção e/ou 5 sintomas de hiperactividade/impulsividade, tendo estes sintomas início antes dos 12 anos e estando presentes em mais do que um contexto e há mais de 6 meses. Adicionalmente estes sintomas não poderão ser explicados pelo decorrer de outra patologia psiquiátrica. A PDAH pode ter uma apresentação com predominância da desatenção, com predominância de hiperactividade ou combinada. ><Hoje em dia, muito se fala sobre o potencial sobrediagnóstico da PDAH na infância e a

psiquiatrização de comportamentos considerados normais na infância, chegando a ser considerada, socialmente, como uma “doença da modernidade”, que poderia ser resolvida com disciplina e força de vontade. É comum associar-se a PDAH à imagem de uma criança que não se consegue manter sentada no seu lugar, correndo pela sala. Este pensamento não só

é errado, como é prejudicial para o indivíduo com PDAH, propagando a estigmatização e dificultando o

diagnóstico. ><Antes de mais, para que haja um diagnóstico é preciso que os sintomas perturbem ou diminuam a qualidade de funcionamento académico, social ou ocupacional do indivíduo. Algumas pessoas podem apresentar alguns dos sintomas sem terem PDAH. ><É importante perceber que esta é uma perturbação real, com base neurobiológica, estando demonstradas alterações na estrutura cerebral, nomeadamente na redução do volume e espessura cortical na substância cinzenta dos núcleos basais, alterações funcionais e estruturais nas regiões pré-frontal e estriada e no cerebelo. Também há evidência de alterações na substância branca e desordem anatómica e funcional da conexão entre diferentes regiões cerebrais, assim como irregularidades na neurotransmissão cerebral entre o córtex pré-frontal e as estruturas subcorticais associadas. ><Ainda que não esteja identificada uma causa para a PDAH, sabe-se que a sua etiologia se pode dever tanto a fatores hereditários como não-hereditários

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P DA H EM A DULT O S: DA E S T IGM AT I Z AÇÃO AO S UB DI AGNÓ S T IC O

(nomeadamente o tabagismo materno). A carga genética é bastante relevante, estimandose que 70-80% dos casos sejam hereditários, sendo comum que os indivíduos diagnosticados tenham um familiar em 1º grau com a mesma condição. Aliás, alguns dos adultos com PDAH acabam por ser diagnosticados aquando do diagnóstico dos seus filhos. ><Como qualquer patologia médica, mais do que ter em conta se os critérios do DSM-V são cumpridos, é preciso ter em conta o indivíduo e o seu contexto social e familiar. É preciso perceber o porquê dos sintomas, se existem outras causas que os possam explicar e se estes não estão a ser provocados por outra(s) patologia(s) psiquiátrica(s). É importante perceber de que forma a PDAH afecta a pessoa de modo a poder criar-se uma estratégia terapêutica adequada ao indivíduo. ><Geralmente o diagnóstico é feito na infância, quando os sintomas são mais evidentes. No entanto, é possível que um adulto com PDAH nunca tenha sido diagnosticado na infância, tornando mais difícil que o venha a ser, por várias causas, desde o estigma associado pela representação social da PDAH como uma perturbação exclusivamente infantil e predominantemente relacionada com a hiperactividade à percepção dos sintomas como características de personalidade. Para além disso, alguns dos adultos com PDAH poderão ter desenvolvido “estratégias de coping”, nomeadamente escolhendo carreiras mais activas, mais orientadas para os seus interesses e padrões de trabalho, e estratégias de organização e controlo de impulsos. Ademais, é importante ter em conta que nem todos os indivíduos com PDAH têm dificuldades visíveis no seu sucesso académico. ><Também a presença do estigma da procura de cuidados de saúde mental e as dificuldades no acesso a estes serviços no SNS são factores importantes no subdiagnóstico da PDAH nesta população, assim como a adequação dos critérios diagnósticos ao indivíduo. ><Habitualmente, a procura de ajuda é feita pelas pessoas cuja perturbação prejudica gravemente o seu funcionamento, sendo importante perceber que os sintomas da PDAH (descritos pelo indivíduo como “procrastinação”, “falta de motivação”, irritabilidade,

desatenção, má organização, entre outros) podem ter consequências negativas no seu emprego, desempenho académico e vida familiar, assim como afectar negativamente a sua auto-estima e contribuir para a morbilidade associada à PDAH. ><A presença de co-morbilidades e comportamentos de risco, como o abuso de substâncias e a “procura de adrenalina” não é negligenciável. Cerca de 50% dos indivíduos apresentam pelos menos outra condição psiquiátrica além da PDAH, nomeadamente perturbação depressiva e/ou ansiedade, perturbação desafiante de oposição (ODD), entre outras. Há ainda alguns estudos que referem a possibilidade da existência de um late-onset ADHD, embora ainda restem dúvidas se será uma perturbação à parte da PDAH ou se o indivíduo tinha uma susceptibilidade presente que apenas se manifestou na idade adulta. ><As estratégias terapêuticas são sempre centradas e adequadas ao indivíduo, consistindo geralmente em terapias cognitivo-comportamentais, intervenções psicossociais, e, por vezes, o recurso a medicação estimulante. Nem todos os indivíduos com PDAH tomam medicação ou são medicados de forma contínua. ><No tratamento da PDAH, o fármaco mais conhecido é a Ritalina (metilfenidato), um psicoestimulante que leva à diminuição da agitação e melhoria da atenção, através da sua atuação no sistema da dopamina, levando ao seu aumento. ><Embora a opção farmacológica não seja a única opção ou a mais adequada para todos os indivíduos com PDAH, é importante notar a mais valia que representa e a contribuição para o tratamento e melhoria da qualidade de vida destes indivíduos. Apesar da Ritalina ser conhecida pelo abuso que dela é feito, é importante salientar que as doses terapêuticas são relativamente baixas (e não causam dependência) e separar o seu uso terapêutico de outras intenções não destinadas. Da mesma forma que não se deixam de usar benzodiazepinas, não faria sentido excluir ou demonizar a Ritalina. ><O estigma associado às doenças mentais é o pior inimigo para a saúde mental colectiva, para o diagnóstico de perturbações e para a qualidade de vida de todos os indivíduos afectados. ><Urge quebrar o estigma, informar e estar informado!

“Se em vez de se falar em doença mental se falasse em saúde mental talvez fosse mais fácil que as pessoas estivessem predispostas a perceber as suas dificuldades e a procurar ajuda.”

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Bibliografia: Shorter Oxford Textbook of Psychiatry – 7th ed.; DSM- V: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders 5th ed.; https:// www.nimh.nih.gov/health/statistics/attention-deficit-hyperactivity-disorder-adhd.shtml - National Institute of Mental Health (NIH); https://www. ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5475268/ - JAMA Psychiatry, 2016 Jul 1; https://www.nhs.uk/conditions/attention-deficit-hyperactivity-disorder-adhd/ - NHS.


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F R A N C I S C O P E R E I R A • L E O N O R G O N Ç A LV E S

Trauma de “Ocasionalidade com Sedução Mútua”

><No dia 27 de Novembro de 2016, em Vila Nova de Gaia, uma mulher de 39 anos desloca-se com uma amiga ao seu bar habitual de diversão noturna, onde encontra dois funcionários seus conhecidos. Devido à baixa afluência de clientes, neste dia, decidem oferecer-lhe “vários shots” com “pelo menos 4 misturas de bebidas”, estando a cliente já bastante alcoolizada. Após vários episódios de náuseas, os dois funcionários acabam por conduzi-la para a casa-debanho onde, após ter vomitado várias vezes na sanita, deita-se e perde os sentidos no chão. ><De seguida, ambos os amigos decidem manter forçadamente relações sexuais com esta, de cópula

vaginal completa, alternadamente, com ejaculação. Segundo o acórdão do Tribunal de Relação do Porto, foi mantida “(...) na posição de bruços, com o peso do tronco totalmente sobre o lavatório, de forma a assim ficar imobilizada (...)”. Recorreu no mesmo dia às autoridades. No relatório do exame pericial, identificou-se uma equimose abdominal de 6 cm de diâmetro, uma no membro inferior direito e sete na nádega, das quais cinco mais internas, com a marca de 5 nós de dedos. ><Sabe-se que as implicações médicas que podem surgir nas vítimas de violação são variadas, mas, de entre as consequências psiquiátricas, a Perturbação


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TRAUMA DE “OCASIONALIDADE COM SEDUÇÃO MÚTUA”

de Stress Pós-Traumático (PSPT1) merece especial atenção. Vítimas de violação, a par de vítimas de combate ou captura militar, sobreviventes de campos de concentração ou genocídio com motivação étnica ou política, compõem entre um terço e metade das pessoas com esta perturbação. Estudos mais recentes equiparam doentes com PSPT associada à violência da guerra ao trauma da violência sexual. A violação deve ser, assim, analisada como um ato violento e de agressão e não apenas como um ato meramente sexual. ><Desta forma, torna-se necessário compreender como se comporta esta perturbação quando acontece como consequência de violação. ><São fatores de risco pré-traumáticos: transtornos mentais prévios ou problemas emocionais vividos até aos 6 anos de idade (fatores temperamentais); estatuto socioeconómico (incluindo minorias étnicas), grau de instrução ou existência de historial psiquiátrico familiar (ambientais); ser mulher e jovem no momento da exposição ao trauma (pois estas pessoas estão mais propícias à exposição a eventos traumáticos), ou genótipos particulares que tornam a pessoa mais promotora de risco de desenvolver PSPT (genéticos ou fisiológicos). ><Quanto a fatores de risco peritraumáticos, salientam-se a intensidade do trauma ou a ameaça percebida à vida ou lesão pessoal. ><Por último, nos fatores pós-traumáticos incluemse: avaliações negativas, estratégias de coping inapropriadas e desenvolvimento de transtorno de stress agudo (temperamentais), exposição subsequente a lembranças desagradáveis repetidas, eventos de vida adversos e perdas relacionadas com o trauma (ambientais). ><Como fatores protetores salientam-se o apoio social e estabilidade, bem como certos traços genéticos que protegem a progressão do trauma. ><O conhecimento destes fatores, bem como do comportamento da vítima face à memória do trauma, presença e afastamento de estímulos e eventos que a recordem do mesmo, são critérios importantes a identificar no diagnóstico desta perturbação. Ainda assim, é imperativo analisar o contexto biográfico da pessoa, pois esta perturbação revela, frequentemente, incapacidades em conduzir uma vida normal, tanto a nível social, interpessoal, académico, profissional ou físico. ><Ambos os violadores confessaram o crime. Ainda assim, o Tribunal de Relação do Porto considerou

que “A culpa dos arguidos situa-se na mediania, no fim de uma noite com muita bebida alcoólica, ambiente de sedução mútua, ocasionalidade”. Foram condenados a 4 anos e meio com pena suspensa. A vítima ainda está em negociação para a atribuição de uma indemnização. ><Este resultado profundamente injusto reflete o panorama geral da lei portuguesa, com repercussões graves nas vítimas de violação. ><Por um lado, promove um ambiente social de desconfiança no sistema penal, podendo levar a uma diminuição do número de denúncias. Segundo o relatório da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima de 2017, menos de metade dos casos foi denunciado às autoridades competentes. Este número diminui ainda mais no caso de o agredido ser homem, o que se poderá dever ao facto de a sociedade lhe negar o direito a ser emocional ou frágil e quando o agressor é conhecido da vítima. ><Por outro lado, as falhas no sistema de justiça repercutem uma sociedade que aceita e desculpabiliza as agressões sexuais, permitindo um ambiente social de medo constante de assédio e violação. O “medo de crime”, marcador comportamental da Sociologia que descreve o receio que um determinado grupo social tem de ser vítima de um crime, nas mulheres, está amplamente relacionado com o “medo de violação”, levando a que evitem o espaço público, ou que o façam com restrições, comparativamente aos homens. O facto de ser imposta cautela às mulheres em vez de punir os seus agressores contribui para a amplificação do medo e menorização das suas queixas após serem violadas, culpabilizando-as. Assim, a sua saúde mental pode ser negativamente afetada, não só por agravar fatores de risco de PSPT, como também por potenciar o ambiente social de ansiedade perante o perigo de agressão sexual. ><A violação é um ato de violência grave, com repercussões mentais, não só a nível individual como a nível social sistémico. Assim, a abordagem deve passar por uma atuação multidisciplinar, a nível político, médico, judicial e educacional, permitindo que se trace uma linha clara entre o consentimento e a “sedução mútua” e, assim, prevenindo estas consequências.

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Perturbação mental, com duração superior a um mês, que se pode desenvolver em resposta à exposição a um evento traumático, causa sofrimento clinicamente significativo e prejuízo social, profissional ou em outras áreas importantes da vida da pessoa e que não se deve aos efeitos fisiológicos ou a outra condição médica.

Bibliografia: American Psychiatric Association (2013). DSM-5: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (4ª Ed.). Lisboa: Climepsi Editores; Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (2017). Estatísticas APAV, Relatório Anual; Acórdão do Tribunal de Relação do Porto nº RP201806273897/16.9JAPRT.P1 a 27 de Junho de 2018.


SAÚDE MENTAL

ANA MOTA

Investimento da Saúde Mental em Portugal ><O tempo máximo de espera que encontrei no Serviço Nacional de Saúde para uma Consulta Geral de Psiquiatria de adultos, sem prioridade, foi de 232 dias. Devo referir que este não é um valor mau, tendo em conta que, para outras especialidades, vi números como 1482. No entanto, defendo que as derrotas de outros jamais serão as nossas vitórias. Sendo a valeriana de venda livre e existindo toda uma multiplicidade de livros de autoajuda publicados, poder-se-á concluir que a gestão da Saúde Mental é relativamente eficaz. Atenção que esta declaração tem tanto de ironia como de falta dela, pois tudo neste Universo depende da perspectiva, pelo que este artigo está, evidentemente, limitado pelo meu ponto de vista. Não obstante, tentarei fazer algo raro hoje em dia e respeitar as regras básicas do jornalismo, nomeadamente a realização de investigação e análise da informação. Posto isto, qual é o estado de arte do investimento em Saúde Mental? ><Antes de mais, importa referir que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), Saúde Mental não é a simples ausência de doença, mas sim um estado de bem-estar em que cada indivíduo realiza o seu próprio potencial, consegue lidar com os desafios normais da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera e contribuir

para a sua comunidade. Já bem-estar pode ser definido como um estado físico, social e mental positivo, incluindo sentimentos de satisfação, optimismo, autoestima e de viver com significado¹. Estas duas definições não foram para aqui copiadas para aborrecer, mas sim para demonstrar que os próprios conceitos contêm em si o espectro variável e extremamente relativo da Saúde Mental, o que a torna, por consequência, um alvo fácil da negligência.

><Em primeiro lugar, não se pode deixar de louvar o facto de, pela primeira vez, a Saúde Mental e o bem-estar, assim como a prevenção e tratamento das substâncias de abuso, serem consideradas prioridades globais, estando incluídas entre os 17 “Objectivos de Desenvolvimento Sustentável”, sendo referenciadas no ponto 3.4: “Até 2030, reduzir em um terço a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis através da prevenção e tratamento, e promover a Saúde mental e o bem-estar.” Sim, admito que parece que tem de se ler aquelas letras pequeninas dos contratos que nunca ninguém lê. Contudo, o importante é que se encontra efectivamente escrito e alguém assinou por baixo, neste caso a Organização

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INVE S TIMENTO DA SAÚDE MENTAL EM P OR T UGAL

das Nações Unidas, e isso é alguma coisa. Acrescento ainda que a OMS colocou em marcha entre 2013 e 2020 um ambicioso plano para a Saúde Mental, do qual ainda não se retiram conclusões do seu sucesso.

><E em Portugal? No contexto da celebração do Dia Internacional da Saúde Mental, a 10 de Outubro, tanto o Presidente da República como o anterior Ministro da Saúde, a Directora Geral da Saúde e o coordenador do Programa Nacional para a Saúde Mental concordaram que existe uma falta de investimento na área e que o país continua atrasado neste domínio. O Relatório de 2017² sobre o ponto de situação em 2016 concluía e projectava o seguinte:

>> As pessoas estão a viver mais anos, mas com incapacidades na área da Saúde Mental, o que implica uma sobrecarga para a sociedade; >> O número de mortos por Saúde Mental é baixo e está, sobretudo, relacionado com o suicídio. É no Alentejo onde acontece o maior número de suicídios, na maioria homens; >> É necessário maior rigor e qualidade na prescrição de medicamentos na área da Saúde Mental; >> Pretende-se aumentar em 25% o registo de perturbações mentais nos Centros de Saúde, até 2020; >> É preciso aumentar os cuidados e serviços na área da Saúde Mental, apoiando a criação de 1500 lugares para adultos e 500 para crianças/ adolescentes em Cuidados Continuados Integrados de Saúde;

>> Realizar mais 30% de ações de promoção da Saúde Mental e de prevenção das doenças mentais. ><Estas são estratégias politicamente correctas que continuam a esquecer o lado mais negro da Saúde Mental: o tabu. Se alguém caísse no meio da rua e partisse uma perna, teríamos em pouco tempo, para além de um público considerável, uma chamada para o 112 (ou pelo menos eu assim o espero). Se alguém começasse a chorar, hiperventilar e tremer no meio da rua, a maioria das pessoas em redor pensaria que não se deveria intrometer. Mas ninguém fala tão abertamente sobre a sua depressão como fala sobre a sua osteoartrite do mindinho. Ninguém julga tão severamente quem faz metformina por não conseguir controlar a sua diabetes com correção de estilos de vida como julga quem faz metadona para tratar a sua dependência. Depois, há que ter em consideração que uma tendinite é uma excelente justificação para uma baixa laboral, mas um agravamento de um transtorno de ansiedade generalizada jamais.

><Honestamente, creio que na sociedade actual avanços têm sido feitos na luta contra a discriminação, seja contra o que for, mas permanece uma certa falta de espaço para as almas que estejam pesadas, cansadas ou simplesmente stressadas. Um dia, espero que haja liberdade para dizer a frase “Está tudo bem” apenas com a bênção da ignorância ou a tranquilidade da aquiescência.

><Até lá, não se esqueçam que a linha SOS Voz Amiga, 21 354 45 45 / 91 280 26 69, vocacionada para ajuda na solidão, angústia, desespero e prevenção do suicídio, está disponível diariamente, mas apenas das 16 às 24 horas, portanto, por favor, limitem os vossos ataques de pânico a esse horário.

Bibliografia: WHO (2003), Investing in Mental Health; DGS (2017), Relatório 2017 do Programa Nacional para a Saúde Mental.


RAND EPORTAGE


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ANTÓNIO VELHA • JOÃO FERNANDES PEDRO MARIA H. VIEGAS • RÚBEN SIMÕES

Como se morre em Portugal? Neste mundo, nada se pode dizer ser certo, exceto a morte e os impostos.”

><Por estas palavras, Benjamin Franklin revela-nos, excetuando a segunda opção (mais satírica), aquele que é talvez o único facto verdadeiramente universal na vida humana – a morte. Para um início, há um fim; a vida que começa tem de acabar (pelo menos, dentro dos limites da ciência moderna). Esta efemeridade, esta natureza de finitude e o desconhecido que cada um de nós aguarda são deveras problemáticos, especialmente porque não sabemos o que nos espera do outro lado.

><Ao longo da nossa evolução, houve uma pressão adaptativa para que nos afastássemos daquilo que desconhecemos pelo medo, de modo a aumentar as nossas hipóteses de sobrevivência. E nem mesmo a razão, característica tão tipicamente humana de que tanto nos orgulhamos, pode suportar plenamente um instinto tão primitivo.

><Perante a questão da morte e da sua universalidade, as sociedades e culturas humanas acabaram por desenvolver diferentes perspetivas e formas de lidar

com o impacto que esta tem nas suas vidas. É um fim? É uma transição? Religião, valores, ideologias, todas estas vertentes e muitas mais moldam e são moldadas pela morte, de tão premente que é nas vidas de cada ser humano. São questões importantíssimas para qualquer indivíduo e que merecem muita reflexão no contexto da sociedade em que este está inserido.

><E em Portugal? Como é que se lida com esta questão? É uma pergunta muito relevante, mas também muito complexa. Poderíamos passar um dia a conjeturar sobre generalidades da cultura portuguesa e a forma como se interrelacionam com as questões da morte e do fim de vida.

><Talvez seja mais profícuo aprofundar, antes, questões um pouco mais concretas – procurar saber em que condições é que se morre em Portugal, que impacto tem isto nas pessoas e o que se pode fazer a este respeito.


COMO SE MORRE EM PORTUGAL?

><Desde os últimos anos tem-se assistido, em Portugal e pelo mundo fora, à confirmação da tendência de hospitalização da morte. No nosso país, em 1958, 11% das mortes ocorreram no hospital. Em 2008, este número subiu para 61%. Vários fatores terão contribuído para esta tendência, como o facto de haver uma progressiva necessidade de ocultação da morte, associada à diminuição da interpretação religiosa do fim da vida, mas também devido aos avanços na Medicina, que podem criar uma esperança não fundamentada na sociedade face à possibilidade de cura. ><O papel social da mulher também mudou muito desde o século XX, com o assumir de um papel laboral e cívico na sociedade, o que diminui a sua disponibilidade para cuidar dos familiares em fim de vida, que requerem cuidados muitas vezes permanentes e continuados. Com a atualização da vida urbana de hoje, perderam-se também alguns laços de solidariedade familiar, o que afeta negativamente as relações interpessoais no seio da família e contribui para reduzir o núcleo familiar. Ressalva-se o caso da região Norte do país, onde a tendência para a hospitalização da morte só se verificou mais tarde, devido a uma atualização do quotidiano e deterioração das relações familiares mais indolente e tardia. ><Do ponto de vista histórico, na Europa assistiu-

se a um aumento da hospitalização da morte desde a segunda metade do século XX, após a II Guerra Mundial, motivada por importantes mudanças nos contextos de vida e no quotidiano. Em Portugal, esta tendência só se instalou a partir dos anos 70, após um período de tumulto social e alteração das condições sociais e de modos de vida, associados à Revolução de 25 de Abril de 1974. A partir deste período, verificaram-se importantes desenvolvimentos em saúde no país, como a criação de um dos nossos mais valiosos bens sociais, o Serviço Nacional de Saúde, fundado a 15 de Setembro de 1979 (Lei n.º 56/79). ><Se a mortalidade é importante, não menos o é a natalidade. Em Portugal, no ano de 2008, a taxa bruta de natalidade foi igual à taxa bruta de mortalidade (9,8 por cada 1000 habitantes). A natalidade, a mortalidade e as migrações (maioritariamente emigração) são os fatores mais importantes para caracterizar o perfil demográfico de um país. ><No caso de Portugal, a recente crise económica e financeira teve um impacto muito superior ao da mera deterioração das condições socioeconómicas, ao dilacerar a base de qualquer sociedade: a população jovem e em idade ativa. Isto irá criar inúmeros desafios futuros no que toca às condições da população idosa e poderá contribuir para uma involução do modo como se morre em Portugal. Prevê-se um aumento da procura de cuidados de saúde em fim de vida,

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algo que poderá não ser acompanhado das condições económicas para tal. ><Atualmente, verifica-se o alargamento do pródromo da morte, que se arrasta por mais tempo e que implica uma grande concentração de comorbilidades, com perda de autonomia. Neste sentido, surge a noção do doente em fase terminal de vida, que corresponde a alguém cuja condição clínica é precária e que está associada a uma aproximação da morte, fase em que qualquer decisão médica se deve orientar por um intuito paliativo e não curativo. Nesta fase há um reconhecimento da morte inevitável e para breve; no entanto, devem ser assegurados os melhores cuidados paliativos, muitas vezes de alívio sintomático e gestão de expectativas, para garantir uma morte digna e socialmente aceite, num contexto familiar e motivado pelo bem-estar. ><“Morrer com dignidade é morrer com identidade. É um conceito que faz todo o sentido.” Quem o defende é a Dra. Sílvia Ouakinin, psiquiatra de apoio ao Serviço de Hemato-Oncologia, na CUF Infante Santo, desde 2008. E prossegue: “Morrer com identidade é morrer rodeado das pessoas que se ama, num ambiente que o doente sinta como acolhedor, e com o acompanhamento adequado para minimizar o seu sofrimento ao máximo possível. Se em Portugal se morre com dignidade? Depende, umas pessoas sim, outras não. Morrer com dignidade é a pessoa sentir-se pessoa até à hora da morte, não ser apenas um pré-cadáver com braços e pernas que está a definhar”. ><Este testemunho é bastante tocante, esclarecedor e de alguém que trabalha e convive de perto com a realidade angustiante dos doentes oncológicos, desde que são diagnosticados até ao fim da batalha (se for essa a sua vontade, claro está). ><De facto, através da conversa com a Dra. Sílvia Ouakinin, pudemos compreender melhor qual é a capacidade de resposta que os Serviços de Saúde portugueses têm face às necessidades das pessoas que enfrentam uma doença oncológica e a ameaça que isso representa para a sua vida e, por vezes, mais preocupante até para a qualidade da mesma. ><O doente é informado, na altura do diagnóstico, da possibilidade de ser acompanhado por um psiquiatra, que o poderá auxiliar a encarar a doença, as suas implicações e que o ajudará a posicionar-se da melhor forma possível em relação às suas perspetivas e à realidade. ><Admite, porém, as discrepâncias que existem entre os Hospitais Públicos e Privados e também às

diferenças geográficas. Reconhece que, por questões de sobrelotação nos Públicos, os Privados conseguem reagir com maior prontidão à afluência, mas acredita que a dedicação aos doentes é a mesma. ><Em relação à questão dos doentes que vivem longe dos grandes centros, a Dra. Sílvia Ouakinin realça o peso que a proximidade a uma rede de cuidados de saúde tem para que o doente se sinta mais seguro, mais apoiado e mais confiante no processo de tratamento, o que se reflete no prognóstico. Infelizmente, em Portugal esse desnível, entre ser doente em Lisboa ou no Porto e no resto do país, ainda é um fosso significativo. ><Além disso, há ainda o apoio social e profissional, que nem sempre é o melhor. O mercado de trabalho é uma selva e muitas vezes é frio e duro. O doente é um funcionário e, enquanto funcionário, pode ser produtivo ou não. Obviamente, um doente oncológico é visto como não produtivo e muitas vezes posto de parte. Esta perda de papel social também afeta muito. Mas, felizmente, também há muitos casos onde há abertura e compreensão no emprego. ><A propósito de desigualdades em saúde no nosso país, tão realçadas pela Dra. Sílvia Ouakinin, seguimos a investigação e chegámos a conclusões interessantes. Verificámos que a taxa de mortalidade permite identificar desigualdades e problemas de justiça social no acesso a cuidados de saúde entre diferentes etnias, situações familiares e regiões geográficas. De facto, a taxa de mortalidade é superior em trabalhadores menos qualificados, operários e pessoas de raça africana residentes em Portugal. Regiões tendencialmente mais pobres do país, como o Alentejo e o Algarve e regiões com grande dispersão social, como Lisboa e Vale do Tejo, apresentam maiores taxas de mortalidade. Pode mesmo considerar-se que as desigualdades socioeconómicas são atualmente um problema de saúde pública. ><Muito do que se pode fazer antes da morte está na dependência dos chamados cuidados paliativos e, também neste aspeto, se observam grandes assimetrias. Em termos de acessibilidade, os dados do Ministério da Saúde apontam para uma cobertura de 12% da população adulta que necessita destes cuidados. Este dado foi-nos transmitido por outro contacto que realizámos no sentido de obter mais informação sobre a realidade dos cuidados paliativos em Portugal. ><“Os cuidados paliativos não se destinam apenas a quem está a morrer.” Pelas palavras do Prof. Manuel


COMO SE MORRE EM PORTUGAL?

Luís Capelas, diretor do Observatório Português de Cuidados Paliativos, estes destinam-se a todos os que sofrem. Procuram abordar o sofrimento, bem como as condicionantes que o acompanham, de modo a restituir ao doente a sua dignidade e possibilitar uma melhor morte. ><Ao contrário do que muitos pensam, não é apenas para os doentes em fase terminal, ou já em agonia. “Dir-se-ia que há um estigma e preconceito perante os cuidados paliativos, de que são destinados a moribundos.” E não são apenas necessários em oncologia (que representa 1/3 dos doentes que recebem cuidados paliativos), onde o paradigma já é de cronicidade, mas também em condições como a artrite reumatóide, tuberculose multirresistente, diabetes, insuficiência cardíaca, entre outras que beneficiam deste tipo de acompanhamento. “A partir do momento em que há sofrimento, há intervenção.” ><Na verdade, se queremos possibilitar a um doente uma morte com dignidade, há muita preparação a realizar antes. Controlo físico da dor, trabalho comunicacional, gestão de expectativas e readaptação à nova situação, envolvimento familiar, planeamento avançado de cuidados… são tudo questões de enorme relevância num doente não só em fim de vida, mas também com condição crónica. Há que conhecer bem os doentes, os seus objetivos, as suas relações e as suas condicionantes. Ainda mais, e talvez acima de tudo, há que respeitar a autonomia e a privacidade do doente. Este tem de se sentir envolvido e colocado no centro da decisão de modo a repôr dignidade e sentido à vida. “Apesar de estar a morrer, não deixo de ser pessoa.” ><Os cuidados paliativos têm importância nesta perspetiva de se integrarem como especialidade nos cuidados aos doentes das diversas áreas. Infelizmente, em Portugal, ainda há um longo caminho a percorrer. Em termos de impacto, ou seja, de qualidade, é difícil tirar conclusões. ><Há uma grande disparidade de modelos entre unidades de cuidados paliativos e alguns serviços contam com recursos humanos minimamente adequados (por exemplo, médicos sem horas alocadas a cuidados paliativos, mas que fazem este trabalho ocasionalmente). O desconhecimento a este respeito é grande e há necessidade de monitorizar os resultados dos cuidados. Para além disto, apenas cerca de 1/3 dos serviços médicos em Portugal contam com, pelo menos, um médico alocado a 100% a cuidados paliativos (não necessariamente especialista, mas

com competência na área). ><Ainda assim, isto é tudo no contexto hospitalar. Então e em casa? Seria, de facto, desejável descentralizar a morte e os cuidados para a casa, porque é aí que os doentes preferem morrer. No entanto, uma mudança rápida de paradigma não pode ser alcançada sem grandes riscos. ><Em casa, é necessário um cuidador e suporte de uma equipa especializada, porque há que garantir o apoio e a preparação para os momentos de crise e para o aproximar da morte, situação naturalmente angustiante. Ter os doentes em casa requer recursos e acaba por ser uma sobrecarga para as famílias e cuidadores. “O objetivo é a morte em casa, mas não a todo o custo. É a confluência de fatores: o doente querer, a família querer e ter condições, haver cuidados de saúde disponíveis.” ><Portanto, por fim, perguntámos ao Prof. Manuel Luís Capelas, “Como se morre em Portugal?”: “Morre-se essencialmente no hospital, sozinho, com algumas questões não resolvidas na vida, em alguns casos sem dignidade, sem qualidade. Muitos em situação de futilidade e obstinação terapêutica. Muito condicionados, nem todos, mas uma fatia significativa, o que nos leva a refletir enquanto profissionais e enquanto sociedade.”

“Enquanto houver uma pessoa que morra sem dignidade, sem qualidade de vida, com algum grau de sofrimento, em obstinação, ligado a um ventilador, sozinho um serviço de saúde… mesmo que haja um, deve fazer-nos pensar, porque é a nossa posição enquanto sociedade.” Agradecimentos: Prof. Manuel Luís Capelas, Dra. Sílvia Ouakinin, Profª Maria do Céu Machado e Observatório Português dos Cuidados Paliativos

Bibliografia: Relatório dos Perfis Regionais de Cuidados Paliativos 2017, Observatório Português dos Cuidados Paliativos; MACHADO, Maria do Céu, COUCEIRO, Luísa, et al. A Morte e o Morrer em Portugal, Edições Almedina, 2011

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INÊS COSTA LOURO

Turismo de/ou Voluntariado? Será que a diferença importa? ><Hoje em dia, o “turismo” e o “voluntariado” deixaram de ser conceitos distintos para começarem a andar de braço dado. Palavras como voluntourism surgem no nosso vocabulário e criam à sua volta algum misticismo e crítica. ><Quando comecei a escrever este artigo, confesso que a minha intenção era denegrir este conceito, esmiuçar o voluntourism e desenhar uma teia de argumentos negativos acerca da prática desta atividade. Ao pesquisar sobre o tema e encontrar diferentes artigos, apercebi-me de que não tinha, de todo, conhecimento suficiente para tecer esse tipo de opinião. É necessário, efetivamente, debruçarmo-nos sobre este conceito para entendermos o que é e o que realmente implica. Primeiro que tudo, é importante perceber se, realmente, o voluntário se consegue separar do turista. A partir do momento em que entramos num avião e nos dirigimos para um país longínquo, mesmo que a nossa intenção seja ajudar uma população de risco, não fechamos os olhos à beleza e às diferenças daquela terra. Ouvimos uma nova língua, estamos imersos numa nova cultura, vivemos num país diferente e percorremos as suas ruas, desconhecidos e deslumbrados, conhecemos novas pessoas, aprendemos e crescemos. E quem é que faz isto? Um turista. O dinheiro. Ao “vender” a experiência aos voluntários, contribui-se para que estes se sintam “clientes” de

algo, priorizando o seu conforto e as suas necessidades em prol das dos outros que vieram ajudar, tentando aproveitar o seu dinheiro ao máximo (querem mais fotografias e controlar o modo como a sua experiência se irá desenrolar, por exemplo). No entanto, é de salientar que, muitas vezes, esta taxa que se paga para partir na atividade de voluntariado é que permite uma melhor organização do projeto e uma maior adequação à população que este pretende atingir. No entanto, é preciso manter sempre presente que nós não sabemos o que é melhor para a população, eles é que sabem que tipo de ajuda é que precisam mais. O argumento. As pessoas, muitas vezes, são bombardeadas com slogans como, “vem fazer o bem!” e “eles precisam da vossa ajuda!” e com o que é agora chamado de poverty porn (retrato sensacionalista da pobreza e dos crimes nos países em desenvolvimento de modo a aliciar voluntários a escolher estes países para a sua ação) e ainda com metas estabelecidas por diferentes organizações de voluntariado, bastante promissoras, que acabam por não ser cumpridas, porque, muitas vezes, mesmo os projetos mais bem organizados acabam por correr mal, visto que há sempre obstáculos imprevisíveis que acabam por surgir e que são difíceis de contornar em condições mais extremas, não tendo o nosso voluntariado o impacto pretendido. A perceção. Turismo de voluntariado ou não, qualquer


T UR ISMO DE /OU VOL UNTAR IADO ? SER Á QUE A DIF ER ENÇA IMP OR TA?

pessoa que vá numa missão para um país distante, por mais altruísta que seja, ganha sempre algo com isso. Sente-se bem consigo própria, tem uma experiência cultural única e inesquecível, é capacitada nas mais diversas áreas e vive durante um período de tempo naquele lugar que é a casa de muitas pessoas para as quais, até àquele momento, o voluntário era um perfeito desconhecido. Como será de esperar, os locais não irão confiar na pessoa imediatamente e se esta se retratar como um “santo” que as veio ajudar, ainda será mais complicado de conquistar essa confiança. Todos damos algo e retiramos algo com qualquer experiência de voluntariado, o melhor é abraçarmos essa condição e ajudarmos o mais que podemos. Será que visitar as atrações de um país invalida os nossos atos de voluntariado? O importante de se fazer voluntariado é, não só a intenção, mas também o impacto que se tem na população afetada por nós e pelo projeto no qual estamos envolvidos. Se esse impacto for positivo, se o fim de semana em que fizemos voluntariado dos dois meses em que tivemos de férias ajudou alguém, essa ação é tão ou mais válida do que ter ficado seis meses apenas a fazer voluntariado e não ter tido impacto nenhum ou até um impacto negativo.

><Enquanto conseguirmos ajudar, que mal faz se há turismo pelo meio ou não? Efetivamente, pondo a palavra “turismo” de parte, há sempre algo que, por muito que se tente ser 100% altruísta e perseguir as oportunidades de voluntariado exclusivamente pelos outros, vamos ganhar com isto, mesmo que seja conhecimento, amizades, crescimento pessoal… porque não visitar e conhecer um local novo também? Desde que o impacto daquilo a que nos candidatamos seja o mesmo, que problema existe?

><O importante a reter é que, tal como tudo, isto não é preto ou branco, um problema ou uma solução, tem benefícios, mas também prejudica. No entanto, se não se perder de vista qual o objetivo de fazer voluntariado, não haverá problema em sermos as duas pessoas, o turista e o voluntário.

><Quando queremos partir numa missão para um país distante, independente da sua duração ou do que tencionamos fazer antes ou depois, o essencial é questionarmo-nos de que forma podemos ajudar aquela população, de que forma ela precisa e quer ser ajudada. Se sentirmos que conseguimos fazer algo por ela e ter um impacto positivo, então só nos resta pegar na coragem e ir.

Bibliografia: [https://www.] themuse.com/advice/the-reality-of-voluntourism-and-the-conversations-were-not-having; huffingtonpost.com/ daniela-papi/is-voluntourism-itself-be_b_5197390.html; voluntourisminstitute.wordpress.com/2014/03/26/the-exploitation-of-voluntourism/; voluntourisminstitute.wordpress.com/2014/03/24/fresh-misperceptions-on-voluntourism/; theguardian.com/global-development-professionals-network/2013/jul/05/poverty-porn-development-reporting-fistula?utm_content=buffera0cbe&utm_source=buffer&utm_medium=twitter&utm_campaign=Buffer

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MANUEL LUCAS

Emigração, porque não? ><A emigração médica é uma realidade cada vez mais presente. Eu inquiro-me: “porquê?”. Temos um país com boa qualidade de vida, custo de vida relativamente baixo, boa gastronomia, boa cultura, segurança, boas infraestruturas, entre muitas outras coisas boas. Então, “porquê”?

têm a fama de “ganhar bem” e ir para medicina é quase sinónimo de “ter a vida feita”. Aliás, antes de entrar para a faculdade sempre ouvi que “o mais difícil é entrar”.

><O que é que há de errado em Portugal para estes jovens então?

><Não existe resposta certa, cada um tem as suas razões. Neste artigo, vou tentar elucidar algumas, trazendo “à baila” aspetos que muitas pessoas desconhecem.

><Vou falar do jovem médico acabado de sair da faculdade e que já pensa em sair do país. Após 6 anos de curso, em Portugal, seguem-se mais 5 a 7 anos de formação até ser médico especialista. Além disto, existe uma Prova Nacional de Acesso (PNA), em que os finalistas que obtiverem as notas mais elevadas têm direito a escolher primeiro a sua futura especialidade.

><Optando por emigrar, o jovem médico depararse-á com outras dificuldades, dependentes do país pretendido. Estas vão desde exames de acesso à especialidade noutros moldes, a entrevistas, à concorrência dos nativos, à mudança de realidade, à nova língua, às novas normas de orientação clínica (NOC’s), enfim, uma vida nova. Postas as coisas desta forma, parece muito mais apelativo ficar em Portugal, até porque os médicos

><Estes jovens vivem com medo do futuro que se avizinha, aterrorizados pela PNA que exige um árduo estudo durante mais de um ano, pelo vislumbre, dum futuro ingrato de excesso de trabalho, pela noção de que o cansaço nunca irá diminuir e poderá mesmo culminar em burnout, como é visível nos encovados e negros olhos dos recém internos de especialidade e por tantas outras coisas que se vêem diariamente. Como se isto não bastasse, existe agora o terror de não ingressar na formação especializada e ter de arranjar outras soluções para viver.

><A realidade em números é que, no ano passado, não conseguiram vaga de acesso ao internato médico de especialidade mais de 600 estudantes, sem contar com os restantes 300 que desistiram da prova, pois a sua nota era insuficiente para a especialidade que pretendiam e, deste modo, preferiram tentar de novo a passar a vida inteira a fazer algo que não os realizasse. Gostaria de chamar a atenção do leitor para a seguinte questão: ter nota insuficiente não é igual a ter má nota. A nota do exame é expressa em percentagem


EMIGRAÇÃO, PORQUE NÃO?

e, atualmente, a larga maioria dos concorrentes tem mais de 60% no exame, sendo que com menos de 70% já é difícil encontrar alguma especialidade disponível. Ora, a partir daqui existem 4 soluções possíveis: 1. Ficar um ano a estudar para a PNA do ano seguinte, fazendo concorrência aos colegas do ano anterior na luta pelas vagas de especialidade; 2. Mudar de área, tentando arranjar emprego na indústria farmacêutica ou seguindo uma carreira de investigação laboratorial; 3. Trabalhar como “tarefeiros”, a contrato de uma empresa ou de um hospital e funcionando como “tapa buracos” nas urgências, quando há falta de médicos; 4. Emigrar.

><Claro que aqui entra a questão de que nem todos

><Como agravante, há que pensar na parte financeira,

><Tudo isto indica uma falta de qualidade na nossa

porque ninguém vive do ar! As tabelas salariais oficiais da carreira médica indicam que o ordenado bruto mensal por 40h semanais é de 1566,42€ para um interno do ano comum. Obviamente que isto não é linear… À semelhança da restante função pública, é difícil entrar na carreira, sendo muito comum ter de se acordar um contrato por valor bastante inferior a este ao longo de vários anos. Existem, inclusive, relatos de médicos que aceitaram contratos de 800€ mensais para conseguir trabalhar. Depois admiram-se que os médicos vão a correr para a Alemanha, a França, a Suiça ou o Reino Unido… lá prometem salários que ultrapassam o dobro ou o triplo deste e, muitas vezes, com prémios por desempenho!

formação médica, uma falta de aposta no potencial dos nossos jovens médicos, uma falta de reconhecimento do valor destes, uma falta de políticas racionais!

os hospitais têm profissionais devidamente formados e instalações que permitam formação de internos e os que têm já estão sobrelotados. Isto resulta num fenómeno muito simples e concreto: falta de condições para trabalhar. E mais grave, falta de condições para os doentes! Quantas foram as vezes que ouvimos pessoas a queixar-se que o médico era estrangeiro e não as entendia, que o médico só olhava para o computador e a consulta durou apenas 5 minutos, que nós, classe médica, somos hipócritas por “reclamarmos de barriga cheia” (quando reclamamos…)?

><Perante tudo isto, o que é que nos prende aqui?

><Depois, ainda existem os descontos! Sim, porque o ordenado líquido fica reduzido a cerca de mil e poucos euros mensais…

><Outro aspeto interessante na política médica portuguesa é que não se abrem mais vagas para formar médicos, mas contratam-se estrangeiros (que, muitas vezes, nem dominam o português e não conhecem devidamente as nossas NOC’s), por valores tão absurdos como 60€ à hora, em muitos casos, 12h diárias para assegurar os serviços médicos devido à falta de profissionais. Isto equivale a um gasto mensal de cerca de 21.600€, o que daria para pagar a, aproximadamente, 13 jovens médicos portugueses por mês.

Bibliografia: [https://www.] simedicos.pt/fotos/editor2/ficheiros/tabela_salarial_2018.pdf; observador.pt/opiniao/faltam-medicos-vao-faltar-mais/; simedicos.pt/pt/noticias/2250/acordo-para-medicos-em-contrato-individual-de-trabalho-act/; observador.pt/especiais/ainda-vale-a-pena-querer-ser-funcionario-publico-e-os-servicos-do-estado-tem-futuro/; expresso.sapo.pt/sociedade/2017-08-15-A-emigracao-compensa-ha-mais-trabalho-e-ganha-se-mais#gs.90QiVI8; publico.pt/2018/03/12/sociedade/noticia/portugal-arrisca-ter-vaga-de-medicos-a-sair-a-procura-de-especializacao-1806121; dn.pt/edicao-do-dia/04-ago-2018/interior/emigracao-de-medicos-vai-subir-para-niveis-do-tempo-da-crise-9675145.html https://www.dn.pt/edicao-do-dia/22-jul-2018/interior/dispara-o-numero-de-medicos-brasileiros-a-vir-para-portugal-9618015.html

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AFONSO MORAIS

Futebol Americano: seguro? ><O futebol americano é um dos desportos mais populares e característico dos EUA. É um jogo agressivo, famoso pela prática de tackles (derrube do jogador com posse de bola por parte da equipa adversária, de forma a recuperar a mesma, gerando violentos impactos entre os oponentes). Hoje em dia, encontra-se envolto em polémica devido a vários estudos que correlacionam a sua prática, e violência inerente, a patologias cerebrais degenerativas. Com efeito, uma das lesões mais recorrentes é a concussão cerebral. ><O que é uma concussão cerebral? Trata-se de uma lesão neurológica, resultante de um traumatismo craniano que, geralmente, não causa fraturas ou feridas superficiais. A sua gravidade está associada à intensidade com que o cérebro é deslocado no interior da cavidade craniana. Provoca uma disfunção cerebral momentânea que se pode manifestar com perda de consciência, perda de memória, sonolência anormal, confusão mental, cefaleias, entre outros. Esta disfunção pode ser reversível ou não, dependendo do grau de severidade do impacto, pelo que a maioria dos indivíduos afetados recupera completamente após algumas horas ou dias, sem necessitar de tratamento específico. ><O motivo da polémica prende-se pelo facto de, nas últimas décadas, terem sido divulgados inúmeros estudos científicos que correlacionam as sucessivas concussões com uma patologia degenerativa cerebral, a Encefalopatia Traumática Crónica (ETC). Trata-

se de uma cerebropatia de instalação lenta (demora anos a manifestar-se) e de carácter progressivo. Causa danos e alterações estruturais no cérebro que levam à acumulação da proteína tau, que se pensa ser desalojada das fibras cerebrais durante o impacto, aglomerando-se depois nos tecidos cerebrais e interrompendo fluxos de informação críticos. Manifesta-se, clinicamente, por um quadro de declínio cognitivo, muitas vezes demencial, podendo verificar-se perda de memória, agressividade, depressão ou alterações motoras semelhantes à Doença de Parkinson. ><Vários anos de suspeitas e teorias culminaram, em 2005, na publicação do primeiro estudo1 que alertava para a presença de ETC numa avaliação post-mortem do cérebro de um jogador de futebol americano. Na mesma publicação, foram revelados alguns dados importantes acerca do panorama do problema na NFL (National Football League, Liga Desportiva de Futebol Americano dos Estados Unidos), tais como que 92% dos jogadores que experienciam uma concussão e 69% dos que a experienciam com perda de consciência voltam aos treinos em menos de 7 dias. Muitos outros estudos se seguiram: ><Um artigo2 publicado no jornal JAMA (Journal of the American Medical Association), após exames neuropatológicos em 202 cérebros de ex-jogadores, concluiu que 177 apresentavam algum grau de ETC (a sub-amostra com ex-jogadores da NFL revelou que 99% apresentavam ETC);


FUTEBOL AMERICANO: SEGURO?

>>

Outro artigo3 publicado no mesmo jornal apresenta evidências sugestivas de que a prática de futebol americano na faculdade pode levar à diminuição do hipocampo (região crítica da memória) em comparação com pessoas que nunca jogaram futebol na univerdade.

><Mais recentemente, a história de Aaron Hernandez, ex-jogador de futebol americano, que se suicidou em abril de 2017 na prisão onde estava acusado de homicídio, voltou a colocar o assunto na ordem do dia nos EUA. O seu cérebro foi doado ao Centro de Encefalopatia Traumática Crónica da Universidade de Boston onde foram identificadas lesões cerebrais que correspondiam a uma ETC de estádio 3. Aaron tinha 27 anos e foi o caso mais severo de sempre para um indivíduo da sua idade (este diagnóstico nunca tinha sido feito em alguém com menos de 46 anos).

><Gera-se a questão: afinal, qual é a real dimensão do problema? ><Para vos ajudar a perceber, em seguida encontra-se um gráfico com o número de concussões por ano na NFL, entre 2012 e 2017.

TABELA 1: Número de concussões por ano na NFL, de 2012 a 2017.* (Fonte: NFL 2017 Injury Data)

*

Estes dados não contabilizam os incontáveis traumatismos que não

atingem o nível de concussão, mas que ainda assim representam um risco para o cérebro.

><São números avassaladores e que têm vindo a aumentar ao longo das décadas. Não porque o desporto tenha vindo a tornar-se mais violento, mas devido à mudança da fisionomia dos seus praticantes. Na década de 60, os membros da linha ofensiva (geralmente, os jogadores de maior porte) de uma

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equipa profissional ou universitária pesavam, em média, cerca de 120 kg. Hoje em dia, a média ultrapassa os 135 kg. Este aumento do tamanho dos jogadores levou a um maior número de lesões por contacto, bem como a uma maior severidade das mesmas. ><Durante anos, a Liga negou e minimizou as suspeitas e investigações. Contudo, perante as estatísticas e evidência científica, reconheceu pela primeira vez a problemática das concussões em 2009. No mesmo ano, foi criado o Concussion Protocol. Este tem vindo a ser melhorado sendo que a versão mais recente dita que os jogadores são imediatamente removidos do campo quando há suspeitas de uma possível concussão e, se diagnosticados, apenas podem voltar a competir se completarem o protocolo. Este inclui um tempo inespecífico de descanso, seguido de exercício supervisionado, bem como exames feitos não só pela equipa médica do clube, mas também por um consultor neurológico independente. (Os Seattle Seahawks, por não cumprirem o protocolo com o quarterback Russel Wilson, foram multados em cem mil dólares em 2017). ><Para além disso foi proibido o embate entre capacetes, alteraram-se as regras para tornar os pontapés de saída mais seguros (momento do jogo mais propenso a colisões) e limitou-se o contacto permitido nos treinos. A Liga tem procurado uma superfície artificial para que o jogo tenha melhor capacidade de amortecer os impactos no solo (11,4% das concussões resultam do impacto no solo1) e doa milhões de dólares por ano para investigações relacionadas com concussões. ><No entanto, a solução é simples. Proibir colisões corpo-a-corpo. Qual é o entrave? ><A NFL é a liga desportiva mais rica do mundo (números na ordem dos biliões de dólares por ano) e com a maior média de público por jogo. O Superbowl, a final da Liga, é dos eventos desportivos com maior audiência mundial e que gera mais receitas. Alterar as regras, impedindo tackles, tornaria o jogo mais seguro mas também iria retirar o ADN violento deste desporto, que é motivo de gáudio para milhões de espectadores, pondo em causa a rentabilidade do jogo e esse é um risco a que a Liga não se permite. ><Explica-se, assim, a atitude complacente da NFL que, no entanto, tem vindo a melhorar. Contudo, enquanto o futebol americano for um desporto em que as colisões corpo-a-corpo são uma parte fundamental do jogo, este vai ser perigoso.

Bibliografia: 1 Bennet I. Omalu, Steven T. DeKosky, Ryan L. Minster, M Ilyas Kamboh, Ronald L. Hamilton, Cyril H. Wecht; Chronic Traumatic Encephalopathy in a National Football League Player, Neurosurgery, Volume 57, Issue 1, 1 July 2005, Pages 128–134, https://doi.org/10.1227/01. NEU.0000163407.92769.ED; 2 Mez j, Daneshvar DH, Kiernan PT, et al. Clinicopathological Evaluation of Chronic Traumatic Encefalopathy in Players of American Football. JAMA. 2017;318(4):360-370. Doi:10.1001/jama.2017.8334; 3 Singh R, Meier TB, Kuplicki, et al. Relationship of Collegiate Football Experience and Concussion with Hippocampal Volume and Cognitive Outcomes. JAMA. 2014;311 (18):1883-1888. Doi:10.1001/jama.2014.3313



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BE ATRIZ GA SPAR

Ver, ouvir, sentir Com o objetivo de desafiar os estudantes da nossa faculdade a aprofundar as pontes que conectam o mundo da Medicina com o das Artes e Humanidades, o concurso jornalístico da Vinci decorreu entre os meses de julho, agosto e setembro. “Ver, ouvir e sentir” emergiu como o artigo vencedor do IV concurso jornalístico da RESSONÂNCIA, garantindo a inscrição no 10th AIMS Meeting à sua autora. Fica atento às publicações online da tua revista para conheceres os textos do 2º e 3º prémios e não percas esta oportunidade de ler o grande vencedor.

><Imagina-te num museu. No “Le Louvre”, mais precisamente, a olhar para a Mona Lisa. Vês uma senhora de olhar ou sorriso misterioso, enigmático. Mas por que vês uma mulher? O retrato não é o de uma mulher real. No entanto, reconheces todas aquelas linhas e cores fundidas como sendo um ser humano. Por que será? Porque o nosso cérebro tenta, constantemente, diferenciar padrões e respetivo significado à nossa volta, desde as mais belas e complexas pinturas até às formas mais elementares. ><Alguns dos mistérios da arte podem ser aprofundados através da ciência. A Universidade College London desenvolveu uma experiência, recorrendo a ressonância magnética, onde foi observado o fluxo sanguíneo no córtex orbitofrontal quando olhamos para pinturas bonitas. Entre as obras utilizadas, encontram-se nomes de autores como Monet, Rembrandt, Leonardo da Vinci e Cezanne. Dezenas de pessoas foram selecionadas ao acaso e os resultados foram imediatos: verificou-se um aumento do fluxo sanguíneo perante cada um dos quadros, sendo que este aumento era proporcional à beleza do quadro em causa, de acordo com o gosto de cada indivíduo em estudo. ><Face a estas evidências podemos questionar: para que serve a arte no mundo médico? A pergunta pode parecer absurda e a resposta complicada. Contudo, se pensarmos em grandes obras literárias, musicais ou pinturas, conseguimos perceber que a arte, nas suas variadas formas, pode dar esperança. Pode transmitir que a dor é algo normal e faz parte da condição humana, rejeitando um falso otimismo que, muitas vezes, nos é imposto pela sociedade. Pode ajudar-

nos a perceber que podemos viver com dignidade, ao mesmo tempo que enfrentamos sofrimento, sentimentos de angústia, aflição, incerteza ou solidão. ><É neste sentido que a psicoterapia existencial, por exemplo, pode, através da leitura, dar mais autonomia ao doente, ao ajudar a assumir a responsabilidade do que somos. O existencialismo diz que, em vez de nos entregarmos a uma confluência de várias forças externas, devemos perceber que a nossa forma de encarar a vida e as nossas ações fazem a diferença, até ao último momento. ><Um outro exemplo dos benefícios de terapias alternativas veiculadas pela arte é a musicoterapia, o qual pode ser observado nos relatos de Elsa Einstein, esposa de Albert Einstein, quando lembra ocasiões em que o génio ficava preso nalgum tipo de raciocínio, não conseguindo avançar na sua lógica. Nessas ocasiões, tocava violino ou piano e assim desbloqueava o seu pensamento. Hoje, sabemos que o cérebro de Einstein possuía um corpo caloso maior do que a média, o qual permite melhor conexão entre os hemisférios, sendo que a aprendizagem de um instrumento musical permite um aumento do tamanho do corpo caloso. ><Atualmente, vários estudos comprovam a aplicabilidade da musicoterapia em diversas patologias. A Universidade de Helsinki desenvolveu um projeto de investigação que envolveu sessenta doentes com enfarte de miocárdio, sendo que todos foram tratados seguindo guidelines. Um terço do grupo ouviu música durante uma hora por dia, outro terço ouviu audiolivros e o outro grupo não recebeu qualquer estimulação. O grupo que ouvira os audiolivros aumentou a sua comunicação verbal

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VER, OUVIR, SENTIR

em 20-30%, verificando-se um aumento de 60% para os ouvintes de música, além de um aumento de 17% na performance de certas operações mentais e uma melhoria do equilíbrio e coordenação. ><Enquanto estudantes de medicina, contactamos, desde logo, com cadeiras de anatomia, fisiologia, farmacologia e outras, fundamentadas em ciências exatas. Todas, sendo essenciais, constituem a base daquilo por que lutamos: a capacidade de diagnosticar e tratar eficazmente. ><Tratar e curar a doença ao próximo é a meta gratificante a almejar, mas porventura, não raro, se negligenciam soluções criativas, face a certos casos clínicos, privilegiando-se, apenas, um raciocínio estático e rígido. Rodeados por raciocínio e lógica, tendemos a esquecer aspetos menos tangíveis do mundo à nossa volta e a ignorar os benefícios de terapêuticas complementares associáveis à música, à dança, à pintura e à literatura. ><Deve considerar-se, então, apenas uma única possibilidade ou via na prática clínica? Ciência ou

arte? Ciência, o mundo de evidências, do concreto, da lógica, do raciocínio, das certezas ou arte, o mundo de imaginação, criatividade, do apelo aos sentidos e à sensibilidade e do desconhecido? ><Numa profissão guiada por evidências palpáveis, existirá espaço para alterar o velho paradigma que desvaloriza a influência da mente na doença física e para considerar uma nova perspetiva, em que corpo e mente têm uma relação quase simbiótica? ><Não pretendo, de todo, romantizar nem aligeirar a questão: mantenho a crença, segura, na eficácia dos métodos de diagnóstico e terapêutica que a medicina moderna oferece. Não obstante, entendo que o debate sobre novas possibilidades e complementaridades merece a nossa melhor atenção, no sentido de considerar o mundo das artes e seus benefícios no currículo e aconselhamento médicos. ><William Osler definiu medicina como uma arte que usa a ciência. Consideremos, então, que medicina é a arte mais completa de todas: a de saber ver, ouvir e sentir.

Mirrors of the Mind by Grasshoper (Album)- Art Direction and Design by Jonathan Key

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Bibliografia: [https://www.] telegraph.co.uk/culture/art/art-news/8500012/Brain-scans-reveal-the-power-of-art.html; news.nationalgeographic. com/2017/02/einstein-genius-violin-music-physics-science/; researchportal.helsinki.fi/en/publications/the-effect-of-music-and-audiobook-listening-on-people-recovering-; washingtonpost.com/national/health-science/einsteins-brain-a-wonder-of-connectedness/2013/10/12/09e2e53232ad-11e3-8627-c5d7de0a046b_story.html?noredirect=on&utm_term=.5a2fdbc43652ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2996135/


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ANTÓNIO LOPEZ

20º Aniversário do Nobel de Saramago “Não nasci para isto, mas isto foi-me dado” ><A primeira e, até agora, única distinção atribuída pela Academia Sueca a um autor português foi anunciada no dia 8 de outubro de 1998. Citando as palavras da mesma: «José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, aquele que com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia continuamente nos capacita mais uma vez a apreender uma realidade ilusória». O Prémio seria entregue, nesse mesmo ano, no dia 10 de Dezembro, em Estocolmo. ><A notícia foi recebida por parte do escritor com um misto de surpresa e emoção. Encontrava-se na altura em Frankfurt, no final da grande Feira do Livro. Afirmou sentir-se como se cada português tivesse crescido três centímetros com a sua conquista: «Todo o mundo aqui se sentiu mais alto, mais forte, mais lúcido, com mais esperança, pelo simples facto de que um escritor português tenha o Prémio Nobel». ><Regressou depois a Lanzarote, local onde vivia desde 1993 depois do governo de Cavaco Silva e Sousa Lara ter vetado o seu livro Evangelho segundo Jesus Cristo ao Prémio Literário Europeu. Mas não foi por ter emigrado que Saramago deixou de estar na memória dos Portugueses até aos dias de hoje. Ilustrativa é a forma como é lembrado todos os anos, para além das comemorações deste ano das duas décadas do Nobel, que contou com vários eventos promovidos por várias parcerias entre algumas instituições e a Fundação José Saramago (criada em 2007), e o encontro ibérico entre os Chefes do Governo de Portugal e Espanha. ><Saramago morreu em 2010, 12 anos após o Nobel, 87 depois do seu nascimento na aldeia de Azinhaga, junto ao Tejo. Escrevia ele que “Foi este o mundo em que, criança, e depois adolescente, me iniciei na mais humana e formativa de todas as artes: a da contemplação”, tal como Caeiro escrevia. No seu

discurso aquando da entrega do Nobel, lembrou os avós, como os ajudou a pastar porcos, como então a vida parecia muito longe de o levar um dia a escritor. Não menos imaginaria alcançar o mais ambicionado dos prémios, porque os sonhos simplesmente não chegavam aí… Foi serralheiro mecânico, jornalista, desenhador, tradutor. Mas aos 53 anos decidiu apostar tudo na escrita. ><O seu primeiro romance, Terra de Pecado, foi publicado em 1947. Só trinta anos depois, surgiu o segundo, Manual de Pintura e Caligrafia. Em 1980, publicou Levantado do Chão e, dois anos depois, aos 60 anos, Memorial do Convento. Era o princípio. Dezasseis anos mais tarde estava, como escrevia Eduardo Prado Coelho, a fazer o país levantar-se em alegria, libertando-se do seu tão inerente “Zé Povismo”. ><«Vinte anos depois é o momento adequado para certas reflexões e confidências», escreveu no prefácio do Último Caderno de Lanzarote, livro encontrado por acaso por Pilar del Rio no seu computador e publicado este ano. Perguntou-se a Pilar se é possível saber quem era Saramago pelos seus livros, ao que ela responde «Uma das características mais importantes de José Saramago é que carecia de fingimento. Não era um homem fingido. Era um homem livre.(…) Vejo-o como Blimunda, a mulher livre que vê dentro. Ou como a mulher do médico que não cega (protagonista de Ensaio sobre a Cegueira) (…) Personagens femininas com o dom da visão!» ><José Saramago foi muito mais que um escritor: foi um pensador, um humanista, alguém que não se colava a nenhum conceito pequeno-burguês, um homem que gostava apenas de contemplar, contemplar o Mundo não só como ele é mas como ele devia realmente ser.

Bibliografia: [https://www.] josesaramago.org/biografia-jose-saramago/; josesaramago.org/programa-20-anos-do-nobel-a-jose-saramago/; nobelprize.org/prizes/literature/1998/summary/; 24.sapo.pt/especial-saramago-20-anos-nobel; publico.pt/2018/10/07/culturaipsilon/noticia/quando-otempo-comecou-a-contar-faz-20-anos-1846366; publico.pt/2018/10/06/politica/noticia/costa-e-sanchez-celebraram-os-20-anos-do-nobel-quetodos-une-1846439; sicnoticias.sapo.pt/cultura/2018-10-06-A-homenagem-a-Jose-Saramago-nos-20-anos-do-Nobel-da-Literatura; Jornal Avante 18 de Outubro de 2018

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CAROLINA MOREIRA

A importância da representação da doença mental em ícones da cultura popular ><Há histórias que sabem a casa, histórias para as quais voltamos vezes e vezes sem conta. Todos temos livros cujas folhas já se começaram a soltar de tanto que foram folheadas e livros ou séries que conhecemos tão bem que somos capazes de imitar os diálogos na perfeição. Os seres humanos precisam de se sentir inspirados e de encontrar personagens nos quais se sintam reflectidos. Precisamos de heróis. Podemos encontrá-los no nosso grupo de relações mais próximo, em amigos ou familiares, ou em seres humanos reais extraordinários que admiramos, mas há algo nas histórias de super-heróis que nos atrai. Talvez porque nos queremos sentir como eles, ter a sensação de que podemos ser maiores que nós mesmos e que a nossa vida tem um propósito especial. Nós, como estudantes de medicina, sabemos melhor que ninguém quão forte é a vontade de dedicar a nossa vida aos outros e abdicar de tanto para salvar vidas. Precisamos destas histórias para fugir à nossa realidade e precisamos delas para construir uma

melhor realidade. Os super-heróis infiltraram o nosso quotidiano, deixaram a penumbra do nicho nerd e habitam agora na nossa cultura popular, arrecadando milhões a cada novo filme.

><Mas engane-se quem acha que super-heróis são uma criação dos tempos modernos. Se lhes retirarmos a capa e o “super”, vemos que eles existem na cultura ocidental desde que esta nasceu. Segundo Plutarco, Alexandre, o Grande (356 a.C.-323 a.C.), dormia com uma cópia da Ilíada debaixo da sua almofada, da mesma forma que hoje em dia uma criança tem uma banda desenhada do seu herói preferido à cabeceira da cama. A influência de Aquiles nas atitudes e escolhas de Alexandre é quase palpável, as inúmeras coincidências das suas biografias são uma evidência da importância dos nossos ídolos na forma como lidamos com as mais diversas situações. Os heróis, para além de serem um elemento comum ao longo da História da Humanidade, vão evoluindo ao ritmo


a importância da representação da doença mental em ícones da cultur a popul ar

da nossa própria evolução. Cada cultura tem os seus ídolos, adaptados à necessidade da época e das pessoas que vão influenciar. Uma criança britânica do século XII, que crescia a ouvir histórias do Rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda, poderia aspirar depois a tornar-se um cavaleiro da ordem dos templários, destinado a lutar nas cruzadas e a imitar os seus heróis. Um dos mais adorados super-heróis modernos, o Capitão América, surge em 1941, ainda antes do ataque a Pearl Harbor, mas acabou por ter um papel importante no espírito de patriotismo que se propagou por todo o povo americano e lhe deu um sentido de união durante os anos de conflito. Não interessa em que momento da história ou local do planeta nos encontremos, existe sempre um superherói a servir de inspiração a milhares.

ser um super-herói, apenas o torna mais humano e complexo, pelo que há uma certa empatia do público para as batalhas que este trava contra os seus “demónios interiores” e milhares de pessoas podem ver representadas as suas lutas diárias num grande ecrã.

><Outra personagem que é um óptimo exemplo é Jessica Jones, que em 2015 ganhou a sua própria série, uma heroína que vive com stress póstraumático causado por uma relação abusiva e que se refugia no álcool, até encontrar formas mais saudáveis de lidar com a sua doença. Muitas pessoas vítimas de relações tóxicas têm nesta heroína um exemplo de alguém que encontra coragem para aceitar o seu diagnóstico e não se deixar definir por ele.

><Assistimos hoje a uma nova época de ouro dos super-heróis. A cada par de meses temos um novo filme ou uma nova série e as vendas de banda desenhada mantêm-se firmes. Na linha da frente desta revolução cultural está a Marvel, cujas personagens podem ser resumidas nas palavras do lendário presidente da empresa, Stan Lee, falecido recentemente, “I just tried to write characters who are human beings who also have superpowers”. Estas personagens são um espelho para a humanidade, têm defeitos e falhas, sofrem e erram. Os criadores de entretenimento, respondendo ao pedido do público por mais diversidade e profundidade nas personagens que veem e tocados por um novo sentido de responsabilidade social, perceberam como usar as suas obras para educar a audiência e combater o estigma de certos temas. Em particular, a doença mental está a deixar de ser um assunto a evitar pelos autores. Aliás, muitos têm escolhido representar, de forma até bastante respeitável e correta, alguma forma de doença mental nas suas personagens. Os super-heróis deixaram de ser apenas uma versão perfeita e melhorada do ser humano.

><Um dos melhores exemplos pode ser encontrado no filme Homem de Ferro 3 (2013), em que Tony Stark, o mais seguro de si de todos os heróis do universo da Marvel, sofre de ataques de ansiedade severos. Além disso, esta personagem luta com problemas de alcoolismo e tendências narcisistas, tão bem retratados na banda desenhada Demon in a bottle (1979). Ele reconhece os seus problemas e procura ajuda psiquiátrica. Nada disto o impede de

><O maior erro que se costumava (e costuma) incorrer é a associação da loucura à maldade, caracterizando muitos dos vilões como loucos, e usar esse termo como sinónimo de doença mental. Apesar de alguns erros ainda cometidos, a doença mental deixou de ser exclusiva dos vilões e deixou de ser vista como um defeito dos super-heróis, mas antes como mais uma adversidade que eles podem, com a devida ajuda, ultrapassar.

><Ter um super-herói, amado pelo público, que sofre de distúrbio de ansiedade, não o torna fraco, torna-o humano. Normalizar, sem banalizar, é o grande objectivo. A representação importa, é através dela que podemos educar o grande público e dar a oportunidade a que todos, independentemente das adversidades pessoais, se sintam incluídos e aceites em sociedade.

><Se os heróis, versões melhoradas da humanidade, vivem com doença mental e mesmo assim salvam o universo, também qualquer um de nós é mais do que a sua doença e é capaz de ser a melhor versão possível de si mesmo. Nota: Comecei a escrever este texto antes de saber da morte de Stan Lee, mas o seu contributo na cultura popular, especialmente no mundo dos super-heróis, é tão marcado que não podia perder a oportunidade para dizer: obrigada Stan, pelas histórias, pelas lições de vida e por nos fazeres sentir que ninguém é demasiado pequeno para mudar o mundo para melhor. Excelsior!

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INÊS MIRANDA

Terrore impetum ><Já alguma vez sentiste que ias perder o controlo de ti próprio? O controlo em manter-te em ortostatismo, normocárdico, normotenso e eupneico. O controlo das ideias que te surgem na mente de forma súbita e espontânea e que te segredam internamente que podes morrer. Que podes perder o controlo a qualquer momento. E que ninguém te poderá ajudar. Vozes incoercíveis e inabaláveis que incutem ao teu sistema nervoso autónomo um tremor de repouso, sudorese, xerostomia e palpitações com uma fracção de ejecção que hiperventila recorrentemente em alcalose o momento de paragem iminente, sufocada numa atmosfera parestésica eterna e irreversível. ><Este és tu. Em profunda angústia. Desfigurado num desespero existencial, intersectado transversalmente em L5, amputado, sem hipótese de fuga. Estás impregnado num cenário de horror primitivo, onde o céu se incendeia em chamas de amarelo, laranja e vermelho que gritam hemoptises fazendo estremecer o mar ainda azul que se torna turbulento e trombótico, espumando ondas serpentinas que embatem esbaforidas na ponte ainda lúcida que te suporta, balançando. Suportando também aqueles que te acompanhavam e que agora te abandonam sem olhar para trás. Ou será o julgamento alheio? - aquelas duas figuras que te comentam enquanto se afastam e se aproximam do abismo lá ao fundo ou da meta do sucesso que para ti está longe e inalcançável. Afinal só atracam lá dois barcos. ><O occiput do teu crânio compõe o vértice de um cenário triangular hipertensivo, oscilante entre a loucura ondulante das hemoptises do céu e da turbulência do mar e a sanidade linear da ponte que sustenta um louco que transporta com ele todas as ondulações da insanidade, de rostral a caudal. Louco que grita sem voz, sozinho, em cima de um palco vulnerável osteoporótico, prestes a afundar-se na coagulante turbulência que o arrasta numa despersonalização movediça e isquémica, enquanto grita e grita… ><Dizem que da loucura nasce a arte, a arte de expressar os medos mais profundos da mente, uma

arte que ganha engenho a partir de um pincel que dança delirante sem formalidades numa tela maníaca, ávida de criatividade, de fuga de ideias, de percepções distorcidas, mas profundamente vividas e expressas por quem as nitidamente sente. ><E da loucura nasceu “The Scream”, ou na realidade, “Der Schrei der Natur” (O Grito da Natureza) de Edvard Munch, pintado no final do século XIX (1893) em 4 versões, durante um período de transição na história da arte, conhecido como “fin de siècle”. Uma transição do objectivo para o subjectivo, do exterior para o interior, ou seja, usar a arte como veículo para a expressão de pensamentos, sentimentos e emoções. Edvard Munch foi um dos pioneiros desta nova era do expressionismo e do movimento da arte moderna, na altura visualizada como de grande radicalidade, como quem diz, uma transição da lucidez para a insanidade. Munch neste seu quadro, conhecido por todos, não quis transmitir a habilidade da técnica, muito menos a beleza da obra. Quis transmitir algo maior do que isso: a pintura da sua alma. O trabalho de Munch é uma autobiografia visual. Tragédias pessoais (morte da mãe e irmã por tuberculose e do irmão por pneumonia), doenças e fracassos alimentaram a criatividade do seu trabalho - “o meu medo da vida é necessário para mim, assim como a minha doença. Sem ansiedade e doença sou uma nave sem leme”. “The Scream” retrata um episódio vivido por Munch enquanto passeava com dois amigos a ver o pôr-do-sol. Retrata o paradoxo de um cenário aparentemente tranquilizante vivido com uma ansiedade descontextualizada e desproporcional, um sentimento de alienação e crise existencial somente percebido pelo próprio. Um caos emocional afogado por um céu hemático que se expressa pelas vibrações de um grito profundo da alma ou da natureza. Diagnóstico? Sim, um ataque de pânico. …Pára de verificar o pulso na radial. Ainda estás vivo, por enquanto.


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TERRORE IMPETUM

O Grito, Edvard Munch (1893)


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P L AT ON

Fotografia de Filipa Dias, PLATON (2018)


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CATARINA CARDOSO

PLATON ><Numa faculdade onde os estudantes dão asas à sua veia artística, dedicando-se ao teatro, à dança, à música, à escrita e à literatura, faltava dar voz aos amantes da sétima arte. No âmbito de colmatar essa lacuna, surge o grupo de fotografia e vídeo PLATON. Rouba o nome a um dos maiores fotógrafos da atualidade e acolhe de braços abertos qualquer estudante cujo o olho aberto impila tirar fotografias ou produzir vídeos. Neste grupo, constrangimentos não existem e o “à vontade” é a chave para a colaboração e produtividade dos membros. Na verdade, este grupo de fotografia visa o contágio desta paixão pela construção de uma imagem e/ ou vídeo e prima pela naturalidade com que nos contamina com esse bichinho. O grupo reúnese semanalmente às terças-feiras para partilhar conhecimentos no mundo da captura e edição de momentos, para a realização de atividades de exploração de habilidades e convida o curioso a marcar a sua presença livremente. ><A RESSONÂNCIA demonstrou-se curiosa e partilha convosco um pouco do que foi produzido em sessões de PLATON. ><Uma fotografia a preto e branco transmite, à primeira vista, menos informação que uma a cor. Como pode ser possível condensar a duas opções o espectro alargado de como vemos o mundo? Um pôr-do-sol capturado a dois tons perde toda a sua magia. Contudo, mesmo não podendo depender do vasto leque de tonalidades para atrair a atenção do espectador, uma fotografia a preto e branco está longe de ser monótona e desinteressante. Sobretudo no

nosso mundo de hoje em dia, onde o bombardeamento com imagens maiores e mais vibrantes é permanente, onde o consumismo e a ostentação conduzem as atitudes e regulam decisões, uma palete com dois tons é um alívio para a consciência e um chamamento para a verdade, o genuíno. ><Na saturação nula destes tons, sobressai o puro, sem aprimoramentos, sem floreados. ><Na saturação nula destes tons, neste caso, transmite-se a intensidade de um pedido de ajuda sem sujeito, outrora encoberto por filtros sobrepostos. Anuncia-se um pedido de ajuda retorcido, contido e vergado pela vergonha ou pela incapacidade do reconhecimento e aceitação. Saltam-nos à vista as mãos de alguém por detrás de um vídeo fosco, como se de exasperação mascarada se tratasse. Cai finalmente por terra o observável e deparamo-nos com o que só o inconsciente conhecia. A verdade liberta-se pelo filme. ><Sem filme, talvez não sejamos nós tão sinceros como pensamos. ><Atrás da porta, talvez não sejam os outros tão genuínos como acreditamos. ><A cores, talvez por detrás de um “olá” acanhado se oculte um grito de socorro. ><No aqui e no agora, talvez por detrás de um sorriso constrangido exista uma amálgama de contemplações. ><Porque nem tudo é preto ou branco. E o cinzento, quem o sabe definir?

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C

N

R

I

Ó

C

A


CRÓNICA

RAQUEL MOREIRA

Alma Meio Cheia ><Muito se pode aprender ao olhar para um simples

><Ele bem sabia porque era ele quem repetia: dar

copo meio cheio.

tudo de nós a quem amamos. Sempre dei tudo de mim, mas gosto de pensar que tenho sempre algo mais a dar, que só dou parte de mim; só encho parte do copo, porque há mais em mim. Ter pressa nunca me levou a lado nenhum, para quê enchê-lo logo até cima... O teu tio sempre me disse que o copo cheio na mão dele tinha a parte de mim que eu gostava de esconder e a verdade é essa: guardava-me no copo dele como refúgio.

><Toda a minha vida fiz questão de não encher o copo. “Porquê meio cheio?”, perguntavam. Porque sim, porque muito se aprende com ele. Uma vez, fui com o teu tio passear até ao castelo, para aproveitar a brisa do final da tarde. Não chegámos a tempo de ver o pôr do sol, mas a vista, como sempre, não nos desiludiu. Ficámos por lá, em silêncio, com um copo cheio e outro a meio, de almas entrelaçadas. É uma história sem sentido algum, mas que gosto de contar.

><Não me esqueço também do quanto ríamos ao verte a ti e ao teu irmão brincar na praia, ou do quanto gostavas dos meus cozinhados. Era sempre bom poder ver esse teu brilho nos olhos, de copo meio cheio na mão.

><Muitas memórias eu guardo desse copo de sorrisos… lembro-me de um jantar a que fomos, onde as crianças, desabituadas e ainda tão livres de preconceito ou vergonha, brincaram muito com a minha história de não encher o copo e perguntaram a razão, curiosas. Às crianças não podia eu responder “porque sim”, não iriam compreender. Então expliquei-lhes que se bebessem sempre o copo meio cheio, evitavam enchê-lo demais e não desperdiçavam a água. Tive de lhes dizer também que, se enchessem o copo, beberiam tudo de uma vez, sem saborear. Pareceram confusos, mas largaram o assunto porque algo mais interessante inevitavelmente surgiu. O teu tio sorriu muito, do outro lado da sala, porque ele bem sabia porque eu não enchia o copo.

><Um dia, surpreendi a senhora do café da minha rua ao pedir um copo meio vazio. Foi o dia em que comecei a usar roupa escura. Umas semanas depois, quis arrumar a roupa que já de nada me servia, para que outro alguém pudesse ficar com ela. Sentei-me então na cadeira, perto da janela, e olhei a calçada. Porque não? Levantei-me e subi o caminho da vila até ao castelo. Lá em cima, vi o horizonte, onde o sol ainda se punha. Desta vez cheguei a tempo. E, de copo na mão, vi-me no lugar das crianças curiosas. Porque não encho o copo? Perguntavam, porque o viam precisamente como o vejo agora. Não ter pressa não abranda o tempo e guardar um pedaço de mim não me impediu de o perder. Por mais que quisesse fingir, a metade vazia do copo estava preenchida, porque a garrafa sempre estaria cheia…

><Muito se pode aprender a olhar para um simples copo meio vazio. E é por isso mesmo que, naquele dia, eu escolhi tê-lo vazio. E é por isso mesmo que agora olho o céu estrelado, de copo cheio na mão e com um sorriso miúdo. Parte de mim, parte de ti, ambos por inteiro.

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DEZ. 2018


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