Macaco Galego.Terra da Gente.Gambarini

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fauna brasileira

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Trajetória de um sobrevivente TERR A DA GENTE

texto e fotos

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Adriano Gambarini

Descrições antigas confusas, dificuldades em distinguir espécies aparentadas, perda acelerada de hábitat e grande pressão do tráfico de animais silvestres. Conheça o conjunto de fatores que explica como uma espécie de macaco se manteve praticamente incógnita, por pelo menos 3 séculos, nos minúsculos fragmentos de Mata Atlântica de Nordeste


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TERR A DA GENTE


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O

olhar é dócil e o semblante calmo, com uma pequena máscara amarela escura contrastando com o topete dourado, reluzente ao sol. Seu comportamento relativamente tranqüilo e sociável estimula o desejo humano de tê-lo como ‘bichinho’ de estimação, e é justamente neste viés do crime ambiental que mora um dos seus maiores inimigos:

o tráfico de animais silvestres. Como se não bastasse, habita o ecossistema mais ameaçado do Brasil, a Mata Atlântica da Zona da Mata Nordestina. Provavelmente entrará na lista de espécies da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) como o primata mais ameaçado do País. E, apesar de tudo, esse macacoprego-galego ainda resiste. A extinção em hábitats originais é só uma questão de tempo, quando

programas de conservação não têm agilidade para prevenir, garantindo áreas naturais grandes o suficiente para abrigar populações geneticamente viáveis, com disponibilidade de alimentos e água. E a menor interferência possível das atividades do homem... Não fosse a teimosia de pesquisadores e organizações não-governamentais (ONGs), o bioma já teria perdido até os 7% que restam de sua área


te, nariz pequeno e um cheiro tênue de almíscar. Acredita-se, inclusive, ter sido um dos animais cativos levados do Novo Mundo para as cortes européias. Todo material reunido pelos naturalistas sob o patrocínio de Nassau foi levado para a Holanda e compilado num manual Libri Principis com pinturas de Marcgrave, Zacharias Wegener e Albert Eckhout. Um século depois, em 1774, outro alemão, Johann Christian Daniel von Schreber, fez uma ilustração de um animal semelhante ao caitaia e o denominou Simia flavia. Esse registro tornou-se base para outros pesquisadores, inclusive para o francês Étienne Geoffroy, que em 1812 rebatizou a espécie como Cebus flavius. Mas a escassez de espécimes em coleções de museus aumentou as discordâncias nas interpretações taxonômicas, e o

Demorou

três anos

para tirar

dúvidas sobre a espécie

galego e galeguinha O topete dourado e o olhar dócil são características da espécie. À dir., a pequena Maria, rejeitada pela mãe, se distrai com o espelho para não se sentir sozinha original. Os fragmentos florestais ‘sobreviventes’ – localizados nas encostas inacessíveis da Serra do Mar e nas áreas teoricamente protegidas de Unidades de Conservação (UCs) – mal sustentam a alta biodiversidade de fauna e flora, devido a sua distribuição geográfica muito irregular, com apenas alguns trechos contínuos de cobertura vegetal. Seria difícil imaginar, portanto, que uma espécie de primata pudesse permanecer igno-

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rada por mais de 3 séculos em plena Mata Atlântica. Mas aconteceu. O macaco-prego-galego (Cebus flavius) foi redescoberto há alguns anos e identificado como uma espécie já descrita no tempo das Grandes Navegações. Sua história – um tanto peculiar – começa com o primeiro registro conhecido, feito por Georg Marcgrave, naturalista alemão que viajou pelo Nordeste brasileiro como membro da comitiva de Maurício de Nassau, entre os anos de 1637 e 1644. Ele descreveu um grande número de espécies brasileiras na obra Historiae Rerum Naturalium Brasiliae, publicada em 1648. Entre elas, havia um primata ao qual chamou de caitaia. Sua descrição, muito mais subjetiva do que documental, atenta para detalhes como pêlos compridos e dourados, cabeça redonda, fronte pouco proeminen-

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fato é que Herskovitz, em 1949, sugeriu que o nome atribuído por Schreber não era preciso e o considerou sinônimo de Cebus libidinosus, outra espécie de macaco-prego, mais abundante na Caatinga nordestina. Tal definição errônea manteve-se até o início da década de 1990, quando Marcelo Marcelino, chefe do Centro de Primatas Brasileiros do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (CPB/ICMBio), ao trabalhar na Zona da Mata notou a existência de pequenos e ariscos grupos de macacos-prego com padrões de pelagens distintos da espécie Cebus libidinosus. Além disso, ele percebeu uma frequência de macacos com o mesmo padrão nos centros de animais apreendidos do Instituto Brasileiro de Meio Ambien-

Conservar a espécie é o

objetivo dos pesquisadores

te e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Ao lado do zoólogo e especialista em taxonomia, Alfredo Langguth, Marcelino iniciou uma minuciosa garimpagem de informações históricas, com objetivo de pôr um ponto final nas dúvidas sobre a espécie. Foram cerca de 3 anos de estudos, revisão de pranchas com gravuras dos naturalistas, detalhamento morfológico de peles e observação de animais oriundos

de cativeiros ilegais. Ambos reconhecem nas pinturas de Marcgrave enormes semelhanças com os animais vivos, mas a denominação caitaia não tem valor científico, pois não atende às regras criadas em 1748, no Código Internacional de Nomenclatura Zoológica. Já a denominação Simia flavia atende a essas regras, além de constar de uma ilustração com perfeição de detalhes. Isso é suficiente para servir de base ao primeiro registro da espécie, cujo nome atual foi readequado para Cebus flavius, conforme a classificação por parentesco com outros primatas semelhantes. Tendo dado nome ao bicho, pesquisadores do CPB/ICMBio agora se concentram no levantamento do status de conservação de espécie. Eles


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23 ajuda da pesquisa Nos poucos fragmentos florestais em meio aos canaviais (à esq.), os macacos-galegos são monitorados (acima) depois de receberem o rádiocolar (à dir., no meio) e serem soltos (abaixo). Os pesquisadores Alfredo (de barba) e Marcelino (ao alto) definiram o nome e agora se concentram na conservação da espécie passaram a fazer entrevistas e reunir relatos populares, traçando um panorama aproximado da ocorrência de macacos-prego, para então separar o galego de seus ‘parentes’. Afinal, na ‘boca do povo’ tudo é mico de circo! E o gênero Cebus, em particular, é um dos grupos de primatas mais confusos de serem estudados, devido às variações na aparência e nos padrões

de pelagem, diferentes até entre indivíduos de uma mesma espécie. Existem 12 espécies do gênero Cebus em todo mundo, 11 das quais ocorrem em terras brasileiras. O macaco-prego-dourado ou macacoprego-galego é uma das 5 espécies de ocorrência no Nordeste brasileiro, sendo que um deles, muito diferente, ocorre também na Amazônia mara-

nhense e é chamado de cairara. C. flavius é, certamente, a menos estudada, pois todo esse processo de confirmação só terminou, para o meio científico, em 2006. Sua distribuição conhecida abrange os Estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, tendo como limites geográficos e históricos o rio São Francisco e a Caatinga.


Viver de perto

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Ter alma de andarilho e crenças ambientalistas, sempre proporciona ótimas experiências. Documentar o trabalho de Marcelo Marcelino e sua equipe foi como uma viagem no tempo: ver o passado em surreais pinturas de aventureiros, o presente na redescoberta de uma espécie esquecida nas sombras da floresta, o futuro em forma de esperança, refletido no dócil olhar de Maria. Entendi o ‘andar no escuro’ dos pesquisadores, comprovei os ‘causos’ populares, ao registrar um filhote comendo um pedaço de cana ‘roubada’ do sítio vizinho, no alto de uma árvore! Desde o primeiro clique do topete dourado do macaco-galego há três anos, entrei num caminho sem volta, aquele onde entendemos a necessidade do envolvimento, o valor da verdade. Agradeço a todos pelo privilégio. E assim como uma fotografia se recria aos olhos de cada leitor, a proteção à biodiversidade brasileira pode ser recriada na mudança de atitude de cada um de nós.

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Contudo, pelo fato de C. libidinosus ocorrer na Caatinga, há uma imprecisão de onde termina a ocorrência de uma espécie e onde começa a outra. A dúvida deverá ser sanada pelo biólogo Thiago Silva, cujo projeto de pesquisa é detalhar os contornos a oeste da distribuição de C. flavius, e apontar, inclusive, a eventual existência de zonas de hibridização, ou seja, áreas onde as duas espécies se encontram e se reproduzem, gerando filhotes híbridos. Até agora, a equipe de especialistas já percorreu cerca de 6.100 km, só no Rio Grande do Norte e na Paraíba, tendo detectado mais de 20 áreas de possível ocorrência em 63 municípios, seja pelas informações obtidas em entrevistas, seja por registro visual

São poucas as

matinhas

onde o

macaco-galego tem abrigo desses primatas. A partir do mapeamento será possível inferir, mesmo que aproximadamente, o número de indivíduos na natureza e assim planejar ações de conservação. Segundo Marcelo Marcelino, até agora foram confirmadas apenas 8 localidades com ocorrência de macaco-galego. A estimativa é de algo em torno de 200 indivíduos em vida livre. Isso coloca

a espécie num estado extremamente crítico de conservação. Num dos maiores fragmentos de floresta da Paraíba, a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Gargaú, em parceria com outros pesquisadores, o biólogo Marcos de S. Fialho procura estimar as populações de C. flavius por meio de um sofisticado censo, com apoio de softwares avançados de avaliação. Por enquanto, porém, ele chegou a um número nada promissor: 0,3 bandos a cada 100 km percorridos. De acordo com Fialho, um dos maiores problemas atuais é a caça de macacos-galegos para abastecer o tráfico de animais. A constância com que eles aparecem nos centros de animais apreendidos, inclusive em cidades como Petrolina (PE), totalmente


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quem é quem O macaco-galego foi durante muito tempo confundido com outra espécie de macaco-prego, Cebus libidinosus (abaixo, no destaque), que também ocorre na Caatinga e com quem pode dividir áreas comuns e ter filhotes híbridos

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fora da área de ocorrência natural da espécie, sugere uma atividade intensa dos traficantes, com deslocamentos a grandes distâncias pelas estradas precárias do Brasil. Outro problema a afetar a sobrevivência da espécie é a dispersão, no que resta de seu hábitat, de primatas exóticos à região, como o micode-cheiro amazônico (gênero Saimiri). Os invasores competem por

alimento com as espécies locais e podem disseminar doenças, aumentando o risco de extinção. Em paralelo ao censo e à observação dos grupos de C. flavius no campo, os pesquisadores iniciaram um trabalho de captura para biometria, coleta de sangue e colocação de rádio-colar. Os animais são tatuados com números e, após a soltura será possível acompanhá-los por meio de telemetria, rastreando com antenas os bips emitidos pelo transmissor do colar. Dessa forma,

conhecem um pouco mais sobre os hábitos dos animais; seu comportamento quanto à alimentação, sono e vigília; o tamanho da área utilizada; se há deslocamentos em busca de novas fontes alimentares, etc. E já aprenderam que eles vivem em bandos de até 14 animais e se alimentam de frutos, flores, ovos, insetos e pequenos vertebrados. Como se não bastassem tantas atividades, Marcelo Marcelino, Alfredo Langguth e Cibele Bonvicino embrenham-se também no mundo da genética molecular, para compreender


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R doio gr no an rt de e

pa ra íba pe rn am bu co al ag oa s

Próxima área a ser pesquisada

Áreas pesquisadas Mata Atlântica atual Mata Atlântica original

Os pequenos fragmentos de mata remanescentes na região Nordeste, em meio a canaviais, ainda abrigam pelo menos 20 populações isoladas de macaco-prego-galego (Cebus flavius): 5 em Pernambuco, 1 no Rio Grande do Norte e as demais na Paraíba. A redescoberta da espécie é o principal resultado de expedições realizadas em 63 municípios nordestinos pelo Centro de Primatas Brasileiro do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (CPB/ICMBio). Outras expedições estão planejadas para breve.

SOB AMEAÇA A perda do hábitat e a ação dos traficantes são as maiores ameaças ao macaco-prego-galego, uma das espécies de primatas mais ameaçadas relações de parentesco do macaco-galego com outras espécies de Cebus. Por fim, o Centro de Primatas deu início, há dois anos, ao Programa de Reprodução e Manutenção de Cebus flavius em Cativeiro, em parceria com o Zôo de São Paulo. Dois casais originários de cativeiros ilegais foram cuidados e monitorados por veterinários e biólogos até o nascimento de uma fêmea, carinhosamente nomeada Maria. A mãe a rejeitou – provavelmente por falta de contato com outras fêmeas adultas capazes de ‘ensiná-la’ sobre os cuidados com a prole –, mas a pequena

Maria cresce saudável com uma mãe ‘adotiva’ da mesma espécie. A intenção é estabelecer uma população viável em cativeiro para garantir, no futuro, a possibilidade de reintrodução da espécie na natureza. O contínuo convívio com os animais em situações controladas ainda pode trazer informações importantes acerca da espécie. O que resta saber é se existirão matas em condições de receber os novos ocupantes, quando chegar o momento. Pelo menos 60% das matas remanescentes com estrutura mínima para abrigar grupos de macacosgalegos estão em áreas privadas, pertencentes a usinas de cana-de-açúcar. Historicamente associadas à devastação da Mata Atlântica no Nordeste, os proprietários de algumas dessas usinas começam a entender seu papel crucial na conservação dos remanescentes florestais e de seus respectivos habitantes em perigo de extinção. Mas ainda são muito poucas as áreas com corredores de interligação, as matas em condições de sustentar grupos numerosos de primatas ou com condições mínimas de segurança contra o assalto dos traficantes. Considerando, porém, a resistência dos poucos fragmentos de Mata Atlântica à expansão da agricultura e das cidades nordestinas – e considerando a capacidade de esses remanescentes de mata resguardarem refúgios para várias espécies endêmicas de pássaros, algumas espécies recém-descobertas de borboletas e prováveis espécies novas de aves de rapina – não é demais sonhar com a possibilidade de ver, um dia, numerosas cabeças douradas saltitando pelas copas de árvores seculares.

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redescobertas em série

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