EDITORIAL
Revista da Agência Experimental em Comunicação e Cultura Tutor da Agência José Roberto Severino Editor-chefe Erick Barbosa Repórteres Adriano Motta Álene Edriele Annandra Lís Erick Barbosa Igor Brito Maria Eduarda Mascarenhas Yasmin Cade Maria Clara Andrade Júlia Lobo Geovana Camargo Diagramador Adriano Motta Revisão Adriano Motta Erick Barbosa Igor Brito Fotografia Álene Edriele Annandra Lís Geovana Camargo Imagem de capa Adriano Motta Agradecimentos Grupo Vai Kem Ké Giovanna Araújo Fabiana Silva
A triste notícia da morte de João Gilberto coincidiu com a finalização desta edição da JAÉ, que trata da cena da música na Bahia. A música perdeu um grande nome. Baiano de Juazeiro, carioca pela longa vivência, cidadão do mundo pela inovação que foi a Bossa Nova, o Bruxo nos deixou. Seu legado raro e intenso será revisitado como uma marca indelével de sua trajetória na música. Esta edição é também uma homenagem ao grande nome da música brasileira: João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira. O tema desta edição da revista é a música como forma de dizer de si, como instrumento de afirmação, como forma de expressão popular. Salvador – e a Bahia abrigam uma infinidade de artistas que fazem da música sua vida. Nesta edição apresentamos alguns perfis desses artistas singulares, inovadores, ativistas de sua arte: Batuque, arrocha, samba, Rap. A importância da música na vida das pessoas é um fato incontestável. Mas o que dizer quando o poder público financia músicas que expressam preconceitos e misoginia, por exemplo? Ao abordar o papel das políticas culturais na superação de preconceitos e no combate de estereótipos, a lei antibaixaria promoveu um debate caloroso acerca dos direitos. A abordagem crítica dessas medidas também permite pensar as políticas afirmativas e correção de rumos, muitas vezes desprezados pelo mercado. Destacamos também o lugar das compositoras na cena da música. Enfim, um número que não esgota o tema, mas que inicia um debate importante sobre o lugar da música em nossa cultura. Boa leitura.
RAIZ Samba duro e samba junino EIXO 36 Conheça o NEIM
COMUNIDADE
SUMÁRIO
08 A luta é desde o começo RAIZ 12 Dona Olga e o bairro da Mata Escura 0418Samba e samba junino Direitoduro à cidade PÁGINAS VERDES
40 Comissão de Promoção da IgualPERFIL PERFIL dade Racial OAB-BA 10 24Com Azulvocês, é a corpneumaticamente mais forte - o perfilfalando... de PeuMirian Meurray Hapuque ESPECIAL PÁGINAS VERDES45 Cronista do Rolé 46 Mulheres da AECC 28CAPA Sem esculhambação 28 O que falta para melhorar é tudo
COMUNIDADE 16 Cenário do rap EIXO 25 Onde estão as compositoras?
ESPECIAL 33 Do jeitinho que o povo gosta: arrocha, arrocha, arrocha
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RAIZ
Samba duro e samba juni
Conheça o movimento das comunidades soteropolitanas Por: Annandra Lís e Geovana Camargo *Com colaboração de Giovanna Araújo e Fabiana Silva Foto: Geovana Camargo/AECC
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ino
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A
clave é bem ritmada. Quem ouve as palmas consegue identificar o som que ecoa das periferias de Salvador. Ele partilha da mesma célula que formou o samba de roda e o samba afro. “Saem duas notinhas e a coisa muda, toma outro corpo, outro universo", diz Francisco Cerqueira, músico, professor e estudioso do samba duro. O samba duro é acelerado como as ruas de Salvador. Os grupos de samba duro saíam às ruas e, graças ao sobe-desce das ladeiras, foi necessário apressar o ritmo. Por volta dos anos 70, os sambadeiros de Salvador aproveitavam suas férias de Carnaval fazendo o que sabiam de melhor: samba. Sem a seriedade do palco, requisitada pelos shows no verão, o intervalo junino era momento para experimentar. De forma espontânea, as músicas eram feitas e colocadas na roda para serem vistas. Depois da Semana Santa, os grupos de samba começavam a fazer seus ensaios, nas ruas e caramanchões. O ritmo acelerado do samba duro se adequou perfeitamente ao movimento do samba junino no percurso pelos bairros. Augusto Conceição, atual maestro do grupo Vai Kem Ké, ex-Samba Fama e Timbalada, participou ativamente desse processo. Tornou-se um dos precursores do samba junino, irrompido do que Augusto
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chama de “escolinha do samba”, criada entre brincadeiras, ou melhor, “molequeiras”. Segundo o Maestro, o samba junino foi uma escola para os percussionistas da Bahia: “Todos os movimentos de Salvador saíram a partir desses sambas que saem no São João”.
“ Muitos dizem: “Ah, o samba nasceu no Rio”. Espera aí, tem contribuição, mas tem que lembrar da tia Ciata também, que saiu daqui na época de Canudos para ir para lá. Ela não foi lá de viagem, foi fugindo, porque estava ruim para todo mundo aqui.” Francisco Cerqueira
Raíz
Como as nossas raízes, o samba duro também vem de uma célula ancestral do outro lado do oceano. O continente africano nos deixou muitas heranças. A música é uma delas. Veio de lá uma célula rítmica do Cabila, que fez surgir vários outros ritmos baianos, como samba duro, axé music e até o pagodão. Há
quem diga que as influências do Rio de Janeiro foram significativas para o samba duro, porém, antes de falar do Rio, é necessário falar da África. “Os mesmos pretos e pretas que vieram para cá são os mesmos que foram para Cuba, os bantus. Salvador tem essa cultura da música afrocaribenha muito forte”, diz Francisco Cerqueira sobre as raízes do samba. Perguntado sobre as suas próprias raízes, ele nos respondeu que se sente um pedaço de África. “Eu me sinto diáspora porque apesar dos nossos antepassados, nosso povo, ter sido sequestrado, a gente conseguiu ressignificar muita coisa”, complementa. Transformador
A música possui um potencial de transformação que faz muita diferença nas ruas de Salvador. Francisco conta que durante um tempo sua mãe temia pelo seu futuro: “Acho que ela pensava “o cara vai virar malandro, o cara vai virar bandido nessa rua, porque eu andava com muita gente, gente que era massa e gente que não era massa. Muitos amigos morreram por conta de tráfico e briga de rua”. Um dos fatores que o levou para longe desse cenário foi o samba. Já com 11/12 anos, tocava tudo que lhe davam. A atração pelo samba duro é hoje o amor de uma vida. Pensando em mudar a realidade de mais pessoas ,decidiu ser professor. Hoje, seus ex-alunos o param na rua para dizer que
ingressaram na UFBA, que estão trabalhando, participando de bandas, fazendo CDs. O Samba do São João
Em Cosme de Farias, Francisco, ainda menino, era um entre tantos que levantavam da cama para acompanhar o som dos grupos de samba duro varando a noite. Como o forró não é tradição do São João soteropolitano, nessa época, quem não podia viajar para o interior celebrava também com samba. Nos bairros populares da cidade, especialmente em Engenho Velho de Brotas, o santo era festejado com esses “arrastões”, desfiles de samba duro. “A vestimenta, o chapéu de palha, a característica de ser na rua, de passar de casa em casa, tomar o licor, as brincadeiras
juninas, os fogos, tudo isso caracterizou o movimento de samba junino”, conta Lomanto Oliveira, pesquisador e parceiro de Augusto no grupo
"Saem duas notinhas e tudo muda, todo o corpo, todo o universo" Francisco Cerqueira
Vai Kem Ké. Segundo pesquisas do mestre em música pela UFBA, Gustavo de Melo, o lançamento do disco “Swing” do grupo Samba Fama foi responsável por despertar o interesse da comunidade jornalística para o movimento.
As notícias previam a abertura do mercado musical para o Samba Junino. “Foi aí que começou a sair o burburinho mesmo de samba duro. Na verdade, o título foi até samba autêntico. Samba duro autêntico da Bahia”, conta Augusto, um dos fundadores do grupo. Segundo ele, no entanto, o samba junino perdeu a força quando seus líderes migraram para a Timbalada. O próprio Augusto participou dessa mudança. “Tem influência do samba duro no Timbalada. Nunca aparece a célula do samba duro, sempre tem uma nota a mais”, confirma Francisco. Segundo Lomanto, o samba junino enfraqueceu porque com as lideranças envolvidas em outra manifestação que dava maior retorno financeiro, não houve mais tempo para
Francisco Cerqueira conta como surgiu o samba. Foto: Geovana Camargo
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“Entrei no buzu, um ex-aluno me reconheceu e foi falar comigo. Me disse seu nome e falou que tinha passado na UFBA. Então ele me abraçou. Todo mundo no ônibus ficou olhando, ele ficou meio emocionado...essa é minha felicidade” Francisco Cerqueira
fazê-lo. “Porém o movimento resistiu. Em 2016 a fundação Gregório de Matos deu entrada para que o movimento do samba junino fosse tombado como Patrimônio Cultural e Imaterial de Salvador, e em 2018 isso foi concretizado”. Para Augusto, o samba duro persiste por ser hereditário. Na periferia, geralmente as crianças são aconselhadas a não ir muito longe de suas casas e ficarem por perto. Como por perto há o samba, os meninos aprendem a tocar. Outra forma de resistir ao apagamento é a renovação. Augusto e Lomanto fazem isso no grupo de samba duro Vai Kem Ké. “A gente tá inovando, trazendo a juventude, estamos rejuvenescendo o samba junino”. Por ser produzido pelo interesse de pesquisadores que se uniram ao maestro Augusto, como Lomanto e Rafaela Mustafá, e divulgado principalmente nas redes sociais, o grupo alcançou primeiramente universitários, muitas vezes, de classe média alta. Com sede na Casa do Maestro, localizada no Engenho Velho da Federação, tenta se aproximar da 8
comunidade, através de panfletagem, descontos e até cortesias, para que possam fazer parte dos eventos. O grupo é resultado do sonho de Augusto. Filho do maestro Vivaldo Conceição, conhecido como Luminoso Diamante Negro da Bahia, ele começou na Orquestra, mas foi no samba que se encontrou. Seu desejo era realizar uma releitura do Samba Fama, para reviver os momentos de fazer música sem pretensão ou cobranças. Dessa vez com especial cuidado: “As composições são bem estudadas. Nessa época agora do Samba do Recôncavo, a Rafaela fala das letras, da imagem da mulher", afirma. Segundo ele, não há espaço para o machismo nas letras cantadas pelo Vai Kem Ké. Depois de anos como compositor e uma das lideranças na Timbalada, hoje Augusto tenta resgatar seu samba: “Samba Junino nunca deu dinheiro para ninguém, mas alegria, minha amiga… dá de sobra”.
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PERFIL
Com vocês,
pneumaticamente
falando
Peu Meurray é aquela pessoa que dificilmente se enquadra em uma única categoria artística: cantor, músico, percussionista, artista plástico... um verdadeiro agitador cultural.
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peu
meurray Por Júlia Lobo e Maria Eduarda Mascarenhas Foto: Foto:Fernando Blog Peu Eduardo/ Meurray Flickr
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efronte o Farol da Barra, Jamisson Jorge Santana dos Santos, mais conhecido como Peu Meurray, chega com seu andar calmo e sereno. Esbanjando carisma, nos convida a sentar e prosear sobre o pilar da sua vida: a simbiose entre música e arte. Levando no peito o orgulho por Amargosa, Peu já se adianta e diz que é apenas um simples e humilde comedor de jaca amargosense. Alimentado também pela educação familiar amorosa que teve, não se esquece das suas raízes na música, inclusive pela sua primeira banda, chamada Banda Chá. “Eu nasci praticamente dentro de um tambor”, disse, entre risos.
Ainda pequeno, por influência do pai que tinha um tambor e um berimbau, Peu estreou seu dom na escola, promovendo batuques e sons que rapidamente animavam a todos. Cheio de inspirações, Peu as carrega por todos os lugares que passa. O percussionista, que se diz morador do mundo e turista em casa, teve a maior de suas ideias nas andanças por São Paulo: os tambores de pneu. Transitando pelas ruas, sua atenção se prendeu em uma escavadeira que estava retirando lixo no rio Tietê. “Aquilo me lembrou logo de Amargosa, do nosso rio Ribeirão, que hoje está poluído com o desequilíbrio da natureza. Quando eu vi a escavadeira tirar pneus dentro do Tietê, fiz essa reflexão do lixo nos rios e de como aquele pneu serve para tanta coisa”. Na
Peu: Pneumaticamente cantando. Foto: Marcelo Santana/Flickr
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infância, até chinelo e guiador eram feitos de pneu. Com as memórias que vieram à tona ao ver a cena no Tiête, criar um instrumento com essa matériaprima foi instintivo. “Fui feliz em ser o inventor do instrumento de pneu. Para qualquer parte do mundo, pneumaticamente falando, muitas pessoas sabem que a gente foi pioneiro ao desenvolver esse trabalho”, falou. Cheio de assunto
Os tambores de Peu não só simbolizam a sua genialidade musical como também representam a preocupação com o social. Ao iniciar seus trabalhos com as artes plásticas e, cada vez mais, com a necessidade de ter um lugar para as obras primas de pneu, surgiu o Galpão Cheio de Assunto. A ideia do local, construída com mais dois
amigos, só tornou-se realidade pela sua insistência no projeto. “Como meu som é totalmente na mão esquerda, e eu ainda estava aprendendo a compor, a cantar, buscando minhas novas timbragens e composições, o Galpão foi como o laboratório de Visconde de Sabugosa para mim”, contou. Às vezes ‘Cheio
“Quando eu vi a escavadeira tirar pneus dentro do Tietê, fiz essa reflexão do lixo nos rios e de como aquele pneu serve para tanta coisa” de Assunto’, outras ‘Cheio de Açúcar’; a confusão feita por alguns quanto ao nome do espaço talvez seja retrato da doçura do local. No Galpão, Peu mistura a música com o desenvolvimento sociocultural e ambiental. Além de servir como palco de suas apresentações, o Galpão Cheio de Assunto também é uma oficina de instrumentos com os pneus. Tambores, móveis e esculturas são alguns dos utensílios feitos pelas crianças e adolescentes das comunidades que participam do projeto, que utiliza pneus de carros, tratores e até mesmo de aviões. “Já peguei uma turma de meninos Memórias do Galpão Cheio de Assunto
Fotos: Arquivo pessoal
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da Federação para fazer as oficinas. De uma forma muito natural, virou um projeto sócio-cultural-ambiental pela própria imagem, pelo próprio som que se expandia”. Inaugurações de lojas de pneu, oficinas, show no carnaval, show acolá... Esses são os resultados do trabalho desenvolvido com os jovens, que se envolvem com as batidas dos tambores e seguem no caminho da música. Maravilhado, Peu afirma: “É
“Já peguei uma turma de meninos da Federação para fazer as oficinas. De uma forma muito natural, virou um projeto sóciocultural-ambiental pela própria imagem, pelo próprio som que se expandia” bem legal ver hoje cada um deles com sua divisão rítmica, com conjunto de bandas, outros independentes, outros trabalhando com grandes artistas”. O Galpão Cheio de Assunto é tudo o que Peu manifesta. É um espaço aberto a percussão, ao teatro, à cultura 14
em geral. Apesar da dificuldade dos tempos atuais em relação ao apoio aos projetos culturais, o músico acredita na propagação de novos conteúdos a partir da juventude, à quem chama de “instrumentos incríveis”, que demonstra interesse no assunto. Peu tem muita fé no novo, no que está por vir; o Galpão tem a função de sedimentar essa galera culturalmente, abrindo ainda mais o leque de oportunidades. Salvamargosa
Os sons dos tambores no Galpão trazem à tona outros tantos projetos que movem, literalmente, milhares de pessoas. Ao voltar para Amargosa depois de mais uma de suas estadias pelo mundo, enquanto tocava com Marisa Monte, o percussionista se viu perdido na própria cidade. Chegou no período de São João, quando havia muita gente no circuito da festa. Por não conseguir encontrar os amigos de infância, teve a ideia do Arrasta Pé Zona Rural: um trio elétrico no São João. “A ideia veio de uma simples vontade de juntar os amigos, todo mundo poder se encontrar para uma brincadeira junina, em busca de uma revitalização da festa”. Nessa brincadeira, já são mais de 15 anos de história do Arrasta Pé e um CD só com músicas juninas, que embalam mais de 1000 pessoas no ritmo do forró em sua cidade natal. Embora seu coração tenha raízes a 400m do nível do mar,
onde Amargosa está localizada, a alegria de Peu Meurray também está entre todos os santos. É Salvador que lhe traz a inquietação para a criação que todo baiano tem. Se todo dia inventamos e reinventamos alguma coisa, também criamos tendências de todos os tipos: ritmos, composições e cores. Trazendo à nossa conversa uma composição sua, interpretada por Margareth Menezes, Peu cantarola “o sol bate no rosto, abrindo a janela, a brisa bate forte, vem trazendo o cheiro dela” para simbolizar seu significado de alegria. Gente boa se atrai
Da união entre a música e arte, que trouxe raízes da cidade natal e firmaram na capital baiana, Jamisson Jorge Santana dos Santos não esquece de expor suas considerações. Com um semblante inquieto, nos fala suas impressões sobre o cenário da música em Salvador. Ao relembrar o título de cidade da música concedido pela Unesco, ele acredita que a classe artística precisa ser mais unida e direcionada para um legado com um cunho social bem mais consolidado. Os grandes artistas, como Ivete Sangalo e Carlinhos Brown, que apoiam projetos específicos com o intuito de contribuir na formação artística de jovens, poderiam associá-los em uma grande iniciativa. “Por exemplo, a gente poderia ter um clube com estúdio, campos, espaços
para shows, como uma verdadeira cidade de música”, sugere Meurray. Sua preocupação é, na verdade, com todos esses pequenos grandes artistas que estão começando agora e que são dependentes dessa engrenagem de auxílio. Assim, se a classe musical em Salvador buscar a união em projetos sociais, Peu acredita que a Bahia pode deixar uma herança ainda maior no mundo da música. Seguindo um caminho que acrescenta muito no nosso legado, seja através do batuque dos tambores, na diversidade do Galpão ou na quadrilha do Arrasta Pé, Peu tem mais um projeto que agrega toda essa multiplicidade elaborada a
"Fui feliz em ser o inventor do instrumento de pneu. Para qualquer parte do mundo, pneumaticamente falando, muitas pessoas sabem que a gente foi pioneiro ao desenvolver esse trabalho”
partir da sua essência, a música: o coletivo Gente Boa Se Atrai. O coletivo é tão amplo que nem o cantor conseguiu definir. Sorridente, ele explica que o coletivo não tem fórmula certa: ele se compõe em várias fórmulas, é um leque de informações. Criado com a inspiração na canção de mesmo nome, reúne compositores, desenvolvendo novos sons, cuidado social e a valorização de relações mais gentis. Se gentileza atrai gentileza, então pessoas boas realmente podem se atrair. É como a própria letra da música diz: “aproxima igualdade, gente boa se atrai”. Afinal, como tudo que Meurray faz, a generosidade não pode faltar.
Pneu? Tambor? Pneu de tambor? Maquinações. Foto: Pablo Bernardo/Cria!Cultura
COMUNIDADE
Cenรกrio
Novos artistas n
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o do rap
na cena de Salvador
Por Ă lene Edriele e Yasmin Cade
Por Igor Passador, Yasmin Cade e Maria Clara Andrade Fotos: Redes Sociais/Arquivo Pessoal Foto: Yasmin Cade Arte: Adriano L. Motta
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N
ascido nos anos 80, nas periferias de São Paulo, a partir de influências dos movimentos black power e do funk americano, o movimento hip hop brasileiro se tornou uma das mais poderosas formas de expressão das favelas por todo o país. Com discursos altamente politizados e voltado às vivências e reivindicações periféricas, o rap nacional em pouco tempo extrapolou as fronteiras paulistanas e conseguiu alcançar as mais diferentes quebradas em todo o território nacional, tomando rumos e ressignificações inesperados. Composto basicamente por um DJ, um MC, equipamentos de som, muita criatividade e vivência, o rap brasileiro se tornou um dos maiores contribuintes para a conscientização racial e de classe, transformando e unindo os lugares mais marginalizados do Brasil. Quem não se sentia representado pelos versos de “Negro Drama”, como cantavam os Racionais Mc’s? Ou entendeu que o ocorrido na Penitenciária do Carandiru, em 2 de Outubro de 1992, foi um massacre e não apenas uma operação policial contra uma rebelião? Apesar desse grande teor representativo, o rap não se limita a falar apenas de política. Novas vertentes do rap surgem a cada dia e se
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ressignificam a partir dos diferentes artistas que despontam nesse cenário, tendo apenas em comum a paixão por esse gênero musical. O rap é transformação, é auto estima, é dialeto, é o poder e a palavra das periferias. “Correria certa”, ou como melhor diria Sabotagem: “O rap é compromisso!”. A GROOVADEIRA DO RAP
Em Salvador, o rap chega ocupando um lugar periférico, como um movimento de resistência. Os primeiros grupos de hip hop baianos se unem para apresentações no Passeio Público em 26 de abril de 1996, data que se tornaria um marco na história do rap na Bahia. Desde então, muita coisa mudou. O rap baiano ocupa cada vez mais espaço no cenário nacional. Baco Exu do Blues é atualmente o nome de maior repercussão do rap baiano. Uma de suas faixas mais famosas, “Sulicídio”, critica a falta de visibilidade do Nordeste em relação ao Sul e Sudeste. Apesar de sua grande projeção, o rap produzido fora dos principais eixos ainda continua marginalizado. Para se sobressair, o rapper Tiago Negão acredita que é necessário acrescentar elementos da música baiana ao rap. “A gente é musicalmente diferenciado, ninguém fala da música que a gente faz. A gente tem que descobrir, passar a entender como natural incrementar elementos da
nossa musicalidade no rap.” DICEQUEIRA percebe essa mistura e a considera como um diferencial do rap baiano. As letras que, muitas vezes, servem de protesto, vem acompanhadas por um ritmo característico: o tal do “groove”. Uma mistura de pagode, arrocha, axé e reggae, a “quebradeira” da Bahia diferencia o Rap feito aqui das
Desde o começo fui instruída pelas mulheres que me botaram na cena de que eu tinha que lutar pelo meu lugar, mostrar para que eu vim” Áurea Semiséria
produções do restante do país. O surgimento do Axé Music na década de 80 revolucionou o cenário da música baiana. Parece que, depois disso, a criação musical nesta terra nunca mais foi a mesma. Com o Rap, não podia ser diferente. “A Bahia vive um momento musicalmente falando muito foda. O maior mote da indústria na Bahia era o Axé e ela caiu. A gente vê agora que novos gêneros estão tomando a liderança da cena da música baiana e tão fazendo o babado acontecer.”
Tiago Negão: Um dos pioneiros do rap no subúrbio
DICEQUEIRA ainda destaca essa reinvenção de ritmos tradicionais para além da Bahia. O rapper percebe essa mistura como algo característico da região nordeste. O RAPadura XiqueChico é um bom exemplo dessa mistura. Nascido em Fortaleza, ganhou projeção em todo o país com a música “Norte Nordeste me Veste”. RAPadura une a arte do repente nordestino ao rap, regionalizando o rap, ao mesmo passo em que difunde o repente para o cenário nacional. Áurea Semiséria também se orgulha da singularidade do rap feito na Bahia. A baiana encontrou no rap a liberdade para se expressar, sem papas na língua. “O rap de Salvador, o rap da Bahia, eu tenho muito
“O rap saiu do coletivo e foi pro individual. Se você pegar várias músicas de rap ultimamente, você vai ver que o cara tá o tempo todo falando dele mesmo” Tiago Negão
Foto: Instagram
orgulho de dizer isso, é um rap verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas aqui a gente tem a tal da ‘groovadeira’. A gente fala mesmo (...) a galera aqui bota muito para jogo, a galera é ‘paulera’ mesmo”. Essa liberdade de expressão foi um dos motivos que atraiu Semiséria a optar por seguir carreira no rap. Apaixonada por rimas e protesto, a rapper traz o potencial do rap de influenciar, dialogando com as comunidades de igual para igual. A utilização da própria linguagem e das gírias de rua são algumas das características responsáveis por possibilitar esse diálogo. “Os meninos falam o nosso dialeto de uma forma que entra na sua cabeça e você nem percebe. Daqui a pouco você não está fazendo a coisa errada que você fazia 19
antes por causa deles.” Tiago Negão também percebe essa proximidade como diferencial do rap, falando por experiência própria. “A comunicação do rap com a molecada acontece de maneira bem mais espontânea. Quem me deu esse senso de consciência, de negritude, foi o rap”. Negão também atribui ao rap boa parte de sua formação enquanto cidadão, através das Áurea Semiséria: empoderamento SIM
letras que sempre o instigaram a buscar mais. “Era uma educação meio que natural. [...] Se você ouvir o som de Black Alien, ele fala várias coisas que se você não estudar, se você não pesquisar, você não vai saber nada. Você só vai entender a música do cara quando você começar a pesquisar as coisas que ele tá falando, assim a música faz sentido para você. Então você Foto: Arquivo pessoal
pesquisa por gostar e para entender.” UNIÃO DAS QUEBRADA
Quando se trata de movimento hip hop, a palavra de ordem é coletividade. As conexões que se estabelecem nesse cenário não são diferentes das que já rolam entre as populações mais carentes do Brasil. Assim como o samba, o funk, o pagode e outras produções artísticasperiféricas, o cenário independente do rap tem seu
“O rap de Salvador, o rap da Bahia, eu tenho muito orgulho de dizer isso, é um rap verdadeiro. Não que os outros sejam falsos, mas aqui a gente tem a tal da ‘groovadeira’”. Áurea Semiséria
fundamento nas parcerias entre os artistas e produtores que desejam, em sua maioria, o crescimento do próximo assim como o seu próprio. Como diz Áurea Semiséria: “Aqui a galera tem essa de um ajudar o outro e eu gosto muito disso. A galera é muito independente: ‘Tô fazendo um home studio, passa 20
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lá em casa para gente passar uma ideia e gravar um som’”. DI também revela essa cooperação na gravação do seu primeiro clipe: “Quando começou, escrevi o projeto do vídeo, escrevi tudo direitinho. Precisava gravar a música, porque senão não teria como gravar o vídeo. Foi aí que os meninos me ajudaram, meus amigos também, várias pessoas que eu já havia ajudado”. O cenário independente do rap tem se fortalecido a partir da união e cooperação entre os diferentes agentes desse campo. Iniciativas como a do Underismo, que promove o Baile Under - um evento que reúne e promove os novos artistas do cenário do rap soteropolitano são responsáveis por visibilizar diversos artistas independentes. Por mais que obstáculos financeiros e pessoais atrapalhem bastante a produção de rap na perifeira, o clima que prevalece é de coletividade. Os produtores, artistas e apreciadores do movimento dividem, além de suas vivências, suas casas, suas energias e seus afetos. “A galera daqui tem isso. Eu fui muito abraçada pela galera da Balostrada, pela galera do Na Calada, que foi o primeiro coletivo que eu participei. Pela galera da Onda, que tá chegando agora e que me abraça de uma forma muito boa”, conta Áurea. Entretanto Tiago Negão que está a mais tempo dentro do 22
universo do rap intervém nos atentando pro conteúdo das produções: “O rap saiu do coletivo e foi pro individual, do ego, daquela coisa assim. Se você pegar várias músicas de
"O rap vai além do público. Mesmo sendo um artista LGBT, vai além disso. A gente tem muito o estigma de que um artista LGBT pauta e direciona o seu trabalho ao público LGBT. Não, a gente faz música pro mundo." DICEQUEIRA
rap ultimamente, principalmente as mais populares, você vai ver que o cara tá o tempo todo falando dele mesmo, sacou?”. É inegável que a forma de se fazer rap mudou bastante nos últimos tempos. O movimento hip hop já se consolidou como uma manifestação cultural legítima, o campo tem se especializado,
se profissionalizado e ingressado dentro das produções mainstream, o que tem implicações diretas no que é ou não divulgado na grande mídia. O RAP DAS MINAS, DAS MANAS, DAS MONAS e DOS MANOS
O rap, apesar de ter surgido como uma manifestação cultural de resistência, sempre foi majoritariamente realizado por homens negros héteros. Mesmo abordando os temas característicos da comunidade, a militância negra e o compartilhamento de experiências do gueto, tudo era expressado através do ponto de vista masculino heteronormativo. As mulheres eram, muitas vezes, objetificadas nas letras, subjugadas e tratadas com inferioridade. Antigamente, as poucas vozes femininas no cenário eram representadas por Dina Dih e Negra Li, mas elas acabavam sendo mais figurantes do que verdadeiras protagonistas. “Era como se tivesse os cara na frente e elas vinham na contenção. Tinham certo espaço, mas vinham na contenção”. Atualmente, essa lógica está começando a ser revertida. “Se você pegar Carol Konká, ela é linha de frente. Faz propaganda para grandes marcas. Vende o nome não de maneira pejorativa, mas mostrando a imagem de empoderamento: de beleza do jeito que ela quiser, com o cabelo do jeito que ela quiser”.
Para Negão, são as mulheres que estão enfrentando e indo tomar seu espaço de direito, e não o rap fazendo autocrítica e tentando consertar esse cenário desequilibrado. Áurea Semiséria é o exemplo perfeito disso. Natural de Cajazeiras 11, a rapper afirma que a aceitação do rap, já prejudicada pelo fato de ser originário do gueto, é ainda pior quando se trata de mulher. Para conquistar seu lugar, a mulher precisa de muita coragem e garra para enfrentar o que vier. “A galera já tentou me bater e as porras, mas eu sou trem, a carreta. Ninguém passa por cima de mim não. (…)Desde o começo eu fui instruída pelas mulheres
que me botaram na cena de que eu tinha que lutar pelo meu lugar, mostrar para que eu vim”. Foi isso que ela fez e continua fazendo até hoje. “A gente é toda resistência. Não é fácil eu trabalhar com o rap sendo mulher preta, favelada, bi e gorda. Tem um pessoal que cresceu em cima das mulheres, dizendo que a bunda é gostosa, esculachando. Seja em clipe, seja em letra. A mulher é livre, só que ela é livre para ela mesma.” Para a rapper, cabe à mulher criar sua própria identidade dentro da música, se colocar da forma como quiser e se estabelecer em um espaço bem definido de fala. “Aonde eu vou, eu sou o
diferencial do lugar. Eu não sou uma mina branca que está lá só para balançar a raba. Eu tô balançando a raba, porque eu posso balançar minha raba e tô aqui militando. Eu tô dizendo que você também pode estar aqui, no seu lugar, porque o lugar é nosso. Enquanto tiver lugar, eu tô ocupando.” No cenário LGBT as coisas não são muito diferentes. Os LGBTs mal eram contemplados e, quando o eram, isso ocorria na forma de chacota, preconceito e ridicularização. Hoje em dia isso está começando a tomar uma nova perspectiva, mas, segundo o rapper Tiago Negão, o rap ainda continua muito
DICEQUEIRA: Da Ribeira pro mundo. Foto: Arquivo Pessoal
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masculino. “A gente tá nesse período de transição, mas ainda é predominantemente machista. [O rap] é muito estereotipado, porque, às vezes, ele cria aquela visão de gueto, de homem negro do gueto violento, que na real não é”. Segundo o rapper DICERQUEIRA, a masculinidade tóxica ainda é predominante no meio. “Um cara hétero desse ‘mangagão’ não vai ouvir viado falando coisa de viado, ele não vai parar para ouvir isso. Tem a galera que vai respeitar e tudo mais, mas pouca gente vai chegar e ouvir como escuta um Emicida da vida, um Criolo, Racionais, Mano Brown… Acaba ficando aquela coisa estigmatizada”. Para o artista LGBT, os estigmas estão estabelecidos por ambos os lados. Eventos voltados para o público gay não contratam porque é rap, estigmatizado, e os eventos de rap não contratam porque é gay. “É um ambiente hostil e a gente tá chegando agora nesses espaços. A gente tem que tá muito preparado e ciente de que, se não é fácil para mim porque eu sou preto, vai ser mais difícil ainda porque eu sou viado”.
“Aonde eu vou, sou o diferencial do lugar. Eu não sou uma mina branca balançando a raba. Eu balanço a raba, porque eu posso balançar e tô aqui militando. Eu tô dizendo que você também pode estar aqui, porque o lugar é nosso. Enquanto tiver lugar, eu tô ocupando.” Áurea Semiséria
Além disso, se o artista se assume LGBT, as pessoas passam a esperar dele um trabalho exclusivamente voltado para essa temática e para esse público, quando nem sempre é o que acontece. “O rap vai além do público. Mesmo sendo um artista LGBT, vai além disso. A gente tem muito o estigma de que um artista LGBT pauta e direciona o seu trabalho ao público LGBT. Não, a gente faz música pro mundo”. DI, que está começando a despontar no cenário do rap em Salvador, diz que existem muitas pessoas dispostas a apoiar para que o rap LGBT e o rap das minas tenham o espaço justo. “Apesar da gente ter toda dificuldade na questão de sexualidade e de gênero, encontramos pessoas que têm a mente aberta para fazer a galera se ligar que, por mais que eles não escutem muito, tem que respeitar, mesmo com todas as adversidades que isso possa causar.” Mais uma vez, o senso de comunidade e de apoio social volta a se afirmar no cenário do rap em Salvador. Ao que tudo indica, a empatia aqui prevalece.
Todos os álbuns lançados pelos rappers desta matéria
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EIXO
Onde estão Por Álene Édriele Foto: Álene Édriele
as
compositoras?
Pesquisa realizada pelo Feminária já registrou mais de 150 mulheres que atuaram no cenário musical soteropolitano
Até mesmo o som, quando produzido por mulheres, sofre um processo de invisibilização. Esta é a conclusão que temos ao observar a pesquisa do Feminária, grupo que une pesquisas de gênero e música. O grupo está ligado ao programa de pós graduação da Escola de Música da UFBA. A equipe coordenada pela professora Laila Rosa surgiu em 2012, a partir de um projeto de pesquisa, a princípio para problematizar o que não se produz sobre mulheres em música no Brasil. Hoje, após cinco anos de estudos que ainda continuam, a pesquisa mostra, a partir de dados concretos, o que já sabemos no nível do senso comum a respeito das composições femininas. Até o primeiro semestre de 2019, 150 mulheres compositoras que de alguma forma interferem ou interferiram na produção musical soteropolitana foram registradas. Para a bacharelanda em história Cristiane Lima, 39, integrante responsável pela memória da Feminária, outro aspecto que chama atenção é a separação instrumental entres os gêneros. De acordo com Alana Costa, estudante da EMUS e terceira bolsista à frente do projeto, o problema da invisibilização das produções femininas tem seu início dentro das próprias instituições, onde a composição feminina é pouco explorada na grade curricular e 26
no próprio fazer musical das disciplinas. Mudança de rota
“Por que quando eu coloco compositoras no Google só me mostra nomes aleatórios de mulheres e não a história dessas mulheres, como quando você coloca o nome de compositores homens?”
Se existe dificuldade na valorização do trabalho feminino dentro do próprio espaço acadêmico, o processo se repete para quem já está em busca do reconhecimento artístico fora desse universo. Dentre os nomes registrados, a grande maioria não compõe de forma profissional. Segundo a estudante, compor de forma profissionalizada ainda é algo que depende da condição financeira inicial. Muitos artistas bancam as suas produções e os que não o fazem recorrem a premiações e concursos para investir em futuros projetos. Alana acredita que, para essas mulheres existirem trabalhando, é necessário que primeiro elas existam compondo. Partir para o âmbito profissional ainda é uma questão de dinheiro, o que acarreta na migração dessas artistas para outros lugares, de forma a obterem maior reconhecimento e sucessivamente crescer no mercado. Boa parte dessas artistas nasceram em Salvador. Sempre enxergaram na cidade o alvo para mostrar seus trabalhos, porém a ausência de espaço e reconhecimento não permite a construção de interação entre musicista local e comunidade. Atualmente, o padrão observado pela pesquisadora é
que as compositoras, quando começam a crescer, se sentem obrigadas a apresentar suas obras - de diferentes gêneros musicais - em outras cidades do país, como São Paulo, ou no exterior, principalmente a Europa. Esse fenômeno acontece por conta da falta de valorização na terra natal. Continuação dos trabalhos
O grupo, que também está ligado à linha de pesquisa Gênero, Arte e Cultura do PPGNEIM/UFBA, traz a reflexão do feminismo para o assunto. Entretanto, apenas o gênero não explica o desconhecimento sobre a existência de tantas mulheres produzindo música, somente no cenário soteropolitano, visto que dentre essas mulheres existe o fator diversidade. Segundo Alana
“ Aquele ditado, ‘baiano não nasce, baiano estreia’ pode até ser verdade, mas parece que para começar a ganhar dinheiro, é necessário ir para lugares mais distantes” Alana Costa
Costa, os recortes de raça também interferem significativamente no processo de ascensão artística dessas mulheres. Na sexta edição do projeto, após duas bolsistas antecessoras a Alana terem feito o levantamento dos nomes, a missão dela será mapear de forma mais detalhada, para que haja um catálogo completo do trabalho dessas mulheres. A partir de entrevistas, ir além do mapeamento, de forma a analisar o que foi feito com passar do tempo. Se essas artistas ainda produzem, se passaram para o campo profissional e onde estão, para um contato mais próximo da atual realidade dessas artistas.
Dó, ré, mulheres precisam ter espaço na música
Foto: Álene Édriele
PÁGINAS VERDES
Sem escu A história (e a mulher) por trás da Lei Antibaixaria
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raduada em letras na UFBA, Luiza Maia iniciou seu engajamento na política desde a universidade, chegando a ser diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Atuando na política de Camaçari desde a década de 80, a principal luta de Luiza sempre foi pelos direitos das mulheres. Eleita deputada estadual em 2010, apresentou o Projeto de Lei intitulado Antibaixaria, o qual proíbe por parte do estado da Bahia a contratação de bandas com músicas depreciativas para a mulher.
Por Yasmin Cade e Maria Clara Andrade Foto: Instagram
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ulhambação
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PÁGINAS VERDES Quais foram os principais motivos que levaram à criação da Lei Antibaixaria? Como foi que surgiu essa iniciativa? Eu sou uma feminista. Desde meus 13 anos, tomei consciência de que o machismo não é coisa de Deus, de que eu ia lutar com todas as minhas forças contra o machismo. Não faz sentido como seres humanos. Não é fácil, não é? Eu estou com 66 anos e sei que não é. O machismo é uma coisa que está enraizada na cultura nossa, na nossa cabeça, inclusive das mulheres. Não é fácil você se livrar disso, dar outro tom, outro toque na vida de todo mundo. Quando eu comecei no mandato de deputada, tínhamos um pleito das mulheres. Muitas mulheres constrangidas, incomodadas com aquelas músicas. Em Camaçari não precisou de aprovação de lei. O prefeito colocou uma cláusula nos contratos do município: bandas que tocassem música que agredisse ou rebaixasse a mulher, fazendo apologia à violência ou à droga não eram permitidas e, caso cantassem, perderiam 30% do cachê. Já era um exemplo de que as mulheres estavam fazendo essa discussão. Não dava para o poder público financiar uma “esculhambação daquela”, porque não tem outro termo [para descrever]. Na Assembleia, algumas colegas, professoras lá do NEIM [Núcleo de Estudos 30
Interdisciplinares sobre a Mulher] ajudaram muito fazendo essa discussão. A gente foi tendo paciência, o pessoal do NEIM, os movimentos sociais, os movimentos de mulheres, os núcleos de mulheres dos partidos, todo mundo foi entendendo. Todo mundo se “retava”, ficava indignado, se envergonhava. Do ponto de vista do rebaixamento da gente à coisa, à objeto, objeto sexual e descartável. Menina, esse negócio deu pano para manga. Botaram todo tipo de defeito no projeto. Falaram que eu estava querendo resgatar a censura. “Como é que vai proibir a liberdade de expressão?” Ninguém quer proibir liberdade de expressão. A gente só está pedindo que o dinheiro público não vá financiar uma esculhambação dessas com outras mulheres. Aí o pau quebrou mesmo, foi uma confusão do diabo. Mas foi crescendo o apoio. Toda hora eu era convidada para uma entrevista, para fazer um debate. As igrejas também se incomodavam muito com aquilo. Isso foi crescendo. Depois de 9 meses, o presidente da Assembleia decidiu que era só iniciar a votação. Na Segunda Conferência Estadual, nós tínhamos em torno de quase 3 mil mulheres presentes, acho que mil e poucas delegadas, um tanto de convidadas e um tanto de observadoras. Quando eu falei, bastou eu dizer: “Essa conferência precisa dizer para aquela casa machista que
A violência não é só física, sexual ou doméstica. Existe a violência simbólica. Quando você atinge a autoestima da mulher, é uma violência psicológica aprovar essa lei é uma necessidade para a vida das mulheres. Nós não podemos aceitar uma campanha de desmoralização da mulher através da música como se nada tivesse acontecendo com a gente”. Eu não sei se eu falei nem 30 segundos, as mulheres já levantaram gritando, cada uma dizia uma palavra de ordem, ninguém entendia nada. Então fizemos algumas audiências públicas. Alguns entravam lá meio tímidos, depois começavam a dizer que também estavam apoiando. Foi nesse crescente que a lei acabou sendo aprovada. Wagner sancionou uns 15 dias depois, mas a gente ainda não conseguiu regulamentá-la. Mas a regulamentação também não impede que a lei seja aplicada.
A senhora mesmo falou sobre essa dificuldade da regulamentação. O que é que está causando isso? A regulamentação é assim: ela diz quem vai fiscalizar e diz
para onde vai o dinheiro. Eu acho que tem um pouco de má vontade de alguns técnicos. Tu sabe como é a burocracia do Estado, não é? Como as coisas das mulheres não tem muita importância num momento complicado do país, economicamente, politicamente, aí acham que não é uma coisa tão importante. Mas independente disso, por exemplo, os contratos na Secretaria de Cultura, Secretaria de Turismo, tem sempre lá uma cláusula dizendo que não se canta música com esse conteúdo. A punição aqui no Estado é 50% do cachê e o gestor que contrata paga 10 mil reais do seu bolso. Não sei se reajustaram também, mas nós vamos insistir. Se a gente for fazer uma avaliação, vai completar 7 anos em abril de 2019. Num primeiro momento, eles sumiram da Bahia, o Carnaval seguinte não tinha baixaria financiada nem pela prefeitura nem pelo estado. Outra coisa importante também foi isso, quase 80 municípios também aprovaram a lei, municipalizaram a lei. Porque foi uma jogada deles [os deputados], eles colocaram só recurso público estadual, e a gente sabia que a baixaria no interior corria solta. Então os deputados machistas, os donos de banda de baixaria, fizeram isso para os municípios não terem nenhum problema com a lei na hora dos repasses. Mas a gente ficava de olho, onde o
Estado repassava dinheiro a gente articulava o Ministério Público, os movimentos de mulheres de vários lugares. Foi aquele período do caso New Hit, banda que cometeu aquele estupro coletivo Aquilo tudo foi... quem canta baixaria, pratica baixaria, para eles aquilo não era nada demais. Fizeram aquele estrago com a vida daquelas duas adolescentes, quase crianças. Então, cada dia mais a gente ia
O foco maior [das músicas] era na destruição e o rebaixamento da nossa sexualidade. A gente não tinha o direito ao prazer, a sexualidade nossa não tinha valor nenhum, nós éramos vistas por eles como objeto de prazer sexual, que usou, descartou, jogou lá.
perdendo nosso valor, nossa dignidade de ser humano. Pelo que nos constam, os direitos humanos não foram declarados só para metade dos seres humanos. A iniciativa privada financiou algumas bandas, acho que no terceiro ano da aprovação da lei, principalmente a
Insinuante e o Bradesco Nós fomos para cima também, fizemos uma carta para eles, chamamos para reunir, falamos que se eles continuassem fazendo isso que nós, as mulheres feministas, íamos fazer uma campanha contra eles.
A lei ajuda na conscientização das pessoas? Bandas ou artistas pensam duas vezes antes de escrever ou escolher uma letra para cantar? Eu acho que uma parcela refletiu muito. Para mim, num primeiro momento, eu acho que foi fundamental, deu aquele freio de arrumação, como a gente fala, não é? A música é uma das expressões culturais mais importantes na vida de todo mundo, quem é que não gosta de música? Como pode uma expressão cultural, um instrumento importante de unificação da população, da sociedade, ser usado para nos agredir, para nos desmoralizar, nos rebaixar, fortalecer o racismo? Como aquela música do Luiz Caldas, a “nega do cabelo duro"? Mas tem gente que resiste e que insiste, inclusive mulheres. Eu fui muito questionada. Eu acho que isso também é questão de educação, porque uma mulher que não tem ainda consciência que isso agride sua dignidade, vai lá na onda. Na hora que ela adquirir essa consciência, eu duvido que ela vá lá dançar, “dar a pata” e ficar de quatro, fazendo aquelas coreografias horrorosas de destruição da
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nossa dignidade. Mas eu acho que valeu a pena. Já me perguntaram, “a senhora não faz mea culpa?” Mea culpa de quê? Eu acho que nós marcamos, foi um momento importante. Porque se não lhe incomoda aquela agressão na letra... não é na música, é na letra, porque o pagode é um ritmo que todo mundo gosta. Eu sou fã, digo e assumo que sou pagodeira Para mim, é um ritmo que tem a origem dos nossos ancestrais da África. É um ritmo bonito, o qual todo mundo se embala. Agora, precisa você botar uma letra tão desmoralizante igual àquela? Tão agressiva que nos rebaixa tanto à coisa, à objeto e tudo isso? Eu acho desnecessário. Esses dois últimos anos de Carnaval, a gente recebeu muitas denúncias do observatório da Lei Antibaixaria, da Lei Maria da Penha, da igualdade racial, das mulheres. A gente faz todo ano no Carnaval, porque Carnaval é a principal festa, e São João, porque o ritmo não é só o pagode, o forró também tem umas esculhambação do diabo. A que mais me marcou foi: “jogaram uma bomba no cabaré, foi pedaço de puta para todo lado, os cabelos para um lado”. [A música] Diz que ele juntou tudo e fez uma puta. Não sei se o termo era puta ou piriguete, que todo mundo queria. Era um negócio brabo. A gente precisa estar de olho vivo, porque São João e Carnaval são os momentos que 32
a gente faz as campanhas junto com o Ministério Público, a Secretaria Estadual da Mulher, os movimentos sociais, Defensoria Pública e o Tribunal de Justiça. A gente tem que fiscalizar, tem que denunciar. Todo ano eu faço essa discussão com o governador, faço com o prefeito e em entrevistas. Por favor respeitem a lei! Tem uma campanha da secretária da mulher, do Ministério Público para respeitar a Lei
Como pode uma expressão cultural, um instrumento importante de unificação da população, da sociedade, ser usado para nos agredir, para nos desmoralizar, nos rebaixar? Antibaixaria. Não dá para a gente ficar calada, tem que fazer a nossa parte. É um trabalho que você precisa discutir nas escolas, ajudar a formar. Mas teve um retrocesso no nosso plano estadual de educação que é a tentativa de retirar do plano esse debate da violência contra
a mulher e da igualdade de gênero. Eles inventaram uma tal da ideologia de gênero. Um deputado pastor disse que ideologia de gênero era para ensinar menina a ser lésbica e menino a ser “viado”. É uma vergonha, uma tristeza ter um colega desse numa casa legislativa. Uma bandeira histórica do movimento de mulheres como é a igualdade de gênero que teve essa distorção toda, essa inversão do seu papel através dessas maluquices aí de um bocado de evangélico.
Há a ideia de se ampliar essa lei para um nível nacional? Há sim. A deputada federal, que hoje é prefeita de Lauro de Freitas, Moema [Gramacho, PT], apresentou [a proposta de lei antibaixaria]. Foi aprovada na comissão. Acho que a qualquer hora pode entrar na pauta. Mas com os retrocessos, com esse novo governo e também com o crescimento da bancada evangélica, da bancada da bala e da bancada ruralista, que tem todos esses preconceitos carregados neles, foram achando espaço para sair do armário e estão lá destilando ódio para todo lado, não sei se vai ser uma coisa muito fácil não. Porque muitas conquistas das mulheres a gente perdeu.
ESPECIAL
Do jeitinho que o povo gosta Por Adriano L. Motta
O
Arrocha, Arrocha Arrocha
*Colaboração de Erick Barbosa
arrocha é parte da cultura baiana. Junto do axé, é daqueles ritmos que, quando se ouve, a ligação com a boa terra é automática. Começou como seresta no Rio, mas ganhou o nome e a fama que tem hoje graças à Pablo e Asas Livres, os grandes pioneiros do ritmo nessas terras. Vou lhes contar uma história rápida sobre arrocha, o ritmo que faz Salvador chorar. Estava eu no ônibus voltando para casa, após mais um dia de trabalho. Caminho tortuoso, longas uma hora e trinta minutos de viagem até meu destino, Paripe. Como já virou rotina nesses tempos de crise e desemprego, um vendedor de picolé entrou no ônibus. Nada demais. Até o que veio depois. Ele se instalou no fundo do coletivo, encontrou algumas pessoas por lá e começaram a conversar. Poucos minutos depois lá estava o vendedor, no alto dos seus cinquenta anos, soltando a voz e chamando a sofrência para dentro do 1633. Bem, não era um Pablo. Nem um Tayrone. Nem aquele tipo de cara que toca em bar que você não faz a menor ideia de
quem seja - no fundo não importa, pois a bebida é o que conta. Estava tão ruim que doía quase tanto como a tristeza das letras. A qualidade nem era relevante. O importante mesmo era que sua cantoria vinha do coração, da parte mais sentimental. Bem como uma sofrência deve ser. Ouvi seu show por volta de uns vinte minutos e já me senti um pouco parte da sua vida. Eu sabia quem era a pessoa amada, o que lhe tinha acontecido e por quem ele brigava, embora ele disfarçasse a tristeza com risadas e piadas na roda de improváveis amigos. Onde quer que esteja a Daiane por quem ele chorou na seresta do Gaji, sinta-se de algum modo tocada. No começo ninguém curtiu, um pessoal ficou mais revoltado do que animado. No fim formou-se até uma rodinha para ouvi-lo cantar suas agruras e cantando com ele (ou tentando, já que ninguém conhecia as letras). A cantoria foi tanta que nem a voz dele aguentou mais e ele deixou de cantar. O grupo formado pelo arrocha ficou conversando e rindo sobre a vida durante a viagem, até cada um ir para o seu destino e
os improváveis companheiros se separarem. Essa história traduz o impacto do arrocha nas pessoas. O impacto que o arrocha tem por ser um ritmo popular. Não só popular, mas do povo. Para as pessoas cantarem sobre as angústias, dores, alegrias, vitórias, derrotas… um ritmo para cantar sobre o amor. Para aquele vendedor de picolé, era o jeito de desabafar sua tristeza. E, a partir disso, encontrar alegria com os colegas. Como visto no ônibus, o arrocha une as pessoas numa só dor, numa só causa, numa só história. Por isso ele é tão popular. Por isso para falar desse ritmo, decidimos ir atrás de quem lhe deu fama: O povo. A partir das histórias de amor, decepções, alegrias, tristezas cantadas de Salvador para o mundo, queremos mostrar o significado do arrocha está na vida das pessoas. A cada um que bebe solitário no bar, a cada um que faz festa com os amigos, os que cantam no chuveiro sozinho ou os que ouvem através do vizinho. Essa série de crônicas é de vocês. 33
ESPECIAL
#1: Chora não bebê Esse cara não te ama, ele só te faz sofrer. Os acordes de Pablo ajudaram Lucimara, 30, a sair do que ela mesma considerou como “cilada”. Tudo começa com uma história típica de filme. Há dois anos atrás, a moça de Guanambi entrou numa loja para tomar sorvete. Nada demais até entrar um homem que chamou sua atenção pela beleza. Moreno, alto...talvez ele fosse a solução dos seus problemas. O destino logo tratou de fazer seu trabalho. Ali mesmo os dois começaram a conversar e logo surgiu a química. Daquelas que você sente quando encontra alguém especial. Doce como o mel da flor. Naquele dia na sorveteria, os dois trocaram whatsapp e continuaram a conversa. O destino apareceu na história quando eles começaram a se encontrar justo nos horários que Lucimara ia buscar o filho na escola. Coincidências que nos fazem acreditar no poder do universo. A partir daí, a relação dos dois foi esquentando e Lucimara se apaixonando pelo rapaz, caindo nos seus charmes. Ela diz que nunca tinha se sentido assim por alguém antes. Havia, porém, um problema: Ela já estava em um relacionamento à época. Tinha uma escolha a 34
fazer. Preferiu terminar o que tinha antes e deu o salto de fé. Queria viver o conto de fadas. Daí começou a relação e os primeiros atritos aconteceram. O problema dos contos de fadas é que eles acabam. O que sobra é a realidade. No caso de Lucimara, o moreno alto com certeza não era a solução dos seus problemas. Pelo contrário, foi a causa de diversos outros. O rapaz começou a ignorá-la. Mesmo com ela insistindo, ele não lhe atendia ou respondia. Ou fazia isso quando bem queria e ia embora. Nem sobrou sentimento: ele simplesmente não existia. “Quando me apaixonei de verdade por ele, no nosso quarto mês, ele me disse para cuidar da minha vida e deixálo em paz. Foi quando o mundo acabou para mim”. Isso a magoou muito. Todas as noites, ela chorava na sua casa, triste por ver que seu amor não era correspondido em nenhum grau. Já era óbvio que ela havia se apaixonado pela pessoa errada. Sua vida tornou-se um mar de tristeza. Cenário ideal para você sabe quem. O Rei da Sofrência, se é que esse título existe, Apolinário. Na fase de tristeza, somente horas de boteco do Pablo pôde consolála. “Ajudou a olhar para trás e
enxergar os erros do passado. Quando escuto, minha vida passa como se fosse um filme”, diz. Desse DVD, a música que mais lhe marcou foi “Chora não Bebê”. “Sabe quando você conhece aquele cara que te faz jogar tudo para o alto, te faz pensar que vai dar certo mas no final ele pede para lhe esquecer? Fiquei escutando essa música por muito tempo até assimilar”. A mensagem da música, embora simples, nem sempre é fácil de seguir. A doce complexidade de se fazer o simples. Esse cara não te ama, ele só lhe faz sofrer. Ela sentiu como se fosse escrita sob medida para contar sua história. Assim ela conseguiu as forças para superar essa decepção amorosa e seguir a vida. “Graças a momentos como esse, hoje sempre estou de sorriso no rosto. Mesmo quando a vida dá uma rasteira trago sorriso nos lábios”, diz Lucimara, sabendo que o mundo gira e a vida continua. E palmas para as voltas que o mundo dá. Um ano depois, o mesmo cara que a havia rejeitado a chamou para resgatar a história que tiveram. Prontamente rejeitado. Que ele esteja ouvindo Chora não Bebê em algum lugar agora.
#2: Filmes e Histórias A próxima história é, de fato, especial. Tanto que o redator desta matéria alegou suspeição e entregou-a para o editor-chefe desta edição. A relação entre Adriano e Fernanda é digna de um filme: encontro repentino, com auxílio da tecnologia, amor à primeira vista. Ou seria à primeira música? O casal, que se encontrou pela primeira vez no dia 30 de dezembro, não titubeou em se encontrar de novo no dia seguinte. Quem é que vê a pessoa pela primeira vez e a chama para passar o réveillon junto no outro dia? Sempre soube que ele é maluco. Sorte dele que achou uma louca também. E os dois se perderam, um nos braços do outro, ao som de Pablo em São Tomé de Paripe. Na missão de conquistar uma garota fã de cinema, Adriano abriu seu extenso acervo da Voz Romântica e lançou mão da música correta: Filmes e Histórias. Uma música sobre o que você precisar. Amor, filme, romance, ação. Histórias que não são reais até que aconteçam com você. Ela foi minha Mary Jane. A mulher ideal, para todos os momentos. Sim, eu sei que parece história de comédia romântica. Mas é verdade. Convidei uma garota que mal conhecia para um show de arrocha e eu nem sabia se ela
gostava. Depois vim descobrir que não. Tinha tudo para dar errado. Não deu. Resultou em um dos melhores momentos da minha vida. Um desses momentos que a realidade não dói e você fica cego, perdido mas também feliz, tudo ao mesmo tempo. Quando você experimenta o amor pela primeira vez. Ali foi quando eu senti. Eu nem tentei escapar mas não conseguiria de qualquer maneira. Já estávamos perdidos nas grades dos nossos corações de qualquer maneira. Eu nunca soube dançar na minha vida, sempre fui duro que nem pedra. Às 2 da manhã, no entanto, lá estávamos nós em São Tomé, dançando arrocha como se não houvesse um amanhã. Graças a Deus(ou a quem quer que você acredite) que houve. Por algumas horas, a praia lotada por conta da festa pareceu um salãozinho de dança. O caótico revéillon pareceu parar só para aproveitarmos aquele momento. Mesmo quando só sobraram os bêbados demais para voltar às suas casas, ainda estávamos la. Mesmo quando o candeeiro já tinha se apagado e até a sanfona cochilado, estávamos lá. Se me perguntarem, até hoje só sei dançar com você. Isso é o que o amor faz.
Descobrimos lá mesmo que teve um amanhã. E como aproveitamos aquele amanhã. Saímos do show e continuamos na praia, conversando e vendo o tempo passar, até só que sobramos nós e quem estava bêbado demais para conseguir voltar. Provavelmente estávamos bêbados demais. Só que não bebemos uma gota de álcool naquele dia. Vejam só o que é o sentimento. O amor pode vir das mais improváveis maneiras possíveis. Pode ser num show de arrocha ou na sinaleira do buzu. Até mesmo na fila do banco. Quem pode dizer aonde coração irá se apaixonar? É impossível contar uma história dessa sem acionar o Homem-Aranha (!?) para dar seu testemunho. Um bêbado de amor. Afinal de contas, é essa a função do arrocha, para celebrar ou afogar as mágoas: embriagar corações apaixonados.
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