O Contador do Tempo - Monólogo Teatral

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O Contador do Tempo Afonso Nilson

Edição do Autor


O Contador do Tempo Homem com cabelos grisalhos, roupas comuns, carregando uma mochila. Ambientações possíveis: rua movimentada, praça movimentada, praça de alimentação de shopping, lanchonete de universidade, aeroporto, hall de teatro, rodoviária ou qualquer outro ambiente de circulação desde que com as devidas autorizações e precauções para segurança do ator e do público. O homem caminha em linha reta. Ele caminha rapidamente como se estivesse com pressa, vai até um ponto, dá meia volta, caminha agitadamente mais um vez até o ponto de partida, se volta, olha ao redor, age como se estivesse tendo uma síncope nervosa, angustiado, delirantemente angustiado, começa a caminhar novamente em linha reta até onde havia parado anteriormente, retorna mais uma ou duas vezes até parar em frente ao maior número de pessoas possível.

Sei que não sou mais do que um idiota falando a esmo, mas fazer o quê? Eu sou o que sou, e tá acabado! E nesse tempo que tenho, nesse curto tempo que tenho, eu vou falar, quer vocês queiram ou não. Vou falar porque preciso, porque tenho


que contar, porque me é da veia, de dentro dela, e então, se gostam ou não de sangue, se quiserem ou não ouvir um tolo contar a história inútil de sua inútil vida, então fiquem, mas já aviso, é por sua conta e risco. (pausa) Não sou muito dado a falar por aí qualquer idiotice que me venha a cabeça a qualquer desocupado que encontre no caminho, como vocês, mas hoje é uma ocasião especial. Hoje é extremamente especial. Faz exatamente um dia. Um dia que tudo aconteceu. Não se preocupem. Não vou entrar em maiores detalhes de detalhes que só interessam a mim. O que interessa, o que interessa pra nós nesse momento é o que acontece depois, mais precisamente o que acontece agora. Digo isso não só porque hoje vou revelar um segredo. Um segredo que carrego comigo, dentro dessa mochila, dessa mochila que carrego há tanto tempo e que um dia ela é que vai me carregar. E vai carregar também quem estiver comigo, e será um viagem luminosa. Luz, muita luz em nossa viagem rumo a escuridão total. Digo isso agora, precisamente agora, porque é agora que estamos vivos, percebem? Porque é precisamente agora que estamos a viver, e se percebemos ou não o que nos cerca, essa é a diferença entre a vida e a morte, e vocês mais do que ninguém, eu suponho, sabem disso, porque ainda continuam vivos. Pelo menos dessa


coisa vil que chamam de vida, que para suportar sem enlouquecer precisam de passatempos, como se sem eles o tempo insistisse em parar, e é verdadeiramente o que acontece quando o tempo demora, mas se despertamos um minuto que seja, ao final desse único minuto já vivemos uma vida inteira, décadas, décadas, décadas e tudo o que fizemos e fazemos, e tudo o que somos e queremos, tudo, cada partícula, cada devaneio, tudo não passa de passatempo.

(pausa) Vocês

podem até não acreditar nessas coisas, mas esta mochila é um portal para um outro tempo. Basta abrir, apertar um botão, esperar alguns segundos e como num passe de mágica, voi à lá, você está no outro tempo. Sem sequer ver coisa alguma, sem sequer saber o que aconteceu, sem se dar conta que o tempo agora é outro, um universo mágico, paralelo e desconhecido. Nisso eu levo vantagem. Enquanto estarão todos lá perdidos como em sua vida a tentar encontrar uma resposta que afinal não os levará a lugar algum, eu, muito seguro de mim, vendo lá de sei lá onde meu corpo desconstituído, juntamente com a multidão de corpos desconstituídos que levarei comigo pelo simples prazer de compartilhar,

quando por fim (abre a

mochila e aperta o botão sonoro, que emite ruídos em intervalos constantes como um marcador de tempo) nós


perdermos o que jugávamos certo, corpo, roupa, casa, horário, aliança, amor, filho,

o que quer que seja e esteja, eu, tão

somente eu vou saber: “estou em outro tempo”, e quando por fim, de lá sei onde, todos os que tiverem ido comigo, por pura compaixão de não me deixarem viajar só, ao assistirem de lá os noticiosos na TV, e verem seus corpos sem forma, os parentes chorando desesperados, agarrados aos pertences que sobraram como se

fossem relicários sagrados de uma pessoa que

amavam e se foi, então ao escutar os soluços dos mortos e a olhar dentro dos olhos repletos da angústia que faz chorar os naufragados na ânsia de ar que os enche de areia debaixo das unhas de tanto desespero em cavar o fundo do oceano, então, num sorriso, categórico, direi: “eu já sabia”. (pausa) E por dentro eu vou rir, rir, rir como um desvairado até a insanidade, e me chamem ou não de louco, aí então eu vou dizer, aí então eu finalmente vou dizer: “ tá tudo acabado”. (olha para dentro da mochila) Estamos próximos do zero. Segundo a segundo em direção ao nada. Calma, calma, fiquem frios! Vocês não precisam ficar nervosos, e eu posso ver que realmente não estão nervosos, está tudo bem, não é? É tudo apenas um jogo, não é? Uma grande mentira, um engodo, uma sandice de um aparvalhado balbuciante e idiota, não é? Nada pode nos abalar,


é apenas um teatro, uma comédia, vocês estão rindo, olha só! Isso, isso mesmo, não se preocupem, não é nada importante. Posso garantir que vocês não perderão nada de importante. Nada de que venham a sentir falta. E mais, falta alguma vocês farão. (ri alucinadamente) Rir, rir como um desvairado. Mas do quê? Do que é que vocês estão rindo? Do que é que eu estou rindo, ora essa? Vidinha bem sem sem graça essa para gente rir a toa não é? Se tivéssemos o dia de amanhã para viver, aí sim, seria legal. Mas vejam só, será que vamos sobreviver a minha mochila? E se por desgraça sim, sobrevivermos, vocês ainda vão possuir a audácia de acreditar num dia depois de amanhã? Isso, isso mesmo, vamos acreditar. Vamos crer no futuro, nessa benesse que se espera, espera e nunca chega, e se espera, espera e espera até o último suspiro e nem assim, depois de uma vida inteira de falsas esperanças, conseguimos nos render à realidade que nos assola. É por medo de que tudo acabe que se sonha, que se continua a crer num futuro, e esquecemos a minha mochila. Esqueçamos de tudo, vamos rir, rir até a loucura, vamos ser insanos, vamos esquecer o agora, agora, quando poderíamos inclusive estar juntos, e no entanto, apenas esperamos uma felicidade transtornada de eternidade, um mundo de sonho que desaba junto com nossos ossos no


sepulcro. Esse é tempo de uma vida. A esperança eterna de que nossa brevidade não se resuma à brevidade de nossa carne. Um dia seguinte. Amanhã, vejam só. Amanhã, ora essa. Amanhã. Superstições. (...)

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Sobre o autor

Afonso Nilson Barbosa de Souza nasceu em Joinville, Santa Catarina, em 1977. Dramaturgo tem mais de dez peças encenadas. Mestre em teatro pela Universidade para o Desenvolvimento de Santa Catarina (UDESC). Trabalha em logística de circuitos e turnês de espetáculos em Santa Catarina.


Ficha Técnica Texto, revisão e capa: Afonso Nilson Barbosa de Souza. Foto do autor: Álvaro Diaz Florianópolis, 2013. Todos os direitos reservados. ©Afonso Nilson, 2001.

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